A_educacao_do_surdo_ontem_e_hoje_posicao
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CAMPINAS
2009
1
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IEL - Unicamp
tjj/iel
Título em inglês: The deaf and the subject positions yesterday and today: lack, excess or
difference.
Palavras-chaves em inglês (Keywords): Libras; Subject; History; Discourse; Deaf.
Área de concentração: Linguística Aplicada.
Titulação: Mestre em Linguística Aplicada.
Banca examinadora: Profa. Dra. Carmen Zink Bolonhini (orientadora), Profa. Dra. Ivani
Rodrigues Silva, Profa. Dra. Zélia Zilda Lourenço de Camargo Bittencourt, Profa. Dra. Suzy
Maria Lagazzi-Rodrigues (suplente), Profa. Dr. Claudia Regina Castellanos Pfeiffer
(suplente).
2
3
AGRADECIMENTOS
À Carmen, como orientadora, por depositar confiança em minhas idéias e por suas doces
palavras de aprovação.
Ao Cnpq, como suporte, por ter me dado condições materiais de realizar minha pesquisa.
À Ana Luiza e João Pedro, como filhos, por dividirem minha atenção com um novo projeto
de vida.
A Tercio e Diná, como pais, por terem me demonstrado e ensinado valores fundamentais.
À Bete, como amiga, por ter acreditado em meus projetos, em um momento em que eu quase
desisti.
Ao Gabriel, como inspiração e símbolo de luta, por ter me feito ver que há questões muito
maiores.
5
RESUMO
Esta dissertação reflete sobre discursos proferidos a respeito do sujeito surdo e as decorrentes
posições sujeito ditas e assumidas por este mesmo sujeito ao longo de um determinado
período histórico brasileiro. O recorte tomado como corpora para a escrita do trabalho situa-se
nos anos 30, especificamente em três crônicas de Cecília Meireles, para um jornal do Rio de
Janeiro, nas quais ela destaca o sujeito surdo como foco de seu olhar, no então Instituto
Nacional de Surdos-Mudos, primeira instituição brasileira a lidar com a educação de alunos
surdos. Outro recorte/corpora é atual e foi analisado como forma de confrontar os dois
discursos e perceber os possíveis deslocamentos presentes. Para a fundamentação teórica da
pesquisa, nos apoiamos na Análise de Discurso de perspectiva materialista, (Orlandi, 2004,
2005, 2006). Por discorrer sobre as posições do sujeito surdo em distintos momentos
históricos e apontar para a questão de sua formação discursiva e de sua própria constituição
como sujeito, este trabalho traz a representação dos deslocamentos ocorridos no discurso a
respeito da surdez e consequentemente, do surdo.
7
ABSTRACT
This dissertation reflects on the discourses about the deaf subject and the following subject
positions spoken and assumed by this same subject across a given Brazilian historic period.
The texts taken as the datas for this paper situates the years 30, namely into three writings of
Cecília Meireles for a newspaper from Rio de Janeiro, where she looks to the deaf subject as
the center of her attention, at the Instituto Nacional de Surdos-Mudos, the first Brazilian
institution to deal with the education of deaf students. Another data/corpora is actual and has
been analised as a form of confront between the two discourses and to perceive( tempo
verbal) the possible actual displacements. For the theoric issues of the academic research, we
used the Discourse Analysis in a materialist perspective, ( Orlando , 2004, 2005, 2006). By
analising the positions of the deaf subject in some clear-cut historical periods and by pointing
to his discoursive formation and his own constitution as a subject, this thesis brings the
representation of the displacements occurred about the deafness and consequently , about the
deaf.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..............................................................................................................13
CAPÍTULO 1
PERCURSO TEÓRICO METODOLÓGICO
1.1. Linguagem e Sujeito ............................................................................................15
1.2. Compreendendo a metodologia ..............................................................................18
1.3. Organizando os fatos de linguagem a serem analisados.............................................21
1.4. Traçando objetivos .....................................................................................................23
CAPÍTULO 2
OLHANDO ATRAVÉS DA HISTÓRIA
CAPÍTULO 3
O DISCURSO LEGISLATIVO ACERCA DA LÍNGUA BRASILEIRA DE
SINAIS.............................................................................................................................39
CAPÍTULO 4
CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DAS CRÔNICAS DE CECÍLIA MEIRELES
11
4.4. Para perceber sentidos possíveis: As crônicas de Cecília, a Escola Nova e
outros temas de sua inquietude..........................................................................................54
4.4.1. Na crônica: Escola niveladora? Escola pública, Escola
Tradicionalista e Escola Nova – Os subnormais e os supernormais.........................55
4.4.2. Na crônica: Escola niveladora e homogeneidade educacional.......................56
4.4.3. Em outras crônicas: os sentidos de Escola.....................................................57
4.4.4. Outra crônica e a mesma Escola Nova...........................................................59
4.5. O Brasil dos anos 30...................................................................................................60
CAPÍTULO 5
ANÁLISE DAS CRÔNICAS DE CECÍLIA MEIRELES SOBRE A EDUCAÇÃO
EM RELAÇÃO À SURDEZ, EM 1931 E AS POSIÇÕES DO SUJEITO SURDO
............................................................................................................................................65
5.1. A posição sujeito surdo patológico.............................................................................69
5.2. A posição sujeito surdo anormal.................................................................................71
5.3. A posição sujeito surdo enquanto surdo-mudo, uma questão de linguagem
politicamente correta?........................................................................................................73
5.4. A posição sujeito surdo símbolo do desconhecido.....................................................75
5.5. A posição sujeito surdo escolar...................................................................................76
5.6. A posição sujeito surdo social..................................................................................................78
CAPÍTULO 6
UM OUTRO DISCURSO. SERÁ O MESMO SUJEITO SURDO?
As posições sujeito de uma reportagem jornalística de 2008, como expressão do
discurso do presente..........................................................................................................81
CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................87
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................................91
ANEXOS
1. Decreto Lei de LIBRAS.................................................................................................95
2. Transcrição das reportagens de análise – Jornal O Diário de Notícias, na
Página de Educação, de 11, 12 e 14 de fevereiro de 1931 (cedida pelo INES)..............104
3. Adjetivos ou orações adjetivas para designar o surdo.................................................117
12
INTRODUÇÃO
13
O capítulo 5 tratou da análise das crônicas de Cecília, para marcar as posições
do sujeito surdo, ali materializadas. O capítulo 6 tratou de uma expressão do discurso
presente, em uma reportagem jornalística atual e as posições sujeito nela encontradas.
Os dois capítulos finais, em especial, dão ao leitor a possibilidade de perceber os
deslocamentos ocorridos nas posições do sujeito surdo, em 1931, constituído pela
formação discursiva de completude e tendo sua posição sujeito ligada a anormalidade,
como enfermo, como símbolo do desconhecido, a condição de miserável; ou seja,
caracterizado pela falta. Em 2008, a posição do sujeito surdo é marcada pelo ser ícone,
ativista, escolhido, constituído também por uma formação discursiva de completude,
porém agora caracterizada pelo excesso, pelo transbordamento. Em ambos os momentos
históricos pode ser vista a individualização deste sujeito como origem de si e a não
assunção de que ele é constituído através da linguagem, pelo outro, portanto cindido.
Podem também ser vistos os critérios de comparação, que reafirmam a formação
discursiva de completude e o desejo de poder que hierarquiza as relações. Propomos, a
partir destas considerações, a saída desta formação discursiva para outra, manifestada no
decorrer deste trabalho.
Como justificativa deste escrito temos a relação discurso atual sobre o surdo,
que se baseia em um discurso anterior sobre o mesmo. Há oposições neste discurso,
oposições, que não sendo assumidos desta forma, não podem ser bem analisadas para se
pensar as questões que se relacionem ao surdo.
Temos também, como razão para esta pesquisa, o fato deste sujeito e as
questões que se movem em torno dele serem ditas em profusão, o que não acontecia e
outros tempos. Assim, perceber as causas deste dizer contínuo passa a ser questionado.
Há uma razão fundamental para esta pesquisa e a partir dela, outras se
instalam, a análise discursiva, que toma os ditos como discursos, que desloca sentidos em
relação à concepção de sujeito surdo, de linguagem sobre o surdo e de história do surdo.
Logo estão presentes, neste deslocamento, não mais o indivíduo, origem de si, mas o
sujeito; não mais a linguagem transparente, mas como efeitos de sentido entre
interlocutores; e não mais a história como fatos a serem contados, mas como efeitos de
sentido em uma determinada direção e não em outra. Ou seja, retira do texto seu caráter
de interpretável em busca de uma verdade e o torna questionável, dialogável, inesgotável.
A partir da materialidade pensada discursivamente, esta análise proporciona
condições de desenvolver práticas em relação ao surdo, em vários aspectos, como: na
medicina, na sociedade, na educação, na legislação, etc. As ações em relação ao surdo ou
14
a qualquer outro sujeito sendo pensadas a partir de uma reflexão não ingênua poderão
contribuir para o desenvolvimento deste sujeito.
É relevante pensar nas relações sociais como estruturadas por uma formação
discursiva que leva em conta as posições sujeito inconscientemente assumidas por todos
nós, a respeito de nós mesmos e dos outros. Este ato pode ser propulsor de deslocamentos
em nossa linguagem e ações.
CAPÍTULO 1
15
A partir destas considerações, entra em questão uma perspectiva diferenciada
tanto de linguagem, quanto de sujeito. Esta perspectiva assume que escrever sobre
linguagem, segundo a AD é assumir que seus efeitos de sentido não estão lá, já postos,
como em um dicionário. Ao contrário, de acordo com Orlandi (2005), os efeitos de
sentido dependerão da formação discursiva1 de quem foi por ela constituído.
Tal concepção assenta-se sobre a teoria elaborada por Lacan, que vai além da
lingüística estrutural de Saussure, em Lacan, o sujeito é produzido pela linguagem como
estruturalmente clivado pelo inconsciente, (cf. Authier-Revuz, 1998). A categoria
lacaniana do imaginário é assegurada, no sujeito, por um ego ocupado em anular,
imaginariamente, a divisão que afeta o eu, reduzindo sujeito e enunciação ao que é
imaginário (op. cit). Nós não vemos as coisas do mundo e lhes atribuímos palavras, ao
contrário, as palavras fazem com que interpretemos o mundo. Por mais que alguém se
esforce em escrever um dicionário completo, com todos os significados imagináveis para
um dizer, não seria possível esgotar a riqueza da linguagem porque mais que meras
palavras, ela tem relação com a existência de diferentes formações discursivas, tem a ver
com o valor que as palavras passam a ter.
A linguagem não é direta, pois ela cria sentidos diferentes em diferentes
interlocutores. As palavras são vazias de sentido e cabe ao sujeito imbuí-las de sentido.
Esta afirmação liga-se ao fato de que a linguagem é polissêmica. A polissemia faz com
que os sentidos possam deslizar, ocorrendo o efeito metafórico, o deslize dos sentidos, (cf
Orlandi, 2005, p.44).
O fato de a linguagem não ser transparente relaciona-se a outro fato,
igualmente importante. A figura do sujeito aparece em um lugar de destaque e junto ao
sujeito ganham foco também a história e a ideologia2. Retomando as palavras de Orlandi
(2004, p.28), a linguagem pela qual a AD se interessa será tomada como prática, como
ação que constitui identidades e não como instrumento de comunicação.
A linguagem é um conjunto de imagens visuais, sonoras, táteis e olfativas.
Dessa maneira, ela não diz respeito somente ao intelecto. Estas imagens compõem nossa
formação imaginária, sempre em movimento, se construindo e reconstruindo. A formação
1
Em Foucault (2005, p. 43) temos que formação discursiva seria o caso em que pudéssemos “(...) descrever
entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os
tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade ( uma ordem,
correlações, posições e funcionamentos, transformações (...)”
2
Ideologia não como um conjunto de idéias, porém como gestos de interpretação, como mecanismo de
produção de sentido. Conforme Orlandi (1990, p.36), a ideologia aparece não como dissimulação, mas
interpretação do sentido em uma direção.
16
imaginária funciona, de acordo com Pêcheux, de maneira a fazer com que o sujeito
selecione, dentro de sua formação discursiva, as formas que considera adequadas para
uma determinada situação, levando em consideração as imagens que temos: nossa, de
nossos interlocutores, e da situação de enunciação. Sendo assim, se nos dispusermos a
falar com o reitor da universidade, nossa posição sujeito é uma e nossa linguagem é
direcionada por estarmos com ele falando e não com nosso melhor amigo. Não nos
referimos ao reitor como “cara”. Se assim nos referíssemos a ele, seria nosso inconsciente
entrando em cena de algum modo. Deste simples exemplo tiramos ao menos duas
premissas: 1. temos um acervo de discursos que nos constituem, e 2. a linguagem é
também o lugar da materialização do inconsciente.
A AD considera a existência do inconsciente. Não assumirmos uma postura de
consciência de tudo aquilo que trazemos à tona através da linguagem, em qualquer
situação. É importante dizer que, apesar de a AD considerar o inconsciente, este não é
objeto de seu estudo.
Para a AD, a concepção de sujeito está ligada à de linguagem. Isso porque, de
acordo com Orlandi (2002, p.66) “Ele, o sujeito, não poderia ser a origem de si.(...) se fala ao
sujeito, se fala do sujeito, antes de que o sujeito possa dizer”.
Segundo a concepção de sujeito da AD, a forma como encaramos este
conceito muda o nosso olhar frente ao objeto de pesquisa. Quem é este sujeito?
Passaremos a mostrá-lo a partir dos textos de Orlandi (2004) e Brandão (2004). O
primeiro aspecto concernente ao sujeito é o fato dele ser histórico, marcado no tempo e
no espaço. Ou seja, ele enuncia a partir de um determinado lugar e em uma determinada
época, ou seja o sujeito é também ideológico.
17
(...) “o sujeito, na análise do discurso, é posição entre outras,
subjetivando-se na medida mesmo em que se projeta de sua situação
(lugar) no mundo para sua posição no discurso. Essa projeção material
transforma a situação social (empírica) em posição-sujeito
(discursiva).” (Orlandi, 2001, p.99)
Por último, mas, não menos importante, assumimos este sujeito como efeito
da linguagem, representação daquilo que ele diz e que na verdade o diz, ou seja, se o
discurso do outro o diz e se ele diz-se do discurso do outro aparece o sujeito como ligado
à linguagem.
3
Cf. Orlandi 2004 “O sujeito só se faz autor se o que ele produz for interpretável. Ele inscreve sua formulação
no interdiscurso, ele historiciza seu dizer. Porque assume sua posição de autor(se representa nesse lugar), ele
produz assim um evento interpretativo.
18
Propomo-nos a uma pesquisa de natureza qualitativa, que se pautará no
paradigma indiciário de Ginzburg (1986). O paradigma Indiciário ou Modelo
Epistemológico vem a ser a própria proposta metodológica com a qual trabalharemos.
Este paradigma consiste em observar os pormenores mais negligenciáveis, em não
procurar no óbvio, mas em detalhes que signifiquem, procurar pistas e olhar atentamente
a materialidade histórica para buscar nela os sinais e trilhar a análise. Buscaremos
compreender os efeitos de sentido produzidos na materialidade da linguagem em seu
funcionamento e a que direções estes efeitos de sentido apontam.
4
Conforme Orlandi (1999), consideramos que os objetos simbólicos não têm um sentido próprio, eles
produzem efeitos de sentido dependendo das condições de produção.
19
Alguns procedimentos relacionados à pesquisa realizada serão aqui descritos.
Primeiramente, após definida a temática relacionada ao sujeito surdo, realizamos a busca
de material no arquivo histórico do Instituto Nacional de Educação de Surdos. Ao
definirmos três crônicas de Cecília Meireles como foco principal de nossa análise,
passamos a extrair delas os adjetivos e locuções adjetivas que diziam respeito ao surdo.
Optamos por denominar esta materialidade discursiva como imagens a serem pensadas. A
partir daí, as imagens foram separadas por formações discursivas e tabuladas para que
então procedêssemos a pesquisa sobre as condições de produção destes discursos e
realizássemos finalmente a análise.
Há perguntas que engatilharam o processo analítico dos fatos discursivos, o
que Orlandi (2005, p.65) chama de processo de de-superficialização. Foram elas: como se
diz? Quem diz? E em que circunstâncias? Tais questões nos darão vestígios para
compreendermos o modo como o discurso pesquisado se textualiza. A partir deste ponto,
passamos a perceber as formações discursivas5 que dominam o texto em questão. Em
uma próxima etapa, nosso trabalho de análise se concentrou em relacionar as distintas
formações discursivas com a formação ideológica que conduz as relações através da
percepção do dizer e não dizer, do uso de paráfrases e sinonímias. Todo este trabalho foi
desenvolvido de forma a perceber a maneira pela qual a materialidade do texto analisado
produz efeitos de sentido.
Ao escrever este trabalho, há a tentativa de separar conceitos para que eles
fiquem bem definidos, para que o texto fique claro, didático e possa ser bem
compreendido; contudo há um movimento na própria AD que impede os conceitos de
estarem estáticos e de serem vistos separadamente. Nas palavras de Orlandi (2004, p.38),
análise e teoria são inseparáveis.
Os conceitos se chocam e não há como falar de sujeito, linguagem e
metodologia separadamente. Os conceitos se amarram e na própria constituição do corpus
já há o princípio da análise. Existem dados em AD?
(...) os “dados” não tem memória, são os “fatos” que nos conduzem à
memória lingüística. Nos fatos temos a historicidade. Observar os fatos
de linguagem vem a ser considerá-los em sua historicidade, enquanto
eles representam um lugar de entrada na memória da linguagem, sua
sistematicidade, seu modo de funcionamento. (Orlandi, 2004, p.58)
5
(Orlandi,1992, p.20) “As formações discursivas são diferentes regiões que recortam o interdiscurso (o
dizível, a memória do dizer) e que refletem as diferenças ideológicas, o modo como as posições dos sujeitos,
seus lugares sociais aí representados, constituem sentidos diferentes.”
20
E o que é o discurso? O discurso é a linguagem em sua relação com o mundo,
da qual resulta constitutivamente a noção de ideologia. A linguagem constitui o sujeito, o
sujeito pratica a língua para interpretar e para significar. A pergunta que se coloca e que
pretendemos responder para a realização da análise é: o que temos que investigar como
analistas? A resposta é de certo modo simples por estar presente na linguagem instaurada
pela captura do corpus e de certo modo complexa porque não se faz óbvia; temos que
verificar como os sinais presentes na materialidade discursiva produzem efeitos de
sentido e em quais discursos anteriores o atual se ancora. Isso implica um trabalho sobre
o que Pêcheux denomina “arquivo”.
Pêcheux, em seu artigo intitulado “Ler o arquivo hoje” 6, chama atenção para
duas culturas que a tradição escolar-universitária francesa designa, a literária e a
científica. O autor olha para a história das idéias dos séculos XVIII ao XX, mostrando
que uma ciência ignora a existência da outra. Pêcheux ainda entende ali o arquivo como
“campo de documentos pertinentes e disponíveis sobre uma questão”.
Sobre as formas de ler este arquivo, são apontados dois distintos caminhos,
um tirando da leitura literal uma leitura interpretativa, já uma escritura. A essa leitura ele
diria ser o trabalho da memória histórica consigo mesma. O outro caminho, que ele
chama de fatidioso, seria o que vem desde a Idade Média, com os clérigos, passa pela Era
Clássica e chega até nossos dias. Trata-se de uma leitura que se inscreve como renúncia
da originalidade, a que apaga o sujeito leitor, através da instituição. É a leitura a serviço
da igreja, do rei, do Estado, da empresa e aí acrescentaríamos, da escola.
Pêcheux aponta ainda para a divisão social do trabalho da leitura como
evidência de uma dominação política. A alguns o direito de originalidade na
interpretação, definir a direção dos efeitos de sentido.
6
Pêcheux, Michel (1994). Ler o arquivo hoje. In: Gestos de leitura: da história no discurso/ Eni P. Orlandi
(org.); tradução: Bethânia S. C. Mariani. Campinas, SP: Editora da Unicamp.
21
posições ideológicas heterogêneas, ou seja, a diferentes formações discursivas. Serão
seqüências produzidas em sincronia porque os discursos atuais é que nos fazem ter
interesse pelo passado, pela história e seqüências produzidas em diacronia, pois é dever
do analista do discurso considerar os discursos em forma processual, fazendo valer o
histórico, o antigo que é trazido como novo, deslizando em nova forma. Estes dois tipos
de seqüências acabarão compondo um conjunto complexo.
O Instituto Nacional de Surdos, doravante INES, foi visitado nos dias 25, 26 e
27 de novembro de 2007. No INES, Solange Rocha, responsável pelo setor histórico do
Instituto, nos recebeu e revelou um arquivo riquíssimo. O arquivo inteiro nos foi colocado
à disposição. Foi possível, então, vivenciarmos estes três dias de pesquisa e intensa leitura,
momentos considerados cruciais para a compreensão de aspectos que seriam de impossível
percepção, não fosse através do contato real, manual, olho no papel, com a ajuda da lupa,
sentindo o cheiro do antigo, do histórico. Nestes momentos, inigualáveis, de uma riqueza
indescritível, de muitas dúvidas diante de tão diverso e precioso material a ser pesquisado,
nos foi dado o privilégio de selecionar os documentos para análise.
7
Condições de produção – compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situação. Também a memória faz
parte da produção do discurso. (Orlandi, 2005, 30)
8
Informações disponíveis no site http://www.ines.org.br/Paginas/historico.asp, acessadas em julho de 2007.
22
12 e 13 de fevereiro, de 1931. As crônicas foram escritas sobre o então denominado
“Instituto Nacional de Surdos Mudos”, tiveram como título o dizer: “Justiça Social para a
criança brasileira”. As páginas destes textos jornalísticos contavam com algumas fotos do
diretor, de alguns alunos e de dois dos professores que ali trabalhavam, além de um
desenho feito por um dos alunos do Instituto.
9
Ao dizermos, de certo modo, queremos fazer-nos entender como aquilo que soa novo, mas que se ancora, se
inscreve na história e desliza pelo presente e futuro.
23
do discurso médico e torna o aluno um paciente a ser diagnosticado. A posição sujeito
surdo anormal é aquela que mostra o surdo que não é segundo a norma, exatamente por
não ser ouvinte. Foucault (2001) escreve sobre a genealogia da anomalia e aponta duas
imagens que se encaixam, segundo a materialidade analisada, aos padrões de
anormalidade, o monstro humano e o indivíduo a ser corrigido.
Mais adiante, já no momento da análise estas posições sujeitos poderão ser melhor
observadas, pensadas e compreendidas.
24
CAPÍTULO 2
OLHANDO ATRAVÉS DA HISTÓRIA
25
Neste mesmo período, Reily (2007) considera que o papel dos mosteiros como
centro de cópias de livros clássicos e religiosos fez com que os monges usassem os sinais
tanto para se comunicarem silenciosamente no trabalho como também para criar sinais
que correspondessem às letras do alfabeto a fim de que os escribas pudessem conferir
suas cópias. Contudo, Reily (2007) afirma que a origem da língua de sinais dos surdos
não se encontra nos sinais monásticos, por terem estes últimos, léxico não
suficientemente partilhado e sintaxe não equivalente. A autora afirma que outras duas
contribuições vieram sim do movimento monástico, uma delas mobilizou a concepção
dos pioneiros a entender que a comunicação gestual constituía uma forma válida e eficaz
de comunicação; e a outra contribuição foi com respeito à prática do registro, que nos
legou documentos preciosos com resultados de suas experiências, exercícios pedagógicos
e princípios de ensino. Assim, baseados em uma concepção discursiva de linguagem,
podemos afirmar, em contraposição ao que nos faz refletir Reily, que a origem da língua
de sinais contempla sua historicidade e portanto, suas origens, nos sinais monásticos.
Com base nas palavras de Lima (2004), até o século XV, o mundo não
encarava o sujeito surdo como um ser capaz. Logo, a posição sujeito que cabia ao surdo
era a de incapaz de se expressar oralmente, de se desenvolver intelectual e moralmente,
também incapaz de expressar sentimentos ou qualquer pensamento, logo não tinha
nenhum tipo de acesso à educação, que só começou a existir a partir do século XVI.
A partir do século XVI, primeiramente através de iniciativas de ensino
isoladas e posteriormente institucionalizadas, a educação dos surdos passa a dar-lhes uma
posição sujeito em processo de deslocamento. O sujeito surdo passa a ser olhado como
apto à linguagem, capaz de comunicar-se, de pensar, de expressar sentimentos, um ser de
moral, não é mais considerado um ser rudimentar, a posição sujeito surdo é tornada
humana. Faz-se presente, através deste deslocamento, a força da ideologia e sua formação
que acontece no processo de historicidade e leva a sociedade a ter novas concepções
sobre antigas questões que sempre foram postas á humanidade, a presença do sujeito
surdo.
Houve um deslocamento nessa posição-sujeito marcada pela incapacidade,
pela não-humanidade que definia os surdos. O primeiro a declarar o surdo como capaz de
pensar e de ser ensinado foi Girolamo Cardano, em 1579. Ele o fez contando com seu
método de associação de figuras desenhadas. O sucesso de seu empreendimento foi
devido à sua percepção de dar ao surdo a possibilidade de elaboração de conceitos. Nessa
mesma época, um deslocamento na mesma direção, ou seja, atribuir ao surdo uma
26
posição-sujeito daquele que é capaz, foi promovido pelo que é considerado o primeiro
professor de surdos da história: um monge Beneditino, na Espanha, Pedro Ponce de Leon
(1520-1584). Educou surdos filhos de nobres e os ensinou a falar, ler, escrever e sobre o
Cristianismo. Trabalhou através da datilologia, escrita e oralização e fundou uma escola
de professores de surdos.
Obras que passam a assinalar a educação do surdo se fazem presentes em
1620, contando com o alfabeto manual de Ponce de Leon, por Juan Pablo Bonet, na
Espanha. Em 1644 e 1648, respectivamente, são publicados por J. Bulwer, Chirologia e
Philocorpus, livros que evidenciam a língua de sinais.
Na França com Tissot, por volta de 1760, o projeto ortopédico impunha ao
sujeito surdo a ginástica do tipo militar e moral para coibir a sexualidade, a prática da
masturbação. Havia exercícios de respiração, utilização das piscinas, práticas de outros
exercícios, todos esses fatores ajudavam na fala. Por fim, a proibição total da linguagem
de sinais, a posição sujeito obrigatoriamente oralizado ou oralizável.
Dez anos antes, a primeira escola pública para surdos foi criada na residência
do abade francês Charles Michel L’Epée, em 1750, denominada “Instituto de Surdos e
Mudos de Paris”. Seu método manual incorporava a língua falada, gerou os “Sinais
Metódicos”, uma abordagem gestualista que obteve êxito.
Etimologicamente10, a palavra gesto deriva do latim, gestus, significa
movimento do corpo, especialmente da cabeça e dos braços, para exprimir idéias; sinal;
mímica. No plural, movimentos da fisionomia, da cabeça e dos braços, com que o orador
comenta ou dramatiza o discurso. Vê-se a idéia de gesto como forma de expressão de
idéias e logo após, seu uso ligado à fala, ao teatro, ao discurso público. Aparece assim, a
idéia de gesto como linguagem corporal que complementa e enfatiza a linguagem oral,
como seu enriquecimento e não como linguagem plena, completa em si mesma.
O gestualismo, com base nos escritos de Lacerda (1998), antes de ser
considerado uma abordagem, teve sua filiação histórica. Os esforços no sentido da
educação do surdo eram, no século XVI, realizados através de metodologias não
compartilhadas, ora por não haver mesmo o hábito ou a necessidade, ora por ser
intencionalmente mantido em segredo em razão da dificuldade na realização do ensino. A
educação era privilégio de poucos surdos, somente dos nobres e influentes, com o
objetivo da fala, para a manutenção dos direitos legais.
10
Conforme o dicionário etimológico on line:
http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx - acessado em 16 de novembro de 2008.
27
Conforme Lacerda (op.cit.), com respeito à grande maioria de surdos não
educados, pode-se considerar que desenvolveram algum tipo de linguagem de sinais. O
gestualismo passa a ser abordagem gestualista, no final do século XVIII, tem como seu
representante mais significativo abade L’Epée. Nestes tempos a fala era valorizada para a
aceitação social do surdo, conseqüentemente também a oralização. Com a percepção de
que os surdos com dificuldade de fala eram obrigados a viver de modo clandestino, os
gestualistas consideravam a linguagem desses surdos eficaz para comunicação e para
abrir-lhes portas rumo ao conhecimento.
Concomitantemente, difundiam-se outros métodos de ensino dos surdos, como
o método oral de Heinecke de grande força na Alemanha e Inglaterra e tem início as
discussões sobre os métodos de ensino. Congressos como o VII Congresso da Sociedade
Pedagógica Italiana, em 1872 e o I Congresso de Professores Italianos de Surdos, em
1873 dão maior força ao método oral. O método misto, baseava-se no ensino da língua
oral e escrita e também era utilizado.
Conforme Lima (2004) o Congresso de Milão, em 1880, considerado um
congresso mundial, declara a utilização simultânea da fala e dos sinais como uma
desvantagem, empecilho para desenvolver a fala, a leitura labial e a precisão das idéias. O
método oral puro é então declarado como aquele que deve ser adotado de forma oficial
e definitiva.
Lima (2004) assinala a participação de apenas um professor surdo entre os
174 congressistas do Congresso de Milão, momento considerado como um marco da
erradicação dos profissionais surdos das escolas. Como medida para coibir a
comunicação gestual dos surdos, eles eram obrigados a sentar sobre as mãos, os vidros
das portas das salas de aula eram retirados com o objetivo de que não houvesse entre eles
nenhum tipo de comunicação gestual, nem mesmo entre alunos de fora da sala de aula
com os que estivessem do lado de dentro.
A força da ideologia nas formações discursivas nos leva a um determinado
discurso, que por sua vez, gera posições sujeito marcadas, mas, que podem ser
deslocadas.Visto através de uma posição sujeito em deslocamento, se reconstituindo com
o advento da educação de um sujeito sendo descoberto pelo outro, olhado como quem
será investigado ou pesquisado, novas questões começam a eclodir. Estas questões
passam a ser tema de encontros de educadores, dos congressos e posições ideológicas
passam a ser determinadas, motivadas pelo eterno desejo de homogeneizar
hierarquicamente os métodos de educação, o fazer das escolas e dos professores.
28
Na hierarquia dos poderes daqueles que estão diretamente relacionados à
questão da educação do sujeito surdo, tanto os que se posicionam a favor da oralização
como os a favor de uma abordagem gestualista, termos ainda usados na época à qual nos
referimos, hão de concordar, o sujeito surdo era o que menos falava. Ser o que menos
falava, sem apontar para a ironia que estas palavras podem carregar no contexto da
surdez da época; o surdo era o que menos falava no sentido de não opinar, não contar.
Utilizamos aqui o verbo falar propositalmente, com o intuito de marcar a indefinição de
um verbo, a ausência de uma palavra para representar a voz do surdo, para dar vez à
expressão de seu pensamento através de uma linguagem que fosse a sua. Nesta
indefinição fica marcada a posição sujeito que é atribuída ao surdo exatamente pela
característica que o distingue de outros sujeitos, o não ouvir. Posição que se dá, através
da voz do ouvinte, posição de estranheza, de não lugar, contudo, abafada pela tentativa de
dominar qualquer aspecto que lhe escape ao controle, que marque a diferença, a
heterogeneidade. O que caracteriza este domínio é a imposição do ouvinte, neste caso, o
uso do método oral puro estabelecido como verdade, como a expressão do desejo de
homogeneização.
O surdo não contava, nem quantitativamente, como evidencia o número de
participantes surdos em um congresso no qual seriam definidas, juntamente com sua
educação, suas perspectivas de vida futura e nem no que diz respeito à importância de sua
colaboração, conforme evidencia também a pequena participação do surdo no congresso
mencionado.
Ora, se o surdo acabara de ter acesso à linguagem escolarizada, se sua
participação tanto enquanto aluno como enquanto profissional ligado à educação era
inicial, portanto ainda tímida, quais eram os meios que ele dispunha para fazer valer a
expressão do seu pensamento?
Não pensamos que a expressão do pensamento do sujeito surdo seria
uniforme, pois ela era advinda de experiências de ensino distintas, conforme o meio
disposto na região em que os surdos obtinham acesso à educação. Também não
pretendemos dizer que se eles tivessem opinado em igualdade quantitativa de
participação frente aos ouvintes, as decisões dos congressos teriam sido acertadas ou não.
Também não há como saber se estas decisões, como aconteceram, foram melhores ou
deixaram de ser. O fato é que as vozes dos surdos foram silenciadas e decisões surdas
foram tomadas em nome do que se quis consagrar como o melhor método de ensino para
o surdo.
29
O fato é que, com a oralização sendo posta como o método de ensino ideal a
partir do Congresso de Milão, em 1880, a posição sujeito surdo foi afetada. Este sujeito
agora deve falar, não deve gesticular. Deste modo, são concebidos lugares sobre a
posição sujeito surdo, sobre aquele que gesticula e que não gesticula. O surdo que
gesticula é aquele que não se encaixa aos padrões que o levarão a ser educado. O surdo
que não gesticula é aceito pelos ouvintes que o rodeiam e conseqüentemente, por outros
surdos.
Em Descartes e teóricos de Port Royal, na consideração da comunicação
através dos sinais, há o caráter de língua e assim a inclusão do surdo na sociedade. O
abade l’Épée, no século XVIII, espelha o pensamento cartesiano e refere-se aos surdos
em posição sujeito de infelizes, semelhante a nós, ouvintes, mas reduzidos à condição de
animal se não chegassem a ser ensinados e cristianizados para que lhes fosse concedida a
condição de humanização. Seu ensino bilíngüe ia do ensino escrito ao oral.
Benvenuto (2006) refere-se aos surdos, figura da anormalidade até o século
XIX, como sujeitos de experiência e diz que a figura oposta a da anormalidade é a do
surdo membro de uma comunidade lingüística e cultural, a partir dos séculos XIX e XX.
Há nestas falas, duas posições que circulam, a do surdo anormal, não educado e a do
surdo lingüística e culturalmente inserido, educado e normalizado, neste sentido ele não
mais é sujeito de experiência, mas, diríamos que tanto um quanto o outro continuam a
ocupar a posição de sujeitos de experiência.
Através de uma corrida pela história, Benvenuto (2006), apresenta posições
que rondaram o sujeito surdo. Ele ocupou, assim, posição-sujeito definida como monstro
bestial com semelhança à animalidade por seus gritos e gestos comparados aos dos
macacos, violador das leis jurídicas e da natureza até o século XIX. Dentre os séculos
XVII ao XIX, a posição do sujeito surdo acontece sob a ótica da ciência e da filosofia
como desprovido de linguagem, pois a linguagem não era concebida fora da oralidade.
Benvenuto (2006) mostra, a partir de palavras utilizadas para designar o
sujeito surdo, imagens que o significaram. A palavra kophós era uma delas e significava
estar desprovido de alguma coisa, enfraquecido, cortado, cego, impedido, abobalhado ou
estúpido, fraco de espírito e sem inteligência.
Para Johann Gottfried Von Herder, segundo Benvenuto (2006), a linguagem,
sendo de origem divina, encontrava no sujeito surdo a posição de profanador desta lei, de
monstro, de idiota, compara os gritos do surdo, sua entonação aos sons do macaco.
30
Na expressão de tão variadas posições sujeito ocupadas pelo surdo, através
dos tempos, há algo que se impõe como característico nos textos pelos quais passamos: a
imagem do surdo não humanizado ou a figura humana de natureza inferior, não aceita e
não compreendida pela sociedade que busca figuras para representar este sujeito. Sua
imagem encontra similaridades entre os animais e os monstros. Ligado a sentidos que se
esboçam na tentativa de compreender o surdo, pelas palavras de Benvenuto (2006), não,
estas imagens não se organizam temporalmente, elas se confundem, num vai e vem que
não reconhece na educação do sujeito surdo um lugar de mudança marcante do
imaginário, pois continuam a aparecer declarações e comparações que tiram do surdo o
estatuto de humanidade, a posição sujeito humanizada.
É certo que a educação do surdo trouxe deslocamentos ligados à posição
ocupada pelo sujeito surdo, mas não ao ponto de tirar-lhe o peso da anormalidade.
Benvenuto mostra este fato na exposição das tentativas diversas de normalização do
corpo, que a nosso ver tem mais relação com um anseio de uniformização, de
homogeneidade, de disciplinarização do lugar desconhecido.
31
D. Pedro II, que concretiza seu desejo de fundar o então denominado Imperial Instituto de
Surdos Mudos.
Reily (2007), afirma que o agrupamento de uma comunidade surda, fator
fundamental para consolidar a língua de sinais como prática cultural advém da proposta
pioneira de Ponce de León e da proposta de reinventada de l’Épée. Podemos então
apontar que da mesma forma, Huet proporcionou aos surdos brasileiros, o pertencimento
a uma comunidade que compartilhava das mesmas facilidades e dificuldades. Sem levar
em consideração o fato da língua de sinais não ter ainda sua legitimação pelos que
detinham o poder de considerá-la adequada, o fato de unir surdos que até então não
dispunham de meios para comunicação e para a educação, o pertencimento ao grupo, o
viver em comunidade, já configurava um avanço em termos de aprendizado e de
vivência.
11
Os destaques em negrito são referentes aos nomes das disciplinas ministradas no INES, nos momentos
destacados.
32
repetia as lições do professor havendo um repetidor para cada disciplina. Aos
repetidores da Linguagem Articulada cabia a tarefa de desmutização dos alunos.
Em 1883, o congresso da instrução do Rio de Janeiro trata da escolaridade do
surdo. No Programa das Questões Sobre quem deve versar as Conferências do
Congresso, no qual a primeira sessão trata da instrução primária, secundária e
profissional aparece o sujeito surdo como participante do processo educacional brasileiro.
Nesta sessão, constam 29 questões, e a vigésima sexta trata da questão do ensino de
surdos-mudos. São tomados os pareceres do Dr. Menezes Vieira, professor do Instituto e
do então diretor Tobias Leite. No parecer do Dr. Menezes aparece a veemente
discordância ao programa educacional do Instituto que oferecia as mesmas linhas do
Instituto de Paris, sem enfatizar a oralização. Posicionando-se desta maneira, defende
a palavra articulada como caminho para o ensino. O Dr. Menezes utiliza, como força
legitimadora de sua posição uma estatística na qual afirma que, na época, na Alemanha,
Itália e França, em se tratando de educação de surdos, haviam 10.506 alunos educados
pelo método oral, 9.887 pelo método combinado, mímico-oral e 1574 pela mímica.
Entre 1897 e 1898, o professor Cândido Jucá assume a vaga da cadeira de
Linguagem Articulada no Instituto e conforme Rocha (1997), tornou-se célebre
oralista no Instituto.
Antes de Candido Jucá, outro professor fora mandado para a Europa para
estudar as possibilidades de oralização. O ensaio durou sete anos e em 1889 é enviado
ao governo, um ofício mostrando que os alunos de Linguagem Articulada não haviam
adquirido nenhuma instrução e os alunos de linguagem escrita apresentaram
notável adiantamento. A cadeira de Linguagem Articulada fica, então, vaga até a
chegada de Cândido Jucá.
A. J. de Moura e Silva, professor do Instituto, freqüentou cursos realizados no
Instituto de Surdos-Mudos de Paris. Em 1896, envia um relatório intitulado “Surdos-
Mudos Capazes de Articular e Meios Práticos de Lhes dar a Palavra e, com ela, o
ensino”. O título do documento já evidencia a clara posição favorável à questão da
educação de surdos através da oralidade.
Em 1901 há uma volta ao regulamento de 1873, no qual, a Linguagem
Articulada e a Leitura dos Lábios eram concedidas aos alunos aptos. Em 1908, mais
uma cadeira de linguagem escrita é criada e o curso passa a ter 6 anos, somando 3 os
professores da área. Tal medida é vista pelo Instituto como um ganho.
33
Em 1911, o artigo 9 do decreto 9198 realiza uma mudança no ensino; o
método oral puro deveria ser adotado no ensino de todas as disciplinas. Os três
professores de Linguagem Escrita foram transferidos para as cadeiras de
Linguagem Articulada e Leitura sobre os Lábios. Em 1913, o regente das cadeiras de
Linguagem Articulada, Manoel Dantas Sobrinho apresenta um novo programa
contemplando as seguintes disciplinas: Gramática Imitativa e Progressiva, Leitura
Sintética dos Lábios, Educação do Tato, Preparo dos Órgãos Respiratórios, Preparo
dos Órgãos de Articulação da Palavra e Desmutização. Vê-se, nitidamente, no
programa, a presença marcante da oralidade direcionando todo o ensino no Instituto.
Em 1914, após três anos de Método Oral Puro, o envio de um relatório pelo
Dr. Custódio, ao governo, mostra os resultados por ele mensurados, 60% dos alunos não
chegaram a um nível satisfatório. Em 1921, dois decretos acabam com a cadeira de
Linguagem Articulada e com uma vaga de professor repetidor.
A partir de 1925 o ensino no Instituto passa a ter dimensões de
profissionalização e de ensino da escrita. Em 1930, Getúlio Vargas nomeia o Dr.
Armando Lacerda, médico otologista, escritor de trabalhos reconhecidos pela ciência e
divulgados pela imprensa, diretor do Instituto. Nesta gestão, o plano pedagógico
contemplava dois departamentos chamados de oral e silencioso, sendo que o segundo
compreendia a linguagem escrita e tentaria substituir a “mímica”, vista como meio
de comunicação espontânea do surdo, natural a ele, pela dactylologia, meio de
comunicação convencional, porém não natural ao surdo.
A palavra datilologia12, do grego, datilo: dedo e logia: estudo, ciência; designa
a representação do alfabeto, por meio das mãos. Pensando na palavra datilografia, vemos
também do grego, datilo: dedo e grafia: escrita; e em seu sentido de escrita com os dedos,
à máquina. Relacionando este uso à datilologia, esta palavra não teria, então, seu sentido
ligado a estudo ou ciência com os dedos. O que pretendemos assinalar é que não se
encontra na formação da palavra datilologia, menção ao fato se ser esta uma forma de
comunicação ou de representação do alfabeto de uma outra língua. Já, neste fato, está
marcada a não aceitação dos sinais como forma de linguagem. Em 1931, datilologia era
conhecida como meio convencional de comunicação por ter sido já utilizada como forma
de ensinar ao surdo a língua padrão. Ou seja, a sinalização consagrada pelo uso ou pelo
12
Definição encontrada no site:
http://www.dicionarioinformal.com.br/definicao.php?palavra=datilologia&id=114
Acessado em 25 de novembro de 2008.
34
meio convencional, poderia ser utilizada como forma de se chegar à língua portuguesa,
no entanto, a mímica, a sinalização não convencional, não era considerada, deveria ser
barrada. E não eram, tanto a dactylologia quanto a mímica, linguagens de sinais?
Podemos afirmar que, o embate da educação de surdos, no Brasil, tem seu
início nestas constantes mudanças evidenciadas no quadro histórico do INES. Através
destes apontamentos históricos, conforme Rocha (1997), especialmente os destacados em
negrito, percebe-se o vai e vem da oralização. Através das mudanças no quadro das
disciplinas, da abertura e fechamento de vagas para professores em determinadas áreas,
das diversas tentativas de ensino por diferentes metodologias utilizadas. Destacamos as
posições sujeito imputadas ao surdo ao longo da história. Ele era significado por uma
verdade estabelecida em relação à sua linguagem, que ora deveria ser oralizada, ora
poderia ser gestualizada, apenas como meio de oralizá-lo. A datilologia é um código
criado a partir da realidade do ouvinte, não é natural ao surdo, uma criança não
alfabetizada não pode compreender a datilologia. Nunca se assumiu como linguagem
legítima o uso de sinais, na história do instituto até 1932. Este fato faz parte da posição
do sujeito surdo brasileiro. Vale lembrar que tratamos aqui do mais antigo Instituto a
lidar com a questão da surdez, no Brasil. Apesar de se comunicar com mais facilidade por
meio da linguagem de sinais, esta comunicação era vista como deformação da linguagem
estabelecida, ou no máximo como meio para se chegar à linguagem aprovada. Para o
surdo, a imagem de sua linguagem lhe concede uma posição de sujeito não aceito, de
sujeito à margem, que não se expressa naturalmente conforme os padrões aceitos.
Através destas poucas linhas, acabamos de olhar para 75 anos de história,
dentre os quais vemos a educação rumar para diferentes pólos. Não nos ateremos à
questão das causas de tais mudanças, pois elas podem ser inúmeras. Há diversas
tendências aqui evidenciadas: a da oralização dos então chamados surdos-mudos e
conseqüentes tentativas de desmutização; a do ensino através da escrita, negando a
oralização e concentrando esforços em uma educação não tão focada na questão da
surdez; e também a questão do trabalho, do aprendizado de um ofício, pelo sujeito surdo.
Uma questão se coloca e a partir dela muitas outras podem ser pensadas; o que
significa, para o surdo, estar em cada posição sujeito que lhe foi atribuída? Qual a razão
de ser de qualquer projeto de educação que se firme em um princípio de homogeneidade?
Será que todos os surdos devem falar? Será que todos os surdos devem somente escrever?
Será que todos os surdos devem aprender um ofício, desde cedo? Será que a comunicação
35
do surdo deveria ser apenas por meio da dactylologia e não da mímica ou gestualização,
como era chamada a comunicação do surdo?
Como forma de pensar a relação INES/LIBRAS, vista historicamente,
podemos perceber que a língua de sinais, apesar de não receber este nome, tem sua
presença evidenciada, nestes escritos. Em 1930, o Dr. Armando criou o programa que
englobava o departamento silencioso, que procuraria substituir a “mímica” pela
dactylologia. A língua de sinais é dita e vista, então, como mímica, e é definida como
meio de comunicação espontânea, porém rudimentar, dos surdos. A linguagem utilizada
espontaneamente pelos surdos é vetada e em seu lugar cria-se, fazendo uso da
dactylologia, uma maneira de comunicação que acontece via ouvinte-surdo por meio da
língua portuguesa e não via surdo-ouvinte, por meio da língua de sinais.
Ao referir-se à linguagem utilizada pelos surdos e apresentar uma nova forma
de ensino para o INSM, na crônica de Cecília, o Dr. Armando refere-se à substituição da
mímica pela dactylologia e diz ser isso uma coisa dificílima, dada a rapidez da
contaminação mímica que fazia com que os surdos em poucas horas se comunicassem
entre si por esse meio instintivo e deficiente. À datilologia, o diretor chama de meio
convencional, logo autorizado, permitido. À linguagem de sinais, apesar de reconhecer a
facilidade com que os surdos dela faziam uso, o Dr. Armando, como expressão do que
era dito na época, chama de deficiente, palavra que tem sua raiz em déficit, em
negativação; e também de instintiva, de instinto, de animalesco e como não lembrar da
comparação feita com os macacos, conforme assinala Benvenuto (2006), acontecer até o
século XIX.
Vemos, por meio das palavras do Dr. Armando, que o século XX traz a
historicidade do século XIX, e os sujeitos evidenciam em seu discurso corrente, sentidos
marcados pelo ontem e ao mesmo tempo marcadores do amanhã. Há deslocamentos, a
história não aprisiona os sentidos. A linguagem não é completa, não dá conta de todos os
sentidos, fala-se de um sentido e ouve-se de outro e é exatamente neste lugar, da
incompletude da linguagem, da falta, é que aparece a possibilidade do deslocamento, do
novo, tanto dos sentidos, quanto dos sujeitos. Palavras antigas, discursos antigos não dão
conta de novos sentidos provenientes da história em sua atualidade, assim, novos sentidos
se materializam em palavras antigas ou novas palavras se materializam a partir de
palavras antigas, com novo sentido, eis a nova discursividade e eis o deslocamento.
Quanto à palavra contaminação, seu uso é nitidamente ligado a doenças, é pejorativo,
como se o uso de sinais fosse considerado uma enfermidade e como tal, necessitasse de
36
cura. A cura é representada pela datilologia, atravessada pelo controle, pelo exercício do
poder daqueles que legitimavam uma forma de linguagem considerada correta, normal.
Também é representada pela linguagem escrita, novamente a linguagem dos surdos sendo
atravessada pela língua portuguesa.
A razão de ser de qualquer projeto que não permite a diversidade é calar
sentidos, é disputar o poder, é fechar posições, é não pensar, é não dialogar, é não ouvir, é
não permitir a circulação de posições que questionem a formação discursiva estabelecida.
O que se pretende ressaltar é a questão das diferentes formações discursivas13
dos sujeitos que eram professores, diretores, governantes que operaram com total força
para dizer aquilo que deveria ser silenciado ou dito, em cada tempo. Pretendemos olhar
para aqueles que mandavam relatórios com informações, por eles destacadas, como
eficazes ou não. Olhamos para o fato da fundação do primeiro modo de ensino aos
surdos, no Brasil, ter sido trazido por um estrangeiro e legitimado por uma carta de
recomendação de um marquês francês, como uma tendência internacional de um modelo
que deveria ser seguido em nosso país. Queremos mostrar as diversas relações de poder14
afetando diretamente o dia a dia de um Instituto, desde a decisão de sua fundação até a
vida dos professores, funcionários e principalmente dos sujeitos surdos que ali viviam. E
afetando-os, afetou também a sociedade, apareceu no discurso da mídia, afetou a
educação dos surdos e ouvintes de ontem, ecoando na vivência da educação de hoje.
Dizer se foi erro ou acerto o uso ou não da oralização não é objeto deste
escrito. Salientar a existência de diversas formações discursivas e a valorização daquilo
que é internacional escrevendo a história das posições do sujeito surdo sim, é.
Pela própria vivência do ensino, sabemos que anos se passam, métodos são
apresentados como válidos e a sala de aula mostra uma incrível dificuldade de vivenciá-
los da forma como se mostram em sua teoria. Isso ocorre porque sentidos outros e
formações discursivas outras constituem o sujeito professor e os mesmos aparecem em
sala de aula, na forma de ensinar. Isso mostra a eterna insistência ou necessidade de
homogeneizar o que, em essência, é heterogêneo, ou seja, o ensino e o sujeito.
13
Formação discursiva – segundo Orlandi (2005, 43), o discurso se constitui em seus sentidos porque aquilo
que o sujeito diz se inscreve em uma formação discursiva e não outra para ter um sentido e não outro.
Percebemos que as palavras não têm um sentido nelas mesmas. Elas derivam seus sentidos das formações
discursivas em que se inscrevem
14
Relações de poder – conforme Fedatto e Machado (2007, 10), tais relações podem ser pensadas como uma
tensão entre diferentes sentidos.
37
Por que silenciar15 sentidos possíveis dentro de outra formação discursiva,
negando tudo que um posicionamento possa compartilhar frente a outro? Talvez haja
mesmo a necessidade de tomar uma postura que norteie nossas práticas para encontrar
formas de trabalhar dentro da educação, na vivência das instituições de ensino que lidam
com a questão da surdez. Mas, como educadores, este posicionamento necessita de
abertura e avaliação constantes. Qual a necessidade de nos fecharmos como academia ou
no exercício da educação em sala de aula? Seja qual for a posição sujeito que ocupemos,
por que não deixarmos abertos os espaços para o conhecimento de novas perspectivas?
Atrevemo-nos a questionar: será mesmo que há um paradigma a ser seguido
quase que cegamente em detrimento de experiências anteriores ou posteriores vividas por
surdos e ouvintes, que surtiram algum aprimoramento por parte dos sujeitos surdos que
viveram tais experiências? Por que sermos conduzidos por um meio considerado o
melhor sem dialogarmos com outras experiências? Por que nos estagnarmos na posição
de os que já chegaram a uma verdade em relação a algo que nos movimenta e que reflete
discursos tão opostos entre si? Por que nos fixarmos em um pólo, sem considerarmos o
entremeio, a fronteira16?
A partir destes apontamentos, lançamos nossa reflexão sobre os discursos
aceitos e não aceitos em cada época. Na sociedade como um todo, na mídia, seja ela
eletrônica ou não; nas escolas e universidades, ou seja, na educação, constatamos a língua
de sinais e a defesa da cultura surda criando um imaginário17 sobre o sujeito surdo de
maneira expandida e diferenciada em relação aos tempos passados. A posição do sujeito
surdo é deslocada a partir da forma como ele é visto em sociedade.
Não pretendemos discutir os ganhos ou perdas de tais posicionamentos frente
ao sujeito surdo. Pretendemos problematizar a partir de uma perspectiva histórica,
ancorada nos fundamentos da AD18, as posições sujeito que o surdo adquire.
Somos, assim, convidados a sair de nossa formação discursiva de origem, a
buscarmos a saída de nossas concepções cristalizadas e tentarmos olhar através de outro
15
Silenciamento – segundo Orlandi (1992, 105), considero o silêncio que não é ausência de palavras, mas
impedir o interlocutor de sustentar outro discurso. É em certas condições impedir que se digam coisas que
possam causar rupturas nas relações de sentidos.
16
Fronteira – segundo Orlandi (2005, 44) Os sentidos não são predeterminados. As formações discursivas
são constituídas pela contradição, são heterogêneas nelas mesmas, suas fronteiras são fluidas, configurando-
se e reconfigurando-se em suas relações.
17
Imaginário- conforme Orlandi (2005, 74), o imaginário é a unidade, a coerência, a completude, a não
contradição a nível de representações.
18
Análise do Discurso – conforme Orlandi (2002, 66), “se, na psicanálise, temos a afirmação de que o
inconsciente é estruturado como linguagem, na Análise do Discurso considera-se que o discurso materializa a
ideologia, constituindo-se no lugar teórico em que se pode observar a relação da língua com a ideologia.
38
lugar discursivo a questão da educação de surdos e da posição sujeito que determinamos
como lugar de verdade previamente constituído. Que estas concepções estejam sempre
prontas ao deslocamento, à ruptura.
CAPÍTULO 3
19
Disponível em: http://www.soleis.com.br/ebooks/1-Constituicoes5.htm#89, acessado em abril de 2009.
39
o texto da mesma. Anteriormente, na Constituição da República Federativa do Brasil de
196720, não havia menção alguma aos direitos dos surdos, sob qualquer nomenclatura.
Portanto, o início do deslocamento legislativo em relação ao sujeito surdo está
representado no documento de 1988. A seguir, poderão ser observadas outras
materialidades que representam o deslocar da linguagem até que chegássemos à Língua
de Sinais, reconhecidamente considerada através da legislação brasileira.
“CAPÍTULO VII -
DA ACESSIBILIDADE NOS SISTEMAS DE COMUNICAÇÃO E
SINALIZAÇÃO
20
Disponível em: http://www3.dataprev.gov.br/SISLEX/paginas/22/1967.htm, acessado em abril de 2009
21
Discurso Fundador – conforme Orlandi (2003), instala as condições de formação de outros discursos,
filiando-se à sua própria possibilidade por uma relação de conflito com o processo de produção dominante de
sentidos, aí produzindo ruptura, um deslocamento, que institui em seu conjunto um complexo de formações
discursivas, uma região de sentidos que configura um processo de identificação para uma cultura, uma raça,
uma nacionalidade.
40
Art.18. O Poder Público implementará a formação de profissionais intérpretes
de escrita em braile, linguagem de sinais e de guias-intérpretes, para facilitar
qualquer tipo de comunicação direta à pessoa portadora de deficiência
sensorial e com dificuldade de comunicação.
22
Lei encontrada no site:
http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/2000/10098.htm
acessado em 5 de novembro de 2008.
41
estão fora, fora da lei, fora da regra, fora da norma. O movimento de falar e calar
relaciona-se diretamente ao conceito de Formação Discursiva. Ou seja, o que pode e deve
ser dito23em cada época. O que pode e deve ser dito com respeito ao surdo consta nas leis
a respeito dele e a respeito da postura legitimada como válida pela sociedade em relação
a ele.
Como vimos anteriormente, através da história houve constantemente uma
luta no que diz respeito a definir a linguagem do surdo, a língua do ouvinte foi sempre
imposta ao surdo como meio de contato e posição diante da sociedade. O reconhecimento
da linguagem de sinais neste documento brasileiro desterritolrializa e reterritorializa,
remarca as fronteiras entre surdo/ouvinte/intérprete/língua/linguagem/história/discurso. O
que pode e deve ser dito sobre o surdo a partir do ano 2000 é que sua linguagem é de
sinais e não é oralizada.
42
comunicação e expressão, em que o sistema lingüístico de natureza visual-
motora, com
estrutura gramatical própria, constituem um sistema lingüístico de transmissão
de idéias e
fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil.
Art. 2º Deve ser garantido, por parte do poder público em geral e empresas
concessionárias de serviços públicos, formas institucionalizadas de apoiar o
uso e difusão
da Língua Brasileira de Sinais - Libras como meio de comunicação objetiva e
de utilização
corrente das comunidades surdas do Brasil.
Art. 3º As instituições públicas e empresas concessionárias de serviços
públicos de
assistência à saúde devem garantir atendimento e tratamento adequado aos
portadores
de deficiência auditiva, de acordo com as normas legais em vigor.
Art. 4º O sistema educacional federal e os sistemas educacionais estaduais,
municipais e
do Distrito Federal devem garantir a inclusão nos cursos de formação de
Educação
Especial, de Fonoaudiologia e de Magistério, em seus níveis médio e superior,
do ensino
da Língua Brasileira de Sinais - Libras, como parte integrante dos Parâmetros
Curriculares Nacionais - PCNs, conforme legislação vigente.
Parágrafo único. A Língua Brasileira de Sinais - Libras não poderá substituir
a modalidade
escrita da língua portuguesa.
Art. 5º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
24
Lei 10.436, encontrada no site:
http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/txt/lei10436.txt
Acessado em 7 de novembro de 2008.
25
Apresentação no II SEAD no Rio Grande do Sul (2005) e em João Pessoa
43
modalidade escrita da língua portuguesa, doravante LP. Por intermédio da lei, a LIBRAS
ascende, contudo, não ao ponto de ser completa. Ora, LIBRAS é considerada, desta
forma, como língua de comunicação e continua a necessitar da LP para sua completude, é
atravessada pela LP. E quanto ao sujeito surdo, ele é tornado oficialmente bilíngüe e de
uma nova categoria, já que sua língua de comunicação é LIBRAS e sua língua escrita é
LP. Conforme sua filiação, sua língua materna pode também variar se filho de surdos ou
ouvintes.
A lei contém somente 5 artigos que dispõem sobre Libras. O artigo 1 trata
do que é LIBRAS, o artigo 2 trata do dever público, empresas e serviços, de apoiar o uso
e a difusão de LIBRAS. O terceiro artigo versa sobre o apoio da saúde ao portador de
deficiência auditiva, o quarto artigo versa sobre o papel da educação de incluir LIBRAS
nos cursos de formação, como integrante dos parâmetros curriculares nacionais, PCNs. O
último artigo trata da entrada em vigor da lei.
LIBRAS – língua brasileira de sinais, assim é denominada a língua dos
surdos, não mais sua linguagem. Os sinais são agora reconhecidos não mais como forma
de comunicação, mas como língua. Isso significa dizer que LIBRAS ganha status
científicos; com funcionamento gramatical e enunciativo próprio. Ela funciona no
território nacional e tem sua história e produção discursiva específicas26. A palavra
brasileira aponta para estas especificidades. Ora, este reconhecimento desloca a posição
do sujeito surdo brasileiro, dá a ele um novo lugar social, tendo língua própria, ele agora
é reconhecidamente marcado por uma distinta brasilidade, dá a ele a condição de
pertencimento, de patriotização, é o surdo possuidor de uma língua do Brasil.
26
(Cf. a Enciclopédia das línguas no Brasil , disponível no site:
http://www.labeurb.unicamp.br/elb/libras/lingua_bras_sinais.html
acessado em 25 de novembro de 2008.
27
O Decreto Lei de LIBRAS consta nos anexos desta tese, devido à sua extensão. Pode também ser encontrado
no site: http://portal.mec.gov.br/seesp/index2.php?option=content&do_pdf=1&id=122&banco=
Acessado em 25 de novembro de 2008.
44
funcionamento padrão em diversos itens que se associam a esta mudança pode ser
vislumbrada nas linhas do decreto.
O documento versa sobre: a definição de pessoa surda; a colocação de
LIBRAS como disciplina curricular e a ampliação dos cursos que a ensinem, a
obrigatoriedade e não mais o garantir da disciplina, e em alguns casos a opção nos cursos;
a formação do professor e do instrutor de LIBRAS; exames de proficiência e outras
avaliações; medidas para difusão e uso de LIBRAS e LP como forma de dar ao surdo
acesso à educação; a formação do tradutor intérprete de LIBRAS/LP; a garantia dos
direitos dos surdos à educação e à saúde; o papel do poder público no apoio à difusão de
LIBRAS; o controle do orçamento público e o controle do uso e difusão das medidas
legisladas.
28
Conforme Orlandi (2005) , a língua nacional é questão que faz parte de
qualquer Estado soberano que pode representar na variedade concreta da língua, uma
unidade imaginária que dá identidade aos sujeitos desse Estado. Quanto a formas de
controle de subjetividade, a normalização da linguagem, com toda a violência contra o
imaginário que ela implica, tem papel crucial. Logo, a normalização da LIBRAS, que
pelo próprio nome que recebeu já é concebida como língua nacional, unifica a língua, a
padroniza e controla a subjetividade do surdo. Porém, há uma diferença substancial na
comparação LP/língua nacional com LIBRAS/língua nacional. O imaginário de língua
nacional, para os sujeitos desta língua, não era, em sua legalização ou ao ser considerada
língua nacional, ligado à LP, por isso a agressão. Já o imaginário de língua nacional, para
os surdos, em sua legalização ou ao ser considerada língua nacional, é mesmo ligado à
LIBRAS, portanto, não representa agressão.
Podemos assim afirmar, que o controle da subjetividade do surdo se dá através
das leis, do pertencimento ao grupo. Orlandi (2006), afirma que a metáfora do grupo-
corpo acalma a angústia da cisão do sujeito. Ou seja, na condição de pertencente ao
grupo, pela própria condição de aceitação da diferença, que inicia em seu corpo, o sujeito
surdo acalma a angústia de sua cisão, que no entanto, não deixa de existir. Ora, somos
todos sujeitos cindidos, algumas cisões são mais visibilizadas, outras nem tanto.
Estamos diante de um paradoxo, ao mesmo tempo em que a língua de sinais
precisava de reconhecimento como língua, esse reconhecimento a normaliza, é posta na
fôrma, uma fôrma de 31 artigos, até agora. Da normalização da língua procede a
28
Texto apresentado no II SIAD no Rio Grande do Sul (2005) e em João Pessoa
45
normalização do sujeito surdo, que tornado normal, tem uma língua anormal (fora da
norma) porque atravessada sempre por outra língua, a LP; porque tem a necessidade de
um intérprete em seu próprio país. E o sujeito surdo é diferente e gera, outra vez, a
normalização ou a diferenciação, por meio das regras. Que regras são estas? Os capítulos
IV e V do decreto de libras, que tratam do uso e da difusão da LIBRAS e da LP para o
acesso das pessoas surdas à educação e da formação do tradutor e interprete de LIBRAS
/LP.
O sujeito surdo não é mais anormal, através do reconhecimento de sua língua
ele é agora tornado diferente. Mas a pergunta que nos vêm é: houve deslocamento? Sim,
as palavras anormal e diferente dão sentidos distintos à posição sujeito surdo. A primeira
palavra remete a anômalo, fora das normas, irregular, contrário às regras. A segunda
palavra remete ao que não é igual, ao que é diverso, modificado. Deslocamos de uma
formação discursiva de completude caracterizada pela falta para uma formação discursiva
da diferença. A falta é a mesma, a audição. Contudo, o sujeito surdo, não é posicionado
pela falta/incompletude, ele agora é posicionado pela falta/diferença.
A intenção deste breve olhar sobre as leis que fundam e legitimam uma nova
discursividade sobre a posição do sujeito surdo, através da LIBRAS, é capturar os
sentidos que emergem na atualidade e compará-los ao que acontecia no discurso das
crônicas. A posição do sujeito surdo encontrada nas leis continua a ser definida pelo
discurso sobre língua/linguagem, no discurso do estado, da saúde, da educação. Há ainda
uma questão merecedora de nossa atenção em especial, a questão da palavra nova e
velha. Os discursos vão se instaurando, se legitimando, se consagrando e a linguagem é
palco deste acontecimento. Ora, pensar sobre os sentidos da linguagem nos leva a
perceber que nem sempre uma palavra nova instaura novos sentidos e da mesma forma,
nem sempre a palavra velha instaura um velho sentido. Retornamos à questão da não
transparência da linguagem e então perguntamos: como se configuram novos sentidos? O
que determina novos sentidos a uma velha palavra e velhos sentidos a uma palavra nova?
Na tentativa de representar uma perspectiva que conduza a esta resposta, afirmamos, os
sujeitos são a fonte da significação das palavras, contudo, para não sermos simplistas, há
que se considerar a historicidade que o envolve, as condições de produção dos discursos
anteriores a ele, considerando as vozes dos outros que o constituem.
46
CAPÍTULO 4
Ao perguntar sobre a origem dos discursos, quais são as vozes que se ouvem
no jornal carioca, Diário de Notícias, na Página da Educação, surge a necessidade da
pesquisa sobre a escritora das três crônicas reveladoras do sujeito surdo, além de outras
vozes que ecoam no que Cecília Meireles escreve.
Cecília passa por variadas fases em sua literatura, fases que acompanham
as questões colocadas pelo perfil histórico das épocas nas quais escreveu e também que
representam um deslocamento em relação a posições discursivas seguidas pela maioria
dos escritores da mesma época. Goldstein e Barbosa (1982) mostram Cecília nos anos 20,
que já havia publicado duas obras, ainda presa às formas tradicionais do Parnasianismo e
do Simbolismo. Já nos anos 30, Cecília participa de reformas na educação através do
jornal Diário de Notícias, da fundação de uma biblioteca infantil especializada, no Rio de
Janeiro e fechada sob alegação de que continha livros perniciosos à formação da criança;
nesta mesma época sua poesia neo-simbolista cresce vigorosamente. Os anos de 37 e 45
assinalam uma poesia denunciadora dos problemas sociais, de uma poesia metafísica
questionadora do sentido da vida humana, na qual também está situada a obra de Cecília
Meireles.
A pesquisa sobre a vida e obra da autora indica que ela ocupa dois lugares
sociais – funcionária pública e escritora - e ocupa, também, diversas posições-sujeito. A
diversidade de lugares sociais revela a situação do escritor brasileiro da época, que
encontrava no funcionalismo público, conforme assinala Oliveira (1988), a tranqüilidade
financeira capaz de possibilitar o exercício literário. Sendo assim, ocupando uma
posição-sujeito que a ancorava a uma formação discursiva ideologicamente, por vezes
contrária ao governo, Cecília fez circular discursos de grande importância para o contexto
político da época. No entanto, ressaltamos, no que diz respeito às condições de produção
das crônicas, Cecília encontrava-se em uma posição-sujeito ancorada a uma formação
discursiva ideologicamente favorável ao governo do Estado Novo.
O intuito aqui não é fazer um panorama de tudo o que a autora escreveu,
revelando datas e nomes de obras, mesmo porque só de sua obra poética encontram-se 74
47
títulos, mas sim, revelar o que representou Cecília para o Brasil nas áreas nas quais atuou.
Oliveira (1988) mostra uma Cecília que começou professora primária, lecionou literatura
e cultura brasileira, no Brasil e no exterior; ministrou conferências e cursos sobre
folclore; deu aulas de literatura dramática oriental; foi desenhista para ilustrar suas
conferências em Portugal acerca do folclore afro-brasileiro. Cecília foi jornalista,
fundadora e diretora de biblioteca; escreveu sobre os problemas de literatura infantil,
escritos estes que foram utilizados como manuais didáticos. Motivada pela resolução de
problemas de aquisição da linguagem da criança, acrescentou em seus poemas, trava-
línguas que ainda são usados por grupos de teatro para melhorar a dicção dos mesmos.
Traduziu obras. Foi secretária do Congresso de Folclore, em 1950, em Porto Alegre.
Colaborou com a implantação do museu do Folclore, em São Paulo. Trabalhou ainda em
Revistas e teve suas crônicas publicadas em jornais e lidas no rádio.
Sobre o período de 1930 a 1934, recorte épico que interessa à análise que
prossegue, Oliveira (1988), assim como vários outros autores, somente cita a participação
ativa de Cecília nas reformas no campo da educação da época, através de jornais cariocas.
Nas palavras de Azevedo Filho, em Meireles (2003), no roteiro biográfico e bibliográfico
de Cecília Meireles vemos os anos de 1930 a 1934. Na obra, estes anos, no Diário de
Notícias são vistos como empenho da autora no movimento de renovação educacional no
Brasil, nos quais Cecília expunha idéias pedagógicas renovadoras e publicava crônicas
sobre acontecimentos diários.
No livro, A Farpa na lira: Cecília Meireles na Revolução de 30, de Verônica
Lamego, aparece uma Cecília além da figura de educadora ou poeta, além da figura
estudada nas escolas, além do lugar comum que Cecília representa em quase todos os
escritos sobre os quais nos debruçamos a estudar. Por ser esta a Cecília que mais condiz
com a que pudemos observar através de seus escritos, partimos de algumas considerações
tecidas por Lamego (1996) e principalmente por outras observadas em algumas crônicas
que foram por Cecília escritas.
A Farpa representa a Cecília política, a Lira representa a Cecília poeta. A
Farpa é um viés novo a quem se consagra como poeta. É o deslocamento presente na
figura de uma mulher que, a partir desta visão, quase não é contemplada pelos inúmeros
sites e livros que se embrenham a falar sobre a vida e obra da autora. O período entre
1931 e 1933 da obra de Cecília é apenas citado por muitos escritos, sem, no entanto,
esclarecer aquilo que ele representou. A Cecília deste período é a que nos interessa
conhecer.
48
A partir das considerações de Lamego (1996) é possível perceber uma Cecília
que desloca da ideologia governista do Brasil da época. Ela luta por uma república
democrática no seio da Revolução, não tem medo de criticar abertamente as questões
com as quais não concorda, criticou até mesmo o então presidente Vargas, referindo-se a
ele como “Sr. Ditador”. No entanto, o que evidenciamos no decorrer das crônicas ainda
não é esta Cecília e sim a que, ao ocupar a posição sujeito jornalista é porta-voz do
estado, ecoa os efeitos de sentido sobre os objetos simbólicos segundo aquilo que acredita
ser a ideologia do discurso do estado. Ela ainda não percebe, neste período de 1931, as
discrepâncias entre o que é dito e o que é realizado. Ora, a Revolução acabara de
acontecer e a autora vive um momento de idealismo, no qual acredita no governo que se
instaura.
A escritora defendia os princípios da Escola Nova, era contrária ao Estado
autoritário e à ascensão da igreja católica que tentava reaver seu poderio após 40 anos de
uma república laica. Criticou o ministro Francisco Campos pela inclusão do ensino
religioso na escola pública. A escritora, segundo Lamego (1996), tem como suas
principais lutas; a laicidade da escola, a co-educação dos sexos e uma escola pública livre
dos arbítrios da família e da igreja.
Perseguida pela censura Vargas, pela igreja Católica e pelos concursos
literários por sua voz política que não se calava, Cecília revela seu “horror” à política e
sai do jornal em 1933. Após sua saída escreve para o jornal carioca “A Nação”, com a
ressalva de escrever sobre tudo, menos sobre política. Mais tarde, já na década de 40,
escreve sobre folclore no jornal “A Manhã”.
Mesmo após a série de 5 livros, “Cecília Meireles - Crônicas de Educação”,
pouco se analisa sobre a materialidade destes escritos. Nelas e a partir delas pretendemos
buscar a Cecília das condições de produção deste escrito. Um dado relevante sobre as
crônicas que pretendemos analisar é o fato destas não aparecerem nas 5 obras acima
citadas. Isso nos faz olhar com maior curiosidade e atenção para o material de análise.
49
Educação do Diário de Notícias. A crônica deste dia foi encontrada no livro Crônicas de
Educação, 2/ Cecília Meireles29. Exatamente por interromper um assunto em andamento,
de uma seqüência de crônicas tendo como cenário o então Instituto Nacional de Surdos
Mudos, a crônica intitulada “Um compromisso da Revolução”, do livro 2 de Meireles
(2001), revela a preocupação política e educacional de Cecília e integra as condições de
produção dos discursos que analisamos.
Cecília estampa, nessa crônica, as bandeiras que hastia para o
desenvolvimento da educação no país; a Revolução de 30 e a Reforma Fernando de
Azevedo. A escritora apresenta o Dr. Frota Pessoa, subdiretor administrativo de Instrução
Pública, o aponta como conhecedor da Reforma Fernando de Azevedo, pelas sugestões
que o próprio Dr. Frota recolheu durante o tempo de sua implantação. Ela o faz para
apresentar o livro, A realidade brasileira, de Frota Pessoa, que diz ser cheio de
excelentes informações sobre nossas escolas. Tanto ao livro, como ao seu escritor,
Cecília elogia incessantemente. Do livro, Cecília fala colocando-o como aquele que faz
flamejar a chama da Revolução e do idealismo dos educadores, dentro dos moldes da
ideologia desses grandes educadores.
Cecília conclui sua crônica apresentando, novamente, o Dr. Frota Pessoa
como autoridade no assunto, o que a faz legitimar as palavras do subdiretor, ainda mais,
se somadas à forma como ela refere-se a ele, elogiando-o sempre, durante a crônica.
A escritora cita parte do livro, na qual o Dr. Frota Pessoa exalta as idéias
modernas vividas nos últimos seis anos da época e coloca a educação como aquela que
deveria ter a prioridade orçamentária do governo. O trecho diz que se avoluma o número
dos incapazes e dos desgraçados. Pensamos, com base nesta materialidade discursiva, que
isso significa. Cecília trata do assunto entre os dias nos quais fala de justiça social para a
criança brasileira. A forma como a autora refere-se às crianças surdas será melhor
contemplada à frente, porém, desde já, podemos marcar as palavras, incapazes e
desgraçados, como referentes também à questão da criança surda.
29
Meireles Cecília, 1901-1964. Crônicas de educação, 2/ Cecília Meireles; apresentação e planejamento editorial
de Leodegário A. de Azevedo Filho. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Fundação Biblioteca Nacional, 2001.-
(Cecília Meireles: obra em prosa) p. 153
50
Sobre a Escola Nova, além de perceber o que Cecília aponta através de suas
crônicas, gostaríamos de caminhar nas linhas da história. Por meio dessas linhas,
Lourenço Filho (1978), vê a Escola Nova como novos princípios destinados a rever as
formas tradicionais de ensino. Para o autor, o ensino seria agora visto por uma nova
compreensão da infância que se fez através da psicologia, da biologia e aponta para
funções da escola com respeito a mudanças sociais. Ele afirma que o crescimento e
desenvolvimento da criança estão estritamente ligados a fatores de nutrição, habitação,
conseqüentes da situação econômica da família. Assim como as condições emocionais da
criança, que são também conseqüências de suas relações humanas.
Segundo Lourenço Filho, nas primeiras escolas à formação educadora da
criança bastavam a ação da família, da igreja e da comunidade. A aprendizagem escolar
não se relacionava às atividades profissionais que a população ocupava. A formação para
o trabalho era realizada pela própria família e de certa forma, colaborava para a
perpetuação da estrutura social vigente.
O nome “Escola nova” ou “Pedagogia Contemporânea”, segundo o autor,
relaciona-se ao espírito crítico e á uma atitude criadora que vem rever a pedagogia
tradicional. O olhar pedagógico passa a ser redirecionado e quer contemplar então o
desenvolvimento individual de capacidades e aptidões. Essa fase é predominante até
poucos anos depois da primeira grande guerra.
A criança, na Escola Nova, passa a ser objeto de investigação sistemática,
passa a ser foco de indagações sobre o ato de aprender. Conforme Lourenço Filho
(op.cit.),concebe-se no início, uma ciência única que contempla aspectos biológicos,
psicológicos e educativos, a pedologia. Depois passa a ser dividida em dois campos,
antropologia pedagógica ou biologia educacional e a psicopedagogia ou psicologia da
educação, a psicologia evolutiva ou das idades, a da aprendizagem, a das diferenças
individuais, ramos mais descritivos e explicativos. Com respeito a ramos teóricos e de
aplicação, houve ainda a psicologia dos anormais, das matérias de ensino e da
personalidade.
Os sistemas escolares se expandiram também em virtude das transformações
político econômicas em quase toda a Europa e em países da América e da Ásia. O
trabalho industrial modificou regiões, a aplicação de tecnologias transformou o transporte
e melhorou as comunicações, havendo a necessidade cada vez maior do desenvolvimento
das escolas. O desenvolvimento e especialmente a origem da escola nova teve em seu
bojo essa complexidade social e os conflitos armados, como a guerra-fria.
51
As primeiras Escolas Novas, segundo Lourenço Filho (1972), surgiram em
instituições privadas da Inglaterra, França, Suíça, Polônia e outros países. No Brasil,
podem ser citadas duas iniciativas, a da Pedagogium, no Rio de Janeiro, em 1897 e a da
Escola Normal de São Paulo, que inaugura em 1914, um laboratório de pedagogia
experimental.
A primeira grande guerra, em 1914, em seus quatro longos anos, deu à escola
um novo sentido. Não se podia esperar que das nações mais cultas, em pleno
desenvolvimento técnico, das ciências, das artes e das letras viesse um conflito armado
que provocaria uma mudança social intensa. A partir deste novo enquadramento social, a
escola ganha novas características que em seu princípio se destinavam à preservação da
paz.
Em meados de 1930, como nos aponta Lourenço Filho (op.cit.), a escola nova
passa das instituições privadas às públicas, ganham foco os estudos da psicologia e
biologia da infância e adolescência. Os sistemas de ensino recebem novos objetivos
sociais para contemplar problemas referentes à saúde, trabalho e família e surgem
instituições auxiliares da escola. Na V Conferência Mundial da escola Nova,
desenvolvem-se temas como os citados acima no mesmo parágrafo e ainda se ajuntam
novos, como o das avaliações dos trabalhos escolares até ali; melhor formulação de
princípios teóricos e ainda doação do sentido de paz na formação da personalidade dos
educadores.
Após a segunda grande guerra, novos desafios são impostos à educação. A
partir da primeira guerra se esperava que os ideais de paz e os princípios de democracia
se consolidassem. No entanto, isso não ocorreu nos anos que se seguiram, e nasceu em
1946, a UNESCO, Organização Educativa Científica e Cultural das Nações Unidas
apoiado por 43 países imediatamente. A Carta das Nações Unidas veio a propor a paz , a
segurança, estreitadas pela educação, ciência e pela cultura, pela colaboração entre as
nações para o respeito pela justiça, pela lei, pelos direitos do homem. Deveriam ser
respeitadas as liberdades fundamentais de todos, sem distinção, fosse de raça, sexo,
língua ou religião. Ainda segundo Lourenço Filho, esse esforço visa um mundo mais
integrado, ou “um mundo só”, que encontram grandes obstáculos em decorrência das
ideologias dominantes30 e da atitude emocional de luta.
30
O sentido de ideologia dominante mencionado não é o da Análise do Discurso.O sentido da Análise do
Discurso seria o de efeitos de sentidos em uma determinada direção.
52
Ao falar sobre a situação atual, referindo-se até o ano de 1972, ano em que o
livro foi publicado, o autor assinala: “São muito recentes as descobertas sobre a
hereditariedade, a transmissão das doenças, a evolução econômica e social do
homem, as condições enfim, de ajustamento normal e anormal.” Na tentativa de
compreender as então chamadas crianças deficientes ou anormais, muitos
propugnadores da reforma escolar na escola nova se interessaram pela formação
biológica e pela medicina, conforme (Lourenço Filho, 1972, 40).
Sobre a Escola Nova no Brasil, Lourenço Filho assinala dois ensaios, em
instituições públicas mantidas por educadores norte-americanos, a Escola Americana, na
capital de São Paulo e o colégio O Piracicabano, em Piracicaba. Rui Barbosa, em 1882,
no parecer que redige sobre o primário, refere-se a novos procedimentos experimentados
no Rio de Janeiro, no Colégio Progresso. O autor, diz da década de 20, ser a década do
desenvolvimento da escola nova, no Brasil, com escolas na Bahia, Distrito Federal,
Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul, em outros estados e novamente com intenso
movimento no Distrito Federal. Quanto ao ensino particular, o autor menciona muitos
ensaios que se deram com adaptações do sistema de Montessori e Decroly.
Sobre os princípios da Escola Nova, Lourenço Filho (op.cit.), elenca 4
principais. O primeiro deles é sobre o respeito à personalidade do educando ou
reconhecimento de que ele deverá dispor de liberdade. O segundo princípio é o da
compreensão funcional do processo educativo sob o aspecto individual e social. O aluno
aprenderá em situações de jogos e atividades livres, ele aprenderá a pensar pensando e
aprenderá a fazer fazendo, em situações definidas. O terceiro princípio abrange
compreender que o aprendizado se desenvolve simbolicamente em situações de vida
social. É a escola funcionando como uma comunidade social, na qual a noção de
liberdade individual ganha seus limites na responsabilidade. O último princípio diz que as
características de cada indivíduo serão variáveis conforme a cultura da família, grupos de
vizinhança, de trabalho, recreação, vida cívica e religiosa. O autor ainda sistematiza as
condições do processo educativo com base na escola nova e as cita como sendo o normal
desenvolvimento biológico do educando; a socialização e aculturação, com participação
espiritual no ambiente em que vive; a preparação para o trabalho; afirmação pessoal
de sentido humano com participação a mais útil e produtiva em relação a si mesmo
e ao grupo; e relacionamento com os mais altos fins de expressão humana em aspirações
e valores visando o equilíbrio espiritual e saúde mental.
53
A partir do histórico da escola nova, olhando as palavras ou expressões
realçadas acima, é possível destacar as condições de produção do discurso das crônicas,
percebendo o papel social da escola. Naquela ocasião, a escola deveria conceber o aluno
através da antropologia, da psicopedagogia, de diferenças individuais, da psicologia dos
anormais, da hereditariedade, da transmissão de doenças, da evolução econômica e social
do homem, do ajustamento normal e anormal, do normal desenvolvimento biológico, da
preparação para o trabalho, da afirmação pessoal de sentido humano com participação a
mais útil e produtiva em relação a si mesmo e ao grupo. Todos estes critérios podem ser
afirmados como existentes no discurso das crônicas.
Conforme Lourenço Filho (1972), a tentativa de compreender as chamadas
crianças deficientes ou anormais através da antropologia, acontecia, pelos propugnadores
da escola nova, através do interesse pela formação biológica e pela medicina. As
formações discursivas médica, psicológica, social e pedagógica norteiam a escola para a
compreensão dos alunos e para a forma de adequar estes alunos a um modelo que se
promova como normal, saudável; ou seja, critérios de metodologias de ensino. Todos
estes fatores, dão ao surdo uma posição sujeito de desajuste, de falta, de anormalidade
mesmo, pois ele não se encaixa aos padrões médicos, psicológicos, sociais e pedagógicos
propostos. O sujeito surdo pertence a estas formações discursivas sempre pela
contrariedade, pela falta.
54
escola moderna, de abrigo para a criança, de recanto onde se aprende a amar outras
crianças e a natureza, lugar de descoberta de aptidões orientadas por sua vocação, a
chama de advertência para a humanidade.
Cecília ao definir a escola nova a coloca no lugar de completude, como se ela
fosse a solução de todos os problemas, não só educacionais: formar, criação, aprende,
descoberta, aptidões, orientadas; como psicológicas: vocação; familiares: contato com
as famílias, lar; sociais: assistência material, abrigo para a criança, recanto onde se
aprende a amar a natureza, advertência para a humanidade; morais: liberdade, combate
ao cerceamento do mundo, assistência moral, recanto onde se aprende a amar. Coloca
os sujeitos não educados desta forma como não humanos, incompletos. Pode-se afirmar
que o discurso de Cecília encontra-se firmemente alicerçado na ideologia da escola nova
e assim, também os sentidos materializados nas crônicas e as posições sujeito ancoradas
aos efeitos de sentido nesta direção.
4.4.1. NA CRÔNICA:
ESCOLA NIVELADORA? ESCOLA PÚBLICA, ESCOLA
TRADICIONALISTA E ESCOLA NOVA - OS SUBNORMAIS E OS
SUPERNORMAIS
55
“Se a escola fosse niveladora, como diz o ilustre crítico, não seriam
levados em conta nem os subnormais nem os supernormais. No
entanto, a Escola Nova tem serviços especiais para o estudo e
aproveitamento desses casos. E esse estudo, é claro, não consiste em
levar os atrasados e os adiantados para a mesma linha média, forçando
uns para frente e outros para trás – mas em permitir que ambos
avancem até onde lhes for possível, promovendo o descobrimento de
poderes individuais, que mesmo aos, à primeira vista, menos
favorecidos, venham a dar possibilidades de vida eficiente.”
Meireles (2001)
Temos como interessante o fato de Cecília escrever Escola Nova com letra
maiúscula e escola pública, assim como escola tradicionalista, com letra minúscula.
Significa o fato de a autora inserir a escola pública nos ideais da escola nova e, no
entanto, referir-se somente à escola nova com letra maiúscula. Assim fazendo, Cecília dá
a esta última uma posição de destaque e ao mesmo tempo contradiz a afirmação de que o
Sr. João Ribeiro, em sua visão da escola pública, não estaria muito de acordo com a
realidade do momento.
De acordo com as crônicas sobre a quais firmaremos a análise das posições
sujeito ocupadas pelo surdo, a autora classifica-o como subnormal. No parágrafo citado
acima, a autora fala do subnormal em sua relação com a escola. É certo que ela o faz para
combater a expressão “niveladora” usada por João Ribeiro para referir-se à escola
pública. No entanto, o que salientamos é novamente, a posição sobre o surdo aplicada a
estas linhas, um sujeito subnormal, atrasado, capaz de avançar até onde lhe for possível,
sujeito capaz de descobrir seus poderes individuais, sujeito à primeira vista menos
favorecido, porém que através da escola pode ter uma vida mais eficiente.
Estas posições sujeito ocupadas pelo surdo, tem suas raízes históricas na
ideologia da escola nova e encontram-se firmadas em outros fios que tecem esta trama e
que serão mais amplamente discutidos no momento da análise das crônicas.
4.4.2. NA CRÔNICA:
ESCOLA NIVELADORA E HOMOGENEIDADE EDUCACIONAL
56
Estas palavras de certa forma negam a crítica que a escritora do jornal faz ao
dito do Sr. João Ribeiro, mas não é para isso que chamamos a atenção. Mas sim para o
fato de Cecília ter sido formada no ambiente de escola tradicionalista e estar também
constituída por esse desejo de homogeneização na educação e de nivelamento. Embora
agora se inscrevesse em um momento de deslocamento, diríamos, na formação discursiva
da escola nova, através desta fala, ela mostra uma ambigüidade, um momento de
transição, de negação do novo, uma inscrição em outra formação discursiva que não
comunga com os ideais da escola nova. Não se pretende afirmar que Cecília não estivesse
engajada nos ideais de uma nova escola, mas sim, mostrar o lapso, o que habita também
sua memória discursiva e dá respaldo para a negação da antiga escola.
57
Sentidos da escola nova e do que era a educação antes dela, podem ser vistos
na crônica de 7 de março de 1931, O espírito da Nova Educação, encontrada em Meireles
(2001), livro 2. Nela, Cecília propaga um curso que seria dado por uma professora, Mme.
Artus Perrelet, que falaria sobre a nova maneira de ensinar da escola nova. Mais que isso,
a autora prepara a recepção da escola nova pelo professorado.
Cecília fala, primeiramente, da necessidade de uma ideologia que sustente a
qualquer transformação de forma mais ampla. A escritora define em suas palavras qual
seria a ideologia que se pauta em uma consciência definida do sentido educacional.
Afirma que os professores descobrirão, através do curso, o sentido da Nova educação. Ela
compara a escola que é então proposta com a que se havia vivenciado. Da escola velha,
diz que os professores teriam que nela sucumbir sob frias preleções memorizadas. Da
escola nova, e aí também se vê o sentido que ela dá à nova educação e à ideologia da
mesma, palavras que traduzirão “uma sentida compreensão da vida humana” e a ligação
entre o processo de educação e o viver.
Sobre a reação de uma professora mineira ao entrar em contato com a
explicação daquela que daria o curso a respeito do que era feito em sala de aula; também
é possível perceber os sentidos que são dados à escola nova e a anterior a esta. Seria
então a primeira, um mundo novo, uma visão diferente e a segunda, em comparação à
primeira, numa expressão de novidade e encanto, não era assim que ela tinha aprendido e
experimentado. Cecília termina dizendo que método é método e nada mais, refere-se à
escola velha e à escola nova, chama de nova educação e vida, afirma ser difícil de
penetrar, mas muito admirável.
Sobre o Brasil, Cecília diz que vive um momento de transição e que o curso
ainda teria uma significação ampla e trabalharia a sério na organização do país.
Ainda sobre os sentidos da escola nova para Cecília Meireles, temos a crônica
Escola Nova, de 22 de julho de 1932, em Meireles (2001), livro 3. Nesta crônica, Cecília
assume postura de militância em favor da escola nova. Assim fazendo, a autora mostra
como era recebida na prática, na vivência de pais, educadores e alunos, o retrato da escola
nova, o imaginário que circulava sobre a mesma. Como qualquer assunto, teoria ou
posição nova que nega o anterior, e especialmente uma nova pedagogia, é colocada uma
situação de incômodo e de temor pelo que possa vir. Ela se põe a dizer que agora todos
falavam mal da escola nova como se dela entendessem.
58
Sobre a imagem da escola nova, neste ambiente de conhecimento da mesma,
temos nas palavras de Cecília: “Tudo quanto aparecer de mau, de incompreensível, de
contrariante, de inesperado, em matéria de ensino, - ah! Já se sabe: é a Escola Nova...”
Cecília conta uma história que lhe contaram sobre uma menina que aprendera
números pares e ímpares, na escola, escrevendo folhas e mais folhas só de números pares,
depois só de números ímpares. E afirma que certamente diriam que isso é Escola Nova.
Passa então a descrever o que se faz na escola velha, referindo-se a quem faria a acusação
contra a escola nova: “os partidários da palmatória, da tabuada e de outras veneráveis
relíquias do passado.”
Na crônica, vemos os imaginários funcionando sobre a forma de conceber e
acolher a escola nova. Cecília posiciona-se claramente a favor, pela vivência da escola
podem ser vistas posições contrárias. Na negação da crítica vemos instaurado o conflito,
a resistência a esta escola como a detentora da melhor educação, pelos educadores do
período. Os gestos de interpretação dos sentidos da escola nova definem as posições
sujeito ocupadas pelos educadores do tempo em questão e também as posições sujeito
ocupadas pelos alunos, em nosso caso, o sujeito surdo.
59
A resposta de Cecília se faz através das imagens da escola nova, ditas pelo
que ela é e não é. Segundo ela, a escola nova não é invenção postiça arbitrariamente
oposta à vida e é uma instituição flexível como a vida que a determina e serve.
O diretor ainda diz que esta designação ganharia em ser abandonada e sugere
o nome “Escola Progressiva”, como nos Estados Unidos. Em favor de sua sugestão
justifica-se dizendo que progressiva mostra uma ciência que sempre se refaz, de mudança
permanente e que Escola Nova não é suficiente para designar mais que uma escola
transformada. Os sentidos que saem dessa fala são os de que a escola nova é algo que
transforma, no entanto pode parar, estagnar, enquanto que o sentido de progressivo dá
idéia de continuidade.
Cecília confirma as palavras de Anísio Teixeira, chama sua conferência de
programa de ação claro e justo, de uma realidade que estimula e impressiona. Ela também
estimula a leitura de toda a revista.
A escola nova ganha, através do discurso de Cecília, lugar de continuidade, de
novo que é capaz de se renovar quando chegar a ser antigo. Faz-se outra marca de
deslocamento da escola nova em relação à escola tradicional.
60
O Recenseamento de 1920, (op. cit.) mostra um quadro do Brasil da época,
registra uma população de 30.635.605 habitantes, a população economicamente ativa
representava 30% deste número, 9.191.044. A exploração do solo e subsolo representava
a maior profissão em número, 6.451.530. Em seguida vêm profissões ligadas à indústria,
com 1.189.530 trabalhadores. Estes números mostram um Brasil rural em transformação.
Nas capitais, São Paulo e Distrito Federal, as profissões ligadas à indústria
aparecem em primeiro lugar, e a exploração do solo surge em sexto lugar. Estes dados
sugerem uma mudança significativa no que diz respeito ao Brasil já que o Distrito
Federal e a cidade de São Paulo abrangiam 54% da população das capitais de Estados.
Qual seria o Brasil sonhado pela classe média? Que mudanças sociais eram desenhadas
por este recenseamento? Era a burguesia industrial almejando o poder e exercendo-o para
mudar os rumos da história do Brasil.
Segundo Fausto, (op. cit) o café, que em 1930 e 1931, respectivamente
representava 62,6% e 68,8% da exportação brasileiras, vai diminuindo sua participação
na economia do país, chegando em 1937 com a representação de 42,1% destas
exportações. Este fato evidencia a mudança econômico-social e também política do país.
(Cf. Ribeiro, 2001, p.110), em meados de 1928, já se sabia que a safra de café seria maior
que a absorção mundial, criando o aumento de nosso estoque, a queda dos preços e a
redução, pela economia brasileira da expectativa de receita em dólares, muito necessários
ao país. Em 1931, o preço do café caiu a um terço do que havia sido nos cinco anos
anteriores, fato que demonstrou a dependência das finanças brasileiras do mercado
internacional .
Em 1930, a economia brasileira era o café e o café era São Paulo. O principal
produto de exportação era o mesmo café, é fato que a economia nacional seria ferida pela
crise deste produto e esta crise, por sua vez, era afetada pela crise mundial do
capitalismo.
O momento de dificuldade econômica brasileira, gerado pela crise cafeeira,
somado ao descontentamento dos trabalhadores da indústria, à perda da força das
oligarquias rurais, ao modelo agrário exportador não adequado às transformações do país,
à política oligárquica baseada no poder dos estados, todos estes fatores somados formam
um cenário propício para a Revolução.
O tenentismo assume formas distintas antes e depois da chegada ao poder, em
1930. Antes dessa data, o tenentismo tinha, segundo (Fausto, 1976, p.57), características
militares e autoritárias, tendo no Rio Grande do Sul uma irradiação popular maior. Em
61
nome do povo, os tenentes se julgavam responsáveis pela salvação nacional e contavam
com a simpatia popular. No poder, o governo tenentista revela objetivos, nem sempre
coerentes na teoria e na prática. Os tenentes assumem postos importantes no Estado e
servem a Vargas para neutralizar as oligarquias sem modificar a estrutura
socioeconômica, não são, portanto, representantes do povo.
Conforme Fausto (op. cit.), não se pode entender o movimento de 30 sem a
intervenção das classes médias e nem como uma revolução destas classes. Elas não foram
o setor dominante e nem seus principais beneficiários. Ampliaram-se as oportunidades
para as classes médias e formaram-se novos segmentos em seu interior, no governo
Vargas.
Ribeiro (2001), coloca os principais acontecimentos dos anos 30, a
candidatura de Getulio Vargas, a Aliança Liberal e sua campanha, a Revolução de 1930
como movimentos impulsionados pelo propósito de democratizar a República no Brasil e
resgatar a dívida social deixada pelo Império e pela República Velha, oligárquica e
antidemocrática.
O poder era, antes de Revolução, dividido entre os estados de maior
eleitorado, Minas e São Paulo. Washington Luís vetou a candidatura do mineiro Antonio
Carlos Ribeiro de Andrada e impôs a candidatura do presidente de São Paulo, Julio
Prestes. As forças mineiras fazem a proposta da candidatura do presidente do Rio
Grande, Getúlio Vargas. Apesar da reação mineira, Washington Luís permaneceu firme
em sua posição. Em 1º de março de 1930, Vargas foi derrotado nas urnas e candidatos
paraibanos e mineiros não tiveram sua eleição reconhecida. Vem a Revolução como uma
resposta mineira e rio grandense à candidatura de Julio Prestes. Ribeiro (2001) diz ser a
Revolução contra a degola dos direitos de cidadania do Brasil, direitos de voto, direitos
trabalhistas, sociais e econômicos.
No dia 3 de outubro de 1930, tem início a Revolução. No dia 24 do mesmo
mês, uma junta militar depõe o governo de Washington Luís e no dia 3 de novembro
toma posse o governo provisório de Getúlio e é fechada a República Velha. Segundo
Murakami (1980),Vargas ocupou a qualidade de chefe de governo provisório até julho de
1934, com sua própria eleição para a presidência da República pela Assembléia Nacional
Constituinte. Murakami (op. cit.), aponta, a Revolução foi acontecendo no Rio Grande do
Sul e Minas Gerais, em Santa Catarina e no Paraná, no Espírito Santo, Pernambuco e na
Paraíba para só então chegar à capital da República. O governo impedia a circulação de
jornais, efetuava prisões, enquanto as forças armadas acompanhavam a evolução da
62
situação político-militar. Até que, pelas mãos do cardeal arcebispo do Rio de Janeiro,
chega um documento intimando Washington Luís à renuncia.
(Cf. Ribeiro, 2001, p.133),o compromisso da Revolução tinha em suas bases o
projeto econômico do desenvolvimento industrial, o projeto social das leis trabalhistas e
do desenvolvimento da educação.
Após a Revolução, o governo de Getúlio anunciou um programa de 17 itens.
Segundo Ribeiro (op. cit.), os itens eram: anistia aos rebeldes, militares e civis;
extirpação ou inutilização dos agentes de corrupção; criação de um conselho consultivo
composto por personalidades integradas à corrente das idéias novas; a reforma do sistema
eleitoral com o voto secreto; e outros itens ligados à educação, trabalho, desenvolvimento
industrial, transporte e agricultura. No item agricultura, o governo propunha a extinção
progressiva do latifúndio e a proteção à pequena propriedade.
Segundo (Meirelles, 2006, p. 649), o discurso de posse de Getúlio afirmava os
ideais da reconstrução nacional defendido durante a campanha da Aliança: a promessa de
erradicar a pobreza, a miséria, o atraso, as doenças e o obscurantismo. Este autor segue
na direção contrária de José Augusto Ribeiro, que pelo teor de suas afirmações posiciona-
se claramente a favor de Vargas e contra Washington Luís, chegando até mesmo a
referir-se ao último como obsessivo e não inteligente. Sobre o projeto de eleger Prestes,
esmagar Minas pela degola e neutralizar o Rio Grande temos:
Domingos Meirelles vem contar o outro lado da história, pelo próprio título do
livro, “Os órfãos da Revolução” e demais subtítulos. Tomando um subtítulo como
exemplo, temos, “Velhos de roupa nova”, ao falar sobre aqueles que assumiam o governo
brasileiro após a Revolução. Ainda, ao citar O Manifesto de Prestes, através da seleção
do trecho, revela ainda melhor seu posicionamento:
No Brasil, como em toda a América Latina, os
mistificadores servem-se da palavra revolução para enganar
grosseiramente as massas. (...) Com promessas de honestidade
63
administrativa e voto secreto, (os novos governantes) procurarão
enganar os trabalhadores (...), a fim de que possam ser (melhor)
explorados. (Meirelles, 2006, p. 657)
Sabemos que uma briga política sempre possui dois ou mais lados distintos e é
interessante perceber como os autores se posicionam em relação aos fatos que fizeram a
história de nosso país. Porém, nossos apontamentos em direção a este período pretendem
marcar não o acontecimento histórico em si, mas entender os dizeres de Cecília através
de uma perspectiva mais ampla. É fato que Cecília Meireles era a favor da Revolução,
acreditava nos ideais da Escola Nova e no desenvolvimento do país. Ela era a favor do
governo de seu tempo, via o momento político com um encantamento e uma esperança
que chega a ser quase assustador. Ela acreditava na mudança do país para melhor e até
mesmo poetizava assuntos a este respeito.
64
CAPÍTULO 5
Uma questão cabível antes do início da análise seria: por que tomar como
material de análise, crônicas de Cecília Meireles31? Pensando a partir da atualidade, os
escritos de Cecília e também as posições sujeito que ocupou, são representativos e
significam à medida que ainda são foco de estudo na educação brasileira. Historicamente,
Cecília desloca de seu lugar social de professora e segue rumo ao político, como revela
Lamego (1996), e ainda como é possível perceber através de seus escritos jornalísticos.
Pensando um pouco mais além, podemos perceber Cecília como porta voz da história do
INES, conseqüentemente, como porta voz da história da posição do sujeito surdo
brasileiro; como formadora de uma discursividade que inaugura sentidos por meio da
escrita difundida pelo Rio de Janeiro e pelo Brasil.
Ao falar sobre elementos decisivos para o acontecimento da linguagem,
(Guimarães, 2005, p.11) aponta para a língua, o sujeito, a temporalidade e a materialidade
histórica do real. Como materialidade histórica do real, o autor explica, enuncia-se
enquanto ser afetado pelo simbólico, num mundo vivido através do simbólico. Como
temporalidade, ele diz que se configura como um presente que significa porque projeta
em si mesmo um futuro (futuridade), funcionando por um passado que os faz significar,
passado não como recordação pessoal de fatos anteriores, mas, rememoração de
enunciações por ele recortadas, fragmentos do passado recortados como seu passado, que
se dá como parte de uma nova temporalização.
Retomemos a questão da temporalidade, colocada por Guimarães (op. cit.), o
presente pode ser visto como o discurso escrito por Cecília nas crônicas analisadas, o
futuro (futuridade) projeta a novidade tanto na educação, como na administração do
instituto, refletindo em nova abordagem de ensino, novos alunos. São ares de esperança
que se lançam nos escritos analisados. Esse discurso só funciona pelo passado que o faz
significar e que neste caso, se ancora nos ecos da revolução de 30, da escola nova, do
novo governo, da não república velha, do não tenentismo, da não escola tradicionalista.
31
Para a melhor compreensão da análise, recomenda-se a leitura da transcrição das três crônicas, no Anexo 2.
65
Tais fatos políticos, históricos se dão como parte de uma nova temporalização que nega
os paradigmas passados e se desloca sentido à novidade.
Como complemento de nossa análise, lançaremos questionamentos que
podem ajudar na compreensão do discurso analisado. Para quê se fala? Como se fala? O
que se fala?
Algumas questões acima merecem maior aprofundamento e já são parte da
análise. Para quê se fala? Fala-se para marcar a mudança na administração do instituto,
de 1930 até 1947, para propagá-la e para dar ao mesmo uma nova relação de poder
perante a sociedade que o acolhe. Fala-se para dar ares de Escola Nova ao processo de
educação inaugurado pelo Dr. Armando Lacerda, ares de revolução, como aponta Cecília
na própria crônica, ares de um regime revolucionário, representado pelo governo da
época. Cecília fala para legitimar a nova administração, já que a anterior, do Sr. Custódio
Ferreira Martins, de 1907 a 1930, foi considerada, conforme Rocha (1997), fracassada. A
tese de doutorado do Dr. Arnaldo de Oliveira Bacellar faz a esta administração duras
críticas. Somando-se a estas críticas, o jornal Vanguarda, em 1923, no Rio de Janeiro,
também expõe fatos negativos sobre a mesma administração.
Como se fala? Fala-se adjetivando o tempo todo, como acontece também em
suas crônicas. Adjetivar é característica de sua escrita. Fala-se bem dos que estão no
poder, fala-se do surdo como quem o está descobrindo, descrevendo-o com admiração,
com entusiasmo.
As fotos também representam uma materialidade significativa. Na crônica do
dia 11 de fevereiro, de 1931, há uma foto do diretor do instituto, Dr. Armando Lacerda,
apenas de seu rosto, para apresentá-lo. No dia 12 há duas fotos dos meninos surdos
trabalhando nas oficinas de encadernação e sapataria; na primeira há 5 meninos, na
segunda, 4 meninos e um homem que possivelmente seria um professor. Na mesma
página há ainda os desenhos de um dos internos, o menino surdo Mauricio Puslitnih. São
4, um dos desenhos não é possível distinguir e não foi comentado por Cecília, os demais
são um homem comendo e um sapato, feitos a pedido de Cecília, o outro desenho é de
uma cabeça de cavalo, feita por iniciativa do menino. No dia 14, consta uma foto de
corpo inteiro do Dr. Armando Lacerda ao centro e seus auxiliares, Luiz Coelho,
repetidor, e Saul Borges Carneiro, catedrático de linguagem articulada.
A escolha das fotos não foi aleatória. Todas as fotos aparecem de forma a
criar uma imagem positiva em relação ao Instituto e à sua recente administração. A foto 1
apresenta o diretor do Instituto e a crônica dá sentido à foto. Ela enaltece o trabalho do
66
diretor, segundo Cecília, jovem médico especializado em reeducação auditiva, cita as
revistas nas quais os escritos do jovem estão registrados. A foto dos meninos trabalhando
nas oficinas e do desenho de um deles também nos leva a visualizar a produtividade, o
desempenho, tanto da instituição, como dos meninos. A última foto, do diretor junto a
dois funcionários, mostra os rumos da educação na ênfase que era dada, na época; a
linguagem articulada e o professor repetidor, que privilegiavam a fala por parte dos
alunos. Dessa forma, a foto ainda aponta sentidos na direção da eficácia do ensino, que
acompanhava os rumos, então considerados, como válidos no Brasil e fora dele.
Dois fatos chamam atenção: o de ter sido, conforme Rocha (1996), o chefe do
governo provisório, Getúlio Vargas, quem dá posse ao Dr. Armando Lacerda, nomeando-
o diretor; somado a este, o fato da comemoração da imprensa, inclusive de Cecília,
apontam para o caráter político das páginas do Diário de Noticias aqui analisadas. Em
1930, época da transição do Brasil velho para o novo, esta diretoria é nomeada. O
momento histórico é de novidade, de revolução, de esperança, no qual, Cecília,
fortemente engajada, escreve suas crônicas sobre o Instituto e significa a posição do
sujeito surdo. Por isso, as condições de produção deste discurso seguem a mesma linha
histórica e política na qual se insere a autora.
O que se fala? Cecília fala do passado do instituto, criticando a administração
de Dr. Custódio, usa como legitimação de seus argumentos, a tese de doutorado do Dr.
Arnaldo de Oliveira Bacellar. Explica a questão da surdez como patologia, pela ideologia
médica. Percorre o instituto mostrando a realidade ali vivenciada naquela nova
administração. E finalmente, em sua última crônica, entrevista o Dr. Armando e expõe
seu plano de educação, chamado de plano médico pedagógico.
Antes de iniciarmos qualquer reflexão a respeito da posição sujeito ocupada
pelo surdo é necessário deixar claro que não estamos com isso, almejando fixar um
julgamento sobre esse sujeito. A partir de uma análise de perspectiva discursiva
pretendemos perceber, através da materialidade discursiva inscrita nas reportagens
selecionadas, aspectos de um retrato daquilo que se pensava na época. Este pensamento
aparecerá inscrito entre perspectivas que se ancoram em diferentes formações
discursivas32. Algumas delas nos causarão estranhamento se comparadas ao discurso
atual e às conseqüentes posições sujeito que este mesmo discurso inaugura.
32
Formação discursiva - O sentido não existe em si, mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em
jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas As palavras mudam de sentido, tiram seus
67
Ao pensar em registrar as primeiras impressões sobre os adjetivos e orações
adjetivas que compõem a estrutura da reportagem sobre o Instituto Nacional de Educação
de Surdos, então Instituto Nacional de Surdos Mudos, mostraremos uma percepção que
nos ocorre na leitura de todo o texto. O fato é que não há como discernir entre os
adjetivos e orações adjetivas que se colocam claramente na reportagem e as impressões
da autora, pois esta adjetivação constitui as impressões de Cecília. É como se toda
nomenclatura usada para definir o sujeito surdo e os sentimentos da autora em relação a
este sujeito estivessem colados. E assim estão realmente, pois não há como separar o
sujeito da ideologia que o inscreve exatamente como este sujeito e não outro.
Ao olhar para uma página de educação, em um jornal de 1931, em uma
reportagem sobre o Instituto Nacional de Surdos Mudos e capturar neste texto a figura do
surdo, as posições sujeito que dele surgem, fica a pergunta: o que os números querem
significar nesta análise?
Atrevomo-nos a responder. Primeiramente, houve a separação dos discursos
que aparecem na materialidade do texto, para descobrir a quais formações discursivas
eles se remetem. Foi feita uma classificação segundo as palavras que sinalizam tal e tal
discurso. E qual não foi nossa surpresa ao perceber os números apontando um novo olhar.
A discursividade que se esperaria ao pensar na pesquisa sobre a autora, em sua
condição de educadora e em se tratando de uma coluna de educação seria
predominantemente escolar ou da educação, no entanto, percebemos nos fragmentos
analisados a presença marcante de um discurso médico que aponta para sentidos outros
no seio da educação da época.
Como forma de revelar os números e olhando os mesmos com a eterna
necessidade de interpretar33, percebemos a existência de algumas formações discursivas e
as respectivas posições sujeito que delas derivam. Dentre elas estão, o surdo patológico,
que conforme a tabulação dos dados encontra-se revelado em 40 imagens.
O surdo símbolo do desconhecido é ressaltado em 5 imagens revelando o
estranhamento da autora diante do sujeito surdo e a estas acrescentamos ainda outras 17
imagens, que se dedicam a uma descrição das crianças surdas com as quais a escritora se
encontra em suas andanças pelo instituto. Inserir estas 17 imagens entre as que abordam o
sentidos, segundo as posições dos que as empregam, em relação às posições ideológicas daqueles que as
empregam. (Orlandi, 2005)
33
Conforme Orlandi no livro Interpretação
68
sujeito surdo como símbolo do desconhecido revela a causa da insistência em descrever
tais crianças. Não se descreve, tão minuciosamente alguém que já é conhecido. A autora
concede ao leitor a quase visualização dos alunos que do instituto, isto não acontece sem
um propósito. O propósito é claro, dar visibilidade ao desconhecido.
Há ainda, o surdo escolar ou da educação aparece em 24 imagens. A
materialidade analisada ainda demonstra o surdo social, revelador de 14 imagens. E por
último, o surdo ser social, assinalando 9 imagens.
“A superposição das relações de poder e das de saber assume no exame todo o seu
brilho visível” (Foucault, 1987)
69
mais autorização. Trazer ao discurso pedagógico a legitimidade do discurso médico, o
torna mais científico, verossímil, verdadeiro, mais confiável, o torna comprovável.
A Escola Nova traz para a educação uma nova maneira de abordar o ensino,
que passa a ser também considerado, conforme Lourenço Filho (1972), pelo viés da
Antropologia Pedagógica ou Biologia Educacional, considerada como um dos dois
campos desta nova ciência. Também por esta razão, Cecília deixa falar tão alto a voz de
um médico em seus escritos, qualquer aluno é visto por este novo olhar, aluno surdo, em
especial, por todas as características que o acompanham desde antes do processo escolar,
em muito maior escala.
Como forma de captura do surdo patológico, temos:
“Encontrei estas crianças em completa promiscuidade. Não possuem
fichas individuaes. Não passaram por nenhum exame médico. Não
foram submetidas a nenhum teste. De algumas, nem se conhece a
origem. Nem se sabe como se chamam... Ahi está uma coisa
perturbadora; uma criança sem nome, sem indicações sobre sua vida...
E surdo muda... Não pode haver mais completo mysterio que um
destino assim.
(fala do Dr. Armando – Anexo 3, folha 934)
34
A numeração das folhas é referente à transcrição das frases adjetivas encontradas nas crônicas.
35
Termo promiscuidade na linguagem médica, encontrado em:
http://www.dicionáriomédico.com/promiscuidade.html
70
A visão médica se evidencia no fato de não haver qualquer informação que
apontasse para a questão do histórico, de uma possível hereditariedade, da classificação
por informações, para aumentar a veracidade e a capacidade da pesquisa médica. Sem
exames, sem fichas, sem diálogo, sem nome não há consulta que se sustente.
A posição sujeito surdo que deriva do discurso patológico, torna o aluno um
paciente a ser diagnosticado. Uma instituição educacional passa a ter prioritariamente
uma função medicinal, de classificação, de diagnóstico. O princípio de homogeneização
aí funciona na base do processo de educação; de forma a organizar, classificar,
categorizar, hierarquizar, controlar para dar condições de igualar e a partir da pensada
eliminação das diferenças, seguir em busca do conhecimento.
Pensando a hierarquização, ela surge como forma de manter a funcionalidade
da instituição e se perpetua como forma de manutenção de posições de poder. Classificar
para, a partir dos iguais, manter a ordem, definir os espaços marcados dos sujeitos, com
vistas a educar com mais facilidade. Definindo os espaços, definem-se, por conseguinte,
as posições sujeito pelas quais estes mesmos sujeitos se significam. É como se houvesse,
assim, a eliminação da diferença e ao mesmo tempo, a marca de sua existência, porque é
agora, organizada.
Há, ainda, outro termo usado para referir-se ao surdo, durante toda a crônica,
que claramente se insere na imagem do surdo patológico. É o vocábulo anormal. Tal
nomenclatura merece um pouco mais de atenção pelo fato de sua repetição contínua e
ainda por derivar do discurso médico e alcançar os demais discursos pelos quais a
imagem do surdo transita. A palavra anormal é também utilizada em outras áreas de
estudo, como evidencia Lourenço Filho (op. cit.), quando aborda a questão de um novo
olhar sobre a criança da Escola Nova. A psicologia dos anormais foi estudada como ramo
teórico e de aplicação, entre as matérias de ensino e da personalidade. O surdo, para os
padrões da época encontra-se nesta categoria.
Etimologicamente, anormal deriva da palavra norma, padrão. Anormal é
aquele que foge à regra, que não se enquadra às normas. E temos a gramática da vida, a
norma, o normal, o anormal, o surdo, fora da norma, fora da regra. A gramática, segundo
71
36
Orlandi (2005) é muito mais que um lugar de norma, ela é a forma da língua com a
sociedade na história; é a posição sujeito que somos convidados a ocupar ao aprendermos
a língua. O estar fora da norma, no caso do sujeito surdo, fez com que ele resistisse à
Língua Portuguesa e sempre gerou marginalização.
O sujeito surdo é considerado anormal exatamente por não ser ouvinte.
Foucault (2001), escreve sobre a genealogia da anomalia e designa as três figuras que a
constituem, diz serem elas, o monstro humano, o indivíduo a ser corrigido e a criança
masturbadora. As duas primeiras imagens se encontram com as posições sujeito ocupadas
pelo surdo através da história. O monstro humano é uma noção jurídica, ele constitui em
sua existência uma violação das leis da sociedade e das leis da natureza, está no campo
“jurídico biológico”, conforme Foucault (op. cit.). O surdo, do discurso da crônica, viola
as leis da sociedade porque não pode estudar, trabalhar, ser economicamente ativo, ser
cidadão conforme o padrão de normalidade então estabelecido. Ele também viola as leis
da natureza porque um de seus cinco sentidos, e em alguns casos, dois, não desempenha a
função para a qual foi criada.
Segundo Foucault (op.cit.), esta figura do anormal, provinda do século XVIII,
arma uma arapuca para a lei, porque é capaz de suscitar violência, vontade de supressão,
cuidados médicos ou piedade, conforme evidenciado historicamente, tornando-se o
primeiro equívoco da lei. O segundo equívoco, que acontece no decorrer do século XIX,
advém do princípio de inteligibilidade tautológica, da necessidade de descobrir o fundo
de monstruosidade das pequenas anomalias, mas ser em si mesmo ininteligível. As
técnicas judiciárias e médicas girarão nesse entorno.
Reconhecemos o discurso médico, do recorte destacado acima, nas palavras
de Foucault. O exame médico que está ali exposto, se designa a compreender aspectos a
respeito do sujeito surdo, que se fossem compreendidos, não atingiriam a completude do
que se pode entender. Questões permanentes se colocam, o que justifica, o atual momento
de discussões ao redor do surdo.
Quanto ao indivíduo a ser corrigido, Foucault (op. cit.), reconhece, por seu
contexto de referência, a família no exercício de seu poder interno, na gestão de sua
economia ou a família em sua relação com as instituições que a apóiam. O fato de este
indivíduo ser muito corriqueiro, regular em sua irregularidade, faz com que, após o
século XVIII, gire em torno da problemática do homem anormal, uma série de equívocos.
36
Texto apresentado no IISIAD no Rio Grande do Sul (2005) e em João Pessoa
72
O primeiro deles é que, por sua freqüência, será difícil determiná-lo, não há provas e não
se pode demonstrar. Outro equívoco é que há a necessidade de corrigi-lo, mas à medida
que fracassam os investimentos familiares ou educativos, o indivíduo a ser corrigido
torna-se incorrigível. No entanto, giram em torno dele intervenções, sobreintervenções,
técnicas de educação, reeducação. Neste ponto, Foucault (op. cit.) afirma, “esboça-se um
eixo da corrigível incorrigibilidade, em que vamos encontrar mais tarde, no século XIX, o
indivíduo anormal, precisamente.”
A relação da família com o INES, então INSM, se dá, ancorada nesta visão da
anomalia e poderíamos mesmo afirmar que fundamentada na corrigível incorrigibilidade
esta relação se faz. O surdo é mandado para a instituição a fim de ser educado e
corresponder aos anseios familiares do padrão da normalidade esperado, de corresponder
às expectativas da manutenção de seu poder interno, de corresponder ao padrão de
normalidade da gestão da economia familiar. Como lidar com um sujeito incapaz de
obedecer às leis da família? Como lidar com um sujeito incapaz de contribuir com a
economia familiar? Como lidar com um sujeito incapaz de pensar segundo os padrões
familiares por não ter sido educado?
O que nos impacta em todas estas questões e nos causa estranhamento é que
elas se fundamentam em uma verdade estabelecida, o surdo por não poder se comunicar
segundo a norma é considerado à margem na educação, na economia e na relação
familiar e este á o motivo de sua entrega à instituição. O conceito de anormalidade, dessa
forma, pode ser considerado como a gênese da posição alocada pelo sujeito surdo, há
séculos.
73
O caráter político da linguagem não significa dizer que devem ser vetadas
expressões em nome daquilo que se considera politicamente correto. A visão que se
assume, hoje, do que vem a ser o politicamente correto não tem outra função senão elidir
aquilo que é politicamente explícito e que não se cala simplesmente porque um grupo
assim o quer. Ou seja, na tentativa de extinguir o considerado incorreto, os nomes são
mudados e seus sentidos permanecem, porque são históricos, são políticos, se relacionam
a memórias. E mesmo vetados, esta nomenclatura censurada é utilizada porque não ecoa
na história, não faz sentido. Dizer de determinado modo e não permitir o dizer de outro
modo é identificar o real para os sujeitos em uma relação de poder que liga o dizer de tal
modo ao pertencimento a um grupo. Assim fazendo, mobiliza o desejo dos sujeitos, de
ser como aquele grupo e gera a repetição empírica37. Segundo (Orlandi, 2002, p.28),
“aquilo que não faz sentido na história do sujeito ou na história da língua para o sujeito
não “cola”, não “adere”.
Este é o caso da expressão surdo-mudo, que ainda se ouve, embora não seja
aceita. Segundo Sassaki (2003), o termo surdo-mudo, “quando se refere ao surdo, não
corresponde à realidade dessa pessoa”. O autor diferencia deficiência auditiva total,
parcial e perdas auditivas como forma de dizer que quase todo surdo não é mudo. Tal
classificação se assenta sobre o discurso médico, são os exames médicos é que
modificam um conceito que necessita de mais tempo para ecoar na história. Ao escrever
sobre termos não aceitos, já está pré-assumida a questão do uso destes termos.
Em 1930, o Dr. Armando já dispunha destas informações a respeito do surdo
ser ou não mudo, no entanto, o Instituto ainda era denominado Instituto Nacional de
Surdos Mudos. Essa não parecia ser uma questão importante. Somente em 6 de julho de
1957, o nome da instituição é mudado para Instituto Nacional de Educação de Surdos.
Conforme Rocha (1997), isso acontece em virtude dos avanços educativos na área da
surdez e na concepção educativa da pessoa surda. Ao pensarmos sobre o tempo
decorrente desta mudança e sobre a persistência do assunto nomenclatura até os dias
atuais, podemos dimensionar a lentidão da desconstrução dos sentidos, historicamente.
Etimologicamente38, vejamos as palavras, surdo e mudo. Surdo é um adjetivo,
proveniente do latim, surdu, que não ouve; que não quer ouvir; insensível; que não é
sonoro, que não tem eco; fraco, pouco perceptível; mudo, silencioso; surdo-mudo.
37
Conforme (Orlandi, 2004, p.140), a repetição empírica ou mnemônica é a retomada mecânica do dizer, o efeito
“papagaio”. O aluno repete sem entender, sem formular aquilo que é dito pelo mestre.
38
Conforme Machado (1959)
74
Quanto à palavra mudo, também adjetivo, do latim, mutu, privado do uso da palavra.
Notamos, não ao acaso, que ao sentido da palavra surdo são adicionadas as palavras,
mudo, silencioso e por fim, surdo-mudo. O silêncio é atribuído ao surdo como condição
da surdez, ou seja, a ausência de som é atribuída ao surdo, não por não falar, mas por não
ouvir. A distinção principal entre o surdo falante e o ouvinte falante, atribui-se ao fato do
primeiro poder produzir som, mas não ouvi-lo; e temos a falta. A condição de insensível
e pouco perceptível relacionam-se aos sentidos. Se o sujeito é privado de um dos cinco
sentidos, temos novamente a falta. Ser mudo não bloqueia um sentido, não atrapalha a
percepção ou a sensibilidade do sujeito. Assim, não falar não se constitui como falta.
Etimologicamente, ao surdo é atribuída a mudez, e temos surdo-mudo; ao mudo não é
atribuída à surdez, e não temos mudo-surdo.
Ainda outro ponto a ser pensado é a comunicação ouvinte/surdo. O ouvinte
designa o surdo como surdo-mudo exatamente porque diante do surdo sua comunicação
se faz muda. O desconforto do ouvinte em relação ao surdo diante da necessidade de
comunicação é inegável. Assim, o ouvinte mudo designa o surdo como surdo-mudo,
mesmo que ele não seja.
Interessa à nossa análise o fato do sujeito ser conhecido nominalmente por um
adjetivo. Ou seja, o que caracteriza a posição desse sujeito é exatamente a falta de um
atributo, a não completude em relação a, a comparação, o desejo de ser. Estes são
elementos que constituem a posição sujeito ocupada pelo surdo.
75
Ao tratar da sanção normalizadora, Foucault (1997), discorre sobre o poder da Norma e
afirma que esta aparece através das disciplinas e funciona facilmente em um sistema de
igualdade formal que introduz as diferenças individuais dentro de uma homogeneidade,
que é a própria regra. Ora, não é esta a intenção da educação de um instituto específico
para surdos, aproximá-los ao máximo da normalidade? A postura de seus corpos, seus
olhares, suas roupas, os locais que ocupam, são sinais da regra.
No momento em que Cecília as descreve, elas estão soltas pelo instituto, não
estão em aula ou em qualquer outra atividade. Elas riem, gesticulam e parecem curiosas.
Estes são sinais de resistência, de deslocamento, do incorrigível. Especialmente o gesto,
que configura sua linguagem e que não era dito como norma, como aceitável.
Com respeito à visão de Cecília diante das crianças que não ouvem e não
falam, elas são estranhas e encantadas. Dentre os sinônimos de estranho, encontra-se a
palavra anormal. A palavra encantada remete a atração e sedução. É paradoxal, ao mesmo
tempo em que o desconhecido nos causa efeito de exterioridade, porque não nos vemos
como parte do que o outro é, ele também nos atrai, pois, de certa forma queremos que nos
seja inteligível. Constituídos como somos, pelo princípio da normalidade, da
homogeneidade, diante do surdo, nos tornamos normais e aquilo que falta nele, gerava
nos ouvintes à sua volta, um sentido de completude.
Cecília fala não do lugar social39 de professora ou escritora que tem, mas de
outra região do interdiscurso, do senso comum, pois faz a descrição da cena que vê como
quem não experimentara contato nenhum com a criança surda. O lugar que ela toma para
si, visto através de sua fala, poderia ser ocupado por qualquer pessoa que visitasse o
instituto.
A posição do sujeito surdo derivada da simbologia do desconhecido, na
relação surdo-ouvinte, configura-se através da comparação, do estranhamento, do recuo,
da observação, do endividamento diante da falta de um de seus sentidos.
39
Conforme (Guimarães, 2005, 28) podemos ter um lugar social e no entanto, ocupar uma posição proveniente
de outra região do interdiscurso.
76
nestes, o mal não é interno, não se trata de desenvolver uma
mentalidade rudimentar ou incompleta, mas servida por uma
integridade physica dos sentidos” (Anexo 3, Folha 4)
77
A educação especializada passa a constituir a posição sujeito destinada ao
surdo. Ou seja, a memória de sentidos que constitui o sujeito surdo se faz a partir da
educação em institutos especializados. O surdo é reconhecido em sua heterogeneidade,
porém, para ser levado à homogeneidade, pois quanto mais parecido com o ouvinte, mais
corresponderá à norma estabelecida. (Cf. Guimarães, 2005, p.14), enunciar pelo
funcionamento da língua no acontecimento é falar enquanto sujeito. Sujeito que fala não
no tempo, porém de uma região do interdiscurso, memória de sentidos estruturada pelo
esquecimento que faz a língua funcionar. Ser sujeito de seu dizer, ser sujeito, é falar de
uma posição de sujeito.
40
(Cf. Orlandi, 2002, p.72) Uma vez interpelado em sujeito, pela ideologia, o indivíduo, como sujeito,
determina-se pelo modo como, na história, terá sua forma individual(izada) concreta, no caso do capitalismo que
é o presente, a forma de indivíduo livre de coerções e responsável que responde como sujeito jurídico diante dos
homens e do Estado.
78
de qualquer forma, não lhe cabem alternativas e todos lhe devem, desde a divindade até
toda a sociedade sã.
O tom do discurso social é dramático, tão dramático quanto se configurava o
momento político vivido. Às vésperas de uma revolução, o povo se sente o mais
injustiçado e a posição do sujeito surdo não poderia ser diferente, toda e qualquer
expressão de poder se esquecera do surdo.
Para caracterizar o surdo do trabalho ou profissional, temos:
79
CAPÍTULO 6
Da BBC
Um casal britânico de surdos iniciou uma polêmica ao afirmar que
quer selecionar um bebê com a mesma característica no processo de
fertilização artificial ao qual deve se submeter.
Tomato e Paula Lichy se transformaram em ícones do movimento
dos portadores de deficiência auditiva na Grã-Bretanha, que não
considera a surdez uma deficiência, mas sim o primeiro passo para
uma cultura rica, com sua própria linguagem, história e tradições.
O casal já tem uma filha portadora de deficiência auditiva e quer ter
uma outra criança. Paula, que já tem mais de 40 anos, provavelmente
precisará de um tratamento de fertilização.
A Lei de Embriologia e Fertilização Humana da Grã-Bretanha não
permite que casais que passem por tratamentos do tipo escolham os
embriões que possam desenvolver algum problema, anormalidade ou
condição médica, deixando de lado os embriões considerados normais.
"A questão central é que o governo afirma que pessoas surdas não
são iguais às pessoas que ouvem", disse Lichy à BBC.
Polêmica
Segundo a lei britânica, se o casal se submeter ao tratamento e
produzir apenas embriões portadores de deficiência auditiva, eles
poderão implantar um destes - mas é pouco provável que não seja
produzido nenhum embrião considerado normal.
Se o casal pedir para que os embriões sejam testados, eles serão
obrigados a escolher o que não é portador da deficiência auditiva.
O teste dos embriões não é obrigatório, e o casal pode simplesmente
apostar na sorte de que um embrião portador de surdez seja o
escolhido.
Um dos argumentos de Tomato Lichy é que a surdez não é uma
deficiência. Para o ativista, a inabilidade para ouvir é uma parte
integral de sua identidade e aqueles que conseguem ouvir é que estão
em desvantagem em seu mundo.
81
Mas o argumento dele não é aceito por uma das organizações que
faz campanha pelos portadores de deficiência auditiva na Grã-
Bretanha, o Instituto Real para Pessoas Surdas.
"A surdez é uma deficiência e passamos muito tempo fazendo
campanha para melhorar as vidas das pessoas que têm o problema.
Com certeza não é um insulto aos surdos afirmar que é melhor criar
uma criança que vai enfrentar menos dificuldades, quando se pode
fazer uma escolha", afirmou o diretor-executivo da organização, Jackie
Ballard.
Uma pesquisa da Universidade de Leeds, na Grã-Bretanha,
descobriu que a grande maioria das pessoas surdas pesquisadas não
tinha preferência - ficariam felizes se tivesse um filho surdo ou
normal.” (BBC Brasil41, 12 de março de 2008)
41
Reportagem do Globo Notícias BBC Brasil, acessado em 12 de março de 2008.
Disponível no site: http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia
82
da surdez. O discurso brasileiro, a exemplo do que sempre acontecera, toma como seu o
que é estrangeiro. Interessa-nos apontar em direção à rapidez da veiculação de
informações dos dias atuais. No histórico que escrevemos sobre a educação de surdos
podíamos contemplar iniciativas isoladas de países que se desenvolviam com respeito a
educar o surdo. Tais iniciativas permaneciam isoladas e não podiam contar com a
participação de outras experiências educativas. Hoje, através da globalização, a tendência
do ensino é caminhar quase na mesma linha, já que somos altamente constituídos não
mais pela voz do outro, mas pelas vozes de muitos outros, dialogadas entre si e de certa
forma uniformizadas também entre si.
A autoria/autoridade, agora, é novamente concedida a um jornalista, a um
diretor de instituição, à ciência com outra forma de representação, a um movimento
social, ao judiciário, ao estado, à família42, mas há um deslocamento realizado em relação
ao surdo, que não era, antes, sujeito autor e passa a ser.
A ciência médica ocupa, semelhantemente ao que acontecera no recorte
anterior, lugar de autoria e com destaque especial pela forma como marca sua presença
neste discurso, sendo referida várias vezes. São estas as marcas de sua materialidade: o
teste dos embriões, a embriologia, a fertilização humana, a condição médica, a
inabilidade de ouvir; os conceitos de deficiência auditiva e de anormalidade.
O autor da matéria jornalística claramente posiciona-se contra a vontade dos
surdos de escolher embriões surdos como filhos. Isso se vê em sua argumentação, feita
toda neste sentido. Somente as vozes dos surdos falam em favor dessa opção enquanto
que, em posição contrária, temos as vozes, da lei, do estado, da instituição/organização.
A ciência em outra forma de representação encontra-se na pesquisa da
universidade de Leeds; o movimento social encontra-se em uma das organizações que faz
campanha pelos portadores de deficiência auditiva na Grã-Bretanha, o Instituto Real para
Pessoas Surdas; o judiciário encontra-se na lei de embriologia e fertilização humana; o
estado encontra-se referido como governo e a ele é dada uma posição de centralidade, nas
palavras da mulher surda que quer o direito de escolher ter um filho surdo: "a questão
central é que o governo afirma que pessoas surdas não são iguais às pessoas que ouvem".
As posições ocupadas pelo sujeito surdo são: portador de deficiência auditiva;
ícone; anormal; diferentes das pessoas que ouvem; o escolhido; ativista; possuidor de
42
Conforme Althusser (2001), igreja, família, escola, jurídico, político, sindical, cultural são
aparelhos ideológicos do estado. Logo, apesar dos deslocamentos em relação à posição sujeito do
surdo, vemos a instituição como aquela que, por meio de seu discurso, materializa a ideologia e é
capaz de conceder poder aos sujeitos.
83
uma identidade caracterizada pela surdez; possuidor de um mundo próprio; ocupante de
posição vantajosa em relação ao ouvinte; filho de quem enfrenta mais dificuldades;
enfrentador de mais dificuldades; maioria que não possui preferências em relação a ter
filho ouvinte ou surdo; possuidor de uma característica; detentor de uma cultura rica, com
sua própria linguagem, história e tradições; aquele que tem um problema, uma condição
médica; sujeito que tem identidade específica que lhe é dada por sua inabilidade de ouvir.
Quais os deslocamentos em relação ao texto das crônicas? O sujeito surdo
continua a ser significado a partir da falta manifestada na comparação surdo/ouvinte; e
temos anormal/normal, diferente/igual, filho de surdo/filho de ouvinte. O deslocamento
essencial que presenciamos na materialidade deste texto é a posição que lhe é concedida
pelos próprios surdos. Há uma posição de prestígio que ele aloca também a partir da
comparação, porém, desta vez os adjetivos lhes são dados não através falta, mas pelo
excesso. O sujeito surdo, hierarquicamente, ocupa, pelo discurso do próprio surdo, uma
posição de superioridade em relação ao ouvinte. Ele não mais é miserável, de uma
infância desfavorecida, desajudado, limitado, abandonado, oprimido, predestinado
orgânica ou socialmente, não espreita, não se esconde pelos cantos, não olha
passivamente, não é misterioso. O sujeito surdo, dito pelos próprios surdos, ocupa a
posição de ícone, ativista, escolhido, tem identidade própria, mundo próprio, posição
vantajosa, tem uma cultura rica, tem linguagem própria, história própria, tradição própria.
O sujeito surdo é individualizado como desinstitucionalizado, como construtor
de seu destino. Conforme Orlandi (2005) 43, na fase pós-industrial, a luta de classes cede
lugar à luta de lugares e há um profundo processo de des-institucionalização, o
desenvolvimento de uma cultura heróica do sujeito, responsável pela construção de seu
destino. E temos, materializado no discurso acima, a luta da instituição, o Instituto Real
para Pessoas Surdas, contra o Movimento dos portadores de deficiência auditiva; e temos
ainda, o ser ativista como forma de resistência e o ser diretor como representação do
discurso aceito. Vemos a posição do sujeito surdo como responsável pelo seu próprio
destino. Orlandi (op. cit.), reafirma, estávamos em uma sociedade de discriminação e nos
tornamos sociedade de segregação; a produção é substituída pelo consumo de produtos
culturais que modelizem nossas personalidades. E não é o que vemos, a discriminação em
1931 e a segregação em 2008? E a autora (op. cit.) ainda afirma, “pessoas em dificuldade
43 43
Texto apresentado no IISIAD no Rio Grande do Sul (2005) e em João Pessoa
84
são definidas por uma falta, que se torna o elemento social de sua identidade social”. E
não é o que presenciamos no caso do sujeito surdo contemporâneo?
Mesmo pelos que não são surdos e tem sua voz colocada em posição de
autoridade, o surdo não ocupa mais posição hierárquica abaixo do ouvinte, nem acima, no
entanto. Ele é portador de deficiência, diferente dos que ouvem, ele tem no máximo uma
condição médica, um problema, uma dificuldade, mas que é enfrentada. A falta aqui,
ainda existe no surdo, mas existe também no ouvinte. A falta do ouvinte não é a mesma
do surdo. Mas, ora, quem não é portador de uma deficiência, de uma diferença, de uma
condição médica, de uma dificuldade que pode ser enfrentada? Isso é NORMAL. Assim,
o sujeito surdo entra na norma, é normatizado, é normalizado, é igualado, não incomoda
mais.
Passamos de uma posição sujeito em 1931, de anormal, enfermo, de surdo
mudo, de símbolo do desconhecido, de miserável, desajudado; concepções baseadas em
uma formação discursiva de completude caracterizada pela falta, para uma posição
sujeito, em 2008, de ícone, ativista, escolhido, em uma formação discursiva de
completude, porém agora caracterizada pelo excesso. De qualquer modo, o que se
materializa são posições hierarquizadas, calcadas no desejo de poder e assentadas nas
relações sociais ouvinte/surdo – surdo/ouvinte.
Ora, tanto as posições de falta como as de excesso são baseadas no critério de
comparação que não assume os sujeitos como constituídos pelo outro, mas que os assume
como individualizados, portanto passíveis de comparação. O que dá aos sujeitos um
sentido de constituição pelo outro, de incompletude é a formação discursiva da diferença
porque não se baseia na comparação ou na individualização, mas na assunção de que
todos somos constituídos pela falta e isso mesmo é o que nos significa como sujeitos,
como sujeitos de, e temos a história e como sujeitos a, e temos o deslocamento.
Orlandi (op.cit.), aponta um caminho, a inversão da percepção do
funcionamento social, da falta de integração social para a perspectiva de conflitos sociais,
para a renovação dos processos democráticos. Propõe não se pensar em conseqüências
individuais, mas em fatores de produção das condições sociais. E nos perguntamos: quais
os fatores de produção das condições sociais vividas pelo sujeito surdo? Marcar os
deslocamentos das posições sujeito ocupadas pelo surdo é, sem dúvida, uma maneira de
pensar a produção das condições sociais que possibilitaram a repetição histórica, cf.
Orlandi (2004), de mergulhar o dizer sobre o surdo em nossa memória, de significá-la, de
elaborar sentidos que não respondam somente a necessidades imediatas, mas que
85
permitam outras formulações ao longo da história, em um processo polifônico, que
admita a presença do outro em nossa identidade, em nossa vida, que admita sempre a
relação e não a individualização.
A partir dos deslocamentos até aqui realizados em relação à posição do sujeito
surdo, podemos então pensar em quais são os pontos de conflito, que vêm gerando
qualquer tipo de resistência deste sujeito em sua relação a surdos e ouvintes. Tomando
como parte de nossa formação discursiva a linguagem na perspectiva da AD, podemos
considerar os conflitos sociais na relação surdo/língua/ouvinte e apontar para a
necessidade de mais pesquisas que considerem as resistências atuais e a partir delas,
novas formas de deslocamento.
86
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Até o século XVI, a posição do sujeito surdo era a de não humano, não
falante, incapaz de aprender, sem possibilidade de desenvolvimento moral e intelectual.
Sujeito de direito à vida, mas não á educação. Insensível, sem raciocínio. Considerado
como aquele que não tinha possibilidade de construir pensamentos e expressar
sentimentos. Subnormal, impuro para o culto, rejeitado socialmente por despertar medo e
por razões de profilaxia. Assemelhado aos loucos, fora do universo humano. Adotados
por congregações religiosas.
Após o século XVI, com o início de sua educação, sua posição passa a ser a de
apto à linguagem, à comunicação, aos pensamentos, aos sentimentos, à moral, não é mais
rudimentar, é humano. Os Surdos passaram a ocupar a posição daqueles que poderiam ser
ensinados a falar, a ler, a escrever e sobre o Cristianismo; mais tarde, sua posição
centrava-se em uma proibição, a de se comunicar através de sinais, ele era obrigado a se
oralizar. A fala passa a ser valorizada para a aceitação social do surdo. A posição do
sujeito surdo é afetada pela obrigatoriedade da oralização a partir do Congresso de Milão,
em 1880. Sua condição de humanização foi condicionada ao ensino e à cristianização,
caso contrário, eram considerados como semelhantes aos ouvintes, mas infelizes,
reduzidos à condição de animal, figura da anormalidade, sujeitos de experiência, monstro
bestial, semelhantes aos animais por seus gritos e gestos comparados aos dos macacos,
violador das leis jurídicas e da natureza. O surdo, em sua posição estava desprovido de
alguma coisa, enfraquecido, cortado, cego, impedido, abobalhado ou estúpido, fraco de
espírito, sem inteligência, profanador da lei divina, monstro, idiota.
Notemos que estão presentes nas atribuições da posição sujeito surdo, os
discursos social, patológico, religioso e jurídico. Há três pontos que merecem nossa
atenção em relação à história do sujeito surdo por representarem deslocamentos em sua
posição. Os dois primeiros relacionam-se diretamente à condição de humanidade, é a
posição sujeito surdo tornada humana. O primeiro deles, é que em Jesus, o surdo passa a
ser assunto da consciência ética e espiritual. O segundo, encontra-se na educação, no
87
momento em que o surdo passa a ser considerado como ensinável, sua posição é
deslocada e ele passa a ser também um sujeito de direito.
O terceiro ponto e para este gostaríamos de chamar maior atenção é em
relação à linguagem. Percebe-se que a concepção de linguagem ao longo da história é
predominante para que a posição sujeito surdo seja deslocada. A linguagem, por um
longo período, não sendo concebida fora da oralidade foi propulsora da posição de não
humanidade dada ao surdo. E esta discussão foi tão intensa que mesmo após mudanças
históricas significativas em direção à educação do surdo e portanto, em direção a uma
nova concepção de linguagem, ela retornou com força total no Congresso de Milão e
devolveu ao sujeito surdo a condição de falta, de quem deveria igualar-se a um padrão de
normalidade. Devolveu também à linguagem a condição de não concebida fora da
oralidade.
Seis posições sujeito foram desenhadas por nossa pesquisa, são elas: a posição
sujeito surdo patológico, anormal, surdo-mudo, símbolo do desconhecido, escolar, e ser
social. Após uma análise profunda dos ditos de Cecília Meireles em relação ao surdo, no
ano de 1931, pudemos perceber fortes indícios de discursos que ainda perduram. O
88
sujeito surdo continua a ocupar estas posições que naquele tempo eram intensamente
marcadas, com vocabulário pesado, capaz de causar-nos estranhamento hoje.
A distinção necessária está na linguagem. Nos dias atuais, a linguagem
encontra-se diferenciada, por vezes policiada e atribui ao surdo, conforme o grupo social
que o diz, posições deslocadas. É certo que naquela época, havia também diferenças
conforme os grupos que se referiam ao sujeito surdo, no entanto, a sensível diferença está
em um fato. O fato é: os grupos que dizem o surdo atual, o dizem de formas muito
distintas, há posições, ideologias estabelecidas e pensadas, portanto, significativamente as
posições do sujeito surdo são muito mais variáveis conforme o grupo ao qual ele
pertence.
O discurso de 1931 ainda pode ser encontrado, com vocábulos e expressões
mais suaves, diríamos, mas são posições ainda visíveis, ainda pensadas. Outro ponto
precisa ser dito, a predominância do discurso patológico, na década de 30. Basta lermos
as crônicas na íntegra e encontraremos um alto número de enunciados que dizem o surdo
por este discurso.
89
Os deslocamentos no discurso sobre o sujeito surdo foram aqui apresentados,
são resultados de um processo histórico que faz figurar o novo a partir do antigo. Futuras
pesquisas no sentido de compreender a identidade do sujeito surdo e de olhar atenta e
intensamente questões que compõem seu universo, far-se-ão necessárias, para que a
educação deste sujeito possa ser melhor pensada e sofra melhoras expressivas e
necessárias.
90
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
91
____________________ (2005). Semântica do Acontecimento: um estudo enunciativo
da designação. Campinas. SP. Pontes. 2ª edição
LACERDA, Cristina B.F(1998). Um pouco da história das diferentes abordagens na
educação dos surdos. Cadernos Cedes, n.46. Campinas, setembro 1998, p. 68-80.
92
MURAKAMI, Ana Maria Brandão (org.), (1980). A Revolução de 1930 e seus
antecedentes. Fundação Getúlio Vargas. Instituto de Direito Público e Ciência Política.
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. Rio de
Janeiro. Nova Fronteira.
OLIVEIRA, Ana Maria Domingues de (1988). Estudo crítico da bibliografia sobre
Cecília Meireles. Campinas, SP. Tese de mestrado da Unicamp, apresentada ao
departamento de teoria literária, sob a orientação da Dra. Marisa Philbert Lajolo;
ORLANDI, Eni P. (1990). Terra à vista! Discurso do confronto: velho e novo mundo.
São Paulo. Cortez.
_______________ (1992). As formas do silêncio no movimento dos sentidos.
Campinas, SP. Editora da UNICAMP.
_______________ (1993). Discurso e leitura. São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora
da Universidade Estadual de Campinas.
_______________ (2001). Discurso e texto: formação e circulação dos
sentidos.Campinas, SP. Pontes.
_______________ (2002). Língua e conhecimento lingüístico: para uma história das
idéias no Brasil. São Paulo. Cortez.
REILY, Lucia (2007). O papel da igreja nos primórdios da educação dos surdos.
Revista Brasileira de Educação, vol. 12, Nº 35, Rio de Janeiro. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-24782007000200011&script=sci_arttext
93
Acessado em maio de 2009.
REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS:
94
Enciclopédia das línguas no Brasil , disponível no site:
http://www.labeurb.unicamp.br/elb/libras/lingua_bras_sinais.html
Acessado em 25 de novembro de 2008.
LACERDA, Cristina B.F. de. (1998). Um pouco da história das diferentes abordagens
na educação dos surdos. Cad. CEDES , Campinas, v. 19, n. 46, set. 1998 .
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
32621998000300007&lng=pt&nrm=iso>.
ANEXOS:
ANEXO 1
96
I - cursos de educação profissional;
II - cursos de formação continuada promovidos por instituições de ensino superior; e
III - cursos de formação continuada promovidos por instituições credenciadas por
secretarias de educação.
§ 1o A formação do instrutor de Libras pode ser realizada também por organizações
da sociedade civil representativa da
comunidade surda, desde que o certificado seja convalidado por pelo menos uma das
instituições referidas nos incisos II
e III.
§ 2o As pessoas surdas terão prioridade nos cursos de formação previstos no caput.
Art. 7o Nos próximos dez anos, a partir da publicação deste Decreto, caso não haja
docente com título de pós-graduação ou graduação em Libras para o ensino dessa
disciplina em cursos de educação superior, ela poderá ser ministrada por
profissionais que apresentem pelo menos um dos seguintes perfis:
I - professor de Libras, usuário dessa língua com curso de pós-graduação ou com
formação superior e certificado de
proficiência em Libras, obtido por meio de exame promovido pelo Ministério da
Educação;
Portal MEC - Sitio SEESP
http://portal.mec.gov.br/seesp Fornecido por Joomla! Produzido em: 27 November,
2008, 14:23
II - instrutor de Libras, usuário dessa língua com formação de nível médio e com
certificado obtido por meio de exame de
proficiência em Libras, promovido pelo Ministério da Educação;
III - professor ouvinte bilíngüe: Libras - Língua Portuguesa, com pós-graduação ou
formação superior e com certificado obtido
por meio de exame de proficiência em Libras, promovido pelo Ministério da
Educação.
§ 1o Nos casos previstos nos incisos I e II, as pessoas surdas terão prioridade para
ministrar a disciplina de Libras.
§ 2o A partir de um ano da publicação deste Decreto, os sistemas e as instituições de
ensino da educação básica e as de
educação superior devem incluir o professor de Libras em seu quadro do magistério.
Art. 8o O exame de proficiência em Libras, referido no art. 7o, deve avaliar a
fluência no uso, o conhecimento e a
competência para o ensino dessa língua.
§ 1o O exame de proficiência em Libras deve ser promovido, anualmente, pelo
Ministério da Educação e instituições de
educação superior por ele credenciadas para essa finalidade.
§ 2o A certificação de proficiência em Libras habilitará o instrutor ou o professor
para a função docente.
§ 3o O exame de proficiência em Libras deve ser realizado por banca examinadora de
amplo conhecimento em Libras,
constituída por docentes surdos e lingüistas de instituições de educação superior.
Art. 9o A partir da publicação deste Decreto, as instituições de ensino médio que
oferecem cursos de formação para o
magistério na modalidade normal e as instituições de educação superior que oferecem
cursos de Fonoaudiologia ou de
formação de professores devem incluir Libras como disciplina curricular, nos
seguintes prazos e percentuais mínimos:
I - até três anos, em vinte por cento dos cursos da instituição;
II - até cinco anos, em sessenta por cento dos cursos da instituição;
III - até sete anos, em oitenta por cento dos cursos da instituição; e
IV - dez anos, em cem por cento dos cursos da instituição.
97
Parágrafo único. O processo de inclusão da Libras como disciplina curricular deve
iniciar-se nos cursos de Educação
Especial, Fonoaudiologia, Pedagogia e Letras, ampliando-se progressivamente para
as demais licenciaturas.
Art. 10. As instituições de educação superior devem incluir a Libras como objeto de
ensino, pesquisa e extensão nos cursos
de formação de professores para a educação básica, nos cursos de Fonoaudiologia e
nos cursos de Tradução e
Interpretação de Libras - Língua Portuguesa.
Art. 11. O Ministério da Educação promoverá, a partir da publicação deste Decreto,
programas específicos para a criação de
cursos de graduação:
I - para formação de professores surdos e ouvintes, para a educação infantil e anos
iniciais do ensino fundamental, que
viabilize a educação bilíngüe: Libras - Língua Portuguesa como segunda língua;
II - de licenciatura em Letras: Libras ou em Letras: Libras/Língua Portuguesa, como
segunda língua para surdos;
III - de formação em Tradução e Interpretação de Libras - Língua Portuguesa.
Art. 12. As instituições de educação superior, principalmente as que ofertam cursos
de Educação Especial, Pedagogia e
Letras, devem viabilizar cursos de pós-graduação para a formação de professores
para o ensino de Libras e sua
interpretação, a partir de um ano da publicação deste Decreto.
Art. 13. O ensino da modalidade escrita da Língua Portuguesa, como segunda língua
para pessoas surdas, deve ser
incluído como disciplina curricular nos cursos de formação de professores para a
educação infantil e para os anos iniciais
do ensino fundamental, de nível médio e superior, bem como nos cursos de
licenciatura em Letras com habilitação em
Língua Portuguesa.
Parágrafo único. O tema sobre a modalidade escrita da língua portuguesa para surdos
deve ser incluído como
conteúdo nos cursos de Fonoaudiologia.
CAPÍTULO IV
DO USO E DA DIFUSÃO DA LIBRAS E DA LÍNGUA PORTUGUESA PARA O
ACESSO DAS PESSOAS SURDAS À EDUCAÇÃO
Art. 14. As instituições federais de ensino devem garantir, obrigatoriamente, às
pessoas surdas acesso à comunicação, à
informação e à educação nos processos seletivos, nas atividades e nos conteúdos
curriculares desenvolvidos em todos os
níveis, etapas e modalidades de educação, desde a educação infantil até à superior.
§ 1o Para garantir o atendimento educacional especializado e o acesso previsto no
caput, as instituições federais de
ensino devem:
I - promover cursos de formação de professores para:
a) o ensino e uso da Libras;
b) a tradução e interpretação de Libras - Língua Portuguesa; e
c) o ensino da Língua Portuguesa, como segunda língua para pessoas surdas;
II - ofertar, obrigatoriamente, desde a educação infantil, o ensino da Libras e também
da Língua Portuguesa, como
segunda língua para alunos surdos;
III - prover as escolas com:
a) professor de Libras ou instrutor de Libras;
b) tradutor e intérprete de Libras - Língua Portuguesa;
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c) professor para o ensino de Língua Portuguesa como segunda língua para pessoas
surdas; e
d) professor regente de classe com conhecimento acerca da singularidade lingüística
manifestada pelos alunos surdos;
IV - garantir o atendimento às necessidades educacionais especiais de alunos surdos,
desde a educação infantil, nas salas
de aula e, também, em salas de recursos, em turno contrário ao da escolarização;
V - apoiar, na comunidade escolar, o uso e a difusão de Libras entre professores,
alunos, funcionários, direção da escola
e familiares, inclusive por meio da oferta de cursos;
VI - adotar mecanismos de avaliação coerentes com aprendizado de segunda língua,
na correção das provas escritas,
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valorizando o aspecto semântico e reconhecendo a singularidade lingüística
manifestada no aspecto formal da Língua
Portuguesa;
VII - desenvolver e adotar mecanismos alternativos para a avaliação de
conhecimentos expressos em Libras, desde que
devidamente registrados em vídeo ou em outros meios eletrônicos e tecnológicos;
VIII - disponibilizar equipamentos, acesso às novas tecnologias de informação e
comunicação, bem como recursos didáticos
para apoiar a educação de alunos surdos ou com deficiência auditiva.
§ 2o O professor da educação básica, bilíngüe, aprovado em exame de proficiência
em tradução e interpretação de Libras Língua Portuguesa, pode exercer a função de
tradutor e intérprete de Libras - Língua Portuguesa, cuja função é distinta da
função de professor docente.
§ 3o As instituições privadas e as públicas dos sistemas de ensino federal, estadual,
municipal e do Distrito Federal
buscarão implementar as medidas referidas neste artigo como meio de assegurar
atendimento educacional
especializado aos alunos surdos ou com deficiência auditiva.
Art. 15. Para complementar o currículo da base nacional comum, o ensino de Libras e
o ensino da modalidade escrita da
Língua Portuguesa, como segunda língua para alunos surdos, devem ser ministrados
em uma perspectiva dialógica,
funcional e instrumental, como:
I - atividades ou complementação curricular específica na educação infantil e anos
iniciais do ensino fundamental; e
II - áreas de conhecimento, como disciplinas curriculares, nos anos finais do ensino
fundamental, no ensino médio e na
educação superior.
Art. 16. A modalidade oral da Língua Portuguesa, na educação básica, deve ser
ofertada aos alunos surdos ou com
deficiência auditiva, preferencialmente em turno distinto ao da escolarização, por
meio de ações integradas entre as
áreas da saúde e da educação, resguardado o direito de opção da família ou do
próprio aluno por essa modalidade.
Parágrafo único. A definição de espaço para o desenvolvimento da modalidade oral
da Língua Portuguesa e a definição dos
profissionais de Fonoaudiologia para atuação com alunos da educação básica são de
competência dos órgãos que
possuam estas atribuições nas unidades federadas.
CAPÍTULO V
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DA FORMAÇÃO DO TRADUTOR E INTÉRPRETE DE LIBRAS - LÍNGUA
PORTUGUESA
Art. 17. A formação do tradutor e intérprete de Libras - Língua Portuguesa deve
efetivar-se por meio de curso superior de
Tradução e Interpretação, com habilitação em Libras - Língua Portuguesa.
Art. 18. Nos próximos dez anos, a partir da publicação deste Decreto, a formação de
tradutor e intérprete de Libras - Língua
Portuguesa, em nível médio, deve ser realizada por meio de:
I - cursos de educação profissional;
II - cursos de extensão universitária; e
III - cursos de formação continuada promovidos por instituições de ensino superior e
instituições credenciadas por secretarias
de educação.
Parágrafo único. A formação de tradutor e intérprete de Libras pode ser realizada por
organizações da sociedade civil
representativas da comunidade surda, desde que o certificado seja convalidado por
uma das instituições referidas no
inciso III.
Art. 19. Nos próximos dez anos, a partir da publicação deste Decreto, caso não haja
pessoas com a titulação exigida para exercício da tradução e interpretação de Libras -
Língua Portuguesa, as instituições federais de ensino devem incluir, em seus
quadros, profissionais com o seguinte perfil:
I - profissional ouvinte, de nível superior, com competência e fluência em Libras para
realizar a interpretação das duas
línguas, de maneira simultânea e consecutiva, e com aprovação em exame de
proficiência, promovido pelo Ministério da
Educação, para atuação em instituições de ensino médio e de educação superior;
II - profissional ouvinte, de nível médio, com competência e fluência em Libras para
realizar a interpretação das duas
línguas, de maneira simultânea e consecutiva, e com aprovação em exame de
proficiência, promovido pelo Ministério da
Educação, para atuação no ensino fundamental;
III - profissional surdo, com competência para realizar a interpretação de línguas de
sinais de outros países para a Libras,
para atuação em cursos e eventos.
Parágrafo único. As instituições privadas e as públicas dos sistemas de ensino
federal, estadual, municipal e do Distrito
Federal buscarão implementar as medidas referidas neste artigo como meio de
assegurar aos alunos surdos ou com
deficiência auditiva o acesso à comunicação, à informação e à educação.
Art. 20. Nos próximos dez anos, a partir da publicação deste Decreto, o Ministério da
Educação ou instituições de ensino
superior por ele credenciadas para essa finalidade promoverão, anualmente, exame
nacional de proficiência em tradução
e interpretação de Libras - Língua Portuguesa.
Parágrafo único. O exame de proficiência em tradução e interpretação de Libras -
Língua Portuguesa deve ser realizado
por banca examinadora de amplo conhecimento dessa função, constituída por
docentes surdos, lingüistas e tradutores e
intérpretes de Libras de instituições de educação superior.
Art. 21. A partir de um ano da publicação deste Decreto, as instituições federais de
ensino da educação básica e da educação
superior devem incluir, em seus quadros, em todos os níveis, etapas e modalidades, o
tradutor e intérprete de Libras -
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Língua Portuguesa, para viabilizar o acesso à comunicação, à informação e à
educação de alunos surdos.
§ 1o O profissional a que se refere o caput atuará:
I - nos processos seletivos para cursos na instituição de ensino;
II - nas salas de aula para viabilizar o acesso dos alunos aos conhecimentos e
conteúdos curriculares, em todas as
atividades didático-pedagógicas; e
III - no apoio à acessibilidade aos serviços e às atividades-fim da instituição de
ensino.
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§ 2o As instituições privadas e as públicas dos sistemas de ensino federal, estadual,
municipal e do Distrito Federal
buscarão implementar as medidas referidas neste artigo como meio de assegurar aos
alunos surdos ou com deficiência
auditiva o acesso à comunicação, à informação e à educação.
CAPÍTULO VI
DA GARANTIA DO DIREITO À EDUCAÇÃO DAS PESSOAS SURDAS OU
COM DEFICIÊNCIA AUDITIVA
Art. 22. As instituições federais de ensino responsáveis pela educação básica devem
garantir a inclusão de alunos surdos
ou com deficiência auditiva, por meio da organização de:
I - escolas e classes de educação bilíngüe, abertas a alunos surdos e ouvintes, com
professores bilíngües, na educação infantil
e nos anos iniciais do ensino fundamental;
II - escolas bilíngües ou escolas comuns da rede regular de ensino, abertas a alunos
surdos e ouvintes, para os anos finais
do ensino fundamental, ensino médio ou educação profissional, com docentes das
diferentes áreas do conhecimento,
cientes da singularidade lingüística dos alunos surdos, bem como com a presença de
tradutores e intérpretes de Libras -
Língua Portuguesa.
§ 1o São denominadas escolas ou classes de educação bilíngüe aquelas em que a
Libras e a modalidade escrita da Língua
Portuguesa sejam línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo o
processo educativo.
§ 2o Os alunos têm o direito à escolarização em um turno diferenciado ao do
atendimento educacional especializado para
o desenvolvimento de complementação curricular, com utilização de equipamentos e
tecnologias de informação.
§ 3o As mudanças decorrentes da implementação dos incisos I e II implicam a
formalização, pelos pais e pelos próprios
alunos, de sua opção ou preferência pela educação sem o uso de Libras.
§ 4o O disposto no § 2o deste artigo deve ser garantido também para os alunos não
usuários da Libras.
Art. 23. As instituições federais de ensino, de educação básica e superior, devem
proporcionar aos alunos surdos os
serviços de tradutor e intérprete de Libras - Língua Portuguesa em sala de aula e em
outros espaços educacionais, bem
como equipamentos e tecnologias que viabilizem o acesso à comunicação, à
informação e à educação.
§ 1o Deve ser proporcionado aos professores acesso à literatura e informações sobre
a especificidade lingüística do aluno
surdo.
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§ 2o As instituições privadas e as públicas dos sistemas de ensino federal, estadual,
municipal e do Distrito Federal
buscarão implementar as medidas referidas neste artigo como meio de assegurar aos
alunos surdos ou com deficiência
auditiva o acesso à comunicação, à informação e à educação.
Art. 24. A programação visual dos cursos de nível médio e superior,
preferencialmente os de formação de professores, na
modalidade de educação a distância, deve dispor de sistemas de acesso à informação
como janela com tradutor e intérprete
de Libras - Língua Portuguesa e subtitulação por meio do sistema de legenda oculta,
de modo a reproduzir as mensagens
veiculadas às pessoas surdas, conforme prevê o Decreto no 5.296, de 2 de dezembro
de 2004.
CAPÍTULO VII
DA GARANTIA DO DIREITO À SAÚDE DAS PESSOAS SURDAS OU
COM DEFICIÊNCIA AUDITIVA
Art. 25. A partir de um ano da publicação deste Decreto, o Sistema Único de Saúde -
SUS e as empresas que detêm
concessão ou permissão de serviços públicos de assistência à saúde, na perspectiva da
inclusão plena das pessoas
surdas ou com deficiência auditiva em todas as esferas da vida social, devem garantir,
prioritariamente aos alunos
matriculados nas redes de ensino da educação básica, a atenção integral à sua saúde,
nos diversos níveis de
complexidade e especialidades médicas, efetivando:
I - ações de prevenção e desenvolvimento de programas de saúde auditiva;
II - tratamento clínico e atendimento especializado, respeitando as especificidades de
cada caso;
III - realização de diagnóstico, atendimento precoce e do encaminhamento para a área
de educação;
IV - seleção, adaptação e fornecimento de prótese auditiva ou aparelho de
amplificação sonora, quando indicado;
V - acompanhamento médico e fonoaudiológico e terapia fonoaudiológica;
VI - atendimento em reabilitação por equipe multiprofissional;
VII - atendimento fonoaudiológico às crianças, adolescentes e jovens matriculados na
educação básica, por meio de ações
integradas com a área da educação, de acordo com as necessidades terapêuticas do
aluno;
VIII - orientações à família sobre as implicações da surdez e sobre a importância para
a criança com perda auditiva ter, desde
seu nascimento, acesso à Libras e à Língua Portuguesa;
IX - atendimento às pessoas surdas ou com deficiência auditiva na rede de serviços
do SUS e das empresas que detêm
concessão ou permissão de serviços públicos de assistência à saúde, por profissionais
capacitados para o uso de Libras
ou para sua tradução e interpretação; e
X - apoio à capacitação e formação de profissionais da rede de serviços do SUS para
o uso de Libras e sua tradução e
interpretação.
§ 1o O disposto neste artigo deve ser garantido também para os alunos surdos ou com
deficiência auditiva não
usuários da Libras.
§ 2o O Poder Público, os órgãos da administração pública estadual, municipal, do
Distrito Federal e as empresas privadas
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que detêm autorização, concessão ou permissão de serviços públicos de assistência à
saúde buscarão implementar as
medidas referidas no art. 3o da Lei no 10.436, de 2002, como meio de assegurar,
prioritariamente, aos alunos surdos ou
com deficiência auditiva matriculados nas redes de ensino da educação básica, a
atenção integral à sua saúde, nos
diversos níveis de complexidade e especialidades médicas.
CAPÍTULO VIII
DO PAPEL DO PODER PÚBLICO E DAS EMPRESAS QUE DETÊM
CONCESSÃO OU PERMISSÃO DE SERVIÇOS
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PÚBLICOS, NO APOIO AO USO E DIFUSÃO DA LIBRAS
Art. 26. A partir de um ano da publicação deste Decreto, o Poder Público, as
empresas concessionárias de serviços
públicos e os órgãos da administração pública federal, direta e indireta devem
garantir às pessoas surdas o tratamento
diferenciado, por meio do uso e difusão de Libras e da tradução e interpretação de
Libras - Língua Portuguesa, realizados por
servidores e empregados capacitados para essa função, bem como o acesso às
tecnologias de informação, conforme
prevê o Decreto no 5.296, de 2004.
§ 1o As instituições de que trata o caput devem dispor de, pelo menos, cinco por
cento de servidores, funcionários e
empregados capacitados para o uso e interpretação da Libras.
§ 2o O Poder Público, os órgãos da administração pública estadual, municipal e do
Distrito Federal, e as empresas
privadas que detêm concessão ou permissão de serviços públicos buscarão
implementar as medidas referidas neste
artigo como meio de assegurar às pessoas surdas ou com deficiência auditiva o
tratamento diferenciado, previsto no
caput.
Art. 27. No âmbito da administração pública federal, direta e indireta, bem como das
empresas que detêm concessão e
permissão de serviços públicos federais, os serviços prestados por servidores e
empregados capacitados para utilizar a
Libras e realizar a tradução e interpretação de Libras - Língua Portuguesa estão
sujeitos a padrões de controle de
atendimento e a avaliação da satisfação do usuário dos serviços públicos, sob a
coordenação da Secretaria de Gestão do
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, em conformidade com o Decreto
no 3.507, de 13 de junho de 2000.
Parágrafo único. Caberá à administração pública no âmbito estadual, municipal e do
Distrito Federal disciplinar, em
regulamento próprio, os padrões de controle do atendimento e avaliação da satisfação
do usuário dos serviços públicos,
referido no caput.
CAPÍTULO IX
DAS DISPOSIÇÕES FINAIS
Art. 28. Os órgãos da administração pública federal, direta e indireta, devem incluir
em seus orçamentos anuais e
plurianuais dotações destinadas a viabilizar ações previstas neste Decreto,
prioritariamente as relativas à formação, capacitação
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e qualificação de professores, servidores e empregados para o uso e difusão da Libras
e à realização da tradução e
interpretação de Libras - Língua Portuguesa, a partir de um ano da publicação deste
Decreto.
Art. 29. O Distrito Federal, os Estados e os Municípios, no âmbito de suas
competências, definirão os instrumentos para a
efetiva implantação e o controle do uso e difusão de Libras e de sua tradução e
interpretação, referidos nos dispositivos
deste Decreto.
Art. 30. Os órgãos da administração pública estadual, municipal e do Distrito
Federal, direta e indireta, viabilizarão as ações
previstas neste Decreto com dotações específicas em seus orçamentos anuais e
plurianuais, prioritariamente as relativas à
formação, capacitação e qualificação de professores, servidores e empregados para o
uso e difusão da Libras e à realização da
tradução e interpretação de Libras - Língua Portuguesa, a partir de um ano da
publicação deste Decreto.
Art. 31. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 22 de dezembro de 2005; 184o da Independência e 117o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Fernando Haddad
Este texto não substitui o publicado no DOU de 23.12.2005
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ANEXO 2
Introducção a uma entrevista com o Dr. Armando de Lacerda sobre o plano de reforma do
instituto Nacional de Surdos-Mudos
CECILIA MEIRELLES
(Exclusividade da “Página de Educação”)
Parágrafo 1 A Infância que freqüenta as escolas publicas já é, numa grande parte, constituída
por crianças em situação orgânica sub-normal, pela pobreza das classes a que pertencem, e a incultura do
meio, victima , no velho regimen, das falsas elites dos bacharéis, e só modificável no Brasil de hoje, se
todas as pessoas de responsabilidade se devotarem a uma grande obra commum de educação extensiva.
Parágrafo 2 Mas, por detrás dessa infância desnutrida, carregada de um silencioso e obscuro
soffrimento, que começa a fazer pesada a vida antes de ser experimentada, - uma outra infância ainda mais
infeliz se agita com dificuldade, relegada à miséria, ao empirismo e à superstição dos lares. É a infância dos
anormaes sem escolas que os abriguem, sem estudos bem orientados que os amparam, sem comprehensão
ou possibilidades, da parte das pessoas competentes, para os arrancar a essa condemnação de indesejáveis
da espécie humana e lhes dar também um logar – por humilde que seja – na vida de que fazem parte pela
mysteriosa ordenação dessa mesma vida.
Parágrafo 3 Arrastamos atrás de nós a sombra das criaturas abandonadas à sua miséria,
desajudadas pelo nosso poder de criaturas sãs, como um imperdoável opprobrio.
104
Parágrafo 4 Dever-se-ia applicar a todas as pessoas com capacidade de acção, de qualquer
espécie, aquella phrase que resume o fecundo coração maternal da Índia antiga: “Nenhum homem hindu
poderá dormir tranquillo, emquanto sentir que , em algum logar da terra, alguém precisa do seu socorro.”
Parágrafo 5 Foi para collaborar nessa obra de redemção dos opprimidos por predestinção
orgânica ou social, que emprehendemos uma série de visitas aos estabelecimentos em que se concentra a
infancia que não se conhece cá fora, o que é uma espécie de gente humana, separada de nós menos pela sua
desgraça que pela nossa incompleta comprehensão desta palavra: SERVIR.
UM PONTO DE VISTA INICIAL
Parágrafo 6 Antes de mais nada, quero de finir um ponto de vista, que é o dos educadores
conscientes: em matéria de convívio humano, é necessário abolir o velho e mesquinho conceito de
caridade. Isso de “ter pena”, de ajudar o próximo “por favor”, de chama-lo “coitado”, contando com
recompensas no céo ou títulos de benemerência na terra, é um ponto de vista atrazado. Todos os espíritos
que pensam com profundidade, segurança, independência, pela funcção de pensar e não de agradar com
seus pensamentos, sabem que, no nosso intimo “imperativo categórico”, não temos o direito de humilhar os
nossos semelhantes. Pois não há nada mais humilhante do que a chamada virtude da caridade.
Parágrafo 7 Há séculos que se fala em caridade, neste mundo, e elle está como vemos.
Parágrafo 8 Mas os homens que fazem questão de rehabilitar a espécie humana estão agora
renovando a sua orientação de espírito, e libertando-o do preconceito de certas palavras em nome das que, a
sob cuja boa apparencia, dorme uma quantidade immensa de males extensíssimos.
Parágrafo 9 Os homens hoje – e entre elles se destacam os que têm vivido realmente para o
serviço da humanidade através o seu pensamento e a sua actividade – philosofos, sábios, artistas e,
principalmente, os educadores que pretendem aproveitar na pratica as grandes conquistas theoricas, só
podem comprehender a acção do homem sobre o homem, tendo por direcção e fim a liberdade.
Parágrafo 10 Mas a liberdade não é coisa a que se possa levar alguém por meio dessa caridade
que dá um pouco de agasalho, u pouco de alimento, um pouco de esperanças inúteis e vagas, murmurando
depois das altitudes de si mesma. “Vêem os senhores? Eu sou a Caridade, de azas diaphanas que enxugo as
lagrimas dos que soffrem”... – como a gente ouve sempre nos discursos.
Parágrafo 11 Não. A liberdade é uma coisa que se dá de outra maneira. Não. A liberdade é
uma coisa que se dá de outra maneira. Não é esmola, mas comprehensão, e justiça. Não se dá com meia
dúzia de promessas, nem mesmo com meia dúzia de realizações superficiaes.
Parágrafo 12 A liberdade é uma conquista das forças humanas. Os homens sãos podem
alcançal-o pelo seu próprio esforço. Os homens a que males orgânicos ou sociaes tiraram as possibilidades
de alcançar a liberdade pelo seu próprio esforço, devem conseguir, dos que estão em melhor situação, à
facilitação de um ambiente adequado para essa conquista. Não se trata, pois, de um “favor”, de uma
“esmola”. É preciso abolir esse conceito, que infla de vaidade tantos corações. É preciso substitull-o por
outro muito mais simples, natural, e que não deve dar excepcionalidade a ninguém; o de permitir que as
criaturas vivas vivam, realmente. E o que até hoje se verifica é que talvez metade do mundo está feito de
mortos que se consideram vivos só porque não estão sepultados.
A FINALIDADE DA EDUCAÇÃO
Parágrafo 13 Pois há um milagre neste século: a obra de Educação, que vae pela terra, através
os continentes, renovando tudo, com uma invencível força, quer, energicamente, fazer viver esses mortos
que a caridade tem apenas embalsamado.
Parágrafo 14 Os educadores vão constituindo, cada dia, uma phalange maior de paladinos que
não caminham para espalhar o “abc”, mas para dizer a cada criatura o sentido da vida, o dom de viver, a
alegria de ser humano e de corresponder a um symbolo de espírito,
FOTO DO DR. ARMANDO DE LACERDA
Parágrafo 15 Nesta harmonia maravilhosa da criação.
Parágrafo 16 Nessa obra de reerguimento da humanidade, os educadores querem, apenas,
acordar em cada criatura as suas próprias capacidades, favorecendo-lhes o desenvolvimento até o maximo,
e entregando-as à responsabilidade da liberdade, sem as desviar para nenhum caminho de seu particular
interesse. Porque qualquer proselytismo é uma imposição do que se julga mais forte ao que é julgado mais
fraco; uma tyrannia mascarada; um captiveiro escondido.
NORMAES E ANORMAES
Parágrafo17 Se, em meio às criaturas normaes, a obra da educação é, relativamente, fácil de
ser executada, o mesmo não acontece quando se trata de criaturas francamente anormaes, pela resistência
das doenças ou defeitos que difficultam esse acordar de possibilidades próprias.
Parágrafo 18 No emtanto, os educadores não se detém. Re dobram de forças. Se não lhes é
possível dar a todos os homens o mesmo grão de capacidade, o mesmo numero de dotes, podem, não
obstante, acordar as possibilidades mínimas, as indispensáveis para essa quantidade imprescindível de
liberdade que é a atmosphera de cada vida, e que muitas vidas, evidentemente não possuem.
105
Parágrafo 19 Todos os povos que encaram o problema social com seriedade, além de
cuidarem da infância, normal com particular cuidado, interessam-se pela infância anormal com a mesma
orientação, levando-a pelo mesmo rumo, embora não a possam fazer chegar a um fim commum.
Parágrafo 20 E o aproveitamento da capacidade dos anormaes vae tornando assim, úteis e
menos infelizes criaturas que, em outros tempos, ficariam até a morte entregues à desgraça e à inutilidade.
Porque não há maior felicidade, para a condição humana do que criar. Criar é affirmar-se. Um anormal
aproveitado passa a viver pelo seu aproveitamento. Pelo seu poder de trabalho, Pela sua, ainda que
limitada, capacidade de criação.
OS ANORMAES NA ESCOLA PRIMARIA
Parágrafo 21 A selecção dos anormaes nas escolas primarias é uma medida que se torna cada
vez mais necessária, par a boa marcha do problema educacional. Com uma selecção dessas, viriam todos a
lucrar. Os alumnos sãos porque, homogeneizadas as classes – o que é um ideal pedagógico – o ensino
ganharia um outro rythmo. E os alumnos anormaes porque, também separados em classes homogêneas, se
desenvolveriam com parallela harmonia.
Parágrafo 22 O pouco interesse que existiu no Brasil, até o advento da reforma Fernando de
Azevedo, pelas grandes questões de educação, não nos permitiu realizações efficientes, nesse terreno. E as
intenções dessa magnífica Reforma, agora paralysadas, intenções que serão a mais bella realidade do
Brasil, se vierem a proseguir com o rythmo que as criou, não poderiam, evidentemente, tomar forma
concreta dentro do breve tempo em que se mantiveram em actividade conselente, equilibradas pela sua
substancia do idealismo, entre a fria dos desvairados e a incmprehensão dos ignorantes.
DISTINCÇÃO NECESSÁRIA
Parágrafo 23 Há, porém, varias categorias de anormaes. Há os que o são apenas pelas
condições da intelligencia, e que podem ir do simples retardado ao irremediável idiota. Desses, os
susceptíveis de desenvolvimento requerem methodos especiaes, para serem conduzidos através o programa
das escolas primarias à condição que suas faculdades permitirem. Todos sabem que a Dra. Montessori e o
professor Decroly se iniciaram como grandes educadores estudando e educando crianças anormaes.
Parágrafo 24 Mas há anormaes por defeito physico, que necessitam de uma educação
especializada que não podem fazer parte de uma classe de simples anormaes de intelligencia, seja qual for o
seu grão, porque, nestes, o mal não é interno, não se trata propriamente de desenvolver uma mentalidade
rudimentar ou incompleta, mas servida por uma integridade physica dos sentidos: é o caso dos cegos e dos
surdos-mudos.
Parágrafo 25 Estes anormaes, que o podem ser duas vezes, porque frequentemente associam ao
defeito physico anormalidades mentaes, exigem uma educação à parte, especializada, e, no caso dos
surdos-mudos, caríssima, pela necessidade da constituição de pequenas turmas, capazes de permittir um
rendimento apreciável de trabalho.
UM POUCO DE ESTATISTICA
Parágrafo 26 A questão dos surdos-mudos pode parecer, à primeira vista, desinteressante ou
secundaria.
À primeira vista. Porque esse juízo logo se modificará, abrindo-se, por exemplo, a these de
doutoramento do médico paulista Dr. Arnaldo de Oliveira Bacellar, que estudou cuidadosamente o
assumpto e faz as seguintes revelações:
Parágrafo 27 “Segundo o recenseamento realizado em todo o territorio nacional em 1º de
setembro de 1920, cujo resultado só foi conhecido em meado do anno de 1924, verificamos que existem no
Brasil 20.214 surdos-mudos, dando relativamente à população total de 80.636.605 habitantes, o coeficiente
de 8.56 para 10.000, ou seja, aproximadamente, 1 surdo-mudo para 1168 habitantes.
Parágrafo 28 Desses 26.214 surdos-mudos, 14.525 são do sexo masculino, e 11.680 do
feminino, dando uma relação aproximada de 100 surdos-mudos do sexo masculino para 80 do sexo
feminino, e que, aliás, está de perfeito accordo com as estatísticas dos demais paizes, onde sempre se tem
verificado a predominância daquelles, mesmo em paízes como a Noruega, onde o numero total de mulheres
é sensivelmente superior ao de homens; 7937 são menores de 15 annos e 18.237 maiores desta idade;
25.574 são brasileiros, 636 estrangeiros e 4 de nacionalidade ignorada.”
Parágrafo 29 Embora o Dr. Oliveira Bacellar não aceite rigorosamente a estatística,
comprehendendo as innumeras difficuldades para realizar com exactidão um serviço especializado dessa
natureza, as conclusões do seu estudo fixam como Estados de maior coefficiente de surdos-mudos, por
10.000 habitantes, os de Goyaz, em 54,05; Mato-Grosso, com 22,55; Paraná, com 17,03; Minas Gerais,
com 16,29; Districto federal, com 10.71. A proporção vae até o Território do Acre, que apresenta o
coefficiente de 1,84.
ETIOLOGIA E PROPHYLAXIA DA SURDO-MUDEZ
Parágrafo 30 Sobre a etiologia da surdo-mudez, extraímos ainda da these do Dr. Oliveira
Bacellar as seguintes conclusões:
106
“Embora não pudéssemos estudar de um modo geral a etiologia da surdo-mudez no Brasil,
isto por carência absoluta de recursos, pudemos verificar que pelo menos em São Paulo, cerca de 68% dos
casos são de surdo-mudez congênita, 28% adquirida e 4% de origem imprecisa.
Parágrafo 31 Dos casos de surdo-mudez congênita resulta o grande numero de casos oriundos
de genitores consangüíneos e a sua multiplicidade em uma mesma família. Em todos estes casos, oriundos
de genitores consangüíneos ou não, encontramos nos antecedentes atars mórbidas ou degenerativas, que em
muitos casos assumem aspecto verdadeiramente tétrico, culminando entre todos a syphilis e o alcoolismo.
Parágrafo 32 A meningite cerebro espinhal é responsável por 40% dos casos de surdo-mudez
adquirida.”
Parágrafo 33 Para evitar o augmento de surdos-mudos, aconselha o autor da these o exame
pré-nupcial, a regulamentação ou a abolição do uso de bebidas alcoólicas e o maximo cuidado com a
hygiene das vias aéreos superiores das crianças, principalmente dos recém-nascidos.
Parágrafo 34 Porque o mais grave, no problema da surdo mudez, é a multiplicação incrível
dos casos, havendo famílias inteiras constituídas quase exclusivamente por anormaes dessa espécie.
Parágrafo 35 Deante, porém, dessa tremenda estatística do que damos noticia, que fazer com
surdos-mudos?
Parágrafo 36 Incluil-os na obra da educação moderna, que aproveita e utiliza sabiamente as
mais restrictas capacidades humanas, incutindo-lhes uma força nova a de progresso, um dynamismo
constructivo uma actividade libertadora, tanto mais que os surdos-mudos têm a tendência natural -
conseqüência do seu sentimento de inferioridade- de “ se segregar da sociedade ( ) procurando
exclusivamente o convívio dos seus companheiros de infortúnio, olhando sempre som desconfiança os seus
companheiros que ouvem. A este respeito já houve até quem previsse possibilidade perigosa da formação
de uma subraça humana d surdos-mudos: acham os que emittiram esta hypothese, que não se deveria cuidar
da sua instrucção, e que se deveria dispersal-os o mais possível, para que, naturalmente, desaparecessem
sem deixar vestígios da sua passagem.
Parágrafo 37 Este tratamento seria um retrocesso nos tempos bárbaros” (A. da Oliveira
Bacellar, “A surdo-mudez no Brasil”.).
O INSTITUTO NACIONAL DE SURDOS-MUDOS
Parágrafo 38 Em todo mundo se procura resolver hoje o problema da surdo-mudez criando
institutos modelares onde a medicina e a pedagogia collaboram numa obra grandiosa de eugenia e
educação.
Sem sairmos da América, a dois passos do Brasil, em Montevidéo, encontramos dois
institutos desse gênero, rigorosamente apparelhados para produzirem trabalho efficiente.
Parágrafo 39 Nós, além de algumas obras particulares, possuímos como instituição
officializada o Instituto Nacional de Surdos-Mudos, cujas origens remontam ao anno de 1850, e então
ligadas ao professor E. Huet, surdo-mudo francez que aqui chegou com a intenção de fundar um
estabelecimento dessa natureza.
Parágrafo 40 Os destinos do Instituto de Surdos-Mudos, depois de varias oscilações, que
culminaram em 1801, com o abandono da direção, por parte de Frei do Monte do Carmo, incapaz de conter
os desmandos do pessoal deixado pelo professor Huet, que, depois de uma serie de aventuras lamentáveis,
cedeu o estabelecimento ao governo pela quantia de 2.744$680, foram parar em mãos do Sr. Ernesto do
Prado Seixas, que restabeleceu a ordem do Instituto.
Parágrafo 41 Mas, por uma inspecção mandada fazer mais tarde, pelo ministro Fernando
Torres, chegou-se à conclusão de que o Instituto não passava de um asylo de surdos-mudos.
Parágrafo 42 A pessoa que o inspeccionara, e que era o Dr. Tobias Rabello Leite, foi nomeada
commissario do governo junto ao Instituto, e incumbida de organizar o seu regimento Interno. Director
interino até 1872, e effectivo até 1800, anno em que falleceu, o Dr. Tobias leite, prestou à educação dos
surdos-mudos do Brasil os mais relevantes serviços.
DECADENCIA DO INSTITUTO
Parágrafo 43 Da obra do Sr. Arnaldo de Oliveira Bacellar, de onde respigamos também as
informações acima, extraímos o seguinte capitulo, em que elle nos dá as suas impressões do I. N.S.M.
Parágrafo 44 “Visitamos este Instituto em setembro passado, 1929 e, francamente, enorme foi
a nossa desilusão.
Parágrafo 45 O Instituto propriamente funciona somente na ala esquerda do prédio, sendo a
outra ocupada por diversas repartições federaes.
Desde a entrada, nota-se em todos os cantos a falta de uma de uma administração enérgica e
efficiente, como requer um Instituto desta natureza. Falta ordem, falta asseio, falta disciplina, falta tudo.
Parágrafo 46 Alumnos maltrapilhos e descalços, recebendo instrucção péssima, não por falta
de professores ou incompetência delles, muito pelo contrario, mas por falta absoluta do material escolar –
não há papel, nem lápis, nem livros; a bibliotheca e o museu as poucos foram se dissolvendo, pouco
107
restando deles actualmente. Quanto a methodos de ensino, não existem, porquanto verdadeiramente não
existe ensino.
Parágrafo 47 Não há selecção de alumnos – encontramos lá desde o surdo-mudo verdadeiro
até o perfeito idiota. Numa das classes, tivemos ( ao) de ver um rapaz atrazado mental, que ouvia e
falava perfeitamente, e que, pelo convívio com os surdos- mudos, estava tomando os hábitos e os gestos
delles.
Parágrafo 48 As duas únicas officinas que lá existem, encadernação e sapataria, estão
reduzidas a um montão de machinas e apparelhos velhos e imprestáveis. Entretanto, em 1893, a primeira
rendeu 10:716$ e a segunda 780$000, além de fornecer calçado a todos os alumnos do Instituto.
Parágrafo 49 No estado em que está, o Instituto nacional de Surdos-Mudos representa o typo
mais acabado de Instituto de “fachada”, estando transformado em um mão de decadente asylo para aquelles
infelizes”.
A RAZÃO DE SER DESTA REPORTAGEM
Parágrafo 50 O programma educacional que esta Pagina defende impõe-nos uma attitude de
sentido a todos os factos que se pendem a esse programma.
Parágrafo 51 O regimen revolucionário, representado pelo actual governo, a 20 de dezembro
passado, entregou a direcção do Instituto de Surdos-Mudos ao Dr. Armando Lacerda, jovem medico
patrício, que se especializou na reeducação auditiva, e cujos estudos sobre o assumpto têm sido largamente
publicados em revistas technicas como “Brasil Medico”, “Medicina Brasileira”, “Revista de Medicina”,
“Mundo Medico”, “Almanach Medico Brasileiro”, Archivos de Biologia”, etc.
Parágrafo 52 Já em 1926, em entrevista concedida a “O Globo”, expunha o Dr. Armado
Lacerda seus conhecimentos do assumpto, numa notável entrevista com o titulo: “Agentes physicos a
serviço da moderna therapeutica. O calor, a eletricidade o som, na reeducação auditiva”.
Parágrafo 53 Esta Pagina, que tem feito sempre elogio dos administradores moços de espírito
– dos moços realmente trabalhadores e intelligentes – sabendo que o ministro Francisco de Campos se
interessava pela reorganização do Instituto Nacional de Surdos-Mudos, e conhecendo a capacidade do seu
jovem e illustre director, immediatamente procurou conhecer o seu plano de reforma.
Parágrafo 54 E esse plano, que nos foi revelado numa longa e attenciosa entrevista, que
amanhã publicaremos, juntamente com a reportagem especial que fizemos, em visita minuciosa no Instituto
da rua das Laranjeiras.
Cecília Meirelles
(Exclusividade da” Página de Educação”)
Parágrafo 55 Um sol terrível. Mas o parque com arvores floridas e grandes mangueiras,
estende sombras acolhedoras.
Parágrafo 56 E no fundo, de encontro à montanha esverdeada que vae ascendendo até o céo
todo azul, o grande edifício branco apruma todas as suas janellas.
Parágrafo 57 Aqui está neste grande prédio da rua Laranjeiras, construído em 1913-14, o
Instituto Nacional de Surdos Mudos.
Parágrafo 58 E na secretaria, logo acima da escada central, o seu actual director nos espera..
UMA PALESTRA PRELIMINAR
Parágrafo 59 O Dr. Armando Lacerda fala pouco. E, além de falar pouco, sente-se que pensa
muito no que diz. Por isso, é preciso ter o cuidado de surpreender bem a sua intenção, para se ser o mais
exacto possível.
Parágrafo 60 Tomando posse do cargo a 20 de dezembro passado, o actual director do Instituto
de Surdos- Mudos tem dedicado toda a sua actividade ao estudo consciencioso das condições desse
estabelecimento e das possibilidades de sua remodelação.
Parágrafo 61 Desejoso de trabalhar immediatamente, de não se deter em considerações inúteis
sobre o passado, teve , no entanto, o Dr. Armando Lacerda do empregar a sua atenção pondo em ordem o
Instituto, completamente desorganizado, technica e administrativamente, quando lhe entregaram a sua
direcção.
Parágrafo 62 Falamos vagamente sobre o desmando freqüente nas repartições. E o Dr.
Armando Lacerda, apesar de excessivamente discreto, incapaz de qualquer juízo apressado, e muito sereno
108
em todas as suas afirmações, não se pode furtar à confissão de alguma irregularidade que encontrou na
casa.
Parágrafo 63 Através de meia dúzia de indicações succintas, adivinhamos todas as
complicações que lhe passam pela memória. Livros de escripturação, inexistentes; ausência de archivo;
cadernetas de alumnos contribuintes que não constam do livro-caixa.
Parágrafo 64 E sentimos que o director do Instituto de Surdos-Mudos só é levado a essa
confissão synthetica, para nos poder justificar a nomeação de uma comissão de syndicancia que, por sua
solicitação, está funccionando no estabelecimento.
Parágrafo 65 O Dr. Armando Lacerda deseja, e é um desejo bem intencionado e justíssimo,
que fique bem esclarecido em que situação veio ter às suas mãos o Instituto Nacional de Surdos-Mudos.
UM ESTABELECIMENTO QUE PARECE GRANDE
Parágrafo 66 A confissão termina como um prólogo. Há um certo constrangimento naquella
ampla sala presidida pelo retrato de Tobias Leite. Estamos ambos constrangidos: quem falou e quem ouviu.
Parece que ao mesmo tempo sentimos a mesma coisa; a tristeza das bellas coisas que deixaram de ser
feitas...
Parágrafo 67 E ao mesmo tempo nos levantamos, como para passar do desgosto à esperança,
mudando de atitude.
Parágrafo 68 Na varanda, o photographo, que já conhece a casa, diz: “E” por aqui...”
Parágrafo 69 E, então, o Dr. Armando Lacerda nos diz, devagar, como quem soffre por ver
seu ideal limitado:
Parágrafo 70 _ “O Instituto de Surdos-Mudos, como vê, occupa somente a ala esquerda deste
prédio. Quem passa pela rua, olha para este edifício tão grande e pensa, decerto, que estamos muito bem
installados. Mas não é verdade. Aqui funccionam também o Juízo de Menores, a Polícia de Focos do 1º
districto, a comissão Rondo...
Parágrafo 71 _ Mas continuarão ainda a funccionar?
Parágrafo 72 _ Não.
Parágrafo 73 E explica-nos que já officiou no Ministro da Educação, nesse sentido, e frisa-nos,
baixando mais a voz, que o Dr. Francisco de Campos tem manifestado a maior boa vontade pelo Instituto
de Surdos –Mudos e que delle espere, realmente, a compreensão da obra que pretende realizar, e cujo plano
já lhe apresentou.
DOZE CRIANÇAS VESTIDAS DE AZUL
Parágrafo 74 E assim com esse rythmo de quem vae realizar uma obra em que põe toda a sua
esperança no idealismo verdadeiro dos homens da Revolução, que Dr. Armando Lacerda nos conduz pela
ala esquerda do edifício.
Parágrafo 75 Há uma larga escada, que vae ao segundo pavimento. Sob essa escada, longos
bancos de madeira. E, de um lado para o outro, espreitando curiosas, gesticulando, rindo, encolhendo-se co
desconfiança pelos cantos, ou olhando passivamente ao acaso, umas doze crianças vestidas de mescla azul,
nos aparecem, com essa estranha physionomia dos que não ouvem e não falam, e que nos dão a impressão
de os podermos, de repente, desencantar...
Parágrafo 76 Vamos recebendo instrucções sobre a sua mímica.
Parágrafo 77 Um bate o meio da testa, comunicando-se com o companheiro.
Parágrafo 78 _ Está indicando que eu sou o director, diz-nos o Sr. Armando Lacerda.
Parágrafo 79 Outro, junta todos os dedos e abre-os depois no ar, imitando uma explosão.
Refere-se ao magnesio da photographia. A certeza de que vão ser photographados enche-os de alegria.
Endireitam a roupa, abotoam a golla, tomam, mesmo, attitudes de certa importância, e divertem-se muito
com todos esses prepartivos.
Parágrafo 80 Pela primeira vez nos encontramos deante de tantos surdos-mudos. Passa-nos
pela cabeça um mundo de coisas varias. Todo o mysterio do pensamento daquellas crianças perturba-nos.
Lembramos esse milagre das communicações entre o nosso espírito e o ambiente. Ocorre-nos o velho
aphorismo: “Nada existe no pensamento que não tenha passado pelos sentidos”...
Parágrafo 81 E, insensivelmente, começamos a falar nas memórias de Helen Keller, surda,
muda e cega...
UM PARENTHESIS
Parágrafo 82 O photographo ficou parado com a tripeça numa das mãos e a mala na outra.
Parágrafo 83 Pensei que estava esperando alguma indicação. Mas não. Elle estava, apenas,
admirado. E disse-me assim:
Parágrafo 84 _ Como isto está differente! Eu já vim aqui uma vez, mas não era assim não...
Parágrafo 85 _ Como era (interrogação)
109
Parágrafo 86 Fez uma cara exquisita, franziu o nariz para o lado e, meio envergonhado,
repetiu-me baixinho, uma por uma, as impressões que já hontem publicamos aqui, do Dr. Oliveira
Bacellar...
VARIEDADE
Parágrafo 87 O Dr. Armando Lacerda vae-nos explicando tudo pacientemente, com esse gosto
dos estudiosos, fazendo descobertas e tirando conclusões:
Parágrafo 88 _ Veja. Temos de tudo, aqui. Este é um typo perfeitamente lombrosiano. O
fácies mongol, a estructura de anthropoide. Não se exprime, como os outros...Tem accessos violentos de
ira. Não poderá permanecer aqui, porque por elle nada podemos fazer... É uma criança imbecil.
Parágrafo 89 Fica-se triste ouvindo falar assim, aos scientistas. Sente-se toda a amargura do
irremediável, daquillo que a própria sciencia não pode socorrer...
Parágrafo 90 E vejo que é triste, também, falar. Porque a voz do director tem uma outra
inflexão, como se, por detraz della, o pensamento a prolongasse, dizendo: “ Por que não se tem mais poder
para arrancar toda esta gente ao mal que as opprime?” Depois, a voz torna a animar-se, e diz:
Parágrafo 91 _ Mas este, não; este é intelligente. E é bom menino, e este outro ... E aquelle...
Parágrafo 92 Os pequenos cercam-no, olham-nos dos pés à cabeça, gesticulam entre si, e de
vez em quando, batem na testa.
Parágrafo 93 Pelo menos isso eu já entendo: Estão dizendo, ainda, que ali está o director...
NOMES, EDADES E CAPACIDADES
Parágrafo 94 _Não se esqueça de que estamos em férias, diz-nos o Dr. Armando Lacerda. Por
isso, ahi estão só essas crianças. Temos, ao todo, sessenta.
Parágrafo 95 _ Pensávamos que a lotação fosse maior.
Parágrafo 96 E recordamos a estatística dos 20 mil e tantos surdos-mudos brasileiros.
Parágrafo 97 _ Depois eu lhe explicarei porque não pode ser.
Parágrafo 98_E como é que estão classificadas estas crianças, de aspectos tão differentes?
Parágrafo 99 Parece que o director do Instituto já contava com a nossa pergunta. Sorria como
quem diz: “Ahi está uma pergunta que eu sabia que tinha de vir”.
Parágrafo 100 E pondera:
Parágrafo 101 _ Encontrei estas crianças em completa promiscuidade. Não possuem fichas
individuaes. Não passaram por nenhum exame medico. Não foram submettidas a nenhum teste. De
algumas, nem se conhece a origem. Nem se sabe como se chamam...
Parágrafo 102 Ahi está uma coisa perturbadora; uma criatura humana sem nome, sem
indicações sobre a sua vida... E surdo-muda... Não pode haver mais completo mysterio que um destino
assim.
Parágrafo 103 Temos a curiosidade de saber como pensam, a respeito de si mesmas, aquellas
crianças. E pela relação que liga a personalidade ao nome, perguntamos como se chama, e como as
distinguem, naquella comunidade singular.
Parágrafo 104 O Dr. Armando Lacerda responde com todo interesse as nossas perguntas.
Muitas, quase todas as crianças têm nome. Mas, para chamal-as, usa-se uma designação mímica individual.
Parágrafo 105 E diz-nos, fazendo os respectivos gestos:
_ Olhe, uma chama-se assim: e applica a mão em concha sobre a orelha. Outro, assim: e bate
no queixo com dois dedos. Este, assim: e toca o lábio inferior...
Parágrafo 106 Dahi a pouco sei o nome de todos Ensaio para ver se dá certo. E os pequenos
me approvam, contentíssimos. Começo a gostar de estar ali. Tenho vontade de dizer uma porção de coisas
àquellas crianças. Cheguei mesmo a dizer qualquer coisa. E o Dr. Armando Lacerda, observando a minha
distração:
Parágrafo 107 _ Não se esqueça de que são surdos-mudos...
Parágrafo 108 _ Como é que estudam juntas, com essas diferenças de capacidades?
Parágrafo 109 _É o nosso grande problema. O problema dos testes da homogeneidade das
classes, das fichas. Tudo isso eu lhe direi, depois de percorrermos o estabelecimento...
OFFICINA DE ENCADERNAÇÃO
Parágrafo 110 Estamos na oficina de encadernação.
Parágrafo 111 Houve um tempo em que a gente alava em bibliotecas, precisava de um serviço
de encadernação, e logo os amigos recommendavam, com uma responsabilidade tradicional:
Parágrafo 112 _ Mande fazer no Instituto de Surdos- Mudos.
Parágrafo 113 Depois, foi-se deixando de ouvir falar nisso.
Parágrafo 114 Pois é nessa officina, dantes tão afamada, que estamos todos, agora, - todos
porque as crianças vão atrás de nós, seguindo-nos todos os gestos e todos os movimentos dos lábios.
Parágrafo 115 Há umas machinas velhas. Há um então, que, com os seus pés de madeira,
parece estar com elephantiasis.
110
Parágrafo 116 Sobre as mesas, uns com volumes, talvez. Literatura franceza, Papel
amarellecido, folhas desarticuladas. Estão trabalhando umas três crianças. Completamente absorvidas pelo
trabalho.
Parágrafo 117_Como vê, diz-nos o director do Instituto, lutamos cm falta de material. No
entanto, esta é uma officina que pode contribuir muito para o desenvolvimento do Instituto. A
anormalidade de um sentido favorece o desenvolvimento dos outros. Os surdos-mudos são bons
trabalhadores manuaes. Por isso, no meu plano de remodelação abordo o problema da criação de outras
secções profissionaes.
Parágrafo 118 E fala-nos de reflorescimento daquella officina, no aproveitamento dos
alumnos, nos benefícios resultantes desse trabalho, na compensação das cadernetas que lhes preparam um
pecúlio, durante a sua estada ali, - e deante de nós se projecta um largo campo de novas conquistas para
essas pequenas vidas, convenientemente amparadas.
Parágrafo 119 Ali perto está uma tabella de preços.
Parágrafo 120 Enquanto o lápis vae escrevendo, penso na necessidade urgentíssima de
organizar o trabalho da anormaes.
Parágrafo 121E mais segura se faz a nossa intima confiança na actuação deste director.
Pensamos de novo no valor immenso da acção dos jovens, movidos por um ideal grande e serio. Os jovens,
mais do que os velhos, tem, neste momento, possibilidades de isenção de compromissos, de interesses
antigos, que, em tantas vidas, teceram uma trama que as amarra, compromette e inutiliza. Os homens
devem ser aproveitados no instante mais fecundo do seu idealismo: e esse instante é a juventude. Aliás,
bem sabemos que a edade, às vezes, está em desaccordo com as disposições subjectivas. Há moços de vinte
annos com alma encarquilhada, e vidas de mais de sessenta com uma luz de mocidade sem vacillações.
Parágrafo 122 O magnésio explode. As crianças, e alguns officiaes surdo-mudos que
trabalham como encadernadores, estremecem levemente. Fico sabendo que a conductibilidade óssea
permitte nos surdo-mudos uma certa sensação de natureza auditiva. Quanto à acuidade que adquirem os
demais sentidos, na ausência de um delles, também encontro aqui uma prova curiosa. Quase todas as
crianças procuram mostrar, pela mímica, o mal que lhes causara aos olhos a intensidade da luz do
magnésio, pecebida por ellas de uma maneira excessiva.
DE PASSAGEM
Parágrafo 123 Saindo da officina de encadernação, a primeira coisa que veio ao nosso
encontro foi um cheiro agradável de comida no fogo.
Parágrafo 124 Atravessamos o refeitório, muito limpo e arrumado, e alcançamos a cozinha,
larga e confortavel, onde o fogão enorme, preto e dourado, carregado de grandes panellas fazia logo pensar,
menos o ruído, numa locomotiva em actividade.
Parágrafo 125 O cozinheiro recebe-nos sorrindo com um ar que eu, sem querer de modo
algum comprometter os seus sentimentos democráticos, classificaria de “majestosa”.
Parágrafo 126 Já agora vamos até a despensa, completamente sortida. E ahi, o copeiro me diz:
Parágrafo 127 _As crianças estavam magrinhas! Desde que o doutor veio para cá, têm
augmentado de peso. Também, a comida melhorou...
Parágrafo 128 E arregala os olhos, satisfeito...
Parágrafo 129 E o Dr. Armando Lacerda tem de se resignar a deixar passar a verdade, por
muito que a sua modéstia se retraia...
SAPATARIA
Parágrafo 130 De volta, passamos pela sapataria.
Parágrafo 131 Na extremidade da mesa, o chefe está embebido na sua occupação de pregar
solas.
Parágrafo 132 A sapataria do I.N.S.M. fornece o calçado para os asylados. Os alumnos
aprendizes trabalham com verdadeiro gosto, nesse offycio. O chefe, homem de physionomia agradável,
paternal, acostumado àquele convívio com as crianças , diz, absolutamente convencido:
Parágrafo 133 _ A prendem mais depressa que os “falantes” (falante é quem não é surdo-
mudo, pela sua classificação).
Parágrafo 134 Os pequenos vêm o fotographo preparar de novo a machina, e poem-se outra
vez muito alegres. Um, que estava cozendo sola, puxou os dois barbantes para os lados, aprumou-se, deu
um jeito ao rosto, e ficou esperando...
OS DESENHOS DE MAURICIO PUSLITNIH
Parágrafo 135 Mauricio Puslitnih é um dos meninos do Instituto.
Parágrafo 136 De olhos vivos, com um sorriso intelligente, andou sempre ao nosso lado,
durante toda a visita.
Parágrafo 137 Os collegas informaram-me que gostava de desenhar. Dei-lhe o meu lápis e um
papel.
111
Parágrafo 138 Elle fez rapidamente o que reproduzimos no “clichê”: um sapato e uma pessoa
comendo, a pedido nosso; uma cabeça de cavallo, espontaneamente.
Parágrafo 139 Ficou meio commovido quando eu lhe fiz sentir que desenhava muito bem. E
os collegas olharam-no um tanto triumphantes, como se a habilidade do companheiro tornasse todos eles
gloriosos... Oh! A solidariedade humana!...
SALAS DE AULA QUE NÃO O CHEGAM A SER...
Parágrafo 140 Lá em cima estão as salas de aula. Salas de aula?
Parágrafo 141 Há coisas graves de affirmar.
Parágrafo 142 Que é do material que vae servir aqui, para s alumnos de um estabelecimento
especializado?!
Parágrafo 143 Continua a ter razão o Dr. Oliveira Bacellar...
O MENINO DE AZUL
Parágrafo 144 Durante a visita, andaram sempre as crianças de um lado para outro, os que
estão em férias, procurando por-se em communicação comnosco, mostrando-nos que sabiam distinguir as
cores, revelando-nos o sentido da sua mímica, ou simplesmente brincando, como crianças que são.
Parágrafo 145 Só duas ou três não se approximaram. Ficaram encostadas às paredes, como
adormecidos, com os olhos abertos, indifferentes a tudo, ou sorrindo, com um sorriso continuado,
inexpressivo, ou antes, com essa expressão torturante das coisas que não se decifram.
Parágrafo 146Assim deixamos, ao longe, o menino imbecil, de fácies mongol e estructura de
anthropoide. Assim o deixamos? Não é bem isso; até hoje a nosso pensamento está com elle...
O COMEÇO DA ENTREVISTA
Parágrafo 147Agora, que já me mostrou todo o Instituto de Surdos-Mudos, acanhadamente
installado naquella pequena alla esquerda, agora que eu já vi, nos poucos alumnos lá internados (os
cincoenta restantes foram passar as férias em casa), a heterogeneidade do desenvolvimento, e que já estou
familiarizada com certas coisas que só a pratica revela, o Dr. Armando Lacerda pode expor o seu plano de
reforma do estabelecimento.
Parágrafo 148 Sentamo-nos, pois, na secretaria.
Elle, segundo o seu costume, começa a falar pesando bem os pensamentos e dosando bem as
palavras.
Parágrafo 149 Eu, segundo o meu costume, ponho-me a ouvir, apurando os ouvidos até o
maximo e distendendo a intelligencia para acompanhar a do meu illustre interlocutor.
Parágrafo 150 Creio que não deixei escapar nenhum dos pontos principaes do seu plano de
reorganização do Instituto.
Parágrafo 151 Por esse extremo cuidado que tive, trouxe matéria para uma explanação
minuciosa, que será, finalmente, amanhã, publicada na integra.
(No meio da reportagem) – duas fotos com os dizeres: “Aspectos das officinas de encadernação
e sapataria, do Instituto Nacional de Surdos Mudos” (Mais abaixo, a figura dos desenhos do menino
Mauricio Puslitinih com seu nome escrito de próprio punho)
REPORTAGEM 3
JUSTIÇA SOCIAL PARA A CRIANÇA BRASILEIRA
PERCORRENDO INSTITUTOS DE PROTECÇÃO E EDUCAÇÃO ESPECIALIZADA
PARA VER COMO O BRASIL CUIDA DA INFANCA MAL FAVORECIDA
O notável plano medico pedagógico do Dr. Armando Lacerda, para a remodelação do Instituto
Nacional de Surdos-Mudos
Cecília Meirelles (Exclusividade da “Página de Educação”)
Parágrafo 152 Quebrando-se pelo mármore da escada e pela brancura da frontaria, o sol chega
a esta sala já sem calor, transfigurado unicamente em luz.
Parágrafo 153 O jovem cientista que, com o seu companheiro de especialidade Dr. Henrique
Mercaldo, iniciou entre nós a reeducação auditiva, à maneira de Parrel e Maurice, em Paris, Humphris e
Cateart, em Londres, Torrini em Florença, etc; dá começo à palestra.
ALGUNS DADOS ETIOLOGICOS
Parágrafo 154 E vemos que , primeiro, é o otologista que se revela:
Parágrafo 155 “A maior responsabilidade entre as causas determinantes da surdo mudez
hereditária cabe à syphilis.
Parágrafo 156 “Segundo uma estatistica de Parrel, a metade, pelo menos, desses casos, ou
seja, um quarto da totalidade dos casos de surdo-mudez deve ser attribuida à heredo-lues, que, quando não
intervem directamente, transmitida de paes a filhos, assume o caracter de herança especifica associada a
outros factores etiológicos, tais como a consanguineidade, as taras nervosas e mentaes, as distrophias
varias, os distúrbios das glândulas de secreção interna, etc.
112
Parágrafo 157 “Não terminha ahi, porém, o papel da syphilis. O acommetimento das funcções
acústicas ainda se pode manifestar após o nascimento, quer sob a forma de lesão precoce, comprehendendo
as nevrites do acústico e a atorrhea dos recém-nascidos de Fournier, quer por intermédio de lesões tardias,
interessando os referidos segmentos do apparelho auditivo.
Parágrafo 158 “De qualquer modo, se a surdez total se installa antes da criança adquirir a
pratica dos gestos phoneticos, isto é, do mecanismo da palavra, a consequencia fatal será a surdo-mudez
também completa. Isto se verifica nos surdos congênitos ou precoces. Mas nem sempre a surdez e a mudez
são absolutas. Algumas crianças, que conservam resíduos auditivos, tornam-se capazes de articular, se bem
que incorrectamente, meia dúzia de palavras usualmente empregadas na conversação. São as semi-surdas.
Parágrafo 159 “Por outro lado, as crianças que perdem a audição entre dois e sete annos, em
conseqüência de infecções varias, como a meningite cérebro-espinhal, a escarlatina, o sarampo, etc;
conservam, muita vez, uma linguagem rudimentar, incomprehensivel, um”grognement” confuso, porque a
perda de audição determina progressiva attenuação da voz e impede a articulação normal das palavras.
Temos, então, as semi-mudas.”
PRECISAMOS REDUZIR O NUMERO DE SURDOS-MUDOS
Parágrafo 160 O Dr. Armando Lacerda detem-se um momento, pondo as idéas em ordem.
Mas, como senhor absoluto que é do assumpto, continua logo depois discorrendo com toda a naturalidade:
Parágrafo 161 “Sendo a surdo-mudez hereditária ou adquirida, é claro que dois são os
caminhos por onde se tem de conduzir a prophylaxia, para a reduzir.
Parágrafo 162 “Quanto à primeira, a prophylaxia pode-se dizer que consiste no combate aos
principaes factores dysgenicos: a syphilis, o álcool e a tuberculose, como complemento dos preceitos
ditados pela Eugenia.
Parágrafo 163 A necessidade do exame pré-nupcial impõe-se, desde logo, com a
regulamentação dos casamentos de syphilicos, consangüíneos portadores de taras e surdos de família.
Parágrafo 164 Como conseqüência immediata desse exame, deve vir o tratamento especifico
pré-concepcional dos nubentes ou recém casados. Verificada, porém, a transmissão mórbida, o que ocorre é
a necessidade do diagnostico precoce e do tratamento pre ou post natal das crianças heredo-syphilicas.
Parágrafo 165 No caso da surdo-mudez adquirida, já cabe ao oto-rhino-larynglogista o papel
predominante, devido às conseqüências gravíssimas que para a audição a audição acarretam as othorhéas e
as infecções tympanicas, com ou sem invasão labyrinthica, observadas nos lactentes e no decorrer da 1ª e
da 2ª infancias.
Parágrafo 166 É preciso levar em conta, ainda, o adenoidismo, que intervem frequentemente
no entretenimento desses corrimentos purulentos e prolongados do ouvido, devendo o oto-rhino-
laryngologista remover o mais cedo possível todos esses factores do “ déficit” auditivo”.
INTERRUPÇÃO
Parágrafo 167 O telephone bate, como de propósito, para encerrar o capitulo. E emquanto a
conversa com o director do Instituto de Surdos-Mudos se conserva interrompido, penso no interesse com
que o jovem scientista se entrega às funcções do seu cargo e, intimamente, louvo o acerto desta escolha,
sabendo como, no terreno educacional, outras tem havido evidentemente erradas e perniciosas àquillo que
deve ser a própria ideologia do Brasil- Novo.
ORIENTAÇÃO MEDICO-PEDAGOGICA
Parágrafo 168 Mas apenas tenho tempo para esboçar esse pensamento. A palestra resta-se,
com maior vivacidade, agora que entramos, propriamente, nos assumptos ligados ao Instituto.
Parágrafo 169 O Dr. Armando Lacerda mexe distraidamente nos papeis, sobre a mesa, e diz-
me isto:
Parágrafo 170 “O artigo I do Regulamento aqui do instituto so se refere à instrucção literária e
ao ensino profissional, isto é, tem apenas uma preocupação didactica, quando a orientação cabível, neste
caso, é a indico-pedagogica.”
Parágrafo 171 Frisa outra vez, com a voz e com o olhar, essa expressão: medico-pedagogica.
Parágrafo 172 E continua:
Parágrafo 173 “A finalidade dos estabelecimentos desta natureza é, realmente, a educação dos
surdos-mudos; mas é preciso não esquecer a amplitude que a palavra “educação” tem, nos tempos de hoje.
Talvez não só amplitude. Sentido, mesmo, essencial.
Parágrafo 174 A educação é forma de adaptar o homem à vida, dando-lhe possibilidades de
auto-governo, para se poder mover com liberdade e responsabilidade.”
Parágrafo 175 Deixo escapar uma palavra de aprovação.
Parágrafo 176 E o Dr. Armando Lacerda conclue o seu raciocínio:
“Ora, neste caso, em que o alumno é, positivamente, um enfermo, o processo educacional não
pode deixar de ter uma intima conexão com as investigações scientificas, da alçada exclusiva da medicina
especializada, no seu tríplice aspecto diagnostico-therapeutico-prophilactico.
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Parágrafo 177 As medidas pedagógicas, neste caso, não se podem apartar, nem tão pouco
prescindir da inspecção medica inicial. Parrel diz: “Vale muito instruir os surdos-mudos e preparal-os para
a vida social, mas vale mais, ainda, diminuir-lhes o numero”.
Parágrafo 178 Assim, se por um lado temos, sob a nossa responsabilidade, a educação dos
surdo-mudos, por outro temos também o problema da reducção da surdo-mudez, cuja propagação, como
sabe, se effectua numa progressão assustadora.
Parágrafo 179 É por isso que, no plano apresentado ao ministro da Educação, destaco bem a
importância do Serviço Sanitário do instituto.
Parágrafo 180 Seriam de grande vantagem, na inspecção medica geral, as provas sorológicas,
para a pesquisa da syphilis, estendendo-se o exame, se possível, até os progenitores.
Parágrafo 181 “As investigações clinicas e biologicas da syphilis hereditária, nos surdos-
mudos, têm uma importância capital, em face, como vimos, da percentagem dessa infecção no quadro
etiológico.
Parágrafo 182 “Assim, num instituto de surdos-mudos, o pediatra e o oto-rhino-laryngologista
tem um papel igualmente importante a desempenhar, ficando a cargo de ambos o tratamento medico-
cirurgico e a prophylaxia dos casos indicados.
Parágrafo 183 “Ahi está porque eu lhe dizia no começo que a orientação que sinto necessária
aqui é a medico-pedagogica.
Parágrafo 184 “A collaboração da medicina em estabelecimento desta natureza, além do
diagnostico e da seleção dos surdos-mudos quanto à sua capacidade physica, mental e auditiva, é
extraordinariamente importante, ainda, no que se refere ao tratamento e prophylaxia geral da surdo-mudez.
Parágrafo 185 “É mesmo de tal ordem, que, sem ella, pode-se affirmar que não haverá
instituto de surdos-mudos.”
Parágrafo 186 O Dr. Armando Lacerda cala-se, e fita-me alguns instantes, como para saber se
o seu pensamento está sendo installado convenientemente na minha memória.
Parágrafo 187 E eu digo para mim mesma o que elle não disse: “ Isto que temos é, apenas,
como o escreveu o Dr. Oliveira Bacellar, um máo asylo para surdos-mudos...”
UM EXEMPLO DE ACTIVIDADE
Parágrafo 188 Como já dissemos na introducção a esta entrevista, a actuação do Dr. Armando
Lacerda no instituto vem sendo exercida apenas de 20 de dezembro para cá, isto é, há dois mezes ainda
incompletos.
Parágrafo 189 Nesse pouco tempo, o jovem e illustre director conseguiu verificar todas as
irregularidades existentes, na parte administrativa, e todas as falhas da parte technica, elaborando, ao
mesmo tempo, um plano geral de reforma do estabelecimento, a pedido do ministro da Educação.
Parágrafo 190 Postas à margem as questões de ordem administrativa, cuja importância na
decadência do instituto, sendo embora, gravíssima, não interessa particularmente a esta reportagem, -
principalmente educacional, - vejamos como foi encontrado o estabelecimento, no que diz respeito à parte
technica.
AMOSTRA DE DESORGANIZAÇÃO
Parágrafo 191 “No relatório que me foi apresentado pelos professores da cadeira de linguagem
articulada e leitura labial, diz-me o Dr. Armando Lacerda, se pode verificar o estado de desorganização em
que encontrei este estabelecimento, onde a falta de direção e nenhuma centralização technica anullavam os
esforços do corpo docente, em luta, além disso, com a falta de material escolar.
Parágrafo 192“Só havia, neste Instituto, três professores de linguagem articulada, leccionando
um total de sessenta e um alumnos.
Parágrafo 193“Isso, só por si, constitue uma falha grave, pois é sabido que, nas escolas de
anormaes, as classes devem ser constituídas por um reduzido numero de alumnos.
Parágrafo 194“O Instituto de Surdos-Mudos, em 1830 contava 30 alumnos e três professores.
Pois, em 1910, com a duplicação dos alumnos, os professores continuavam a ser no mesmo numero. É um
absurdo.
Parágrafo 195“Outra coisa: nas escolas para crianças normaes, leva-se em consideração a
homogeneidade das classes, pela selecção dos alumnos segundo a sua idade mental. Está claro que essa
homogeneidade das classes e essa selecção ainda se tornam muito mais indispensáveis nas classes de
anormaes.
Parágrafo 196 “No Emtanto, estes alumnos do Instituto estiveram até agora aqui na mais
completa promiscuidade, sem ficha individual, sem o mais superficial exame medico, sem um test, embora,
como tive occasião de lhe mostrar, se encontrem nessa casa desde os surdos-mudos de mentalidade normal
até os imbecis, com os vários grãos de anormalidade intermédios.
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Parágrafo 197 “E não poderá deixar de parecer estranho a qualquer pessoa, diz o dr. Armando
Lacerda, que, havendo no Brasil, approximadamente 26.000 surdos-mudos, de ambos os sexos, o Instituto
Nacional de Surdos-Mudos (frisou todo o titulo) abrigue apenas 60 crianças do sexo masculino...
BASES DA REFORMA: O SERVIÇO SANITARIO
Parágrafo 198 Pára um momento sobre as reticências.
Parágrafo 199 Depois, continua:
Parágrafo 200 “Não era possível promover uma educação proveitosa, neste estabelecimento,
com a asylagem que encontrei. Assim, tive de traçar um plano completo, baseado no seguinte:
Parágrafo 201 I – augmento da lotação dos alumnos e sua selecção auditiva e mental, com
tratamento e educação adequados.
Parágrafo 202 II – criação de varias secções educacionaes.
Parágrafo 203 “Ao primeiro ponto, que faz parte do Serviço Sanitário, estão ligadas as
seguintes necessidades; exame medico dos surdos-mudos, a cargo do etiologista, para classificação da
capacidade auditiva; exame da capacidade mental, a cargo de outro especialista. Com isso, so poderá
organizar a ficha dos alumnos, ficha que servirá de base a critério seleccionador rigorosamente scientifico,
por meio do qual, somente, é possível aqui contar do aproveitamento das crianças nas varias disciplinas.
Parágrafo 204 “A ficha, neste caso, é indispensável.
Parágrafo 205 “Há mesmo um movimento internacional visando a estandardização das fichas
de surdos-mudos dos institutos nacionaes de todo o mundo. Como iríamos nós collaborar nessa obra
unificadora, do maior alcance social, se o Regulamento que encontrei não cogitava nem da organização
mais elementar de uma ficha propria?
Parágrafo 206 “A importância desse serviço Sanitario, como lhe disse no principio, é
extraordinária – porque os alumnos deste estabelecimento, - é preciso não o esquecer – são enfermos. Junto
com o relatório que remetti ao ministro da Educação, figura um graphico mostrando a remodelação do
Serviço Sanitário, com que conto solucionar immediatamente o problema, mediante a simples criação de
uma cadeira de clinica otológica e o aproveitamento do pessoal já existente, isto é, do médico e do dentista,
nas respectivas cecções, que exigirão, apenas, melhor apparelhamento.”
A PARTE PEDAGOGICA
Parágrafo 207 Eu disse, no começo, que o Dr. Armando Lacerda fala pouco. E apesar de tanta
coisa que lhe ouvi, sustento ainda o que disse antes. Porque a sua concisão no falar, a sua simplicidade de
linguagem, que se cinge estrictamente no pensamento, continuam a dar-nos sempre, por mais que diga, uma
impressão de nunca dizer demais.
Parágrafo 208 Nesse mesmo tom, discreto e sereno, me informa elle da parte pedagógica do
seu plano:
Parágrafo 209 “Uma vez augmentada a lotação dos alumnos – e, conseguintemente, dos
professores – feita a sua classificação auditiva e mental, é necessário dividil-os em dois grupos,
constituindo dois departamentos: o oral e o silencioso.
Parágrafo 210 “O primeiro, subdividido em duas secções: a oral, só labial, comprehendendo
linguagem articulada e leitura labial, destinada aos surdos totaes de intelligencia normal entrados antes dos
9 annos, e nos semi-mudos, que não são congênitos; a acústico-oral, destinada aos semi-surdos.
Parágrafo 211 “O segundo, comprehendendo a linguagem escrita, é destinado nos retardados
de intelligencia e aos surdos entrados depois de 9 annos. Neste departamento tentar-se-á substituir também
a mímica, que é o meio de communicação espontâneo, dos surdos-mudos, pela dactylologia, que é um meio
convencional.Isso é, aliás, uma coisa difficilima, dada a rapidez da chamada “contaminação mímica, que
faz com que os surdos mudos em poucas horas se communiquem entre si por esse meio instinctivo e
deficiente.
Parágrafo 212 “Esses dois departamentos são inteiramente separados.
Parágrafo 213 “Quanto ao ensino, propriamente, comprehende, além dos programas communs,
a parte profissional, especialmente para os que não puderem aproveitar com o tratamento medico.”
UMA MEDIDA IMPORTANTE
Parágrafo 214 Depois de se referir ao projecto de criação das secções de alfaiataria e
marcenaria, e da vantagem da criação de uma typografia, - onde os surdos-mudos produzem rendimento
considerável, - se penso fosse possível uma despesa dessa ordem, fala-nos o Dr. Armando Lacerda numa
importante medida que tomou, logo ao assumir a direcção do Instituto.
Parágrafo 215 Trata-se do decreto, já em vigor, que baixou a idade de admissão dos alumnos.
Parágrafo 216 Como está provado que o tratamento da surdo-mudez deve ser feito o mais
cedo possível, o Dr. Armando Lacerda, no intuito de aproveitar resíduos de audição ainda existentes em
muitos casos, fixou essa idade entre os 7 e 13 annos.
Parágrafo 217 O ideal seria a obrigatoriedade de internação de todas as crianças surdo-mudas,
nessa idade. Mas, a extensão territorial, a má vontade de muitas famílias, ainda pouco esclarecidas sobre
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essas coisas, e a existência de um único estabelecimento dessa natureza tornam diffícil de realizar essa
obrigatoriedade.
Parágrafo 218 No emtanto, antes dos 9 annos, o tratamento adequado da surdo-mudez
diminuiria sensivelmente o numero de surdos-mudos, dando-lhes possibilidades sociaes que o tratamento
effectuado mais tarde absolutamente não garante.
PRIMEIRAS PROVIDENCIAS
Parágrafo 219 “Esse é, em linhas geraes – continua o Dr. Armando Lacerda – o plano de
reforma que apresentei ao ministro da Educação.
Parágrafo 220 “Como está vendo, é bastante amplo, e exige grandes recursos para poder ser
realizado.
Parágrafo 221 “Eu sinto ainda a necessidade de ser criado um outro estabelecimento para
surdos-mudos. É um absurdo cuidar apenas de um sexo, quando, em ambos, a proporção do mal é paralella.
O facto de ser necessário outro estabelecimento provem do seguinte; está verificado que é muito commum
casarem-se surdos-mudos com surdos-mudos. Depois do que já vimos sobre a etiologia da surdo-mudez,
nem é mais preciso chamar a attenção para o perigo desses pensamentos.
Parágrafo 222 E como o convívio das crianças os facilitaria, mais tarde, é conveniente fazer-se
essa separação desde logo.”
Parágrafo 223 Aproveitando uma pausa do director do instituto, pergunto como foi recebido o
seu plano, por parte do Ministério.
Parágrafo 224 _ “O ministro está muito interessado pela reforma. Isso é uma grande esperança
para todos nós... Mas, emquanto a reforma não é posta em pratica, estamos cuidando da organização do
Serviço Sanitário, sem o qual não se consegue preencher a ficha individual, onde o professor encontrará,
alem do índice da capacidade auditiva, para os que a tiverem, todas as indicações necessárias à
comprehensão da natureza do alumno. É uma providencia inadiável.”
TRES APRESENTAÇÕES
Parágrafo 225 Nesse momento chegam á secretaria um professor e dois repetidores do
Instituto. Meia dúzia de palavras de apresentação. O professor que é o Sr. Saul Borges Carneiro, os Srs.
Manoel Dantas Cavalcante Sobrinho e João Brasil Silvado Junior.
Parágrafo 226 Desse plano, que se poderia chamar “de emergência”, consta o seguinte:
Parágrafo 227 _ conservação da classe de methodo oral, já existente, destinada aos semi-
surdos e semi-mudos, de intelligencia normal, e fixação dos limites da mesma em oito alumnos:
Parágrafo 228_ conservação das duas classes de escripta já existentes, com 15 alumnos cada
uma;
Parágrafo 229 _ exclusão das actuaes classes de linguagem escripta dos alumnos que, a juízo
dos respectivos professores, têm revelado intelligencia retardada;
Parágrafo 230 _ organização, com esses alumnos, de uma classe de linguagem escripta, a qual
poderá ser seguida por um repetidor, visto que só existem, por emquanto, três professores de linguagem;
Parágrafo 231 _ restabelecimento da repetição das lições, assim como da hora destinada no
estudo e preparo das mesmas;
Parágrafo 232 _ aquisição de um pequeno museu semelhante ao que existiu outrora no
Instituto, e de colleções de livros, estampas e material moderno indispensável ao ensino intuitivo da
linguagem.
SYNTHESE
Parágrafo 233 Como se vê, pelo que me disse o Dr. Armando Lacerda, todas as medidas
foram tomadas para iniciar immediatamente a transformação do I.N.S.M. num estabelecimento realmente
útil.
Parágrafo 234 O seu ponto de vista, que queremos deixar bem claro, é o dos otologistas mais
considerados em todo o mundo: reduzir a surdo mudez; aproveitar o mais cedo possível os restos de
audição que porventura existam nas crianças (dahi a modificação na idade de admissão); e encaminhal-as
depois de devidamente seleccionadas, de accordo com as suas possibilidades e aptidões; resolver o
problema da surdo-mudez no sexo feminino.
Parágrafo 235 E, como a fundação não se pode esperar seja feita tão depressa quanto se faz
mister, o Dr. Armando Lacerda, com a sua boa-vontade de fazer o maximo, com o mínimo, propõe a
installação, na ala direita do edifício – que em breve será desalojada – de uma secção feminina, sob a fôrma
de externato.
Parágrafo 236 Sob todos os pontos de vista é um plano verdadeiramente notável.
O PROBLEMA ECONOMICO
Parágrafo 237 Toda a intelligencia, toda a actividade, toda boa vontade, porém, do Dr.
Armando Lacerda e dos seus distinctos auxiliares pouco poderão fazer se não forem amparadas por a parte
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do governo com uma subvenção proporcional às necessidades impostas pela extensão da surdo-mudez no
Brasil.
Parágrafo 238 E não se trata apenas da sua extensão actual, mas da sua propagação,
compromettendo as condições eugênicas da raça.
Parágrafo 239 A educação dos surdos-mudos, porém comparada com a dos anormaes, é a mais
cara de todas.
Parágrafo 240 Ella exige a constituição de classes muito pequenas, e de selecção rigorosa. E
disso resulta o augmento de pessoal technico, e das respectivas verbas.
Parágrafo 241 O I.N.S.M. dispõe, pelo patrimônio, de uma renda de cerca de cento e trinta
contos annuaes, divididos quasi em partes iguaes pelas verbas do material e pessoal.
Parágrafo 242 Nesse ponto, são mais felizes os cegos, que dispõem de uma subvenção de
quase oitocentos e cincoenta contos.
Parágrafo 243 Por que não offerecer, a uns e outros, iguaes possibilidades para o seu
aproveitamento humano?
CONCLUSÃO
Parágrafo 244 Mas o Dr. Armando Lacerda tem confiança no novo rumo das coisas no Brasil.
A Revolução foi feita para o bem do povo.O povo tem o direito de tudo esperar, dos homens da Revolução.
Tem, principalmente, o direito de esperar o socorro que por tanto tempo faltou ás mais urgentes
necessidades da sua vida: saúde e educação integral – meios que conduzem à prosperidade e à liberdade.
Parágrafo 245 Até o retrato de Tobias Leite, com o setinoso tom dos óleos antigos, parece
adquirir vida, para vir pensar comnosco a mesma coisa.
Parágrafo 246 Fecha-se a reportagem com uma grande esperança.
Parágrafo 247 Saio levando a alegria de poder revelar tanta coisa, ao publico.
Parágrafo 248 E sinto que, atrás de mim, fica palpitando um futuro de infinitas realizações.
NO MEIO DA REPORTAGEM: uma foto com o dizer: “O Dr. Armando Lacerda com os seus
auxiliares, senhores Luiz Coelho, repetidor, e Saul Borges Carneiro, cathedratico de linguagem articulada.”
ANEXO 3
REPORTAGEM 1
FOLHA 1
- Surdos-Mudos
- Infância ainda mais infeliz que a infância que freqüenta as escolas públicas ; para designar a criança que
freqüenta a escola pública temos – infância que, em grande parte, constituída por crianças em situação
orgânica sub-normal pela pobreza das classes a que pertencem e a incultura do meio., infância desnutrida ,
carregada de um silenciosa e obscuro soffrimento
- infância que se agita com dificuldade, relegada à miséria, ao empirismo e à superstição dos lares
- Infância dos anormaes sem escolas que os abriguem, sem estudos bem orientados que os amparam, sem
comprehensão ou possibilidades da parte das pessoas competentes
- condemnação de indesejáveis da espécie humana, sem Logar – por humilde que seja.
- criaturas abandonadas à sua miséria, desajudadas pelo poder das criaturas sãs
- Opprimidos por predestinação orgânica ou social
- infância que não se conhece cá fora
- espécie de gente humana separada de nós por sua desgraça e porque os de fora não os servem
FOLHA 3
- criaturas francamente anormaes pela resistência das doenças ou defeitos que dificultam o acordar de
possibilidades próprias
- infância anormal
- Infelizes criaturas que ficaram em outros tempos até à morte entregues à desgraça e à inutilidade
- anormal aproveitado que pode viver pelo seu aproveitamento, pelo seu poder de trabalho, pela sua
limitada capacidade de criação
- parte do problema educacional
- compõem parte da categoria de anormaes
- crianças anormaes
FOLHA 4
-surdos-mudos e cegos – anormaes por defeito physico, que necessitam de uma educação especializada que
não pode fazer parte de uma classe de simples anormaes de intelligencia, seja qual for o seu grau, porque,
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nestes, o mal não é interno, não se trata de desenvolver uma mentalidade rudimentar ou incompleta, mas
servida por uma integridade physica dos sentidos
-anormaes que o podem ser duas vezes, porque frequentemente associam ao defeito physico, anormalidades
mentaes
FOLHA5
- anormaes dessa espécie
- surdos-mudos tem sentimento de inferioridade e tendência natural de se segregar da sociedade,
procurando exclusivamente o convívio dos seus companheiros de infortúnio, olhando sempre com
desconfiança os seu companheiros que ouvem
FOLHA 6
FALANDO SOBRE OS ALUNOS DO INSTITUTO – 1929
- alumnos maltrapilhos e descalços, recebendo instrucção péssima
- alumnos desde o surdo-mudo verdadeiro até o perfeito idiota
- infelizes
FOLHA 7
- alumnos contribuintes
FOLHA 8
- “espreitando, curiosas, gesticulando, rindo, encolhendo-se com desconfiança pelos cantos, ou olhando
passivamente ao acaso, umas doze crianças vestidas de azul, nos aparecem, com essa estranha physionomia
dos que não ouvem e não falam, e que nos dão a impressão de os podermos, de repente, desencantar...
(observadoras, curiosas, desconfiadas, de olhares passivos, vestidas de azul, uniformizadas, de fisionomia
estranha, dão impressão de que são encantadas)
- “um bate o meio da testa, comunicando-se com o companheiro.” ( capazes de se comunicar)
-“ a certeza de que vão ser photographados enche-os de alegria. Endireitam a roupa, abotoam a golla,
tomam, mesmo, attitudes de certa importância, e diverem-se muito com todos esses preparativos.( alegres
por serem fotografados, capazes de se arrumar, com atitudes de importância, capazes de se divertir com os
preparativos para a foto)
- Helen Keller, surda, muda e cega
FOLHA 9 ( QUASE O TEXTO TODO – NOMES, EDADES E CAPACIDADES)
- “Veja. Temos de tudo, aqui. Este é um typo perfeitamente lombrosiano. De fácies mongol, a estructura de
anthropoide. Não se exprime, como os outros... Tem accessos violentos de ira. Não poderá permanecer
aqui, porque por elle nada podemos fazer. É uma criança imbecil”
- gente que tem um mal que os oprime
- “ Mas este, não; este é inteligente. E é bom menino, e este outro ...E aquelle ...
Os pequenos cercam-no, olham-nos dos pés à cabeça, gesticulam entre si, e de vez em quando, batem na
testa.”
- “ E como é que estão classificadas estas crianças, de aspectos tão differentes?”
-“Encontrei estas crianças em completa promiscuidade. Não possuem fichas individuaes. Não passaram por
nenhum exame médico. Não foram submetidas a nenhum teste. De algumas, nem se conhece a origem.
Nem se sabe como se chamam... Ahi está uma coisa perturbadora; uma criança sem nome, sem indicações
sobre sua vida... E surdo muda... Não pode haver mais completo mysterio que um destino assim.
- comunidade singular
FOLHA 10 (QUASE O TEXTO TODO – NOMES, EDADES E CAPACIDADES)
- Crianças que tem uma designação mímica individual para serem chamadas
- pequenos contentíssimos
- crianças observadoras
- três crianças completamente absorvidas pelo trabalho
- Bons trabalhadores manuaes
- alumnos que podem ser aproveitados
- pequenas vidas
- trabalhadores anormaes
FOLHA 11
- surdos-mudos encadernadores
- crianças com maior acuidade dos demais sentidos, aqui em especial, da visão
- crianças magrinhas que vem aumentando seu peso
- asylados
- alumos aprendizes que trabalham com gosto na sapataria
- crianças que aprendem o ofício da sapataria mais depressa que os falantes
- pequenos muito alegres
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- “Um que estava cozendo sola, puxou os dois barbantes para os lados, aprumou-se, deu um jeito ao rosto e
ficou esperando...” ( pequeno esperto)
- Mauricio Puslitnih, um dos meninos do instituto, de olhos vivos, sorriso inteligente, companheiro de toda
a visita, gostava de desenhar. Desenha uma cavalo espontaneamente e um sapato e uma pessoa atendendo a
pedidos.
FOLHA 12
- Comovido por sentir dela que desenhava muito bem. Habilidoso.
- Colegas de Mauricio, triunfantes. Como gloriosos pela habilidade do colega.
- crianças que andam de um lado para o outro procurando comunicar-se, capazes de mostrar que sabem
distinguir entre as cores, que revelam o sentido de sua mímica.
-crianças que brincam como crianças que são
- crianças que se aproximam
- Crianças como adormecidas, indiferentes a tudo, sorridentes de um sorriso inexpressivo, com uma
expressão torturante das coisas que não se decifram
-um menino imbecil de faces mongol e estructura de anthropoide
- alunos internados
- alunos que passam as férias em casa
- menino que escreve o nome de próprio punho
REPORTAGEM 2
FOLHA 13
- infância mal favorecida
- Surdos congênitos ou precoces
- Semi- surdas- crianças que conservam resíduos auditivos, capazes de articular, se bem que
incorretamente, meia dúzia de palavras usualmente empregadas na conversação
- semi mudas – crianças que perdem a audição entre 2 e 7 anos, em conseqüência de infecções varias, como
a meningite cérebro-espinhal, a escarlatina, o sarampo, etc. Que conservam uma linguagem rudimentar,
incompreensível, um “grognement” confuso, porque a perda de audição determina progressiva atenuação
da voz e impede a articulação normal das palavras.
FOLHA 14
- surdos de família
FOLHA 15
- aluno é positivamente um enfermo
FOLHA 16
- classes de anormaes
- surdos mudos de mentalidade normal
- surdo mudo imbecil com os vários graus de anormalidade intermédios
- alunos enfermos
FOLHA 17
- surdos totais de inteligência normal entrados antes dos 9 anos
- alunos que não podem aproveitar o tratamento médico
FOLHA 18
- semi-surdos
- semi- mudos
- surdos de inteligência normal
- alunos que tem revelado inteligência retardada
FOLHA 19
- crianças com possível resto de audição
- crianças selecionadas e encaminhadas de acordo com suas possibilidades e aptidões
- surdo mudez no sexo feminino
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