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Moeda, Preços e o Futuro

Antonio Carlos Lemgruber


Economista e ex-Presidente do Banco Central do Brasil

Vamos começar supondo que o conceito de moeda relevante - no sentido de


influenciar a evolução do PIB - ê de fato o agregado que foi imobilizado pelo Governo.
Vamos chamá-lo de M4, correspondendo a: papel-moeda, mais depósitos à vista, mais
depósitos de poupança, mais CDBs, mais LFfs e outros titulos federais, mais dividas
estaduais e municipais.
A reforma monetária de março;90 pode ser caracterizada com precisão como um
choque monetário não-antecipado, por sinal um tema que vem ocupando bastante a atenção
dos monetaristas modernos, que se preocupam em entender a divisão dos efeitos da moeda
sobre preços e sobre o produto real. Uma caracteristica do choque brasileiro ê que houve
uma redução não-antecipada de cerca de dois terços no estoque de moeda na economia (algo
como de 100 para 33), um impacto de uma única vez que não deve ser confundido com a
evolução da taxa de crescimento monetário. Outra forma para entender essa diferença ê
lembrar que um estoque baixo de moeda não ê o mesmo que uma taxa baixa ou decrescente
de expansão monetária.
O que pode acontecer com a economia em conseqüência deste choque? Há, pelo
menos, quatro variáveis macro que merecem ser destacadas: a taxa de inflação, o nivel geral
de preços, a taxa de crescimento do PIB e o nfvel do produto real. Note-se que uma taxa
baixa (ou decrescente) de inflação é compatível com preços baixos ou com preços altos e a
mesma diferenciação é importante para o produto: uma coisa é produção alta (baixa); outra
coisa ê produção crescente (decrescente).

R. Bras. Econ. Rio de Janeiro 45 (espec.): 188-92


ANTONIO CARLOS LEMGRUBER /189

Como se pode depreender pela leitura dos jornais e pelas entrevistas de economistas,
parece que todos somos monetaristas atualmente no Brasil. Nesse caso, é muito importante
registrar os resultados recentes obtidos em pesquisas teóricas e empiricas de economistas
monetaristas como Barro, Lucas, McCallum, Sargent e outros, os quais têm implicações
diretas sobre os efeitos macroeconômicos do choque.
Uma redução forte e não-antecipada no estoque de moeda afeta o nivel de preços (para
baixo) e o nivel de produto real (para baixo), sendo que a distribuição desse impacto é
duvidosa, mas provavelmente recai muito mais sobre o produto do que sobre os preços. Até
os monetaristas reconhecem uma rigidez nos preços na direção descendente, o que por sinal
é bem diferente de reconhecer uma rigidez inercial na taxa de inflação. Cabe lembrar que,
no Brasil, salários nominais não podem ser reduzidos, sem falar na rigidez de vários preços
públicos. A surpresa da contração monetária acaba atuando sobre as quantidades vendidas.
O choque monetário se transforma num choque real pela contenção imprevista da demanda
agregada.
Já uma expansão antecipada e anunciada da liquidez na economia - por exemplo,
um crescimento mensal de x% a partir daquele estoque baixo inicial - pode não exercer
nenhum efeito sobre a taxa de crescimento do PIB real e transbordar inteiramente sobre a
taxa de inflação. Mais precisamente, qualquer crescimento monetário acima de 0,5 % ao mês
(que seria a taxa histórica do PIB real) pode resultar em fortes pressões inflacionárias.
Além disso, a inflação é influenciada não s6 pela expansão monetária anunciada e
efetivamente verificada, como também pelas expectativas de crescimento futuro da moeda.
Nesse contexto, convém lembrar que esse é o principal canal (expectativas) pelo qual o
déficit público afeta a inflação. Ao contrário do que dizia David Ricardo, a divida pública
não costuma equivaler no Brasil a impostos futuros, mas sim à expansão monetária futura.
A reforma monetária - juntamente com o restante do Plano - praticamente não reduziu a
divida pública, apenas promoveu o seu alongamento, podendo alimentar a inflação por esse
canal de expectativas indefinidas com relação à politica fiscal, particularmente o lado das
despesas governamentais.
Se esses movimentos macroeconômicos fazem sentido, temos um tipo de armadilha
de liquidez a ser enfrentado pelas autoridades monetárias. O choque monetário inicial não-
antecipado pode provocar uma hiper-recessão. Já as torneiras abertas a seguir - juntamente
com a pressão salarial de março - podem resultar em aumentos de preços e de filas, até
mesmo hiperinflação e desabastecimento, praticamente sem nenhum impacto sobre a
atividade econômica real. A chamada oferta agregada - o lado da produção - pode estar
deprimida e inelástica em relação aos novos estimulos (antecipados) monetários.
Isso é o que diz a teoria monetária moderna. Este choque pode não exercer nenhum
efeito sobre a taxa de inflação, apenas sobre o nivel do produto (e, em menor escala, o nivel
dos preços). O segundo estágio do choque será mais ou menos inflacionário, dependendo
das taxas anunciadas e praticadas de crescimento da moeda e das expectativas sobre a sua
expansão no futuro (que estão relacionadas à divida pública e a seu serviço). Mas, infeliz-
mente, esse segundo estágio pode ser incapaz de tirar com rapidez o Pais da recessão
provocada pelo choque inicial.
E se M4 não for o conceito relevante da moeda? E se o conceito relevante for apenas
a base monetária - ou então a base monetária acrescida da divida pública que, afinal no
Brasil, reflete a futura expansão monetária? Neste caso, diminui o risco de termos uma
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hiper-recessão, mas em compensação podemos estar muito próximos da hiperintlação. Mais


ainda: neste caso, a redução do estoque de moeda de março de 1990 terá sido praticamente
irrelevante e inútil, seja do ponto de vista da intlação, seja do ponto de vista da atividade a
curto prazo (se bem que a longo prazo as conseqüências podem ser graves por causa do
impacto sobre a credibilidade e a confiança).
Cabe aqui uma observação de ordem técnica sobre o conceito M4. Por que este
conceito pode ser irrelevante e não intluenciar a evolução do PIB? É importante lembrar
que uma boa parcela do M4 congelado tem a sua contrapartida em dívidas dentro do setor
privado, não constituindo portanto riqueza líquida para o setor privado como um todo. Por
exemplo: os depósitos a prazo e os depósitos de poupança são ativos fmanceiros que servem
de junding para empréstimos a pessoas físicas ou jurídicas no setor privado. Isto significa
que a imobilização desta riqueza é neutralizada pela existência de dívidas em cruzados novos
junto aos bancos. Os credores se sentem mais pobres, mas os devedores se descobrem mais
ricos. Eventualmente - e isto tem de fato acontecido - acabam sendo feitas transferências
entre credores e devedores em cruzados novos. Em conseqüência destas observações, a
riqueza financeira líquida, que foi congelada, pode corresponder, de fato, apenas à parcela
do M4 que se refere à dívida pública (mesmo que os detentores de depósitos bancários não
consigam transferir seus créditos para os devedores).
Em termos quantitativos, vaIe dizer que a dívida pública representa menos de 60%
dos ativos financeiros totais (M4): US$ 70 bilhões contra US$ 120 bilhões. Pode-se
argumentar assim que a reforma monetária terá sido apenas um alongamento compulsório
do endividamento público. Todavia, a dívida pública - mesmo congelada ou alongada-
não desapareceu e continua representando expansão monetária futura, na mente dos agentes
econômicos. Note-se que esta percepção ocorre independentemente da dívida estar conge-
lada ou não, estar sendo girada no overnight, com cartas de recompra, ou não: é o estoque
global que interessa.
Vale desenvolver um argumento no sentido de que o conceito relevante para a inflação
e para o PIB é o seguinte: base monetária + dívida pública (vamos chamar este mix de Mo).
Neste caso, a reforma monetária fez aumentar sensivelmente este Mo - seja via estoque
iniciaI, seja via fluxos posteriores. O estoque iniciaI era de US$ 5 bilhões de base monetária,
US$ 60 bilhões de divida federal (sobretudo LFrs) e US$ 10 bilhões de dívidas estaduais e
municipais. É razoável supor que este total de US$ 75 bilhões seja o conceito relevante de
moeda, mesmo que cerca de US$ 50 bilhões deste total estejam imobilizados. A parcela não-
congelada pode ter crescido 100% nos primeiros três meses do Plano, com uma transforma-
ção imediata de divida pública em base monetária. O alongamento forçado dos US$ 50
bilhões acabou por induzir uma monetização imediata da parcela livre. É possível que a base
monetária sozinha tenha aumentado de US$ 5 bilhões para US$ 25 bilhões - um aumento
de 400% em 90 dias. A inflação é determinada neste argumento pela base monetária de hoje
e de amanhã, independentemente de congelamento da divida pública.
E se o Plano não der certo em conseqüência dos problemas apontados acima? Os
economistas têm obrigação de considerar esta hipótese e de ignorar os argumentos das pontes
dinamitadas e dos navios queimados. Afinal, a vida dos brasileiros tem que continuar na
década de 90 - com ou sem o Plano.
Não dar ceno significa, por exemplo, uma forte recessão a partir de abril de 1990-
motivada pela imobilização da liQuidez e da riqueza financeira do setor privado - acom-
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panhada de uma reaceleração da inflação a partir de junho ou julho de 1990, esta última
provocada por novas injeções monetárias e crediticias, as quais se revelariam incapazes de
tirar o País da recessão inicial. Seria a chamada estagflação, acompanhada de fenômenos
como filas e desabastecimento por falta de produtos.
Se esta hipótese de fato ocorrer, o País vai ter de enfrentar um grave problema: como
organizar a saída ou a desimobilização da poupança financeira. É evidente que, se o Plano
não der certo, terá de ser encontrada uma saída para os US$ 80 bilhões que se encontram
depositados em cruzados novos por 18 meses à ordem do Banco Central. Da mesma forma
que foi dificil e penoso sair do congelamento de preços nos três planos anteriores, será
doloroso e delicado sair desta imobilização.
Há concordância entre muitos economistas de que este Plano, independentemente do
seu maior ou menor impacto sobre a atividade econômica e sobre a inflação, abalou
profundamente a confiança das pessoas físicas ou jurídicas no que diz respeito às aplicações
financeiras em moeda nacional, com sérias conseqüências a médio e longo prazos. Qualquer
mecanismo de sarda terá de levar em conta este fato provocado pelo Plano, e terá de
conseguir reabilitar a confiança na poupança em cruzeiros.
Fala-se muito nas semelhanças entre o Plano brasileiro de 1990 e a reforma monetária
alemã de 1948, em face da decisão de confiscar ou imobilizar os depósitos e os ativos
financeiros das pessoas. Mas é interessante examinar com atenção o que está acontecendo
atualmente na Alemanha de 1990, porque ali parece residir uma idéia-chave para a eventual
sarda no caso brasileiro.
Como se sabe, as duas Alemanhas serão unificadas nos próximos meses e uma das
questões mais importantes diz respeito à taxa de câmbio que será fixada para se transformar
a moeda da Alemanha Oriental em marcos alemães, ou seja, na moeda da Alemanha
Ocidental. O que está em jogo é precisamente o valor real das poupanças dos alemães-orien-
tais. Quanto maior a taxa de câmbio (por exemplo, 5 por 1 contra 1 por 1), menor será aquele
valor real quando for traduzido em marcos alemães. Tudo indica que o acerto entre as duas
Alemanhas caminha para uma troca de dois ostmarks por cada marco alemão, sendo que
para os primeiros 3.000 ou 4.000 marcos de cada poupador a troca será de 1 por 1.
A saída brasileira poderia se basear nesta solução alemã de 1990, com algumas
adaptações. É possível fixar-se uma tabela diária de taxas de câmbio entre o cruzado novo
e o cruzeiro que começasse, por exemplo, em 3 por 1 e terminasse - após 12 meses, por
exemplo - em 1 por I, tomando-se fixa a partir daí neste valor de paridade. As pessoas
estariam totalmente livres para converter, com base nesta tabela. Ao mesmo tempo, para
impedir que os eventuais recursos convertidos se transformassem inteiramente em MIou
mesmo Mo, a taxa de juros em cruzeiros teria de ser utilizada, com todo o seu poderio, para
reabilitar a poupança financeira nas duas moedas.
Note-se que este mecanismo de saída é perfeitamente capaz de ativar eficientemente
as forças de mercado via taxa de juros e taxa de câmbio. Para o seu funcionamento adequado,
porém, a taxa de juros dos cruzados novos teria de ser liberada, deixando de ser correção
monetária mais 6% ao ano. Na verdade, para se manter o equilíbrio entre as aplicações em
cruzados novos, seria necessário que a taxa de juros diária para cruzados novos fOSSe
determinada pela taxa livre diária de juros dos cruzeiros menos a vali. rização diária na taxa
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NCz$/Cr$ mais um pequeno deI ta adicional, para refletir o prazo alongado e até desestimular
a conversão.
Com a fixação da taxa cambial diária e a liberação dos juros em cruzados novos, é
razoável supor que não haveria uma avalanche de conversões. Mas é importante lembrar
que, mesmo no caso desta sardn representar um aumento inicial no estoque de moeda em
cruzeiros, o seu efeito seria sobre o nível dos preços - e não sobre a taxa de inflação. Da
mesma forma que a redução verificada no estoque de ativos financeiros em março de 1990
não exerceu influência para baixo na taxa de inflação, mas sim sobre o nível geral dos preços
e de uma s6 vez.
O principal determinante da inflação é a taxa futura de expansão monetária. O que vai
ocorrer com a inflação dependerá da firmeza do Governo no controle das suas contas e das
expectativas do público com relação a este momento. Isto não tem praticamente nenhuma
relação com a imobilização dos recursos financeiros do setor privado verificada em março
de 1990, da mesma forma que teria pouca relação com uma eventual conversão (controlada
via mercado) de cruzados novos em cruzeiros, por ocasião desta saídn do Plano.
Apenas a título de resumo de nossa análise da reforma monetária podemos dizer o
seguinte: se é M4 que interessa, então a reforma vai gerar uma recessão, mas não vai ter
influência direta sobre a inflação. Se é Mo que interessa, então a reforma não terá grande
impacto recessivo, mas irá rapidamente alimentar a inflação. Se a verdade está no meio
destas hipóteses, deve-se dizer que o dano causado pela reforma em termos de perda de
confiança e de credibilidade na poupança financeira pode ter sido absolutamente desneces-
sário e inútil. Como escreveu Don Patinkin, maior economista de Israel: •Se um economis ta
diz que tem uma idéia nova, ou ela não é nova ou então está errada.· Fica a dúvida.

Originais r..,~bidos em 10 de maio d~ 1990

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