Charlotte sometimes - Fabio Fernandes
Charlotte sometimes - Fabio Fernandes
Charlotte sometimes - Fabio Fernandes
Fábio Fernandes
primeira edição
editora draco
são paulo
2013
Fábio Fernandes
é doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. É professor de Jogos
Digitais e Tecnologia e Mídias Digitais na mesma instituição. É autor de A
Construção do Imaginário Cyber (2006) e Os Dias da Peste (2009).
Traduziu, entre outros, os clássicos Laranja Mecânica e Neuromancer. Tem
contos publicados em vários países, e é o responsável editorial pela América
Latina para a coletânea Best American Fantasy, editada por Ann e Jeff
VanderMeer. Um de seus contos será publicado na antologia norte-americana
Steampunk Reloaded, editada por Ann e Jeff VanderMeer, no segundo
semestre de 2010.
Fernandes, Fábio
Charlotte sometimes / Fábio Fernandes - São Paulo: Draco, 2013
CDD-869.93
Editora Draco
R. Luis Tosta Nunes, 298
Jd. Esther Yolanda – São Paulo – SP
CEP 05372-170
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Sumário
Capa
Folha de rosto
Créditos
Charlotte Sometimes – Fábio Fernandes
Contos do Dragão
Charlotte Sometimes – Fábio Fernandes
... assim como Júlio está consciente agora, mesmo que não se lembre de
como foi parar ali, naquele lugar escuro, úmido e apertado, não o lugar
escuro, úmido e apertado dentro do qual ele queria estar naquele momento,
mas um lugar envolto em brumas, imagens ligeiramente distorcidas, como se
vistas através de um vidro coberto por uma fina camada de condensação, ou
através de olhos cansados e pesados de fumo, bebida ou ácido ou quem sabe
até as três coisas juntas, não seria impossível, e em todo caso seria
provavelmente mais viável que um sonho, enfim, poderia também ser um
sonho, mas isso se ele não tivesse certeza de que está tão desperto, coisa que
a latinha de cerveja que praticamente congela sua mão não o deixa esquecer e
nisso é muito mais eficaz do que qualquer investigação filosófica a respeito
da natureza da realidade, ou do que qualquer livro de Philip K. Dick ou
Cortázar. Júlio está no meio da pista de dança, atravessando–a à procura. De
quem? Não lembra. Pede licença, esbarra aqui, acotovela acolá, precisa se
locomover, atravessar o mar de gente indefinida e imprecisa que se avoluma
e se espessa na pista de dança e nos corredores obscuros, chegar a algum
lugar mesmo sem saber onde, porque navegar é preciso, viver não é preciso,
diz o poeta, e nesse instante é como se ele ouvisse o som da voz triste e
gritada de Amália Rodrigues se derramando pelas caixas de som ao invés de,
ao invés de, ao invés de que mesmo? Júlio não sabe, só sabe que anda, anda
como se as pernas não lhe pertencessem, e quando ele se dá conta é como se
elas não pertencessem mesmo a seu corpo, porque não as sente, seus sentidos
estão tomados de assalto pelo ambiente. Os ouvidos, pelos vocais de Robert
Smith, porque agora você se lembra que o que sai das carrapetas do DJ não é
fado, bolero ou tango, mas o bom e velho britpop dos eighties, para ser
específico “Charlotte Sometimes”, a canção do The Cure que sempre invadiu
seus ouvidos com uma sensação arrebatadora, mas que agora é perturbadora,
incômoda, labiríntica, como se tirasse os seus pés do chão, não de
arrebatamento extático, mas como se fosse um ataque de labirintite, um
terremoto dos sentidos, um impacto profundo no ouvido interno, um soco na
cara da realidade que quase faz com que seus olhos saltem de tão arregalados
para tentar ver além do véu de Maya que embaça tudo à sua frente, e
enquanto isso ele anda por entre as pessoas no ambiente apertado e sufocante.
Ele busca uma saída, e seus pés se dirigem para a escada em espiral antes
mesmo de se dar conta, se dar conta, se dar conta de quê? Preciso parar de
beber, ele pensa sem se levar a sério descendo os degraus estreitos de ferro
fundido, porque tem certeza de que toda vez que bebe demais pensa
exatamente a mesma coisa. Isso quando não tem seus cada vez mais
frequentes brancos, buracos no tecido da memória, frequentemente no quesito
“localização”: Júlio não sabe onde está, e tem uma desconfiança amarga de
que não é a primeira vez. Também não é a primeira vez que ele vê a aranha
verde pendurada em sua teia de corda num dos cantos do teto preto do andar
térreo, particularmente visível a partir do antepenúltimo degrau da escada, no
sentido de quem desce. A aranha de espuma é gigantesca, deve ser do
tamanho de sua cabeça e reluz fosforescente. Só então Júlio lembra onde está:
U-Bahn. Um bar dark em Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro. As paredes
pintadas de preto, os rapazes e moças, todos de cabelos negros ou pintados
de, atendem os clientes usam todos pancake branco e batom roxo, e vestem
roupas inteiramente pretas. Ele também está vestido de preto, pois é o código
da sua tribo. Ninguém é barrado se entrar vestido de outras cores, mas não
seria a mesma coisa. Júlio sabe que já não é a mesma coisa há muito tempo.
Porque acaba de se dar conta de algo.
O U-Bahn fechou há quase vinte anos.
Agora Júlio sabe que está sonhando. Ele tem dessas coisas de vez em quando:
a consciência do sonho, aquele instante mágico, aquela epifania que o
arrebata, e desta vez, sim, é um arrebatamento, uma excitação percorrendo
sua espinha, a certeza de que está vivendo um momento único. O momento
em que, ainda sonhando, ele percebe que sonha.
E sabe como acordar.
Porque Júlio conhece a chave do sonho.
Júlio nunca contou a ninguém, mas houve um tempo em que controlava os
próprios sonhos. Não sabia se isso era normal ou se só acontecia com ele;
nunca lhe ocorreu perguntar a ninguém. Não comentava nem com o analista.
Tinha medo de que o achassem maluco.
No fundo, porém, o que ele temia realmente era descobrir que todo mundo
sentia a mesma coisa, que ele era apenas um garoto normal. Júlio nunca quis
ser um sujeito normal.
Mas tudo isso já faz muito tempo. Agora Júlio não controla mais seus sonhos.
Embora algo tenha restado daquele tempo: ele quase sempre sabe quando está
sonhando. Mesmo que agora seja apenas um observador dentro da própria
cabeça, pelo menos é um observador consciente. Assim como está
consciente agora, mesmo que não se lembre de como foi parar ali.
O ambiente do sonho é como ele se lembrava: corredores pintados de preto
fosco, onde o sol não bate, onde não bate nenhuma luz mas onde muitos
corações batem e doem, doem porque têm que de doer, doem because it’s
there, porque é por aí mesmo, porque ninguém lhes disse que poderia ser
diferente. A Júlio disseram muitas vezes, mas ele sabe que isso nunca fez
muita diferença. Não que isso importe agora.
De repente a saída lhe vem à mente como uma iluminação. Volta correndo
para o andar de cima, quase esbarrando num casal que desce e cujos rostos
você não vê, porque simplesmente não consegue levantar a cabeça para
encará-los, e de qualquer maneira sabe que se conseguisse não os veria
porque eles estariam envoltos por alguma névoa ou textura gasosa
semelhante – os sonhos têm essa lógica às vezes.
E uma das equações que compõem essa lógica é a chave do sonho: um
dispositivo mental que permite que aquele que sonha acorde no instante em
que cumpre uma rotina predeterminada. Para Júlio, a chave do sonho é o que
ele chama de enfrentar o monstro.
Funciona assim: Júlio se afasta da multidão e envereda pelo primeiro
corredor que encontra. Vai andando até encontrar um trecho sem iluminação,
e ele sabe que esse trecho sempre existe e está lá, esperando por ele. Ao
penetrar essa zona crepuscular, subitamente Júlio tem a certeza de que verá
um monstro terrível, cujo toque será o suficiente para matá-lo do coração. O
medo que ele sente basta para evitar que esse temido encontro se realize,
fechando assim o ciclo do sonho. Júlio acorda.
Isso é o que sempre acontece.
Mas hoje não.
Os corredores têm fim e nenhum deles é suficientemente escuro e deserto
para que Júlio realize seu desejo. Ele os percorre impávido colosso,
dolorosamente consciente de cada passo, da textura das paredes, do som que
ainda invade seus ouvidos sem pedir licença e que está lhe dando dor de
cabeça, coisa que aliás Júlio nunca sentiu em sonho algum e que já começa a
incomodar.
Este é um sonho difícil.
Depois de alguns minutos, desiste dessa abordagem. Está ofegante. Cansado.
Seu fôlego não é mais o mesmo. Nem mesmo sonhar é como antigamente.
A última técnica de que ele se lembra para despertar é a mais boba, mais
trivial – e por isso mesmo a mais dura: lembrar de alguém que tenha a ver
com aquele ambiente.
Ela.
Júlio não queria mais pensar nela. Não depois de tudo.
Normalmente se lembrar de alguém dentro do sonho faz com que ele fique
ansioso para encontrar essa pessoa. Alguns minutos horríveis se passam,
durante os quais ele corre pelo ambiente, tentando encontrar essa pessoa. E
então, nervoso, a adrenalina acelera seu coração até um ponto insuportável
para manter suas ondas cerebrais num padrão compatível com o sono, e ele
finalmente acorda.
Mas Júlio não acorda.
Não pode ser um sonho, ele pensa, lembrando-se daquela história japonesa –
ou será chinesa? – que leu há tanto tempo sobre o homem que sonhou que era
uma borboleta e, ao despertar, não sabia dizer se era realmente um homem
que tinha sonhado ser uma borboleta ou uma borboleta que agora sonhava
que era um homem. O sonho é tão vívido, tão real, que a explicação mais
simples só pode ser a seguinte: isto não é um sonho. Ceci n’est pas un réve, é
assim mesmo que se diz? Ele deve ter algum dia sonhado com o futuro, com
um dia quinze anos distante no tempo, em que o bar já não existiria mais,
nem o seu amor por ela, e onde ele havia tentado de tudo, absolutamente
tudo, para esquecer.
Júlio não quer mais esquecer.
E nem precisa procurar muito.
Ela está numa das mesas do térreo. Embaixo da aranha verde. Júlio nem sabe
como não havia reparado nela quando passou por ali antes.
A garota continua exatamente do jeito Júlio se lembrava. Os cabelos curtos
pretos com mechas roxas, sem maquiagem alguma, a pele pálida de tão
branca. Ele lembra que gostava tanto de correr as pontas dos dedos pelas
veias azuladas dos braços dela.
Ele para na frente da mesa. Esboça um sorriso e tenta dizer alguma coisa,
algo inteligente, interessante, qualquer coisa menos “eu te amo” ou “que
saudade”, coisas piegas demais para o espírito libertário dela. Mas não
consegue.
Não consegue fazer absolutamente nada. Nem falar, nem mover um músculo.
Então é como se a luz fraca do local mudasse, e tudo adquirisse uma nova
perspectiva; Júlio ainda não sabe se está sonhando, mas sabe quando bebeu
demais: a sensação de irrealidade seguida de mal-estar que a bebida lhe dá
são inconfundíveis.
É nesse instante que Júlio percebe que ela não está exatamente como ele se
lembrava, mas um pouquinho mais gorda, mais acabada. Como ela mesma
vivia se achando.
É tão esquisito isso, ele acha. Quase como se o sonho não fosse dele, mas
dela.
A ideia é tão imbecil que ele a descarta no ato.
Um minuto se passa. Dois. Pelo menos é o que ele acha; não se lembra se
está sem relógio, e não consegue erguer a mão para conferir. Nada acontece.
Ele não diz palavra. Nem ela.
Ela não olha para ele em momento algum.
Ela chora.
Júlio não entende mais nada. Se isto é um sonho, foge à compreensão dele,
pois nunca nenhum de seus sonhos foi tão nítido e custou tanto a terminar
depois que ele descobre o que está acontecendo. Júlio fica nervoso. Sente o
suor pegajoso grudar a camisa de algodão branco sobre a pele; o colarinho
começa a roçar o pescoço de um jeito que ele sabe que depois vai irritar a
pele. Dá uma risada: você está sonhando, imbecil, vai acordar novinho em
folha, provavelmente suando em bicas, mas não a ponto de amanhecer com o
pescoço vermelho e lanhado.
Júlio coloca a mão sobre a nuca, e sente uma coisa oleosa, meio gosmenta.
Leva a mão à frente dos olhos e tenta discernir o que é aquilo no meio da luz
fraca.
Não conseguiria nunca discernir a substância escura se dependesse só da
visão. Cheirou.
Sangue.
Esse susto deveria ser o suficiente para acordá-lo. Chaves de sonho são o
equivalente psicológico das chaves de um soneto. O último acorde de uma
música, a última frase de um conto. Por que o sonho não termina se ele já fez
tudo o que devia fazer?
– Não depende de nós – disse uma voz atrás dele.
Os pelos de sua nuca se eriçaram. A voz era tão baixa que parecia um
sussurro, ou melhor, um zumbido. Como se abelhas tivessem aprendido
subitamente o dom da fala.
Júlio se vira para encarar seu interlocutor.
É um tubo de luz fluorescente.
Com aquela lógica perversa e infalível que só o estado de sonho apresenta,
Júlio não olha para os lados à procura de um humano. Sabe que foi a luz
quem falou. Isto posto, ela prossegue:
– Depende só dela – ela diz, agora com uma voz menos sibilante e mais
feminina.
– Por que dela? – Júlio pergunta.
Júlio jura que a luz dá de ombros.
– De quem você acha que é o sonho? – ela diz.
Júlio solta uma gargalhada.
– Essa foi ótima, preciso lembrar de anotar isso tudo para contar à minha
analista amanhã – diz.
–Vai ser meio difícil – diz a luz, e você ainda se pega tentando descobrir
onde é a boca do tubo.
– Por quê? – mas você já sabe a resposta que vem pela proa.
– Você não lembra?
Então é como se o sonho voltasse a ser dele, como se a frase emitida pela luz
– porque, fascinado, percebe que a luz fala com ele por comprimentos de
onda – o liberasse, como as três pequenas palavras fossem um koan zen-
budista e o elevassem a uma espécie de nirvana, de sonho dentro de um
sonho, ou da realidade, e ele se lembra de um fiapo de consciência
escorrendo de seus olhos junto com os fiapos de sangue que ainda fluíam
pelos pulsos cortados que empapavam o carpete cinza-grafite da sala, o som
ligado – tocando The Cure, agora você se lembra – e ela chegando, olhando a
cena e soltando um grito doído que o arrepiou e apressou seu adormecimento.
E depois você não se lembra de mais nada.
Isso não parece um texto de Gertrude Stein?, ele pensa. Lembra que ela
gostava muito de Gertrude Stein. Foi ela quem o apresentou à escritora, aliás.
Mas ele nunca leu Gertrude Stein.
Subitamente Júlio percebe que não está mais na festa, na verdade não estava
desde que a luz começou a falar com ele.
Eles estão num corredor escuro, que a luz ajuda a iluminar, mas não tanto
quanto Júlio gostaria. Ele consegue ver paredes cobertas com tinta cinza-
grafite, riscadas e descascadas. Muito velhas. O corredor é apertado e ele não
consegue ver fim. Porque a luz não está no fim do túnel.
– É para cá que venho quando me apagam – a luz lhe diz.
– É para cá que virei quando ela deixar de me sonhar?, ele pergunta.
A luz se cala.
Então Júlio sente outro arrepio.
– É para cá que sempre venho, não é?
A luz nem pisca. Mas não precisa. Ele sabe que isto já aconteceu antes. E
acontecerá de novo. Todas as vezes em que ela sonhar com Júlio, ele será
resgatado daquele arquivo da memória e ganhará vida na rua, na chuva, na
fazenda ou simplesmente naquele clube, onde eles foram felizes.
É mais do que poderia esperar.
No fundo do corredor escuro, Júlio sorri. O que mais temia não aconteceu:
ela não se esqueceu dele. Agora Júlio sabe que não está só.
Contos do Dragão
Este livro faz parte da coleção Contos do Dragão, o maior acervo de contos
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