Livro - CERQUEIRA-NETO, Sebastião P G de. Da cientificidade de Milton Santos ao ativismo de Boaventura Sousa dos Santos - Uma proposta de geografia popular. 2020

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DA CIENTIFICIDADE DE

MILTON SANTOS
AO ATIVISMO DE
BOAVENTURA
DE SOUSA SANTOS

Uma proposta de geografia popular


UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Reitor
João Carlos Salles Pires da Silva

Vice-reitor
Paulo Cesar Miguez de Oliveira

Assessor do Reitor
Paulo Costa Lima

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Diretora
Flávia Goulart Mota Garcia Rosa

Conselho Editorial
Alberto Brum Novaes
Angelo Szaniecki Perret Serpa
Caiuby Alves da Costa
Charbel Niño El Hani
Cleise Furtado Mendes
Evelina de Carvalho Sá Hoisel
Maria do Carmo Soares de Freitas
Maria Vidal de Negreiros Camargo
Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto

DA CIENTIFICIDADE DE
MILTON SANTOS
AO ATIVISMO DE
BOAVENTURA
DE SOUSA SANTOS

Uma proposta de geografia popular

Salvador
EDUFBA
2020
Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto, 2020.
Direitos para esta edição cedidos à Edufba.
Feito o Depósito Legal.

Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


em vigor no Brasil desde 2009.

Capa e projeto gráfico


Miriã Santos Araújo

Revisão
Mariana Santos

Normalização
Bianca Rodrigues de Oliveira

Sistema Universitário de Bibliotecas - UFBA

Cerqueira – Neto, Sebastião P. G. de.


Da cientificidade de Milton Santos ao ativismo de Boaventura
Sousa dos Santos : uma proposta de geografia popular / Sebastião P.
G. de Cerqueira - Neto. - Salvador : EDUFBA, 2020.
137 p. : il.

ISBN: 978-65-5630-023-8

1. Geografia - Brasil. 2. Geografia popular. 3. Geografia cultural.


4. Cartografia. I. Título

CDD – 918.1

Elaborada por Jamilli Quaresma


CRB-5: BA-001608/O

Editora afiliada à

Editora da UFBA
Rua Barão de Jeremoabo
s/n – Campus de Ondina
40170-115 – Salvador – Bahia
Tel.: +55 71 3283-6164
DEDICATÓRIA

Ao meu filho, Pedro, que me mostra todos os dias


que o autismo também é uma forma de ignorar
as fronteiras geográficas.
A GRA D E C IME N TOS

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível


Superior (CAPES), pois, sem o apoio financeiro, seria impossível rea-
lizar o pós-doutorado na Universidade de Coimbra (UC).
Ao Prof. Dr. Boaventura de Sousa Santos, que se disponibilizou a
refletir comigo sobre as desigualdades territoriais, um assunto tão
caro para a geografia quanto para a sociologia.
Ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia
(IFBA), em nome da Reitora Aurina Oliveira Santana, do Diretor
Geral do Campus de Porto Seguro, Ricardo Cunha, e do Diretor de
Ensino, Ricardo Mendes, que tiveram a compreensão da importância
do meu aperfeiçoamento em nível internacional, e a confiança na
minha retribuição ao IFBA, como professor e pesquisador.
SUMÁRIO

Prefácio .............................................................................. 11

Apresentação ...................................................................... 17

Introdução .......................................................................... 19

CAPÍTULO I
Geografia Popular: a geografia em movimento ........................ 29
Uma alternativa de análise ..................................................................... 31
Geografia popular e as epistemologias do Sul ..................................... 35
Sinais históricos de uma geografia popular ......................................... 37
A cartografia oficial vista pela geografia popular ................................ 41
Geografia comportamental, território mental e a geografia popular ...... 46

CAPÍTULO 2
As macrorregiões brasileiras: linhas abissais superadas ......... 53
Divisão geoeconômica: a dicotomia Norte/Sul no Brasil ......................... 53
Cinco grandes regiões ou cinco blocos econômicos? .............................. 58

CAPÍTULO 3
Os estados brasileiros: a maior linha abissal do país ............... 65
Os estados não existem física tampouco culturalmente ........................ 66

CAPÍTULO 4
Fronteiras internas: escalas e contradições ................................ 77
Estados e cidades: onde vivemos? .......................................................... 79
Pensar o território sem a globalização: é possível? ................................ 82
Ignorando fronteiras: um caso entre Bahia e Minas Gerais ................... 88
CAPÍTULO 5

Quilombolas e indígenas: territórios opacos


no extremo sul da Bahia ........................................................................... 93
Helvécia: um território (in)visível .......................................................... 94
Helvécia vista do lado de lá (o capital) ................................................ 97
Helvécia no século XXI ...................................................................... 104
Algumas percepções ........................................................................... 106
A invisibilidade indígena na cidade de Porto Seguro (BA) ............... 108
Porto Seguro: território do turismo .................................................... 108
Onde estão os pataxós? ...................................................................... 110
A resistência dos pataxós .................................................................... 113

CAPÍTULO 6
O intelectual do território: a geografia pertence a todos ... 1 1 7

Considerações finais ........................................................................... 125


Referências .......................................................................................... 133
PRE F Á C IO

O cerne deste trabalho, do Prof. Dr. Sebastião Cerqueira-Neto,


é o de delinear a demarcação de um território para uma geografia
popular, como epistemologia do sul, a partir da analogia entre os
conceitos de sul metafórico e o de lugares opacos. Essa proposta se
encontra em nítida oposição a uma geografia burocrática e oficial,
cuja execução institui linhas abissais, que tem por consequência a
definição de lugares opacos. Sendo assim, como nos atesta o autor,
o território da geografia popular funda sua demarcação em um en-
contro entre as obras dos pensadores Milton Santos e Boaventura
de Sousa Santos.
Nesse ambiente de encontro, cujos indícios de exploração
conduzem o leitor aos principais conceitos críticos dos autores,
o trabalho nos traz uma reflexão metodológica, porém como um
exercício que extrapola o debate da geografia, e se dimensiona
nos problemas sociais que sempre se escancaram na nossa porta.
A reflexão do autor constitui, então, não somente um parâmetro de
método geográfico, já que estabelece uma abertura para o espaço
da livre reflexão crítica, conduzindo-nos a pensar como os mape-
amentos burocráticos oficiais por vezes nos afastam da realidade
social que pulsa aos nossos olhos. Por isso, o autor parece nos
reivindicar uma pausa para a reflexão: mesmo diante do contexto
burocrático, é possível elaborar um sentido popular para a geografia.
De fato, tal proposta se apresenta como extremamente oportuna
nesse momento monstruoso em que vivemos, posto que lutas
sociais históricas, especialmente de indígenas e de quilombolas,

11
enfrentam, tristemente, certos riscos de retrocesso. É preciso re-
conhecer, nisso, um ímpeto de luta que ultrapassa os limites da
cartografia oficial, ainda mais pela proposta de resistência à emi-
nente ameaça contra as conquistas territoriais realizadas a partir
da Constituição de 1988.
Sendo assim, notamos que a reflexão geográfica do autor realça
um caráter de denúncia, que nos estampa a contraditória retórica
que promove a divisão dos territórios, no mesmo instante em que
diz buscar uma integração entre eles. Em certa medida, vindo na
esteira dos dois autores, o livro nos mostra como os mapeamentos
de países, estados, regiões, municípios, podem consolidar uma
fragmentação, na qual se define linhas abissais e lugares opacos
que sustentam o poder de certos grupos privilegiados. Dito de
outro modo, os privilégios mapeiam a realidade, de forma oficial,
em detrimento daqueles que são opacos e invisibilizados. Por isso,
o encontro conceitual entre os dois pensadores, que nas mãos de
Sebastião se tornam poderosas armas analíticas, serve para des-
mascarar os desencontros forjados por esses mapeamentos oficiais.
É digno de nota o modo como o autor traz os conceitos de
Milton Santos e Boaventura para mostrar as limitações analíticas de
dois métodos cartográficos regionais, que nada mais são do que a
formação de cartografias abissais: o método de divisão econômica,
de Pedro Geiger, e o método macrorregional, utilizado pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na crítica a ambos,
Sebastião nos escancara o caráter utópico de um projeto de in-
tegração nacional, que, na verdade, está mais destinado a manter
certos poderes econômicos e políticos locais do que, de fato, conso-
lidar um projeto de desenvolvimento igualitário, tão largamente
explorado por bocas demagógicas. Na crítica ao método de divi-
são econômica de Geiger, o livro nos mostra a semântica abissal
do mapeamento, que, através de uma suposta divisão em três
grandes regiões econômicas, acaba por significar a concentração
econômica em somente duas regiões: um sul metafórico, repre-
sentado pelo Norte e o Nordeste, e um norte desenvolvido, que é
o Centro-Oeste, Sul e Sudeste. De modo semelhante, a proposta

12 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
cartográfica macrorregional reivindica delimitar o mapeamento por
certas características socais e naturais das regiões, porém, se cons-
titui como uma visão “obsoleta, sufocante e separatista”, posto que
não tem aplicabilidade no acompanhamento das diferenças regio-
nais e dos estados. Isso, alerta Sebastião Cerqueira-Neto, não per-
mite que a divisão entre as regiões Norte, Nordeste, Sul, Sudeste,
e Centro-Oeste, culmine em um planejamento efetivo de integração
econômica, que permitiria um desenvolvimento socioeconômico
igualitário. Ao contrário, a dinâmica dos estados e regiões acom-
panha a dinâmica global das linhas abissais, com um bloco central,
ocupado pelo Sudeste, em conjunto com um bloco emergente,
do Centro-Oeste e Sul, em nítida divisão com um bloco colonial,
representado pelo Norte e o Nordeste.
Em vista disso, o livro demonstra que, no ponto de conver-
gência entre linhas abissais e lugares opacos, a geografia oficial
vira a cara para nossa complexa realidade social, em vista de um
projeto de poder. O que conduz nosso autor a propor certo recuo
dialético em que se compara duas concepções de geografia: de um
lado, quase como uma fábula, uma cartografia que não somente fecha
os olhos para as “precárias condições de vida do povo brasileiro”,
como também se cala diante da dinâmica territorial das lutas sociais,
cuja razão é o enfretamento com os limites impostos pelo poder
público; do outro, uma geografia voltada para essas lutas, preo-
cupada em conhecer as dinâmicas socioculturais que extrapolam
as linhas fronteiriças das políticas que dividem estados, regiões e
municípios.
Para demonstrar que as proposições teóricas não são abstratas,
o autor complementa a proposta do livro com estudos de caso a
respeito de territórios distintos, para, com isso, estabelecer uma
correlação entre teoria e empiria. No Capítulo 4, promove o estudo
a respeito do território da fronteira dos estados da Bahia e Minas
Gerais, nas cidades de Salto da Divisa (MG), no Vale do Jequitinhonha,
e Eunápolis (BA), no extremo sul da Bahia. Como vemos em suas
análises, o imbricamento entre essas cidades ocorre por diversos
fatores socioeconômicos, que transcendem o limite interestadual,

Prefácio 13
transpondo uma “linha abissal, que é a linha limítrofe entre os
Estados”, imposta pela cartografia oficial. Segundo o estudo, somente
através da compreensão do Brasil como um território único, será pos-
sível interpretar a dinâmica entre territórios fronteiriços, como uma
ação da geografia popular. O autor nos amplia o olhar sobre a contradi-
ção implícita dessa dinâmica, pois, do mesmo modo dessa fronteira,
podemos observar que em outras fronteiras estaduais “os territórios
privilegiados, muitas vezes, se encontram na proximidade dos lu-
gares opacos”.
No Capítulo 5, o livro explicita a dinâmica territorial e a invi-
sibilidade de comunidades tradicionais em outros dois territórios
localizados na Bahia. O primeiro estudo de caso é sobre a comunida-
de quilombola de Helvécia, que passa por tensões no seu território,
advindas do processo de eucaliptização na região. A segunda abor-
dagem é sobre a etnia Pataxó, da Reserva da Jaqueira, no município
de Porto Seguro, na qual o dinamismo da atividade turística impõe
uma nova lógica de adaptação, tanto para a sobrevivência cultural
quanto econômica da comunidade indígena. Além disso, destaca a
contradição implícita na criação de reservas culturais indígenas,
que “tanto podem representar um lugar da preservação e proteção
da cultura, como também podem significar um confinamento dentro
de um arranjo territorial”. Nessa abordagem, as reservas podem
criar uma cartografia abissal, marginalizando a comunidade indígena
da convivência sociocultural com o restante do território, invisibili-
zando ainda mais esses povos tradicionais.
Nesse caso, a geografia popular, como uma epistemologia
do sul, promove uma transgressão da leitura oficial dos territórios,
em busca de uma superação das fronteiras, para, a partir disso,
conferir visibilidade aos invisibilizados, em especial, indígenas e
quilombolas. Essa luta é também de reconhecimento, da existência
do sul metafórico, dos saberes vindos do sul, da dinâmica que ultra-
passa as linhas abissais e nos mostra como “novos mapas” são ela-
borados à margem da legalidade, para atender aos anseios sociais,
como um modo de “desmanche” das fronteiras impostas pelas infra-
estruturas de poder oficial.

14 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Por fim, o autor traz um importante questionamento que nos
faz refletir sobre qual caminho devemos seguir, “O que o Brasil pre-
tende fazer com o seu território; continuar a produzir uma carto-
grafia abissal, aumentando áreas com lugares opacos?”. De acordo
com ele, se observarmos a nossa postura atual, a tendência é que
esses fossos se ampliem, continuando excludentes, e a invisibilizar
determinadas camadas da população. Por isso, pode-se ressaltar
que a crítica do autor à cartografia oficial constitui especialmente
um alerta sobre o seu uso governamental, cujo foco serve somente
para reforçar o abismo e aumentar a invisibilidade de determina-
dos grupos sociais. Dentro dessa abordagem, podemos vislumbrar
uma proposta de investigar os movimentos da geografia popular como
uma contribuição para a estruturação de estudos sobre a fragmen-
tação do território brasileiro, através das linhas abissais, das epis-
temologias do sul, e da geografia nova, para questionar as cartografias
oficiais que ainda são hegemônicas no Brasil. Nesse sentido, Sebastião
Cerqueira-Neto finaliza dizendo que a contribuição almejada por
este livro é dar um ponta pé para um debate que ainda delimita
o seu curso, em vista da necessidade se aprofundar os estudos e as
pesquisas sobre os fragmentos de um território denominado “Brasil”,
para, a partir disso, apontar as possíveis direções que permitam
“a superação das fronteiras internas, ou seja, a tão sonhada inte-
gração nacional”. Parafraseando Milton Santos, o autor sinaliza um
caminho que clama: por uma geografia popular!

Porto Seguro, 11 de março de 2019.

José André Ribeiro


Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará

Leonardo Thompson da Silva


Doutor em Geografia pela Universidade Federal da Bahia

Prefácio 15
A PRE SE N TA Ç Ã O

Apresentar o trabalho do professor Sebastião Cerqueira-Neto


é ao mesmo tempo uma enorme satisfação e um desafio pessoal
para este apresentador, que se tornou um amigo e sobretudo um
admirador do docente-autor, tanto como ser humano quanto como
pesquisador. Cerqueira-Neto é inquieto enquanto investigador e gene-
roso enquanto ser humano. Consegue, em suas investigações, romper
as fronteiras da visibilidade e atingir as invisibilidades, tocar em
questões antes não enfrentadas e ampliar progressivamente as
suas reflexões, levando o leitor a indagar sobre a importância de
uma geografia popular.
A ousadia das abordagens do autor traz para a geografia um
enfoque sobre as opacidades urbanas, centradas nas margens da
invisibilidade, onde transitam e habitam os inconformados que
povoam as comunidades tradicionais. Embora inspirado em Milton
Santos e Boaventura de Sousa Santos, Cerqueira-Neto não se li-
mita aos marcos teóricos de seus mestres. Pelo contrário, o vigor
da sua obra é visível na medida em que se percebe como ele vai
além das suas referências, principalmente ao buscar compreender
as linhas abissais que metaforizam os muros citadinos. A inquietude
do autor o coloca diante da necessidade de divergir da ciência
estabelecida. O autor se põe contra os dogmas da ciência que pe-
netraram até hoje o mundo da geografia oficial. As verdades esta-
belecidas da geografia oficial são objeto da inconformação do autor.
Sua irresignação principia por enfrentar e divergir das disjunções entre
o físico e o humano. Nessa trilha epistemológica, um dos maiores

17
méritos de Cequeira-Neto é se contrapor às cartografias idealizadas,
falseadas e portadoras de uma integração artificiosa que, ao invés
de revelar as reais fissuras territoriais, escamoteiam e mascaram o
complexo de realidades fragmentadas na extensão dos territórios.
Partindo do conceito de linha abissal e, na perspectiva das episte-
mologias do sul, o autor nos alerta para a disjunção que há entre o
norte e o sul e posiciona-se criticamente ao apontar para o modo
como essa separação compromete e inibe as oportunidades de
desenvolvimento para os povos subalternos e subordinados a uma
perversa lógica. Enfim, ao leitor está concedida a oportunidade de
perceber uma geografia popular que desvela e supera o mundo das
sombras em que esteve até agora mergulhada a geografia e a sua
cartografia oficial. Nesse irromper de inconformação, Cerqueira-Neto
apresenta-se tal qual o refugiado egresso da Caverna de Platão que,
inconformado com mundo das sombras, esforça-se para demonstrar
as relações precárias como relações invisibilizadas, para evidenciar o
não-território como território precário, para revelar as subjetivida-
des precárias como não-subjetividade e, por fim, para trazer à baila
uma cartografia que não é similar à cartografia oficial, por envolver
sobretudo uma articulação de saberes que resgata o rosto humano
dos povos e comunidades tradicionais, razão pela qual seu trabalho
funda em nossa geografia a chamada “cartografia dos descartáveis”.

Prof. Dr. Zéu Palmeira Sobrinho

Prof. Associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte


Juiz do Trabalho no Estado do Rio Grande do Norte

18 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
IN TROD UÇ Ã O

O território físico do Brasil, com seus 8.515.767,049 Km²,


sempre foi um campo profícuo para aqueles que se dedicam ao
estudo de sua organização e dinâmica, principalmente no que se
refere à construção de seus mapas internos. O que, de fato, não é
uma tarefa das mais fáceis, tendo em vista que, dentro dessa
dimensão territorial, há uma enorme diversidade de formas e vi-
das humanas, biológicas e culturais. Para tanto, essa proposta de
reflexão apresenta um compêndio de conceitos pertencentes ao
arcabouço teórico de Milton Santos e Boaventura de Sousa Santos,
sendo que as pesquisas aqui empreendidas resultam de um pós-
doutorado. Nessa ordem, objetiva-se acenar outro caminho para
se pensar a dinâmica desorganizada de parte da população bra-
sileira, dando ênfase aos inconformados, que estão nos lugares
opacos das cidades, sob a opacidade urbana, nos territórios de
comunidades tradicionais. São os chamados “homens lentos”,
de Milton Santos. Pretendendo analisar a dinâmica dos inconformados,
coloca-se em relevo a metáfora das linhas abissais internas do país;
afinal, são essas linhas propostas nas análises de Boaventura de
Sousa Santos (2008) que dividem os territórios privilegiados com
aqueles que sequer têm a garantia dos direitos adquiridos. O traçado
dessas linhas vai formar uma cartografia abissal desenhada, premedi-
tadamente, pelas geografias oficiais, tanto na escala federal quanto
estadual e municipal; ou seja, uma cartografia gerada pelo poder
público que, teoricamente, pretende administrar o país visando
uma integração. No entanto, essas geografias oficiais atualmente
se mostram obsoletas e incapazes de contribuir para a tão sonhada
integração nacional.

19
Acerca do tratamento que se dá nessa abordagem, concernente
ao território, resvala-se tanto para a fisiografia de uma paisagem,
quanto para um panorama construído pelo imaginário, desenhado
sobre o papel ou na mente das pessoas; sendo, aqui, considerado
como espaço entrecortado de poder, atravessado pelas relações
afetivas e culturais. Assim, físico e humano são indissociáveis, pois o
território é composto por diferentes formas de relevo, diversidade
biológica, variações climáticas, modelado por corpos hídricos, chuvas
e intemperismos, mas o território é também o palco onde as socie-
dades, ao longo de milhares de anos, implementam seus símbolos,
fazendo de cada território um lugar singular através de suas iden-
tidades culturais. Assim, física e culturalmente, os territórios são
construídos, destruídos e renovados.
A discussão teórica do livro, centrada em Boaventura de
Sousa Santos (2008), se debruça sobre o conceito de linha abissal,
discutindo o fosso existente entre o sul e o norte, no que se refere às
oportunidades de desenvolvimento, portanto, parte-se da abordagem
denominada de epistemologias do sul, corrente de pensamento
que estuda as estratégias dos povos subalternos sobreviventes às
pressões de uma ideologia colonialista que ainda permanece nos
dias atuais. Outro norteamento teórico, na esteira do pensamento
miltoniano, se direciona à concepção da geografia nova, respon-
sável pela confecção de outras formas de interpretar o território,
aproximando-se da dinâmica social, de modo a não ser apenas uma
expectadora, mas sim um agente no processo de transformação, as-
sumindo feição de geografia aplicada ao tentar compreender os
chamados “homens lentos”, que vivem nos lugares opacos, analisa-
dos amiúde nas pesquisas desse autor. Portanto, esta obra propõe-se
a realizar um encontro dialógico entre dois pensadores que conhe-
cem tanto o sul como o norte, que estudaram o desenvolvimento e
o subdesenvolvimento; e, a partir deles, elaborar uma reflexão que
contribua para a compreensão de vetores que propiciam a formação
de cartografias abissais, mormente, no território brasileiro.
Com o fito de embasar a principal reflexão proposta por este
livro, foram compilados fragmentos dos pensamentos de Milton

20 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Santos e Boaventura de Sousa Santos e suas respectivas preo-
cupações com os principais fatores causadores dos processos de
fragmentação e segregação do território. E, como forma de estabe-
lecer a relação da teoria com o empirismo, na busca de demonstrar
que as linhas abissais e os lugares opacos não são abstratos, dois ter-
ritórios são citados no livro: no Capítulo 4, uma análise da superação
da fronteira entre dois municípios, um no estado de Minas Gerais,
e o outro na Bahia; e no Capítulo 5, a opacidade de comunidades
tradicionais, como a etnia Pataxó e o Quilombola de Helvécia.

As linhas abissais nessa reflexão

A dimensão territorial do Brasil é proporcionalmente igual à


imensidade de mapeamentos elaborados pelo Governo Federal,
governos estaduais e alguns poucos municípios que possuem departa-
mentos de estudos geográficos e/ou cartográficos. Esses mapeamen-
tos são o que podemos chamar de cartografias oficiais, justamente,
porque são mapas produzidos pelo poder público, que objetiva, de
modo primordial, auxiliar na gestão do território. Dentre essa gama
de cartografias, foram selecionados três tipos de mapeamentos que
permitem empregar o conceito de linhas abissais, contribuindo para
retratar desigualdades regionais. São eles, o mapa que sugere dividir o
Brasil em três regiões econômicas, o mapa das cinco grandes regiões,
e os mapas dos estados.
Esses mapeamentos possibilitam verificar como algumas dessas
geografias oficiais estão ultrapassadas, necessitando serem revistas.
Por exemplo, de maneira equivocada, a cartografia oficial caracterizou
a região Norte como área de exploração primária, o Sul marcado
por diversas colonizações europeias, o Sudeste industrializado, o
Nordeste como significado de pobreza e miséria, e o Centro-Oeste
como paraíso do agronegócio. Essa cartografia também é marcada
pela existência de um bairrismo cultural injustificável, e por uma
guerra fiscal entre os estados, produzindo uma cartografia abissal

Introdução 21
em menor escala nos seus interiores. Nessa guerra, “os governos
locais competem entre si para transformar as suas cidades ou regi-
ões em agentes de competitividade muito para além da economia
nacional”. (SANTOS, B. S., 2008, p. 289) Em contraponto a essa
cartografia abissal, feita pelas geografias oficiais, assiste-se ao
aparecimento de dinâmicas populares que propõem superar uma
cartografia cristalizada.
Portanto, as linhas abissais são análogas aos muros invisíveis
que separam os lugares luminosos dos lugares opacos. Essas linhas
abissais são, em geral, produzidas pelo poder público, através da
construção de uma cartografia oficial. Cartografia esta concretiza-
da na delimitação dos mapas dos estados e dos municípios com os
seus distritos, e a única a ser validada legalmente como uso para
organização territorial; enquanto que as cartografias sociais, culturais,
por exemplo, são negligenciadas ou desprezadas pelo poder público.
Na contramão dessas linhas abissais, surge a dinâmica popular,
produtora de outras e novas cartografias ou mesmo uma não-car-
tografia, cujos atores estarão inseridos nos movimentos sociais,
urbanos e rurais, nas comunidades tradicionais, nas famílias, ou mes-
mo no movimento de uma única pessoa, a exemplo dos andarilhos.
Essa cartografia, chamada neste livro de cartografia popular, questiona
a rigidez das cartografias oficiais e pretende apresentar outras pos-
sibilidades de se viver em um território.

Fragmentação do Brasil: extensão territorial e política

As diferentes causas que levam à fragmentação do território


nacional, estudadas a partir da falta de integração de alguns estados
com dimensões territoriais superiores a muitos países europeus,
têm sido objeto de debates febris entre os pesquisadores que vêm na
dinâmica do território seu principal interesse de estudo. Por exemplo,
o estado da Bahia, com uma extensão territorial de 567.295 km²,

22 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
é maior que o território da França; e, entre as regiões da Bahia,
através da sua divisão regional econômica, será possível encontrar
regiões maiores que a Bélgica, como o extremo sul da Bahia, que possui
uma área de 30.648 Km². O extremo sul da Bahia e o oeste baiano
são exemplos de territórios que, devido ao exponencial desenvolvi-
mento econômico: primeiro, em consequência do turismo e cultivo
do eucalipto; e, segundo, em função do agronegócio como principal
vetor econômico, delinearam uma cartografia com status comparado
ao de outras unidades da federação. Nessas regiões, ainda que inci-
pientes e sem muito eco, aparecem discursos que vão em direção a
proposições de emancipação política.
Assim, a soma de grandes extensões territoriais combinada com
a presença precária do estado traz sérias consequências para a ad-
ministração pública, principalmente para os governadores dos es-
tados, acirrando as tensões entre poder central do estado e regiões
prósperas economicamente, com destaque para a iniciativa privada.
Em contraposição, regiões por muito tempo alijadas de políticas de
desenvolvimento estadual sofrem com o chamado “cenário de aban-
dono estadual”, cita-se, de modo particular, o estado do Tocantins,
antigo norte goiano, que enfrenta situação congênere de abandono.
Apesar da não linearidade deste fenômeno em todos os estados da
federação brasileira, é preciso compreender que algo está aconte-
cendo dentro de algumas regiões estaduais, encaminhado-as para o
desejo de emancipação política; e isso pode estar ligado a uma car-
tografia oficial, que, por estar cristalizada, não consegue enxergar
novos mapas que estão sendo construídos à margem da legalidade,
porém, próximos a outros anseios sociais.
Desde a época das capitanias hereditárias até a invenção dos
atuais estados, é possível afirmar que as cartografias oficiais foram
instrumentos norteadores preponderantes para implantação de um
modelo baseado na concentração de privilégios. Em decorrência disso,
deve-se estudar as transformações do território brasileiro, a partir
de seu contexto político-administrativo. Atualmente, o Brasil está
subdividido em 26 estados e um distrito federal, com cinco grandes
regiões, amplamente fragmentado; não exclusivamente pela sua

Introdução 23
divisão político-administrativa, mas, sobretudo, pela concentração
de investimento, pelas taxas e impostos que privilegiam poucos,
em detrimento de muitos, e pela incapacidade histórica de gover-
nança para todos. Cada parte dessa fragmentação é uma geografia
inventada, são novos mapas, que, em nome de um modelo admi-
nistrativo do território, geraram a construção de linhas abissais que
ficaram de tal forma impregnada na gestão pública, que facilmente
se tornaram parte da cultura administrativa dos governantes do país.
O modelo administrativo adotado no país é, historicamente,
concentrador, por conseguinte, excludente, pois, privilegia os cen-
tros econômicos, capitais e grandes cidades, em detrimento das
pequenas e médias cidades. Por exemplo, em âmbito nacional,
os maiores investimentos concentram-se na região Sudeste, mais
especificamente no estado e na cidade de São Paulo. Na capital
paulistana, estão os bancos de todas as nacionalidades, escritórios
de grandes multinacionais, a aglomeração de um maior número de
indústrias e empresas, uma das principais universidades do país,
centros de desenvolvimento tecnológico e de pesquisas. Em São
Paulo, a inovação tecnológica chega primeiro, justamente para
atender a esse conjunto de setores responsáveis pelo desenvolvi-
mento em todas as esferas.
Nos outros estados da federação, as capitais – numa escala
bem menor que São Paulo – são os centros privilegiados, dinâmica
justificada sob o argumento de que esses lugares possuem maiores
quantitativos populacionais, são os centros do poder político e
econômico. Entretanto, contraditoriamente, esta concentração não
resultou em melhoria da condição humana nos grandes centros
brasileiros, ao contrário, os pobres estão em relevo, sobrevivendo
nas calçadas dos centros financeiros, nos albergues públicos, nas
periferias alijadas dos serviços públicos básicos; são os indivíduos
que também fazem parte do sul metafórico. Esse sul metafórico,
proposto por Boaventura de Sousa Santos (2008), remete à condição
de pobreza, invisibilidade, resiliência, de outro modo, à subalterni-
dade que se instala tanto no norte capitalista quanto no centro do
poder do sul.

24 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Portanto, pode-se dizer que não existem lugares privilegiados
de forma homogênea, mas sim pessoas privilegiadas, haja vista que
tanto é possível encontrar privilegiados no Sul, como encontrar os
invisibilisados no Norte. Nesse sentido, o conceito de sul metafó-
rico proposto por Boaventura de Sousa Santos (2008) é similar ao
conceito de lugar opaco formulado por Milton Santos (1997), pois,
nos lugares opacos, estarão, concomitantemente, os homens lentos
e os pobres; na acepção deste último autor, os pobres são mais fortes,
já que conseguem (sobre)viver à escassez, portanto, uma forma
de resiliência.
O modelo administrativo baseado em privilegiar quem é ou
quem está no centro tem provocado um enorme esfacelamento do
país, criando uma disputa interna entre os estados, afastando cada
vez mais os brasileiros uns dos outros e, consequentemente, não
reconhecendo o outro como pertencente à sua geografia, isto é,
como parte do seu território. Decerto que a temática abordada no
livro encontra resistência entre políticos que têm receio de perder
o poder no território, e entre os economistas que veem a criação de
novos estados e municípios apenas como um aumento de despesas
para o país. Todavia, quem se dedica às ciências sociais e humanas
não deve se furtar a oferecer uma contribuição, ainda que esta
cause incômodo naqueles que têm dificuldades ou que optaram
por não sair de suas zonas de conforto. Assim, este livro envereda
pelo caminho de análise proposto por Milton Santos quando ele diz,
em 1997, no programa Roda Viva da TV Cultura, que uma das princi-
pais funções do intelectual é causar o desconforto através de rigoro-
sas análises sobre tudo que envolva a dinâmica de um dado território.

A geografia e a geografia popular

No que se refere ao papel da geografia enquanto ciência que


explica o mundo em que vivemos, busca-se, na geografia do sul
metafórico, que caracteriza grande parte do território do brasileiro,

Introdução 25
o caminho de suas análises; território este interpretado por autores
que tiveram suas obras abafadas para dar lugar a uma literatura
estrangeira extremamente desconectada com a dinâmica histórica
e geográfica do país. Talvez por isso Milton Santos fosse tão enfático
quando falava da necessidade de se produzir teorias indígenas,
isto é, gestar análises genuinamente brasileiras. Teorias geradas
no próprio laboratório do habitat, forjadas no chão onde vivemos,
sobretudo, nos lugares opacos, assim como fez Josué de Castro
com os manguezais na cidade de Recife, o que significa pensar a
partir do sul, como sugere Boaventura de Sousa Santos (2010a),
convocando as epistemologias do sul. Por essa ótica, embora não
existam referências nominais, os estudos aventados recorrem à
geografia econômica de Celso Furtado, que pensou o desenvolvi-
mento do Nordeste por outros caminhos que não fosse apenas pelos
níveis de pluviosidade da região; à geografia da fome de Josué de
Castro; à geografia cultural de Darcy Marinho, que se dedicou a dar
visibilidade às etnias indígenas, e a Abdias do Nascimento, na defesa
dos afrodescendentes do Brasil. Todos eles pesquisadores preo-
cupados com a dinâmica dos lugares opacos, em outras palavras,
do sul metafórico.
Na perspectiva de Milton Santos (1997), é fundamental não per-
der a condição de críticos ainda que estivessem morando no Norte.
Dessa forma, em um esforço de produção da análise sobre a dinâ-
mica geográfica brasileira, pontualmente sobre algumas causas da
sua fragmentação, este livro oferece mais um caminho pelo qual
pode ser interpretada a geografia do Brasil. Uma interpretação
alternativa através do que será chamado neste livro de geografia
popular; uma geografia que tem, nos movimentos da sociedade,
sua principal linha de análise, especialmente, nos movimentos que
rompem as fronteiras, superando as linhas abissais e que dão lu-
minosidade aos lugares opacos. Então, na verdade, não se propõe,
aqui, uma ramificação na geografia, intenta-se problematizar a cons-
trução de um outro olhar sobre fatores que fazem parte do conjunto
de intervenientes que comprometem satisfatoriamente a integra-
ção nacional.

26 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
De acordo com Milton Santos,1 a nomenclatura técnica do pro-
cesso é secundária, visto que o foco recai sobre a decodificação dos
componentes de formação, causas, consequências; categorias pri-
márias de identificação, ao invés de preocupar-se de forma exaustiva
com o nome do teórico que cunhou o nome “globalização”, optam por
decrifrar o lado benéfico e o perverso deste fenômeno.

Por que Milton Santos e


Boaventura de Sousa Santos?

A proposição de uma geografia popular só foi possível a partir


da compilação de pensamentos de Milton Santos e Boaventura de
Sousa Santos acerca de temáticas como território, globalização,
identidade, o papel do intelectual, e de como esses eixos investi-
gativos podem ser direcionados para pensar a dinâmica daqueles
que estão no subterrâneo de cada território. A geografia popular
acontece na fusão dos significados da geografia nova, das epistemo-
logias do sul e linhas abissais. Assim, sem estabelecer uma quanti-
ficação de mérito entre esses dois pensadores, pode-se dizer que a
geografia popular se inspira na sisudez acadêmica do primeiro e no
ativismo intelectual do segundo.
Não há, neste livro, uma comparação ou confronto de pen-
samentos entre os dois intelectuais, mas uma agregação de seus
pressupostos teóricos, visando orientar a reflexão sobre a geografia
popular através de suas indignações produtivas, demonstrando como
cada um oferece outros caminhos para se pensar o território, seja em
escala global ou nacional. É altamente salutar pensar em alternativas,
diante de análises limitantes que oferecem apenas dois caminhos
possíveis para se compreender as distorções sociais, a implantação
de linhas abissais, a construção de lugares opacos e a fragmentação

1 Pensamento exposto no Programa Roda Viva da TV Cultura, em 1997.

Introdução 27
de um dado território. Outro ponto de convergência nas referidas
obras reside na crítica veemente à injustiça, à indignação com a
fragilidade das governanças, o sequestro do território pelas gran-
des empresas, a perversidade de alguns agentes da globalização,
a valorização das vozes dos excluídos, o desejo de que os intelec-
tuais estejam mais próximos do povo.
Partindo das insignes referências teóricas supracitadas, entende-
se que o mais significativo em suas posturas, como intelectuais,
foi analisar a geografia global, isto é, a Terra como morada de todos,
colocando a dignidade humana em primeiro lugar, sob um prisma
eminentemente humanístico. Em síntese, não se prenderam ao
tecnicismo “frio”, tampouco à rigidez de um método para com-
provar ou não suas percepções. Esses dois pensadores souberam
produzir leituras fortemente amparadas no humanismo, investi-
gando o abismo social, econômico, e étnico entre as sociedades,
como aspectos basilares de suas análises. Eles tiveram a coragem
de romper e criticar a rigidez metodológica que outras ciências im-
puseram às suas, propuseram novas formas de observar o território,
disseminaram ideias sobre outras formas de conhecimento e de aten-
ção aos estudos sobre o subdesenvolvimento, pois, no subdesenvol-
vimento, que estão os resistentes, os que sabem viver na escassez.

28 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
CAPÍTULO I

GEO GRAFIA POPULAR:


A GEO GRAF IA EM M OVIM ENT O 1

A geografia popular se apresenta como uma alternativa de


análise pensada a partir de algumas questões propostas pelos
autores em tela, principalmente enfatizando a relação entre socie-
dade e território, particularmente, a “sociedade civil incivil que cor-
responde ao círculo exterior habitado pelos excluídos. Socialmente,
são quase por completo invisíveis” (SANTOS, B. S., 2003, p. 23),
na concepção de Boaventura de Sousa Santos (2003), seriam esses
indivíduos moradores de lugares opacos. É uma relação analisada
através de elementos considerados como abstratos, permeada de
metáforas, comumente colocadas em dúvida por boa parte da aca-
demia quando incorporados à pesquisa acadêmica. Contudo, Milton
Santos (1991, p. 13-14) assinala a liquidez das verdades absolutas:

Se as formulações abstratas envolvem o risco de guiar os utiliza-


dores por um caminho errado, suas fraquezas são mais depressa
reparadas que as dos estudos ditos concretos, sob a condição de
que o pesquisador seja capaz de adotar uma atitude crítica e de
duvidar incessantemente das verdades estabelecidas.

1 Grande parte do Capítulo 1 se transformou num artigo, que foi publicado na Revista
Cronos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Ver: Cerqueira-
Neto (2017).

29
Mesmo com toda a crítica que pode ser remetida a essa linha
de análise, são as abstrações e as metáforas como, por exemplo,
a indignação, a injustiça, a religiosidade, a conscientização, os ho-
mens lentos, os lugares opacos, o lado invisível, a linha abissal,
que, quando provocadas, emitem uma força de incalculável di-
mensão territorial, podendo causar grandes transformações con-
cretas no território quando afloradas via inconformismo popular e
com repercussões nas análises de intelectuais; caminho que também
pode ser feito por intermédio da ciência com repercussão nas ruas,
no campo, na cidade etc. De acordo com Boaventura Sousa Santos
(1989, p. 30):

Deve-se suspeitar de uma epistemologia que recusa a reflexão


sobre as condições sociais de produção e distribuição (as conse-
quências sociais) do conhecimento científico. Equivale a con-
ceber a ciência como uma prática para si, e isso é o que menos
corresponde, nos nossos dias, à prática científica.

Dentro da mesma linha de raciocínio, Milton Santos ([19--])


citado por Cerqueira-Neto e Santos (2017, p. 217), refletindo sobre a
perversão das ciências, afirma que “quando a ciência se deixa clara-
mente cooptar por uma tecnologia cujos objetivos são mais econômi-
cos que sociais, ela se torna tributária dos interesses da produção e
dos produtores hegemônicos e renuncia a toda vocação de servir
a sociedade”, entretanto, não se pode servir à sociedade estando
distante da realidade e tampouco negligenciando sua dinâmica.
Portanto, a geografia popular pode ser tanto abstrata, uma metáfora,
enquanto à sua existência científica, quanto concreta, enquanto
resultado de ações populares a partir da construção ou descons-
trução de fronteiras concretas.

30 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Uma alternativa de análise

A proposição de uma geografia popular, que não se configura


como um neologismo ou mesmo um novo conceito, mas apenas uma
preferência por uma expressão, passa necessariamente pela des-
vinculação de alguns caminhos conceituais que definiram a geo-
grafia enquanto ciência e o seu objeto de pesquisa; por exemplo,
a sua definição etimológica, que a vê como uma ciência que se
caracteriza por uma metodologia que apenas descreve as paisa-
gens da superfície terrestre, aliás, essa definição, que contribuiu
para que a geografia fosse considerada uma ciência inútil, está em
desuso. A geografia popular tentar ser útil e dinâmica, pois pretende
se ocupar em acompanhar os movimentos que ultrapassam as
linhas abissais, que ignoram a cartografia oficial.
Ao adotar-se a definição de que a geografia é a única ciência ca-
paz de interpretar o mundo em que vivemos, ou definida por Milton
Santos (2002, p. 30) como a ciência que “se ocupa das relações
entre a sociedade e o seu entorno, desde a comunidade humana
e o planeta até a escala do lugar menor”, não se distinguiria a geo-
grafia das outras ciências humanas e sociais, visto que a sociolo-
gia e a antropologia também fazem estudos nesse sentido, isto é,
promovem análises tendo o homem e a natureza em diferentes
escalas. Tudo isso demonstra o quanto o objeto de estudo da geo-
grafia científica, sobretudo a geografia humana, ainda não tem uma
forma ou um foco, talvez isso explique um pouco sua tendência à
fusão com outras áreas do conhecimento. Todavia, o que diferen-
cia a geografia humana das outras citadas anteriormente é ter o
território, no seu sentido fisiográfico, como base para suas análises
antrópicas. Como sugeriu Milton Santos (2002), um outro caminho
é enxergar a geografia como uma metadisciplina.
A palavra “geografia” pode ser compreendida como todas as
formas de uma paisagem, poeticamente, temos a geografia como
o nosso corpo, cheio de formas, como citada na letra da música
“Paixão”, eternizada pelos cantores Kleiton e Kledir, e que diz

Geografia popular: a geografia em movimento 31


“[...] vou ficar até o fim do dia decorando sua geografia [...]”. Assim, o nosso
corpo é uma geografia, e é por essa geografia que atualmente somos
classificados, estereotipados, escolhidos ou excluídos. Essa visão facili-
ta compreender que a geografia dos lugares, das pessoas, não pertence
somente à geografia acadêmica, pois as zonas de exclusão, de invisi-
bilidade, de opacidade, podem ser interpretadas por diferentes ramos
do conhecimento.
Portanto, neste livro, permite-se usar a palavra geografia em seus
diversos significados, sem que isso comprometa o objetivo maior,
ou seja, refletir sobre como parte do povo consegue ultrapassar algu-
mas linhas abissais impostas no território, e, parafraseando Boaventura
de Sousa (2007), não se trata de “descredibilizar a ciência” geográfica,
mesmo porque, implicitamente, Milton Santos sugere uma descientifi-
zação da geografia quando responde a um questionamento numa entre-
vista à Revista Veja, em 1994, sobre “onde a geografia teria se perdido”,
de acordo com ele, o maior equívoco da geografia “foi o de querer ser
ciência, em vez de ciência da arte. Ela abandonou a literatura, mudou
sua forma de escrever e sucumbiu ao método de pensar científico”.
Milton Santos (2006, p. 28) faz uma acertada elucubração: há a
“falta de uma epistemologia, claramente expressa, que a própria
geografia tem dificuldade para participar em um debate filosófico e
interdisciplinar”. De certa forma, essa reflexão é um espelho da cons-
tante crise na qual a geografia está imersa junto com outras ciências
sociais, que, segundo Boaventura Sousa Santos (2013a, p. 237), vivem
“uma profunda crise de confiança epistemológica”, que caracteriza a
ciência moderna nos dias de hoje. Por outro lado, essa crise significa
“uma maior consciência dos limites do conhecimento científico que
veio criar uma maior possibilidade para a abordagem dos problemas
fundamentais, das questões primordiais” (SANTOS, B.S., 2013a, p. 237),
mesmo porque alguns métodos, técnicas de interpretação do território,
não acompanham a dinâmica da sociedade, que é parte dos nossos
estudos nas ciências sociais e humanas, com a mesma velocidade
de novos vetores que aparecem a cada dia e se manifestam diferen-
temente nos diversos lugares da Terra.

32 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Daí a necessidade de quem se lança ao estudo do território
e da sociedade, de estar preparado para renovar suas análises,
seus métodos, ousar na criatividade, pois, caso contrário, corre o
risco de realizar uma pesquisa destoada da dinâmica geográfica,
consequentemente, desinteressante para a sociedade. De sorte que a
geografia é posta neste livro como a totalidade do território, desde a
sua fisiografia construída pela natureza até o uso dessa natureza pela
sociedade. Logo, a fragmentação ou o esfacelamento do território é,
por conseguinte, a fragmentação da geografia. Por exemplo, os mapas
estaduais no Brasil representam muito mais uma fragmentação do
território nacional que uma organização do território, dado o com-
portamento bairrista dos governadores.
Partindo do princípio de que a geografia, como vocábulo, pode
receber múltiplas acepções, e que, enquanto ciência, possui uma
abrangência ilimitada no que se refere ao estudo do território, expli-
cando suas inúmeras ramificações, a geografia popular se propõe a
analisar o território a partir da transgressão às cartografias oficiais, isto é,
a superação de fronteiras, de mapas que se tornaram uma espécie de
confinamento social, cultural, étnico e econômico. Essas transgres-
sões geralmente têm como motivações anos de vivência de indivídu-
os que estão no lado invisível da linha abissal, em territórios opacos.
Em escala global, essas movimentações acontecem desde a
história mais recente até o presente, por exemplo, no caso da fuga
de pessoas que vivam nos países da Cortina de Ferro em direção ao
Ocidente, no caso dos refugiados da Síria em direção à Europa, e a
marcha de milhares de migrantes da América Central desafiando
a rígida fronteira que os separam dos Estados Unidos. Em escala
nacional, os movimentos sociais do campo, que desejam ampliar
seus mapas através da reforma agrária, também se constituem em
estratégias de transgressões cartográficas, como: os movimentos
sociais que lutam por moradia e acabam ocupando prédios abando-
nados nas áreas centrais das grandes cidades, se mostrando visíveis,
saindo da opacidade; e as fronteiras estaduais que são superadas
todos os dias de forma silenciosa em busca de saúde, educação

Geografia popular: a geografia em movimento 33


e emprego. Portanto, quer seja em escala global, quer seja em es-
cala nacional, a geografia popular se apresenta como uma dinâmica
constante, tentando superar uma cartografia rígida feita de muros
concretos ou de muros invisíveis. Ao ignorar os mapas oficiais,
essas transgressões acabam por estabelecer uma tensão que põe
em causa os arranjos que a cartografia oficial impõe à população
através de “linhas radicais que dividem a realidade social em dois
universos distintos: o universo deste lado da linha e o universo do
outro lado da linha”. (SANTOS, B. S., 2010a, p. 32)
Esse conceito de linhas radicais, proposto por Boaventura de
Sousa Santos, tem o mesmo significado de linhas abissais, que, no seu
conjunto, formam várias cartografias abissais. O conceito é empre-
gado pelo seu autor para analisar a dinâmica global, haja vista que
seus estudos são concentrados em linhas abissais que separam
uma nação de outra. O exercício que este livro faz é aplicar esse
conceito na escala nacional, identificando no território do Brasil
algumas dessas linhas que explicitam a divisão norte e sul dentro
do país. Logo, o estudo sobre a geografia popular tem por objetivo
identificar linhas abissais que, consequentemente, refletem a con-
cretude da desigualdade e da exclusão entre a população brasileira.
A dinâmica dessa geografia propõe um desmanche de todo tipo de
fronteira que limite o acesso a uma vida melhor, ignora as linhas li-
mítrofes estaduais que se configuram em uma das principais linhas
abissais do país, concretizadas, por exemplo, nas disparidades do
Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de
Transporte Interestadual, Intermunicipal e de Comunicação (ICMS)
e do bairrismo cultural.
Portanto, a geografia popular não se aprisiona nos mapas da
cartografia exata, rígida e desinteressada pela convivência entre
homem e natureza, ou entre homem e homem, ela tem como carac-
terística principal a mobilidade pelo território. Mobilidade praticada
intensamente pelas diversas etnias, quando esse imenso território
onde vivemos hoje ainda não se chamava Brasil. Evidentemente
que o Brasil ficou mais complexo, com outras variáveis, contudo,

34 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
não se pode perder a capacidade de compreender que vivemos numa
única massa de terra, independente das cartografias federais, estaduais
ou municipais. O estudo sobre a geografia popular reconhece os limites
naturais ou imaginários dados por uma cultura, porém, ignora um
mapa como a delimitação do espaço da vida, pois em seu cerne está
o homem. Segundo Claval (2006, p. 135), uma “abordagem humanista
é indispensável para perceber as diferentes dinâmicas em curso nas
sociedades que partilham a Terra”. Em consonância com o pensa-
mento desse teórico, compartilha-se a seguinte hipótese de pesquisa:
para o povo, é indiferente compreender a função dos meridianos e
das coordenadas geográficas, pois, tais questões são extremamente
assistemáticas e irrelevantes frente aos diversos fatores que garantam
sua sobrevivência em um determinado território. Assim, os cálculos
matemáticos que geram um mapa seriam secundários. O importante
é como a vida vai se dar dentro desse mapa.
Ao propor a transgressão da cartografia abissal, o estudo da geo-
grafia popular não pretende implantar um pensamento antidiferencia-
lista para o país, mesmo porque é natural que haja, num mesmo pedaço
de território, a convivência de subsistemas diferentes, originados em
diferentes épocas. (SANTOS, M., 2006) Certamente que a geografia
popular reconhece a multiculturalidade do país, entretanto, é preciso
interrogar a construção de linhas abissais perenes, pois se trata de uma
arquitetura que expressa formas de exclusão e fragmentação cultural,
social e econômica do território nacional. Nesse sentido, a geografia
popular desconstrói as linhas perversas dos limites geográficos, e,
por isso, é solidária, social e capaz de oferecer uma opção de como
compreender o país em que vivemos.

Geografia popular e as epistemologias do Sul

Qual seria a conexão entre a geografia popular e as epistemo-


logias do sul? De acordo com a definição de Boaventura de Sousa
Santos e Meneses (2010, p. 19), as epistemologias do sul são um

Geografia popular: a geografia em movimento 35


“conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam essa
supressão, valorizam os saberes que resistiram com êxito e investi-
gam as condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos”.
O ponto de intersecção entre a geografia popular e as epistemologias
do sul é a condição de supressão que é imposta a um determinado
território. É a tentativa de confinamento ou mesmo aniquilamento,
sobretudo, de quem vive nos lugares opacos.
Então, partindo da premissa que os agentes que constroem
a dinâmica da geografia popular são sobreviventes de um sistema
perverso, em que a característica principal é a desigualdade socio-
econômica, essa forma de geografia pode ser inserida no conjunto
das epistemologias do sul. Em resumo, as epistemologias do sul
são pensadas por Boaventura de Sousa Santos como uma forma de
dar voz aos excluídos das políticas públicas, como também mostrar
que esses excluídos conseguem oferecer outros caminhos para o
desenvolvimento, para a preservação da cultura etc. Enfim, é uma
forma de incomodar as instituições públicas e parte da sociedade
que se encontra num estágio de conforto. Nesse contexto, é possível
entender porque Milton Santos era enfático ao afirmar que uma mu-
dança só pode ocorrer através dos que vêm de baixo.
Ao colocar a geografia popular dentro das epistemologias do sul,
não procura-se encaixá-la forçadamente dentro de um conceito,
mas apontar semelhança com outros movimentos que ocorrem em
outras partes do mundo. Nesse sentido, a geografia popular é uma
epistemologia do sul, tendo em vista que ela reconhece a existência
do sul, sabe ir ao sul e aprende a partir do sul. (SANTOS, B. S.; MENESES,
2010) Isso demonstra que estudar a geografia popular passa por
descolar-se de “uma metodologia herdada ou emprestada da meto-
dologia utilizada nas pesquisas realizadas em países desenvolvidos”
(SANTOS, M., 1991, p. 13), o que, consequentemente, pode retratar,
com menos equívocos, a disposição das linhas abissais no Brasil.
As epistemologias do sul, estando no plural, indicam que elas são
compostas por diversas epistemologias, algumas estão mapeadas
pelo seu idealizador teórico, outras estão por florescer, e ainda há
aquelas que existem, porém não foram teorizadas. Para ter uma ideia:

36 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
En los últimos treinta años surgieron nuevos agentes, nuevos
actores, nuevas luchas sociales y políticas, nuevas formas de
agencia que no están debidamente teorizadas por una teoría
crítica; los movimientos indígenas, los movimientos de mujeres,
los movimientos de gays y lesbianas son ejemplos de esto.
(SANTOS, B. S., 2009b, p. 19)

Dessa forma, é possível imaginar que, no arcabouço da geogra-


fia popular, subitamente apareçam novos movimentos que busquem
superar algum tipo de confinamento territorial. Afinal, nossa configura-
ção político-administrativa atual necessita ser repensada, pois vive-se
em um sistema que está se tornando ultrapassado e que não acom-
panha as características, dinâmicas e carências da sociedade atual,
pois adota metodologias arcaicas, rígidas e excludentes na adminis-
tração do território e na relação com as sociedades.
Então, se, de alguma forma, as epistemologias do sul denunciam
um estado de ausência de bem-estar social e supressão de povos,
partindo desse entendimento, é perfeitamente plausível que a dinâ-
mica de uma geografia popular seja análoga a alguns pressupostos
das epistemologias do sul, haja vista que ela identifica, através das li-
nhas abissais, um panorama de desigualdade e exclusão no território.
Dessa forma, a geografia popular denuncia e deseja tornar visível o sul
metafórico do Brasil, tomando os seus mapas internos como referên-
cia para uma formulação crítica.

Sinais históricos de uma geografia popular

Certamente que a concepção do termo “geografia popular” aflo-


ra inspirada no conceito de epistemologias do sul. Não obstante,
no curso da pesquisa, realizou-se um levantamento das obras dedi-
cadas ao estudo do território brasileiro, com o objetivo de encontrar
indícios da existência de demarcações cartográficas perversas, ou seja,
a implantação de linhas abissais. Desse modo, foi feita uma compila-
ção de autores com os quais se pode fazer uma interlocução com a

Geografia popular: a geografia em movimento 37


ciência geográfica, especificamente para essa análise. Dado o exposto,
conclui-se que a geografia popular se fazia presente nas obras de au-
tores que se dedicaram a interpretar o território brasileiro no tempo
e espaço em que viviam.
Caio Prado Júnior (1907-1990), por exemplo, em História Econô-
mica do Brasil (1998), alerta para o entendimento das características
estruturais da sociedade brasileira, dos dilemas herdados no passado
e dos possíveis caminhos de sua superação. De certa forma, quando ele
descreve e interpreta os diversos ciclos da economia brasileira,
mostrando os seus deslocamentos pelo território brasileiro, apresenta,
paralelamente, a superação de linhas rígidas, quando, por exemplo,
da quebra da economia açucareira, os novos caminhos abertos pela
mineração para o interior do país e o início da industrialização em
São Paulo. Sem precisar aprofundar as questões que levaram à cons-
trução de novos mapas internos da economia brasileira, Caio Prado
Júnior (1998) mostra como essas linhas abissais entre as regiões
econômicas do país foram quebradas, permitindo também outras
mobilidades para o povo.
Josué de Castro (1908-1973), com a Geografia da Fome - o dilema
brasileiro: pão ou aço (1984), põe em visibilidade um Brasil que tem
necessidade do consumo da alimentação básica. Por essa ótica, o autor
denuncia a fome e a miséria no Brasil, chamando a atenção para a
região Nordeste, pontualmente, no tocante à parte açucareira e ao
clima semiárido. Nessa ordem, encontra sua fonte de inspiração para
estudar a fome no país a partir de sua observação do cotidiano das
famílias que viviam nos e dos manguezais de Recife. Castro viu o
homem vivendo como caranguejo, enterrado na lama, totalmente
invisibilizado pelo poder público. Outrossim, produziu uma carto-
grafia da fome, e a fome se configurou em um fator fundamental
para que muitos nordestinos transgredissem a cartografia em que se
encontravam confinados. O movimento dos nordestinos em direção
ao Sudeste significa o rompimento de uma linha abissal, logo, é a
geografia popular em ação.

38 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Celso Furtado (1920-2004), por sua vez, pensou em um modelo
de desenvolvimento para o semiárido brasileiro através da educação
e industrialização, essa proposta visava retirar parte do povo brasi-
leiro do atraso educacional e econômico, uma estratégia de supe-
ração da linha abissal que até hoje segrega o semiárido do norte
desenvolvido do país. Darcy Ribeiro (1922-1997) também foi ao
sul metafórico, onde estavam povos indígenas, vivendo em cons-
tantes conflitos, que duram até os dias atuais, pelo direito de viver
em suas terras, cada vez mais sufocados por cartografias abissais.
Nesse ponto, o antropólogo brasileiro mostrou como poderíamos
aprender com povos indígenas sobre a relação com o território, uma vez
que o conhecimento que emana das comunidades tradicionais e no
interior dos movimentos sociais nunca foi absorvido pela sociedade,
sobretudo pela academia, como um “conhecimento real; existem
crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou sub-
jetivos, que, na melhor das hipóteses, podem tornar-se objetos ou
matéria-prima para a inquirição cientifica”. (SANTOS, B. S., 2010a,
p. 34) E é essa ponte que precisa ser construída entre a ciência e o
conhecimento popular e tradicional, por enquanto essa ponte está
apenas com alguns pilares.
Esse pequeno rol de intelectuais, que com certeza pode ser alar-
gado com outros clássicos brasileiros em outras áreas do conhecimento,
demonstra que houve uma parte da intelectualidade brasileira que
construiu um pensamento próprio, fundado nas características geográ-
ficas do país, e que, de certa forma, acusou a existência de linhas
abissais no território. Segundo Milton Santos (1997), em uma entre-
vista no programa Roda Viva da TV Cultura, a construção desse pensa-
mento pode ser entendida como um conjunto de teorias indígenas,
que deveriam guiar a construção do pensamento crítico brasileiro.
Ao trazer o significado de geografia popular para outros fatos
histórico-geográficos ocorridos no território brasileiro, como as lutas
nativistas, será possível verificar que todos eles foram motivados por
um descontentamento com linhas abissais produzidas por aqueles que
detinham o poder, seja na fase colonial ou por governos constituídos

Geografia popular: a geografia em movimento 39


pós-emancipação política. Certamente, que não é objetivo deste livro
revisitar a história desses movimentos, aprofundando em suas parti-
cularidades. A presença deles nessa reflexão é justificada como forma
de estabelecer uma correlação entre esses movimentos, geralmente,
de cunho separatista, com a geografia popular.
Dentre as revoltas nativistas, podem ser mencionadas a Revolta
de Beckman (1684), ocorrida no Maranhão, e que reivindicava me-
lhorias na administração colonial; a Guerra dos Emboabas (1708
– 1709), em Minas Gerais, que aconteceu porque os bandeirantes
paulistas queriam ter exclusividade na exploração do ouro recém-
descoberto no Brasil; a Guerra dos Mascates (1710 – 1711), ocorrida
em Pernambuco, e em que a elevação de Recife à categoria de vila
desagradou a aristocracia rural de Olinda, gerando um conflito; e a
Revolta de Filipe dos Santos (1720), na Vila Rica, em Minas Gerais,
que representou a insatisfação dos donos de minas de ouro em Vila
Rica com a cobrança do quinto e a instalação das Casas de Fundição.
Acrescenta-se a essa lista, com ideais separatistas, a Inconfidência
Mineira (1789), uma revolta dos mineiros contra a exploração dos
portugueses e que pretendia tornar Minas Gerais independente
de Portugal; e a Conjuração Baiana (1798), o movimento ocorrido
na Bahia pretendia separar o Brasil de Portugal e acabar com o
trabalho escravo. Além disso, no período de pós-emancipação de
Portugal, houve a Guerra de Canudos (1896-1897) que mostrava a
situação precária de vida da população, sem terra e obrigada a se
sujeitar ao regime de trabalho imposto pelos coronéis; e a Guerra
dos Farrapos (1835-1845), de caráter separatista.
Todas essas lutas originaram-se nas fronteiras (in)visíveis de um
sul metafórico dentro do país, a partir de pessoas que de certa forma
se sentiam injustiçadas pela forma como era conduzida a adminis-
tração do território. Contudo, para a geografia popular, essas lutas não
são analisadas apenas pelo seu contexto político, social ou econômico,
mas procura entendê-las como meios para superar as linhas abissais
do seu tempo.
Nos dias atuais, a geografia popular tem, como foco de obser-
vação, a atuação dos movimentos sociais que são deflagrados por

40 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
partidos políticos, organizações não governamentais, ativistas, povos
tradicionais ou por pessoas que não se enquadram em nenhuma
classificação; a atuação desses movimentos, ao contrário do que
se pensa, “não reside na recusa da política, mas no alargamento
da política para além do marco liberal da distinção entre Estado e
sociedade civil”. (SANTOS, B. S., 2013a, p. 217) E quando esses mo-
vimentos fluem pelo território urbano, rural ou florestal, eles rom-
pem as linhas abissais, fazendo com que os mapas oficiais sejam
totalmente ignorados.
Portanto, ao elencar alguns intelectuais brasileiros, como Josué
de Castro, Darcy Ribeiro, Celso Furtado e Caio Prado Júnior que, através
de suas pesquisas, denunciaram as precárias condições de vida do
povo brasileiro, ao colocar as lutas nativistas como transgressões de
linhas abissais, e ao reconhecer que os movimentos atuais exercem
um papel importante na busca de uma justiça territorial, se pretende
caracterizar a dinâmica da geografia popular.

A cartografia oficial vista pela geografia popular

É preciso, primeiramente, deixar claro que a crítica que se


desenvolverá neste tópico não se refere à cartografia enquanto
ciência, mas ao conjunto de mapas produzido pelo poder público ao
longo da história da divisão político-administrativa do país. De fato,
os mapas são parte daquilo que se pode interpretar como o território
na sua totalidade, por divisões regionais, estaduais e municipais,
aliás, é a existência deles que torna possível estabelecer análises,
inclusive produzir críticas como as que estão postas pela geografia
popular. Ademais, historicamente, a cartografia tem uma íntima re-
lação com o trabalho do geógrafo.
Essa relação pode ser percebida tanto numa forma lúdica,
por exemplo, na decoração de uma sala de aula em escolas secun-
dárias, quanto dentro de uma universidade. Não é por acaso que,
quando se fala em geografia, as pessoas são levadas a pensar quase

Geografia popular: a geografia em movimento 41


que automaticamente em mapas, e, por outro lado, quando se alude
aos mapas, globos terrestres ou cartas, a geografia é a ciência em
que a associação com esses documentos/instrumentos é instantânea.
Conforme Boaventura Sousa Santos (2002a, p. 187), “a geografia,
que partilha com a cartografia o interesse pelo espaço e pelas re-
lações espaciais, tem contribuído muito para o estudo das escalas,
quer das escalas de análise quer das escalas de ação”. Ao vincular
a técnica cartográfica necessariamente ao trabalho do geógrafo,
houve uma pressão no sentido de que todo geógrafo seria um es-
pecialista em mapas, mesmo que não tivesse qualquer habilidade
para utilizar os softwares e outras ferramentas que geram os mapas.
Mas, também é verdade que outras áreas do saber tiveram uma
grande aproximação com a cartografia, utilizando-a como aliada
para estudos de alguns fenômenos sociais, econômicos, culturais
e naturais.
Por outro lado, muitos livros e artigos escritos por Milton
Santos sequer tiveram a figura de um mapa para complementar
uma análise, o que não comprometeu suas contribuições para a
compreensão da dinâmica do território. E isso não significa o des-
prezo pelos mapas, afinal, são de grande valia em qualquer estudo
do território. O que não se deve é condicionar o trabalho do geógrafo
à confecção de mapas. Nos dias atuais, a facilidade de acesso à
internet permite que qualquer lugar, região ou território, no Brasil
ou no mundo, sejam visualizados através de imagens de satélites,
mapas temáticos ou fotos.
Portanto, a geografia popular faz uma crítica à cartografia tradi-
cional, pois, de acordo com Milton Santos (1991, p. 48),

Há uma defasagem secular entre os fenômenos sobre os quais


os geógrafos trabalham atualmente para explicar uma situação
dada e os mapas que lhes são impostos. Ademais, os mapas
obsoletos contribuem para dar um destaque exagerado aos
fenômenos físicos e históricos, ainda que esses dados já não
sirvam para explicar muita coisa.

42 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Certamente, que a cartografia tem utilidade para a geografia
popular, sobretudo, na composição de novos mapas, com propostas
que sejam compatíveis com a dinâmica social, mapeando áreas de
supressão e de desmanche de linhas abissais, isto é, uma carto-
grafia que se sobreponha às cartografias oficiais. Ciências como
a antropologia, por exemplo, têm conseguido realizar, através da
cartografia, mapeamentos de alguns povos tradicionais do Brasil,
uma cartografia que mapeia a localização de povos invisibilizados.
Assim, os mapas produzidos pela cartografia oficial podem levar
a equívocos de interpretação, visto que podem “inevitavelmente
distorcer a realidade” (SANTOS, B. S., 2002a, p. 186), justamente
porque o poder público não consegue acompanhar a dinâmica social,
e continua a gerenciar o território através de mapas obsoletos.
A crítica que Boaventura de Sousa Santos faz com relação a
determinados mapas é pertinente a partir do momento em que
se verifica que a cartografia, não raro, está a serviço daqueles que
detêm o poder político, que utilizam os mapas para criar seus terri-
tórios de controle político; do poder militar, para proteger suas fron-
teiras e intervenção em outros territórios; e do poder econômico,
na ampliação de território das grandes empresas. Nesse sentido,
quando se coloca a geografia fortemente vinculada à cartografia,
entendemos que ela “tantas vezes ao serviço da dominação, tem de
ser urgentemente reformulada para ser o que sempre quis ser:
uma ciência do homem”. (SANTOS, M., 2004, p. 261) A geografia
popular é um pouco disso, tenta acompanhar a ideia da geografia
nova, proposta por Milton Santos (2004), e se configura como uma
perspectiva curiosa, visto que ela está em

[...] busca de um ângulo diferente a partir do qual as propor-


ções e as hierarquias estabelecidas pela perspectiva normal
possam ser desestabilizadas, e, consequentemente, ver sub-
vertida a sua pretensão de uma representação da realidade
natural, ordenada e fiel. (SANTOS, B. S., 2002a, p. 233)

Geografia popular: a geografia em movimento 43


Para a geografia popular, além de levar em consideração a
política, a economia, a sociedade e a natureza, o seu objetivo está
na análise da metamorfose do território, tendo, como causa, os movi-
mentos advindos diretamente dos indignados e injustiçados ou em
ações geradas a partir do Estado. Essas ações, mormente, são ge-
radoras de linhas abissais, justamente porque o imperialista não
admite a presença do outro, a não ser que seja na condição de
subalterno, ou seja, uma “integração subordinada”.(SANTOS, B. S.,
2008, p. 280)
No entendimento de Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 35),
o atual estágio de uma separação profunda entre os territórios que
vivemos se origina em meados do século XVI, e

o seu caráter abissal, manifesta-se no elaborado trabalho car-


tográfico investido na sua definição, na extrema precisão exi-
gida a cartógrafos, fabricantes de globos terrestres e pilotos,
no policiamento vigilante e nas duras punições das violações.

Portanto, esse tipo de aparelhamento técnico é visto pela


geografia popular com a função de servir às cartografias oficiais
que desenham as geografias oficiais, com a demarcação de terri-
tórios para a criação de países, estados, municípios, e até mesmo
áreas de exceção.
Boaventura de Sousa Santos (2010a) tem razão quando diz que
vivemos atualmente numa “cartografia confusa”, visto que existe
uma complexidade que dificulta nossa compreensão sobre as re-
lações entre os países, pois, diferentemente de quando havia uma
bipolaridade mundial, sabíamos os motivos das alianças. Todavia,
como explicar, hodiernamente, que um país conteste o regime po-
lítico ou econômico do outro, mas que este outro se configure seu
maior exportador de petróleo? Como um país que critica os direitos
humanos pode estabelecer trocas de mercadorias com outro país que
não oferece condições dignas aos seus trabalhadores, que submetem

44 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
as mulheres a severas humilhações morais e físicas? Como entender
que um país se relacione com um outro que impõe à sociedade um
regime autoritário, corrupto? Como explicar a relação que um país
tem com o outro, sendo o arsenal bélico sua maior propaganda
de governo? Como estabelecer diplomacia com países que adotem
a pena de morte? Como explicar a política de blocos que retalham
o mundo em profundas linhas abissais?
Obviamente, há explicações plausíveis, mas que, no entanto,
não são vistas a olho nu, e, por isso, as respostas podem estar nos
pontos cegos, que são aqueles que nem mesmo os radares mais po-
tentes conseguem identificar; essas relações só podem ser enten-
didas através da cartografia oficial de cada país, mas, geralmente,
são mapas que ganham status de documentos altamente secretos,
importantes para a segurança nacional. Entretanto, mesmo diante
de uma cartografia confusa ou caótica, é possível identificar, através
de olhares críticos, que nestes pontos cegos vigoram o

[...] tráfico de escravos e trabalho forçado, uso manipulador do


direito e das autoridades tradicionais através do governo indi-
reto, pilhagem dos recursos naturais, deslocação maciça de
populações, guerras e tratados desiguais, diferentes formas de
apartheid e assimilação forçada. (SANTOS, B. S., 2010a, p. 38)

No Brasil, o lado opaco da linha abissal é preenchido pelo


trabalho em regime de servidão, os altos índices de prostituição,
seguidos do trabalho infantil, o pagamento de salários abaixo do
valor mínimo, pelo não acesso à educação e saúde, e, finalmente,
figuram dentro dele, a violência contra pobres, negros, mulheres,
entre outros. Todos esses elementos estão dentro de uma carto-
grafia perversa concebida pelos governos, de acordo com seus
interesses e camuflados para que não sejam visíveis pela grande
massa da sociedade mundial. Feita dessa forma, a cartografia abis-
sal se mostra tão presente quando no seu início, em meados do
século XVI, visto que “o pensamento moderno ocidental continua

Geografia popular: a geografia em movimento 45


a operar mediante linhas abissais que dividem o mundo humano
do subumano, de tal forma que princípios de humanidade não são
postos em causa por práticas desumanas”. (SANTOS, B. S., 2010,
p. 39) Logo, percebe-se que as cartografias oficiais estão sempre
a serviço de um modelo administrativo defeituoso, pois o que está
como pano de fundo é manter a relação metrópole versus colônia,
tal como nos primórdios do colonialismo. Em suma, são essas car-
tografias que a geografia popular tentar superar, colocando-se em
contraponto à geografia tradicional, que tem ligações umbilicais
históricas com as geografias oficiais.

Geografia comportamental, território mental


e a geografia popular 2

Para além da superação das barreiras visíveis e invisíveis


que são colocadas no território, isto é, a ação física no território,
a geografia popular nasce fundamentalmente no interior da cada
pessoa ou numa conjunção de pensamentos coletivos. Para o cientista
social Evandro Ouriques (2009, p. 77), o território é uma

Categoria hoje central na análise das questões sociais e que


só revela sua potência de produção de autonomia interde-
pendente quando alimentada por mudanças efetivas nas re-
lações de poder, que são – sempre e apenas – determinadas
por atitudes mentais.

É nessa reflexão que Ouriques (2009) propõe, chamando a


atenção da importância das atitudes mentais, que sua contribuição

2 Parte de uma reflexão desenvolvida no Pós-Doutorado no Núcleo de História das


Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE) da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), com o Prof. Dr. Evandro Ouriques.

46 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
teórica pode ser utilizada nas análises geográficas, sobretudo dentro
da geografia humana. Uma abordagem geográfica que venha a se
apoiar na visão de Ouriques (2009) se torna pertinente porque,
mesmo que o homem seja o centro num determinado estudo de
geografia, pouco se dá atenção sobre a influência que seus sen-
timentos têm sobre a configuração de um território. No entanto,
essa relação é indissociável, pois, não há como separar o território
mental do território do geográfico, ainda mais quando se leva em
consideração que o território só pode ser produzido pelo homem.
Logo, todo território é projetado na mente, carregado de sentimentos de
toda natureza, para, depois, se concretizar nas diferentes paisagens.
Portanto, o que se vê em um dado território, salvo os elementos
físicos de uma paisagem, é o resultado de um complexo sistema
que produz mapas mentais originados de múltiplos sentimentos,
percepções, desejos.
A proposição do uso do território mental nos estudos geo-
gráficos só é possível na geografia humana, especificamente, na
geografia da percepção e do comportamento ou, simplesmente,
geografia comportamental. Segundo Milton Santos (2004, p. 91),
essa seria uma das novas tendências da geografia, e o fundamento
da sua abordagem “vem do fato de que cada indivíduo tem uma ma-
neira específica de apreender o espaço, mas também o de avaliar”.
Portanto, é possível realizar uma análise da configuração territorial,
aproximando o conceito de território mental com a perspectiva de
estudos sugeridos pela geografia comportamental.
Ao trazer o território mental para os estudos da geografia,
a intenção é entender a dinâmica e a configuração antes da sua
concepção, pois, o que se vê num território, suas rugosidades, é o
resultado do que foi pensado antes: pensamentos individuais, pensa-
mentos em grupos, em rede, organizados ou não etc. Evidentemente
que esta análise não tem a pretensão de abarcar o campo de atuação
do território mental, haja vista que Ouriques (2009) propõe que sua
teoria possa ser utilizada, por exemplo, na comunicação, na política,
na economia. Nessa investigação, o uso desse conceito vem como

Geografia popular: a geografia em movimento 47


um aporte teórico na análise de um determinado tipo de dinâmica
territorial, denominadas como “transgressões de fronteiras”.
Assim, buscando construir mais uma ponte que possibilite a
decodificação da dinâmica territorial, esta pesquisa propõe o uso
do conceito de território mental, que, segundo seu formulador,
Evandro Ouriques (2009, p. 80, grifo do autor), é o único território
humano, tendo em vista que “território enquanto espaço + relações
de poder é conceito também aplicado aos animais não humanos”.
Para Ouriques (2012), é no território mental que ocorre o fluxo de
pensamentos, afetos e percepções, ou seja, o fluxo dos estados men-
tais que são a fonte de referência para a ação no mundo, sobretudo,
na construção de cartografias excludentes.
A proposição teórica do território mental é pensada sob a luz da
filosofia e da psicologia, e se propõe a estudar um determinado tipo
de território, que, assim como o geográfico, também possui diferentes
escalas de grandeza. O que difere o território mental do geográfico é
que ele se caracteriza por uma imprecisão cartográfica e, por vezes,
indomável, daí a dificuldade de cartografá-lo e, por conseguinte,
mais complexo de ser estudado se levarmos em consideração que
cada um de nós possuímos um território mental . (OURIQUES, 2012)
Já o território geográfico, é produzido por fragmentações car-
tográficas, palpáveis através da impressão numa folha de papel,
cunhado em cálculos matemáticos, produzindo demarcações que
propõem um cenário onde as semelhanças fisiográfica, econômica
e cultural, com caráter de homogeneidade, seriam a base para
suas concepções.
Certamente, o território mental e a geografia comportamental
vão se opor diante de um quadro homogêneo, visto que, mesmo a
coletividade, em um dado território, internamente, tem suas singulari-
dades. E ainda vive-se “muito mais preocupados com o fazer, com o
alcançar resultados práticos, do que com o refletir” (SPOSITO, 2004,
p. 121), a atividade intelectual sempre será fundamental para en-
contrar outros caminhos, contrapondo-se ao maniqueísmo que,
atualmente, conduz a maioria das análises globais e locais.

48 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Se a geografia humana tem como premissa o desenvolvimento
de um pensamento crítico, então, o exercício de filosofar se torna
imprescindível, haja vista que “já não se pode produzir conhecimento
em Geografia sem colocar-se a questão de uma reconstrução epis-
temológica e, portanto, filosófica”. (SILVEIRA; VITTE, 2010, p. 13)
Em resumo, propor uma análise geográfica, sobretudo, se esta es-
tiver norteada por uma visão humanista, deve significar a possibi-
lidade de descobrir, experimentar e combinar outras formas de se
pensar o território, buscando também em intelectuais que estejam
fora da geografia, mas que se dedicam a pensar na relação da
sociedade com o território, pois, só assim a geografia cumpre seu
objetivo maior, que é o de colaborar com a interpretação do mundo
em que vivemos. Uma única ciência, com seus conceitos, não dará
conta dessa tarefa, que é inacabável.
Para Ouriques (2009, p. 77), o território é uma categoria impor-
tante para a

análise das questões sociais e só revela sua potência de pro-


dução de autonomia interdependente quando alimentada por
mudanças efetivas nas relações de poder, que são – sempre e
apenas – determinadas por atitudes mentais.

Por conseguinte, são as atitudes mentais que refletem o com-


portamento humano, convertendo-se em ponto de intersecção com
a geografia comportamental. Esta proximidade entre os conceitos
de território mental e da geografia comportamental contribui para
compreender o que chamamos, neste livro, de geografia popular.
Milton Santos (2004, p. 92) enxerga, na geografia compor-
tamental, “uma ruptura com o economicismo e uma forma de
restituição dos valores individuais”. É na individualidade que se
encontra outro ponto de amálgama dessa geografia com a teoria
de Ouriques (2009), tendo em vista que, se cada um de nós temos
um território mental, então, cada um constrói uma forma de pensar
o território geográfico, gerando várias geografias. Por outro lado,
é aqui que se insere uma das dificuldades de análises elaboradas

Geografia popular: a geografia em movimento 49


à luz da geografia comportamental e do território mental, pois,
geralmente, as ações coletivas tendem a superar ou suprimir a
individualidade em questões que envolvem dinâmicas territoriais.
Parafraseando Ouriques (2009) em sua reflexão sobre o territó-
rio mental como o nó górdio da democracia, poderia dizer que a
geografia comportamental e o território mental seriam os nós gór-
dios na utopia de atingir um território democrático. O conceito de
território mental auxilia a compreender que, tanto as cartografias
oficias e/ou econômicas, e os mapas de segregação, quanto as
transgressões dessas cartografias são organizadas por diferentes
estados mentais que levam à criação de mapas mentais, territórios
mentais que podem ou não se concretizar no território geográfico.
Milton Santos (2004, p. 92) diz que a geografia da percepção e
comportamental “ainda que seja rica de promessas como uma abor-
dagem parcial, ela ainda não foi capaz de comprovar sua validez”,
e uma justificativa para essa sentença pode estar no fato de que o
estudo de um dado território envolve uma infinidade de variáveis,
e estas variáveis possivelmente possuem forças que sobrepõem ao
comportamento de um único indivíduo. Assim, do ponto de vista
de uma organização espacial, fica inviabilizado para a geografia um
estudo em que a individualidade seja fundamental para a compre-
ensão do território.
Por outro lado, nada impede que geógrafos e outros estudiosos
do território se utilizem da individualidade como um dos vetores de
análise para a dinâmica territorial. Afinal, quando, no trabalho de
campo, o pesquisador abre a oportunidade para que pessoas da
comunidade pesquisada expressem seus sentimentos, ele deseja
saber qual comportamento é estabelecido entre pessoas e território.
Quando o pesquisador adota esse procedimento, ele também:

[...] aposta na transdisciplinaridade enquanto desestabilização


do que se delimita como campo de uma disciplina [...] Com a
desestabilização emerge o plano de constituição dos domí-
nios de conhecimento em que as dicotomias dão lugar aos

50 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
híbridos e as fronteiras apresentam seus graus de abertura,
suas franjas móveis por onde os saberes se arguem e as práticas
mostram sua complexidade. (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA
2015, p. 202)

Portanto, quando Ouriques (2009, p. 77) propõe o “território


mental como um conceito político”, ele ensaia a produção de uma
alternativa de como compreender o território geográfico a partir
do território mental, contrapondo a uma continuidade cultural do
maniqueísmo entre o abstrato e o concreto. Logo, não se deve des-
cartar a hipótese de que o território geográfico é também fruto das
manifestações que se dão no território mental, como acontece com
a geografia popular.

Geografia popular: a geografia em movimento 51


CAPÍTULO 2

AS MAC RO RREGIÕES BRASILEIR AS:


LIN HAS AB ISSAIS SUPER ADAS

O território brasileiro, desde a sua ocupação pelos coloni-


zadores, sofre constantemente com divisões administrativas ou
econômicas que, ao longo da sua história, se consolidaram como
o único processo de organização espacial, mesmo que isso te-
nha contribuído substancialmente com a fragmentação social e a
hierarquização do espaço, representados nos dias atuais, sobretudo,
pelos mapas de cada atual estado brasileiro. Neste capítulo, serão
abordadas duas divisões regionais, colocadas neste livro como li-
nhas abissais. A primeira linha está presente numa proposta teórica
de mapa geoeconômico, que explicitamente divide o sul metafó-
rico do chamado norte desenvolvido. A segunda linha refere-se à
cartografia do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
portanto, oficial, elaborada para criar as cinco grandes regiões
do país.

Divisão geoeconômica:
a dicotomia Norte/Sul no Brasil

Quando o geógrafo brasileiro Pedro Geiger, em 1967, propôs


um Brasil dividido em três grandes regiões econômicas (Figura 1),
seria apenas a fim de contribuir com o ordenamento ou organização

53
do país por meio de uma caracterização geoeconômica, contudo,
o seu mapa nos enseja uma cartografia abissal, tal como a divi-
são geoeconômica mundial. Essa divisão regional não se mostra
eficiente e dificulta uma análise mais profunda das singularidades
dos estados que compõem essa proposta cartográfica. Ao tentar
classificar os estados tendo a variável econômica como fator de-
terminante, o mapa mascara as grandes disparidades internas das
regiões propostas e ao mesmo tempo realça uma hierarquização
econômica. As linhas traçadas nesse mapa colocam alguns esta-
dos em duas regiões econômicas, demonstrando que, dentro dos
estados, existe uma diversidade econômica e que, portanto, não
podem ser classificados unicamente por um setor da economia.
Ademais, é um mapeamento que dificulta compreender a simpli-
cidade de cada lugar e que, de certa forma, distorce a realidade.
Esses são alguns dos riscos que um mapa como esse pode trazer
para a interpretação do território.

Figura 1 – Proposta de Pedro Geiger para divisão geoeconômica do Brasil

Fonte: adaptado de IBGE ([2012]).

54 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Um olhar mais detalhado sobre a Figura 1 revela o seguinte
cenário: se apagar a linha que divide as regiões Norte e Nordeste,
será possível visualizar uma divisão quase que simétrica entre o
norte e o sul do país. Nessa divisão geoeconômica, o sul geográfico
do Brasil é a parte mais desenvolvida do país, e o norte geográfico
do país é a parte mais pobre, onde se encontram os aspectos mais
marcantes do subdesenvolvimento. Ao colocar esse mesmo mapa
da Figura 1 invertido, o sul metafórico passa ser o norte, e o norte
desenvolvido será o sul.
Outra perspectiva de análise sobre essa proposta de divisão
geoeconômica mostra a Amazônia como uma região que tem sua
economia baseada na exploração dos elementos da paisagem natural,
o Nordeste com uma economia voltada para a agricultura de subsis-
tência, e o Centro-Sul seria a região mais desenvolvida economica-
mente, onde se concentra a maior parte das indústrias do país. Social
e ambientalmente, a Amazônia é caracterizada pelo clima chuvoso,
com grandes áreas de florestas e população composta por indígenas,
comunidades ribeirinhas e caboclos, o Nordeste agrupa estados do
clima semiárido, geralmente associado à condição de pobreza dos
seus habitantes, e o Centro-Sul é onde estão os maiores Índices de
Desenvolvimento Humano (IDH), sendo altamente urbanizado.
Portanto, tudo que é considerado exótico ou rudimentar está con-
centrado na Amazônia e no Nordeste, e, por outro lado, o Centro-Sul
é referência de modernidade e desenvolvimento, onde estão as
metrópoles ou as cidades grandes. Criticamente, esse mapa deli-
mita o Brasil economicamente não em três regiões, mas em duas,
visto que identifica o Centro-Sul como o norte desenvolvido, e a
Amazônia e o Nordeste são o sul subdesenvolvido.
Objetivando evidenciar que essa proposta de Geiger, caso fosse
adotada, confirmaria o seu caráter abissal, foi utilizado um estudo
(Quadro 1) que o IBGE, órgão oficial do Governo Federal, divulgou no
ano de 2013 sobre o ranking das dez cidades com mais miseráveis
e dez cidades com menos miseráveis. O resultado expõe o quanto
o fosso entre os lugares brasileiros é demasiadamente profundo.

As macrorregiões brasileiras: linhas abissais superadas 55


Quadro 1 – Relação das dez cidades mais miseráveis e
menos miseráveis do Brasil em 2013

CIDADES MAIS MISERÁVEIS CIDADES MENOS MISERÁVEIS

Centro do Guilherme (MA) 95,32% Harmonia (RS) 1,16%

Jordão (AC) 94,56% Presidente Lucena (RS) 1,52%

Belágua (MA) 93,75% Águas de São Pedro (SP) 2,55%

Pauini (AM) 91,95% Nova Bassano (RS) 2,86%

Santo Amaro do Maranhão (MA) 91,37% Monte Belo do Sul (RS) 2,91%

Guaribas (PI) 91,16% São José do Hortêncio (RS) 2,91%

Novo Santo Antônio (PI) 91,07% Morro Reuter (RS) 2,95%

Matões do Norte (MA) 90,59% Paraí (RS) 3,00%

Manari (PE) 90,41% Carlos Barbosa (RS) 3,22%

Milton Brandão (PI) 90,18% Alto Feliz (RS) 3,35%

Fonte: adaptado de IBGE (2013).

Entre as cidades com maiores números de pessoas vivendo na


miséria, todas elas estão localizadas nas regiões Norte e Nordeste,
ou, ao utilizar-se a divisão geoeconômica como referência, todas as
cidades estão dentro da Amazônia e no Nordeste. Enquanto que,
no outro lado da linha, todas as cidades com menores índices de
miseráveis pertencem à região Centro-Sul do país, o que não pode
ser interpretado como se essa região fosse homogeneamente de-
senvolvida, com total ausência de pobreza.
Ao transferir-se a análise anterior, da escala municipal para
a estadual, verifica-se que dos dez estados que apresentam os
maiores índices de pobreza, nenhum deles está localizado na região
Centro-Sul. Tomando como referência o Atlas do Desenvolvimento
Humano do Brasil de 2013, produzido pelo IBGE, os estados com
maior porcentagem de pobres em suas populações são: o Maranhão
(63,5%); Alagoas (59,7%); Piauí (58,1%); Pará (55,9%); Ceará (54,8%);
Paraíba (53,6%); Bahia (52,7%); Sergipe (52,1%); Pernambuco (51,8%);

56 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
e Amazonas (51,7%). Contudo, é preciso entender que, nos outros
estados brasileiros, mesmo entre os mais ricos, há enormes desigual-
dades econômicas entre eles, bem como internamente entre cidades.
Evidentemente, o mapa proposto por Pedro Geiger não foi o
responsável por produzir o panorama de abissalidade no país, aliás,
essa proposta não foi implementada por nenhum governo. Porém,
essa proposição permite estabelecer diferentes análises, inclusive
a criação ou aprofundamento de abismos, nesse caso, abismos entre
as macrorregiões econômicas do país. Ao produzir uma cartografia
baseada em atividades econômicas, não se configura um equívoco
teórico-metodológico, no entanto, deve-se levar em consideração
que é uma proposta efêmera, haja vista que a fluidez das ativida-
des econômicas pelo território é tão intensa que é quase impossível
confeccionar mapas de suas ocorrências em um mesmo estado
ou região. No seu livro Geografia Econômica, de 1998, outro importan-
te geógrafo brasileiro, Manuel Correa de Andrade, escreveu sobre a
dificuldade de cartografar as grandes empresas, tendo em vista que
elas diluíam suas atividades em diversos ramos de atuação por todo
o território. Em tempos de globalização, de avanços tecnológicos e
novas configurações empresariais, essa cartografia se torna ainda
mais laboriosa.
Assim como a dinâmica econômica, acompanhar a dinâmica
das linhas abissais é um dos exercícios mais árduos para um estu-
dioso do território, visto que essas linhas ora são fixas, mas também
são extremamente maleáveis podendo ser implantadas em qualquer
direção. De acordo com Boaventura Sousa Santos (2010a, p. 40)
“a permanência das linhas abissais globais ao longo de todo o pe-
ríodo moderno não significa que estas se tenham mantido fixas.
Historicamente, as linhas globais que dividem os dois lados têm
vindo a deslocar-se”. O deslocamento dessas linhas se deve a di-
ferentes fatores, como, por exemplo, em decorrência da ação da
geografia popular.
Esse modelo simplista, reducionista e dicotômico de ordenar o
território em duas partes, isto é, em norte e/ou sul é, na verdade,

As macrorregiões brasileiras: linhas abissais superadas 57


“a impossibilidade da copresença dos dois lados da linha” (SANTOS,
B. S., 2010a, p. 32), um modelo que parece se mostrar eficaz em di-
ferentes escalas, haja vista que, segundo Boaventura Sousa Santos
(2013b, p. 240), há uma “crescente e presumivelmente irreversível
polarização entre o Norte e o Sul, entre países centrais e países
periféricos no sistema mundial”. Por outro lado, ainda que esse
cenário dicotômico entre ricos e pobres direcione a maiorias das
relações entre as cidades, os estados e os países, também é possível
se pensar em outras possibilidades de analisar o território. A quebra
da hierarquia dos lugares, a formação de novos blocos econômi-
cos com países de continentes diferentes, com diferentes níveis
econômicos, a superação das linhas abissais pela geografia popular,
e a resiliência dos povos tradicionais, são movimentos que indicam
que a dicotomia norte/sul não é o único caminho para compreender o
mundo em que vivemos.

Cinco grandes regiões ou cinco blocos econômicos?

A divisão do território brasileiro em cinco grandes regiões foi


elaborada dentro de perspectivas que seriam fundamentais para o
desenvolvimento. Três dimensões guiaram essa proposta cartográfica:
o processo social como determinante, os elementos naturais como
condicionantes, e a articulação espacial. Se, por um lado, a proposta
teórica das dimensões contemplava um desenvolvimento interes-
sado nas características socais e naturais das regiões, por outro lado,
na prática, não houve aplicabilidade. A região Norte, por exemplo,
com diversidade de etnias indígenas, populações ribeirinhas, cursos
hidrográficos como principais vias de escoamento da população e
produtos, e que possui uma biodiversidade riquíssima, continua
alijada do desenvolvimento.
Até que se chegasse a essa configuração cartográfica das grandes
regiões brasileiras, houve uma vasta produção de mapas, como está

58 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
registrado no Quadro 2, que, de acordo com o IBGE, apresenta a
seguinte cronologia e configuração:

Quadro 2 – Dinâmica da divisão regional no Brasil de 1940 até os dias atuais

ANO CONFIGURA ÇÃO REGIONAL

1940 Norte, Nordeste, Este, Sul e Centro-Sul

Norte, Nordeste Ocidental, Nordeste Oriental, Leste Setentrional,


1945
Leste Meridional, Sul e Centro-Oeste

1950 Norte, Nordeste, Leste, Sul e Centro-Oeste

1970 até os
Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste
dias atuais

Fonte: elaborado pelo autor.

Essa dinamicidade cartográfica do país demonstra uma evo-


lução no processo de gestão do território, objetivando agrupar os
estados com características semelhantes dentro de uma região.
Dentro desse contexto histórico, a análise desse tópico terá como
referência a última divisão macrorregional, por ela permitir estabe-
lecer analogias com dinâmicas socioeconômicas atuais, como, por
exemplo, a divisão dos blocos econômicos.
Essa atual divisão regional do território brasileiro em Norte,
Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-Oeste é obsoleta, sufocante e
separatista. É um mapa obsoleto do ponto de vista social, pois,
não atende e tampouco representa as características sociais,
econômicas e ambientais dos estados nela inseridos. É obsoleto,
no que concerne administrativamente, porque as superintendên-
cias criadas para cada uma das regiões com o propósito de levar
o desenvolvimento foram todas extintas por diversos motivos,
dentre os quais, a perda da importância política de seus gestores.
É um mapa sufocante, tendo em vista que os estados foram encaixados
nessas regiões, não levando em consideração suas peculiaridades.
Assim, toda unidade federal que seja criada será enquadrada dentro de
uma das cinco regiões.

As macrorregiões brasileiras: linhas abissais superadas 59


Há um estudo do geógrafo José Donizete Cazzolato1 que propõe
a criação de uma sexta grande região, seria a Noroeste, que abrigaria
os estados de Rondônia, Acre, Amazonas e Roraima, porém, não se
configura como um projeto do IBGE. Contudo,

a sugestão para a demarcação de uma nova grande região, a


Noroeste, demonstra que a atual divisão do Brasil em Norte,
Sul, Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste está em dissonância
com as exigências atuais para uma melhor administração
territorial. (CERQUEIRA-NETO, 2009, p. 301)

Por outro lado, mais uma grande região não modificaria


substancialmente a vida da população brasileira, as regiões con-
tinuariam fragmentadas, distantes de uma integração nacional.
Um dos grandes problemas desse enquadramento regional é que,
mesmo agrupados numa mesma região, os estados têm caracte-
rísticas sociais, culturais, econômicas, étnicas, e aspectos naturais
diferentes; por exemplo, tanto o estado da Bahia quanto o de
Sergipe estão encaixados na grande região Nordeste, no entanto,
ao se aprofundar nas suas características, verá que poucos aspec-
tos lhes são semelhantes, por isso, não explicaria os seus enqua-
dramentos numa mesma região.
Essa divisão macrorregional do Brasil se configura muito mais
em uma divisão socioeconômica do que propriamente um planeja-
mento efetivo para se combater desníveis de desenvolvimento do
país, sua organização espacial é muito análoga com a dos blocos
econômicos mundiais ou regionais que concebem um desen-
volvimento que invade e força os diferentes lugares do mundo a
participar, sejam como atores principais ou simples figurantes, de
sua expansão. Essa concepção

1 Em outubro de 2011 foi lançado “Novos Estados e a Divisão Territorial do Brasil:


uma visão geográfica”, obra de José Donizete Cazzolato.

60 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
[…] afeta todo o território nacional, mudando, brutal e ce-
gamente, os equilíbrios e as perspectivas, mas, sobretudo,
trazendo um fermento de desagregação, um impulso à quebra
dos cimentos nacionais pacientemente construídos, e com-
prometendo a ideia de nação e de solidariedade. (SANTOS, M.,
2002, p. 41)

Assim, as cinco grandes regiões brasileiras funcionam como


blocos econômicos dentro do próprio território nacional, havendo os
blocos centrais, os emergentes e os blocos que são tratados como
colônias fornecedoras de matéria-prima e mão de obra de baixo custo,
o que dificulta a execução de um projeto de integração nacional e
favorece o alargamento das linhas abissais.
Ao fazer o exercício da analogia entre as macrorregiões do
Brasil com os blocos econômicos, o Sudeste seria o bloco central,
onde estão os comandos das decisões econômicas e políticas do país.
No Sudeste, predomina a maior parte da indústria brasileira, sedes de
bancos brasileiros e estrangeiros, e com força política, afinal, é o
maior colégio eleitoral do país. A analogia, também é pertinente
quando se reporta às relações internas, pois, mesmo dentro desse
bloco, nem todos os estados têm o mesmo grau de influência.
No caso da União Europeia, não se pode comparar o poder da
Alemanha em relação a Portugal, da mesma forma como não se
compara a influência do estado de São Paulo com a do Espírito Santo,
ainda que eles pertençam à mesma região.
O Centro-Oeste e a região Sul, nessa comparação, são os
blocos emergentes, tendo o agronegócio como a atividade econô-
mica principal, por isso, estão mais próximos do poder. Estes seriam
como o G20, que, mesmo com uma economia forte, não têm força
para contrapor o Sudeste. O Norte e o Nordeste poderiam fazer parte
de qualquer bloco econômico da África. Estados como a Bahia,
Pernambuco e Amazonas, mais precisamente suas capitais, Salvador,
Recife e Manaus tentam ser espelhos das zonas mais ricas do país,
são como a Angola, Nigéria e África do Sul. Os pressupostos para a
formação desses grupos são análogos aos princípios do contrato social,

As macrorregiões brasileiras: linhas abissais superadas 61


que “assenta em critérios de inclusão que, portanto, são também
critérios de exclusão”. (SANTOS, B. S., 2002c, p. 6) Assim, seja em
que nível for, essa união pressupõe a exclusão de tantos outros,
e o mais agravante, a ideologia de blocos tende a fazer com que
haja uma perda de identidade dos países membros, sobretudo,
porque tentam aplicar um processo de homogeneização da cultura,
da economia, por exemplo.
Atualmente, os dois exemplos de mapas apresentados aqui,
tanto o que traz as três grandes regiões econômicas, quanto o que
destaca as cinco grandes regiões, são mais úteis como referên-
cias históricas da cartografia do Brasil, enquanto testemunhos
das modificações da configuração regional e econômica do país.
Observa-se que a divisão geoeconômica não obteve êxito, sequer
foi implantada oficialmente. Isto porque, na visão de Milton Santos,
os “centros frouxos”, características de algumas grandes empresas,
não precisam de uma região ou de um território. Portanto, para estas
empresas, a cartografia oficial, com os mapas estaduais, não tem
nenhuma relevância.
A despeito de um projeto de desenvolvimento regional, com a
criação da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia
(Sudam), Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste
(Sudeco), Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene),
e Superintendência do Desenvolvimento do Sul (Sudesul), Cerqueira-
Neto (2009, p. 324) confirma que,

[...] os objetivos principais dessas instituições, que são criadas


para servir como um braço do governo em regiões distantes e
geralmente alijadas do desenvolvimento, foram desviados e
acabaram por interromper ideais de pessoas que pensavam
na possibilidade de um país com menos desigualdades, uma
distribuição mais difusa com menor concentração das oportuni-
dades do desenvolvimento, como por exemplo, Celso Furtado.

62 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Portanto, se as superintendências, como órgãos oficiais cria-
dos para se ter uma gestão específica para cada grande região,
desapareceram ou perderam sua importância, não há por que a
existência dessas macrorregiões. As linhas das grandes regiões já
estão superadas, mormente, pela ineficiência do Governo Federal, que,
ao longo dos anos, fracassou com planos de desenvolvimento para
as cinco grandes regiões, culminando com a falência das superin-
tendências. No caso da Sudene, por exemplo, Cristovam Buarque
(2001, p. 373) afirma que essa superintendência “partiu de uma
análise revolucionária no entendimento do problema nordestino
[...] seu objetivo não era garantir a produção agrícola, mas criar um
polo moderno de produção industrial”. Tal desenvolvimento não
aconteceu, como se pode constatar fazendo uma pesquisa rasa dos
IDH da maior parte dos municípios do Nordeste. Outro ponto que
contribui para o estágio de irrelevância das superintendências diz
respeito à indiferença da população no que concerne, por exemplo,
ao sentimento de pertencimento. Estado e a cidade se tornaram
suas maiores referências quando se discute o pertencimento a
um território.
E, com relação à divisão geoeconômica, uma proposta aca-
dêmica que não teve aplicação prática, contudo, permite-nos
interpretar o território brasileiro a partir de divisões que identificam
onde estão o norte e o sul metafóricos. A preferência por discorrer
sobre essas duas divisões nesta reflexão se justifica pelo fato de
que elas têm um caráter paradoxal, pois se, de um lado, transmi-
tem a ideia de integração regional, do outro lado, produzem uma
cartografia abissal, e levam-nos a pensar nos movimentos de supe-
ração das linhas abissais através da geografia popular. Aliás, essas
linhas das cinco grandes regiões, criadas em 1941, estão obsoletas
tendo em vista que, desde a extinção das superintendências, não há
planos macrorregionais de desenvolvimento. O que há em curso
são planos de desenvolvimento para regiões em escalas intra e
interestaduais.

As macrorregiões brasileiras: linhas abissais superadas 63


A análise dessas duas cartografias, a geoeconômica e a ma-
crorregional, corrobora com o pensamento de Boaventura de Sousa
Santos no que se refere à mobilidade das linhas abissais, tendo em
vista que as linhas que compunham o mapa das grandes regiões
foram migrando para os estados brasileiros. São neles e entre eles
onde as linhas se alargaram, aprofundando a divisão entre ricos
e pobres. Dessa forma, a integração macro do país fica comprome-
tida haja vista que não são as grandes regiões que possuem força
política e econômica, mas os estados e municípios, produzindo uma
cartografia do localismo.

64 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
CAPÍTULO 3

OS ESTADOS BR ASILEIR OS:


A MAIO R LIN HA ABISSAL DO PAÍS

Durante a história do país, houve vários ordenamentos territo-


riais para que se chegasse à atual configuração regional. Uma rica
cartografia foi construída desde que o país foi dividido pela linha do
Tratado de Tordesilhas (1494), passando pelo sistema de capitanias
hereditárias, que vigorou de 1534 a 1759. Em 1763, há uma tenta-
tiva de levantamento topográfico de todas as províncias; em 1822,
já aparecia com 18 províncias com a configuração de como seria di-
vidido o Brasil em estados; em 1889, essas províncias são elevadas
à categoria de estados; e, por fim, em 1988, o país consolidava sua
divisão político-administrativa em 26 estados e um Distrito Federal.
Assim como foram utilizados os mapas das três regiões eco-
nômicas e o das cinco grandes regiões para identificar grandes li-
nhas abissais do território nacional, neste capítulo, a metáfora das
linhas abissais será empregada para analisar os mapas estaduais.
Essa analogia leva em consideração dois aspectos: o primeiro se
refere à sua cartografia geodésica, isto é, as coordenadas que dão
origem ao mapa de cada estado, e o segundo está na forma como os
governadores utilizam de uma retórica que reforça a divisão entre os
estados e com a própria geografia do país. O segundo aspecto é se-
guramente o que faz dessa linha abissal a mais larga, mais profunda,
portanto, a mais perversa, não somente para aqueles que estão
opacos no território, mas para toda a sociedade brasileira, dado que
tira do indivíduo a sua condição de entender que ele pertence ao país,

65
justamente porque “a divisão é tal que o outro lado da linha desapa-
rece enquanto realidade torna-se inexistente, e é mesmo produzido
como inexistente”. (SANTOS, B. S., 2010a, p. 32) Daí o porquê a falta
do bem-estar social para muitos não incomoda nem causa descon-
forto à pequena parte privilegiada.
A dinâmica entre os estados brasileiros, pautada na competi-
tividade, certamente estimula o desinteresse na minimização das
linhas abissais. Para Buarque (2001, p. 377), “já é tempo de trans-
formar o país em nação, unificando sua população sem o corte
que já dura cinco séculos, e lhe dar uma soberania que nunca teve
plenamente”. Infelizmente, não se vê atualmente no cenário da
política brasileira que o desejo de Cristovam Buarque se realize
num curto espaço de tempo. O bairrismo entre os estados ainda é
uma linha mais rígida e profunda que compromete a confecção de
uma nação.

Os estados não existem física


tampouco culturalmente

Um dos conceitos mais caros para geografia é o território. Tratado


em pesquisas sob diferentes prismas, o território pode ser abordado,
por exemplo, através de um vetor econômico, cultural e/ou do
conjunto de suas características naturais. Neste livro, o território é
analisado dentro de sua totalidade, isto é, a sua área demarcada e a
dinâmica humana que o transforma constantemente. É intrínseco
à pesquisa geográfica que o território físico (geografia física) seja
parte integrante de suas análises, ainda que a pesquisa esteja com
o escopo puramente social (geografia humana), ao negligenciar a
fisiografia de um território corre-se o risco de uma análise geográ-
fica limitada. É o conhecimento dos aspectos físicos de um dado
território que diferencia a geografia de outras ciências humanas.
Mesmo com todas as críticas que possam remeter à dicotomia entre

66 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
geografia física e geografia humana, essas duas correntes são fun-
damentais para uma formação mais ampla do geógrafo. Não há cur-
sos de graduação formados apenas por componentes curriculares
da geografia humana ou da geografia física, portanto, há apenas
vestibular para geografia.
Assim, para produzir a crítica sobre a divisão político-administrativa
do Brasil enquanto linha abissal, apropriou-se do caráter físico do
território como viés de análise para questionar a existência física
dos estados. Física e geologicamente, os estados não existem, são
mapas derivados de combinações matemáticas traçadas virtualmen-
te sobre uma única massa de terra chamada de Brasil, como pode ser
visto na Figura 2.
O uso do mapa físico tem por objetivo mostrar que o Brasil,
enquanto território físico, se constitui numa única massa que possui
morfologias diferentes, diversidade na vegetação, dinâmicas climá-
ticas diferenciadas etc. Sobre essa estrutura, várias gerações foram
colocando suas marcas, algumas dessas marcas sobreviveram,
outras foram apagadas e novas são introduzidas pelas sociedades
atuais, numa movimentação constante pelo território. Os estados
brasileiros não deveriam ser considerados como estruturas físicas
independentes, ilhas, fora do território nacional, que nasceram de
outra massa de terra, afinal, não foram originados de eventos geo-
lógicos próprios.
Portanto, os estados não nascem como organismos biológicos,
são criados e definidos cartograficamente, registrados por uma lei.
Este “nascimento estadual” é apenas uma concepção administrativa
gestada pelo poder público, que marca a criação de um dado estado
após todos os trâmites burocráticos.
O povo não necessita da existência dos estados para sobreviver;
um exemplo é a dinâmica das etnias que aqui viviam antes da che-
gada dos colonizadores, percorriam todo o território tendo como
fronteiras os elementos naturais. Portanto, Minas Gerais, Bahia,
Tocantins, Goiás, Rio Grande do Sul e todos os outros estados bra-
sileiros são frutos de atos políticos que servem como ferramenta

Os estados brasileiros: a maior linha abissal do país 67


de organização do território. Qual seria a diferença se o Acre se
chamasse Minas Gerais e vice-versa? Nenhuma, pois são nomes
inventados, que geralmente fazem referência a um fato histórico e
ou político, são, sobretudo, nomes criados pelo homem com o sentido
de registrar um território, uma área, com objetivo puramente admi-
nistrativo, como se fosse num cartório registrar um filho. O mesmo
processo aconteceu quando os colonizadores portugueses tomaram
posse das terras onde hoje é o Brasil. Portanto, se existe algo que
seja próprio de Minas Gerais, é o mineiro, da mesma forma com os
outros estados.
Fazendo a transição da análise que entende o território também
como físico para a análise cultural, a questão ainda é mais grave.
Darcy Ribeiro, no documentário O povo brasileiro (2000), na seção
“Matriz Tupi”, disse que essas terras onde hoje é o Brasil já exis-
tiam com uma dinâmica humana, biológica e física, muito antes da
chegada dos colonizadores. Concordando com a leitura que Darcy
Ribeiro faz sobre a origem do Brasil, fica difícil aceitar a ideia de que
os estados brasileiros nasceram como se fossem unidades fora da
geografia brasileira, e que isso determinasse o aparecimento de
uma cultura. De acordo com Santos (2002, p. 65), “o conceito de
cultura está intimamente ligado às expressões da autenticidade,
da integridade e da liberdade”, assim, pode-se afirmar que é a cultura
que constrói o seu mapa, portanto, o mapa, nesse caso, não antecede
a cultura. O mapa cultural é construído pela dimensão territorial
que determinada manifestação alcança, sem, necessariamente,
estar impresso em um papel ou forjado por algum equipamento de
tecnologia avançada.
A multiculturalidade que há no Brasil, ao invés de ser uma
característica que nos torna um povo mais solidário, parece pre-
judicar as relações, sobretudo, internamente, dificultando a nossa
compreensão de que vivemos num mesmo país, portanto, uma nação
num mesmo território. Na esteira argumentativa de Milton Santos
(2002), a solidariedade é vista não enquanto sinônimo de caridade,
mas uma solidariedade orientada para o bem comum. Para Cristovam

68 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Buarque (2001), o processo de unificação do país não passa por
uma unificação regional, mas social.
Essa percepção também está expressa numa forma de mani-
festação popular e cultural encontrada na canção “Fruto do Suor”,
de 1982, imortalizada pelo grupo Raíces de América, considera-
da como um hino para os imigrantes latinos radicados no Brasil,
denunciando como as geografias oficiais mudaram a relação entre
a sociedade brasileira e a terra, a pátria mãe. Na canção, a terra
onde hoje é o Brasil era vista como um paraíso, não existia a cobiça,
e o índio era o único no continente. As geografias oficiais fabricaram
carimbos, levantaram paredes e traçaram as fronteiras. O desabafo
na canção reflete, ao mesmo tempo, o desejo e a decepção de não
se poder viver em um país sem fronteiras. Uma dessas linhas de
fronteiras é o ufanismo estadual, que, no Brasil, não consegue en-
xergar o território em sua totalidade, impondo bairrismos culturais,
técnicos, econômicos e científicos. Contudo, compreender que a
totalidade do território é fundamental para construir as análises sobre
suas dinâmicas não significa ignorar a simplicidade de cada lugar,
mas encontrar caminhos para uma integração de diversidades,
tendo em vista que o Brasil é um país abastado nesse sentido.
Sabe-se que o território é fundamental para as manifestações
culturais de um povo, afinal, a sociedade “não existe fora do território,
e sim por suas relações” (SANTOS, M., 2002, p. 36), o que se implanta
sobre ele é o que vai caracterizá-lo, como as diversas manifestações
culturais, tipos de urbanização e os demais usos que o ser humano
fará dele. Portanto, uma cultura pode caracterizar um território,
mas, um território, no seu sentido físico ou somente pelo seu con-
torno cartográfico, não caracteriza uma sociedade. Por exemplo,
os tocantinenses originados do antigo norte goiano não se tornaram
nortistas porque o estado do Tocantins foi encaixado na grande região
norte do país. Caso projetos de ordenamento territorial (Figura 2)
obtenham sucesso, o Brasil terá novos mapas internos, sejam eles
como forma de prolongamento do poder de um clã político ou como
retórica da preservação cultural e ambiental de alguns territórios.

Os estados brasileiros: a maior linha abissal do país 69


Figura 2 – Uma das propostas de criação de estados
elaborada por Carlos Stener (2005)

Fonte: adaptado de Cigolini e Nogueira (2012).

Daí o porquê não tratar as linhas dos mapas como elementos


rígidos e perenes. A própria história da divisão político-administrativa
do Brasil mostra que algumas linhas se movimentaram e outras
desapareceram, propiciando a supressão ou o aparecimento de
territórios. Como, por exemplo, a linha do Tratado de Tordesilhas,
as linhas das capitanias hereditárias, as linhas das primeiras pro-
postas de regionalização do Brasil. Ao compreender que o Brasil,
assim como todos os outros países, fisiograficamente, é resultado de
uma contínua evolução do modelado terrestre através de sucessões
de eventos naturais, portanto, concebido pela natureza, seria muito
difícil aceitar que o território pode ser um objeto de propriedade
privada. O espaço geográfico, físico e humano, não pertence a um só
grupo social, político ou econômico, mas a toda população brasileira.

70 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Logo, governar um território não deveria significar posse do físico e
tampouco do humano.
O modo como os governadores gerenciam os estados é um
sinal de que o colonialismo não tenha se apagado por completo,
pois ainda é possível encontrar seus resquícios em formas mais
“suaves” de exploração, com outras roupagens, com o aprimora-
mento de novos mecanismos de submissão. É notório e público que,
em alguns estados brasileiros, bem como em muitas prefeituras
do país, a política é dominada por décadas, seja por um partido
político ou por um clã familiar. Esse comportamento político cria
um cenário em que o mapa do município ou do estado se configura
em território do poder, e romper com a noção de posse que go-
vernadores e prefeitos têm sobre a geografia significa superar uma
linha abissal.
Um dos caminhos para superar essa linha abissal passa neces-
sariamente pela compreensão de que o Brasil é um território único
com suas características naturais e humanas, e mesmo com os es-
tados gerenciados de forma individualizada, geograficamente, o país
é um só. Sendo assim, o índio que está no Amazonas ou na Bahia é
o índio do Brasil, o sem-terra da mesma forma, os miseráveis não
pertencem a um estado, mas ao país, não existe população negra de
um estado, existem negros do Brasil, e assim como muitos outros
que estão em estado de exclusão. Por isso, Boaventura Sousa
Santos (2013b, p. 17) vai afirmar que a linha abissal “longe de ter
sido eliminada com o fim do colonialismo histórico, continua sob
outras formas (neocolonialismo, racismo, xenofobia [...] ou mesmo
cidadãos comuns vítimas de políticas de austeridade listadas pelo
capital financeiro)”. Esse sistema, para se manter, é altamente apa-
relhado através de grandes investimentos que lhe asseguram um
monitoramento constante de territórios vulneráveis à cooptação
e apropriação cultural, política, ambiental e econômica, e um dos
recursos tecnológicos mais utilizados são os estudos cartográficos.
Não raro que grandes empresas investem muito em informações
cartográficas ou mesmo em laboratório de georreferenciamento.

Os estados brasileiros: a maior linha abissal do país 71


O estudo sobre a geografia popular considera que os estados
são demarcações virtuais, visto que as delimitações cartográficas
dos estados não são visíveis, não são concretas, só existem através
dos mapas. Dessa forma, os estados deveriam servir apenas como
um instrumento de organização espacial em sua totalidade, mas,
contrariamente, se tornaram ilhas do poder no Brasil. Na maioria
dos estados, é possível fazer uma analogia com as capitanias here-
ditárias devido à herança política que as famílias tradicionais con-
seguem manter por décadas nos limites territoriais dos estados,
algumas dessas famílias expandem suas influências para outros
estados e até mesmo por todo o território nacional. Talvez essa seja
uma das justificativas para a criação de novos estados, pois “em muitos
casos criará as condições para uma acessibilidade política” (SANTOS,
M., 2002, p. 33), esta é a saída encontrada por aqueles que não se
sentem representados pelos políticos que os comandam, uma vez
que são alijados do processo de desenvolvimento.
Para as grandes empresas, os estados também não existem.
O grande empresário, os poderosos grupos econômicos, diferenciam os
estados apenas pelo valor percentual do Imposto sobre Circulação
de Mercadorias e Serviços (ICMS). Este imposto é outra linha abis-
sal que separa os estados, provocando a chamada “guerra fiscal”,
colocando em relevo uma relação entre colônia e metrópole den-
tro do país, num sistema de desigualdade caracterizado por uma
“integração subordinada. […] a desigualdade implica um sistema
hierárquico de integração social. Quem está embaixo está dentro e
sua presença é indispensável”. (SANTOS, B. S., 2008, p. 280) O ICMS
é uma linha que, por enquanto, não se vê perspectiva de ser ultra-
passada, tendo em vista que os estados mais poderosos economi-
camente não estão dispostos a discutir sua unificação. Portanto,
para as grandes empresas, os estados são delimitados não pelos
seus mapas oficiais ou por sua cultura, mas pelo ICMS, um imposto
que contribui com a visualização entre o norte e o sul do país.
Certamente que a configuração cartográfica dos estados bra-
sileiros se tornou verdadeiras linhas profundas, que internamente

72 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
criam os lugares opacos, isto é, regiões estaduais que são alijadas
do processo de políticas de desenvolvimento. Contra esse panorama,
muitos veem como saída a criação de novos estados, pois, “a descen-
tralização não apenas formal ou funcional, mas estrutural, pode e deve
ser um instrumento de democracia política e social”. (SANTOS,M.,
2002, p. 33) Essa descentralização é o maior receio de governadores
que tratam os estados como se fossem extensões de suas pro-
priedades particulares. Não por acaso que o governador da Bahia,
Jaques Wagner, e outros políticos influentes do estado, disseram,
em tom populista, que a Bahia era indivisível.

‘Não se divide a Bahia. Criar um novo estado é criar despesa,


e não receita’, descarta Wagner. ‘A Bahia é uma só, indivisível,
diferente e única. Ninguém vai separar os baianos’, ecoa Geddel.
O presidente da Assembleia Legislativa, Marcelo Nilo, se disse
‘altamente contra a divisão da Bahia’, observando que o Estado
de Castro Alves, Octávio Mangabeira e Jorge Amado não se
divide. ‘Somos todos irmãos e temos que lutar pelo bem-estar
de todos’, afirmou Nilo ao Bahia247. (A BAHIA..., 2011)

Este não é um pensamento apenas dos políticos da Bahia, ele está


presente no discurso da grande maioria de quem assume o governo
de um estado. A retórica tem como foco uma pretensa proteção da
cultura e do bem-estar comum, entretanto, os interesses são outros,
geralmente destoados dos interesses do povo. Dentro desses mapas,
os governos se mostram ineficientes para gerir o território, pois há
uma distribuição desigual dos recursos entre as regiões do estado,
o que vem a ser um dos fatores que geram propostas de emancipa-
ção regional, objetivando a formação de uma nova unidade federal.
Ao assumirem um comportamento como donos dos territórios,
governadores estabelecem discursos que geram um panorama
geo-preconceituoso e individualista, que tem um peso substancial
na fragmentação do país. O minério explorado em Minas Gerais e
no Pará, o ouro de Serra Pelada, o petróleo retirado do mar ou do
continente, deveriam servir ao desenvolvimento de todo o Brasil.

Os estados brasileiros: a maior linha abissal do país 73


Daí a necessidade de compreender que o Brasil, fisicamente, é um
único bloco de massa e que os recursos existentes nessa massa
devem tornar-se riqueza para toda a sociedade.
Na argumentação de Milton Santos (2002, p. 33), não se justifica
“redividir o território para atender mais depressa à vontade de lu-
cro de empresas hegemônicas, ou à fome de votos de um político.
Também não há por que mantê-lo indiviso por essas mesmas razões”.
O descontentamento com longos anos de exclusão de algumas regiões,
dentro de alguns estados, está fazendo com que aflorem desejos
de emancipações políticas, isso se explica devido ao fato de que
“a representação democrática assenta na distância, na diferenciação e
mesmo na opacidade entre representante e representado”. (SANTOS,
B. S., 2013b, p. 190) Essa dinâmica, que é a principal característica
da geografia popular, exige que repensemos as fronteiras internas
do país. Cerqueira-Neto (2009, p. 305) arremata: “o grande desafio
é fazer com que esta diversidade ao invés de dividir, una o país sob
um sentimento maior de pertencimento nacional independente
da quantidade de unidades federais e territórios”. Por isso, para a
geografia popular, a maior linha abissal do Brasil se encontra nos
mapas estaduais.
Evidentemente, reconhecer o Brasil como um único bloco de
terra não é um exercício fácil e muito menos atrativo para aqueles
que não veem outro caminho que não seja através dos mapas já
estabelecidos pela cartografia oficial, o que é perfeitamente com-
preensível para quem não ousa enfrentar um tema tão espinhoso
política, acadêmica, econômica e socialmente. Mas, o fato é que
o Brasil, desde sua colonização, é orientado para a construção de li-
nhas abissais, separando colonizados de colonizadores, escravizados
e senhores feudais etc. A grande diferença nos dias atuais é que,
se as linhas foram construídas ou desmanchadas pela força, com lutas
armadas, decerto que nesse processo houve acordos diplomáticos,
porém, não antes do conflito armado. As lutas nativistas e a incorpo-
ração do Acre ao território brasileiro são exemplos dessa dinâmica.

74 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
No Brasil pós-colonial, as linhas abissais são construídas por
meio de leis (criação de estados, aplicação de impostos, centralização
de investimentos etc.), pelas grandes empresas que hoje escolhem,
dominam e usam o território, pelo bairrismo cultural e econômico que
orienta a prática política de governadores. No que se refere à urbani-
zação das grandes cidades, os bairros populares estão distantes da
área central, uma linha abissal que possui dezenas de quilômetros.
Espera-se, de quem detém o poder político, ações que descon-
centrem a direção dos fluxos dos investimentos do Brasil, promovendo
“um programa de democratização real, do acesso do povo ao poder”
(ANDRADE, 1991, p. 13), isso só pode ser alcançado se entendermos
que o povo não pode significar apenas como uma camada represen-
tada pela base de uma pirâmide socioeconômica.

Os estados brasileiros: a maior linha abissal do país 75


CAPÍTULO 4

F RON T EIR AS INT ERNAS:


ESC ALAS E CONT RADIÇÕES

A atual configuração político-administrativa do Brasil, com os


seus recortes internos, conduzida por uma política de hierarqui-
zação do território, mostra que o brasileiro vive em diversas ilhas.
Cada estado se comporta como um ente à parte do país, como se
fosse uma ilha. Dessa forma, não há como não se instalar contra-
dições no que se refere à produção ou não de outras cartografias.
Ao elaborar uma reflexão sobre se o país precisa de mais ou
menos mapas, inevitavelmente, se estabelece uma dicotomia, pois,
ao mesmo tempo em que se busca suprimir as linhas abissais, por
outro lado, é fundamental a construção de uma cartografia que res-
guarde dinâmicas particulares que resistiram, ao longo da história,
a toda forma de interferência, seja pelo poder público, seja pelo
capital ou na ação combinada desses dois setores.
O que se percebe é que tradicionalmente o país tenta se organi-
zar através de propostas de divisões, e tomando a palavra “divisão”,
na sua concepção literal, é difícil imaginar a integração no país, sob um
modelo de ordenamento do território baseado em incontáveis divi-
sões cartográficas. No Brasil, ocorre a divisão político-administrativa
dos estados, uma vez que, dentro de cada estado, surgem as divi-
sões regionais, que podem se desdobrar em regiões econômicas,
microrregiões, mesorregiões. A título de exemplo, na Bahia, existe a
divisão do estado em territórios de identidade. Dentro das regiões,

77
estão as cidades que elaboram um ordenamento através dos seus
bairros, e, para cada bairro, um mapa. Para além dos mapas oficiais,
ainda há a cartografia elaborada pelas grandes empresas que pos-
suem sua própria lógica no mapeamento do território.
Esse sistema de ordenamento espacial, tendo os mapas como
instrumento principal, tem provocado, em todas as escalas, o apa-
recimento de linhas abissais. Assim como a globalização ainda é
utilizada para explicar tudo que acontece de benéfico ou maléfico
na dinâmica do planeta, os mapas oficiais também se tornaram os
únicos meios de planejamento e organização dos territórios, e são
utilizados para reproduzirem desde uma caracterização geral até
as minúcias de um dado território.
A produção de uma cartografia maniqueísta, ou seja, geral versus
local, seria contraproducente para interpretar a dinâmica e as ne-
cessidades da sociedade, visto que, ao invés de se complementarem,
acabam por criar um cenário de contraposições. Em um contexto
utópico, imaginando a supressão das linhas abissais, haveria uma
geografia única, portanto, seria imperioso revisitar a maneira como
os indígenas se relacionavam com o território. Antes da chegada
dos colonizadores, esses povos realizavam deslocamentos em vá-
rias direções, sem a preocupação com demarcações cartográficas.
O contorno geográfico era a própria fisiografia, não havia mapas que
determinassem a quem pertencia tal território. Esse cenário é uma
utopia, pois o Brasil, como o mundo, se tornou mais complexo, e viver
sem um mapa nos dias atuais parece impossível para nossa sociedade.
Essa análise não se configura como uma proposta cartográfica,
visto que, para isso, seria preciso apresentar uma opção de car-
tografia através de mapas. Entretanto, ao se analisar o território
sob a ótica do desmanche das linhas abissais, implicitamente está
se propondo outra cartografia, uma cartografia imaginária, porém,
não abstrata, tendo em vista que a geografia popular é uma ação
no território.

78 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Estados ou cidades: onde vivemos?

Ao propor a reflexão sobre onde vivemos, o objetivo é colocar em


questão o grau de importância entre a cidade e o estado no que diz
respeito ao espaço vivido pelo indivíduo e sociedade. Obviamente,
não caberia, nessa reflexão, discorrer sobre todos os estados da
federação brasileira, dado que se tornaria uma abordagem redun-
dante devido à similaridade dos fatores que concorrem para difi-
cultar a integração interna. Opta-se, então, por destacar os estados
de Minas Gerais, por sua grandiosidade em número de municípios,
e o Amazonas, pela imensidão territorial.
Minas Gerais é o estado com o maior número de cidades,
estima-se que sejam 853, evidentemente, torna-se inexequível
para um governador administrar tantas cidades com equidade na
distribuição dos recursos, ou adotando uma política voltada ao re-
conhecimento da periferia e do interior invisibilizado. Por essa razão,
é inevitável a instalação de uma cartografia abissal, que também
é reforçada pela divisão regional interna. Em algumas regiões de
Minas Gerais, a população tem relações mais estreitas com outros
estados, como são os casos do Triângulo Mineiro com o estado de
São Paulo, a zona da mata com o Rio de Janeiro, e as partes do norte
e leste mineiro com a Bahia. Longe de ser somente uma busca de
identidade, essa dinâmica pode ser entendida como um rompimento
dos limites geográficos por parte da sociedade, da geografia popular,
como também reafirma a ideia de que esses mapas estão obsoletos.
Quanto ao estado do Amazonas, onde estão concentrados
18,5% de todo o território brasileiro, com a maior área de Floresta
Amazônica, a dimensão territorial aliada aos atributos físicos da
paisagem são transformados em obstáculos ao gerenciamento do
território. Andrade (1991, p. 78) reconhece esse panorama quando
diz que “há estados de grande extensão territorial, onde a dificuldade
de transporte impede um maior relacionamento entre as áreas perifé-
ricas e a capital, o que dificulta uma maior efetivação das decisões
governamentais a nível estadual”. Para além disso, é de domínio

Fronteiras internas: escalas e contradições 79


público o quanto este estado, com a sua biodiversidade, está sendo
espoliado por atividades como o desmatamento e a mineração clan-
destinos ou legalizados pelo Governos Federal e Estadual, isso para
se ater somente às questões fisiográficas, pois se fosse penetrar na
problemática da gestão das reservas indígenas, a falta de gover-
nança ficaria ainda mais explícita.
A fragilidade dos meios de gestão pública abre fissuras que se
alargam no sentido de demonstrar o quanto os governos ainda tratam
o Amazonas como uma terra inóspita, exótica. Essa fragilidade tende
a servir de argumento para que Organizações não Governamentais
(ONGs) nacionais e estrangeiras ocupem cada vez mais esse território,
e que potências mundiais interpelem a capacidade do Brasil de gerir
sua Floresta Amazônica o que, de certa forma, traduz um pouco do
chamado “consenso de Estado fraco”, onde “o Estado é o oposto
da sociedade civil e potencialmente seu inimigo” (SANTOS, B. S.,
2002a, p. 48), e sendo franco, o estado se torna mais suscetível a
ser dividido.
Esses dois estados, aqui, como exemplos do que acontece nas
demais unidades federativas brasileiras, no que se refere à fragili-
dade de governança, suscitam questionamentos teóricos quanto à
necessidade de sua existência, afinal, qual seria a necessidade de
pertencer a um estado? Uma análise acurada sob a perspectiva do
capital revela que os governantes têm exercido um papel de caixei-
ros viajantes, isto é, “vendem” os estados para grandes empresas
nacionais e estrangeiras, transferindo para estas suas responsabili-
dades sociais e ambientais. Por isso, é crucial pensar nas “bases de
reconstrução de um espaço geográfico que seja realmente o espaço
do homem, o espaço de toda gente e não o espaço a serviço do
capital e de alguns”. (SANTOS, M., 2004, p. 267) Não se trata sobre
ser contra as empresas, mas interrogar os motivos pelos quais os
governantes perderam a capacidade de gerenciar o território.
E as cidades? Elas são, em escala menor, espelhos de uma
administração que ocorre em nível federal e estadual. As metrópoles
e as grandes cidades vivem numa dinâmica caótica, com populações

80 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
maiores que alguns países, com bairros que ultrapassam o número
de habitantes de muitas cidades médias e pequenas, apresentam
problemas sociais de dimensões globais, portanto, elas também
possuem uma cartografia abissal.
Contudo, as cidades deveriam propor outro modelo adminis-
trativo, diferente das cartografias perversas, como acontece entre os
estados e as grandes regiões, reinventando a gestão da sua geografia;
ter a sensibilidade de identificar suas diferenças tanto no âmbito so-
cial quanto econômico; e promover a integração de sua população.
Um exemplo de que isso é possível pode ser comprovado quando
se faz a leitura da dinâmica do direito de Pasárgada em Boaventura
Sousa Santos (2014a). Para este sociólogo, o direito da comuni-
dade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, é um direito produzido no
sul metafórico,

[...] um sistema jurídico, informal e não oficial, criado por co-


munidades urbanas oprimidas, que vivem em guetos e bairros
clandestinos, para preservar a sobrevivência da comunidade
e um mínimo de estabilidade social numa sociedade injusta
onde a solvência econômica e a especulação imobiliária de-
terminam o âmbito efetivo do direito à habitação. (SANTOS,
B. S., 2014a, p. 380)

Se, nas fronteiras dos estados, as populações ignoram as linhas


limítrofes, na cidade, essa probabilidade é maior, afinal, o que são
as ocupações de terrenos abandonados, as ocupações de prédios
públicos ou particulares em estado de conservação precária, senão a
supressão de linhas abissais? Nas cidades, a ação de movimen-
tos sociais, orientados ou não, dentro de uma ideologia partidária,
já está promovendo uma luta contra a cartografia abissal urbana.
A desobediência geográfica desses movimentos sintetiza o objeto
de estudo da geografia popular. Esses movimentos são dotados de
“uma vasta gama de experiências desperdiçadas, tornadas invisíveis,
tal como os seus atores, e sem uma localização territorial fixa”
(SANTOS, B. S., 2010a, p. 34), trata-se da geografia popular em

Fronteiras internas: escalas e contradições 81


sua essência, implantada pelos atores das epistemologias do sul.
Destes emergem uma nova via para se entender o território e suas
funções, exigindo outros mapas, que não estes impostos pela car-
tografia oficial municipal. Portanto, é preciso aprender e escutar
esses movimentos.
Diferentemente do que os estados possam representar para o
poder público, apenas o poder do território, as cidades, são lugares
da essência da vida dos indivíduos, na política, na cultura, e nas
relações afetivas com o território, por esse motivo é que a criação
de novos estados não irá diminuir as linhas abissais. A cidade
“um lugar construído cheio de simbolismo que reflete a economia,
a sociedade e a cultura que se pratica no seu interior” (CERQUEIRA-
NETO, 2009, p. 55); daí a necessidade de políticas públicas para
os municípios, pois o território local “é a única fonte segura de
cidadania, não por razões político-administrativas, mas porque o
local constitui o espaço de resistência, e, portanto de sobrevivência,
de práticas sociais” (FERRÃO, 2002, p. 14), por isso, as cidades são
as células mais importantes de um país.

Pensar o território sem a globalização: é possível?

Desde que a globalização se tornou um fenômeno pelo qual


se tenta explicar a dinâmica mundial e a dinâmica de cada lugar
do planeta, parece que as análises dos territórios ficaram mais
simples, porém, como Milton Santos alertava, essa postura era um
grande equívoco. A globalização tem vetores que podem propiciar
benefícios para a sociedade em geral, como, por exemplo, a popu-
larização de algumas tecnologias e do acesso à internet que permi-
tem a ampliação de vozes daqueles que estão nos lugares opacos.
Vista por esse lado, a globalização pode oferecer elementos que
auxiliam na transposição de linhas abissais.
Contudo, a globalização para grande parte da população mun-
dial é perversa, e, nas últimas décadas do século XX, bem como

82 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
no início deste século, tem operado fortemente no alargamento do
sul metafórico em todo o globo terrestre. No Brasil, a fragmentação
do território, assim como a imposição das linhas abissais, são em
grande parte resultantes da influência da globalização, visto que
a competição voraz entre os países é uma das marcas desse fe-
nômeno. O que é a guerra fiscal entre os estados, se não uma
competição desigual?
Pode-se entender a globalização sob duas vertentes: a vertente
humanista, pensada por Milton Santos, Boaventura de Sousa Santos
e outros intelectuais, em busca da diminuição das fronteiras socio-
econômicas entre os países; e a vertente economicista, exclusiva-
mente pensada e conduzida pelo capital, que coloca a preocupação
econômica em primeiro plano e o homem como secundário no pro-
cesso de desenvolvimento.
A globalização comandada pelo capital foi mais um meca-
nismo inventado pelo centro econômico mundial que criou outras
geografias, isto é, outras cartografias, pensadas a partir de uma di-
tadura econômica que objetiva implantar um comportamento único,
principalmente no que concerne ao consumismo contumaz, em que
as relações se estabelecem sob um vetor econômico, com total
desprezo pelas diferentes geografias, pela simplicidade de cada
território. O que a globalização faz é evidenciar os desníveis socioe-
conômicos. Essa globalização tem apenas um critério para explicar
a dinâmica dos territórios, o vetor econômico. E isso tem impactado
diretamente no planejamento e gestão pública, não por acaso que,
no Brasil, produzir mapas regionais econômicos se tornou uma das
principais atividades das cartografias oficiais. Portanto, os desníveis
socioeconômicos não são percebidos apenas quando se estabele-
cem analogias entre países, mas dentro dos países, de suas regiões
e no interior de suas cidades.
Uma das críticas que se fazia à globalização é a de que ela
tentou estabelecer um panorama de homogeneização do planeta,
contrariamente, percebe-se que há movimentos contrários contra
a homogeneização mundial, pois esses movimentos rejeitam seve-
ramente viver numa cartografia abissal, e assim contribuem para

Fronteiras internas: escalas e contradições 83


aflorar a singularidade da geografia dos lugares. Esses movimentos
contra-hegemônicos corroboram com o pensamento de que “a univer-
salização não suprime os particularismos”. (SANTOS, M., 1982, p. 23)
Assim sendo, a ideia de que vivemos em um único bloco de terra,
mas com geografias diferentes é factível, daí a necessidade de se
pensar num sistema híbrido de gestão do território.
Por isso, concordando com Boaventura Sousa Santos (2002a,
p. 60), “é imperioso produzir uma reflexão teórica crítica da globali-
zação e de o fazer de modo a captar a complexidade dos fenômenos
que ela envolve e a disparidade dos interesses que neles confrontam”.
Essa ponderação se mostra necessária, sobretudo, para desmistificar
este processo enquanto caminho exclusivo para se atingir o bem-estar
de uma sociedade, aliás, o que a globalização faz é desorganizar os
territórios. É preciso que intelectuais encontrem outros caminhos
que possibilitem novas análises sobre a organização do território.
A globalização em si mesma é limitada para explicar a dinâmica
de uma geografia global, surge na década de 1980, não se sabe ao
certo quem a inventou. Sua ideia central é tentar explicar de uma
maneira reducionista a dinâmica global, além de ser utilizada como
vocábulo que possui o sinônimo de desenvolvimento global. Analisada
pelo viés humanista, tornou-se uma farsa visto que seu comporta-
mento foi balizado por uma ideologia capitalista e desagregadora.
De acordo com Boaventura de Sousa Santos (2009a, p. 12), “a glo-
balização é o processo pelo qual determinada condição ou entidade
local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve
a capacidade de designar como local outra condição social ou en-
tidade rival”, portanto, a globalização se traduz em um elemento
propulsor da fragmentação do território, visto que seleciona uma
pequena parte da sociedade, em pequenos territórios privilegiados.
Obviamente que o sucesso da globalização como perversidade
conta com a conivência de governantes moralmente frágeis, haja vista
que a debilidade na governança aliada aos interesses dos grandes
grupos econômicos leva ao aprofundamento das desigualdades,

84 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
não apenas em escala global, mas, sobretudo, na geografia local.
Essa debilidade tem uma relação direta com o neoliberalismo, que

não garantiu o crescimento, aumentou tremendamente as


desigualdades sociais, a vulnerabilidade, a insegurança e
a incerteza na vida das classes populares, para além de fo-
mentar uma cultura de indiferença à degradação ecológica.
(SANTOS, B. S., 2014b, p. 33)

Esse panorama, descrito por Boaventura de Sousa Santos,


não é raro no Brasil, principalmente porque os locais mais pobres
continuam cada vez menos luminosos. Daí o motivo pelo qual a
globalização não pode ser enxergada como algo desprovido de
inocência, já que os seus dispositivos são “ideológicos e políticos
dotados de intencionalidades específicas” (SANTOS, B. S., 2002a,
p. 56), e uma de suas intenções é manter e fabricar linhas abissais
pelo território.
Assiste-se, em pleno século XXI, a efervescência de grandes ma-
nifestações sociais de toda ordem, originadas nos campos, nos guetos,
nas cidades, nos quilombos, nas margens dos rios e nas entranhas
das florestas, que, ao infringirem os limites geográficos das fronteiras,
acabam por incomodar a face mais perversa do fenômeno da globa-
lização, ou seja, o levantamento de muros que separam os lugares
opacos dos lugares luminosos. Assim, urge criar caminhos alterna-
tivos e abandonar de vez a globalização como escala de análise ou
de comportamento dos territórios. É inegável dizer sobre o fausto
progresso trazido por ela, entretanto, tem se mostrado envelhecida,
estéril, à beira de um colapso, correndo o risco real de figurar,
nas enciclopédias, como um evento de grandes repercussões no
globo, que cumpriu o seu objetivo econômico por um determinado
tempo, mas que faliu devido ao fato de ignorar as singularidades
geográficas. Está em gestação, sobretudo, no meio econômico,
outro fenômeno que vai substituir a globalização enquanto processo
que defina a condição de desenvolvimento dos territórios.

Fronteiras internas: escalas e contradições 85


O lado perverso da globalização se ocupa em não deixar flores-
cer a ideia de aldeia global no sentido humanista. Portanto, a globa-
lização comandada pela economia só deseja apagar as linhas que
são abissais para a penetração do capital. Em reposta a essa in-
sistência de um pensamento imperialista promovido pelos grandes
blocos econômicos, o processo de globalização não conseguiu uma
unificação mundial, não apagou totalmente as fronteiras para o
seu uso, tampouco uniformizou a sociedade sob um só pensamento
de desenvolvimento, pois, “a realidade dos territórios e as contin-
gências do meio associado asseguram a impossibilidade da de-
sejada homogeneização”. (SANTOS, M., 2006, v. 1, p. 27) Por essa
razão, é que o termo “globalização”, enquanto o único caminho de
se pensar o mundo, está cada vez mais fragilizado e se tornando
completamente superado.
Mas, então, qual o caminho alternativo em substituição à glo-
balização perversa? Não seria um único caminho, haveria de pensar
em outras possibilidades, como, por exemplo, a busca de uma polí-
tica solidária global, mas não no sentido de caridade. Esse caminho
necessita apenas ser reaberto, pois foi construído por diversos
intelectuais brasileiros, citados ao longo deste livro. Outro caminho
consiste na reflexão que esta obra apresenta, ou seja, a projeção de
um mundo utópico com uma política antifronteiras. Todavia, não se
deve preocupar em criar um nome, um neologismo, o mais impor-
tante são as ações que subjazem na implantação e no alargamento
de linhas abissais, começando pelos países até chegar à constru-
ção da solidariedade em âmbito global. Logo, será preciso que cada
país busque superar suas fronteiras internas. Não há, por exemplo,
como discutir se o Brasil deverá ou não ser globalizado, se, inter-
namente, não conseguiu alcançar um sentimento de solidariedade.
Isto é, a nação brasileira precisa romper com suas linhas abissais
internas, colocar os homens lentos em maior mobilidade e tornar
transparentes os lugares opacos.
Pensar a sociedade global apenas como aquela que está inse-
rida economicamente e desenvolvida sob paradigmas do mercado

86 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
financeiro se configura em falta de análise ampla sobre o significado
da palavra global; a não ser que existam dois globos. De acordo
com Milton Santos (2002, p. 52), “ser internacional não é ser universal,
e para ser universal não é necessário situar-se nos centros do mundo.
Inclusive, pode-se ser universal ficando confinado à sua própria
língua, isto é, sem ser traduzido”. Sendo assim, até que provem o
contrário, todos somos globais se considerarmos que o planeta,
o mundo, Mapa Múndi, a Terra, têm o mesmo significado de globo.
É imprescindível, para quem deseja compreender o mundo, encon-
trar outras formas, caminhos que sejam plurais, que se oponham a
uma tentativa de resumir as dinâmicas geográficas através de um
único conceito.
Segundo Moraes (2002, p. 190), quanto àqueles que pensaram
numa homogeneização por completa do globo, em que “teria aca-
bado com as diferenciações entre os lugares na superfície terrestre,
foram surpreendidos e rebatidos pelos acontecimentos geopolíticos
ocorridos logo nos primeiros anos do século XXI”. Esses aconte-
cimentos, pungentes nas ruas e ou fomentados na política e na
universidade, se recusam a viver sob um único regime de economia
mundial. Essas geografias afloradas insurgem contra a falta de moral
que a globalização, representada por países centrais e suas empresas,
disseminaram com suas ideias, amoralidade que está expressa nas
relações entre países, e que são baseadas apenas nas regras que o
mercado impõe. Aliás, certa vez, enquanto representante do Brasil
na Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura
(FAO), Josué de Castro (1908 – 1973) teria chamado os países ricos de
hipócritas, justamente por projetarem um discurso contra a pobreza,
e uma teoria em muito distante da prática, visto que suas ações
não direcionavam para este fim. Portanto, a globalização sofisticou
e aparelhou os meios amorais daqueles que comandam a econo-
mia mundial.
É possível transformar os elementos da globalização em es-
tratégias de superação das linhas abissais? Certamente, a eclosão

Fronteiras internas: escalas e contradições 87


de manifestações sociais tanto físicas quanto virtuais, aparelhadas
por celulares com internet, com transmissão instantânea, mostra que
é possível construir o sentido de aldeia ou geografia global, preser-
vando as diferenças como forma de dizer não às linhas abissais.

Ignorando fronteiras: um caso entre


a Bahia e Minas Gerais

Nesta última seção do Capítulo 4, é apresentado um estudo


de caso baseado na experiência empírica decorrente de obser-
vações realizadas na fronteira dos estados da Bahia e de Minas
Gerais (Figura 3), nas cidades de Salto da Divisa (MG), no Vale do
Jequitinhonha, e Eunápolis (BA), no extremo sul da Bahia. A relação
entre essas cidades se dá através de diferentes setores, contudo,
em virtude de ser um município de pequeno porte, os moradores
da cidade mineira ultrapassam o limite interestadual em busca dos
serviços oferecidos pela cidade baiana.
Na educação, a cidade da Bahia é referência para os jovens da
cidade mineira que desejam estudar em escolas de nível secundário
com o ensino mais avançado, ou ingressar num curso superior das
faculdades particulares e públicas, ou ainda fazer um curso técnico
no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia
(IFBA). Na área de saúde, Eunápolis é o centro que possui uma rede
de hospitais e clínicas médicas mais próximas de Salto da Divisa,
o que faz com que muitos pacientes desta cidade se desloquem,
a fim de realizar tratamentos naquele município baiano. Quanto às
transações financeiras, os estabelecimentos bancários situados
em Eunápolis recebem depósitos de um número considerável de
moradores de Salto da Divisa, devido ao fato de, na cidade baiana,
se encontrar um maior número de agências de diferentes bancos,
bem como outras instituições financeiras. Por último, na política,
é prática comum candidatos a vereadores ou a prefeitos da cida-

88 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
de mineira buscarem apoio de empresários e políticos na cidade
baiana. Se os moradores de Salto da Divisa fossem estabelecer
essas relações com outra cidade mineira de maior porte, teriam que
se deslocar por mais de 360 km até a cidade de Teófilo Otoni,
enquanto que a distância para Eunápolis é, apenas, de 80 km por
uma rodovia pavimentada.

Figura 3 – Região do extremo sul da Bahia, destacando


Eunápolis (BA) e Salto da Divisa (MG)

Fonte: adaptada de IBGE (2013).

Fronteiras internas: escalas e contradições 89


Se analisada pela geografia oficial, essa dinâmica será consi-
derada como uma dinâmica marginal, pois pode ser vista como fuga
da capital mineira para a cidade baiana, e, por outro lado, uma su-
perlotação do sistema de saúde de Eunápolis. Vale ressaltar que o
comércio e a única agência bancária de Salto da Divisa não veem
com bons olhos a transferência de parte da renda do município
para o território baiano. Em contrapartida, a Prefeitura de Eunápolis
argumenta sobre a impossibilidade de atender todos os pacientes,
na rede pública de saúde, provenientes de Salto da Divisa, pois esse
atendimento não estaria nas provisões financeiras destinadas ao
atendimento da população do município.
Contudo, se essa relação for entendida a partir do pensa-
mento de que o Brasil é um território único, então, será possível
interpretar a dinâmica entre Salto da Divisa e Eunápolis como uma
ação da geografia popular, visto que há uma superação de uma
linha abissal, que é a linha limítrofe entre os estados. É provável
que essa dinâmica aconteça em outras tantas fronteiras estaduais,
porquanto os territórios privilegiados, muitas vezes, se encontram
na proximidade dos lugares opacos. Objetivando entender essa
dinâmica dentro da perspectiva do direito, considerando que a
mobilidade pelo território tem uma relação direta com o direito
dos cidadãos, foi necessário travar um diálogo com um estudioso
no assunto, Zéu Palmeira Sobrinho. Para ele, essa situação se dá
seguinte maneira:

[...] o governo local não estende os bens sociais para muitos


pobres porque eles não pertencem ao espaço tradicionalmen-
te delimitado no território. Porque não lhes foi negado apenas
o território, mas os bens sociais que lhes são sonegados.
Essa negação, além de promover uma subjetividade conti-
nuamente precarizada e estilhaçada, implica num modo de
vida precário, incerto, empurrando as pessoas empobrecidas
a fragmentarem cada vez mais as fronteiras tradicionais,
dentro ou fora dos espaços urbanos, e com base numa outra

90 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
legalidade empreenderem lutas pela ocupação-construção
de novos espaços, a exemplo do que ocorre com os sem-teto,
os sem-terra, os sem-saúde, os sem-educação, etc.1

Sendo assim, o rompimento desses limites cartográficos, exem-


plificados através das cidades de Salto da Divisa e Eunápolis, representa
a quebra de fronteiras tradicionais, e coloca em causa a efetividade
da geografia oficial, pois esta não consegue impedir e tampouco mo-
nitorar a multifacetada configuração espacial. Diante disso, tem-se a
libertação dos oprimidos pelos mapas (extra)oficiais.
Por fim, ao elaborar um esforço no sentido de repensar as fron-
teiras internas, a geografia popular promove um questionamento:
qual o lugar mais importante para a vida do cidadão, o estado ou
a cidade? É importante salientar que a cidade tem um nível de
prioridade maior por tudo que ela pode representar para o cidadão,
seja através dos elementos concretos ou imaginários. Ainda que as
cidades repliquem o mesmo modelo administrativo que acontece a
nível federal e estadual, com a hierarquização dos bairros, elas ainda
são os locais exemplares do que há ou do que sobrou do enraiza-
mento afetivo e cultural, percebido nas relações de proximidade,
por isso, se configuram como o sistema mais importante dentre todas
as cartografias oficiais. Nelas, a esperança de mudanças efetivas se
manifesta de maneira mais clara e possível.

Fronteiras internas: escalas e contradições 91


CAPÍTULO 5

QUILOMB O L AS E INDÍG ENAS:


TERRITÓR IOS OPACOS NO
EX TREMO SUL DA BAHIA

Neste século XXI, poucos são os espaços onde a globalização não


implantou pelo menos um dos vetores que a caracteriza. O capítulo em
questão apresenta uma síntese da dinâmica territorial em duas
comunidades tradicionais no extremo sul da Bahia: a primeira,
a comunidade quilombola de Helvécia, cujo território foi totalmente
transformado pelo eucalipto; e a segunda, a etnia Pataxó, repre-
sentada pelos habitantes da Reserva da Jaqueira, no município de
Porto Seguro, que encontra, no turismo, uma maneira de resistir à
desterritorialização. A introdução desses dois estudos de casos se
justifica por dois motivos: em primeiro lugar, por se tratar de duas
comunidades tradicionais, invisibilizadas e confinadas em seus ter-
ritórios por linhas abissais, logo, identificados como territórios opacos.
Depois por se reportar a pesquisas1 anteriormente realizadas pelo

1 A pesquisa sobre o Quilombola de Helvécia foi desenvolvida num estágio de


pós-doutorado que realizei no Programa de Pós-Graduação de Antropologia
(PPGA) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) sob a supervisão da Prof.ª Dr.ª
Cíntia Beatriz Muller. A pesquisa sobre a invisibilidade da etnia Pataxó em Porto
Seguro foi realizada por Ana Carolina Santos Pinheiro, sob minha orientação,
com bolsa de iniciação científica pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia da Bahia, Campus Porto Seguro.

93
autor deste livro, que ainda não foram publicadas e exigiram um in-
tenso trabalho de campo. A presença delas nesta reflexão é a parte
empírica que colabora para explicar que os lugares opacos e as linhas
abissais não são fenômenos puramente abstratos. As conclusões
alcançadas demostraram que esses povos conseguiram ultrapassar
as fronteiras, e a corporeidade deles está presente, ainda que de ma-
neira marginalizada ou cooptada pela face perversa da globalização,
nos territórios dos municípios onde vivem.

Helvécia: um território (in)visível

O território de Helvécia, em sua trajetória histórica, sofreu


intensas transformações, sejam elas de ordem administrativa,
cultural, econômica ou ambiental. Foi uma fazenda que pertenceu
ao Complexo da Colônia Leopoldina, fez parte do território de
Caravelas (BA), com a Lei n° 1.751, de julho de 1962, que tratava
da restauração do município de Nova Viçosa, desmembrado de
Mucuri (BA) e Caravelas (BA), passa à categoria de distrito de Nova
Viçosa, e em 2005, foi reconhecida como comunidade quilombola.
Essa sucessão de demarcações construídas por cartografias oficiais
demonstram como o antigo quilombo sempre foi tratado como um
apêndice dos municípios a que pertenceu, o que favoreceu substan-
cialmente para tornar invisível o seu território. Diversos símbolos,
materiais e imateriais, do período da escravidão em Helvécia de-
sapareceram, estão depreciados pelo desgaste natural ou estão
escondidos. Daquele tempo, o único símbolo que sobreviveu foi o
prédio da antiga estação ferroviária, transformado em museu, e que,
contraditoriamente, não representa os antigos escravizados, mas sim
o colonizador europeu.
Atualmente, no lugar do trem, vieram os ônibus; as casas de
adobe desapareceram do cenário dando lugar às construções de
alvenaria, inclusive com dois pavimentos; os antigos armazéns, onde
se vendia de tudo um pouco, foram trocados pelo supermercado;

94 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
o candomblé divide o espaço com evangélicos e católicos, todos no
mesmo território, entretanto, o candomblé é literalmente invisibili-
zado, tendo em vista que os terreiros não têm lugar de destaque no
território como a igreja católica e os templos; o dinheiro de papel
agora mede forças com os cartões de crédito; há escolas e creches
públicas que atendem a todos do distrito; aos poucos, os automóveis
vão substituindo o lombo do animal; o self-service, um dos termos
da globalização, encontra-se inscrito na porta do restaurante do
distrito; as estalagens agora são pousadas; a água vem pelas tor-
neiras; a clínica alivia a dor; e as notícias chegam pelas antenas
de TV e pela internet. Essas são modificações que melhoram tan-
to a vida de quem mora quanto de quem visita o distrito, mas são
planejadas, introduzidas e gerenciadas por mecanismos exógenos.
Esses novos equipamentos introduzidos no território de Helvécia,
se, por um lado, se apresentam como uma ponte, tanto na mobilidade
quanto na informação e comunicação, por outro lado, são condutores
de uma invisibilidade a partir do momento em que se estabelecem
em uma comunidade quilombola como padrão de organização ter-
ritorial semelhante a qualquer outro território urbano. Esse processo
é uma clara demonstração de quão os negros de Helvécia são in-
visíveis diante das diversas formas de poder que atuam na região.
Helvécia, uma antiga fazenda da Colônia Leopoldina, hoje é
um distrito do município de Nova Viçosa, localizado no extremo sul
da Bahia, com uma população composta por aproximadamente
80% de negros descendentes de escravizados, este dado demo-
gráfico foi um fator preponderante para que o distrito fosse certi-
ficado como um território remanescente de quilombo, em 2005,
pela Fundação Cultural Palmares (FCP). E, no que se refere à existên-
cia de uma sobreposição de nomenclatura entre distrito, enquanto
uma unidade político-administrativa, e comunidade, enquanto senti-
mento de pertencimento, será difícil dissociar o distrito da comuni-
dade e vice-versa, uma vez que o território é o mesmo onde se dão
as relações entre quem se considera pertencente à comunidade
quilombola, e aqueles que não se sentem pertencer à comuni-
dade negra.

Quilombolas e indígenas: territórios opacos no extremo sul da Bahia 95


Contudo, existe uma complexidade quanto ao sentimento dos
seus moradores, de pertencer ou não a uma comunidade remanes-
cente de quilombo. Uma dicotomia pode ser percebida nos posi-
cionamentos dos moradores quando opinam sobre o significado
de Helvécia, enquanto lugar onde vivem, como também por órgãos
oficiais e empresas da região, o que tem sido uma das causas de
tensões dentro do território de Helvécia. Outro ponto de tensão cor-
responde à relação que o eucalipto estabelece com o território da
comunidade de Helvécia, uma sedução difícil de resistir em tempos
de crise econômica, ainda mais em territórios carentes e depen-
dentes do poder público, sobretudo, quando a questão gira em
torno da demarcação de terras e do reconhecimento legal, como é
o caso de Helvécia.
Portanto, Helvécia continua tendo uma dinâmica, sobretudo,
impulsionada por grandes projetos ligados à produção do eucalipto.
Um pouco dessa dinâmica pode ser vista através do painel (Figura 4)
construído a partir dos registros fotográficos do trabalho de campo.
Com efeito, essas novas formas implantadas no território mos-
tram que Helvécia está em fase de transição urbana. De modo que
há claros sinais da atuação de alguns processos da globalização,
desencadeando uma abertura da comunidade tradicional para que
possa ser vista como qualquer outro espaço, isto é, receptivo a
grandes empreendimentos, gerando consequências irreparáveis
para a consolidação do território enquanto lugar de uma comuni-
dade tradicional. Paralelo a isso, ocorre a interferência externa nos
elementos naturais que compõem o seu território, remodelando de
forma significativa a sua paisagem cultural.

96 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
Figura 4 – Painel resumo sobre o território de Helvécia

Fonte: elaborado pelo autor.

Helvécia vista do lado de lá (o capital)

O território de Helvécia se mostra totalmente capturado pelo


capital através do turismo, porém, em maior grau, pelas empresas
do eucalipto. Ao buscar informações em Nova Viçosa – município
sede que comanda politicamente o território de Helvécia – sobre o
que políticos, comerciantes e a população em geral pensam sobre

Quilombolas e indígenas: territórios opacos no extremo sul da Bahia 97


Helvécia, percebe-se que há um grande esforço na formulação de
um discurso politicamente correto, tentando demonstrar uma preo-
cupação cultural com o território e sua importância histórica para o
município e região. Contudo, constata-se uma pretensiosa superficia-
lidade na maioria das falas, evidenciando uma falta de conhecimento,
ou mesmo assumindo uma postura de neutralidade em relação às
tensões do território.
Ao buscar outras fontes, tais como sites da Prefeitura Municipal
de Nova Viçosa e das empresas ligadas ao eucalipto, panfletos de
divulgação do município, distribuídos pela Secretaria de Turismo local
e site da Empresa Baiana de Água e Saneamento S.A. (Embasa),
foi possível produzir uma análise do território mais próxima do real,
principalmente sobre como pessoas e instituições “de fora” en-
xergam Helvécia. Inicialmente, foi analisado um texto (Figura 5)
encontrado no site da Prefeitura de Nova Viçosa e, logo em seguida,
a divulgação de um folder sobre Helvécia, ambos tentando vender o
território como um atrativo turístico.

Figura 5 – O significado de Helvécia para o município de Nova Viçosa (BA)

Fonte: adaptado de Guia Turístico Virtual Nova Viçosa (2001).

98 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto
A Figura 5 foi encontrada no site do Guia Turístico Virtual de
Nova Viçosa - BA, e divulga ações da Secretaria de Turismo do
Município de Nova Viçosa, portanto, repercute um pensamento oficial.
Percebe-se que o município sede não sabe como tratar Helvécia,
tese comprovada pela quantidade de atributos direcionados à co-
munidade em um texto tão pequeno, ora se refere como povoado,
ora enquanto distrito, também o designam de “Colônia Nagô” e até
mesmo por “remanescentes do período escravo”. Certamente, a falta
de conhecimento do Poder Público reflete na dinâmica interna e
externa da comunidade.
O setor do turismo que “vende” o município de Nova Viçosa como
atrativo turístico também inclui Helvécia como um roteiro, porém,
sempre aparecendo como um lugar exótico, como se a comunidade
vivesse como seus antepassados. O lugar para essa comunidade
possui um significado que contraria totalmente o sentido explo-
ratório dado por alguns setores da economia. Em diversos meios
de divulgação, Helvécia é apresentada como um antigo quilombo
que preserva, ainda hoje, as raízes culturais africanas e como um
vilarejo, comunidade primitiva, onde vivem descendentes de índios
e negros. Assim, Helvécia é “vendida” como um atrativo turístico
altamente exótico, como se os seus moradores fossem pessoas
totalmente diferentes dos seres humanos, dotados de hábitos pri-
mitivos ainda neste começo de século.
Outra questão instigante foi a referência dada a Helvécia pela
Embasa no seu Relatório Anual para Informação ao Consumidor
(RAIC) do ano de 2011, classificando a comunidade como um
município (Figura 6). Portanto, para essa empresa, uma estatal do
Governo da Bahia, o morador de Helvécia é um consumidor como
qualquer outro em qualquer parte da Bahia. Sem sombras de dúvidas,
esse posicionamento da empresa em relação à comunidade em
tela entra no rol dos vetores que contribuem para a continuidade
de uma situação de enfrentamento quanto à dissolução das identi-
dades culturais dos quilombolas.

Quilombolas e indígenas: territórios opacos no extremo sul da Bahia 99


Figura 6 – Primeira página do RAIC da Embasa do ano de 2011

Fonte: adaptada de Empresa Baiana de Águas e Saneamento (2011).

O relatório da Embasa, impresso e divulgado no ano de 2011,


permite-nos pensar que a empresa de água do estado da Bahia
não reconhece a comunidade como quilombola, lembrando que
Helvécia teve o seu reconhecimento no ano de 2005, portanto,
foi um equívoco grosseiro por parte da estatal baiana. Na Embasa,
Helvécia é classificada como um município apenas por uma ques-
tão administrativa da empresa baiana. Ainda que seja para facilitar
a dinâmica operacional da Embasa, é fundamental que a empresa
compreenda que Helvécia não é como qualquer outro território.
Em um relatório (Figura 7) mais recente, datado de 2014,
a Embasa nomeia Helvécia apenas com o termo “localidade”.
Ao colocar, equivocadamente, a classificação do território de
Helvécia como município, no RAIC de 2011, e ao se referir a Helvécia
como uma localidade no relatório de 2014, o estado da Bahia, através
da Embasa, assume uma postura de neutralidade. Essa neutralidade
estabelece um paradoxo no único estado da federação a elaborar um
mapa com 26 territórios de identidade. Ou seja, ao mesmo tempo em
que utiliza os territórios de identidade como forma de valorização

100 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto


dos aspectos culturais do estado, esse mesmo estado, na figura da
sua empresa de abastecimento de água, não assume uma posição
que contribua com a identidade do território de Helvécia.

Figura 7 – Primeira página do RAIC da Embasa do ano de 2014

Fonte: adaptada de Empresa Baiana de Águas e Saneamento (2014).

Outro agente que parece não entender a importância de Helvécia


enquanto um território de conservação cultural e ambiental é o
eucalipto, como indica trechos de notícias e de um comunicado da
Assessoria de Comunicação (Ascom) da Fíbria,2 uma das maiores

2 Ver: http://www.novavicosa.ba.gov.br/modules/news/article.php?storyid=189.

Quilombolas e indígenas: territórios opacos no extremo sul da Bahia 101


empresas no ramo da celulose. O primeiro trecho do comunicado
começa pela exaltação dos números, do quanto de investimento
será injetado em Helvécia e nos seus arredores, objetivando forta-
lecer a ideia de desenvolvimento.
O comunicado é iniciado mostrando a grandeza dos números
expressos nos valores dos investimentos (Figuras 8 e 9) e na quan-
tidade de geração de empregos que aparece como uma benesse
para a população local, onde um dos requisitos é ser morador de
Helvécia e outros distritos próximos. Essa é uma forma de “afago”
que o capital faz para os moradores, dando a eles uma sensação
de privilegiados (Figura 10). Entretanto, a condição para tal inves-
timento é o uso indiscriminado do território de Helvécia, o escopo
principal para a expansão dos negócios do eucalipto (Figura 12).

Figura 8 – Valores dos investimentos da Fíbria em Helvécia

Fonte: adaptada de Fíbria (2014).

Figura 9 – Geração de empregos em Helvécia

Fonte: adaptada de Fíbria (2014).

Figura 10 – Qualificação para o trabalho no setor do eucalipto para os quilombolas

Fonte: adaptada de Fíbria (2014).

102 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto


Por fim, no trecho a seguir, da declaração do diretor-presidente
da Fíbria, aparece a teoria de espaço vital, de Ratzel, quando o Sr.
Carlos Aguiar (Figura 11) destaca a importância estratégica do sul
da Bahia, tanto no que se refere ao papel de Helvécia para a em-
presa como na dimensão territorial da área plantada de eucalipto.

Figura 11 – Helvécia como território estratégico para expansão do eucalipto

Fonte: adaptada de Fíbria (2014).

Figura 12 – Território de Helvécia como espaço vital para a empresa do eucalipto

Fonte: adaptada de Fíbria (2014).

Aparentemente, a relação do eucalipto com Helvécia se mos-


tra de maneira dúbia, uma relação conturbada onde o eucalipto se
mostra como sedutor e ao mesmo tempo nocivo, oferece cursos de
capacitação, apoia os festejos do distrito, mas também é tido como
responsável pela diminuição da pequena agricultura. Para alguns
moradores de Helvécia, o reconhecimento como quilombola tam-
bém teve o objetivo de frear a expansão do eucalipto no distrito.
Este segmento econômico se mostra com tamanha força dentro do
distrito que, às vezes, tem-se a impressão de que ele sobrepõe a
questão maior da comunidade. A justificativa daqueles que defen-
dem o eucalipto, sem qualquer restrição, é uma postura simplista
e perversa perante uma comunidade que sobrevive em um cenário
marcado pela ausência de políticas públicas e economicamente

Quilombolas e indígenas: territórios opacos no extremo sul da Bahia 103


pobre. Aliás, o temor da expansão do eucalipto está presente como
uma das justificativas para que Helvécia tenha requerido o reconhe-
cimento de comunidade quilombola.
É inegável a existência de políticas públicas por parte do Governo
Federal para atender às comunidades tradicionais brasileiras. Contudo,
essa é somente uma parte da solução da questão, tendo em vista que
as demarcações de terras e a colocação de infraestrutura cobrem uma
necessidade imediata. É fundamental que haja um acompanhamento,
tanto das dinâmicas internas quanto externas, tendo em vista que a
dinamicidade urbana no Brasil tem tido uma aceleração quase que
impossível de cartografá-la. E isso tem atingido algumas comuni-
dades tradicionais.
No caso de Helvécia, o território está sofrendo com um sufoca-
mento por grandes projetos econômicos, sobretudo aqueles ligados à
produção de eucalipto. A consequência desse cenário tem contribuído
para provocar tensões dentro da comunidade como, por exemplo,
questionamento entre seus moradores sobre ser ou não ser um terri-
tório quilombola. Com o avanço das florestas de eucalipto, a economia
de Helvécia passa a depender a cada vez mais dos agentes exógenos,
enquanto suas áreas de agricultura vão diminuindo, a introdução de
costumes que são totalmente externos acaba afastando os mora-
dores de sua cultura local. O cotidiano de Helvécia se assemelha
ao cotidiano de qualquer pequena cidade do Brasil com trânsito de
automóveis, comércio de variados setores que já dividem o dinheiro
em espécie com o cartão de crédito nas suas operações, estabeleci-
mentos que utilizam expressões estrangeiras etc.

Helvécia no século XXI

O território de Helvécia, nos dias atuais, permite ser compre-


endido por, pelo menos, três variáveis de análise: 1) como território
político-administrativo dentro do município de Nova Viçosa, com sua
demarcação geográfica, isto é, a sua condição de distrito não o

104 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto


permite produzir políticas públicas voltadas especificamente para o
seu território; 2) compreendidas também como o território do eucalipto,
controlado pelas grandes empresas, que tem seus braços nas tercei-
rizadas e em outros parceiros, essas são as condutoras de agentes
exógenos que contribuem para que o território de Helvécia se pareça
com tantos outros do país, ou seja, para a uniformização dos lugares,
que é própria da face perversa da globalização; 3) e, além destas,
como o território onde as tensões, no que se refere ao sentimento
de pertencimento, se perpetuam na dualidade de ser ou não uma
comunidade quilombola.
Helvécia apresenta uma complexidade que não está apenas nas
questões sobre o pertencimento, encontra ressonância na sua atual
dinâmica territorial que se assemelha a muitas cidades pequenas
do país, inclusive se transformando de maneira muito mais veloz que
outros pequenos centros urbanos devido ao intenso uso do seu terri-
tório por grandes empreendimentos ligados ao eucalipto.

As estatísticas do Censo 2000 apresentam Helvécia com uma


população de 3.349 habitantes. Do total, 1.746 pertenciam ao
sexo masculino, uma soma equivalente a 52,1% enquanto que
1.603 integravam a população feminina, perfazendo 47,9% da
população total. (SANTANA, 2008, p. 55)

O número total de habitantes de Helvécia é maior do que a


população do município de Catolândia (BA), com 2.609 moradores,
de acordo com o (IBGE, 2011), o que indica que esse território deve ter
um planejamento que leve em consideração seus aspectos culturais,
ambientais e econômicos.
A dialética instalada nos dias atuais em Helvécia é um reflexo
da existência de uma identidade quilombola, em contraposição a
uma parte da comunidade que se recusa a estabelecer esse debate.
Por outro lado, há um esforço, sobretudo, dos agentes exógenos, para
que a identidade quilombola seja suprimida no território. Portanto,
não há como negar a existência de uma fragmentação étnica e cul-
tural interna, alimentada continuamente por interesses externos,

Quilombolas e indígenas: territórios opacos no extremo sul da Bahia 105


que lançam mão de todos os mecanismos para seduzir parte da
comunidade, como, por exemplo, restauração de símbolos histó-
ricos, a doação de um centro de informática para a comunidade, o
patrocínio de festas em datas comemorativas do território, sendo
bancados em grande parte por recursos privados.
Quanto ao futuro de Helvécia, política e administrativamente,
deverá continuar como um distrito, pois ainda não tem força políti-
ca e não apresenta aspectos técnicos para se tornar um município,
porém não se descarta este assunto entre seus moradores. Enquanto
estiver na condição de remanescente quilombola, esse título será
compartilhado apenas por aqueles que possuem esse sentimento.
O território de Helvécia ainda não foi demarcado como área qui-
lombola pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(Incra), o que contribui para que as tensões continuem entre os
seus moradores, e na cooptação do território por grandes projetos
econômicos em áreas rurais. Diante desse cenário, o mais impor-
tante é saber o quê o Brasil pretende fazer com os seus negros.
(SANTOS, M., 2006)

Algumas percepções

A denominação do território como “Helvécia” pode ser vista como


outra contradição, um forte ponto de conflitos. Paradoxalmente,
o vocábulo que remete a um país da Europa, alude a um território
de colonização de origem suíça, de fato, a própria Helvécia do ex-
tremo sul da Bahia foi um território criado por um suíço. Todavia,
espera-se que um remanescente quilombola adote para o seu
território um nome que represente a história dos seus ancestrais,
da sua cultura e não a transplantação de um estrangeirismo total-
mente avesso à identidade do seu povo, perpetuando o estigma
de “sujeitos colonizados”. De qualquer forma, a Helvécia baiana é
uma referência quilombola, seja para estudos acadêmicos, para o
turismo ou sociedade em geral.

106 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto


A maior parte das preocupações atuais com o território, em
ambos os lados, diz respeito ao avanço da prostituição e das drogas,
aumento da violência no campo, a necessidade de uma agência
bancária, pavimentação das ruas etc., enfim, situações problemáticas
que aparecem em qualquer paisagem urbana. Essas questões pare-
cem superar o embate pela condição de remanescente quilombola,
seja por parte de quem tem essa bandeira como luta ou por quem
a ignora. Mas, também pode ser uma maneira que os dois lados
encontraram para estabelecer grande acordo, que não é oficial,
mas estabelecido através da convivência quase que pacífica e res-
peitosa dentro de um território repleto de antagonismos.
Todavia, se antes os conflitos podiam ser dirimidos através de
dois polos, descendentes de escravizados versus descendentes de
colonizadores, nos dias atuais, eles se tornaram multipolares porque
envolvem outros elementos da modernidade, que influenciam nesse
território bastante sensível, pois envolve uma gama de emoções que
permeiam a sua história. Os maiores culpados por essas tensões
não são os descendentes de escravizados ou os descendentes de
colonizados, mas a debilidade dos sucessivos governos, no âmbito
federal, incapazes e insensíveis com uma questão que só pode ser
resolvida por meio institucional.
Então, para que criar um território quilombola se este não é ge-
renciado pelos maiores interessados, os negros? O cenário político
e social de Helvécia é um reflexo do que acontece ao nível nacional.
Será que “os negros deverão esperar mais outro século para obter o
direito à participação plena na vida nacional?”. (SANTOS, M., 2002,
p. 158) Helvécia é uma sociedade de homens lentos que precisa
ser visibilizada, como forma de garantir efetivamente a sua sobre-
vivência enquanto comunidade negra.

Quilombolas e indígenas: territórios opacos no extremo sul da Bahia 107


A invisibilidade indígena
na cidade de Porto Seguro (BA) 3

Nesta seção, enfatiza-se a relação do território com a etnia


Pataxó no município de Porto Seguro, onde é possível verificar a
difícil arte de manter uma identidade diante dos tentáculos da glo-
balização, influenciando diretamente no planejamento oficial – feito
pelo estado – do território. É importante verificar, em menor escala,
como o governo local trata as comunidades tradicionais em seu
território. Será que essas etnias são apenas importantes para o inte-
resse do turismo local? No jogo de quem é o responsável pela vida
dessas comunidades, os estados são inoperantes nessa questão,
ficando toda legislação e dinâmica a cargo do Poder Federal, que,
ao longo da história do país, mesmo com alguns esforços, não con-
seguiu implantar uma política eficaz para as etnias. Esse insucesso
pode ser explicado pelo fato de que o modelo ideal esteja dentro
das comunidades, e não dentro dos órgãos públicos.

Porto Seguro: território do turismo

Até atingir o status de cidade polo, Porto Seguro passou por


diversas etapas do turismo, o que foi decisivo na construção dos
seus ambientes. De um lugar frequentado por hippies ou pelas
chamadas comunidades alternativas a um dos maiores pontos de
atração turística do Brasil: Porto Seguro foi se desenvolvendo de
maneira espontânea, atraindo investimentos de todos os níveis,
e migrantes temporários e fixos de todas as classes sociais com
objetivos diferentes.

3 Esta sessão do Capítulo 5 deu origem a um artigo sobre questões indígenas no


município de Porto Seguro, que foi aprovado para ser publicado na Revista Espacia-
lidades da UFRN. No que se refere ao quilombola de Helvécia, foi gerado um artigo
que será publicado pela Revista Biblos da Universidade de Coimbra - Portugal.

108 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto


Até meados da década de 80, verificava-se uma maior incidên-
cia de pequenos empreendimentos [...] A descoberta de Porto
Seguro pelos grandes operadores turísticos nacionais fez surgir
um novo segmento: o turismo de massa; crescendo com ele o
número de novos e maiores empreendimentos hoteleiros, que
passaram a exercer forte pressão sobre a infraestrutura básica.
(MENDONÇA JÚNIOR; GARRIDO; VASCONCELOS, 2000, p. 16)

Por ter se tornado um polo de atração populacional, Porto Seguro


teve a sua urbanização feita pelos pequenos empreendimentos,
pela instalação de grandes hotéis, construções de moradias parti-
culares, condomínios fechados e ocupações de áreas irregulares,
uma cidade que não foi planejada, o que é comum no território
brasileiro. A preocupação com a proteção de Porto Seguro e toda a
Costa do Descobrimento, relacionada com o inchaço do seu território,
está explícita no relatório do Plano de Referências Urbanístico-
Ambientais (PRUA), elaborado pelo Governo da Bahia:

O fato da concentração populacional e a migração de cerca


de 14.000 habitantes novos por ano [...] gera atualmente uma
desestruturação insuportável para qualquer estrutura urbana
e pode colocar em risco a imagem do destino turístico ‘Porto
Seguro’ e a ‘Costa do Descobrimento’ e até arranhar a imagem
‘Bahia’ no mercado turístico nacional e internacional (BAHIA,
1997, p. 5)

Fica evidenciado que a preocupação principal do PRUA é o


turismo, contudo, a elaboração de planos específicos para atender
determinada atividade econômica acaba por privilegiar uma pequena
parte da sociedade e concorre para que não haja uma interação
com outros planos municipais que visem o ordenamento territorial
(como plano diretor e lei orgânica municipal, por exemplo).
No município de Porto Seguro, a explosão demográfica, em vir-
tude da expansão do turismo, teve uma repercussão negativa nos
elementos naturais que compõem o seu território, elementos estes

Quilombolas e indígenas: territórios opacos no extremo sul da Bahia 109


muito sensíveis, como: mangues, restingas, falésias desnudas e foz
de rios. Decerto que a modificação desse ambiente teve impacto
diretamente no modo de viver dos pataxós.
Na microrregião de Porto Seguro, os índios foram forçados a
participarem, em algum grau, da urbanização, em decorrência do
sufocamento de suas áreas, e, consequentemente, a diminuição da
capacidade de sobrevivência dentro dos limites de suas reservas.
Em meio aos asfaltos e concretos das construções das cidades,
é comum encontrar indígenas comercializando artesanato feito com
elementos naturais encontrados em suas reservas já debilitadas
ambientalmente, ou estão ocupando outras atividades urbanas como,
por exemplo, servindo ao turismo, não raro, de forma caricata do que
seria sua cultura.

Onde estão os pataxós?

No ano de 2000, a comemoração pelos 500 anos do chamado


“Descobrimento do Brasil”, na cidade de Porto Seguro (BA), foi um
evento catastrófico, não pelo confronto4 que houve contra as mani-
festações das etnias do território, mas porque mostrou ao mundo
como o Brasil trata seus povos indígenas. Por outro lado, as tristes
cenas do confronto serviram para endossar que, no Brasil e em
Porto Seguro, ainda há representantes dos povos que viveram nes-
se território antes da chegada dos portugueses, e que saíram de

4 Os confrontos envolveram índios pataxós, sem-terras e militantes políticos que


anunciaram uma marcha para denunciar desigualdades. Nada de grave ocorreu
enquanto parecia apenas um ato pacífico. Porém, quando os manifestantes se
aproximaram mais do local onde estavam as autoridades, a Polícia Militar da
Bahia (PMBA) entrou em cena para dispersar a marcha. Bombas de gás lacri-
mogêneo, pedradas, e até o disparo de flechas, pioraram a situação, fazendo com
que a festa do descobrimento ganhasse repercussão vexaminosa, inclusive no
exterior. (FESTAS..., 2013)

110 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto


suas aldeias demonstrando que são resilientes quanto à tentativa
de exterminação. Tal atitude de ultrapassar as fronteiras revela
que essas etnias produziram uma geografia popular, superando,
fisicamente, a linha abissal entre elas e os poderes que as confi-
naram em suas reservas. Portanto, o que ocorreu no ano de 2000
foi uma tentativa de dar continuidade a um processo que objetiva
excluir os povos indígenas do cotidiano da cidade de Porto Seguro.
As etnias que habitam a microrregião de Porto Seguro tiveram
que se adaptar ao chamado “trade do turismo” como forma de
garantir sua sobrevivência cultural e econômica. O que aconteceu
foi que “os índios perderam parte do seu território e hoje servem
de atrativo turístico”. (CERQUEIRA-NETO, 2013 p. 260) Assim,
toda forma de representação cultural étnica é vendida, seja pelo
artesanato ou na apresentação de rituais tradicionais.
Por outro lado, nos pontos centrais da cidade, a figura do colo-
nizador é destacada, como o Trevo do Cabral e o conjunto arquite-
tônico da Cidade Histórica (Figura 13). De certa forma, os símbolos
da colonização presentes na paisagem da cidade parecem ter um
caráter de perpetuação de uma eterna submissão, tendo a figura
dos invasores como benfeitores. É difícil imaginar que o destaque
que esses símbolos possuem no território de Porto Seguro, contra-
riamente à supressão dos primeiros habitantes, seja algo posto de
forma ingênua.

Figura 13 – Imagem de Pedro Álvares Cabral


e parte do conjunto arquitetônico da Cidade Histórica

Fotógrafa: Ana C. Pinheiro (2016).

Quilombolas e indígenas: territórios opacos no extremo sul da Bahia 111


Sendo assim, percebe-se que, desde a época da chegada dos
colonizadores até os dias atuais, o Estado, associações, organizações,
o trade turístico, e também grande parte da sociedade, age de forma
a suprimir os símbolos que de alguma forma possam significar que
o território de Porto Seguro é originalmente um território indígena.
Se esta interpretação for equivocada, então, o que justifica a preser-
vação e conservação das construções europeias, em contraponto ao
total desaparecimento da arquitetura produzida pelo povo pataxó?
Outro processo contraditório que contribui para o isolamento
desses povos em relação aos outros moradores do município se
encontra na configuração de reservas indígenas. As reservas tanto
podem representar um lugar da preservação e proteção da cultura,
como também podem significar um confinamento dentro de um
arranjo territorial, e assim, passam a ser vistas como algo exótico,
estranho ao que se designa de “sociedade brasileira”. Por isso,
não basta apenas demarcar as reservas, criando uma cartografia
abissal, que as isole da convivência com a totalidade do território.
A maioria dessas comunidades vive marginalizada em relação à
cidade, em uma espécie de isolamento social, econômico e cultural,
muitas vezes servindo como objetos de pesquisas ou sendo vendidas
como um atrativo turístico. Não se pode querer que uma reserva
indígena se comunique dentro de um sistema em que os seus ter-
ritórios sejam inferiorizados hierarquicamente, inclusive, em todas
as escalas de governo.

O Brasil necessita encontrar os caminhos que integrem à


sua sociedade os grupos sociais menos favorecidos para que
possa desenvolver a sua economia, sua cultura e se apresen-
tar perante o mundo como um país que se impõe, que tem
uma contribuição positiva a oferecer. (ANDRADE, 1991, p. 49)

Portanto, os mapas oficiais que demarcam as reservas indíge-


nas não são democráticos, pois criam limites cartográficos que visam
impor a segregação ou a “proteção” de tal parcela da população.

112 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto


A etnia pataxó vive no território que tem um conteúdo his-
tórico relevante para o país, do qual são personagens principais,
mas que, ao mesmo tempo, se tornou um território do turismo de
massa, que se torna perverso a partir do momento em que a praia
e o sol são as referências de Porto Seguro. Logo, a história da sua
origem, que está ligada diretamente aos pataxós, perde o valor
de caráter identitário, consequentemente, o município passa a ser
compreendido somente como um lugar do turismo de massa. E esse
tipo de turismo não tem como finalidade a preocupação com a cul-
tura local.

A resistência dos pataxós

Apesar da imensa força empregada para que cada vez mais os


pataxós sejam excluídos do território de Porto Seguro, há, contraria-
mente, forças que possibilitam a resistência dessa etnia. As formas
de resistência são disseminadas em alguns atos públicos (manifes-
tações) ocupando a cidade, como também noutras ações através
do ensino superior, no uso das mídias como forma de expressar e
divulgar sua cultura, e na política.
O acesso a algumas tecnologias tem facilitado a comunicação,
e a informação sobre diversos temas da nossa sociedade. Ainda que
o acesso à internet, a aquisição de um computador ou um telefone
celular de última geração não tenha se democratizado a todos os
brasileiros, mesmo com equipamentos mais simples é possível criar,
reproduzir, comunicar, e manifestar-se sobre tudo aquilo que afeta
a reordenação social. Nesse sentido, as redes sociais têm servido
como uma ferramenta de transposição de linhas abissais para as
comunidades tradicionais. Por exemplo, os pataxós, em sua maioria,
possuem acesso a essas tecnologias e as utilizam de diversas formas,
sobretudo, como ferramentas de denúncia, organização, e divulgação
das suas ações no território de Porto Seguro. São responsáveis por

Quilombolas e indígenas: territórios opacos no extremo sul da Bahia 113


sua visibilidade, produzindo e publicando o que geralmente não
interessa à grande mídia ou mesmo à mídia local.
Os pataxós que vivem na Reserva da Jaqueira, distante, apro-
ximadamente, 12 km do centro de Porto Seguro, passaram a utilizar
o turismo como forma de resistência. Na reserva de 827 hectares,
os turistas são recebidos e podem acompanhar, no roteiro da visita,
diversas manifestações da cultura pataxó, que, para além de ser
um ritual de cunho teatral, visto que é uma representação para o
turista, é também uma forma de mostrar que ainda estão presentes
no território. Dessa forma, os pataxós passam a utilizar o turismo,
uma atividade econômica que não foi introduzida por eles no ter-
ritório em seu próprio benefício, e demonstrando um alto grau de
sua resiliência.
Outra forma do povo pataxó manifestar sua resiliência corres-
ponde à busca pela formação pedagógica e intelectual. O Curso de
Licenciatura Intercultural (Linter) do IFBA, no Campus Porto Seguro,
abriga vários povos indígenas, tais como, Pataxó, Pataxó Hã Hã Hãe
e Tupinambá, em diversas aldeias no extremo sul da Bahia. A Linter
é uma oportunidade e um caminho não somente para a formação
pedagógica, isto é, para aqueles que desejam ser professores em
suas aldeias, mas também um lugar de encontro entre o saber tra-
dicional e o conhecimento acadêmico, portanto, um campo fértil e
aberto para se pensar nessa relação. Assim, a partir do momento
em que os povos indígenas saem de suas aldeias e vêm para a ci-
dade estudar, eles quebram a resistência da cidade dos não índios,
ultrapassando aquilo que Boaventura de Sousa Santos vai chamar
de linhas abissais, saem de uma situação de opacidade e se tor-
nam visíveis na cidade que, por todo o contexto da modernidade,
da globalização, tenta cada vez mais torná-los invisibilizados.
E na política, o Cacique Renivaldo, da etnia Pataxó, foi o primeiro
indígena eleito para vereador nas eleições de 2016 no município
de Porto Seguro. Com mais de 123 anos de emancipação política,
somente no século XXI, um representante dos pataxós chega a um
cargo público através do voto. Isso demonstra o quanto nossa de-

114 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto


mocracia ainda tem que ser repensada nesse território. Apesar de
todas as tentativas de invisibilizar a figura do indígena no município,
inclusive com a segregação desses povos tradicionais em suas
aldeias, sempre se pode esperar por uma revanche, esboladas em
diferentes formas de resistência pela manutenção de suas terras e
culturas locais.
A etnia Pataxó em Porto Seguro vai continuar a existir e resistir,
mesmo com toda a sedução para que os indígenas se desprendam
das suas origens, como, por exemplo: a adoção a cultos e reli-
giões que não fazem parte da sua história, o acesso a tecnologias,
tentando parecer que eles estão descaracterizados da sua cultura.
Por conseguinte, com o intuito de eliminar as “diferenças” entre
eles e os não índios, um procedimento muito utilizado para apagar
as comunidades étnicas da cartografia física e cultural das cidades
ocorre através da imposição da lógica do capitalismo. Houve uma
série de estratégias para que a dizimação dos Pataxós acontecesse,
não só fisicamente através do conflito armado, mas também por
uma intensa propagação da ideia de negação da cultura e das pró-
prias origens.

Quilombolas e indígenas: territórios opacos no extremo sul da Bahia 115


CAPÍTULO 6

O IN TELEC TUAL DO T ERR IT ÓRIO:


A GEO GRAF IA PERT ENCE A T ODOS 1

Este capítulo, longe de ser um desprestígio ao papel do ge-


ógrafo na interpretação do território, na verdade, é um reconhe-
cimento à democracia pela gama de estudos que diversas áreas
do conhecimento produziram tendo o território como objeto de
pesquisas, estudos estes, que, inclusive, contribuíram com a geografia
enquanto ciência. Assim, o pesquisador que se dedica a compre-
ender criticamente a dinâmica de um dado território seja através
da sociologia, antropologia, história, por exemplo, pode ser consi-
derado um intelectual do território, o geógrafo já o é por natureza
de sua formação. Portanto, o intelectual do território se dedica a
construir pensamentos que questionem as linhas abissais, sejam
as já estabelecidas ou as que estão por aparecer, tendo sempre
como ponto de partida os anseios dos excluídos e o território, aliás,
o próprio pesquisador pode ser um excluído se este apresenta pen-
samentos que vão em direção contrária do que está estabelecido
por uma elite acadêmica.
O papel do intelectual na geografia popular fundamenta-se
basicamente em construir possibilidades de análises sobre a dinâ-
mica dos movimentos organizados ou desorganizados que suprimem

1 Pequena parte deste capítulo compôs um artigo publicado pela Revista Cronos
da UFRN. Ver: Cerqueira-Neto (2017).

117
barreiras geográficas entendidas como linhas abissais. É uma aná-
lise que se “assenta no pressuposto de que a existência não esgota
as possibilidades da existência e que, portanto há alternativas sus-
ceptíveis de superar o que é criticável no que existe”. (SANTOS, B. S.,
2002a, p. 23) Assim, formular um pensamento para uma geografia
popular, nesse caso, é pensar outro caminho onde os mapas não se
configurem numa barreira para a convivência entre as sociedades
do mesmo país. Duas questões são colocadas para quem se dedica
a pesquisar o território a partir das suas desigualdades. A primeira
se refere à postura do intelectual perante as linhas abissais e a
dinâmica das epistemologias do sul. A segunda aborda a coragem
em se desprender da rigidez científica.
Quanto à primeira questão, Boaventura de Sousa Santos (2002a)
faz uma provocação em relação à postura de neutralidade, impar-
cialidade, que tenta imputar ao pesquisador a condição de um ser
externo à dinâmica social. Entretanto, o intelectual da geografia
popular é parte nesse processo no que concerne ao desmanche das
fronteiras internas do país. Dessa forma, ele se torna porta-voz e
tradutor de uma geografia caótica, que produz novas configurações
espaciais, nas quais está inserido.
Ao refletir sobre a construção de uma teoria crítica, comumente,
o desconforto atinge alguns pesquisadores quando são levados a res-
ponder a seguinte questão: afinal, de que lado você está? De acordo
com Boaventura de Sousa Santos (2002a, p. 25), “para alguns é
uma pergunta ilegítima, para outros uma pergunta irrelevante e
para outros ainda uma pergunta irrespondível”. Essa reflexão do
sociólogo indica que a dualidade entre pensar e sentir ainda não foi
totalmente dissolvida nas universidades. Efetivamente, não tomar
partido em alguma causa pode se configurar um argumento incon-
sistente, visto que, pesquisadores e/ou intelectuais têm o seu lado,
inclusive lado político partidário.
Também é verdade que há intelectuais que preferem não repre-
sentar nenhuma bandeira de partido político, optando por estudar
os lugares opacos, o subdesenvolvimento, elaborar pensamentos

118 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto


que contestam posturas amorais e antiéticas de qualquer colo-
ração partidária, como fez Milton Santos durante toda sua vida.
Entretanto, optar ou não por uma posição não deve ser utilizado
como juízo de valor para distinguir a capacidade de um intelectual.
A segunda questão se encontra na própria geografia enquanto
ciência, tendo em vista que ela

[...] conta entre suas fraquezas o fato de não ter um objeto


claramente definido e a pobreza teórica e epistemológica so-
bre a qual repousa sua prática. A inexistência de um sistema
de referências mais sólido, de resto, explica o papel de relevo
que essa disciplina desempenhou na reorganização não igua-
litária do espaço e da sociedade, tanto ao nível mundial como
no local. (SANTOS, M., 1988, p. 8)

A crítica de Milton Santos (1988) sugere que a geografia ne-


cessita se reinventar tanto perante as ciências quanto perante a
sociedade, dado que “o novo saber dos espaços deve ter a tarefa
essencial de denunciar todas as mistificações que as ciências do es-
paço puderam criar e difundir”. (SANTOS, M., 2004, p. 263) Ao utilizar
a palavra “denúncia”, Milton Santos (2004) dá uma indicação do
quanto a geografia oficial, também gerada dentro dos campi, acabou
por afastar a geografia da sociedade.
Ora, a composição mineralógica de um granito não interessa
ao indígena, interessa ao capital, para o indígena, o granito é parte
da sua natureza. Dessa mesma forma, não interessa a um quilom-
bola a concepção teórica de espaço vivido, pois ele sabe viver no
seu lugar, tudo isso é uma preocupação acadêmica. Para Milton
Santos (2004, p. 266), “o espaço está chamado a desempenhar um
papel determinante na escravidão ou na liberação do homem”, e
é na libertação do território que a geografia popular pode ser vista
como mais um elemento importante no desmanche de parte das
linhas abissais existentes no Brasil.
Há uma geografia outsider da geografia formal acadêmica,
denominada como a “geografia do movimento”, produzida antes

O intelectual do território: a geografia pertence a todos 119


de se chegar às universidades. Josué de Castro (1994) dizia que não
foi na Sorbonne, ou em qualquer outra universidade, que conheceu
o fenômeno da fome, ela se revelou para ele nos bairros de Recife.
Talvez nós, os geógrafos, necessitemos retornar para essa geogra-
fia de Josué de Castro, uma geografia sem as redomas metodoló-
gicas impostas pela academia. Aliás, é preciso interrogar por que
nomes como o de Josué de Castro, que desapareceram e foram
proibidos nas universidades durante o período da Ditadura Militar,
não reapareceram na Democracia? A própria geografia não se ocupa
desse processo.
De acordo com Milton Santos (2004, p. 263), “a geografia ‘viúva
do espaço’ não é a ciência espacial que deveria ser. […] tal como ela é
hoje, ajuda a desenvolver e a manter um saber ideológico”, portanto,
uma geografia envelhecida não consegue acompanhar o dinamismo
de novos vetores que originam outras geografias. Para se chegar à
elaboração de pensamento é fundamental romper com as análises
baseadas apenas nas cartografias oficiais e das grandes empresas,
como também ultrapassar as linhas abissais impostas por metodolo-
gias rígidas às ciências, sobretudo, às ciências do território. Existe um
“campo de desafios epistêmicos, que procuram reparar os danos e
impactos historicamente causados pelo capitalismo na sua relação
colonial com o mundo”; (SANTOS, B.S.; MENESES, 2010, p. 19) e
essa é uma tarefa da qual a universidade do sul não pode se furtar a
oferecer propostas.
O estudo da geografia popular fundamenta-se em análises
fortemente amparadas na ciência geográfica, todavia, não se con-
figura no domínio de nenhuma área científica. O seu estudo está no
“encontro do concreto com o abstrato, da doutrina com o empírico
com a vantagem de não prejudicar a evolução da ciência [...] sem que
sinta a necessidade de impor princípios”. (SANTOS, M., 1991, p. 28)
A geografia popular não se limita tão somente pelo ato físico de
ultrapassar fronteiras, ou fomentada pelo pensamento intelectual.
Estudar a geografia popular é reconhecer que existe um pensamento
crítico na camada social excluída econômica e educacionalmente.

120 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto


Por exemplo, a maioria dos sem-teto, com baixo nível de escolari-
dade, conhece e domina todas as diretrizes gerais da Lei nº 10.257
(Estatuto da Cidade).2 É uma criticidade que não foi construída sob
pensamentos clássicos, mas adquirida no cotidiano da geografia em
que vivem, e nesse ponto, a geografia popular deve tentar se aproxi-
mar dessa crítica das ruas para perceber e identificar linhas abissais
que foram impostas no território, visto que grande parte das linhas
abissais são invisíveis, tanto quanto seus habitantes opacificados.
A geografia popular deseja ser mais uma opção de estudo sobre
o território e suas dinâmicas, partindo de um pensamento original,
que desapegue de formulações estrangeiras à realidade brasileira,
da adoção constante, quase perene, de referenciais europeus e
norte-americanos que analisam o sul, mormente, a partir de suas
realidades, e a partir de suas histórias de colonizadores. Para Milton
Santos (2002, p. 51), essa postura se configura num fator limitante

Na elaboração dos pensamentos brasileiro e latino-america-


no e em nossa própria visão de nós mesmos e do continente.
É como se todos quiséssemos ser europeus e agora um pouco
mais, porque também queremos ser norte-americanos. Até mesmo
a elegância no dizer é copiada.

E aí se encontra outra luta, pois, para conseguir se desatar


desses nós acadêmicos, será preciso também que a universidade
brasileira, com suas bancas de julgamento de dissertações e teses,
bem como as agências de fomento de pesquisas, percebam que há
a necessidade de se pensar o Brasil a partir do Brasil. O problema
está na recusa do país em reconhecer sua origem, ao invés disso,
opta-se por copiar modelos de gerir o território totalmente estranho
à sua cultura, contribuindo para que a população local, sobretudo
aquela alijada de políticas públicas eficazes, mantenha-se confinada

2 Ver: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/70317/000070317.pdf?
sequence=6%20Calizaya,

O intelectual do território: a geografia pertence a todos 121


no intervalo das linhas invisíveis, que são verdadeiras barreiras li-
mitadoras da mobilidade pelo território nacional. Chega a ser uma
perversidade a imposição de teorias e métodos criados e utilizados
a partir dos países centrais nos trabalhos de conclusão de curso, em
pesquisas de mestrados e doutorados brasileiros. Intenta-se soli-
dificar a pesquisa brasileira através de pilares franceses, alemães,
norte-americanos, que não estão interessados sobre o pensamento
dos intelectuais brasileiros acerca deles, ao contrário, desejam que
construamos análises a partir de suas ideologias, que continuemos
a reproduzir a visão do colonizador. No documentário Encontro com
Milton Santos ou o mundo global visto do lado de cá (2006) o jornalista
Eduardo Galeano (1940-2015) pergunta até quando nós (América
Latina) vamos agir como macacos ou papagaios, que só sabem
imitar. Assim, vive-se no período neocolonial, mormente, nas ci-
ências humanas.
Mas, o que seria pensar o país a partir dele? Um caminho pode
ser encontrado em algumas reflexões de Boaventura Sousa Santos
(2010b), quando o geógrafo sugere a produção de teorias indígenas,
uma alusão a nossa origem enquanto povo, a saber, produzir pensa-
mentos próprios, baseados nas características de quem nós somos
enquanto uma nação, em outras palavras, libertarmo-nos do colonia-
lismo acadêmico, deixarmos de ser reprodutores de um pensamento
eurocêntrico e norte-americano. Porém, tudo isso passa direta-
mente por uma revalorização dos “estudos humanísticos. Mas esta
revalorização não ocorrerá sem que as humanidades sejam, elas
também, profundamente transformadas”. (SANTOS, B.S., 2010b, p. 44)
Daí essa análise ser direcionada à geografia e todas as outras ciências
humanas e sociais. É fundamental valorizar as pesquisas em ciências
humanas, pois, ainda que elas não tenham o caráter de ser aplicada,
por outro lado, elas desempenham um papel fundamental na fomen-
tação da criticidade de um país. E a criticidade leva à transformação
na prática, tal como ocorre na geografia popular.
A elaboração do pensamento crítico tende a ser mais lenta
que a invenção ou a inovação de um equipamento tecnológico,
processo que é mais atrativo ao sistema capitalista. Por outro lado,

122 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto


o pensamento crítico se mostra imprescindível na compreensão
da dinâmica dos lugares, não sendo rara a adoção de ideologias
produzidas nas ciências humanas e sociais como norteadoras de
programas políticos nos mais diversos países do mundo, inclusive
no Brasil. Por mais redundante que possa parecer, é preciso que
uma ciência humana tenha estreita relação com a sociedade,
conquanto algumas variantes se instalem como empecilhos para
que essa relação não seja natural.
O receio de se tornar popular fora do que se estabeleceu como
parâmetro daquilo que se define como ciência faz com que alguns
intelectuais procurem uma posição mais cômoda para não serem
taxados de ativistas. Por outro lado, o intelectual considerado ex-
tremamente recluso em seu gabinete será visto como ausente das
lutas sociais. Mas, essa visão dicotômica é superada imediatamente
pelo intelectual que se nega a realizar essa diferenciação em
seus estudos, e para a geografia popular, os dois são importantes,
desde que haja neles sensibilidade com as questões que afetam os
desfavorecidos de direitos e de território.
A intelectualidade tem que encontrar um meio que a aproxime
da sociedade, pois pode correr o risco de que, um dia, a própria
sociedade se rebele contra a universidade e comece a questionar
o porquê da sua existência, sobretudo, dos departamentos de ciên-
cias humanas e sociais. A despeito disso, Milton Santos (1996, p. 7)
faz uma observação contundente, afinal,

quando a ciência se deixa claramente cooptar por uma tecno-


logia cujos objetivos são mais econômicos que sociais, ela se
torna tributária dos interesses da produção e dos produtores
hegemônicos e renuncia a toda vocação de servir a sociedade.

E as ciências humanas, com todos os percalços de sua cons-


tituição científica, devem continuar a ser a ponte entre o povo e a
universidade.

O intelectual do território: a geografia pertence a todos 123


Por último, para além da sociologia e da geografia, Boaventura
de Sousa Santos e Milton Santos podem ser considerados como
intelectuais do território, pois não enclausuraram seus pensamen-
tos em suas ciências de formação, pensaram o território, sobretudo,
sob uma ótica humanista. Os dois são exemplos modelares de
como as ideias acadêmicas podem e devem estar conectadas com
o povo, com as comunidades tradicionais e movimentos sociais,
o que corrobora com a ideia de que “a universidade pública deve
ter uma relação quase orgânica com a defesa e a preservação do
conhecimento e experiência dos nossos povos indígenas, no ato de
conseguir um multiculturalismo que seja mais eficiente”. (SANTOS,
B. S., 2009a, p. 57) A popularização dos seus pressupostos teóri-
cos criou uma identificação com os excluídos do desenvolvimento
econômico, que tiveram seus ideais abraçados por movimentos so-
ciais de várias vertentes, não obstante, Milton Santos tem seu nome
em assentamentos de sem-terra, e Boaventura é responsável pelo
projeto da Universidade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS),
local onde as epistemologias do sul e a academia se permitem
conviver, construindo uma ponte entre o conhecimento científico
e o conhecimento popular oriundo das comunidades tradicionais.

124 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto


CO N S ID E R A Ç ÕE S F IN A IS

Talvez a maior questão que esta reflexão suscita seja perguntar:


o que o Brasil pretende fazer com o seu território? Continuar a pro-
duzir uma cartografia abissal, aumentando áreas com lugares opacos?
Ao tomar como referência a postura dos nossos governantes, então,
espera-se que as linhas abissais continuem sendo traçadas pelo ter-
ritório nacional. Alguns indícios apontam nessa direção, tais como:
os estados pensados como ilhas à parte do território brasileiro,
e como se estas ilhas pertencessem a um grupo ou família de políti-
cos e grupos econômicos; a divisão regional existente nos estados,
que é baseada apenas no vetor econômico; e o aprofundamento do
bairrismo político, econômico e cultural entre os estados. Além disso,
outros indícios são as cidades, que são zoneadas em bairros pobres
e ricos, e vivem numa competição voraz pela atração de investi-
mentos, assim como os estados entre si.
Ademais, o Governo Federal fomenta as competições entre
estados e municípios, provendo com mais recursos os mais ricos,
inclusive porque, nestes, estão os maiores colégios eleitorais. Uma das
grandes questões postas nesse estágio de fragmentação territorial
que o país vive, é que o Brasil, uma ex-colônia, não conseguiu tirar
aprendizagens de todo o processo de divisões que sofreu ao longo
de sua história. Por exemplo, no período das Capitanias Hereditárias,
todas elas competiam entre si, com forte segregação de sua popu-
lação pobre, tal qual a relação atual entre os estados brasileiros.
Ao manter e alargar as linhas abissais através da política e da
economia, a tendência é que o Brasil continue fragmentado. Contudo,
essa reflexão não tem como escopo fazer uma apologia por uma

125
redivisão do território brasileiro, tendo como pretexto sua cartografia
abissal. O cerne desta pesquisa se assenta basicamente em utilizar
a ideia de geografia nova e das epistemologias do sul para revelar
algumas linhas abissais e, consequentemente, identificar lugares
opacos, e a partir das cartografias oficiais, propor outras formas de
compreensão do território, conferindo visibilidade à dinâmica da
geografia popular.
Alguns sujeitos políticos, como o Presidente da República,
governadores de estado, prefeitos e legisladores brasileiros, neces-
sitam compreender que um país com a quinta maior extensão terri-
torial entre todos os países do globo, e com uma grande diversidade
cultural, exige que haja diferentes formas de pensar a organização
do território. Uma única forma de administrar essa diversidade de
paisagens e de culturas acaba por se tornar perversa, pois efetuam
um traçado de delimitação de terras em linhas que separam e segre-
gam um mesmo povo.
O desconforto de quem está nos lugares opacos gera uma força
para que indivíduos organizados ou não, sozinhos ou agrupados em
movimentos, rompam com as linhas que os separam dos lugares
luminosos. Quando isso acontece, outro pensamento de Milton Santos
vem à tona: a revolução será feita por aqueles que estão nas camadas
mais inferiores, os pobres. Ao realizar o desmanche dessas linhas,
surgirá a possibilidade de outros mapas, municipais ou estaduais.
Para Milton Santos (2002, p. 32), isso acontece porque as “regiões
espoliadas, ou apenas esquecidas, devagar ou depressa se con-
vencem de que vivem em situação de menoridade política, daí a
vontade de emancipação”. Paradoxalmente, a criação de novas
unidades federais poderá significar a construção de mais fronteiras,
por outro lado, também pode significar respeito pela diversidade,
liberdade, individualidade e visibilidade de lugares opacos. Por isso
que os mapas podem ter funções e objetivos bem diferenciados.
Eles podem ser, por exemplo, lugares de liberdade, territórios de
confinamento, objeto de poder político e econômico.
Mas, como pensar em uma alternativa que não significasse
apenas uma divisão territorial, tendo como causa uma insatisfação

126 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto


popular ou política? Um caminho pode ser a adoção do modelo híbrido,
em que novas cartografias sejam combinadas com as já existentes,
o que poderia resultar na diminuição da quantidade de sul meta-
fórico dentro do país e, assim, minimizar a tensão entre norte e sul
do Brasil. Um exemplo pode estar na Constituição Plurinacional da
Bolívia, que não tem nada a ver com a adoção de um sistema ideoló-
gico bolivariano, mas sobre aprender com modelos que privilegiam,
sobretudo, as características históricas e culturais do país.
É inegável que o Brasil possui políticas públicas para povos
tradicionais, como os descendentes de escravizados e indígenas,
porém, longe de promover suas inserções no território brasileiro,
geralmente esses povos vivem encurralados em suas reservas ou em
quilombos, com participação inexpressiva no cotidiano dos municípios
aos quais pertencem. Atualmente, a população indígena no Brasil se
aproxima dos 900 mil habitantes e há cerca de 3 mil quilombolas,
porém, a questão numérica é secundária se comparada à dívida social,
e à usurpação dos direitos ao território, que o país tem com esses povos.
No que se refere a essa dívida, de acordo com Boaventura Sousa
Santos (2009b, p. 28),

Es el reconocimiento de que hay una deuda histórica y que no


basta pensar en el futuro para resolver las cosas; es necesa-
rio un encuentro con el pasado y ese encuentro con el pasado
es la parte más dolorosa porque no se reduce a palabras, se
trata de políticas.

A democracia no Brasil não pode ser resumida ao cotidiano


da maioria da população; a democracia tem que se adaptar tam-
bém à multiculturalidade do seu povo. Portanto, um município que
abriga em seu território comunidades indígenas e ou quilombolas
não é democrático se estes não tiverem direito a, pelo menos,
uma cadeira na câmara municipal. Um candidato quilombola ou
indígena, dificilmente, será eleito dentro de um universo em que a
quantidade de eleitores não indígenas ou não quilombolas é infinita-
mente superior à do eleitorado dos povos tradicionais.

Considerações finais 127


No que se refere ao mapeamento das comunidades tradicio-
nais, a questão é mais complicada, em razão de que recebem uma
área demarcada, e essa demarcação é tanto protetiva quanto uma
área de isolamento. A lentidão na demarcação de terras indíge-
nas e quilombola é sempre uma celeuma em todos os níveis de po-
der. Para Boaventura Sousa Santos (2014b, p. 49) “essa recusa em
enfrentar a questão não se limita aos órgãos judiciais, alcança tam-
bém a administração pública em geral. […] a paralisação reflete uma
inação conjunta entre sistema judicial e sistema administrativo”.
Essa dinâmica morosa conjugada com a falta de reconhecimento
ou negligenciamento da cultura indígena no país está contribuindo
para uma dizimação total dos primeiros habitantes das terras, que hoje
denominamos “Brasil”. Também, não basta apenas demarcar as áre-
as das comunidades tradicionais, criando uma cartografia abissal,
que as isole da convivência com outras áreas, e assim pensar que
já se fez justiça.
Na Constituição da Bolívia, por exemplo, são as comunida-
des tradicionais que decidem se querem receber elementos da
urbanização, ou se desejam integrar-se com o urbano. No Brasil,
impõe-se ora o isolamento, ora uma integração forçada, há terri-
tórios das comunidades tradicionais que são considerados como
distritos, em alguns, a interferência externa é tamanha que apre-
sentam dinâmicas como em qualquer outra cidadezinha do interior
do país; em outros, sequer existem energia elétrica, e o acesso é
extremamente precário. O Governo Federal deveria perguntar a es-
sas comunidades como elas desejam viver no seu território, e como
pretendem se relacionar com outras cartografias do país. A maioria
dessas comunidades vive um isolamento, muitas vezes, sendo ob-
jeto de pesquisas, ou sendo vendidas como um atrativo turístico.
São também desamparadas por governos estaduais e municipais.

Os distritos que abrigam as comunidades negras, com suas


diversas origens, continuam a ser relegados a um plano in-
ferior no que diz a sua inserção ampla. Uma explicação para
este tipo de tratamento pode estar no fato de que a maioria

128 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto


dos administradores públicos, seja por descaso ou falta de
conhecimento, não estabelecem projetos de preservação
da cultura dos descendentes africanos; e com isso, certa-
mente, a extinção destes povos passa a ser questão de tempo.
(CERQUEIRA-NETO, 2009, p. 246)

É fundamental, pensando noutras formas de gerenciar o terri-


tório, que o Governo Federal, junto com as comunidades tradicionais
estabeleçam uma política em que esses povos tenham efetiva partici-
pação na vida dos municípios em que estão inseridos. De outro modo,
não se pode querer que uma reserva indígena ou um quilombola
se comunique dentro de um sistema em que os seus territórios se-
jam inferiorizados hierarquicamente, inclusive, em todas as escalas
de governo.
Se aqueles que comandam o Brasil têm realmente consciência
da multiculturalidade do país, assim como da sua dimensão territorial,
então, não se pode conceber a continuidade de modelos únicos de
gestão do território, visto que, dentro do país, é possível encontrar
“outros saberes, não científicos nem filosóficos, e, sobretudo, os saberes
não ocidentais”. (SANTOS, B. S., 2002a, p. 241) E são os detentores desses
saberes que, geralmente, sofrem com as linhas abissais, tratados como
algo exótico e exógeno na geografia brasileira, e como se não bas-
tasse, ainda possuem ínfimos mecanismos de superação.
Cartograficamente, o território brasileiro ainda convive com
mapas obsoletos, que efetivamente não têm nenhuma função para
explicar a dinamicidade brasileira no século XXI, como, por exemplo,
o petrificado mapa das cinco grandes regiões. Quanto aos mapas
dos estados, estes ainda se mantêm em função de o Brasil ser uma
República Federativa organizada político-administrativamente em
divisões estaduais. Por outro lado, são territórios de poder dos clãs
políticos tradicionais que, mormente, veem nos estados a extensão
dos seus negócios particulares.
As atuais cartografias do Brasil mostram que os mapas exercem
duas funções, uma de instrumento de poder e a outra de segregação.
São instrumentos de poder a partir do momento em que o território é

Considerações finais 129


demarcado como uma posse vitalícia por aqueles que detêm o poder
político e ou econômico. E os mapas segregam quando são traçados
com objetivo de delimitar um território, sobretudo, para alijar as
comunidades tradicionais da vida social, econômica e cultural do
território brasileiro. Mapas delineados com esse objetivo específico
também são produzidos no meio urbano, vide a falta de infraestrutura,
a dificuldade de mobilidade que moradores das periferias, no âmbito
urbano, têm para chegar até ao trabalho ou a escola.
Ao propor críticas aos mapas oficiais, este livro não contesta a
importância que a cartografia tem para diversas atividades, bem como
o seu uso no apoio de pesquisas nas diferentes áreas do conhecimento.
As críticas são direcionadas, principalmente, para os governantes
que se utilizam dos limites cartográficos para implantação de linhas
abissais entre as cidades e seus distritos, as cidades e as comunidades
tradicionais, entre as próprias cidades, e as grandes fronteiras colo-
cadas entre um estado e outro.
O uso dos mapas deveria ser repensado. O território, no seu
sentido físico, estará sempre no mesmo lugar, com suas caracterís-
ticas geológicas e geomorfológicas, a não ser que haja uma grande
perturbação de causas naturais. Porém, diferentemente do território
físico, os mapas mentais e sociais, bem como as pessoas, estão em
constante transformação, inclusive, produzindo e requerendo novas
formas de utilização do território. E nesse sentido, o território é a
própria geografia e vice-versa, visto que para a geografia, em sua
totalidade, na amplitude do seu significado, o ambiente físico não se
dissocia do social, justamente porque “a distinção dicotômica entre
ciências naturais e ciências sociais deixou de ter sentido e utilidade”
(SANTOS, B. S., 2010b, p. 37), favorecendo, nesse caso, uma análise
mais holística da dinâmica territorial.
O poder público implanta, no território, sistemas administrativos
como se estes fossem acompanhar o tempo geológico na sua pere-
nidade. Ou será que é imaginável que daqui a 100 anos, que é ínfimo
para tempo geológico, esse modelo de administrar o território estará
em vigência? Será possível gestar um modelo político-administrativo

130 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto


sem a necessidade dos mapas dos estados? Um planejamento ter-
ritorial que não erga barreiras, mas que saiba entender as zonas de
transições? Que não distinga zonas pobres de ricas, de chuvosas
de seca etc.? A dinâmica dos biomas brasileiros pode servir de inspi-
ração, pois, pertencem ao mesmo território físico, sendo que cada
um possui características distintas, fazem a transição natural en-
tre eles, e se destacam por uma convivência harmônica. No Brasil,
a política de enquadramento dos estados numa mesma região, e
a ideia de que os estados detêm a capacidade de determinar uma
única cultura para toda sua demarcação territorial é também uma
tentativa de homogeneização.
O estudo sobre a geografia popular possibilita compreender como
e por que os movimentos sociais transgridem as imposições carto-
gráficas das geografias oficiais, mostrando que os mapas existentes
no Brasil não servem mais como ordenamento territorial, justamente,
porque há em germe uma desordem cartográfica, que traz, no seu
bojo, a luta pela conscientização do sentido de pertencimento da
sociedade brasileira em relação ao território nacional. Todavia,
essa conscientização não tem apenas o sentido de afetividade pela
terra em que nasceu, mas também de pensar que a violência contra
a mulher, que o desmatamento, que o crime organizado, a preca-
riedade da justiça, a pobreza e a miséria, a dizimação de indígenas,
a corrupção, as péssimas condições escolares e hospitalares, o anal-
fabetismo, tal como o petróleo do pré-sal e outras riquezas minerais,
não devem ser índices ou percentagens de algum estado, são,
sobretudo, questões nacionais.
Durante uma palestra realizada no ano de 2013, na Universidade
Nacional Autônoma do México, Boaventura de Sousa Santos disse que
deveríamos “transformar nossas teóricas críticas em práticas políticas
através ou a partir da última onda de movimentos de protestos em
várias partes do mundo”; e é nesse contexto, tendo a percepção de
que “o mundo mudou, e complicaram-se os instrumentos elabo-
rados para a sua compreensão” (SANTOS, M., 1991, p. 60), cabe à
geografia científica se renovar para continuar a ser uma ciência que

Considerações finais 131


explica o mundo em que vivemos. Nesse sentido, a proposta de estu-
dar os movimentos da geografia popular pode ser uma contribuição
para a estruturação de pesquisas sobre a fragmentação do território
brasileiro através das linhas abissais, da resiliência das epistemo-
logias do sul e da geografia nova para contrapor as cartografias
oficiais instaladas atualmente no Brasil.
Os estudos sobre as cartografias macrorregionais mostram
que um país que tenta se integrar dividindo o seu povo em mapas
econômicos ou em grandes regiões, com divisões discriminatórias,
não pode realmente esperar que seus projetos de integração sejam
bem-sucedidos. O desmanche das linhas abissais não significa
que ele irá resolver a questão da unificação do país, mas, por outro
lado, a quebra de linhas abissais pode simbolizar um passo em
direção a um Brasil com menos mapas, ou com outros mapas que
possam indicar um cenário menos abissal e de reconhecimento
efetivo das diferenças. Sendo assim, talvez, a maior contribuição
deste livro esteja na fomentação, em âmbito acadêmico, para o
aprofundamento de pesquisas e debates sobre a fragmentação
do território brasileiro, e, ao mesmo tempo, em buscar caminhos
para a superação das fronteiras internas, ou seja, a tão sonhada
integração nacional.

132 Sebastião P. G. de Cerqueira-Neto


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Referências 137
Colofão

Formato 16 x 23 cm

Tipologia Arvo | IBM Plex Sans

Papel Off-set 75 g/m2 (Miolo)


Cartão Supremo 300 g/m2 (Capa)

Impressão EDUFBA (Miolo)


Gráfica3 (Capa)

Tiragem 200 exemplares

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