o_valor_-_caompagnon_1
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Nesta aula discutiremos questões relativas ao valor das obras literárias, a importância da
crítica e o cânone. Os apontamentos de Antoine Compagnon nos servirão como
introdução à disciplina.
O público espera dos profissionais de literatura que lhe digam quais são os bons livros e
quais são os maus: que julguem, separem o joio do trigo, fixem o cânone. [...] A crítica
deveria ser uma avaliação argumentada.
Toda teoria, pode-se dizer, envolve uma preferência [...]. Assim, uma teoria erige suas
preferências, ou seus preconceitos, em universais[...]. Todo estudo literário depende de
um sistema de preferências, consciente ou não.
Um cânone é, pois, nacional (como uma história da literatura), ele promove os clássicos
nacionais ao nível dos gregos e dos latinos, compõe um firmamento diante do qual a
questão da admiração individual não se coloca mais: seus monumentos formam um
patrimônio, uma memória coletiva.
“Devemos distinguir muito claramente [...] a questão ‘O que é arte?’ da questão ‘O que
é boa arte?’ [...] Se começamos por definir ‘o que é uma obra-de-arte’ em termos de ‘o
que é uma boa arte’, [...] estamos definitivamente perdidos. Porque, infelizmente, a
maior parte das obras-de-arte é ruim.” (Nelson Goodman).
[...] o ensino de literatura devia servir para cultivar, policiar, humanizar as novas classes
médias que surgiram na sociedade industrial. Muito distante do desinteresse no sentido
kantiano, a função social da literatura era propor às pessoas interessadas em leitura, que
dessem uma finalidade espiritual aos seus lazeres e despertar nelas um sentimento
nacional, no momento em que a religião não bastava mais.
Como Gérard Genette lembra [...], o Belo foi por muito tempo considerado (de Platão a
Tomás de Aquino e até as Luzes) uma propriedade objetiva das coisas. [...] se todos nós
julgássemos corretamente, todos nós acharíamos belos os mesmos poemas, e feios os
mesmos poemas. A Crítica da Faculdade do Juízo, de Kant [...], foi o texto
fundamental para se passar da objetividade do Belo (ideia clássica) à tese da
subjetividade, até mesmo à da relatividade do Belo (ideia romântica e moderna) [...].
Para Kant, o julgamento estético é puramente subjetivo, como o julgamento do deleite,
que exprime um prazer dos sentidos [...]. “O gosto é a faculdade de julgar um objeto ou
um modo de representação por intermédio da satisfação ou do desprazer, de maneira
desinteressada. Chama-se de belo ao objeto de uma tal satisfação”. [...] Essa profunda
revolução desloca o estético do objeto para o sujeito [...].
Depois das Luzes, uma vez abastadas a tradição e a autoridade, tornou-se difícil
identificar os clássicos com uma norma universal.
“Um verdadeiro clássico [...] é um autor que enriqueceu o espírito humano, que
realmente aumentou seu tesouro, que lhe fez dar um passo a mais, que descobriu alguma
verdade moral não equívoca ou aprendeu alguma paixão eterna nesse coração em que
tudo já parecia conhecido ou explorado [...]” (Sainte-Beuve).
A ideia e o termo classicismo, não é inútil lembrar, são muito recentes em francês. O
termo só apareceu no século XIX, paralelamente a romantismo, para designar a doutrina
dos neoclássicos, partidários da tradição clássica e inimigos da inspiração romântica.
Quanto ao adjetivo clássico, ele existia no século XVII, quando qualificava o que
merecia ser imitado, servir de modelo, o que tinha autoridade. No final do século XVII,
designou também o que era ensinado em sala de aula [...].
“A ideia de clássico implica em si alguma coisa que tem sequência e consistência, que
forma conjunto e tradição, que se compõe, se transmite e perdura.”
“Considero o clássico sadio e o romântico doente. [...] As obras de hoje são românticas
não porque são novas, mas porque são fracas, enfermiças e doentes. As obras antigas
são clássicas não porque são velhas, mas porque são enérgicas, frescas e saudáveis.”
(Goethe).
“Não é bom parecer um clássico depressa demais e de início a seus contemporâneos;
tem-se, então, grande chance de não permanecer assim para a posteridade. [...] Quantos
desses clássicos precoces não se mantêm e são clássicos só por um tempo!”
“Quando qualificamos uma obra como ‘clássica’, é muito mais pela consciência de sua
permanência, de sua significação imperecível, independente de qualquer circunstância
temporal – numa espécie de presença intemporal, contemporânea de todo presente.”
(Gadamer).
Com o tempo, dizem, a boa literatura expulsa a má. [...] “aquilo que atravessou centenas
de anos é velho e sério”, escrevia Horácio [...].
A obra que venceu a prova do tempo é digna de durar, e seu futuro está assegurado.
Mas “as obras de arte”, como lembrava Gadamer, “não são cavalos de corrida: sua
finalidade principal não é apontar um vencedor”. O valor literário não pode ser
fundamentado teoricamente: é um limite da teoria, não da literatura.