Livro - CERQUEIRA-NETO, Sebastião P G de. Da cientificidade de Milton Santos ao ativismo de Boaventura Sousa dos Santos - Uma proposta de geografia popular. 2020
Livro - CERQUEIRA-NETO, Sebastião P G de. Da cientificidade de Milton Santos ao ativismo de Boaventura Sousa dos Santos - Uma proposta de geografia popular. 2020
Livro - CERQUEIRA-NETO, Sebastião P G de. Da cientificidade de Milton Santos ao ativismo de Boaventura Sousa dos Santos - Uma proposta de geografia popular. 2020
MILTON SANTOS
AO ATIVISMO DE
BOAVENTURA
DE SOUSA SANTOS
Reitor
João Carlos Salles Pires da Silva
Vice-reitor
Paulo Cesar Miguez de Oliveira
Assessor do Reitor
Paulo Costa Lima
Diretora
Flávia Goulart Mota Garcia Rosa
Conselho Editorial
Alberto Brum Novaes
Angelo Szaniecki Perret Serpa
Caiuby Alves da Costa
Charbel Niño El Hani
Cleise Furtado Mendes
Evelina de Carvalho Sá Hoisel
Maria do Carmo Soares de Freitas
Maria Vidal de Negreiros Camargo
Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
DA CIENTIFICIDADE DE
MILTON SANTOS
AO ATIVISMO DE
BOAVENTURA
DE SOUSA SANTOS
Salvador
EDUFBA
2020
Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto, 2020.
Direitos para esta edição cedidos à Edufba.
Feito o Depósito Legal.
Revisão
Mariana Santos
Normalização
Bianca Rodrigues de Oliveira
ISBN: 978-65-5630-023-8
CDD – 918.1
Editora afiliada à
Editora da UFBA
Rua Barão de Jeremoabo
s/n – Campus de Ondina
40170-115 – Salvador – Bahia
Tel.: +55 71 3283-6164
DEDICATÓRIA
Prefácio .............................................................................. 11
Apresentação ...................................................................... 17
Introdução .......................................................................... 19
CAPÍTULO I
Geografia Popular: a geografia em movimento ........................ 29
Uma alternativa de análise ..................................................................... 31
Geografia popular e as epistemologias do Sul ..................................... 35
Sinais históricos de uma geografia popular ......................................... 37
A cartografia oficial vista pela geografia popular ................................ 41
Geografia comportamental, território mental e a geografia popular ...... 46
CAPÍTULO 2
As macrorregiões brasileiras: linhas abissais superadas ......... 53
Divisão geoeconômica: a dicotomia Norte/Sul no Brasil ......................... 53
Cinco grandes regiões ou cinco blocos econômicos? .............................. 58
CAPÍTULO 3
Os estados brasileiros: a maior linha abissal do país ............... 65
Os estados não existem física tampouco culturalmente ........................ 66
CAPÍTULO 4
Fronteiras internas: escalas e contradições ................................ 77
Estados e cidades: onde vivemos? .......................................................... 79
Pensar o território sem a globalização: é possível? ................................ 82
Ignorando fronteiras: um caso entre Bahia e Minas Gerais ................... 88
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
O intelectual do território: a geografia pertence a todos ... 1 1 7
11
enfrentam, tristemente, certos riscos de retrocesso. É preciso re-
conhecer, nisso, um ímpeto de luta que ultrapassa os limites da
cartografia oficial, ainda mais pela proposta de resistência à emi-
nente ameaça contra as conquistas territoriais realizadas a partir
da Constituição de 1988.
Sendo assim, notamos que a reflexão geográfica do autor realça
um caráter de denúncia, que nos estampa a contraditória retórica
que promove a divisão dos territórios, no mesmo instante em que
diz buscar uma integração entre eles. Em certa medida, vindo na
esteira dos dois autores, o livro nos mostra como os mapeamentos
de países, estados, regiões, municípios, podem consolidar uma
fragmentação, na qual se define linhas abissais e lugares opacos
que sustentam o poder de certos grupos privilegiados. Dito de
outro modo, os privilégios mapeiam a realidade, de forma oficial,
em detrimento daqueles que são opacos e invisibilizados. Por isso,
o encontro conceitual entre os dois pensadores, que nas mãos de
Sebastião se tornam poderosas armas analíticas, serve para des-
mascarar os desencontros forjados por esses mapeamentos oficiais.
É digno de nota o modo como o autor traz os conceitos de
Milton Santos e Boaventura para mostrar as limitações analíticas de
dois métodos cartográficos regionais, que nada mais são do que a
formação de cartografias abissais: o método de divisão econômica,
de Pedro Geiger, e o método macrorregional, utilizado pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na crítica a ambos,
Sebastião nos escancara o caráter utópico de um projeto de in-
tegração nacional, que, na verdade, está mais destinado a manter
certos poderes econômicos e políticos locais do que, de fato, conso-
lidar um projeto de desenvolvimento igualitário, tão largamente
explorado por bocas demagógicas. Na crítica ao método de divi-
são econômica de Geiger, o livro nos mostra a semântica abissal
do mapeamento, que, através de uma suposta divisão em três
grandes regiões econômicas, acaba por significar a concentração
econômica em somente duas regiões: um sul metafórico, repre-
sentado pelo Norte e o Nordeste, e um norte desenvolvido, que é
o Centro-Oeste, Sul e Sudeste. De modo semelhante, a proposta
12 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
cartográfica macrorregional reivindica delimitar o mapeamento por
certas características socais e naturais das regiões, porém, se cons-
titui como uma visão “obsoleta, sufocante e separatista”, posto que
não tem aplicabilidade no acompanhamento das diferenças regio-
nais e dos estados. Isso, alerta Sebastião Cerqueira-Neto, não per-
mite que a divisão entre as regiões Norte, Nordeste, Sul, Sudeste,
e Centro-Oeste, culmine em um planejamento efetivo de integração
econômica, que permitiria um desenvolvimento socioeconômico
igualitário. Ao contrário, a dinâmica dos estados e regiões acom-
panha a dinâmica global das linhas abissais, com um bloco central,
ocupado pelo Sudeste, em conjunto com um bloco emergente,
do Centro-Oeste e Sul, em nítida divisão com um bloco colonial,
representado pelo Norte e o Nordeste.
Em vista disso, o livro demonstra que, no ponto de conver-
gência entre linhas abissais e lugares opacos, a geografia oficial
vira a cara para nossa complexa realidade social, em vista de um
projeto de poder. O que conduz nosso autor a propor certo recuo
dialético em que se compara duas concepções de geografia: de um
lado, quase como uma fábula, uma cartografia que não somente fecha
os olhos para as “precárias condições de vida do povo brasileiro”,
como também se cala diante da dinâmica territorial das lutas sociais,
cuja razão é o enfretamento com os limites impostos pelo poder
público; do outro, uma geografia voltada para essas lutas, preo-
cupada em conhecer as dinâmicas socioculturais que extrapolam
as linhas fronteiriças das políticas que dividem estados, regiões e
municípios.
Para demonstrar que as proposições teóricas não são abstratas,
o autor complementa a proposta do livro com estudos de caso a
respeito de territórios distintos, para, com isso, estabelecer uma
correlação entre teoria e empiria. No Capítulo 4, promove o estudo
a respeito do território da fronteira dos estados da Bahia e Minas
Gerais, nas cidades de Salto da Divisa (MG), no Vale do Jequitinhonha,
e Eunápolis (BA), no extremo sul da Bahia. Como vemos em suas
análises, o imbricamento entre essas cidades ocorre por diversos
fatores socioeconômicos, que transcendem o limite interestadual,
Prefácio 13
transpondo uma “linha abissal, que é a linha limítrofe entre os
Estados”, imposta pela cartografia oficial. Segundo o estudo, somente
através da compreensão do Brasil como um território único, será pos-
sível interpretar a dinâmica entre territórios fronteiriços, como uma
ação da geografia popular. O autor nos amplia o olhar sobre a contradi-
ção implícita dessa dinâmica, pois, do mesmo modo dessa fronteira,
podemos observar que em outras fronteiras estaduais “os territórios
privilegiados, muitas vezes, se encontram na proximidade dos lu-
gares opacos”.
No Capítulo 5, o livro explicita a dinâmica territorial e a invi-
sibilidade de comunidades tradicionais em outros dois territórios
localizados na Bahia. O primeiro estudo de caso é sobre a comunida-
de quilombola de Helvécia, que passa por tensões no seu território,
advindas do processo de eucaliptização na região. A segunda abor-
dagem é sobre a etnia Pataxó, da Reserva da Jaqueira, no município
de Porto Seguro, na qual o dinamismo da atividade turística impõe
uma nova lógica de adaptação, tanto para a sobrevivência cultural
quanto econômica da comunidade indígena. Além disso, destaca a
contradição implícita na criação de reservas culturais indígenas,
que “tanto podem representar um lugar da preservação e proteção
da cultura, como também podem significar um confinamento dentro
de um arranjo territorial”. Nessa abordagem, as reservas podem
criar uma cartografia abissal, marginalizando a comunidade indígena
da convivência sociocultural com o restante do território, invisibili-
zando ainda mais esses povos tradicionais.
Nesse caso, a geografia popular, como uma epistemologia
do sul, promove uma transgressão da leitura oficial dos territórios,
em busca de uma superação das fronteiras, para, a partir disso,
conferir visibilidade aos invisibilizados, em especial, indígenas e
quilombolas. Essa luta é também de reconhecimento, da existência
do sul metafórico, dos saberes vindos do sul, da dinâmica que ultra-
passa as linhas abissais e nos mostra como “novos mapas” são ela-
borados à margem da legalidade, para atender aos anseios sociais,
como um modo de “desmanche” das fronteiras impostas pelas infra-
estruturas de poder oficial.
14 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Por fim, o autor traz um importante questionamento que nos
faz refletir sobre qual caminho devemos seguir, “O que o Brasil pre-
tende fazer com o seu território; continuar a produzir uma carto-
grafia abissal, aumentando áreas com lugares opacos?”. De acordo
com ele, se observarmos a nossa postura atual, a tendência é que
esses fossos se ampliem, continuando excludentes, e a invisibilizar
determinadas camadas da população. Por isso, pode-se ressaltar
que a crítica do autor à cartografia oficial constitui especialmente
um alerta sobre o seu uso governamental, cujo foco serve somente
para reforçar o abismo e aumentar a invisibilidade de determina-
dos grupos sociais. Dentro dessa abordagem, podemos vislumbrar
uma proposta de investigar os movimentos da geografia popular como
uma contribuição para a estruturação de estudos sobre a fragmen-
tação do território brasileiro, através das linhas abissais, das epis-
temologias do sul, e da geografia nova, para questionar as cartografias
oficiais que ainda são hegemônicas no Brasil. Nesse sentido, Sebastião
Cerqueira-Neto finaliza dizendo que a contribuição almejada por
este livro é dar um ponta pé para um debate que ainda delimita
o seu curso, em vista da necessidade se aprofundar os estudos e as
pesquisas sobre os fragmentos de um território denominado “Brasil”,
para, a partir disso, apontar as possíveis direções que permitam
“a superação das fronteiras internas, ou seja, a tão sonhada inte-
gração nacional”. Parafraseando Milton Santos, o autor sinaliza um
caminho que clama: por uma geografia popular!
Prefácio 15
A PRE SE N TA Ç Ã O
17
méritos de Cequeira-Neto é se contrapor às cartografias idealizadas,
falseadas e portadoras de uma integração artificiosa que, ao invés
de revelar as reais fissuras territoriais, escamoteiam e mascaram o
complexo de realidades fragmentadas na extensão dos territórios.
Partindo do conceito de linha abissal e, na perspectiva das episte-
mologias do sul, o autor nos alerta para a disjunção que há entre o
norte e o sul e posiciona-se criticamente ao apontar para o modo
como essa separação compromete e inibe as oportunidades de
desenvolvimento para os povos subalternos e subordinados a uma
perversa lógica. Enfim, ao leitor está concedida a oportunidade de
perceber uma geografia popular que desvela e supera o mundo das
sombras em que esteve até agora mergulhada a geografia e a sua
cartografia oficial. Nesse irromper de inconformação, Cerqueira-Neto
apresenta-se tal qual o refugiado egresso da Caverna de Platão que,
inconformado com mundo das sombras, esforça-se para demonstrar
as relações precárias como relações invisibilizadas, para evidenciar o
não-território como território precário, para revelar as subjetivida-
des precárias como não-subjetividade e, por fim, para trazer à baila
uma cartografia que não é similar à cartografia oficial, por envolver
sobretudo uma articulação de saberes que resgata o rosto humano
dos povos e comunidades tradicionais, razão pela qual seu trabalho
funda em nossa geografia a chamada “cartografia dos descartáveis”.
18 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
IN TROD UÇ Ã O
19
Acerca do tratamento que se dá nessa abordagem, concernente
ao território, resvala-se tanto para a fisiografia de uma paisagem,
quanto para um panorama construído pelo imaginário, desenhado
sobre o papel ou na mente das pessoas; sendo, aqui, considerado
como espaço entrecortado de poder, atravessado pelas relações
afetivas e culturais. Assim, físico e humano são indissociáveis, pois o
território é composto por diferentes formas de relevo, diversidade
biológica, variações climáticas, modelado por corpos hídricos, chuvas
e intemperismos, mas o território é também o palco onde as socie-
dades, ao longo de milhares de anos, implementam seus símbolos,
fazendo de cada território um lugar singular através de suas iden-
tidades culturais. Assim, física e culturalmente, os territórios são
construídos, destruídos e renovados.
A discussão teórica do livro, centrada em Boaventura de
Sousa Santos (2008), se debruça sobre o conceito de linha abissal,
discutindo o fosso existente entre o sul e o norte, no que se refere às
oportunidades de desenvolvimento, portanto, parte-se da abordagem
denominada de epistemologias do sul, corrente de pensamento
que estuda as estratégias dos povos subalternos sobreviventes às
pressões de uma ideologia colonialista que ainda permanece nos
dias atuais. Outro norteamento teórico, na esteira do pensamento
miltoniano, se direciona à concepção da geografia nova, respon-
sável pela confecção de outras formas de interpretar o território,
aproximando-se da dinâmica social, de modo a não ser apenas uma
expectadora, mas sim um agente no processo de transformação, as-
sumindo feição de geografia aplicada ao tentar compreender os
chamados “homens lentos”, que vivem nos lugares opacos, analisa-
dos amiúde nas pesquisas desse autor. Portanto, esta obra propõe-se
a realizar um encontro dialógico entre dois pensadores que conhe-
cem tanto o sul como o norte, que estudaram o desenvolvimento e
o subdesenvolvimento; e, a partir deles, elaborar uma reflexão que
contribua para a compreensão de vetores que propiciam a formação
de cartografias abissais, mormente, no território brasileiro.
Com o fito de embasar a principal reflexão proposta por este
livro, foram compilados fragmentos dos pensamentos de Milton
20 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Santos e Boaventura de Sousa Santos e suas respectivas preo-
cupações com os principais fatores causadores dos processos de
fragmentação e segregação do território. E, como forma de estabe-
lecer a relação da teoria com o empirismo, na busca de demonstrar
que as linhas abissais e os lugares opacos não são abstratos, dois ter-
ritórios são citados no livro: no Capítulo 4, uma análise da superação
da fronteira entre dois municípios, um no estado de Minas Gerais,
e o outro na Bahia; e no Capítulo 5, a opacidade de comunidades
tradicionais, como a etnia Pataxó e o Quilombola de Helvécia.
Introdução 21
em menor escala nos seus interiores. Nessa guerra, “os governos
locais competem entre si para transformar as suas cidades ou regi-
ões em agentes de competitividade muito para além da economia
nacional”. (SANTOS, B. S., 2008, p. 289) Em contraponto a essa
cartografia abissal, feita pelas geografias oficiais, assiste-se ao
aparecimento de dinâmicas populares que propõem superar uma
cartografia cristalizada.
Portanto, as linhas abissais são análogas aos muros invisíveis
que separam os lugares luminosos dos lugares opacos. Essas linhas
abissais são, em geral, produzidas pelo poder público, através da
construção de uma cartografia oficial. Cartografia esta concretiza-
da na delimitação dos mapas dos estados e dos municípios com os
seus distritos, e a única a ser validada legalmente como uso para
organização territorial; enquanto que as cartografias sociais, culturais,
por exemplo, são negligenciadas ou desprezadas pelo poder público.
Na contramão dessas linhas abissais, surge a dinâmica popular,
produtora de outras e novas cartografias ou mesmo uma não-car-
tografia, cujos atores estarão inseridos nos movimentos sociais,
urbanos e rurais, nas comunidades tradicionais, nas famílias, ou mes-
mo no movimento de uma única pessoa, a exemplo dos andarilhos.
Essa cartografia, chamada neste livro de cartografia popular, questiona
a rigidez das cartografias oficiais e pretende apresentar outras pos-
sibilidades de se viver em um território.
22 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
é maior que o território da França; e, entre as regiões da Bahia,
através da sua divisão regional econômica, será possível encontrar
regiões maiores que a Bélgica, como o extremo sul da Bahia, que possui
uma área de 30.648 Km². O extremo sul da Bahia e o oeste baiano
são exemplos de territórios que, devido ao exponencial desenvolvi-
mento econômico: primeiro, em consequência do turismo e cultivo
do eucalipto; e, segundo, em função do agronegócio como principal
vetor econômico, delinearam uma cartografia com status comparado
ao de outras unidades da federação. Nessas regiões, ainda que inci-
pientes e sem muito eco, aparecem discursos que vão em direção a
proposições de emancipação política.
Assim, a soma de grandes extensões territoriais combinada com
a presença precária do estado traz sérias consequências para a ad-
ministração pública, principalmente para os governadores dos es-
tados, acirrando as tensões entre poder central do estado e regiões
prósperas economicamente, com destaque para a iniciativa privada.
Em contraposição, regiões por muito tempo alijadas de políticas de
desenvolvimento estadual sofrem com o chamado “cenário de aban-
dono estadual”, cita-se, de modo particular, o estado do Tocantins,
antigo norte goiano, que enfrenta situação congênere de abandono.
Apesar da não linearidade deste fenômeno em todos os estados da
federação brasileira, é preciso compreender que algo está aconte-
cendo dentro de algumas regiões estaduais, encaminhado-as para o
desejo de emancipação política; e isso pode estar ligado a uma car-
tografia oficial, que, por estar cristalizada, não consegue enxergar
novos mapas que estão sendo construídos à margem da legalidade,
porém, próximos a outros anseios sociais.
Desde a época das capitanias hereditárias até a invenção dos
atuais estados, é possível afirmar que as cartografias oficiais foram
instrumentos norteadores preponderantes para implantação de um
modelo baseado na concentração de privilégios. Em decorrência disso,
deve-se estudar as transformações do território brasileiro, a partir
de seu contexto político-administrativo. Atualmente, o Brasil está
subdividido em 26 estados e um distrito federal, com cinco grandes
regiões, amplamente fragmentado; não exclusivamente pela sua
Introdução 23
divisão político-administrativa, mas, sobretudo, pela concentração
de investimento, pelas taxas e impostos que privilegiam poucos,
em detrimento de muitos, e pela incapacidade histórica de gover-
nança para todos. Cada parte dessa fragmentação é uma geografia
inventada, são novos mapas, que, em nome de um modelo admi-
nistrativo do território, geraram a construção de linhas abissais que
ficaram de tal forma impregnada na gestão pública, que facilmente
se tornaram parte da cultura administrativa dos governantes do país.
O modelo administrativo adotado no país é, historicamente,
concentrador, por conseguinte, excludente, pois, privilegia os cen-
tros econômicos, capitais e grandes cidades, em detrimento das
pequenas e médias cidades. Por exemplo, em âmbito nacional,
os maiores investimentos concentram-se na região Sudeste, mais
especificamente no estado e na cidade de São Paulo. Na capital
paulistana, estão os bancos de todas as nacionalidades, escritórios
de grandes multinacionais, a aglomeração de um maior número de
indústrias e empresas, uma das principais universidades do país,
centros de desenvolvimento tecnológico e de pesquisas. Em São
Paulo, a inovação tecnológica chega primeiro, justamente para
atender a esse conjunto de setores responsáveis pelo desenvolvi-
mento em todas as esferas.
Nos outros estados da federação, as capitais – numa escala
bem menor que São Paulo – são os centros privilegiados, dinâmica
justificada sob o argumento de que esses lugares possuem maiores
quantitativos populacionais, são os centros do poder político e
econômico. Entretanto, contraditoriamente, esta concentração não
resultou em melhoria da condição humana nos grandes centros
brasileiros, ao contrário, os pobres estão em relevo, sobrevivendo
nas calçadas dos centros financeiros, nos albergues públicos, nas
periferias alijadas dos serviços públicos básicos; são os indivíduos
que também fazem parte do sul metafórico. Esse sul metafórico,
proposto por Boaventura de Sousa Santos (2008), remete à condição
de pobreza, invisibilidade, resiliência, de outro modo, à subalterni-
dade que se instala tanto no norte capitalista quanto no centro do
poder do sul.
24 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Portanto, pode-se dizer que não existem lugares privilegiados
de forma homogênea, mas sim pessoas privilegiadas, haja vista que
tanto é possível encontrar privilegiados no Sul, como encontrar os
invisibilisados no Norte. Nesse sentido, o conceito de sul metafó-
rico proposto por Boaventura de Sousa Santos (2008) é similar ao
conceito de lugar opaco formulado por Milton Santos (1997), pois,
nos lugares opacos, estarão, concomitantemente, os homens lentos
e os pobres; na acepção deste último autor, os pobres são mais fortes,
já que conseguem (sobre)viver à escassez, portanto, uma forma
de resiliência.
O modelo administrativo baseado em privilegiar quem é ou
quem está no centro tem provocado um enorme esfacelamento do
país, criando uma disputa interna entre os estados, afastando cada
vez mais os brasileiros uns dos outros e, consequentemente, não
reconhecendo o outro como pertencente à sua geografia, isto é,
como parte do seu território. Decerto que a temática abordada no
livro encontra resistência entre políticos que têm receio de perder
o poder no território, e entre os economistas que veem a criação de
novos estados e municípios apenas como um aumento de despesas
para o país. Todavia, quem se dedica às ciências sociais e humanas
não deve se furtar a oferecer uma contribuição, ainda que esta
cause incômodo naqueles que têm dificuldades ou que optaram
por não sair de suas zonas de conforto. Assim, este livro envereda
pelo caminho de análise proposto por Milton Santos quando ele diz,
em 1997, no programa Roda Viva da TV Cultura, que uma das princi-
pais funções do intelectual é causar o desconforto através de rigoro-
sas análises sobre tudo que envolva a dinâmica de um dado território.
Introdução 25
o caminho de suas análises; território este interpretado por autores
que tiveram suas obras abafadas para dar lugar a uma literatura
estrangeira extremamente desconectada com a dinâmica histórica
e geográfica do país. Talvez por isso Milton Santos fosse tão enfático
quando falava da necessidade de se produzir teorias indígenas,
isto é, gestar análises genuinamente brasileiras. Teorias geradas
no próprio laboratório do habitat, forjadas no chão onde vivemos,
sobretudo, nos lugares opacos, assim como fez Josué de Castro
com os manguezais na cidade de Recife, o que significa pensar a
partir do sul, como sugere Boaventura de Sousa Santos (2010a),
convocando as epistemologias do sul. Por essa ótica, embora não
existam referências nominais, os estudos aventados recorrem à
geografia econômica de Celso Furtado, que pensou o desenvolvi-
mento do Nordeste por outros caminhos que não fosse apenas pelos
níveis de pluviosidade da região; à geografia da fome de Josué de
Castro; à geografia cultural de Darcy Marinho, que se dedicou a dar
visibilidade às etnias indígenas, e a Abdias do Nascimento, na defesa
dos afrodescendentes do Brasil. Todos eles pesquisadores preo-
cupados com a dinâmica dos lugares opacos, em outras palavras,
do sul metafórico.
Na perspectiva de Milton Santos (1997), é fundamental não per-
der a condição de críticos ainda que estivessem morando no Norte.
Dessa forma, em um esforço de produção da análise sobre a dinâ-
mica geográfica brasileira, pontualmente sobre algumas causas da
sua fragmentação, este livro oferece mais um caminho pelo qual
pode ser interpretada a geografia do Brasil. Uma interpretação
alternativa através do que será chamado neste livro de geografia
popular; uma geografia que tem, nos movimentos da sociedade,
sua principal linha de análise, especialmente, nos movimentos que
rompem as fronteiras, superando as linhas abissais e que dão lu-
minosidade aos lugares opacos. Então, na verdade, não se propõe,
aqui, uma ramificação na geografia, intenta-se problematizar a cons-
trução de um outro olhar sobre fatores que fazem parte do conjunto
de intervenientes que comprometem satisfatoriamente a integra-
ção nacional.
26 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
De acordo com Milton Santos,1 a nomenclatura técnica do pro-
cesso é secundária, visto que o foco recai sobre a decodificação dos
componentes de formação, causas, consequências; categorias pri-
márias de identificação, ao invés de preocupar-se de forma exaustiva
com o nome do teórico que cunhou o nome “globalização”, optam por
decrifrar o lado benéfico e o perverso deste fenômeno.
Introdução 27
de um dado território. Outro ponto de convergência nas referidas
obras reside na crítica veemente à injustiça, à indignação com a
fragilidade das governanças, o sequestro do território pelas gran-
des empresas, a perversidade de alguns agentes da globalização,
a valorização das vozes dos excluídos, o desejo de que os intelec-
tuais estejam mais próximos do povo.
Partindo das insignes referências teóricas supracitadas, entende-
se que o mais significativo em suas posturas, como intelectuais,
foi analisar a geografia global, isto é, a Terra como morada de todos,
colocando a dignidade humana em primeiro lugar, sob um prisma
eminentemente humanístico. Em síntese, não se prenderam ao
tecnicismo “frio”, tampouco à rigidez de um método para com-
provar ou não suas percepções. Esses dois pensadores souberam
produzir leituras fortemente amparadas no humanismo, investi-
gando o abismo social, econômico, e étnico entre as sociedades,
como aspectos basilares de suas análises. Eles tiveram a coragem
de romper e criticar a rigidez metodológica que outras ciências im-
puseram às suas, propuseram novas formas de observar o território,
disseminaram ideias sobre outras formas de conhecimento e de aten-
ção aos estudos sobre o subdesenvolvimento, pois, no subdesenvol-
vimento, que estão os resistentes, os que sabem viver na escassez.
28 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
CAPÍTULO I
1 Grande parte do Capítulo 1 se transformou num artigo, que foi publicado na Revista
Cronos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Ver: Cerqueira-
Neto (2017).
29
Mesmo com toda a crítica que pode ser remetida a essa linha
de análise, são as abstrações e as metáforas como, por exemplo,
a indignação, a injustiça, a religiosidade, a conscientização, os ho-
mens lentos, os lugares opacos, o lado invisível, a linha abissal,
que, quando provocadas, emitem uma força de incalculável di-
mensão territorial, podendo causar grandes transformações con-
cretas no território quando afloradas via inconformismo popular e
com repercussões nas análises de intelectuais; caminho que também
pode ser feito por intermédio da ciência com repercussão nas ruas,
no campo, na cidade etc. De acordo com Boaventura Sousa Santos
(1989, p. 30):
30 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Uma alternativa de análise
32 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Daí a necessidade de quem se lança ao estudo do território
e da sociedade, de estar preparado para renovar suas análises,
seus métodos, ousar na criatividade, pois, caso contrário, corre o
risco de realizar uma pesquisa destoada da dinâmica geográfica,
consequentemente, desinteressante para a sociedade. De sorte que a
geografia é posta neste livro como a totalidade do território, desde a
sua fisiografia construída pela natureza até o uso dessa natureza pela
sociedade. Logo, a fragmentação ou o esfacelamento do território é,
por conseguinte, a fragmentação da geografia. Por exemplo, os mapas
estaduais no Brasil representam muito mais uma fragmentação do
território nacional que uma organização do território, dado o com-
portamento bairrista dos governadores.
Partindo do princípio de que a geografia, como vocábulo, pode
receber múltiplas acepções, e que, enquanto ciência, possui uma
abrangência ilimitada no que se refere ao estudo do território, expli-
cando suas inúmeras ramificações, a geografia popular se propõe a
analisar o território a partir da transgressão às cartografias oficiais, isto é,
a superação de fronteiras, de mapas que se tornaram uma espécie de
confinamento social, cultural, étnico e econômico. Essas transgres-
sões geralmente têm como motivações anos de vivência de indivídu-
os que estão no lado invisível da linha abissal, em territórios opacos.
Em escala global, essas movimentações acontecem desde a
história mais recente até o presente, por exemplo, no caso da fuga
de pessoas que vivam nos países da Cortina de Ferro em direção ao
Ocidente, no caso dos refugiados da Síria em direção à Europa, e a
marcha de milhares de migrantes da América Central desafiando
a rígida fronteira que os separam dos Estados Unidos. Em escala
nacional, os movimentos sociais do campo, que desejam ampliar
seus mapas através da reforma agrária, também se constituem em
estratégias de transgressões cartográficas, como: os movimentos
sociais que lutam por moradia e acabam ocupando prédios abando-
nados nas áreas centrais das grandes cidades, se mostrando visíveis,
saindo da opacidade; e as fronteiras estaduais que são superadas
todos os dias de forma silenciosa em busca de saúde, educação
34 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
não se pode perder a capacidade de compreender que vivemos numa
única massa de terra, independente das cartografias federais, estaduais
ou municipais. O estudo sobre a geografia popular reconhece os limites
naturais ou imaginários dados por uma cultura, porém, ignora um
mapa como a delimitação do espaço da vida, pois em seu cerne está
o homem. Segundo Claval (2006, p. 135), uma “abordagem humanista
é indispensável para perceber as diferentes dinâmicas em curso nas
sociedades que partilham a Terra”. Em consonância com o pensa-
mento desse teórico, compartilha-se a seguinte hipótese de pesquisa:
para o povo, é indiferente compreender a função dos meridianos e
das coordenadas geográficas, pois, tais questões são extremamente
assistemáticas e irrelevantes frente aos diversos fatores que garantam
sua sobrevivência em um determinado território. Assim, os cálculos
matemáticos que geram um mapa seriam secundários. O importante
é como a vida vai se dar dentro desse mapa.
Ao propor a transgressão da cartografia abissal, o estudo da geo-
grafia popular não pretende implantar um pensamento antidiferencia-
lista para o país, mesmo porque é natural que haja, num mesmo pedaço
de território, a convivência de subsistemas diferentes, originados em
diferentes épocas. (SANTOS, M., 2006) Certamente que a geografia
popular reconhece a multiculturalidade do país, entretanto, é preciso
interrogar a construção de linhas abissais perenes, pois se trata de uma
arquitetura que expressa formas de exclusão e fragmentação cultural,
social e econômica do território nacional. Nesse sentido, a geografia
popular desconstrói as linhas perversas dos limites geográficos, e,
por isso, é solidária, social e capaz de oferecer uma opção de como
compreender o país em que vivemos.
36 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
En los últimos treinta años surgieron nuevos agentes, nuevos
actores, nuevas luchas sociales y políticas, nuevas formas de
agencia que no están debidamente teorizadas por una teoría
crítica; los movimientos indígenas, los movimientos de mujeres,
los movimientos de gays y lesbianas son ejemplos de esto.
(SANTOS, B. S., 2009b, p. 19)
38 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Celso Furtado (1920-2004), por sua vez, pensou em um modelo
de desenvolvimento para o semiárido brasileiro através da educação
e industrialização, essa proposta visava retirar parte do povo brasi-
leiro do atraso educacional e econômico, uma estratégia de supe-
ração da linha abissal que até hoje segrega o semiárido do norte
desenvolvido do país. Darcy Ribeiro (1922-1997) também foi ao
sul metafórico, onde estavam povos indígenas, vivendo em cons-
tantes conflitos, que duram até os dias atuais, pelo direito de viver
em suas terras, cada vez mais sufocados por cartografias abissais.
Nesse ponto, o antropólogo brasileiro mostrou como poderíamos
aprender com povos indígenas sobre a relação com o território, uma vez
que o conhecimento que emana das comunidades tradicionais e no
interior dos movimentos sociais nunca foi absorvido pela sociedade,
sobretudo pela academia, como um “conhecimento real; existem
crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou sub-
jetivos, que, na melhor das hipóteses, podem tornar-se objetos ou
matéria-prima para a inquirição cientifica”. (SANTOS, B. S., 2010a,
p. 34) E é essa ponte que precisa ser construída entre a ciência e o
conhecimento popular e tradicional, por enquanto essa ponte está
apenas com alguns pilares.
Esse pequeno rol de intelectuais, que com certeza pode ser alar-
gado com outros clássicos brasileiros em outras áreas do conhecimento,
demonstra que houve uma parte da intelectualidade brasileira que
construiu um pensamento próprio, fundado nas características geográ-
ficas do país, e que, de certa forma, acusou a existência de linhas
abissais no território. Segundo Milton Santos (1997), em uma entre-
vista no programa Roda Viva da TV Cultura, a construção desse pensa-
mento pode ser entendida como um conjunto de teorias indígenas,
que deveriam guiar a construção do pensamento crítico brasileiro.
Ao trazer o significado de geografia popular para outros fatos
histórico-geográficos ocorridos no território brasileiro, como as lutas
nativistas, será possível verificar que todos eles foram motivados por
um descontentamento com linhas abissais produzidas por aqueles que
detinham o poder, seja na fase colonial ou por governos constituídos
40 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
partidos políticos, organizações não governamentais, ativistas, povos
tradicionais ou por pessoas que não se enquadram em nenhuma
classificação; a atuação desses movimentos, ao contrário do que
se pensa, “não reside na recusa da política, mas no alargamento
da política para além do marco liberal da distinção entre Estado e
sociedade civil”. (SANTOS, B. S., 2013a, p. 217) E quando esses mo-
vimentos fluem pelo território urbano, rural ou florestal, eles rom-
pem as linhas abissais, fazendo com que os mapas oficiais sejam
totalmente ignorados.
Portanto, ao elencar alguns intelectuais brasileiros, como Josué
de Castro, Darcy Ribeiro, Celso Furtado e Caio Prado Júnior que, através
de suas pesquisas, denunciaram as precárias condições de vida do
povo brasileiro, ao colocar as lutas nativistas como transgressões de
linhas abissais, e ao reconhecer que os movimentos atuais exercem
um papel importante na busca de uma justiça territorial, se pretende
caracterizar a dinâmica da geografia popular.
42 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Certamente, que a cartografia tem utilidade para a geografia
popular, sobretudo, na composição de novos mapas, com propostas
que sejam compatíveis com a dinâmica social, mapeando áreas de
supressão e de desmanche de linhas abissais, isto é, uma carto-
grafia que se sobreponha às cartografias oficiais. Ciências como
a antropologia, por exemplo, têm conseguido realizar, através da
cartografia, mapeamentos de alguns povos tradicionais do Brasil,
uma cartografia que mapeia a localização de povos invisibilizados.
Assim, os mapas produzidos pela cartografia oficial podem levar
a equívocos de interpretação, visto que podem “inevitavelmente
distorcer a realidade” (SANTOS, B. S., 2002a, p. 186), justamente
porque o poder público não consegue acompanhar a dinâmica social,
e continua a gerenciar o território através de mapas obsoletos.
A crítica que Boaventura de Sousa Santos faz com relação a
determinados mapas é pertinente a partir do momento em que
se verifica que a cartografia, não raro, está a serviço daqueles que
detêm o poder político, que utilizam os mapas para criar seus terri-
tórios de controle político; do poder militar, para proteger suas fron-
teiras e intervenção em outros territórios; e do poder econômico,
na ampliação de território das grandes empresas. Nesse sentido,
quando se coloca a geografia fortemente vinculada à cartografia,
entendemos que ela “tantas vezes ao serviço da dominação, tem de
ser urgentemente reformulada para ser o que sempre quis ser:
uma ciência do homem”. (SANTOS, M., 2004, p. 261) A geografia
popular é um pouco disso, tenta acompanhar a ideia da geografia
nova, proposta por Milton Santos (2004), e se configura como uma
perspectiva curiosa, visto que ela está em
44 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
as mulheres a severas humilhações morais e físicas? Como entender
que um país se relacione com um outro que impõe à sociedade um
regime autoritário, corrupto? Como explicar a relação que um país
tem com o outro, sendo o arsenal bélico sua maior propaganda
de governo? Como estabelecer diplomacia com países que adotem
a pena de morte? Como explicar a política de blocos que retalham
o mundo em profundas linhas abissais?
Obviamente, há explicações plausíveis, mas que, no entanto,
não são vistas a olho nu, e, por isso, as respostas podem estar nos
pontos cegos, que são aqueles que nem mesmo os radares mais po-
tentes conseguem identificar; essas relações só podem ser enten-
didas através da cartografia oficial de cada país, mas, geralmente,
são mapas que ganham status de documentos altamente secretos,
importantes para a segurança nacional. Entretanto, mesmo diante
de uma cartografia confusa ou caótica, é possível identificar, através
de olhares críticos, que nestes pontos cegos vigoram o
46 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
teórica pode ser utilizada nas análises geográficas, sobretudo dentro
da geografia humana. Uma abordagem geográfica que venha a se
apoiar na visão de Ouriques (2009) se torna pertinente porque,
mesmo que o homem seja o centro num determinado estudo de
geografia, pouco se dá atenção sobre a influência que seus sen-
timentos têm sobre a configuração de um território. No entanto,
essa relação é indissociável, pois, não há como separar o território
mental do território do geográfico, ainda mais quando se leva em
consideração que o território só pode ser produzido pelo homem.
Logo, todo território é projetado na mente, carregado de sentimentos de
toda natureza, para, depois, se concretizar nas diferentes paisagens.
Portanto, o que se vê em um dado território, salvo os elementos
físicos de uma paisagem, é o resultado de um complexo sistema
que produz mapas mentais originados de múltiplos sentimentos,
percepções, desejos.
A proposição do uso do território mental nos estudos geo-
gráficos só é possível na geografia humana, especificamente, na
geografia da percepção e do comportamento ou, simplesmente,
geografia comportamental. Segundo Milton Santos (2004, p. 91),
essa seria uma das novas tendências da geografia, e o fundamento
da sua abordagem “vem do fato de que cada indivíduo tem uma ma-
neira específica de apreender o espaço, mas também o de avaliar”.
Portanto, é possível realizar uma análise da configuração territorial,
aproximando o conceito de território mental com a perspectiva de
estudos sugeridos pela geografia comportamental.
Ao trazer o território mental para os estudos da geografia,
a intenção é entender a dinâmica e a configuração antes da sua
concepção, pois, o que se vê num território, suas rugosidades, é o
resultado do que foi pensado antes: pensamentos individuais, pensa-
mentos em grupos, em rede, organizados ou não etc. Evidentemente
que esta análise não tem a pretensão de abarcar o campo de atuação
do território mental, haja vista que Ouriques (2009) propõe que sua
teoria possa ser utilizada, por exemplo, na comunicação, na política,
na economia. Nessa investigação, o uso desse conceito vem como
48 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Se a geografia humana tem como premissa o desenvolvimento
de um pensamento crítico, então, o exercício de filosofar se torna
imprescindível, haja vista que “já não se pode produzir conhecimento
em Geografia sem colocar-se a questão de uma reconstrução epis-
temológica e, portanto, filosófica”. (SILVEIRA; VITTE, 2010, p. 13)
Em resumo, propor uma análise geográfica, sobretudo, se esta es-
tiver norteada por uma visão humanista, deve significar a possibi-
lidade de descobrir, experimentar e combinar outras formas de se
pensar o território, buscando também em intelectuais que estejam
fora da geografia, mas que se dedicam a pensar na relação da
sociedade com o território, pois, só assim a geografia cumpre seu
objetivo maior, que é o de colaborar com a interpretação do mundo
em que vivemos. Uma única ciência, com seus conceitos, não dará
conta dessa tarefa, que é inacabável.
Para Ouriques (2009, p. 77), o território é uma categoria impor-
tante para a
50 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
híbridos e as fronteiras apresentam seus graus de abertura,
suas franjas móveis por onde os saberes se arguem e as práticas
mostram sua complexidade. (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA
2015, p. 202)
Divisão geoeconômica:
a dicotomia Norte/Sul no Brasil
53
do país por meio de uma caracterização geoeconômica, contudo,
o seu mapa nos enseja uma cartografia abissal, tal como a divi-
são geoeconômica mundial. Essa divisão regional não se mostra
eficiente e dificulta uma análise mais profunda das singularidades
dos estados que compõem essa proposta cartográfica. Ao tentar
classificar os estados tendo a variável econômica como fator de-
terminante, o mapa mascara as grandes disparidades internas das
regiões propostas e ao mesmo tempo realça uma hierarquização
econômica. As linhas traçadas nesse mapa colocam alguns esta-
dos em duas regiões econômicas, demonstrando que, dentro dos
estados, existe uma diversidade econômica e que, portanto, não
podem ser classificados unicamente por um setor da economia.
Ademais, é um mapeamento que dificulta compreender a simpli-
cidade de cada lugar e que, de certa forma, distorce a realidade.
Esses são alguns dos riscos que um mapa como esse pode trazer
para a interpretação do território.
54 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Um olhar mais detalhado sobre a Figura 1 revela o seguinte
cenário: se apagar a linha que divide as regiões Norte e Nordeste,
será possível visualizar uma divisão quase que simétrica entre o
norte e o sul do país. Nessa divisão geoeconômica, o sul geográfico
do Brasil é a parte mais desenvolvida do país, e o norte geográfico
do país é a parte mais pobre, onde se encontram os aspectos mais
marcantes do subdesenvolvimento. Ao colocar esse mesmo mapa
da Figura 1 invertido, o sul metafórico passa ser o norte, e o norte
desenvolvido será o sul.
Outra perspectiva de análise sobre essa proposta de divisão
geoeconômica mostra a Amazônia como uma região que tem sua
economia baseada na exploração dos elementos da paisagem natural,
o Nordeste com uma economia voltada para a agricultura de subsis-
tência, e o Centro-Sul seria a região mais desenvolvida economica-
mente, onde se concentra a maior parte das indústrias do país. Social
e ambientalmente, a Amazônia é caracterizada pelo clima chuvoso,
com grandes áreas de florestas e população composta por indígenas,
comunidades ribeirinhas e caboclos, o Nordeste agrupa estados do
clima semiárido, geralmente associado à condição de pobreza dos
seus habitantes, e o Centro-Sul é onde estão os maiores Índices de
Desenvolvimento Humano (IDH), sendo altamente urbanizado.
Portanto, tudo que é considerado exótico ou rudimentar está con-
centrado na Amazônia e no Nordeste, e, por outro lado, o Centro-Sul
é referência de modernidade e desenvolvimento, onde estão as
metrópoles ou as cidades grandes. Criticamente, esse mapa deli-
mita o Brasil economicamente não em três regiões, mas em duas,
visto que identifica o Centro-Sul como o norte desenvolvido, e a
Amazônia e o Nordeste são o sul subdesenvolvido.
Objetivando evidenciar que essa proposta de Geiger, caso fosse
adotada, confirmaria o seu caráter abissal, foi utilizado um estudo
(Quadro 1) que o IBGE, órgão oficial do Governo Federal, divulgou no
ano de 2013 sobre o ranking das dez cidades com mais miseráveis
e dez cidades com menos miseráveis. O resultado expõe o quanto
o fosso entre os lugares brasileiros é demasiadamente profundo.
Santo Amaro do Maranhão (MA) 91,37% Monte Belo do Sul (RS) 2,91%
56 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
e Amazonas (51,7%). Contudo, é preciso entender que, nos outros
estados brasileiros, mesmo entre os mais ricos, há enormes desigual-
dades econômicas entre eles, bem como internamente entre cidades.
Evidentemente, o mapa proposto por Pedro Geiger não foi o
responsável por produzir o panorama de abissalidade no país, aliás,
essa proposta não foi implementada por nenhum governo. Porém,
essa proposição permite estabelecer diferentes análises, inclusive
a criação ou aprofundamento de abismos, nesse caso, abismos entre
as macrorregiões econômicas do país. Ao produzir uma cartografia
baseada em atividades econômicas, não se configura um equívoco
teórico-metodológico, no entanto, deve-se levar em consideração
que é uma proposta efêmera, haja vista que a fluidez das ativida-
des econômicas pelo território é tão intensa que é quase impossível
confeccionar mapas de suas ocorrências em um mesmo estado
ou região. No seu livro Geografia Econômica, de 1998, outro importan-
te geógrafo brasileiro, Manuel Correa de Andrade, escreveu sobre a
dificuldade de cartografar as grandes empresas, tendo em vista que
elas diluíam suas atividades em diversos ramos de atuação por todo
o território. Em tempos de globalização, de avanços tecnológicos e
novas configurações empresariais, essa cartografia se torna ainda
mais laboriosa.
Assim como a dinâmica econômica, acompanhar a dinâmica
das linhas abissais é um dos exercícios mais árduos para um estu-
dioso do território, visto que essas linhas ora são fixas, mas também
são extremamente maleáveis podendo ser implantadas em qualquer
direção. De acordo com Boaventura Sousa Santos (2010a, p. 40)
“a permanência das linhas abissais globais ao longo de todo o pe-
ríodo moderno não significa que estas se tenham mantido fixas.
Historicamente, as linhas globais que dividem os dois lados têm
vindo a deslocar-se”. O deslocamento dessas linhas se deve a di-
ferentes fatores, como, por exemplo, em decorrência da ação da
geografia popular.
Esse modelo simplista, reducionista e dicotômico de ordenar o
território em duas partes, isto é, em norte e/ou sul é, na verdade,
58 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
registrado no Quadro 2, que, de acordo com o IBGE, apresenta a
seguinte cronologia e configuração:
1970 até os
Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste
dias atuais
60 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
[…] afeta todo o território nacional, mudando, brutal e ce-
gamente, os equilíbrios e as perspectivas, mas, sobretudo,
trazendo um fermento de desagregação, um impulso à quebra
dos cimentos nacionais pacientemente construídos, e com-
prometendo a ideia de nação e de solidariedade. (SANTOS, M.,
2002, p. 41)
62 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Portanto, se as superintendências, como órgãos oficiais cria-
dos para se ter uma gestão específica para cada grande região,
desapareceram ou perderam sua importância, não há por que a
existência dessas macrorregiões. As linhas das grandes regiões já
estão superadas, mormente, pela ineficiência do Governo Federal, que,
ao longo dos anos, fracassou com planos de desenvolvimento para
as cinco grandes regiões, culminando com a falência das superin-
tendências. No caso da Sudene, por exemplo, Cristovam Buarque
(2001, p. 373) afirma que essa superintendência “partiu de uma
análise revolucionária no entendimento do problema nordestino
[...] seu objetivo não era garantir a produção agrícola, mas criar um
polo moderno de produção industrial”. Tal desenvolvimento não
aconteceu, como se pode constatar fazendo uma pesquisa rasa dos
IDH da maior parte dos municípios do Nordeste. Outro ponto que
contribui para o estágio de irrelevância das superintendências diz
respeito à indiferença da população no que concerne, por exemplo,
ao sentimento de pertencimento. Estado e a cidade se tornaram
suas maiores referências quando se discute o pertencimento a
um território.
E, com relação à divisão geoeconômica, uma proposta aca-
dêmica que não teve aplicação prática, contudo, permite-nos
interpretar o território brasileiro a partir de divisões que identificam
onde estão o norte e o sul metafóricos. A preferência por discorrer
sobre essas duas divisões nesta reflexão se justifica pelo fato de
que elas têm um caráter paradoxal, pois se, de um lado, transmi-
tem a ideia de integração regional, do outro lado, produzem uma
cartografia abissal, e levam-nos a pensar nos movimentos de supe-
ração das linhas abissais através da geografia popular. Aliás, essas
linhas das cinco grandes regiões, criadas em 1941, estão obsoletas
tendo em vista que, desde a extinção das superintendências, não há
planos macrorregionais de desenvolvimento. O que há em curso
são planos de desenvolvimento para regiões em escalas intra e
interestaduais.
64 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
CAPÍTULO 3
65
justamente porque “a divisão é tal que o outro lado da linha desapa-
rece enquanto realidade torna-se inexistente, e é mesmo produzido
como inexistente”. (SANTOS, B. S., 2010a, p. 32) Daí o porquê a falta
do bem-estar social para muitos não incomoda nem causa descon-
forto à pequena parte privilegiada.
A dinâmica entre os estados brasileiros, pautada na competi-
tividade, certamente estimula o desinteresse na minimização das
linhas abissais. Para Buarque (2001, p. 377), “já é tempo de trans-
formar o país em nação, unificando sua população sem o corte
que já dura cinco séculos, e lhe dar uma soberania que nunca teve
plenamente”. Infelizmente, não se vê atualmente no cenário da
política brasileira que o desejo de Cristovam Buarque se realize
num curto espaço de tempo. O bairrismo entre os estados ainda é
uma linha mais rígida e profunda que compromete a confecção de
uma nação.
66 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
geografia física e geografia humana, essas duas correntes são fun-
damentais para uma formação mais ampla do geógrafo. Não há cur-
sos de graduação formados apenas por componentes curriculares
da geografia humana ou da geografia física, portanto, há apenas
vestibular para geografia.
Assim, para produzir a crítica sobre a divisão político-administrativa
do Brasil enquanto linha abissal, apropriou-se do caráter físico do
território como viés de análise para questionar a existência física
dos estados. Física e geologicamente, os estados não existem, são
mapas derivados de combinações matemáticas traçadas virtualmen-
te sobre uma única massa de terra chamada de Brasil, como pode ser
visto na Figura 2.
O uso do mapa físico tem por objetivo mostrar que o Brasil,
enquanto território físico, se constitui numa única massa que possui
morfologias diferentes, diversidade na vegetação, dinâmicas climá-
ticas diferenciadas etc. Sobre essa estrutura, várias gerações foram
colocando suas marcas, algumas dessas marcas sobreviveram,
outras foram apagadas e novas são introduzidas pelas sociedades
atuais, numa movimentação constante pelo território. Os estados
brasileiros não deveriam ser considerados como estruturas físicas
independentes, ilhas, fora do território nacional, que nasceram de
outra massa de terra, afinal, não foram originados de eventos geo-
lógicos próprios.
Portanto, os estados não nascem como organismos biológicos,
são criados e definidos cartograficamente, registrados por uma lei.
Este “nascimento estadual” é apenas uma concepção administrativa
gestada pelo poder público, que marca a criação de um dado estado
após todos os trâmites burocráticos.
O povo não necessita da existência dos estados para sobreviver;
um exemplo é a dinâmica das etnias que aqui viviam antes da che-
gada dos colonizadores, percorriam todo o território tendo como
fronteiras os elementos naturais. Portanto, Minas Gerais, Bahia,
Tocantins, Goiás, Rio Grande do Sul e todos os outros estados bra-
sileiros são frutos de atos políticos que servem como ferramenta
68 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Buarque (2001), o processo de unificação do país não passa por
uma unificação regional, mas social.
Essa percepção também está expressa numa forma de mani-
festação popular e cultural encontrada na canção “Fruto do Suor”,
de 1982, imortalizada pelo grupo Raíces de América, considera-
da como um hino para os imigrantes latinos radicados no Brasil,
denunciando como as geografias oficiais mudaram a relação entre
a sociedade brasileira e a terra, a pátria mãe. Na canção, a terra
onde hoje é o Brasil era vista como um paraíso, não existia a cobiça,
e o índio era o único no continente. As geografias oficiais fabricaram
carimbos, levantaram paredes e traçaram as fronteiras. O desabafo
na canção reflete, ao mesmo tempo, o desejo e a decepção de não
se poder viver em um país sem fronteiras. Uma dessas linhas de
fronteiras é o ufanismo estadual, que, no Brasil, não consegue en-
xergar o território em sua totalidade, impondo bairrismos culturais,
técnicos, econômicos e científicos. Contudo, compreender que a
totalidade do território é fundamental para construir as análises sobre
suas dinâmicas não significa ignorar a simplicidade de cada lugar,
mas encontrar caminhos para uma integração de diversidades,
tendo em vista que o Brasil é um país abastado nesse sentido.
Sabe-se que o território é fundamental para as manifestações
culturais de um povo, afinal, a sociedade “não existe fora do território,
e sim por suas relações” (SANTOS, M., 2002, p. 36), o que se implanta
sobre ele é o que vai caracterizá-lo, como as diversas manifestações
culturais, tipos de urbanização e os demais usos que o ser humano
fará dele. Portanto, uma cultura pode caracterizar um território,
mas, um território, no seu sentido físico ou somente pelo seu con-
torno cartográfico, não caracteriza uma sociedade. Por exemplo,
os tocantinenses originados do antigo norte goiano não se tornaram
nortistas porque o estado do Tocantins foi encaixado na grande região
norte do país. Caso projetos de ordenamento territorial (Figura 2)
obtenham sucesso, o Brasil terá novos mapas internos, sejam eles
como forma de prolongamento do poder de um clã político ou como
retórica da preservação cultural e ambiental de alguns territórios.
70 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Logo, governar um território não deveria significar posse do físico e
tampouco do humano.
O modo como os governadores gerenciam os estados é um
sinal de que o colonialismo não tenha se apagado por completo,
pois ainda é possível encontrar seus resquícios em formas mais
“suaves” de exploração, com outras roupagens, com o aprimora-
mento de novos mecanismos de submissão. É notório e público que,
em alguns estados brasileiros, bem como em muitas prefeituras
do país, a política é dominada por décadas, seja por um partido
político ou por um clã familiar. Esse comportamento político cria
um cenário em que o mapa do município ou do estado se configura
em território do poder, e romper com a noção de posse que go-
vernadores e prefeitos têm sobre a geografia significa superar uma
linha abissal.
Um dos caminhos para superar essa linha abissal passa neces-
sariamente pela compreensão de que o Brasil é um território único
com suas características naturais e humanas, e mesmo com os es-
tados gerenciados de forma individualizada, geograficamente, o país
é um só. Sendo assim, o índio que está no Amazonas ou na Bahia é
o índio do Brasil, o sem-terra da mesma forma, os miseráveis não
pertencem a um estado, mas ao país, não existe população negra de
um estado, existem negros do Brasil, e assim como muitos outros
que estão em estado de exclusão. Por isso, Boaventura Sousa
Santos (2013b, p. 17) vai afirmar que a linha abissal “longe de ter
sido eliminada com o fim do colonialismo histórico, continua sob
outras formas (neocolonialismo, racismo, xenofobia [...] ou mesmo
cidadãos comuns vítimas de políticas de austeridade listadas pelo
capital financeiro)”. Esse sistema, para se manter, é altamente apa-
relhado através de grandes investimentos que lhe asseguram um
monitoramento constante de territórios vulneráveis à cooptação
e apropriação cultural, política, ambiental e econômica, e um dos
recursos tecnológicos mais utilizados são os estudos cartográficos.
Não raro que grandes empresas investem muito em informações
cartográficas ou mesmo em laboratório de georreferenciamento.
72 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
criam os lugares opacos, isto é, regiões estaduais que são alijadas
do processo de políticas de desenvolvimento. Contra esse panorama,
muitos veem como saída a criação de novos estados, pois, “a descen-
tralização não apenas formal ou funcional, mas estrutural, pode e deve
ser um instrumento de democracia política e social”. (SANTOS,M.,
2002, p. 33) Essa descentralização é o maior receio de governadores
que tratam os estados como se fossem extensões de suas pro-
priedades particulares. Não por acaso que o governador da Bahia,
Jaques Wagner, e outros políticos influentes do estado, disseram,
em tom populista, que a Bahia era indivisível.
74 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
No Brasil pós-colonial, as linhas abissais são construídas por
meio de leis (criação de estados, aplicação de impostos, centralização
de investimentos etc.), pelas grandes empresas que hoje escolhem,
dominam e usam o território, pelo bairrismo cultural e econômico que
orienta a prática política de governadores. No que se refere à urbani-
zação das grandes cidades, os bairros populares estão distantes da
área central, uma linha abissal que possui dezenas de quilômetros.
Espera-se, de quem detém o poder político, ações que descon-
centrem a direção dos fluxos dos investimentos do Brasil, promovendo
“um programa de democratização real, do acesso do povo ao poder”
(ANDRADE, 1991, p. 13), isso só pode ser alcançado se entendermos
que o povo não pode significar apenas como uma camada represen-
tada pela base de uma pirâmide socioeconômica.
77
estão as cidades que elaboram um ordenamento através dos seus
bairros, e, para cada bairro, um mapa. Para além dos mapas oficiais,
ainda há a cartografia elaborada pelas grandes empresas que pos-
suem sua própria lógica no mapeamento do território.
Esse sistema de ordenamento espacial, tendo os mapas como
instrumento principal, tem provocado, em todas as escalas, o apa-
recimento de linhas abissais. Assim como a globalização ainda é
utilizada para explicar tudo que acontece de benéfico ou maléfico
na dinâmica do planeta, os mapas oficiais também se tornaram os
únicos meios de planejamento e organização dos territórios, e são
utilizados para reproduzirem desde uma caracterização geral até
as minúcias de um dado território.
A produção de uma cartografia maniqueísta, ou seja, geral versus
local, seria contraproducente para interpretar a dinâmica e as ne-
cessidades da sociedade, visto que, ao invés de se complementarem,
acabam por criar um cenário de contraposições. Em um contexto
utópico, imaginando a supressão das linhas abissais, haveria uma
geografia única, portanto, seria imperioso revisitar a maneira como
os indígenas se relacionavam com o território. Antes da chegada
dos colonizadores, esses povos realizavam deslocamentos em vá-
rias direções, sem a preocupação com demarcações cartográficas.
O contorno geográfico era a própria fisiografia, não havia mapas que
determinassem a quem pertencia tal território. Esse cenário é uma
utopia, pois o Brasil, como o mundo, se tornou mais complexo, e viver
sem um mapa nos dias atuais parece impossível para nossa sociedade.
Essa análise não se configura como uma proposta cartográfica,
visto que, para isso, seria preciso apresentar uma opção de car-
tografia através de mapas. Entretanto, ao se analisar o território
sob a ótica do desmanche das linhas abissais, implicitamente está
se propondo outra cartografia, uma cartografia imaginária, porém,
não abstrata, tendo em vista que a geografia popular é uma ação
no território.
78 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Estados ou cidades: onde vivemos?
80 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
maiores que alguns países, com bairros que ultrapassam o número
de habitantes de muitas cidades médias e pequenas, apresentam
problemas sociais de dimensões globais, portanto, elas também
possuem uma cartografia abissal.
Contudo, as cidades deveriam propor outro modelo adminis-
trativo, diferente das cartografias perversas, como acontece entre os
estados e as grandes regiões, reinventando a gestão da sua geografia;
ter a sensibilidade de identificar suas diferenças tanto no âmbito so-
cial quanto econômico; e promover a integração de sua população.
Um exemplo de que isso é possível pode ser comprovado quando
se faz a leitura da dinâmica do direito de Pasárgada em Boaventura
Sousa Santos (2014a). Para este sociólogo, o direito da comuni-
dade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, é um direito produzido no
sul metafórico,
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no início deste século, tem operado fortemente no alargamento do
sul metafórico em todo o globo terrestre. No Brasil, a fragmentação
do território, assim como a imposição das linhas abissais, são em
grande parte resultantes da influência da globalização, visto que
a competição voraz entre os países é uma das marcas desse fe-
nômeno. O que é a guerra fiscal entre os estados, se não uma
competição desigual?
Pode-se entender a globalização sob duas vertentes: a vertente
humanista, pensada por Milton Santos, Boaventura de Sousa Santos
e outros intelectuais, em busca da diminuição das fronteiras socio-
econômicas entre os países; e a vertente economicista, exclusiva-
mente pensada e conduzida pelo capital, que coloca a preocupação
econômica em primeiro plano e o homem como secundário no pro-
cesso de desenvolvimento.
A globalização comandada pelo capital foi mais um meca-
nismo inventado pelo centro econômico mundial que criou outras
geografias, isto é, outras cartografias, pensadas a partir de uma di-
tadura econômica que objetiva implantar um comportamento único,
principalmente no que concerne ao consumismo contumaz, em que
as relações se estabelecem sob um vetor econômico, com total
desprezo pelas diferentes geografias, pela simplicidade de cada
território. O que a globalização faz é evidenciar os desníveis socioe-
conômicos. Essa globalização tem apenas um critério para explicar
a dinâmica dos territórios, o vetor econômico. E isso tem impactado
diretamente no planejamento e gestão pública, não por acaso que,
no Brasil, produzir mapas regionais econômicos se tornou uma das
principais atividades das cartografias oficiais. Portanto, os desníveis
socioeconômicos não são percebidos apenas quando se estabele-
cem analogias entre países, mas dentro dos países, de suas regiões
e no interior de suas cidades.
Uma das críticas que se fazia à globalização é a de que ela
tentou estabelecer um panorama de homogeneização do planeta,
contrariamente, percebe-se que há movimentos contrários contra
a homogeneização mundial, pois esses movimentos rejeitam seve-
ramente viver numa cartografia abissal, e assim contribuem para
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não apenas em escala global, mas, sobretudo, na geografia local.
Essa debilidade tem uma relação direta com o neoliberalismo, que
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financeiro se configura em falta de análise ampla sobre o significado
da palavra global; a não ser que existam dois globos. De acordo
com Milton Santos (2002, p. 52), “ser internacional não é ser universal,
e para ser universal não é necessário situar-se nos centros do mundo.
Inclusive, pode-se ser universal ficando confinado à sua própria
língua, isto é, sem ser traduzido”. Sendo assim, até que provem o
contrário, todos somos globais se considerarmos que o planeta,
o mundo, Mapa Múndi, a Terra, têm o mesmo significado de globo.
É imprescindível, para quem deseja compreender o mundo, encon-
trar outras formas, caminhos que sejam plurais, que se oponham a
uma tentativa de resumir as dinâmicas geográficas através de um
único conceito.
Segundo Moraes (2002, p. 190), quanto àqueles que pensaram
numa homogeneização por completa do globo, em que “teria aca-
bado com as diferenciações entre os lugares na superfície terrestre,
foram surpreendidos e rebatidos pelos acontecimentos geopolíticos
ocorridos logo nos primeiros anos do século XXI”. Esses aconte-
cimentos, pungentes nas ruas e ou fomentados na política e na
universidade, se recusam a viver sob um único regime de economia
mundial. Essas geografias afloradas insurgem contra a falta de moral
que a globalização, representada por países centrais e suas empresas,
disseminaram com suas ideias, amoralidade que está expressa nas
relações entre países, e que são baseadas apenas nas regras que o
mercado impõe. Aliás, certa vez, enquanto representante do Brasil
na Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura
(FAO), Josué de Castro (1908 – 1973) teria chamado os países ricos de
hipócritas, justamente por projetarem um discurso contra a pobreza,
e uma teoria em muito distante da prática, visto que suas ações
não direcionavam para este fim. Portanto, a globalização sofisticou
e aparelhou os meios amorais daqueles que comandam a econo-
mia mundial.
É possível transformar os elementos da globalização em es-
tratégias de superação das linhas abissais? Certamente, a eclosão
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de mineira buscarem apoio de empresários e políticos na cidade
baiana. Se os moradores de Salto da Divisa fossem estabelecer
essas relações com outra cidade mineira de maior porte, teriam que
se deslocar por mais de 360 km até a cidade de Teófilo Otoni,
enquanto que a distância para Eunápolis é, apenas, de 80 km por
uma rodovia pavimentada.
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legalidade empreenderem lutas pela ocupação-construção
de novos espaços, a exemplo do que ocorre com os sem-teto,
os sem-terra, os sem-saúde, os sem-educação, etc.1
93
autor deste livro, que ainda não foram publicadas e exigiram um in-
tenso trabalho de campo. A presença delas nesta reflexão é a parte
empírica que colabora para explicar que os lugares opacos e as linhas
abissais não são fenômenos puramente abstratos. As conclusões
alcançadas demostraram que esses povos conseguiram ultrapassar
as fronteiras, e a corporeidade deles está presente, ainda que de ma-
neira marginalizada ou cooptada pela face perversa da globalização,
nos territórios dos municípios onde vivem.
94 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
o candomblé divide o espaço com evangélicos e católicos, todos no
mesmo território, entretanto, o candomblé é literalmente invisibili-
zado, tendo em vista que os terreiros não têm lugar de destaque no
território como a igreja católica e os templos; o dinheiro de papel
agora mede forças com os cartões de crédito; há escolas e creches
públicas que atendem a todos do distrito; aos poucos, os automóveis
vão substituindo o lombo do animal; o self-service, um dos termos
da globalização, encontra-se inscrito na porta do restaurante do
distrito; as estalagens agora são pousadas; a água vem pelas tor-
neiras; a clínica alivia a dor; e as notícias chegam pelas antenas
de TV e pela internet. Essas são modificações que melhoram tan-
to a vida de quem mora quanto de quem visita o distrito, mas são
planejadas, introduzidas e gerenciadas por mecanismos exógenos.
Esses novos equipamentos introduzidos no território de Helvécia,
se, por um lado, se apresentam como uma ponte, tanto na mobilidade
quanto na informação e comunicação, por outro lado, são condutores
de uma invisibilidade a partir do momento em que se estabelecem
em uma comunidade quilombola como padrão de organização ter-
ritorial semelhante a qualquer outro território urbano. Esse processo
é uma clara demonstração de quão os negros de Helvécia são in-
visíveis diante das diversas formas de poder que atuam na região.
Helvécia, uma antiga fazenda da Colônia Leopoldina, hoje é
um distrito do município de Nova Viçosa, localizado no extremo sul
da Bahia, com uma população composta por aproximadamente
80% de negros descendentes de escravizados, este dado demo-
gráfico foi um fator preponderante para que o distrito fosse certi-
ficado como um território remanescente de quilombo, em 2005,
pela Fundação Cultural Palmares (FCP). E, no que se refere à existên-
cia de uma sobreposição de nomenclatura entre distrito, enquanto
uma unidade político-administrativa, e comunidade, enquanto senti-
mento de pertencimento, será difícil dissociar o distrito da comuni-
dade e vice-versa, uma vez que o território é o mesmo onde se dão
as relações entre quem se considera pertencente à comunidade
quilombola, e aqueles que não se sentem pertencer à comuni-
dade negra.
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Figura 4 – Painel resumo sobre o território de Helvécia
98 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
A Figura 5 foi encontrada no site do Guia Turístico Virtual de
Nova Viçosa - BA, e divulga ações da Secretaria de Turismo do
Município de Nova Viçosa, portanto, repercute um pensamento oficial.
Percebe-se que o município sede não sabe como tratar Helvécia,
tese comprovada pela quantidade de atributos direcionados à co-
munidade em um texto tão pequeno, ora se refere como povoado,
ora enquanto distrito, também o designam de “Colônia Nagô” e até
mesmo por “remanescentes do período escravo”. Certamente, a falta
de conhecimento do Poder Público reflete na dinâmica interna e
externa da comunidade.
O setor do turismo que “vende” o município de Nova Viçosa como
atrativo turístico também inclui Helvécia como um roteiro, porém,
sempre aparecendo como um lugar exótico, como se a comunidade
vivesse como seus antepassados. O lugar para essa comunidade
possui um significado que contraria totalmente o sentido explo-
ratório dado por alguns setores da economia. Em diversos meios
de divulgação, Helvécia é apresentada como um antigo quilombo
que preserva, ainda hoje, as raízes culturais africanas e como um
vilarejo, comunidade primitiva, onde vivem descendentes de índios
e negros. Assim, Helvécia é “vendida” como um atrativo turístico
altamente exótico, como se os seus moradores fossem pessoas
totalmente diferentes dos seres humanos, dotados de hábitos pri-
mitivos ainda neste começo de século.
Outra questão instigante foi a referência dada a Helvécia pela
Embasa no seu Relatório Anual para Informação ao Consumidor
(RAIC) do ano de 2011, classificando a comunidade como um
município (Figura 6). Portanto, para essa empresa, uma estatal do
Governo da Bahia, o morador de Helvécia é um consumidor como
qualquer outro em qualquer parte da Bahia. Sem sombras de dúvidas,
esse posicionamento da empresa em relação à comunidade em
tela entra no rol dos vetores que contribuem para a continuidade
de uma situação de enfrentamento quanto à dissolução das identi-
dades culturais dos quilombolas.
2 Ver: http://www.novavicosa.ba.gov.br/modules/news/article.php?storyid=189.
Algumas percepções
1 Pequena parte deste capítulo compôs um artigo publicado pela Revista Cronos
da UFRN. Ver: Cerqueira-Neto (2017).
117
barreiras geográficas entendidas como linhas abissais. É uma aná-
lise que se “assenta no pressuposto de que a existência não esgota
as possibilidades da existência e que, portanto há alternativas sus-
ceptíveis de superar o que é criticável no que existe”. (SANTOS, B. S.,
2002a, p. 23) Assim, formular um pensamento para uma geografia
popular, nesse caso, é pensar outro caminho onde os mapas não se
configurem numa barreira para a convivência entre as sociedades
do mesmo país. Duas questões são colocadas para quem se dedica
a pesquisar o território a partir das suas desigualdades. A primeira
se refere à postura do intelectual perante as linhas abissais e a
dinâmica das epistemologias do sul. A segunda aborda a coragem
em se desprender da rigidez científica.
Quanto à primeira questão, Boaventura de Sousa Santos (2002a)
faz uma provocação em relação à postura de neutralidade, impar-
cialidade, que tenta imputar ao pesquisador a condição de um ser
externo à dinâmica social. Entretanto, o intelectual da geografia
popular é parte nesse processo no que concerne ao desmanche das
fronteiras internas do país. Dessa forma, ele se torna porta-voz e
tradutor de uma geografia caótica, que produz novas configurações
espaciais, nas quais está inserido.
Ao refletir sobre a construção de uma teoria crítica, comumente,
o desconforto atinge alguns pesquisadores quando são levados a res-
ponder a seguinte questão: afinal, de que lado você está? De acordo
com Boaventura de Sousa Santos (2002a, p. 25), “para alguns é
uma pergunta ilegítima, para outros uma pergunta irrelevante e
para outros ainda uma pergunta irrespondível”. Essa reflexão do
sociólogo indica que a dualidade entre pensar e sentir ainda não foi
totalmente dissolvida nas universidades. Efetivamente, não tomar
partido em alguma causa pode se configurar um argumento incon-
sistente, visto que, pesquisadores e/ou intelectuais têm o seu lado,
inclusive lado político partidário.
Também é verdade que há intelectuais que preferem não repre-
sentar nenhuma bandeira de partido político, optando por estudar
os lugares opacos, o subdesenvolvimento, elaborar pensamentos
2 Ver: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/70317/000070317.pdf?
sequence=6%20Calizaya,
125
redivisão do território brasileiro, tendo como pretexto sua cartografia
abissal. O cerne desta pesquisa se assenta basicamente em utilizar
a ideia de geografia nova e das epistemologias do sul para revelar
algumas linhas abissais e, consequentemente, identificar lugares
opacos, e a partir das cartografias oficiais, propor outras formas de
compreensão do território, conferindo visibilidade à dinâmica da
geografia popular.
Alguns sujeitos políticos, como o Presidente da República,
governadores de estado, prefeitos e legisladores brasileiros, neces-
sitam compreender que um país com a quinta maior extensão terri-
torial entre todos os países do globo, e com uma grande diversidade
cultural, exige que haja diferentes formas de pensar a organização
do território. Uma única forma de administrar essa diversidade de
paisagens e de culturas acaba por se tornar perversa, pois efetuam
um traçado de delimitação de terras em linhas que separam e segre-
gam um mesmo povo.
O desconforto de quem está nos lugares opacos gera uma força
para que indivíduos organizados ou não, sozinhos ou agrupados em
movimentos, rompam com as linhas que os separam dos lugares
luminosos. Quando isso acontece, outro pensamento de Milton Santos
vem à tona: a revolução será feita por aqueles que estão nas camadas
mais inferiores, os pobres. Ao realizar o desmanche dessas linhas,
surgirá a possibilidade de outros mapas, municipais ou estaduais.
Para Milton Santos (2002, p. 32), isso acontece porque as “regiões
espoliadas, ou apenas esquecidas, devagar ou depressa se con-
vencem de que vivem em situação de menoridade política, daí a
vontade de emancipação”. Paradoxalmente, a criação de novas
unidades federais poderá significar a construção de mais fronteiras,
por outro lado, também pode significar respeito pela diversidade,
liberdade, individualidade e visibilidade de lugares opacos. Por isso
que os mapas podem ter funções e objetivos bem diferenciados.
Eles podem ser, por exemplo, lugares de liberdade, territórios de
confinamento, objeto de poder político e econômico.
Mas, como pensar em uma alternativa que não significasse
apenas uma divisão territorial, tendo como causa uma insatisfação
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Colofão
Formato 16 x 23 cm