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Research, Society and Development, v. 11, n.

12, e276111235019, 2022


(CC BY 4.0) | ISSN 2525-3409 | DOI: http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v11i12.35019

As dificuldades enfrentadas pela população trans no acesso aos serviços de saúde:


uma revisão integrativa de literatura
Hardships faced by the trans population in the access to health services: an integrative literature
review
Las dificultades de la población trans en el acceso a los servicios de salud: una revisión integrativa
de la literatura

Recebido: 06/09/2022 | Revisado: 16/09/2022 | Aceito: 18/09/2022 | Publicado: 25/09/2022

Mariana da Silva Vieira


ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3624-3699
Universidade São Judas Tadeu, Brasil
E-mail: [email protected]
Raissa Cinthia Gomes de Araújo
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8139-5504
Universidade São Judas Tadeu, Brasil
E-mail: [email protected]
Danuta Medeiros
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3820-7093
Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Extrema, Brasil
E-mail: [email protected]

Resumo
O acesso aos serviços de saúde constitui um direito constitucional de todas as pessoas. O presente artigo objetivou
realizar uma revisão integrativa acerca das dificuldades enfrentadas pela população trans no acesso aos serviços de
saúde. Foram consultadas as bases de dados Índice Bibliográfico Español en Ciencias de la Salud (IBECS), Literatura
Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) e Scientific Electronic Library Online (SciELO), o que
permitiu selecionar 15 artigos completos publicados entre 2012-2021. Para a discussão dos resultados, foram
estabelecidas quatro categorias de análise: Panorama dos Principais Marcos Legislativos sobre os Direitos da População
Trans; Estigmatização e Discriminação da População Trans; A Lógica Binarista e Biologizante como Promotora da
Patologização e Medicalização da Transexualidade e Carência de Efetividade dos Serviços em Saúde e das Práticas
Profissionais no Atendimento à População Trans. Concluiu-se que a rejeição das vivências plurais da população trans
no acesso aos serviços e itinerários de saúde geram prejuízos quanto à assistência qualificada de profissionais e
instituições, sejam públicas ou privadas, colocando-as em situação de risco e dificultando ações preventivas voltados à
manutenção e cuidado integral da saúde. Argumenta-se que é necessário construir práticas em saúde entre poder público
e sociedade, assegurando direitos e diminuindo preconceitos.
Palavras-chave: Serviços de saúde para pessoas transgênero; Identidade de gênero; Pessoas transgênero; Acesso aos
serviços de saúde.

Abstract
The access to health services is a constitutional right of all people. This article aimed to carry out an integrative review
about the difficulties faced by the trans population to access health services. 15 articles, published from 2012 to 2021,
were found in the databases Índice Bibliográfico Español en Ciencias de la Salud (IBECS), Literatura Latino-Americana
e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), and Scientific Electronic Library Online (SciELO). To discuss the results,
four categories of analysis were created: Overview of Legislation Milestones on the Rights of the Trans Population;
Stigma and Discrimination Against the Trans Population; The Binary and Biological Logic that Considers
Transsexuality as a Pathology and the Lack of Effective Health Services and Professional Practices in the Attention to
the Trans Population. We concluded that rejecting the plural experiences of trans people in the access to health services
and pathways hinders the qualified assistance from professionals and institutions, be they public or private, putting this
population at risk and making preventive actions targeted at integral healthcare more difficult to achieve. We argue that
it is necessary to create practices in health in both the public sphere and society as a whole, guaranteeing rights and
reducing prejudice.
Keywords: Health services for transgender persons; Gender identity; Transgender persons; Health services accessibility.

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(CC BY 4.0) | ISSN 2525-3409 | DOI: http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v11i12.35019

Resumen
El acceso a los servicios de salud es un derecho constitucional de todas las personas. Este artículo buscó realizar una
revisión integrativa sobre las dificultades enfrentadas por la población trans en el acceso a servicios de salud. Se
seleccionó 15 artículos publicados de 2012 a 2021 en las basis de datos Índice Bibliográfico Español en Ciencias de la
Salud (IBECS), Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) y Scientific Electronic
Library Online (SciELO). Para discutir los resultados, se estableció cuatro categorías de análisis: Panorama de los
Principales Marcos Legislativos sobre los Derechos de la Población Trans; Estigmatización y Prejuicio contra la
Población Trans; La Lógica Binaria y Biológica como Promotora de la Patologización y Medicalización de la
Transexualidad y Carencia de Efectividad en los Servicios y Prácticas Profesionales de Salud en la Atención a la
Población Trans. Se concluyo que el rechazo de la vivencia plural de la población trans en el acceso a servicios y rutas
de salud genera prejuicios a la asistencia cualificada de profesionales e instituciones, sean ellas públicas o privadas,
creando situaciones de riesgo y dificultando acciones preventivas direccionadas a la manutención y cuidado integral de
salud. Es necesario construir prácticas en salud entre el poder público y la sociedad, garantizando derechos y reduciendo
prejuicios.
Palabras clave: Servicios de salud para las personas transgénero; Identidad de género; Personas transgénero; Servicios
de salud; Accesibilidad a los servicios de salud.

1. Introdução
A sexualidade humana é demasiada complexa ao ser atravessada por fatores biológicos, psicológicos e sociais. Nesse
sentido, de acordo com a Cartilha da Diversidade Sexual e a Cidadania LGBT, elaborada pela Secretaria da Justiça e da Defesa
da Cidadania (SJDC, 2017) do Governo do Estado de São Paulo, é possível concebê-la a partir de quatro esferas: o sexo biológico,
a orientação sexual, o gênero e a identidade de gênero.
No que diz respeito ao sexo biológico, este se refere à traços fisiológicos, assim como às características genitais, que,
por sua vez, acabam sendo atreladas, também, às capacidades reprodutivas. Já a orientação sexual é balizada pela atração afetiva
e/ou sexual que uma pessoa expressa por outra, ou seja, para quem vincula o seu desejo. Cabe enfatizar, ainda, a concepção de
gênero, que aponta para uma construção social exteriorizada pela cultura, a qual gera produtos sociais do que seriam, em tese,
características femininas e/ou masculinas. Por último, o conceito de identidade de gênero, que exprime o entendimento do próprio
sujeito em relação a ele mesmo, assinalando como este se reconhece e, também, como deseja ser lido pela sociedade (SJDC,
2017).
Ante o explicitado, a transexualidade se refere à identidade e expressão de gênero das pessoas transexuais, que não
coincide com a identidade de gênero dada no nascimento, isto é, um indivíduo que nasceu no gênero masculino, porém, se
identifica no gênero feminino e vice-versa; desse modo, homens e mulheres transexuais podem demonstrar necessidade de
efetuar alterações corporais, objetivando alinhar sua aparência física à seu reconhecimento identitário de gênero, todavia, nem
todos denotam essa necessidade (SJDC, 2017). Já as travestis são pessoas que experienciam papéis de gênero feminino, porém,
não se caracterizam enquanto homens ou mulheres, mas como pertencentes a um terceiro gênero ou um não gênero (Silva et al.,
2017).
No âmbito da saúde, as pessoas trans e travestis podem demandar por necessidades específicas nos serviços de saúde
multiprofissionais, como, por exemplo, terapias hormonais e outros procedimentos, no entanto, assim como qualquer sujeito, a
pessoa trans e travesti busca o acesso comum à direitos na saúde, sejam eles direcionados à prevenção e rastreamento adequado
de doenças, ou, até mesmo, tratamentos e reabilitação. Dessa maneira, no que concerne à concepção do processo de saúde-doença
do público trans, segundo dos Santos et al. (2015), foi de suma importância as conferências nacionais de saúde, ocorridas em
2003 e 2007, levantando questões acerca da população LGBTQIA+ 1, indicando a orientação sexual e a identidade de gênero
como temas relevantes para a análise da determinação social de saúde. Semelhante modo, no ano de 2011, deu-se continuidade

1 No presente artigo, será utilizada a sigla LGBTQIA+, acrônimo que identifica lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, queer,
intersexo e assexuais, assim como o símbolo + foi acrescentado à sigla para abranger outras orientações sexuais, identidades e expressões de
gênero.
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às pautas de tais conferências, sendo apresentada a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis
e Transexuais, pelo Ministério da Saúde, que estabelece diretrizes para o atendimento integral a esses grupos da população,
promovendo a sensibilização dos profissionais a respeito da garantia dos direitos sexuais e reprodutivos do público LGBTQIA+,
bem como no levantamento de normas e protocolos para o atendimento de lésbicas e travestis.
Outro avanço das Políticas Públicas em Saúde do público LGBTQIA+, refere-se à Carta dos Direitos e Deveres da
População Usuária da Saúde, a qual dispõe sobre o acesso igualitário às ações e serviços de promoção e proteção da saúde,
devendo garantir, portanto, a universalização da Saúde no Brasil. Contudo, os avanços ainda são poucos tendo em vista o
panorama brasileiro que lidera o ranking de países que mais assassinam pessoas trans no mundo, sendo a discriminação presente
nas práticas assistenciais e institucionalizadas nos serviços de saúde (Rosa et al., 2019). De acordo com a Associação Nacional
de Travestis e Transexuais (Antra), desde 2008 o Brasil aparece em primeiro lugar como o país que mais assassina pessoas trans
do mundo, sendo possível verificar que, a partir de 2017, o número de casos de assassinatos vem aumentando; no ano de 2021,
ocorreram, ao menos, 140 (cento de quarenta) assassinatos de pessoas trans, sendo 135 (cento e trinta e cinco) travestis e mulheres
transexuais, e 05 (cinco) casos de homens trans e pessoas transmasculinas, valor acima da média de assassinatos em números
absolutos. Cabe ressaltar que em 2019 e 2021, a vítima de transfeminicídio mais jovem era de 15 (quinze) anos e que em 2021
esse dado caiu para 13 (treze) anos, sendo que a expectativa média de vida da população trans é de 35 (trinta e cinco) anos. Entre
2017 e 2021, houve uma queda de 4 (quatro) anos na idade em que a mais jovem vítima foi assassinada, produzindo impactos
na perspectiva da juventude trans que está menos otimista sobre o futuro e, consequentemente, na estimativa de vida dessa
população. Dentre os fatores que corroboram para a manutenção das altas taxas de violência contra as pessoas trans, estão a
ausência de ações de enfrentamento da violência e a falta de dados e/ou subnotificações governamentais (Benevides, 2022).
Ademais, a Atenção à Saúde especializada compõe como critérios a adoção da Classificação Internacional de Doenças
(CID-10), que classifica a transexualidade como uma patologia, gerando, portanto, extenso retrocesso no asseguramento dos
direitos assistenciais da saúde para essa população, além da impossibilidade do acesso aos serviços integrais em saúde que dizem
respeito ao Processo Transexualizador (PrTr), sendo justificado pela necessidade indispensável de acompanhamento
multiprofissional (Rosa et al., 2019). Por outro lado, a partir da vigência da Classificação Internacional de Doenças (CID-11),
em janeiro de 2022, foi possível perceber algum avanço na temática, com a retirada dos termos “F64.0 Transexualismo” e “F64.1
Travestismo Bivalente” do referido documento, no entanto, manteve-se três classificações relacionadas a disforia de gênero, a
saber: “HA6Z Incongruência de Gênero Inespecífica”, “HA61 Incongruência de Gênero na Infância” e “HA60 Incongruência de
Gênero na Adolescência ou Idade Adulta”, o que pode indicar uma dificuldade ainda presente na comunidade científica de
ampliar a compreensão sobre as identidades de gênero e suas possibilidades (OMS, 2022).
A Portaria n. 2.803/2013, responsável por expandir o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS),
advém da Política Nacional de Humanização (PNH) - HumanizaSUS, que foi promulgada em 2003, também pelo MS, visando
à devida efetivação dos princípios do SUS nas práticas de atenção e gestão, objetivando o reconhecimento dos sujeitos incluídos
nesse processo de saúde, de modo a impulsionar a autonomia e o protagonismo destes, além de seus coletivos envolvidos,
alicerçados pela criação de vínculos solidários, por meio da participação coletiva nos processos de gestão e de promoção de
saúde.
Portanto, percebe-se, por essas discussões, que o acesso do público trans aos serviços de saúde ainda é precário, mesmo
considerando os avanços já existentes nas Políticas Públicas em Saúde no Brasil, uma vez que ainda há um distanciamento entre
os pressupostos propostos pelo SUS e sua aplicabilidade. Assim, homens e mulheres trans enfrentam, diariamente, uma série de
dificuldades em acessar tais serviços, seja pela própria precarização de instituições, como também, na validação de suas falas e
vivências. Nesse sentido, o presente estudo objetivou analisar, a partir de uma revisão integrativa de literatura, quais são os
principais obstáculos enfrentados pela população trans no acesso aos serviços de saúde.
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2. Metodologia
Trata-se de um estudo de Revisão Integrativa de Literatura que visa a compreensão de um conhecimento atual acerca
de uma temática específica, valendo-se da realização da síntese dos resultados encontrados, bem como a proposição de reflexões
aprofundadas sobre o assunto. Para tanto, foram adotadas as seguintes etapas: (1) elaboração da pergunta norteadora da pesquisa;
(2) busca ou amostragem na literatura; (3) coleta de dados; (4) análise crítica dos estudos incluídos; (5) discussão dos resultados
e (6) apresentação da revisão integrativa (Souza, Silva & Carvalho, 2010). A primeira etapa se dá pelo estabelecimento de uma
pergunta norteadora que apontará quais estudos serão incluídos, quais serão os meios adotados para identificação destes e quais
informações serão coletadas. Já na segunda etapa, é efetuada uma busca ampla e diversificada nas bases de dados a partir dos
critérios de inclusão/exclusão. Na terceira etapa, realiza-se uma compilação dos dados com base nos artigos escolhidos
(identificação dos sujeitos, métodos utilizados, amplitude da amostra, avaliação de variáveis, método de análise e os significados
elegidos), utilizando-se de instrumentos previamente selecionados. Sequencialmente, para a quarta etapa, torna-se imprescindível
avaliar a abordagem aplicada, com a fiel observância do rigor científico e metodológico. Na quinta fase, cabe elaborar
interpretações e suas respectivas sínteses a partir dos resultados obtidos, assim como comparar com os dados verificados durante
o processo. Na sexta e última etapa, é realizada a elucidação da revisão de forma sucinta e estruturada ao leitor (Souza, Silva &
Carvalho, 2010).
No presente estudo a pergunta norteadora elaborada foi “Quais são os principais obstáculos enfrentados pela população
trans no acesso aos serviços de saúde?”. As bases de dados utilizadas para a pesquisa foram o Índice Bibliográfico Español en
Ciencias de la Salud (IBECS), a Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) e o Scientific Eletronic
Library Online (SciELO). Localizou-se a produção de artigos que incluíssem os descritores “Serviços de Saúde”, “Pessoas
Transgênero” e “Identidade de Gênero”, sendo pesquisados de forma conjunta. Como critérios de inclusão foram considerados
textos completos redigidos em português, inglês e espanhol, publicados no período de 10 anos (2012-2021) e que respondessem
à pergunta norteadora, assim como estudos realizados dentro e fora do Brasil. Foram excluídos artigos duplicados, teses,
monografias e livros.
Em um levantamento bibliográfico realizado em 27 de janeiro de 2022 e considerando os parâmetros supracitados,
foram selecionados 39 artigos para análise. Na primeira seleção foi retirada a duplicidade nas bases de dados, sendo excluídos 5
artigos, totalizando 34 artigos para leitura do título. Após isso, 12 artigos foram excluídos pelo título por não se relacionarem à
pergunta norteadora, sendo selecionadas 22 publicações para leitura do resumo. Sequencialmente, procedeu-se à leitura do
resumo, sendo que 15 artigos foram selecionados por se alinharem aos objetivos propostos pelo presente estudo, os quais foram
lidos na íntegra para realização da análise, conforme apresentado na Figura 1.

Figura 1. Fluxograma de seleção dos artigos

Registros Artigos excluídos Artigos


identificados nas Artigos excluídos Artigos excluídos
por duplicidade selecionados para
bases de dados por título (n=12) por resumo (n=7)
(n=5) revisão (n=15)
(n=39)

Fonte: Elaborado pelas autoras (2022).

3. Resultados e Discussão
Os artigos selecionados para análise foram publicados nos últimos 10 anos (2012-2021), com concentração a partir de
2019 (8, 9, 10, 11, 12 e 13), e são, em sua maioria, qualitativos (1, 2, 3, 4, 5, 7, 9, 10, 11, 12, 13, 14 e 15); os demais artigos

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utilizam a metodologia quantitativa (6 e 8). No que se refere ao idioma dos estudos, nove são redigidos em português (1, 2, 3, 4,
5, 9, 12, 13 e 14), cinco em espanhol (6, 7, 10, 11 e 15) e um em inglês (8), conforme apresentado no Quadro 1.

Quadro 1. Classificação dos artigos selecionados de acordo com o título, autor/ano, idioma, método e objetivo (n=15)
N. Título Autor/Ano Idioma Método Objetivo
Sobre os obstáculos discursivos
Problematizar obstáculos discursivos à
para a atenção integral e
1 Borba (2014) Português Qualitativo saúde de pessoas transexuais no
humanizada à saúde de pessoas
Processo Transexualizador.
transexuais

Implicações bioéticas no Análise das publicações acadêmicas


dos Santos et al.
2 atendimento de saúde ao público Português Qualitativo quanto às ações de atenção à saúde dos
(2015)
LGBTT LGBTT.

Dificuldades vividas por pessoas Discutir as dificuldades de pessoas trans


Rocon et al.
3 trans no acesso ao Sistema Único de Português Qualitativo no acesso aos serviços de saúde no SUS
(2016)
Saúde em Grande Vitória/ES.

A medicalização e patologização na Percepção das mulheres transexuais


perspectiva das mulheres sobre acesso e tratamento no processo
4 Pinto et al. (2017) Português Qualitativo
transexuais: acessibilidade ou transexualizador e visão sobre a
exclusão social patologização e medicalização.

Uso do nome social no Sistema


Discutir o uso do nome social no SUS
Único de Saúde: elementos para o
5 Silva et al. (2017) Português Qualitativo como ferramenta de integralidade da
debate sobre a assistência prestada a
assistência a travestis e transexuais.
travestis e transexuais

Descrever e analisar o acesso aos


Acesso a serviços de saúde para
Domínguez et al. serviços de saúde próprios para as
6 mulheres transgêneros na cidade de Espanhol Quantitativo
(2018) mulheres transexuais em Cali,
Cali, Colômbia
Colômbia.
Profissionais da saúde frente à Lei
de Identidade de Gênero argentina. Analisar a recepção da Lei de
7 Tensões entre o conhecimento Neer (2018) Espanhol Qualitativo Identidade de Gênero por profissionais
especializado e o atendimento de saúde de Buenos Aires.
integral

A construção do corpo e itinerários Avaliar a diversidade e o perfil


de saúde: um estudo entre travestis Carrara et al. sociodemográfico da população
8 Inglês Quantitativo
e pessoas trans no Rio de Janeiro, (2019) trans/travesti, principalmente nos
Brasil serviços de saúde.

Assistência de Enfermagem à Avaliar a produção científica nacional e


9 população trans: gêneros na Rosa (2019) Português Qualitativo internacional sobre assistência de
perspectiva da prática profissional Enfermagem à população trans.

"Aqui eu sou um cara normal" - Reflexões a respeito do tempo de espera


narrativas sobre a espera e o acesso como uma categoria analítica
10 Braz (2019) Espanhol Qualitativo
a direitos entre homens trans na fundamental para interpretar as
Argentina experiências trans.

Explorar as dificuldades para o cuidado


Atención sanitaria trans*
García-Acosta et em saúde percebidas pelas pessoas
11 competente, situación actual y retos Espanhol Qualitativo
al. (2019) trans* e pelos profissionais que as
futuros. Revisión de la literatura
atendem nos centros de saúde.

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Experiências de acesso de mulheres Analisar as experiências de acesso de


Monteiro e
12 trans/travestis aos serviços de Português Qualitativo mulheres trans/travestis aos serviços de
Brigeiro (2019)
saúde: avanços, limites e tensões saúde.

Psicologia e políticas de saúde da Atravessamentos da Psicologia em


13 população trans: encruzilhadas, Vieira et al. (2019) Português Qualitativo contato com demandas da população
disputas e porosidades trans e políticas de saúde.

“A saúde não discute corpos trans”: Compreender as histórias de vida e o


14 História Oral de transexuais e Rigolon (2020) Português Qualitativo itinerário de travestis e transexuais nos
travestis serviços de saúde.

Percepción de las personas Conhecer a percepção do grupo


Castillo Muñoz e
15 transexuales sobre la atención Espanhol Qualitativo transexual sobre os cuidados de saúde
Cuadrado (2020)
sanitaria recebidos.

Fonte: Elaborado pelas autoras (2022).

Para a discussão qualitativa dos resultados encontrados nos artigos selecionados, procedeu-se a subdivisão em quatro
categorias de análise, a saber: Panorama dos Principais Marcos Legislativos sobre os Direitos da População Trans;
Estigmatização e Discriminação da População Trans; A Lógica Binarista e Biologizante como Promotora da Patologização e
Medicalização da Transexualidade; Carência de Efetividade dos Serviços em Saúde e das Práticas Profissionais no Atendimento
à População Trans.

3.1 Panorama dos Principais Marcos Legislativos sobre os Direitos da População Trans
Com vistas à compreensão de um panorama dos serviços de saúde que versam sobre o atendimento à população trans,
faz-se necessário compreender o embasamento legislativo brasileiro no que se refere a esses dispositivos de saúde. A partir da
mobilização de movimentos sociais pela luta por direitos no atendimento em saúde ao público LGBTQIA+, as temáticas da
orientação sexual e da identidade de gênero foram incluídas como determinantes sociais de saúde nas 12a e 13a Conferências
Nacionais de Saúde, ocorridas em 2003 e 2007, respectivamente (Silva et al., 2017; Rosa et al., 2019; Vieira, Pereira, Dutra &
Cavalcanti, 2019).
Em 2017, a Carta dos Direitos e Deveres da População Usuária da Saúde foi atualizada por meio da Resolução CNS n.
553/2017, pelo Conselho Nacional de Saúde, sendo uma valiosa ferramenta para a consolidação dos direitos e deveres do
exercício da cidadania em saúde no Brasil, contribuindo na garantia de acesso igualitário e universal às ações e serviços de
promoção e proteção da saúde, cabendo a prestação de assistência integral e humanizada, livre de qualquer discriminação,
restrição ou negação em função de idade, raça, cor, etnia, orientação sexual, identidade de gênero, características genéticas,
condições socioeconômicas, estado de saúde, ser portador de patologia infectocontagiosa ou pessoa vivendo com deficiência,
sendo composta por sete diretrizes, a saber: Direito à Saúde, Tratamento Adequado, Atendimento Humanizado, Direitos,
Corresponsabilidade, Direito à Informação e Participação (dos Santos et al., 2015; Rocon, Rodrigues, Zamboni & Pedrini, 2016).
Além disso, a partir de 2006, com a publicação da primeira versão da Carta dos Direitos e Deveres da População Usuária da
Saúde, foi assegurado o uso do nome social nos documentos de identificação dos equipamentos de saúde do SUS à população
trans e travestis, embora esse direito somente tenha sido consolidado solidamente em meados de 2012, através da impressão dos
Cartões do SUS apenas com o nome social dos usuários (Vieira et al., 2019). Ainda em 2018, foi julgado favoravelmente a
possibilidade de alteração de nome e gênero no registro civil pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e regulamentada pelo

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Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sem a exigência de laudos psicológicos ou psiquiátricos, bem como procedimentos
cirúrgicos que validem a transexualidade (Braz, 2019).
Na esteira dos avanços já apresentados, destaca-se como marco legal principal os protocolos de atendimento
regulamentados pelo Ministério da Saúde (MS) para os programas de transgenitalização, como a Portaria n. 1.707/2008, que
instituiu o Processo Transexualizador no SUS, atualizada com a publicação da Portaria n. 2.803/2013 e revogação da normativa
anterior, a qual passou a abarcar também homens trans e travestis com suas demandas por cirurgias como de histerectomia,
mastectomia, neofaloplastia, hormonioterapia, e outras (Rocon et al., 2016; Carrara et al., 2019). Cabe evidenciar que a
Constituição Federal de 1988 não condiciona o acesso aos serviços de saúde pela indicação de patologia previamente
diagnosticada, sendo possível refletir que o Processo Transexualizador do SUS impõe seletividade ao imputar às pessoas trans e
travestis a necessidade de apresentar laudo psiquiátrico para ter acesso aos processos previstos no PrTr (Rocon et al., 2016).
Considerando o cenário internacional, na Espanha, segundo Castillo Muñoz e Cuadrado (2020), não há uma
regulamentação específica que estipule diretrizes para os cuidados de saúde à população trans e travesti para todo o país,
ocorrendo variações a depender da região em que os usuários estão localizados. Especialmente em Córdoba, comunidade
autônoma de Andaluzia, vigoram duas leis que tratam da temática, sendo a primeira destinada a não discriminação em razão da
identidade de gênero e reconhecimento dos direitos das pessoas transexuais (Lei n. 2/2014), bem como estabelece medidas
efetivas para a garantia do direito dos profissionais à formação específica no campo da transexualidade, e a segunda responsável
por garantir os direitos, a igualdade de tratamento e a não discriminação das pessoas LGBQIA+ (Lei n. 8/2017). Já Domínguez,
Ramírez e Arrivillaga (2018) pontuam que a maioria dos estudos sobre equidade no acesso aos serviços de saúde na Colômbia
passaram a ser realizados a partir da vigência da Lei n. 100/1993, ocasião em que ocorreu a promoção da expansão da cobertura
de saúde no país, principalmente para a população de baixa renda. Todavia, as autoras apresentam uma ressalva no que tange à
continuidade de iniquidades sociais no acesso da população que possui, ou não, cobertura dos serviços de saúde, como, por
exemplo, em Bogotá, sendo agravadas por barreiras geográficas, regulatórias, administrativas, culturais e de abastecimento,
assim como atravessadas por características étnicas, sociais ou de orientação sexual. Dando continuidade aos avanços legislativos
indicados na Colômbia, a Lei n. 1.751/2015 ou Lei Estatuária de Saúde estabelece como garantia o direito fundamental à saúde,
sendo implicada diretamente na promoção do acesso efetivo aos serviços de saúde.
Na Argentina, foi sancionada em 2012 a Lei n. 26.743, intitulada Lei de Identidade de Gênero, a qual possibilita que
qualquer pessoa altere seu nome e sexo em seu documento de identidade nos cartórios de registro civil, inclusive, crianças e
adolescentes, desde que representados por seus responsáveis legais e acompanhados de um profissional da advocacia. Além
disso, no caso dos adultos, tal lei permite o acesso aos procedimentos médicos para a construção de uma corporalidade em
consonância com a identidade de gênero através de um único requisito: a assinatura de termo de consentimento; para as crianças
e os adolescentes, é necessária autorização judicial. Cabe salientar que o conteúdo da redação normativa foi construído por
organizações de travestis, transexuais, transgêneros e trans argentinos, sob exigência da eliminação dos requisitos diagnósticos
e judiciais anteriormente vigentes para o acesso a tais direitos (Neer, 2018). Nesta acepção, uma das expectativas perante à
referida Lei Argentina se trava da diminuição do tempo de espera para acesso aos serviços de saúde, como também para a
retificação dos registros, o que, de fato, veio a se consolidar a partir da sua regulamentação no ano de 2015, implicando em
redução significativa no tempo de espera no território argentino, porém, foi constatado que, no que diz respeito aos procedimentos
cirúrgicos, o tempo de espera ainda é elevado, sendo que, muitas vezes, opta-se por realizar tais procedimentos em clínicas
particulares. Já no Brasil, verificou-se que o tempo de espera era muito maior do que na Argentina, sendo proposto, no mínimo,
dois anos de atendimento psicológico para que um laudo médico pudesse ser obtido e, portanto, autorizando o acesso ao PrTr
(Braz, 2018, citado por Braz, 2019, pp. 122-123). Assim, parece haver um descompasso entre o tempo dos sujeitos, o tempo
protocolar, o tempo institucional/oficial e o tempo de cada um (Sampaio & Coelho, 2014, citado por Braz, 2019, p. 122).
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Comparada à legislação brasileira, a Lei Argentina parece indicar avanços significativos para a população LGBTQIA+, todavia,
cabe uma ressalva, dado que a transfobia ainda persiste através dos hábitos socioculturais das coletividades (Braz, 2019).
Ademais, para a aplicação da legislação internacional, os Princípios de Yogyakarta2, elaborados em 2006, representam
um marco dos direitos humanos da população LGBTQIA+, afirmando que todos os seres humanos nascem livres e iguais em
dignidade e direitos e que estes últimos são universais, interdependentes, indivisíveis e inter-relacionados (dos Santos et al.,
2015). Outro documento importante versa sobre as Normas de Atenção à Saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero,
da Associação Mundial Profissional para a Saúde Transgênero (WPATH), com a finalidade de fornecer subsídios para os
profissionais de saúde em sua orientação clínica, de modo a ampliar a saúde geral, o bem-estar psicológico e a realização pessoal
das pessoas trans em relação às suas identidades de gênero (Rosa et al., 2019).

3.2 Estigmatização e Discriminação da População Trans


A estigmatização da população trans acarreta em processos discriminatórios, dentre eles, a transfobia3, que se caracteriza
por qualquer ação ou comportamento que se baseia no medo, intolerância, rejeição, aversão, ódio ou discriminação às pessoas
trans por conta de sua identidade de gênero. Nesse sentido, Rigolon, Carlos, Oliveira e Salim (2020) apontam que esses processos
podem produzir atos de violência e, até mesmo, a morte, somados à exclusão do convívio social e isolamento, como, por exemplo,
no mercado de trabalho e em instituições de ensino. Mais especificamente nos serviços de saúde, verifica-se um distanciamento
das pessoas trans e travestis como estratégia de evitar a discriminição e a exposição à profissionais possivelmente despreparados,
sobretudo por estes últimos não se apropriarem de conhecimentos acerca de suas necessidades e especificidades, tendo como
uma de suas mais graves consequências, a automedicação dessa população. A estigmatização, por parte dos profissionais da
saúde, de mulheres e homens trans, acaba reduzindo-os a pessoas com infecções sexualmente transmissíveis.
Nos estudos de Rocon et al. (2016), foi possível verificar que a discriminação e o desrespeito ao nome social, além do
diagnóstico como patologia no processo transexualizador, são tidos como barreiras ao acesso por parte dos usuários trans ao
Sistema de Saúde. Conforme aponta Silva et al. (2017), o uso do nome social nos serviços de saúde é garantido entre os direitos
dos usuários do SUS através da Portaria n. 1.820/2009, bem como a própria Carta dos Direitos dos Usuários do SUS, em seu
terceiro princípio, já assegurava esse direito desde 2007. Apesar do referido marco legislativo, ainda é frequente a ausência de
aplicação dessa normativa nos equipamentos de saúde, uma vez que as diretrizes do SUS prezam por ações descentralizadas, as
quais, por consequência, requerem a participação ativa dos profissionais da saúde para o cumprimento das práticas
supramencionadas. Ainda segundo os autores, a omissão do nome social nos documentos identificatórios provoca
constrangimento, sofrimento e, consequentemente, o afastamento da população trans do atendimento em saúde. Já Monteiro e
Brigeiro (2019), enfatizam o quão significativos são os usos do nome social e mudança de nome e sexo no registro civil na
transição de gênero, já que esses recursos simbolizam, para as mulheres trans e travestis, um reconhecimento de si no feminino,
possibilitando um controle sobre suas marcas, incluindo o próprio sistema de saúde. Outros autores corroboram com o apontado,
indicando que o desrespeito ao uso do nome social é condição determinante para dificultar a entrada da população trans nos
equipamentos de saúde, sobretudo de atenção primária à saúde (Rocon et al., 2016; Silva et al., 2017; Monteiro & Brigeiro, 2019;
Vieira et al., 2019; Rigolon et al., 2020; Castillo Muñoz & Cuadrado, 2020).
Os autores García-Acosta et al. (2019) realizaram uma pesquisa de revisão de literatura, com o objetivo de explorar as
dificuldades para a assistência em saúde percebidas pelas pessoas trans e pelos profissionais de saúde, incluindo 34 artigos de

2 Para ter acesso a mais informações sobre os Princípios de Yogyakarta, acesse o endereço eletrônico
<https://www.politize.com.br/equidade/blogpost/principios-de-yogyakarta-e-os-direitos-lgbt/>.
3 Para ter acesso a mais informações sobre a transfobia e seus impactos, acesse o endereço eletrônico
<https://www.politize.com.br/equidade/blogpost/o-que-e-transfobia/>.
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diversos países (Estados Unidos, Canadá, Turquia, Austrália, Nova Zelândia, Suécia, Irlanda, Alemanha, Colômbia, Venezuela,
Brasil e Suíça), em que foi possível verificar, por parte dos pacientes, relatos de diferentes formas de discriminação sofridas,
dentre elas, assédio verbal e físico, desprezo, atitudes negativas e negação de atendimento, além da presunção de
heterossexualidade, sendo que os profissionais não são capazes de identificar tais discriminações. Ademais, situações de
discriminação oriundas do desconhecimento acerca da transexualidade, questionamentos repetitivos sobre as identidades de
gênero das pessoas trans e travestis, como também, o mau uso do pronome e o nome social por parte dos profissionais de saúde,
geram sentimentos de vergonha e frustação, além de dificuldades na comunicação entre profissional-paciente, produzindo
desconfianças em relação aos serviços oferecidos, podendo resultar na evasão dos cuidados em saúde (Castillo Muñoz &
Cuadrado, 2020).
No que se refere aos riscos específicos de saúde, a população LGBTQIA+ é uma das mais afetadas, tendo maior risco
de sofrer de transtornos de humor, sobrepeso, obesidade, infecções sexualmente transmissíveis e problemas de saúde mental,
como ansiedade e depressão. Apresentam, ainda, maior consumo de tabaco, álcool e outras drogas, duas a três vezes mais chances
de tentativa de suicídio, como também, a transfobia, o bullying e a desaprovação parental da expressão de gênero são apontados
como fatores de risco relevantes relacionados às tentativas de suicídio, sendo este último uma das principais causas de morte da
população trans (García-Acosta et al., 2019; Rigolon et al., 2020).
Ainda sobre o panorama internacional, Domínguez et al. (2018), assinalam que, na cidade de Cali, situada na Colômbia,
o direito à saúde está diretamente ligado ao acesso aos serviços de saúde, sua organização e com a utilidade e integralidade do
cuidado em saúde, como postulado pela Lei Estatutária de Saúde do país. Nessa lógica, as diversas minorias sexuais defrontam-
se com situações de estigma, discriminação e desprezo quando acessam os serviços de saúde, sendo rotulados como estranhos e
anormais, consequentemente provocando maior vulnerabilidade social, econômica e de saúde, pois, historicamente, vivenciam
a carência de acesso aos serviços e produtos que possibilitem qualidade de vida e bem-estar. Segundo as autoras, tais situações
são vivenciadas tanto na Colômbia quanto no mundo, sendo que, a população trans é considerada uma das menos favorecidas,
ampliando seus riscos e prejudicando o usufruto pleno de seus direitos, inclusive o direito à saúde.
O redimensionamento dos direitos sexuais e reprodutivos, a desnaturalização da sexualidade e suas formas de
manifestação, além da recusa à medicalização da sexualidade, devem ser estruturas balizadoras para a consolidação da saúde
integral da população LGBTQIA+. Nessa acepção, qualquer discriminação é um fator limitante da saúde e promotor do
adoecimento (Lionço, 2008 como citado em dos Santos et al., 2015, p. 405).

3.3 A Lógica Binarista e Biologizante como Promotora da Patologização e Medicalização da Transexualidade


A medicalização corresponde a uma ferramenta organizada, em conformidade com uma rede interpessoal, guiada por
organizações, normativas e produções compreendidas como científicas ou filosóficas, sendo um dispositivo de rede social, o
qual estabelece padrões de normalidade e a posição que cada sujeito exerce na sociedade, em observância às práticas e
comportamentos empregados. Nesse sentido, a medicalização se transforma em um instrumento mediador de conflitos e converte
as questões sociais em uma lógica biomédica. Partindo desse pressuposto, o ideário normatizado de bem-estar social delimitou
um enquadramento de expressões das subjetividades humanas, definindo parâmetros de normalidade e anormalidade, sendo este
último subordinado a patologização (Janini, Santos, Vargens & Araújo, 2017).
Em relação às pessoas trans e travestis, segundo Vieira et al. (2019), a lógica patologizante desprestigia sua autonomia
no que se refere ao seu próprio corpo e sua vida, aparentando um suposto cuidado, que, no entanto, se afigura numa posição de
tutela. Tal posição indica a atribuição de poderes aos profissionais de saúde, dentre eles, os saberes psicológicos, psiquiátricos e
psicanalíticos, numa conceituação foucaultiana, podem servir como um aparato produtor de verdades e discursos; especialmente
a psiquiatria ocupa papel atuante com o objetivo de classificação das vivências trans, uma vez que faz uso do saber/poder de sua

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ciência para imputar ao sujeito a validade destas, sobretudo com a produção de um documento específico que é o laudo
psiquiátrico. Nas palavras dos autores:
No cerne do debate entre psiquiatria e possibilidades de autonomia das pessoas trans frente seus corpos e desejos, há de
se considerar como as redes de saber-poder se produzem violentamente na legitimação de quais corpos, ainda que trans, são mais
legítimos que outros. Cria-se pela psiquiatria e seus manuais um conjunto de discursos de verdade que separam as experiências
trans em “verdadeiras” ou “falsas”. Como efeito perverso, apenas as consideradas “verdadeiras” são possibilitadas ao acesso a
tecnologias de saúde inclusive oferecidas pelo sistema universal e gratuito (Vieira et al., 2019, p. 165).
Os estudos de Rocon et al. (2016) também apontam que a patologização dentro do PrTr revela uma imperatividade da
visão heteronormativa, assim como do binarismo de gênero como padrão social aceito e imposto pela sociedade, visto que, para
ter acesso aos procedimentos de modificação corporal, é necessário estar em conformidade com o que é classificado como
transexualidade, ou seja, como patologia de acordo com a visão médica-psiquiátrica e dentro das categorias binárias de homem-
mulher. Dessa maneira, as vivências transexuais se tornam restritivas, ocasionando no afastamento da população trans dessas
instituições, colaborando para a manutenção de sua permanência numa esfera marginalizada.
Com base no exposto acima, o profissional da saúde também acaba promovendo a perpetuação da visão e ação
patologizante da transexualidade, pela compreensão de que, para que usuários trans tenham acesso aos serviços de saúde, devem
ser classificados nos parâmetros da Psicopatologia, reafirmando a cultura da heteronormatividade. No caso das mulheres trans,
ao se propiciar o acesso às mudanças físicas procuradas por estas – que, geralmente são vistas pelas mesmas como a única
maneira possível de “ser mulher” – reafirmam a ideia biológica do que é ser homem ou mulher na sociedade. Além disso, a prova
de vida também é colocada como um mecanismo que retira o poder das mãos das usuárias trans dentro do tratamento, ao delimitar
um tempo que a pessoa transexual deve se comportar em consonância com sua identidade de gênero, diariamente, sendo
legitimado pelo o que se denomina como transexualidade, para, posteriormente, ser possível realizar a transgenitalização (Janini
et al., 2017).
Cabe elucidar que a transexualidade era concebida como uma patologia na Classificação Estatística Internacional de
Doenças (CID-10), todavia, com a publicação da sua décima primeira versão, no início de 2022, a experiência trans não mais
constou no capítulo de transtornos mentais, embora tenha sido mantida em classificações relacionadas às disforias de gênero. De
acordo com Vieira et al. (2019), essas narrativas apontam para um autocentramento da concepção cisgênera como análogas às
normalidades físicas e mentais, e, consequentemente, deslegitimando toda e qualquer experiência que não se enquadre na
cisgeneridade enquanto fim. Da mesma forma, atualmente, o DSM-V suprimiu o termo “transtorno de identidade de gênero”,
porém, ainda inclui o termo “disforia de gênero” em sua redação.
Nos estudos de Borba (2014), foi evidenciado o uso do ‟discurso pronto” e ‟script” pelos usuários trans nas consultas
médicas, com base em leituras e conhecimentos previamente apreendidos acerca da definição do Transtorno de Identidade de
Gênero do DSM-V, os quais traziam narrativas que se moldavam e se encaixavam dentro das classificações, vistas pelos
profissionais de saúde como mentira. Aqui se estabelece um paradoxo, disposto pela necessidade da população trans de aderência
a discursos, dentro das instituições de saúde, em conformidade com as classificações exigidas para a obtenção de um laudo
psiquiátrico que ateste sua transexualidade, entretanto, essas mesmas narrativas são vistas como uma farsa, provocando
desconfiança por parte dos profissionais de saúde. Semelhante modo, o autor também considera que as instituições de saúde são
classificadoras e diagnosticadoras, posto que patologizam e uniformizam as transexualidades, fazendo com que as pessoas
transexuais que procuram o serviço do PrTr precisem fabricar histórias pessoais compatíveis às expectativas dessas instituições,
que dispõem do poder de validar ou não a identidade que essas pessoas relatam ter, estreitando suas ações sociais quando
defrontados com profissionais da saúde, dificultando a formação de relações intersubjetivas apoiadas em confiança mútua.

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Por fim, o diagnóstico favorece a isenção da responsabilidade da lógica cisgênera e binária de gênero pela
marginalização social das pessoas trans e, concomitantemente, desloca o poder de legitimação de suas vivências para
profissionais de saúde, que assumem a tutela dessas subjetividades em detrimento da oferta de cuidado (Vieira et al., 2019).

3.4 Carência de Efetividade dos Serviços em Saúde e das Práticas Profissionais no Atendimento à População Trans
A efetividade dos serviços de saúde perpassa pela compreensão dos cuidados oferecidos numa instituição pública e
privada. Segundo Castillo Muñoz e Cuadrado (2020), em Córdoba, há uma preferência da população trans pelo setor privado
advindo do menor tempo de espera, tanto para consultas e exames, quanto para início do tratamento hormonal; somado à isso,
as autoras ainda apontam que o serviço privado representa uma garantia de resultados melhores com relação a cirurgia de
redesignação sexual. Ainda nessa acepção, Rosa et al. (2019) conclui que o quantitativo de pessoas que evitam utilizar o sistema
público de saúde é extenso, sobretudo por se sentirem humilhadas e maltratadas nesses locais e, dessa forma, os serviços privados
de saúde surgem como uma alternativa para receberem melhores atendimentos, principalmente por estarem pagando pelas
intervenções realizadas. Todavia, de acordo com Carrara et al. (2019), a possibilidade de acesso aos serviços privados não
indicam que as dificuldades enfrentadas por pessoas trans e travestis tenham sido ultrapassadas, tendo em vista as deficiências
que estes serviços ainda apresentam; cabe ressaltar, ainda, que apesar da maioria dos procedimentos terem sido efetuados em
serviços privados de saúde, o sistema público de saúde possui um papel de destaque no monitoramento pós-operatório. Em
síntese, os autores apontam que tanto os serviços públicos quanto os privados não conseguem suprir, de modo suficientemente
bom, às necessidades das pessoas trans, travestis e não-binárias, de modo que o uso excessivo de hormônios e/ou a realização de
modificações corporais não monitoradas acabam por expor essa população à situações de risco, sendo necessário, portanto, o
investimento em políticas de saúde que garantam o reconhecimento dos direitos das pessoas trans, promovendo atenção
qualificada nos serviços prestados em saúde.
Ante o exposto, as pessoas trans e travestis são as que mais sofrem dificuldades no acesso e permanência aos serviços
disponibilizados pelo SUS, não se restringindo a procedimentos específicos como a cirurgia de redesignação sexual, se
estendendo também às demandas gerais de saúde, as quais são obstaculizadas pela transfobia, bem como atravessadas por
opressões de cor, raça e classe, sendo evidenciados relatos de recusas de atendimento por parte dos estabelecimentos de saúde,
e o desrespeito à identidade de gênero nos casos de internação hospitalar (Rocon et al., 2016; Vieira et al., 2019). No que tange
à atenção básica de saúde, considerada o local de maior permanência do usuário e uma das principais portas de entrada do SUS,
constata-se a ausência de pessoas trans e travestis, oriunda de uma segregação dos atendimentos ofertados em centros
especializados no PrTr, por se tratarem de estabelecimentos que, em tese, dispõem de profissionais qualificados para lidarem
com questões referentes à identidade de gênero, resultando numa limitação do acesso à atividades de promoção e proteção em
saúde integral nas demais instâncias do referido sistema (Silva et al., 2017). As dificuldades de acesso ao SUS abarcam também
problemas estruturais experienciados por todos os usuários, sem relação à discriminação sexual e/ou de gênero, como, por
exemplo, dificuldades de agendamento, filas, excesso de burocracia, falhas nas informações recebidas, não acolhimento e
ausência de médicos foram situações evocadas para descrever as fragilidades no sistema e as razões para, também, eventualmente
desistirem do atendimento (Monteiro & Brigeiro, 2019).
Ademais, os estudos de Rosa et al. (2019) apontam que há uma dificuldade das pessoas trans no acesso ao atendimento
em saúde nas instituições públicas e privadas devido à resistência do profissional da saúde em compreender a interseccionalidade
da pessoa trans em respeito às suas condições socioeconômicas, de escolaridade, raça e vínculos sociais, gerando agravos na
procura desses usuários pelos serviços integrais de saúde, contribuindo, significativamente, para que as pessoas trans busquem
por autocuidado sem orientação especializada, como, por exemplo, através da automedicação e práticas clandestinas de
transformação do corpo. Consoante ao apresentado, Domínguez et al. (2018) salienta que o uso de hormônios predomina em 91%

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da população trans entrevistada no estudo, no entanto, somente 6% recebem atendimento médico para o referido uso; já sobre a
utilização de substâncias injetáveis, 70% dos entrevistados se submetem a algum procedimento estético, sendo o silicone fluído
a substância mais empregada, seguida pelos óleos vegetais. Outros autores também discutem o excesso de autoadministração de
hormônios pela população trans: a) Risco de adoecimento e até de morte pelo uso indiscriminado de hormônios e sem orientação
médica adequada, motivada pelo desejo, sonho, necessidade e sobrevivência de modelar o corpo, mesmo sob riscos (Rocon et
al., 2016; Castillo Muñoz & Cuadrado, 2020); b) Medo de assédio ou discriminação na procura de serviços de saúde, recorrendo
a tratamentos hormonais ilegais pela internet, embora possa ter efeitos prejudiciais à sua saúde (García-Acosta et al., 2019); c)
Compartilhamento na rede entre seus pares, tanto para a autoadministração de hormônios, quanto para a aplicação de silicone
industrial (Monteiro & Brigeiro, 2019) e d) As principais fontes de acesso não-oficiais aos hormônios se configuram através de
outras pessoas que também os usaram, sendo que homens trans também conseguem por meio de academias e fontes veterinárias,
enquanto as mulheres trans e travestis pela internet (Carrara et al., 2019).
Aprofundando-se no tema do tratamento hormonal, na Espanha, muitos usuários dos serviços de saúde, homens e
mulheres trans, não seguem as recomendações prescritas pela equipe médica, optando por consumir doses reduzidas às indicadas,
já que acreditam que estão supermedicados, entretanto, por não ocorrerem alterações visíveis nos exames de sangue, as doses
permanecem não sendo reajustadas pelos profissionais de saúde (Castillo Muñoz & Cuadrado, 2020). Semelhante modo, no
Brasil, os hormônios ocupam importante papel nas tecnologias de gênero, sendo comum que as pessoas trans e travestis tenham
ciência dos possíveis riscos e consequências que o uso destes sem prescrição médica pode acarretar, porém, a decisão pela
autoprescrição da dosagem hormonal é percebida como possibilidade de maior controle sobre o processo de transição, seja por
acelerar esse processo ou interrompendo-o, quando os resultados forem percebidos como satisfatórios, assim como em
combinação com outros procedimentos. O manejo exclusivo destas tecnologias pelos profissionais de saúde é apontado como
uma falta de autonomia da população trans (Monteiro & Brigeiro, 2019).
Os estudos de Castillo Muñoz e Cuadrado (2020) ressaltam que alguns pacientes sentem que assumem a
responsabilidade pela garantia de recebimento de cuidados e tratamentos adequados, visto que há uma insuficiência de
informações passadas às pessoas trans e travestis sobre os possíveis efeitos colaterais dos procedimentos realizados pela equipe
de saúde, o que, frequentemente, faz com que recorram à bula dos medicamentos e, até mesmo, à internet para conseguirem
informações mais detalhadas. Nesta perspectiva, Carrara et al. (2019) aponta que é preciso agir com criticidade acerca de
discursos individualizantes de culpabilização das pessoas trans e travestis por doenças advindas da autoadministração excessiva
de hormônios, ou silicone industrial, pois essas situações demonstram a estigmatização e a discriminação do contexto social as
quais essa população vivencia, além de obstáculos estruturais dos próprios serviços de saúde relacionados ao acesso ao
tratamento hormonal e a ausência de treinamento dos profissionais de saúde sobre transexualidade.
Apesar das discussões sobre a sexualidade e gênero terem sido ampliadas no contexto da atualidade, a maioria parte de
uma lógica binarista e biologizante. A população trans desafia tais definições, em razão de questionarem a heteronormatividade
e as normas sociais hegemônicas vigentes, o que, com frequência, provoca uma repulsa social, que repercute em narrativas
transfóbicas nos diversos ambientes sociais transitados por pessoas trans e travestis (Rigolon et al., 2020). No caso dos
profissionais de saúde, a discriminação comumente não é percebida, na medida em que estes não possuem conhecimentos básicos
para identificá-la e, eles próprios, podem reproduzi-la. No que se refere a prestação de cuidados de saúde à população
LGBTQIA+, os profissionais dispõem de visões estereotipadas, tais como a relação entre homossexual, pessoa transexual e o
vírus da imunodeficiência humana (HIV), além da hipótese de que as mulheres homossexuais não apresentam riscos de sofrer
de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). No que corresponde às formas inclusivas de abarcar as temáticas de identidade
de gênero e orientação sexual, a maioria dos profissionais não conhecia ou não sabia do que se tratava, e uma parcela confundia
a primeira definição com a segunda (García-Acosta et al., 2019).
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Nota-se um despreparo na qualificação profissional dos profissionais de saúde para abordar a temática da diversidade
sexual, incluindo os campos da identidade de gênero e orientação sexual. A ausência de formação adequada repercute nas práticas
de atendimento oferecidas à população trans, pois o desconhecimento gera preconceitos e barreiras nas relações de produção do
cuidado. Somada à falta de conhecimento, muitos profissionais de saúde não possuem experiência e não se sensibilizam às
necessidades das pessoas trans e travestis durante as consultas, adotando estratégias que ora exotificam ora patologizam os
atendidos (Silva et al., 2017; Domínguez et al., 2018; Braz, 2019; García-Acosta et al., 2019; Castillo Muñoz & Cuadrado, 2020;
Rigolon et al., 2020). Dessa maneira, torna-se imprescindível propor formações profissionais que considerem as construções de
gênero e identidades diversas, tanto na grade curricular dos cursos universitários e técnicos quanto em aprimoramentos
profissionais posteriores, visando a obtenção de conhecimentos adequados e contínuos (Dominguez et al., 2018; Castillo Muñoz
& Cuadrado, 2020). Nessa direção, García-Acosta et al. (2019) propõe algumas iniciativas que podem auxiliar na melhora da
saúde das pessoas LGBTQIA+, tais como, maior conhecimento sobre transgêneros, tanto nos centros de atendimento
especializados quanto na atenção à saúde em geral, enfocando, sobretudo, no comportamento e na linguagem verbal, de modo a
aumentar a confiabilidade do paciente no processo, com a redução de barreiras no atendimento em saúde, assim como fornecendo
serviços inclusivos e responsivos.
De acordo com Castillo Muñoz e Cuadrado (2020), os aspectos internos e psicológicos da população trans também
deveriam ser considerados, não se restringindo, nos atendimentos em saúde, às demandas de aparência física ou de
reconhecimento de sua identidade de gênero. Neer (2018) ressalta que, após a instauração da Lei de Identidade de Gênero
argentina, ocorreram mudanças discursivas em torno do processo de transição, suscitando questionamentos sobre a escuta
oferecida pelos profissionais de saúde perante as necessidades dos pacientes em termos de cuidado e apoio, bem como uma
revisão sobre as práticas e discursos médicos dentro da relação profissional-paciente. As diretrizes na estruturação do
atendimento em saúde foram redirecionadas, agora através de uma avaliação integral do usuário do serviço em saúde; nessa
acepção, se antes a finalidade do processo era somente de validar ou invalidar o diagnóstico de “transexualismo” ou “transtorno
de identidade de gênero”, o objetivo principal passou a ser a avaliação abrangente dos aspectos físicos, emocionais e psicológicos
da pessoa atendida. Vale ressaltar que as pessoas cisgêneras4 se submetem a diversas cirurgias eletivas de caráter irreversível,
todavia, diferente do que é observado no processo transexualizador, não há qualquer conduta médica que avalie ou impeça as
intervenções pretendidas por esses usuários de saúde, tampouco legislação específica que verse sobre o assunto. Rocon et al.
(2016) destaca, ainda, que pessoas cisgêneras realizam modificações corporais através de dietas alimentares, exercícios físicos,
procedimentos estéticos, a fim de produzir satisfação corporal e bem-estar e, de modo semelhante, as pessoas trans e travestis
também almejam, em suas modificações corporais, atingir um ideal de beleza associado à construção das marcas de gênero e,
portanto, signos de beleza.
Com base nessas considerações, para que haja autonomia dentro do processo transexualizador, é necessária a
despatologização e desmedicalização da transexualidade por parte dos profissionais da saúde, aceitando a pluralidade das
vivências transexuais, permitindo que os usuários trans tenham controle sobre seu tratamento, sendo responsáveis pelas decisões
acerca de seus corpos (Janini et al., 2017). Neste aspecto, ressalta-se a importância da valorização dos saberes e das experiências
locais de pessoas trans que gostariam de realizar as cirurgias de transgenitalização, resultando numa melhora da relação médico-
usuário transexual, oriunda de confiança mútua e convívio igualitário. Em vista disso, a construção de relações intersubjetivas
entre equipes médicas e usuários trans como recurso de despatologização da transexualidade deve ser foco central para
potencializar a humanização do cuidado em saúde (Borba, 2014). Além disso, questionamentos devem ser efetuados quanto aos

4Conceito “guarda-chuva” que abrange as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento (trecho
extraído do material Orientações sobre Identidade de Gênero: Conceitos e Termos, com acesso disponível em
<https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/16/o/ORIENTA%C3%87%C3%95ES_POPULA%C3%87%C3%83O_TRANS.pdf>).
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padrões heteronormativos impostos pela sociedade por parte dos profissionais de saúde, de modo a desestabilizar e desenraizar
preconceitos e propiciar o alinhamento de novas condutas com os código de éticas profissionais das profissões de saúde, ou seja,
extinguindo toda e qualquer forma de juízo de valor no atendimento ao usuário trans, resultando no cumprimento do princípio
de Universalidade do SUS, o qual sustenta que os serviços de saúde devem ser acessíveis para toda a população, sendo necessário
capacitação prática dos profissionais da área da saúde, especificamente, pautando-se na bioética principialista (beneficência,
justiça, não maleficência e respeito à autonomia), como forma de superação dos juízos de valor, ampliando a integralidade da
pessoa trans no acesso aos serviços de saúde (dos Santos et al., 2015). Dessa maneira, conclui-se que é necessário haver diálogo
contínuo entre organizações, usuários e profissionais de saúde no âmbito de políticas públicas para que as práticas profissionais
sejam orientadas pela lógica do cuidado (Neer, 2018).

4. Considerações Finais
Com bases nas considerações dispostas nas quatro categorias analisadas, a saber: I) Panorama dos Principais Marcos
Legislativos sobre os Direitos da População Trans, II) Estigmatização e Discriminação da População Trans, III) A Lógica
Binarista e Biologizante como Promotora da Patologização e Medicalização da Transexualidade e IV) Carência de Efetividade
dos Serviços em Saúde e das Práticas Profissionais no Atendimento à População Trans, é possível verificar que a rejeição das
vivências plurais da população trans no acesso aos serviços e itinerários de saúde geram prejuízos quanto à assistência qualificada
de profissionais e instituições de saúde, sejam públicas ou privadas, às pessoas trans, colocando-as em situação de risco e
dificultando ações preventivas voltados à manutenção e cuidado integral da saúde.
Apesar dos recentes avanços nos marcos legislativos que abarcam a população LGBTQIA+, ainda são precárias as ações
afirmativas que garantam a efetividade dos direitos dessas minorias, sendo que no que diz respeito às pessoas trans e travestis,
observa-se um excesso de burocracias no Processo Transexualizador, obstaculizando o acesso aos serviços, consultas e exames,
tais como o tratamento hormonal e cirurgias. Semelhante modo, no que se refere às necessidades básicas de saúde, que não
envolvem diretamente procedimentos vinculados ao PrTr, as dificuldades de acesso também são presentes, seja numa consulta
com o clínico geral ou em exames de rotina, gerando empecilhos na busca e permanência da referida população nos tratamentos
em saúde.
O despreparo dos profissionais de saúde em relação às temáticas de sexualidade e gênero se apresenta como mais um
obstáculo enfrentado pelas pessoas trans e travestis nos serviços de saúde, uma vez que, seja por falta de conhecimento teórico-
técnico ou pela ausência de conscientização, estes profissionais não conseguem proporcionar um atendimento integral adequado
às demandas desta população, bem como não estendem suas práticas profissionais considerando o contexto social e psicológico
em que esses sujeitos estão inseridos. Nesta esteira, vale refletir sobre a visão heteronormativa e o binarismo de gênero nas
práticas em saúde, que produzem impeditivos quanto à aceitação da singularidade das pessoas trans, de modo a cercear seus
direitos e impulsionar a disseminação do preconceito e a estigmatização da transexualidade na sociedade, provocando sofrimento
àqueles que buscam espaços que ofereçam acolhimento e compreensão e, com frequência, não o encontram, sendo submetidos
a aderir à lógica de discursos prontos e classificatórios para alcançar aquilo que já são: homens e mulheres trans.
Ante o explicitado, é imprescindível que práticas em saúde sejam (re)pensadas de modo conjunto entre o poder público,
as instituições de saúde e a sociedade, promovendo conhecimento acerca das diferentes formas de expressão da sexualidade e
identidades trans, disseminando o olhar integral no cuidado em saúde e garantindo que os direitos dessa população, que, por
muitas vezes, são negligenciados, sejam, de fato, assegurados por todos. Para que tais práticas sejam repensadas e viabilizadas,
cabe ressaltar a importância de construir diálogos para a desconstrução de preconceitos por anos perpetuados em torno da
população trans, e, consequentemente, possibilitando sua desmarginalização na sociedade e no acesso aos serviços e ações em
saúde.
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Research, Society and Development, v. 11, n. 12, e276111235019, 2022
(CC BY 4.0) | ISSN 2525-3409 | DOI: http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v11i12.35019

Com a perspectiva de promover melhores condições e acesso aos serviços de saúde à população trans, sugere-se que
algumas práticas sejam efetuadas, tais como a promoção de formação, capacitação e treinamento adequados a todos os
profissionais de saúde, numa perspectiva multidisciplinar; emprego do nome social em todos os serviços de saúde e relacionados;
redução no tempo de espera para acesso à consultas, exames médicos e etapas do PrTr, como também a isenção da exigência do
laudo psiquiátrico para que se ateste a “transexualidade”. Além disso, recomenda-se a realização de novas pesquisas que deem
continuidade ao presente estudo para a ampliação da compreensão deste cenário, assim como para a construção de novas práticas
que favoreçam a despatologização e a desmedicalização a partir da integralidade do cuidado em saúde, abarcando desde o período
da infância até o envelhecimento, perpassando pela saúde da família, reprodutiva e outras áreas e, portanto, não se restringindo
às demandas de identidade de gênero, visando desenvolver conhecimentos para todo o ciclo de vida desta população, de modo
equânime ao que é empreendido às pessoas cisgêneras, inclusive no meio acadêmico e de produção científica.

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