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N.

º 5/2020
JCM

Senhora Conselheira

Procuradora Geral da República

Excelência:

I. A consulta

Solicita Vossa Excelência que o Conselho Consultivo da Procuradoria-

Geral da República, com vista à uniformização de procedimentos, tome posição,

nos termos do artigo 44.º, a), do Estatuto do Ministério Público, sobre quais são

os poderes processuais do Ministério Público, no âmbito do recurso de impugnação

judicial da decisão de autoridade administrativa, entre o momento em que recebe os

autos da entidade administrativa e o momento em que procede à respetiva

apresentação ao juiz, nos termos do n.º 1, do artigo 62.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de

27 de outubro.

II - O processo contraordenacional

O direito de mera ordenação social foi introduzido no nosso sistema

jurídico pelo Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de julho, num movimento tardio de

saneamento do apelidado direito penal administrativo, cuja multiplicação

exponencial tinha as suas causas no crescente desenvolvimento das políticas do

modelo do Estado Social.


PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA 2
Conselho Consultivo

A autonomização deste ramo do direito já havia ocorrido nos anos 50 do

século passado na República Federal Alemã, tendo sido posteriormente seguida

noutros países europeus.

A justificação para a introdução de um regime geral das

contraordenações, como expressão de um direito de mera ordenação social, no

nosso país, foi assim explicada no preâmbulo do referido Decreto-Lei n.º 232/79,

de 24 de julho:

A necessidade de dotar o nosso país de um adequado «direito de mera

ordenação social» vem sendo, de há muito e de muitos lados, assinalada. Tanto no

plano da reflexão teórica como no da aplicação prática do direito se sente cada vez

mais instante a necessidade de dispor de um ordenamento sancionatório alternativo

e diferente do direito criminal.

Ordenamento que permita libertar este ramo de direito das infrações que

prestam homenagem a dogmatismos morais ultrapassados e desajustados no

quadro de sociedades democráticas e plurais, bem como do número inflacionário e

incontrolável das infrações destinadas a assegurar a eficácia dos comandos

normativos da Administração, cuja desobediência se não reveste da ressonância

moral característica do direito penal. E que permita, outrossim, reservar a intervenção

do direito penal para a tutela dos valores ético-sociais fundamentais e salvaguardar

a sua plena disponibilidade para retribuir e prevenir com eficácia a onda crescente

de criminalidade, nomeadamente da criminalidade violenta.

Este diploma, devido a problemas de constitucionalidade orgânica, foi

inicialmente alterado pelo Decreto-Lei n.º 411-A/79, de 1 de outubro, e mais tarde

substituído, com algumas modificações pontuais, pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de

27 de outubro 1, sem que a sua aplicação se tenha consolidado, devido à

impreparação inicial dos serviços da Administração Pública.

1Este diploma já foi objeto de alterações pelos Decretos-Lei n.º 356/89, de 17 de outubro, n.º
244/95, de 14 de setembro, n.º 323/2001, de 17 de dezembro, e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de
dezembro.
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Conselho Consultivo

Os termos do regime geral das contraordenações foram naturalmente

influenciados pela lei-quadro das contraordenações alemã na altura vigente, a

“nova” OWiG de 1968 (Gesetz über Ordnungswidrigkeiten).

Posteriormente à aprovação do regime geral das contraordenações

(doravante RGCO) pelos diplomas acima referidos, além de uma crescente

utilização de sanções contraordenacionais por um Estado regulador, de um

considerável agravamento dos montantes das coimas e de um alargamento do

leque de sanções acessórias aplicáveis, foram aprovados múltiplos regimes

jurídicos gerais sectoriais 2, num movimento de fragmentação e atomização do

direito de mera ordenação social que coloca em causa a sua unidade e remete o

regime geral constante do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, para um

papel meramente residual 3.

Nos objetivos da autonomização deste ramo de direito incluía-se

também a conveniência de revestir o processamento destas infrações de

especificidades que permitissem a aplicação das sanções pelos agentes

administrativos encarregados da fiscalização e controlo estadual das respetivas

atividades, libertando os tribunais desta competência emergente 4. Efetivamente,

o processo contraordenacional carateriza-se pelo cumprimento de um dos

2 V.g. as contraordenações no Regime Geral das Instituições de Crédito, na Lei da Atividade


Seguradora, no Código dos Valores Mobiliários, na Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais,
na Lei da Concorrência, no Regime Geral das Infrações Tributárias, no Regime Sancionatório do
Setor Energético, ou no Código do Trabalho.

3 Referindo-se a este facto, PAULO PINTO ALBUQUERQUE, em A reforma do direito das


contraordenações, em “Contraordenações laborais”, 2.ª ed., e-book, CEJ, acessível em www.cej.mj.pt,
pág. 20, afirma que o caráter geral do processo de contraordenações previsto no RGCO tem sido
frustrado em face da multiplicação de regimes extravagantes que contrariam o regime geral. Desta forma
o processo contraordenacional tornou-se o âmbito do direito sancionatório público onde mais
gravemente se viola o princípio da igualdade, e ALEXANDRA VILELA, em A fase jurisdicional do processo
contraordenacional, em Anatomia do Crime, n.º 5, pág. 131, diz que o que se verifica é que, em sentido
contrário ao que temos vindo a defender há já alguns anos, praticamente todos os setores regulados, ao
mesmo tempo que criam as suas respetivas contraordenações, criam também mini-regimes
contraordenacionais, postergando o regime geral para o papel de direito subsidiário.

4FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pág.
158.
PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA 4
Conselho Consultivo

grandes objetivos da autonomização do direito de mera ordenação social - a

desjudicialização 5. As entidades que tramitam e decidem o processamento das

contraordenações são autoridades administrativas, não se encontrando o direito

de mera ordenação social incluído na reserva absoluta de jurisdição cometida

aos tribunais, sem que isso signifique a exclusão total da sua intervenção nestes

processos.

Esta caraterística do processo contraordenacional encontra-se, a título

marginal, viabilizada no próprio texto constitucional (artigo 37.º, n.º 3, da

Constituição), estando garantido, contudo, que o desfecho deste processo nunca

fará perigar a liberdade física dos visados e é dotado de uma reserva judicial de

última instância 6.

Apesar de as autoridades administrativas estarem obrigadas a decidir

com imparcialidade, não privilegiando, nem discriminando ninguém, elas devem

sempre prosseguir, na sua atuação, o interesse público, além de que, reunindo

em si, na maior parte dos casos, a função investigatória e decisória, sem

preocupações de respeito pelo princípio do acusatório, não deixam de agir, nesta

5 Esse objetivo é claramente enunciado por EDUARDO CORREIA no escrito que antecedeu e
anunciou a criação do direito de mera ordenação social em Portugal – Direito penal e de mera
ordenação social, publicado no Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.º 49
(1973), pág. 271 e seg. e 275 e seg.
VITOR SEQUINHO DOS SANTOS, em O dever de fundamentação da decisão administrativa
condenatória em processo contraordenacional, em “Contraordenações laborais”, 2.ª ed., e-book., CEJ,
acessível em www.cej.mj.pt, pág. 111, chega mesmo a afirmar:
A atribuição da competência para a instrução e julgamento das contraordenações a uma autoridade
administrativa, assim aliviando os tribunais de inúmeras infrações, consideradas de menor gravidade
comparativamente com aquelas que se entendeu conservar no âmbito do Direito Penal, constitui,
porventura, a principal razão da autonomização de um Direito das Contraordenações, seguramente
mais importante que qualquer “purificação do Direito penal”, objetivo algo abstrato e cujo posterior
cumprimento é, porventura, duvidoso.

6 NUNO BRANDÃO, Crimes e Contra-Ordenações: da Cisão à Convergência Material, Coimbra Editora,


Coimbra, 2016, pág. 876 e seg. e MARTA BORGES CAMPOS, Os poderes de cognição do tribunal na
fase de impugnação judicial do processo de contraordenação, em “Estudos sobre Law Enforcement,
Compliance e Direito Penal”, coord. por Fernanda Palma, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 387 e seg.
PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA 5
Conselho Consultivo

dupla perspetiva, com um grau de parcialidade que não permite dispensar a

possibilidade de intervenção posterior de um juízo jurisdicional 7.

Assim, ao direito contraordenacional não só está vedada a utilização de

sanções de privação da liberdade física, como, no seu processamento, após uma

primeira fase tramitada e decidida por autoridades administrativas, é colocada à

disposição da pessoa sancionada o recurso aos tribunais, os quais julgarão a

causa contraordenacional. O preenchimento destas duas condições foi

considerado necessário e suficiente para que se cumprisse um dos grandes

desideratos do direito de mera ordenação social.

No termo da apelidada fase administrativa, durante a qual a autoridade

administrativa competente procede à investigação e instrução da

contraordenação participada ou denunciada, aquela entidade deverá concluir

pelo arquivamento do processo contraordenacional ou pela aplicação de uma

sanção (artigo 54.º, n.º 2, da RGCO).

Na hipótese da opção ter sido o arquivamento ou de o arguido se

conformar com a sanção que lhe foi aplicada, o processo contraordenacional

limitar-se-á a esta fase administrativa, não se abrindo uma segunda fase de

natureza jurisdicional 8. Estamos perante decisões definitivas e exequíveis.

Caso, ao invés, tenha sido aplicada uma sanção e o arguido não se

conforme com essa decisão, este tem o direito de a impugnar judicialmente

(artigo 59.º, n.º 1, do RGCO) 9.

7 Sobre o diferente grau de imparcialidade na atuação das autoridades administrativas e


jurisdicionais, RUI MEDEIROS / MARIA JOÃO FERNANDES, Constituição Portuguesa anotada, Tomo III,
Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pág. 43-44, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 595/2012, de
6-12-2012, acessível em www.tribunalconstitucional.pt., e o Parecer deste Conselho Consultivo, n.º
29/2017, de 9-11-2017.

8 Poderá, contudo, durante a fase administrativa, haver lugar à impugnação judicial de decisões,
despachos e demais medidas tomadas pela autoridade administrativa durante essa fase que
prejudiquem direitos materiais ou processuais autónomos quer dos sujeitos processuais quer de
terceiros (artigo 55.º, n.º 1, do RGCO).

9Seguindo o exemplo do sistema alemão, apesar de nos encontrarmos perante a impugnação de


uma decisão tomada por uma autoridade administrativa e do disposto no artigo 212.º, n.º 3, da
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Os termos da impugnação judicial encontram-se regulados nos artigos

59.º e seg. do RGCO, determinando o artigo 41.º do mesmo diploma que o direito

subsidiário é constituído pelas normas que regulam o processo criminal.

Apesar de, na fase jurisdicional, não se colocarem dúvidas sobre a

plenitude da subsidiariedade do direito processual penal, contrariamente ao que

sucede na fase administrativa, em que essa subsidiariedade é disputada entre

aquele ramo do direito processual e os princípios e regras do procedimento


10
administrativo , a natureza da intervenção judicial nestes processos não deixa

de suscitar algumas discussões na doutrina, com reflexos práticos na integração

do RGCO, designadamente sobre se estaremos perante uma espécie de

julgamento em 1.ª instância ou de um recurso.

Constituição, optou-se por conferir competência aos tribunais comuns para decidir estas
impugnações, em detrimento dos tribunais administrativos, opção à qual não terão sido
completamente alheias as insuficiências da rede dos tribunais administrativos para dar resposta a
novas competências (Vide FREITAS DO AMARAL e MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Grandes Linhas da
Reforma do Contencioso Administrativo, Almedina, 2002, pág. 24).
O Tribunal Constitucional pronunciou-se no Acórdão n.º 522/08, de 29-10-2008, acessível em
www.tribunalconstitucional.pt, sobre a constitucionalidade desta solução, tendo proferido um juízo
de não inconstitucionalidade, com o fundamento de que a Constituição não estabelece uma
reserva absoluta, quer no sentido de exclusiva, quer no sentido de excludente, de atribuição à
jurisdição administrativa da competência para o julgamento de litígios emergentes das relações
administrativas e fiscais, sendo constitucionalmente admissíveis desvios num sentido ou noutro
desde que materialmente fundados e insuscetíveis de descaraterizar o núcleo essencial de cada
uma das jurisdições. Relativamente à matéria processual contraordenacional, considerou-se que,
estando ela, pelo menos na fase judicial, gizada à imagem do processo penal, a atribuição da
competência aos tribunais comuns para conhecer da impugnação da decisão sancionatória
proferida pela autoridade administrativa não desfigurava o figurino constitucional dos tribunais em
jogo.
Constituem exceções, as impugnações das decisões sancionatórias em processo de
contraordenação da Autoridade Tributária que são apreciadas pelos tribunais tributários de 1.ª
instância, salvo os casos em que estas devam ser julgadas pelos tribunais comuns por indicação da
lei (artigos 53.º e 80.º e seg. do RGIT), e as proferidas em matéria de contraordenações urbanísticas
que são julgadas pelos tribunais administrativos (artigo 4.º, n.º 1, l), do Decreto-Lei n.º 214-G/2015,
de 2 de outubro).
Sobre esta questão, MIGUEL PRATA ROQUE, O direito sancionatório público enquanto bissetriz
(imperfeita) entre o direito penal e o direito administrativo – a pretexto de alguma jurisprudência
constitucional, em Revista de Concorrência e Regulação, Ano IV, número 14/15, abril-setembro 2013,
pág. 137-141.

10Sobre esta disputa, MIGUEL PRATA ROQUE, ob. cit., pág. 124-134, CARLOS ADÉRITO TEIXEIRA,
Questões processuais da responsabilidade das pessoas coletivas no domínio do direito sancionatório,
em “Direito Sancionatório das Autoridades Reguladoras”, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pág.
115-116, e o Parecer deste Conselho Consultivo n.º 29/2017, de 9-11-2017.
PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA 7
Conselho Consultivo

Se é habitual ouvirmos referências à natureza híbrida da fase judicial,

porquanto mistura elementos próprios de um recurso com os de um julgamento

penal em 1.ª instância, esta segunda perspetiva parece muito mais próxima do

regime legal da segunda fase do processo contraordenacional 11.

Como bem analisou o recente Acórdão de Fixação de Jurisprudência do

Supremo Tribunal de Justiça, proferido por unanimidade em 23 de maio de 2019


12
:

Em sede de 1.ª instância, o Tribunal conhece de toda a questão em discussão

— “o objeto da sua apreciação não é a decisão administrativa, mas a questão sobre

a qual incidiu a decisão administrativa”.

O âmbito de cognição deste tribunal é bastante amplo: não se limita a um

controlo da legalidade do ato, mas procede a uma apreciação de todo o ato

administrativo, uma “apreciação da veracidade e exatidão dos factos (e da sua

qualificação)”, e também uma apreciação da medida da coima aplicada,

considerando-se que o Tribunal tem “poderes de jurisdição plena”. Isto é, “são

admissíveis, na fase judicial do processo contraordenacional, todos os tipos de

pronúncia que incidem sobre o mérito da causa, designadamente a manutenção da

decisão administrativa, a sua revogação in totum, por via da absolvição, e a sua

modificação, quer da qualificação jurídica quer da sanção”. Não se trata, pois, de um

mero controlo da legalidade, mas de um pleno poder de conhecimento do mérito da

questão, de uma plena jurisdição à semelhança do que ocorre atualmente nos

tribunais administrativos.

11 JOSÉ LOBO MOUTINHO, Direito das Contraordenações, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008,
pág. 38, AUGUSTO SILVA DIAS, Direito das Contraordenações, Almedina, Coimbra, 2019, pág. 239,
NUNO BRANDÃO, O controlo judicial da decisão administrativa condenatória manifestamente
infundada no processo contraordenacional, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra, 94/1 (2018), pág. 32, MANUEL SIMAS SANTOS, Recursos e contra-ordenações: a propósito da
impugnação judicial, em “Jornadas de direito das contraordenações”, Universidade Católica Editora,
Porto, 2019, pág. 69-70, e J.P.F. CARDOSO DA COSTA, O recurso para os Tribunais Judiciais da
Aplicação das Coimas pelas Autoridades Administrativas, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 366, (abril-junho
de 1992), pág. 36 e seg.

12Proferido no processo n.º 13/17.3T8PTB.G1-A.S1, relatado por HELENA MONIZ, acessível em


www.dgsi.pt.
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Conselho Consultivo

Daqui decorre que a impugnação da decisão da autoridade administrativa

não é um verdadeiro recurso. A causa é retirada do âmbito administrativo e entregue

a um órgão independente e imparcial, o tribunal. E o tribunal irá decidir do mérito da

causa como se fosse a primeira vez — o julgador não estará vinculado, nem limitado

pelas questões abordadas na decisão impugnada, nem estará limitado pelas questões

que tenham sido suscitadas aquando da impugnação, estando apenas limitado pelo

objeto do processo definido pela decisão administrativa.

...

Decidindo o tribunal de 1.ª instância o mérito da causa como se fosse a

primeira vez, os seus poderes de cognição são plenos, abarcando as questões de facto

e de direito, e com possibilidade de determinação do âmbito de prova a produzir (cf.

art. 72.º, n.º 2, do RGCO). Não se limita a analisar a prova trazida pela Administração e

eventualmente a proceder a uma renovação para assim evitar o reenvio do processo

para a autoridade administrativa, valorando ainda a prova que o impugnante,

eventualmente, tenha indicado. O que nos permite afastar o entendimento desta fase

de processo como uma fase de recurso. Além de que, o Ministério Público pode

“promover a prova de todos os factos que considera relevantes para a decisão” (art.º

72.º, n.º 1, do RGCO).

Assim sendo, a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa

tem um âmbito alargado a toda a situação sob escrutínio. Não pode, pois, ser

classificada como recurso, uma vez que o tribunal de 1.ª instância tem poderes de

cognição alargados ao conhecimento do mérito da questão, podendo conhecer de

todas as questões que pudesse conhecer.

O Tribunal decidirá ex novo com respeito pelo princípio da proibição

da reformatio in pejus, consagrado no art.º 72.º-A, do RGCO — isto é, ainda que em

1.ª instância o Tribunal qualifique, por exemplo, a infração praticada como sendo

uma contraordenação mais grave do que a considerada na decisão da autoridade

administrativa, não poderá, apesar de uma nova qualificação jurídica, agravar a

coima aplicada (proibição extensível aos não recorrentes —“não pode a sanção
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aplicada ser modificada em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não

recorrentes”, art.º 72.º-A, do RGCO).

E assim também deve ser entendido nos casos em que a proibição

da reformatio in pejus, consagrada no art.º 72.º-A, do RGCO, esteja afastada. Aliás,

esta proibição foi introduzida em “ordem ao reforço dos direitos e garantias dos

arguidos”, pelo que qualquer regime contraordenacional que, contrariamente ao

disposto no art.º 72.º-A, do RGCO, determine a não aplicabilidade da proibição

da reformatio in pejus poderá gerar um tratamento distinto entre arguidos julgados

pela prática de diferentes contraordenações a suscitar questões de conformidade

constitucional “atenta a limitação excessiva do direito ao recurso, garantia de defesa

aplicável ao processo contraordenacional por força do n.º 10 do art.º 32.º da CRP”.

De tudo podemos concluir que a fase judicial não constitui uma reapreciação

da questão, mas uma primeira apreciação judicial da questão contraordenacional

sem limite dos poderes de cognição do juiz, que abarcam todo o objeto do processo.

A impugnação judicial não constitui “um recurso em sentido próprio, mas de uma

fase judicial do processo de contraordenação em que o tribunal julga do objeto de

uma acusação consistente na decisão administrativa de aplicação da sanção na fase

administrativa, com ampla discussão e julgamento da matéria de facto e de direito e

de decisão final”.

Também o Tribunal Constitucional, na fundamentação, do Acórdão n.º

373/2015, proferido em 14 de julho de 2015 13, constatou o seguinte:

A impugnação dá lugar, não a um recurso propriamente dito, mas a um novo

processo de natureza jurisdicional, em que o tribunal não se limita a apreciar a

decisão, mas todo o processado nos autos, podendo ser produzida prova neste

processo judicial, quer pela autoridade administrativa recorrida, quer pelo arguido,

sendo que o tribunal valora em conjunto toda a prova produzida nos autos, quer a já

produzida na fase administrativa, quer a realizada na fase jurisdicional,

particularmente a que venha a ter lugar em audiência.

13 Acessível em www.tribunalconstitucional.pt.
PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA 10
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Ou seja, o tribunal, ao apreciar a impugnação da decisão administrativa, não

está vinculado à qualificação efetuada pela entidade administrativa que proferiu a

decisão, apreciando quer os factos (com base nas provas que são apresentadas no

âmbito do recurso), quer a matéria de direito (qualificação jurídica dos factos e

sanções aplicadas). Quando o processo é enviado para o Tribunal, na sequência da

impugnação do arguido, tudo se passa, assim, como se tivesse lugar um novo

julgamento, em que a decisão passa a ser tida como acusação e, como tal, passa a

delimitar o objeto do processo.

Nesta linha, pode, pois, dizer-se que a impugnação judicial da decisão

sancionatória da autoridade administrativa é dotada de regras próprias que a

aproximam mais do quadro legal de um julgamento penal em 1.ª instância, em

que a instrução foi realizada pela autoridade administrativa, do que de um

recurso para um tribunal de 2.ª instância, sem que esta constatação ignore a

relevância e a influência do conteúdo da decisão impugnada, a qual passa a valer

como uma proposta decisória.

III - Uma fase intermédia

Apresentada a impugnação judicial, nos termos do artigo 59.º, n.º 3, do

RGCO, junto da entidade administrativa sancionadora, dispõe o artigo 62.º deste

diploma, numa redação muito próxima do texto original do artigo 69.º da OWiG

alemã de 1968.

14
1 – Recebido o recurso, e no prazo de cinco dias , deve a autoridade

administrativa enviar os autos ao Ministério Público, que os tornará presentes ao juiz,

valendo este ato como acusação.

2 – Até ao envio dos autos, pode a autoridade administrativa revogar a

decisão de aplicação da coima.

14 Na redação inicial este prazo era de 48 horas.


PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA 11
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Está aqui desenhada uma antecâmara da segunda fase do processo

contraordenacional, situada entre a fase administrativa e a fase judicial, da qual

poderá resultar a desnecessidade da existência de um controle jurisdicional.

Na OWiG alemã de 1968 , a qual serviu de modelo ao nosso RGCO, esta

antecâmara sofreu obras de remodelação, primeiro pela OWiGStVGÄnd de 1986,


15
e posteriormente pela OWigÄnd de 1998 . Estas modificações tiveram como

objetivo permitir o saneamento do processo contraordenacional previamente à

sua admissão a um julgamento jurisdicional, o que terá sido bem sucedido, uma

vez que diminuiu consideravelmente o julgamento de contraordenações nos

tribunais alemães (menos 150.000 processos) 16.

15 É a seguinte a atual redação do § 69 da OWiG, sendo da nossa responsabilidade a sua tradução:


(1) Se a impugnação não for apresentada em tempo útil, na forma prescrita ou sofrendo de qualquer
invalidade, a autoridade administrativa rejeitá-la-á por inadmissibilidade. O pedido de impugnação
judicial deduzido nos termos do § 62 pode ser apresentado contra a decisão administrativa no prazo de
duas semanas após a notificação.
(2) Se a impugnação for admissível, a autoridade administrativa deve avaliar se mantém ou retira a
decisão administrativa que aplicou a coima. Para esse efeito pode:
1. Ordenar a realização de novas diligências investigatórias ou efetuá-las ela mesmo,
2. Tomar declarações às entidades ou organismos sobre constatações, exames ou conclusões que
tenham produzido na instrução dos autos.
A autoridade administrativa pode igualmente conceder ao arguido a oportunidade de indicar, num
determinado prazo, se e quais os factos e elementos de prova que tenciona apresentar, em sua defesa,
no âmbito do processo judicial; ao fazê-lo deve informar o arguido de que, nos termos da lei, é livre de
se pronunciar sobre os termos da acusação ou de não prestar depoimento sobre o mérito da mesma.
(3) A autoridade administrativa envia os processos ao Ministério Público competente do Tribunal Local,
se não retirar a decisão administrativa que aplicou a coima ou não proceder em conformidade com o
primeiro período da alínea 1; dá nota das razões desta opção nos processos, na medida em que tal se
justifique. A decisão sobre um pedido de exame dos processos e a efetivação desse exame (alínea 1 do §
49.º, da presente lei, e § 147 do Código de Processo Penal) deve ter lugar antes do envio dos processos.
(4) Após a receção dos processos pelo Ministério Público, as funções persecutórias da autoridade
administrativa são transferidas para aquele. O Ministério Público submeterá os processos ao Juiz do
Tribunal Local, se não decidir arquivar o processo ou proceder à realização de novas investigações.
(5) Se os factos não estiverem suficientemente esclarecidos, o Juiz do Tribunal Local pode, com o
consentimento do Ministério Público, remeter o processo à autoridade administrativa, indicando os
motivos desta decisão; após receção dos autos, a autoridade administrativa é novamente responsável
pela ação contraordenacional e pela aplicação da sanção. Se o Juiz do Tribunal Local entender que não
há indícios suficientes da prática de uma contraordenação, pode determinar a devolução do processo à
autoridade administrativa, mediante decisão irrecorrível.
Encontra-se uma descrição detalhada desta fase intermédia na OWiG alemã em ALEXANDRA
VILELA, O direito de mera ordenação social. Entre a ideia de “recorrência” e a de “erosão”, do direito
penal clássico, Coimbra Editora, Coimbra, 2013 pág. 444-454.

16 Dados indicados por ALEXANDRA VILELA, ob. cit., pág. 445.


PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA 12
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Como resultado destas alterações, podemos constatar que foram

conferidos poderes à autoridade administrativa para controlar o cumprimento

das formalidades legais pelo requerimento de impugnação judicial da decisão

administrativa sancionatória (alínea 1 do § 69), sendo esse despacho

judicialmente recorrível através de uma Anfechtung, além de manter o poder-

dever de reapreciação da decisão impugnada, podendo revogá-la (alínea 3 do §

69) . Nesta atividade de reapreciação, a autoridade administrativa pode socorrer-

se da realização de novas diligências probatórias ou de pedidos de

esclarecimento relativos a diligências já efetuadas (alínea 2 do § 69), sendo dada

oportunidade ao arguido de se defender (2.º período da alínea 2 do § 69).

Concluindo a autoridade administrativa que a sua anterior decisão sancionatória

não pode manter-se, ou porque a contraordenação não se verificou, ou porque

a prova recolhida sobre a sua prática é manifestamente insuficiente, deve dar

sem efeito a sua anterior decisão, determinando o arquivamento do processo.

Caso entenda que não há razões que justifiquem a revogação da decisão

sancionatória a autoridade administrativa deve remeter os autos ao Ministério

Público, acompanhados de uma decisão justificativa desta opção, quando uma

explicação se revelar necessária, passando o Ministério Público a deter os

poderes persecutórios que anteriormente couberam à autoridade administrativa

(alínea 3 do § 69).

Examinados os autos que lhe foram remetidos, o Ministério Público pode

proceder à realização de novos atos de instrução, caso considere que não se

encontra suficientemente esclarecida a prática da contraordenação pela qual o

arguido se mostra sancionado (alínea 4 do § 69); pode determinar o

arquivamento dos autos caso considere que não foi cometida a contraordenação

pela qual o arguido foi sancionado (alínea 4 do § 69); ou pode remeter os autos

ao Tribunal local para que tenha lugar uma apreciação judicial do processo

contraordenacional, dando seguimento à impugnação da decisão administrativa

sancionatória deduzida pelo arguido (alínea 4 do § 69). Ao fazer esta remessa, o

Ministério Público pode fazê-la acompanhar de um parecer sobre a


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admissibilidade da impugnação ou da sugestão dos autos serem devolvidos à

autoridade administrativa para aprofundamento das diligências instrutórias.

Ainda no âmbito desta fase intermédia, com finalidades saneadoras, o

Tribunal Local além de poder rejeitar a impugnação por incumprimento das

formalidades legais para a sua dedução (alínea 1 do § 70); pode remeter os autos

à autoridade administrativa para completar a sua instrução, obtido o

consentimento do Ministério Público (alínea 5 do § 69); pode conhecer de

qualquer vício formal da decisão sancionatória ou do processo

contraordenacional; pode devolver o processo à entidade administrativa para

arquivamento, por não haver indícios suficientes da prática da contraordenação

pela qual o arguido foi sancionado (alínea 5 do § 69); ou pode dar início à fase do

julgamento do arguido pela prática da contraordenação pela qual foi sancionado

pela autoridade administrativa (§ 71 e seg.), abrindo-se a fase judicial do processo

contraordenacional.

Nos casos em que o processo é devolvido à autoridade administrativa,

para esclarecimento, renascem nela todas as competências que possuía

previamente ao envio dos autos ao Ministério Público, podendo repetir a decisão,

proferir nova decisão com diferente conteúdo ou arquivar o processo, retirando

a decisão proferida (alínea 5 do § 69).

Com este novo e complexo figurino, a OWiG alemã conferiu uma maior

complexidade a esta fase intermédia, tendo em vista não só o

descongestionamento dos tribunais, através da realização de uma triagem

multinível rigorosa, mas também que os processos que acedem à fase judicial se

encontrem devidamente instruídos e limpos de quaisquer vícios, encontrando-se

o juiz na posse de todos os elementos necessários à prolação de uma decisão

informada 17.

17Sobre as vantagens da existência de uma fase intermédia dotada desta complexidade,


ALEXANDRA VILELA, ob. cit., pág. 454-456.
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Apesar das vantagens acima enunciadas, o legislador português, pese

embora ter procedido a várias reformas do RGCO posteriormente à reconstrução

da fase intermédia do processo contraordenacional na Alemanha, promovida,

sobretudo, pela OWiGStVGÄnd de 1986, manteve esta fase com a configuração

inicial, a qual foi decalcada da versão primitiva da OWiG de 1968. Ter-se-á

entendido que as propaladas vantagens não justificavam a introdução de uma

fase demasiado complexa num processo que se deveria caraterizar pela sua

simplicidade.

Assim, o artigo 62.º do RGCO limita-se, ainda hoje, a dizer que a

autoridade administrativa, após ser recebida a impugnação judicial, pode revogar

a decisão impugnada, ou, se assim não o entender, enviar os autos ao Ministério

Público, em cinco dias, o qual, por sua vez, os remete ao juiz, valendo este ato

como acusação.

Prevê-se, em primeiro lugar, a possibilidade da autoridade

administrativa, face aos argumentos esgrimidos pelo arguido nas alegações e

conclusões da impugnação judicial que lhe é apresentada, revogar a decisão

sancionatória (artigo 62.º, n.º 2, do RGCO). Recebida a impugnação da decisão


18
sancionatória proferida pela autoridade administrativa, esta tem o dever de

analisar os argumentos aduzidos nas respetivas alegações e conclusões,

reapreciando a sua decisão, podendo, se assim o entender, revogá-la, no prazo

máximo de 5 dias (dentro do prazo que dispõe para a enviar ao Ministério

Público).

Em primeiro lugar, constata-se que a autoridade administrativa não tem

poderes para verificar se a impugnação apresentada cumpre os requisitos legais.

E, conforme revela a curta duração do prazo para a autoridade

administrativa reexaminar a decisão sancionatória, contrariamente ao que prevê

18PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações à luz da


Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica
Editora, Lisboa, 2011, pág. 260, anotação 14.
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a atual redação da OWiG alemã, resultante da reforma legislativa de 1986,

também não lhe é possível realizar novas diligências de prova, com vista a tomar

posição sobre a impugnação deduzida pelo arguido 19.

A autoridade administrativa já poderá, todavia, revogar a decisão

sancionatória. A revogação deve basear-se no reconhecimento da existência de

uma ilegalidade processual (v.g. a não audição do arguido) ou substantiva (v.g.


20
aplicação de uma sanção acessória não prevista na lei) , pelo que, apesar da

terminologia utilizada, estamos perante uma situação que se equipara à

anulação de um ato administrativo com efeitos retroativos (artigo 163, n.º 2, do

C.P.A.), o que permitirá, para além da possibilidade de uma revogação parcial (v.g.

revogação limitada à aplicação da sanção acessória) 21, o suprimento, se possível,

da ilegalidade existente, seguida de prolação de nova decisão pela autoridade

administrativa 22.

19 PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, ob. cit., pág. 260, anotação 14.

20ANTÓNIO DE OLIVEIRA MENDES e JOSÉ DOS SANTOS CABRAL, Notas ao Regime Geral das Contra-
Ordenações e Coimas, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, pág. 222, MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES
DE SOUSA, Contra-ordenações. Anotações ao Regime Geral, 6.ª ed., Áreas Editora, Lisboa, 2011, pág.
490, ALEXANDRA VILELA, ob. cit., pág. 458.
No sentido de que a revogação da decisão sancionatória poderá ter outros fundamentos,
AUGUSTO SILVA DIAS, ob. cit., pág. 243.
PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, ob. cit., pág. 260, anotação 16, apesar de referir que a
revogação da decisão pela autoridade só pode basear-se em razões de legalidade, exemplifica como
uma das situações em que é possível a revogação, a necessidade de um esclarecimento mais sólido
dos factos.

21BEÇA PEREIRA, Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 10-ª ed., Almedina, Coimbra, 2014,
pág. 178., e PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, ob. cit., pág. 260, anotação 15.

22ANTÓNIO DE OLIVEIRA MENDES e JOSÉ DOS SANTOS CABRAL, ob. cit., pág. 222, MANUEL SIMAS
SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, ob. cit., pág. 490, e ALEXANDRA VILELA, ob. cit., pág. 458.
PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, ob. cit., pág. 260, anotação 17, admitindo também os efeitos
retroativos da revogação da decisão sancionatória, invocando o disposto no anterior CPA, aponta
como limite da nova decisão que venha a ser proferida não poder ser mais gravosa para o arguido
que a decisão revogada, com fundamento na proibição da reformatio in pejus.
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Em alternativa à revogação da decisão, poderá a autoridade

administrativa proferir despacho de sustentação, em que contrarie as razões

apresentadas pelo arguido nas suas alegações 23.

Não reconhecendo a autoridade administrativa que haja motivos para

revogar a decisão sancionatória, deve enviar os autos do processo

contraordenacional ao Ministério Público, no prazo de cinco dias após ter sido

deduzida a impugnação judicial (artigo 62.º, n.º 1, do RGCO) 24.

Dispõe o analisado artigo 62.º, n.º 1, do RGCO, que, enviados os autos do

processo contraordenacional ao Ministério Público, na sequência da impugnação

da decisão administrativa sancionatória pelo arguido, aquele Magistrado os

tornará presentes ao juiz, valendo este ato como acusação 25.

Conforme se refere expressamente na alínea 4, do artigo 69.º da OWig

alemã, com a receção dos autos pelo Ministério Público as funções persecutórias

da autoridade administrativa transferem-se para aquela magistratura.

Não se verifica uma conversão da decisão sancionatória impugnada


26
numa acusação , assim como não é o despacho do Ministério Público que

determina a apresentação dos autos ao juiz (o que corresponde à sua entrada no

tribunal, para distribuição a um juiz) que vale como acusação, o qual não define

23PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, ob. cit., pág. 261, anotação 20, e JOÃO SOARES RIBEIRO, Contra-
ordenações laborais, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2003, pág. 203-204.

24PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, ob. cit., pág. 259, anotação 13, considera a falta de envio do
processo ao Ministério Público uma nulidade insanável, nos termos do artigo 119.º, b), do Código
de Processo Penal, o que determinará o arquivamento do processo contraordenacional, seguindo
a posição dos Acórdãos do S.T.A. de 6-3-1996 e de 31-1-2001, acessíveis em www.dgsi.pt.

25 Esta expressão, como faz notar LEONEL DANTAS, O Ministério Público no processo das contra-
ordenações, em Questões Laborais, Ano VIII (2001), n.º 17, pág. 27, faz lembrar o disposto,
relativamente às transgressões, no § único, do artigo 2.º, do Decreto-lei n.º 35007, de 13 de outubro
de 1945, segundo o qual a remessa dos autos de notícia ao tribunal equivale para todos os efeitos à
acusação proferida em processo penal, relembrando-se também que o próprio Decreto-Lei n.º 387-
E/87, de 29 de dezembro, referente ao processamento das contravenções e transgressões, no seu
artigo 1.º, n.º 1, alínea a), estabeleceu igual equivalência.
26 VITOR SEQUINHO DOS SANTOS, em O dever de fundamentação da decisão administrativa

condenatória em processo contraordenacional, em “Contraordenações laborais”, 2.ª ed., e-book., CEJ,


acessível em www.cej.mj.pt, pág. 108.
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minimamente o objeto do processo. O que corresponde a uma acusação é o ato

de apresentação dos autos do processo contraordenacional ao juiz, não existindo

no processo contraordenacional uma acusação em sentido formal, enquanto

indicação precisa pelo Ministério Público da factualidade que conforma o objeto

do processo e das infrações que são imputadas ao arguido, tal como exige o

Código de Processo Penal no artigo 283.º, n.º 3.

A apresentação do processo contraordenacional no Tribunal, para ser

distribuído a um juiz, revela a assunção pelo Ministério Público da função

estadual persecutória inerente àquele processo, em substituição da autoridade

administrativa que o investigou e decidiu, delimitando a decisão impugnada, ou

melhor dizendo, a questão contraordenacional sobre a qual incidiu a decisão

impugnada 27, o tema do julgamento a efetuar pelo tribunal 28.

A apresentação do processo contraordenacional não se traduz, pois, na

dedução de uma acusação, mas tem os mesmos efeitos desse ato em processo

penal – manifesta a pretensão do Ministério Público que o arguido seja

submetido a julgamento e delimita a temática do julgamento.

É apenas este o significado e o alcance da expressão contida no artigo

62.º do RGCO que a apresentação dos autos do processo contraordenacional

pelo Ministério Público no Tribunal vale como acusação.

A apresentação dos autos do processo contraordenacional a um juiz é

apenas uma das várias opções que o Ministério Público dispõe na atual redação

da OWiG alemã, a qual prevê que este magistrado também possa proceder à

realização de atos de instrução ou determinar o arquivamento dos autos.

27 MARTA BORGES CAMPOS, ob. cit. pág. 390, e NUNO BRANDÃO, ob. cit., pág. 322.

28 Como referem LOBO MOUTINHO e PEDRO GARCIA MARQUES, Lei da Concorrência: Comentário
Conimbricense, Almedina, Coimbra, 2013, pág. 849, anot. 5 ao artigo 88.º, a totalidade dos autos do
processo contraordenacional não é idónea a desempenhar a função delimitadora do objeto do
julgamento pelo tribunal por três razões: porque são um conjunto inorgânico inapto para definir o
objeto do processo; porque pôr-se-iam em causa os direitos de defesa do arguido, que não saberia
ao certo do que se defender; e porque desconsiderar-se-ia qual é a decisão da autoridade
administrativa que é o objeto da impugnação judicial.
No mesmo sentido, AUGUSTO SILVA DIAS, ob. cit., pág. 239, nota 556.
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Será no próximo capítulo que iremos verificar se estas são também

alternativas viáveis no regime contraordenacional português, respondendo à

consulta efetuada.

Mas, nesta fase intermédia de saneamento do processo, o juiz também

desempenha um papel necessário, não se encontrando ainda a exercer os seus

poderes de julgamento da causa.

Assim, nos termos do artigo 63.º do RGCO compete, desde logo, ao juiz

rejeitar a impugnação deduzida pelo arguido quando esta tenha sido deduzida

fora do prazo ou sem respeito pelas exigências de forma.

Mas, de igual forma, tem sido reconhecida, como integrando ainda a

antecâmara da fase judicial do processo contraordenacional, a possibilidade de

o juiz, considerando a decisão impugnada inepta ou detetando outros vícios do

conhecimento oficiosos no processo contraordenacional, determinar a remessa

dos autos à autoridade administrativa para que esta sane esses vícios, aplicando-

se subsidiariamente, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 311.º

do Código de Processo Penal 29.

Comparando o regime no RGCO desta fase intermédia com o que vigora

na Alemanha, é flagrante a maior rigidez e a minimização do leque dos poderes

de intervenção dos diferentes intervenientes no processo contraordenacional

em Portugal.

Há quem advogue, de iure condendo, a transposição do complexo de

regras da OWiG que atualmente regem a fase intermédia do processo

contraordenacional alemão para o RGCO, alegando as seguintes vantagens:

29 Neste sentido, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, ob. cit., pág. 263, anotação 5, NUNO BRANDÃO,
ob. cit., pág. 325-332, e os seguintes acórdãos:
- da Relação de Lisboa, de 19-3-1996, acessível em www.colectaneadejurisprudencia.com.
- do S.T.J., de 10-1-2007, acessível em www.dgsi.pt.
- da Relação de Évora, de 28-10-2008, acessível em www.dgsi.pt.
- da Relação de Évora, de 3-12-2009, acessível em www.dgsi.pt.
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A montante...: a) impele a autoridade administrativa à elaboração de

decisões condenatórias bem sustentadas e fundamentadas, na medida em que ela

sabe que todo o seu trabalho poderá vir a ser sindicado pelo MP e pelo tribunal,

correndo o risco de vir a ser obrigada a repetir alguns atos; b) obrigaria à elaboração

de impugnações judiciais sólidas, devidamente sustentadas sob o ponto de vista

jurídico, diminuindo, desse modo, a tentação de as apresentar com fins meramente

dilatórios; c) sendo as decisões condenatórias mais perfeitas, os recursos melhor

sustentados e tendo a autoridade administrativa ainda o poder de rever a sua decisão

mesmo depois da entrada do recurso, o número de impugnações judiciais que

chegaria a tribunal diminuiria, assim contribuindo para o descongestionamento dos

tribunais.

A jusante...: a) a atividade desenvolvida depois da entrada do recurso, quer

pela autoridade administrativa, quer pelo MP, permite que o processo, quando chegar

ao tribunal, tenha algumas questões diluídas, de forma a que o juiz esteja em

condições de decidir; b) na medida em que o processo intermédio permite a recolha

de novos meios de prova, uma vez chegada a hora da audiência, o juiz tem

praticamente toda a prova produzida ao seu dispor, encontrando-se em condições de

decidir 30.

No entanto, também existem razões válidas para rejeitar esta proposta

de transposição do direito contraordenacional alemão, a qual iria seguramente

aumentar a esperança média de vida dos processos contraordenacionais,

provocando algum entorpecimento na sua tramitação, em resultado da

introdução de um tempo de pausa intermédio mais prolongado.

Em alternativa, propõe AUGUSTO SILVA DIAS 31:

Parece-nos adequada e pertinente a intervenção saneadora da autoridade

administrativa, do MP e dos tribunais, mas cremos que a introdução formal de uma

30 ALEXANDRA VILELA, A fase jurisdicional do processo contraordenacional, em Anatomia do Crime,


n.º 5, pág. 136-137.

31 Ob. cit., pág. 243-244.


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fase intermédia viria aumentar a complexidade e consequentemente a morosidade

do processo contraordenacional. Os benefícios apontados a esta solução,

nomeadamente a dissuasão do uso formal e materialmente infundado do mecanismo

de impugnação e o desanuviamento dos tribunais, podem ser conseguidos com

melhores resultados por três vias: um entendimento correto dos poderes de triagem

da impugnação conferidos pela lei à autoridade administrativa, ao MP e ao tribunal;

um reforço dos mecanismos de triagem da impugnação judicial em sede de revisão

do RGCO, consagrando nomeadamente a possibilidade de o juiz devolver o processo

autoridade administrativa para ser corrigido e melhor documentado, a previsão da

reformatio in pejus no domínio das contraordenações “tradicionais” ou de pequena

gravidade.

Como referimos no início deste parecer, para além do regime geral das

contraordenações constante do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, o

legislador tem vindo a criar inúmeros regimes gerais sectoriais que estabelecem

regras diferenciadas, quer no domínio do direito substantivo, quer no do direito

processual, aplicáveis ao conjunto de contraordenações previstas no âmbito de

uma determinada matéria.

Da pesquisa efetuada pelos diversos regimes sectoriais, relativamente à

intervenção do Ministério Público na fase intermédia do processo

contraordenacional, não se detetou qualquer distanciamento da solução contida

no RGCO, limitando-se alguns desses regimes a dilatar o prazo para a autoridade


32
administrativa remeter o processo contraordenacional ao Ministério Público e

32Quinze dias úteis nos processos das contraordenações previstas no Regime Geral das Instituições
de Crédito (artigo 228.º, n.º 1), e na Lei da Atividade Seguradora (artigo 28.º, n.º 1), vinte dias úteis
nos processos das contraordenações previstas no Código dos Valores Mobiliários (artigo 416.º, n.º
1) e das contraordenações ambientais (artigo 52.º, n.º 1, da Lei-Quadro das Contraordenações
Ambientais), e trinta dias úteis nos processos contraordenacionais em matéria de concorrência
(artigo 87.º, n.º 1, da Lei da Concorrência), e no Regime Sancionatório do Setor Energético (artigo
49.º, n.º 2).
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a exigir que a desistência da “acusação” tenha também a concordância da

autoridade administrativa sancionadora 33.

Traçado o panorama em que se encontra a fase intermédia do processo

contraordenacional, chega o momento de procurarmos dar uma resposta à

pergunta formulada nesta consulta – quais são os poderes processuais do

Ministério Público, no âmbito do recurso de impugnação judicial da decisão de

autoridade administrativa, nesta fase intermédia ?

IV – Os poderes do Ministério Público na fase intermédia

A redação do n.º 1, do artigo 62.º, do RGCO, enfatizada pelo termo “deve”,

sugere que a única opção do Ministério Público, após a receção dos autos do

processo de contraordenação que lhe são enviados pela autoridade

administrativa, após aí ter proferido decisão sancionatória, sem que a tenha

revogado, é a de os apresentar a um juiz, equivalendo essa apresentação à

dedução de uma acusação, nos termos já acima analisados.

No entanto, é unânime a opinião de que o Ministério Público não pode,

nesta situação, ser um mero núncio ou um serviço de distribuição postal que se

limita a proceder à entrega em Tribunal de um processo que lhe foi remetido por

uma autoridade administrativa para que se proceda à tramitação da fase judicial.

Divergem já as opiniões quanto às alternativas que se oferecem ao

Ministério Público para além daquela que o artigo 62.º, n.º 1, do RGCO,

equivocamente, refere como um dever.

34
ANTÓNIO DE OLIVEIRA MENDES e JOSÉ DOS SANTOS CABRAL ,

entendem que o Ministério Público deve proceder ao reexame da fase

administrativa e pronunciar-se sobre questões incidentais no mesmo suscitadas,

33Artigos 231.º, n.º 2, do RGIC, 52.º, n.º 7, da Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais, 31.º, n.º
2, da Lei da Atividade Seguradora, 416.º, n.º 7, do Código dos Valores Mobiliários, 87.º, n.º 6, da Lei
da Concorrência, e 49.º, n.º 6, do Regime Sancionatório do Setor Energético.
34 Ob. cit., pág. 221-222.
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sendo-lhe, no entanto, vedada a possibilidade de proferir qualquer decisão que

subtraia o conhecimento judicial da impugnação deduzida. Só posteriormente à

apresentação ao juiz dos autos do processo contraordenacional, poderia, então,

o Ministério Público, retirar “a acusação”, com a concordância do arguido, nos

termos previstos no artigo 65.º-A, do RGCO.

Nesta perspetiva, a atividade do Ministério Público, nesta fase

intermédia, resumir-se-ia à possibilidade de emissão de um parecer sobre as

questões relativas à admissibilidade da impugnação ou à legalidade do processo

contraordenacional na sua fase administrativa.

35
A mesma ideia é sustentada por LEONES DANTAS , revendo anterior
36
opinião , por MANUEL FERREIRA ANTUNES 37 e por CARLOS ADÉRITO TEIXEIRA
38
.

BEÇA PEREIRA 39, além da emissão de parecer sobre a admissibilidade da

impugnação, sustenta que, por maioria de razão, relativamente à possibilidade

de o Ministério Público retirar “a acusação”, também pode não a deduzir,

ordenando o arquivamento do processo contraordenacional, após o receber da

autoridade administrativa, sem que seja necessário o acordo do arguido. Para se

decidir pelo arquivamento, o Ministério Público teria em consideração o critério

estabelecido pelo artigo 277.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Penal – juízo de

não cometimento do ilícito pelo arguido ou de inexistência de indícios suficientes

do seu cometimento pelo arguido - ou qualquer circunstância que justificasse tal

35 Ob. cit., pág. 29.

36 Expressa em Considerações sobre o processo das contra-ordenações: as fases de recurso e da


execução, Revista do Ministério Público, n.º 57, Janeiro-Março de 1994, pág. 74.

37 Em Contra-Ordenações e Coimas. Regime Geral, 2.ª ed., Petrony, Lisboa, pág. 395-398.

38 Ob. cit., pág. 135-137.

39 Ob. cit., pág. 177-178.


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solução, como por exemplo a aplicação de uma amnistia ou a constatação da

prescrição do ilícito contraordenacional.

40
Igual possibilidade de arquivamento admite SIMAS SANTOS ,

afastando-se de opinião contrária expressa anteriormente em obra em autoria

conjunta com JORGE LOPES DE SOUSA 41 .

42
Também AUGUSTO SILVA DIAS , com o já referido argumento de

“maioria de razão”, defende que a conversão da decisão impugnada em

“acusação” não é obrigatória, devendo antes o Ministério Público ponderar a sua

legalidade e sustentabilidade, antes de remeter ao juiz o processo

contraordenacional, podendo determinar o seu arquivamento.

43
A mesma opinião é professada por ALEXANDRA VILELA , invocando as

competências estatutárias do Ministério Público.

44
PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE , defende que, tendo o Ministério

Público o poder de retirar a acusação a todo o tempo e até à sentença em 1.ª

instância ou até ser proferido o despacho previsto no n.º 2, do artigo 64.º, do

RGCO, nos termos expressamente previstos no artigo 65.º-A, do mesmo diploma,

evitando a prática de atos processuais inúteis, pode-o exercer antes de apresentar

os autos do processo contraordenacional ao juiz, não havendo lugar à aplicação

subsidiaria do disposto no artigo 277.º do Código de Processo Penal. Na opinião

deste autor, a retirada da acusação está, contudo, sujeita à concordância do

arguido, devendo também ser auscultada a autoridade administrativa que

aplicou a sanção impugnada, embora sem caráter vinculativo.

40 Ob. cit., pág. 75.

41 Ob. cit., pág. 489-490.

42 Ob. cit., pág. 241.

43 O direito de mera ordenação social. Entre a ideia de “recorrência” e a de “erosão”, do direito penal
clássico, pág. 459-462.

44 Ob. cit., pág. 257-259.


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GERMANO MARQUES DA SILVA 45, refere que o artigo 65.º-A dispõe que o

Ministério Público pode retirar a acusação até à decisão judicial e se pode retirar a

acusação, sem necessidade de consentimento da autoridade administrativa, não se

entenderia que tivesse de formular “acusação” se com ela não concordar.

46
O Acórdão da Relação de Évora da 28 de outubro de 2008 , na sua

fundamentação, tomou posição sobre esta questão, nos seguintes termos:

Tal normativo (artigo 65.º-A, do RGCO) atribui ao MP um poder de

determinar o destino do processo já em fase judicial que, por arrastamento, significa

o “deixar cair” a decisão administrativa, sendo dispensável a intervenção do juiz.

E, nesta fase judicial – já deduzida a acusação – faz todo o sentido, em

homenagem aos direitos de defesa, que o arguido deva ser ouvido e tenha que dar o

seu assentimento à retirada da acusação.

Já assim não será na fase anterior, na fase acusatória. Aí ainda não foi

deduzida acusação, ainda não há processo judicial “contraditório” e o consentimento

do arguido não faz qualquer sentido. Não tem que ser ouvido, não tem que dar

opinião sobre a decisão de deduzir, ou não, acusação. Essa é matéria da exclusiva

competência do MP que, caso entenda conveniente, apenas deverá ouvir a entidade

administrativa.

Se o MP deve, nesta fase judicial posterior, fazer o controlo da legalidade da

decisão administrativa e se é possível à entidade administrativa revogar a sua decisão

na fase administrativa do processo contraordenacional com fundamento no mesmo

princípio da legalidade, não se vê como pode o MP demitir-se da sua autonomia e

obrigação de velar pelo controlo da legalidade na fase acusatória do mesmo processo,

ou seja, a obrigação de não deduzir a acusação com fundamento no princípio da

legalidade.

45Direito Processual Penal Português. Do procedimento (marcha do processo), vol. 3, Universidade


Católica Editora, Lisboa, 2015, pág. 413.

46Proferido no processo n.º 1441/08-1, relatado por JOÃO GOMES DE SOUSA, acessível em
www.dgsi.pt.
PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA 25
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Por outro lado não se descortina como o princípio da legalidade, na

concretização dada pelo Código de Procedimento Administrativo – plenamente

aplicável na fase administrativa aos órgãos das entidades administrativas e

plenamente vinculante da sua atuação – poderá tolher a ação do MP na fase

acusatória, cujo direito subsidiário se sedia nos artigos 277º e 283º do Código de

Processo Penal e é enformada pelos princípios processuais penais.

O único óbice substancial e substantivo a este entendimento está na

existência da impugnação judicial do arguido.

Manter-se-á um valor vinculante da decisão da entidade administrativa? O

não envio “automático” do processo ao juiz não será a negação efetiva do direito do

arguido a ver a sua impugnação apreciada, de facto e de direito, por um tribunal?

Ora, o RGCO resolve expressamente tal problema ao afirmar no artigo 65º-A

do RGCO que o MP pode “retirar” o recurso a todo o tempo e até à sentença em 1ª

instância.

A “retirada“ da acusação pelo MP corresponde, de facto e de direito, a uma

revogação da decisão da entidade administrativa. Outro não pode ser o entendimento

e outras não podem ser as consequências de tal “retirada”. A decisão da entidade

administrativa passa a ser não vinculante e não executória por via da revogação.

Se tal conduta é possível ao MP já em fase judicial – e nesta sujeita aos

requisitos de audição da entidade decisora (facultativo) e concordância do arguido

(obrigatória) - nada obsta a que, em fase anterior (acusatória) o MP não tenha os

mesmos poderes, apenas vinculado ao princípio da legalidade do ato e ao requisito

de audição (facultativo) da entidade que decidiu. Nesta fase “acusatória”, não sujeita,

em si, ao contraditório, a audição do arguido é dispensável.

Relativamente ao destino da impugnação judicial do arguido ele será o

mesmo da fase posterior: a não “acusação” e consequente arquivamento dos autos,

corresponderá à revogação da decisão da entidade administrativa e à inutilidade

superveniente da impugnação judicial.


PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA 26
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Nesta fase processual nem o arguido nem o juiz têm qualquer necessidade

de intervenção. Quer para o consentimento (ineficaz), quer para qualquer

“homologação” da decisão do MP (fase não judicial do procedimento).

Também aqui o MP é “dominus” da acusação e “garante” da legalidade, não

valendo argumentar com o princípio da legalidade para, com o único apelo a uma

leitura literal de preceitos, homologar práticas que violam … o princípio da legalidade.

Relembre-se que na atual versão da OWiG alemã, o Ministério Público

pode proceder à realização de novos atos de instrução; pode determinar o

arquivamento dos autos; ou pode remeter os autos ao juiz para julgamento da

contraordenação pela qual o arguido foi sancionado pela autoridade

administrativa.

Tendo nós concluído na primeira parte deste parecer (capítulo II) que a

fase judicial do processo contraordenacional não se traduz na apreciação de um

verdadeiro recurso de uma decisão administrativa, aproximando-se mais de uma

primeira apreciação judicial da questão contraordenacional objeto da decisão

administrativa impugnada, como se de um primeiro julgamento se tratasse, a

opção legislativa da remessa dos autos ao Ministério Público, após a dedução da

impugnação judicial, não pode deixar de ter um significado que importa

descortinar.

É impensável, desde logo, que o legislador tivesse encarado o Ministério

Público como um simples “estafeta” da autoridade administrativa, a quem foi

confiada a única missão de apresentar os autos do processo contraordenacional

em tribunal para que tivesse início a fase judicial.

Também não faz sentido que a entrega dos autos do processo

contraordenacional ao Ministério Público visasse apenas permitir o seu

conhecimento e exame por este magistrado, tendo em consideração que seria

ele a representar os interesses persecutórios estaduais na fase judicial. Esse

conhecimento e estudo do processo sempre seria possível após a sua


PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA 27
Conselho Consultivo

distribuição no tribunal, não havendo quaisquer razões para uma antecipação

desse momento.

Quanto à descortinada finalidade de permitir ao Ministério Público emitir

um parecer sobre as questões relativas à admissibilidade da impugnação ou à

legalidade do processo contraordenacional na sua fase administrativa, o que

encontraria paralelo na vista ao Ministério Público que desempenha funções no

tribunal superior, prevista no artigo 416.º do Código de Processo Penal, em fase

de recurso, ela contrariaria o figurino da fase judicial do processo

contraordenacional que, tal como se afirmou, se afasta da figura do recurso de

controle da correção da decisão recorrida e se aproxima da tramitação de um

primeiro julgamento penal. Não se olvide que a decisão sancionatória proferida

pela autoridade administrativa, ao ser apresentada pelo Ministério Público em

tribunal, em consequência da sua impugnação pelo arguido, vai desempenhar

algumas das finalidades da acusação em processo penal, correspondendo, neste

processo, as alegações e conclusões da impugnação à contestação do arguido,

pelo que, neste desenho, não há lugar para um parecer que seria emitido por

quem, com a apresentação do processo em tribunal, assume a “dedução” da

acusação.

A intervenção do Ministério Público na denominada fase intermédia do

processo contraordenacional só pode ter um significado que seja compatível com

a estrutura do processo contraordenacional, designadamente na fase judicial

subsequente, e com as funções do Ministério Público que lhe são cometidas pela

lei.

Conforme resulta da tramitação da fase judicial do processo

contraordenacional regulada no RGCO, esta tem uma estrutura acusatória,

sendo atribuída à magistratura do Ministério Público, à semelhança do que

sucede no processo penal, a representação dos interesses do Estado no

sancionamento das práticas contraordenacionais. Daí que se possa afirmar que,

tal como lhe incumbe a promoção da ação penal (artigo 4.º, d), do Estatuto do

Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto), também é


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função desta magistratura a promoção da ação contraordenacional na sua fase

judicial. E essa promoção inicia-se precisamente pela apresentação dos autos do

processo contraordenacional em juízo, a qual, nos termos do artigo 62.º, n.º 1, do

RGCO, corresponde à dedução de uma acusação em processo penal, isto é à

manifestação da pretensão que o arguido seja sujeito a julgamento.

Ora, tal como sucede no processo penal, cujas regras são aplicáveis

subsidiariamente, a decisão de promover a submissão de alguém a julgamento

deve obedecer a um juízo de estrita objetividade jurídica. O Ministério Público

como órgão autónomo da administração da justiça, encontra-se

incondicionalmente submisso aos valores da descoberta da verdade e da

realização da justiça, pelo que, interessando à comunidade de um Estado de

direito democrático, não só a punição de todos os prevaricadores, mas também

a punição só daqueles que prevaricaram, num modelo acusatório, o Ministério

Público só deve solicitar o julgamento daqueles sobre os quais recaem indícios

seguros de que cometeram um ilícito, neste caso contraordenacional. Este dever

de objetividade contribuirá, aliás, como reflexo útil, para o desejado alívio dos

tribunais judiciais.

Ponderando a estrutura acusatória da fase judicial do processo

contraordenacional, a sua manifesta proximidade com a tramitação de um

primeiro julgamento em processo penal, e a atribuição ao Ministério Público das

funções de promoção da ação contraordenacional, quer na denominada fase

intermédia, quer na subsequente fase de julgamento, a remessa dos autos ao

Ministério Público, após a impugnação da decisão sancionatória proferida pela

autoridade administrativa, nos termos do artigo 62.º, n.º 1, do RGCO, com um

valor idêntico ao de uma acusação em processo penal, só pode ter como

finalidade permitir que este Magistrado, vinculado a critérios de legalidade e

objetividade, pondere se o arguido deve ser sujeito a julgamento em processo

contraordenacional.

Atentas as caraterísticas estruturais do processo contraordenacional e a

autonomia do Ministério Público, é impensável que esta magistratura pudesse


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ter na introdução do processo contraordenacional em juízo o papel de um mero

núncio da autoridade administrativa.

A lei, ao determinar a sua intervenção nesta fase, pretendeu que o

Ministério Público examinasse o processo contraordenacional que lhe é

remetido, designadamente a decisão sancionatória proferida e a contestação

apresentada, e ponderasse, obedecendo a critérios de legalidade e objetividade,

se o arguido devia ou não ser sujeito a julgamento judicial pela prática da

contraordenação ou contraordenações que foram objeto temático do processo

que lhe foi remetido. A atribuição desta disponibilidade da promoção do

processo contraordenacional, ultrapassada a fase administrativa, ao Ministério

Público, é confirmada pelo disposto no artigo 65.º-A, do RGCO, que, mesmo após

a apresentação do processo contraordenacional ao juiz, num ato equivalente à

dedução de acusação, e até à prolação da sentença em 1.ª instância, permite a

sua retratação, facultando ao Ministério Público a retirada da “acusação”, embora

nesta fase, já sujeita à concordância do arguido, sendo a audição da entidade

administrativa facultativa e não vinculativa.

Assim, após exame dos autos do processo contraordenacional, o

Ministério Público deve apresentá-los ao tribunal competente, para serem

distribuídos a um juiz, equivalendo essa opção à dedução de uma acusação em


47
processo penal , caso entenda que existem indícios suficientes da prática da

contraordenação ou contraordenações que foram objeto daquele processo; ou

pode, pelo contrário, determinar o seu arquivamento, se tiver verificado a

existência de prova bastante de esses ilícitos não se terem verificado ou de o

arguido não os ter praticado, de ser legalmente inadmissível o respetivo

procedimento (v.g. prescrição, amnistia, imunidade, violação do caso julgado, ne

bis in idem) ou ainda de não existirem indícios suficientes da verificação da

47No despacho que determine essa apresentação o Ministério Público poderá pronunciar-se sobre
a admissibilidade da impugnação.
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atividade contraordenacional ou dos seus agentes, tal como sucede no processo

penal, por aplicação do disposto no artigo 277.º, n.º 1 e 2, do respetivo Código 48.

Quando porém se verificarem vícios sanáveis na decisão impugnada ou

no processo contraordenacional (v.g. falta ou ininteligibilidade da

fundamentação da decisão impugnada, inobservância do direito de audiência,

utilização de provas proibidas, erro na pessoa do sancionado) que nem justificam

o arquivamento do processo, nem a sua apresentação no tribunal, deve o

Ministério Público antecipar-se à decisão judicial de devolução do processo à

autoridade administrativa e proceder ele a essa remessa, de modo a que tais

vícios sejam sanados, proferindo a autoridade administrativa nova decisão, sem

que seja necessária uma intervenção judicial.

Face ao exposto, numa leitura integrada, que tenha presente os

princípios que subjazem à intervenção do Ministério Público no Processo Penal,

é possível entender-se que estes poderes se encontram ínsitos na competência

que lhe é atribuída pelo artigo 62.º, n.º 1, do RGCO, ou então, para quem se sinta

limitado pela literalidade deste preceito, deve considerar-se que, com as

necessárias adaptações, é aplicável aos poderes do Ministério Público nesta fase

intermédia o disposto no artigo 277.º do Código de Processo Penal, como

legislação subsidiária.

Não parece é que esta solução possa ser colhida diretamente do

disposto no artigo 65.º-A, do RGCO, apesar do seu conteúdo funcionar como um

bom argumento adjuvante da leitura proposta para o artigo 62.º, n.º 1, do mesmo

diploma, porque, apesar de aí se referir que a retirada da acusação pode ocorrer

a todo o tempo, até ser proferida sentença em 1.ª instância, essa faculdade

pressupõe, obviamente, que a acusação, ou o seu sucedâneo, já teve lugar, o que

só poderá ocorrer precisamente com a intervenção do Ministério Público na fase

intermédia do processo contraordenacional. Não é, pois, possível invocar o poder

48O arquivamento pode ser apenas parcial, sendo o processo apresentado ao juiz para prosseguir
na fase judicial, relativamente à parte que não foi objeto de arquivamento.
PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA 31
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de retirar uma acusação já deduzida, atribuído pelo artigo 65.º-A, do RGCO, para

diretamente fundamentar a possibilidade de determinar o arquivamento dos

autos antes de ser deduzida qualquer acusação ou praticado ato equivalente a

essa dedução.

O reconhecimento ao Ministério Público do poder de determinar o

arquivamento do processo contraordenacional, na sua fase intermédia, suscita a

interrogação sobre a sua sindicabilidade 49.

Em primeiro lugar, o arquivamento do processo contraordenacional pelo

magistrado do Ministério Público, não é totalmente insindicável, uma vez que

poderá ser sempre objeto de controle por iniciativa do seu superior hierárquico,

aplicando-se subsidiariamente, nessa parte, o disposto no artigo 278.º do Código

de Processo Penal.

Em segundo lugar, o facto de não se encontrar previsto uma forma de

controle mais atuante desta opção do Ministério Público, não nos deve

impressionar, uma vez que essa ausência de controle também ocorre,

relativamente a muitas das decisões de revogação da decisão sancionatória por

parte das autoridades administrativas, assim como à retirada da acusação pelo

magistrado do Ministério Público nos termos previstos no artigo 65.º-A do RGCO,

onde, no regime geral, apenas se exige a concordância do arguido. Em todas

estas situações, a prossecução dos interesses estaduais é atribuída, inicialmente

à autoridade administrativa e, posteriormente, ao Ministério Público, sem que se

revele necessária a previsão de específicos mecanismos de controle dessa

atividade, até porque não é admissível a constituição de assistentes no processo

contraordenacional, apesar de a prática de contraordenações poder causar

danos a particulares. Aliás, o mesmo ocorre no próprio processo penal nos

denominados crimes sem vítimas.

49 CARLOS ADÉRITO TEIXEIRA, ob. cit., pág. 136-137.


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Contrariamente ao que sucede com a retirada da acusação quando o

processo já se encontra em plena fase judicial, a qual está dependente da

concordância do arguido e, em regra, deve ser precedida da audição da


50
autoridade administrativa , o arquivamento do processo contraordenacional,
51
antes de ser introduzido em juízo não está sujeito a essas condicionantes ,o

que se compreende, uma vez que ainda não foi proferido um juízo de suspeita

sobre o comportamento do arguido por parte de um órgão de administração da

justiça que justifique que aquele possa exigir um julgamento que o ilibe dessa

suspeita, e a autoridade administrativa, nesta fase intermédia, já teve

oportunidade de sustentar a sua decisão sancionatória após ter recebido a

impugnação deduzida pelo arguido.

Com o arquivamento ou a devolução à entidade administrativa do

processo contraordenacional, a decisão sancionatória impugnada fica sem efeito,

sem ter chegado a ser necessária uma intervenção judicial, alcançando-se,

também, por esta via, um dos desígnios do direito de mera ordenação social.

Arquivado o processo, por decisão do Ministério Público, o processo

contraordenacional só pode voltar a ser reaberto se surgirem novos elementos

de prova que invalidem os fundamentos da opção de arquivamento, numa

aplicação subsidiária do disposto no artigo 279.º, n.º 1, do Código de Processo

Penal 52, ou caso se verifiquem situações análogas às previstas no artigo 449.º, n.º

1, a) e b), do mesmo diploma.

O Ministério Público não pode, no entanto, face à inexistência de indícios

suficientes da prática de qualquer contraordenação pelo arguido, ordenar à

entidade administrativa a repetição ou a realização de novas diligências de prova,

50Em alguns processos contraordenacionais, sujeitos a regimes gerais sectoriais, como vimos
acima, a retirada da acusação está também dependente do acordo da autoridade administrativa,
mas não o seu arquivamento em alternativa à dedução da acusação.

51 BEÇA PEREIRA, ob. cit., pág. 178.

52 PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, ob. cit., pág. 259, anotação 12.


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nem pode devolver-lhe os autos para realização dessas diligências, uma vez que

não existe qualquer relação de subordinação hierárquica entre a autoridade

administrativa e o Ministério Público 53.

O Ministério Público também está impedido de proceder à conversão do

processo contraordenacional em processo criminal, caso entenda que os factos

resultantes das diligências levadas a cabo pela autoridade administrativa

indiciam a existência de um ilícito criminal e não de uma contraordenação,

devendo, nesta hipótese, limitar-se a requerer essa conversão ao juiz, conforme

prevê o artigo 76.º do RGCO 54. Na hipótese, porém, desses factos não terem sido

objeto de julgamento contraordenacional, nada obsta a que o Ministério Público

proceda à abertura de inquérito criminal destinado a averiguar a prática de um

ilícito criminal, conforme resulta do disposto nos artigos 79.º, n.º 2, e 90.º, n.º 2,

do RGCO) 55.

Conclusões

Em síntese do acima exposto, formulam-se as seguintes conclusões:

1.ª O artigo 62.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações, dispõe

que, interposta pelo arguido impugnação judicial da decisão de

autoridade administrativa que o sancionou pela prática de uma

contraordenação, deve essa autoridade enviar os autos ao Ministério

Público que os tornará presentes ao juiz, valendo este ato como acusação.

2.ª Com a apresentação dos autos ao juiz não se verifica uma conversão

da decisão sancionatória impugnada numa acusação.

53 PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, ob. cit., pág. 258, anotação 4, e ALEXANDRA VILELA, em A fase
jurisdicional do processo contraordenacional, em Anatomia do Crime, n.º 5, pág. 136.

PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, ob. cit., pág. 257, anotação 3, e SIMAS SANTOS e JORGE LOPES
54

DE SOUSA, ob. cit., pág. 490.

PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, ob. cit., pág. 257, anotação 3, SIMAS SANTOS e JORGE LOPES
55

DE SOUSA, ob. cit., pág. 490.


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3.ª O que corresponde a uma acusação é o ato de apresentação dos autos

do processo contraordenacional ao juiz, não existindo uma acusação em

sentido formal, enquanto indicação precisa pelo Ministério Público da

factualidade que conforma o objeto do processo e das infrações que são

imputadas ao arguido.

4.ª A apresentação do processo contraordenacional ao juiz não se

traduz, pois, na dedução de uma acusação, mas tem os mesmos efeitos

desse ato em processo penal – manifesta a pretensão do Ministério

Público de que o arguido seja submetido a julgamento e delimita a

temática do julgamento.

5.ª Mas esta não é a única opção de que dispõe o Ministério Público

quando a autoridade administrativa lhe remete os autos do processo

contraordenacional, não sendo aquele magistrado um mero núncio que

se limita a proceder à entrega do processo no Tribunal.

6.ª A intervenção do Ministério Público na denominada fase intermédia

do processo contraordenacional só pode ter um significado que seja

compatível com a estrutura deste tipo de processo, designadamente na

fase judicial subsequente, e com as funções do Ministério Público que

lhe são cometidas pela lei.

7.ª Conforme resulta da tramitação da fase judicial do processo

contraordenacional regulada no RGCO, esta tem uma estrutura

acusatória, sendo atribuída à magistratura do Ministério Público, à

semelhança do que sucede no processo penal, a representação dos

interesses do Estado no sancionamento das práticas

contraordenacionais.

8.ª Nas funções de promoção da ação contraordenacional na sua fase

judicial, o Ministério Público, como órgão autónomo da administração da

justiça, encontra-se incondicionalmente sujeito aos valores da

descoberta da verdade e da realização da justiça, pelo que só deve


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solicitar o julgamento daqueles arguidos sobre os quais recaem indícios

seguros de que cometeram um ilícito contraordenacional.

9.ª O artigo 62.º, n.º 1, do RGCO, ao determinar a intervenção do

Ministério Público na fase intermédia do processo contraordenacional,

pretendeu que este magistrado examinasse o processo que lhe é

remetido, designadamente a decisão sancionatória proferida e a

contestação apresentada, e ponderasse, obedecendo a critérios de

legalidade e objetividade, se o arguido devia ou não ser sujeito a

julgamento judicial pela prática da contraordenação ou

contraordenações que foram objeto temático do processo que lhe foi

remetido.

10.ª Assim, após exame dos autos do processo contraordenacional, o

Ministério Público deve apresentá-los ao tribunal competente, para

serem distribuídos a um juiz, equivalendo essa opção à dedução de uma

acusação em processo penal, caso entenda que existem indícios

suficientes da prática da contraordenação ou contraordenações que

foram objeto daquele processo; ou pode, pelo contrário, determinar o

seu arquivamento, se tiver verificado a existência de prova bastante

desses ilícitos não se terem verificado ou de o arguido não os ter

praticado, de ser legalmente inadmissível o respetivo procedimento ou

ainda de não existirem indícios suficientes da verificação da atividade

contraordenacional ou dos seus agentes, tal como sucede no processo

penal, por aplicação do disposto no artigo 277.º, n.º 1 e 2, do respetivo

Código.

11. ª Quando porém se verificarem vícios sanáveis na decisão

impugnada ou no processo contraordenacional, que nem justificam o

arquivamento do processo, nem a sua apresentação no tribunal, deve o

Ministério Público antecipar-se à decisão judicial de devolução do

processo à autoridade administrativa e proceder ele a essa remessa, de

modo a que tais vícios sejam sanados, proferindo a autoridade


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administrativa nova decisão, sem que seja necessária uma intervenção

judicial.

12.ª Numa leitura integrada, que tenha presente os princípios que

subjazem à intervenção do Ministério Público no Processo Penal, é

possível entender-se que estes poderes se encontram ínsitos na

competência que lhe é atribuída pelo artigo 62.º, n.º 1, do RGCO, ou

então, para quem se sinta limitado pela literalidade deste preceito, deve

considerar-se que, com as necessárias adaptações, é aplicável aos

poderes do Ministério Público, nesta fase intermédia, o disposto no

artigo 277.º e seg., do Código de Processo Penal, como legislação

subsidiária.

13.ª Nesta fase, o arquivamento do processo contraordenacional não

está dependente da concordância do arguido, nem da auscultação da

autoridade administrativa.

14.ª Com o arquivamento ou a devolução do processo

contraordenacional à autoridade administrativa, a decisão sancionatória

impugnada fica sem efeito, sem ter chegado a ser necessária uma

intervenção judicial.

15.ª Arquivado o processo, por decisão do Ministério Público, o processo

contraordenacional só pode ser reaberto se surgirem novos elementos

de prova que invalidem os fundamentos da opção de arquivamento,

numa aplicação subsidiária do disposto no artigo 279.º, n.º 1, do Código

de Processo Penal, ou caso se verifiquem situações análogas às previstas

no artigo 449.º, n.º 1, a) e b), do mesmo diploma.

16.ª O Ministério Público não pode, no entanto, face à inexistência de

indícios suficientes da prática de qualquer contraordenação pelo

arguido, ordenar à entidade administrativa a repetição ou a realização

de novas diligências de prova, nem pode devolver-lhe os autos para

realização dessas diligências, uma vez que não existe qualquer relação
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de subordinação hierárquica entre a autoridade administrativa e o

Ministério Público.

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