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Revista Brasileira de Sociologia do Direito

ISSN 2359-5582
ESTIGMATIZAÇÃO DAS VÍTIMAS
DA GRANDE CHACINA DO
GUAMÁ: UMA ANÁLISE DAS Savio Rangel U. Santiago1
Andréa Bittencourt P. Chaves2
NARRATIVAS MIDIÁTICAS Izabela da Silva Jatene 3
Edson Marcos L. Soares Ramos4

STIGMATIZATION OF VICTIMS OF THE GREAT GUAMÁ


SLAUGHTER: AN ANALYSIS OF MEDIA NARRATIVES

RESUMO: O texto em tela buscou compreender as ABSTRACT: The text sought to understand journalistic
referências jornalísticas sobre as vítimas da Grande Chacina references to the victims of the Grande Chacina do
do Guamá, ocorrida em 2019 na cidade de Belém do Pará. Guamá, which occurred in 2019 in the city of Belém do
Para tanto, buscou-se analisar os discursos justificantes Pará. To do so, it analyzed justificatory discourses
elaborados sobre o referido morticínio, veiculados nos sítios elaborated about the aforementioned massacre, as
eletrônicos dos principais meios de comunicação. Os conveyed in the electronic sites of the main media outlets.
conceitos de estigma e de criminologia midiática são os The central contributions to the approach are the
aportes centrais da abordagem. A metodologia empregada concepts of stigma and media criminology. The
abarcou o levantamento bibliográfico e documental, com methodology employed encompassed bibliographical and
base na análise de conteúdo Bardin (1977) e de discurso de documentary research, based on Bardin's content analysis
Loureiro (2018), com ênfase nas reportagens das (1977) and Loureiro's discourse analysis (2018), with an
justificativas do massacre como persistência temática. Os emphasis on the reports justifying the massacre as a
resultados apontaram que, muito além dos onze corpos persistent theme. The results indicated that, far beyond
exterminados, as reportagens da Grande Chacina do Guamá the eleven exterminated bodies, the reports of the
visaram estabelecer a culpabilização das próprias vítimas do Grande Chacina do Guamá aimed to establish the
massacre e as mortes como produto inevitável da “guerra culpabilization of the massacre's own victims and the
contra as drogas”. Demonstrou-se também como o sistema deaths as an inevitable product of the "war on drugs." It
criminal de justiça opera na legitimação e justificação das was also demonstrated how the criminal justice system
mortes, reforçando o eficientismo penal. Os resultados operates in legitimizing and justifying deaths, reinforcing
demonstraram o papel preponderante dos agentes do penal efficiency. The results demonstrated the
Estado como fontes da mídia na cobertura de fatos violentos, preponderant role of state agents as media sources in
ao passo que as justificativas das mortes reforçaram a covering violent events, while the justifications for the
estigmatização em um bairro historicamente segregado. deaths reinforced stigmatization in a historically
segregated neighborhood.

Palavras-chave: estigmatização; criminalização; chacina; Keywords: stigmatization; criminalization; massacre;


mídia. media.

1
Mestrando em Segurança Pública na Universidade Federal do Pará (UFPA). Bacharel em Direito e em Psicologia pela
Universidade Federal do Pará.
2
Doutora em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido pela Universidade Federal do Pará. Mestra em
Sociologia Geral e em Serviço Social pela Universidade Federal do Pará. Bacharela em Ciências Sociais pela União das
Escolas Superiores do Pará. Professora Titular da Universidade Federal do Pará.
3
Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). Mestre em Antropologia e Graduada em
Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará. Professora do Programa de Pós-Graduação em Segurança Pública
(PPGSP/UFPA). Diretora da Faculdade de Ciências Sociais (FACS/UFPA).
4
Doutor em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Estatística pela
Universidade Federal de Pernambuco. Bacharel em Estatística pela Universidade Federal do Pará. Professor Titular da
Universidade Federal do Pará. Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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Savio Rangel U. Santiago, Andréa Bittencourt P. Chaves, Izabela da S. Jatene e Edson Marcos L. Soares Ramos

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1 INTRODUÇÃO
Doze vítimas diretas, onze mortes, apenas um minuto (Cavalcante, 2019). Com isso,
a chacina do Guamá de 2019, ocorrida no conhecido bar da Vanda, no bairro mais
populoso da região norte (IBGE, 2010)5, tornou-se o maior massacre em apenas um lugar
na capital paraense (Portal G1 PA, 2019; Record, 2019). Por esse motivo, o mencionado
morticínio será chamado de “A Grande Chacina do Guamá”, sendo esse caso, portanto, o
foco das análises sobre o fenômeno da estigmatização das vítimas.
Ainda não existem estudos sobre a grande Chacina do Guamá. No geral, os estudos
apontam, de forma panorâmica, o cenário violento da capital paraense e a atuação de
grupos milicianos e de extermínio em bairros como Guamá e Terra Firme (Araújo, 2022).
Duarte (2022), por sua vez, adentra no cenário estatístico dos crimes de homicídios
ocorridos em Belém, entre 2018 e 2020, tendo o Guamá com maior ocorrência de
homicídios e indicando que a política nacional antidrogas produz a morte de indesejáveis.
Indo além, as informações coletadas sobre o morticínio em análise concentram-se
em fontes documentais – processos judiciais e dados em texto e áudio visuais –
disponibilizados em sítios eletrônicos dos principais meios de comunicação em massa.
O texto está ancorado no referencial teórico do estigma como trabalhado por
Goffman (1988), associado a contribuições mais recentes da criminologia crítica – Zaffaroni
(2012), Baratta (2001), Batista (2011), Morais (2016) e Gomes (2015). A metodologia
abarca a revisão bibliográfica narrativa sobre o tema das chacinas e dos processos de
criminalização, conjugando-se aos aportes teóricos da análise de conteúdo (Bardi, 1977) e
de discurso (Loureiro, 2018) no que se refere às reportagens que cobriram a grande
chacina do Guamá. Ademais, foram feitas também entrevistas não estruturadas com
moradores da passagem Jambu em 2023.

5
O estudo ateve-se ao Censo IBGE de 2010 por serem estes os únicos dados oficiais divulgados até a coleta de dados.
O Censo de 2022 ainda não disponibilizou dados mais atuais.

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2 PROCESSOS DE CRIMINALIZAÇÃO
As chacinas se relacionam com os processos de criminalização, sobretudo no que diz
respeito ao fenômeno da seletividade penal, que atua sob o viés da vulnerabilidade social,
criminalizando indivíduos pobres e marginalizados historicamente (Zaffaroni, 2012). Não
obstante, esse fenômeno excludente e violento das persecuções criminais repercute
também nas condutas violadoras de determinados agentes estatais, que atuam à margem
do sistema repressor, cometendo sistemáticas violações a esses mesmos grupos
seletivamente criminalizados.
Ao conjunto de violações perpetradas por esses agentes, Zaffaroni (2012) definiu
como sendo o Sistema Penal Subterrâneo. Com efeito, as torturas, violações de direitos
humanos e extermínios, quando operados por forças estatais e que por essa razão deixam
de ser devidamente apurados ou denunciados, são também manifestações do sistema
penal. As chacinas se relacionam com os processos de criminalização, sendo resultado de
relações assimétricas de poder.
Definidos em duas fases distintas e complementares, uma primária e outra
secundária, os processos de criminalização ocorrem o tempo todo. Para Gomes (2015), a
criminalização é o resultado concatenado de complexas definições e seleções de condutas
e de indivíduos. Nesse ponto, com a eleição de condutas tipificadas no código penal, as
agências estatais não estariam preocupadas em investigar fatos, mas sim pessoas,
principalmente, aquelas mais vulneráveis ao sistema penal (Gomes, 2015). O status de
criminoso, portanto, é o que há de maior relevância na atuação repressiva estatal, sem o
qual afunda-se a própria eficácia do Estado em resolver os problemas de Segurança
Pública. Para Gomes (2015), muito embora exista a previsão legal e as prerrogativas que
impõem aos agentes públicos do sistema criminal de justiça à persecução penal em estrita
observância à sistemática legal, as agências estatais atuam de maneira seletiva, refletindo
a segregação e exclusão social do sistema capitalista.
Assim, a criminalização primária corresponde à fase legislativa em que há a criação
dos tipos penais, enquanto a criminalização secundária corresponde à atuação concreta e
seletiva das instituições da Segurança Pública e da Justiça. Partindo dessas premissas,

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Zaffaroni (2012) explica que os mortos produzidos pelo sistema criminal de justiça são
produtos da violenta política criminal instrumentalizada, principalmente, pela ideia de que
o extermínio físico de criminosos do mundo das drogas é o que garante o efetivo controle
social a ser exercício pela polícia em “zonas de guerra”, que, na verdade, são espaços
territoriais da periferia, segregados historicamente (Silva, 2021, p. 265).
No caso da periferia de Belém, Couto (2018) revela a existência de redes de poder
controladas por organizações criminosas, tanto do narcotráfico como de milicianos,
pressupondo a territorialização no âmbito da precarização urbana e dos “aglomerados
urbanos de exclusão” (Silva, 2021). A apropriação por grupos de traficantes e/ou milicianos
de territórios nessas ditas “zonas de guerra” constitui-se, em última análise, a tecnologia
de vigilância e de controle a partir do qual se estabelecem formas violentas
de enfrentamento.
Deluchey (2019), ao analisar a ocorrência de chacinas no Estado do Pará aponta para
a consolidação e ampliação de mercados ilícitos e de redes criminosas locais. Para o autor,
as chacinas possuem duas funções: aumentar o poderio de grupos armados nas periferias
frente a conivência do Estado e enviar mensagens à população local definindo quem
controla o território.
Com feito, a expansiva e seletiva atuação das agências de controle social, com
massiva instrumentalização da persecução criminal a partir de indivíduos marginalizados e
igualmente considerados perigosos, se constata na periferia como o espaço contínuo de
vigilância, de controle e de dominação. Nesse cenário, as chacinas constituem ações de
necropolítica (Mbembe, 2018), refletindo o silêncio da sociedade civil e a omissão estatal.

2.1 Estado de Exceção e estigmatização


Não é tão simples enfrentar questões que envolvem os processos de legitimação das
mortes decorrentes do modelo de Segurança Pública adotado pelo Brasil com a
redemocratização, que é recorrentemente violador de direitos civis (Oliveira, 2016).
Zaffaroni (2012) enfrenta a questão demostrando que, paradoxalmente, a efetividade da
política criminal é atestada pela quantidade de cadáveres empilhados, fenômeno tratado
por Duarte (2022) como eficientismo penal.

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Zaffaroni (2012) considera que a visão maniqueísta inserida na sociedade reforçou


no sistema criminal de justiça a necessidade de combater o inimigo traficante, a qualquer
custo. Em paralelo, forja-se por meio da criminologia midiática o maniqueísmo do “Nós e
Eles” (Zaffaroni, 2012, p. 307). Nesse mundo, a pena teria a função de restaurar os valores
sociais para o cidadão, enquanto para o inimigo não existiriam direitos, sendo autorizada
até mesmo a tortura e o extermínio.
Zaffaroni (2012) ainda vai além quando esclarece a legitimidade da violência da
criminologia midiática direcionada as pessoas que de alguma forma se assemelham ao
criminoso estereotipado. Segundo o autor, o “Eles” representa toda uma massa criminosa
de diferentes (dos cidadãos), em que até aos parecidos é tolerada toda e qualquer violação,
pois que são indivíduos suscetíveis de cometer atrocidades a qualquer momento.
Este é parecido e, portanto, pode fazer o mesmo. A formação deste “eles”
seleciona cuidadosamente os delitos dos estereotipados mais ou menos
carregados de perversidade ou violência gratuita; os outros são minimizados ou
apresentados de modo diferente, porque não servem para demostrar que
qualquer estereotipado haverá de cometer uma atrocidade semelhante.
A mensagem é que o adolescente de um bairro precário que fuma maconha ou
toma cerveja em uma esquina amanhã fará o mesmo que o parecido que matou
uma velinha na saída de um banco e, portanto, é preciso isolar a sociedade de
todos eles (Zaffaroni,2012, p. 307).

A legitimidade potencial da violência direcionada a qualquer pessoa socialmente


vulnerável ao sistema penal se conecta com os discursos que legitimam chacinas e
extermínios. Dessa forma, enquanto a pena teria como finalidade a afirmação de valores
positivos do ordenamento, com a garantia de direitos para o cidadão, para os “outros” há a
flexibilização desses mesmos direitos e garantias, que se somam a desconsideração de suas
personalidades e dignidade em prol da segurança de todos (Oliveira, 2016).
As reflexões teóricas de Agamben (2015) e Goffman (1988) auxiliam na reflexão
sobre esses fenômenos.
Por “Estado de Exceção”, Agamben (2015) compreende os fenômenos políticos da
ação humana intencional que deveriam funcionar apenas em situações em que o próprio
Estado tivesse a sua existência ameaçada. Portanto, a ideia de agir excepcionalmente e de

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forma extrema possui dois contornos: uma via democrática (argumento de legitimidade) e
uma via totalitária (servindo aos interesses antidemocráticos).
Agamben (2015) assimila a existência de forte tensão simultânea na política e no
direito, em sua relação com a vida humana. De tal forma que o dispositivo excepcional do
agir extremo do Estado, com o objetivo de impor a sua soberania diante de ameaças
igualmente extremas, torna-se uma arma arbitrária nas mãos de um paradigma etiológico,
por exemplo.
A ideia central está no fato do Estado dispor de um dispositivo de uso extremo da
violência, desde que fortemente amparado por razões de Estado, igualmente extremadas.
Zaffaroni (2012) aponta que a divisão entre cidadão e não cidadão, que autoriza a violência
extrema sobre o segundo, na América Latina está ancorada no paradigma da guerra às
drogas. Para o criminalista argentino, essa guerra explicaria os motivos de tantos corpos
empilhados pelo sistema criminal.
Os mortos são um produto natural a violência deles. A criminologia midiática
naturaliza essas mortes, pois todos os efeitos letais do sistema penal são para ela
um produto natural (inevitável) na violência própria deles, chegando ao
encobrimento máximo nos casos de execuções sem processo disfarçadas de
mortes em enfrentamentos, apresentadas como episódios da guerra contra o
crime, em que se mostra o cadáver do fuzilado como sinal de eficiência
preventiva, como o soldado inimigo morto na guerra (Zaffaroni, 2012, p. 311,
grifo nosso).

No contexto regional, o inimigo é o traficante e os vários discursos proibicionistas


das drogas são estruturados sob o prisma ético, médico, jurídico e político. A ideia central
de combater as drogas é o pretexto para a atuação quase “excepcional” do Estado pela via
da violência extrema.
Não se pode olvidar que com a redemocratização do Brasil o que era antes o
paradigma da Segurança Nacional transmuta-se em paradigma da Segurança Pública, que
apesar das peculiaridades no âmbito das garantias fundamentais, manteve a lógica
militarizada e repressora características de um estado de exceção (Oliveira, 2016).
A ressignificação do inimigo, não apenas como meta-regra, mas alçada a signo
oficial de interpretação e aplicação do direito penal, entra em sintonia com
projetos político criminal de beligerância. Nos países periféricos latino americanos,
em face das inconsistências da percepção do fenômeno terrorista, a criminalidade

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organizada do narcotráfico abre espaço para a recepção do estigma legitimador


do direito penal de emergência (Carvalho, 2013, p. 159, grifo nosso).

A forjada guerra às drogas, no dizer de Zaffaroni (2012), é banalizada pela


criminologia midiática e amplificada pelo pânico moral de que se vivem em permanente
“estado de guerra”, sendo uma ideia fragmentada da realidade e representada como perigo
iminente e cotidiano cuja eficiência do Estado está no corpo alvejado no chão. Assim,
[Segurança, medo pânico moral] mas não basta criar um eles para concluir que
devem ser criminalizados ou eliminados, mas sim que o bode expiatório deve ser
temido, infundir muito medo e, para isso, nada melhor que mostrá-los como
únicos responsáveis por todas nossas inquietudes (Zaffaroni, 2012, p. 308).

As mortes justificadas tutelam o eficientismo penal. Sobre esse ponto, a teoria


goffmaniana dos estigmas sociais ecoa o tema central da precarização da vida nua.
Goffman (1988) aponta a existência de três tipos de estigma, não excludentes. O
primeiro decorre de características físicas desviantes, “chagas” “deformidades físicas”.
Nesse nível, aspectos físicos indeléveis tornam os indivíduos definitivamente indesejáveis,
por consequência, excluídos. O segundo decorre de fatores de ordem psicológica, “culpas
de caráter individual”, nos quais se enquadraram os desempregados, aqueles que
fracassaram. Por fim, o terceiro tipo de estigma está relacionado às questões étnicas,
raciais, de nacionalidade e religião. Nos três níveis de estiga os indivíduos são
descontruídos e perdem seus atributos, passando a serem identificados somente pelos
estigmas que carregam; a marca que a torna distinta dos demais.
A teoria social destaca que a produção de Goffman (1988) vincula o estigma ao
descrédito, ao desmerecimento. Essa discriminação é concretizada quando um sinal
estigmatizante é identificado no sujeito, fazendo deste uma pessoa desacreditada. Em
termos de marginalização da pobreza, a representação dos pobres, do lugar da pobreza e
dos despossuídos atinge níveis de coletividade e são assimiladas como valor.
A análise de Golffman (1988) corrobora a tese de Zaffaroni (2012), explicando
porque determinadas pessoas e grupos sociais vulneráveis são mais facilmente
selecionados pela persecução criminal (criminalização secundária). Assim, se justifica os
mecanismos penais que levam ao massivo encarceramento e ao extermínio.

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Dessa forma, o outrora ideário da Segurança Nacional restaurou-se no propósito


estatal da guerra contra o narcotráfico, justificando-se a isto toda e qualquer exceção. Essa
ideia da guerra contra as drogas ou mesmo contra a criminalidade já denunciada por
Zaffaroni (2012) e Silva (2021) como arcabouço punitivo não pode ser combatida dentro
das regras constitucionalmente existentes. A ideia da guerra é excepcional e apenas um
instrumento igualmente excepcional pode dar sentido à sua própria existência.
O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração,
por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a
eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias
inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao
sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência
permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico)
tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos
chamados democráticos (Agamben, 2015, p.13, grifo nosso).

A transmutação do extraordinário em “lugar-comum” tornou-se a oportunidade


para ceifar vidas lidas como desagradáveis. A partir de uma crise permanente, o Estado se
demostra compelido a deflagra a guerra e, com o fundamento da normatividade, legitimar
extermínios e encarceramento.
Desta maneira, a seletividade penal, pela vulnerabilidade, escolhe aqueles que serão
criminalizados, uma vez que o sistema penal não possui a estrutura e as condições
humanas de investigar e processar todos os crimes que ocorrem na sociedade (Gomes,
2015). A estigmatização, por sua vez, sobreposta ao rótulo penal garante o silêncio, a
invisibilidade e o respaldo para política criminal pautada na morte.
De posse dessas considerações analisa-se as rotulações estigmatizadas apresentadas
pelas fontes jornalísticas sobre a chacina do Guamá de 2019.

3 GUAMÁ COMO TERRITÓRIO DE REPRODUÇÃO DE CHACINAS


Para compreender por que o Guamá é considerado território de reprodução de
chacinas (Couto, 2018) é necessário resgatar os morticínios que antecederam a Chacina do
Guamá, ao passo em que se destacam fatores de estigmatização históricos.

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Figura 1 – Mapa do bairro Guamá

Fonte: Elaborado pelos autores, com base nas informações do IBGE (2010)

De acordo com os últimos dados oficiais disponíveis, o bairro Guamá é o mais


populoso de Belém; possui uma área de 4,1754 km² (IBGE, 2010); população estimada de
102.124 (cento e dois mil e cento e vinte e quatro) habitantes e densidade demográfica
estimada de 417,54 habitantes por Km². A população negra do Guamá, somando pretos
(8, 66%) e pardos (67, 13%), é de 75, 79% (IBGE, 2010).
Depreende-se do mapa, que a passagem Jambu, onde se localizava o bar da Vanda,
local da chacina, corresponde a um trecho de aproximadamente 300m (trezentos metros).
A passagem é estreita, cerca de 4,5 (quatro metros e meio), considerada de difícil acesso
(Portal G1 PA, 2019), que se interliga à rua Caraparú e à passagem Napoleão Laureano,
igualmente estreitas (Google Earth Mapas, 2023).
No que diz respeito a fatores históricos de estigmatização do território, há dois
marcos importantes que merecem destaque: i) o povoamento sob forte segregação social,
em função do abrigo de pessoas com hanseníase no “Hospício dos Lázaros do Tucunduba”

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(Ramos, 2002); e ii) a ocupação das áreas como extensão do bairro de São Braz, onde se
encontravam principalmente migrantes nordestinos que chegavam a Belém, atraídos pela
economia da borracha (Dias Jr., 2009).
De acordo com o relato dos moradores, o nome da passagem se deu em razão do
mato que existia no local antes do saneamento, com predominância da planta Jambu
(Moradora “A”, Comunicação Pessoal, 09 de outubro de 2023 6). Ainda de acordo com os
relatos, nos anos 1980 a passagem foi aterrada com lixo, sendo praticamente impossível
respirar (Moradora “S”, Comunicação Pessoal, 09 de outubro de 2023).
Entre os inúmeros bairros e distritos existentes em Belém, o Guamá assumiu
destaque por ser considerado o bairro mais violento em razão do elevado número de
homicídios, sobretudo se comparado com os demais bairros da Região Metropolitana de
Belém (Chagas, 2014). De acordo com o mesmo autor, no ano de 2014, o bairro apresentou
a maior taxa de homicídio do estado do Pará, enquanto o bairro Jurunas ocupou a segunda
posição. Naquele ano, ocorreu morticínio conhecido como “Chacina do Guamá e
Cremação”, fazendo nove vítimas, dentre elas moradores do bairro Guamá (DOL, 2014).
Em 2017, ocorreu outro morticínio, que se alastrou por toda Belém, com vinte e
nove pessoas mortas e dezenas de feridos, em sua maioria jovens, negros e indígenas, em
diversos bairros, incluindo o bairro Guamá (Silva Junior, 2023).
Ao analisar o fenômeno das chacinas, Oliveira Neto (2020, p. 40) aponta para a
participação de agentes da segurança pública e milicianos na dinâmica dos homicídios no
território, que usualmente envolve vários autores no exercício de diferentes funções (no
transporte, proteção e facilitação da fuga do matador), indicando dinâmicas planejadas por
grupos. Normalmente, os homicídios são dissimulados como resultado de confronto
armado, resultado do serviço policial ordinário e mais raramente descritos como execuções.
Ademais, é opaca a linha que separa a intervenção policial legal do extermínio hediondo,
visto que mesmo intervenções policiais inicialmente legítimas podem findar em
assassinatos. Para o mesmo autor, a visibilidade dos assassinatos tem por lógica espalhar o

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Moradores relataram medo e preferiram não se identificar.

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medo, numa nítida demonstração simbólica de poder, produzindo controle social


pela letalidade.
Desse histórico, restaram as referências estigmatizantes à passagem Jambu, “como a
passagem da chacina”, que apareceram em pelo menos mais duas ocorrências de
assassinatos com mais de uma vítima, após os eventos de 19 de maio de 2019.
Muito embora o bar da Vanda não exista mais, desde a fatídica data da Grande
Chacina, a imprensa segue utilizando a expressão “bar da Vanda” ou passagem ou rua da
chacina como elementos identificadores do local. Em uma reportagem de 2021, que
informa a morte de duas pessoas na passagem Jambu, destaca-se o título: “Dois são
mortos e um ferido no Bar da Wanda [sic] no Guamá”, e continua “local palco [sic] de
execução de 11 pessoas no ano de 2019 que ficou conhecida como Chacina do Guamá”
(DOL, 2021).
Ressalta-se que não existe qualquer ligação entre as mortes de 2021 com as
ocorridas na grande chacina e que o prédio onde existia o bar está ocupado por duas
famílias, que não possuem nenhuma relação com a antiga proprietária, com o bar e nem
com os familiares dela ou de qualquer uma das vítimas.
Depreende-se das passagens comentadas, que o estigma da insegurança e da
violência como um traço característico do bairro Guamá é insofismável, reforçado pelo
histórico de atuação de grupos de extermínios no local (Couto, 2018), como restará
demonstrado da análise de cobertura jornalística da Chacina do Guamá.

4 ANÁLISE DAS REPORTAGENS QUE COBRIRAM A CHACINA DO GUAMÁ


Acessando a rede mundial de computadores, foram levantadas as informações
públicas das reportagens escritas e audiovisuais dos principais grupos de comunicação do
Estado do Pará sobre o evento (Grupo ORM, Grupo DIÁRIO e Record TV).
Foram selecionadas e organizadas conforme o assunto “Chacina do Guamá de
2019”, sob o critério temporal de 19 a 27 de maio de 2019 e de pertinência temática
(estigmatização, culpabilização, criminalização das vítimas). As análises de conteúdo se

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pautam nas contribuições de Bardin (1977), enquanto as análises de discurso seguem as


contribuições de Loureiro (2018).
Quadro 1 – Endereços eletrônicos dos sites da imprensa local
https://www.oliberal.com/
ORM/G1 https://www.youtube.com/channel/UCyTVL1r4WC8MqYOPvi3yAZw
https://g1.globo.com/pa/para/
https://dol.com.br/?d=1
DOL
https://www.youtube.com/@RBATVOFICIAL
https://recordtv.r7.com/recordtv-emissoras/norte/record-tv-belem
RECORD
https://www.youtube.com/@RecordTVBelem

Fonte: Elaborado pelos autores, 2023, com base nos sítios de reportagens acima

Inicia-se a análise pelo grupo de comunicação ORM (Organizações Rômulo


Maiorana) e portal G17, conforme quadro acima. Na reportagem do dia 20 de maio de
2019, intitulada: “IML Identifica Vítimas de Chacina em Belém: polícia investiga relação do
crime com o tráfico” (Portal G1 PA, 2019), destaca-se que as informações são trazidas pela
polícia civil e há a afirmação de que uma das investigações trata de verificar se as vítimas
da chacina tinham envolvimento com o tráfico de drogas:
A Polícia Civil do Pará investiga uma suposta relação entre a chacina
em que 11 pessoas foram mortas dentro de um bar no bairro do
Guamá, em Belém, no último domingo (19), com o tráfico de
drogas. Segundo testemunhas, sete homens chegaram ao local
atirando. O Instituto Médico Legal (IML) todas as vítimas. Uma
pessoa ficou ferida e está sob proteção policial (Portal G1 PA, 2019,
grifo nosso).

A reportagem informa que o crime ocorreu em plena luz do dia, na frente de todos
os frequentadores e moradores da passagem Jambú. A fonte da reportagem é a polícia
civil e frisa a informação de que a polícia investiga a relação das vítimas com o tráfico de
entorpecentes.

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Na plataforma da ORM também é possível a colacionar reportagens no sítio nacional Portal G1, que possui parceria
com o grupo comunicacional.

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Tal como asseverado por Zaffaroni (2012), a primeira linha de investigação visa
demostrar uma compreensão moral de que os vitimados estariam fazendo algo de errado
e por isso foram mortos. Não há nenhuma informação, durante todo o texto, sobre
possíveis suspeitos ou sobre as vítimas assassinadas. De acordo com a reportagem, a
polícia civil investiga a suposta relação com o tráfico, o que é um levantamento inicial.
No dia 22 de maio de 2019, no mesmo grupo de comunicação, veiculou-se a
seguinte reportagem "Se era ponto de venda de drogas, por que não foi fechado?" -
Moradores da passagem Jambu, onde ocorreu a chacina de domingo, questionam versão
de que bar seria fachada para crimes, assinada pelo jornalista Dilson Pimentel. A
reportagem trouxe falas do tenente-coronel da Polícia Militar, Jorge Wilson de Araújo,
então comandante do 20º batalhão da Polícia Militar – com abrangência jurídica no bairro
do Guamá – e um dos primeiros a chegar ao local após a chacina. O policial declarou em
conversa gravada a um repórter do jornal O Liberal:
Este local aqui é um ponto muito conhecido, o Bar da Vanda, como um local para
o consumo de entorpecentes. Inclusive já fizemos vários levantamentos aqui, só
que, se vocês adentrarem [no estabelecimento] vão perceber que há várias rotas
de fuga, e por isso a gente nunca conseguia ter êxito nas prisões. Então, o bar,
realmente é uma fachada e é utilizado para o consumo de drogas.
No corpo das pessoas que vieram a óbito tem droga, inclusive nós tiramos várias
fotos, mas estamos preservando para fins de levantamento junto à Polícia Civil.
Não sei dizer se [há vestígio de drogas] em todos os corpos, até porque a gente
não pode violar o local de crime (Pimentel, 2019).

Mais uma fonte policial sobre o fato é explorada, com a afirmação de que o bar da
Vanda “já era muito conhecido” “como um local para consumo de entorpecentes”.
Observa-se que a conclusão é tirada por um policial militar, no local dos fatos, a poucas
horas da ocorrência, que legalmente não possui a competência para investigar crimes
daquela natureza.
Constata-se que as vítimas foram revistadas, que foram encontrados “pacotes de
drogas em seus bolsos”, podendo o relato ser caracterizado como violação da cena do
crime (Greco, 2013).
Com base em Greco (2013), torna-se questionável o interesse da PMPA em relatar
evidências para fins processuais na cena do crime e “nos bolsos das vítimas”, enquanto a

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Savio Rangel U. Santiago, Andréa Bittencourt P. Chaves, Izabela da S. Jatene e Edson Marcos L. Soares Ramos

Polícia Civil do Pará (PCPA) de forma muito objetiva prezou pela inviolabilidade da cena do
crime. Assim, baseado Goffman (1988), a violação dos corpos compreendida como natural
decorre da aceitação de que aquelas pessoas são desacreditadas, suas histórias de vida
não possuem dignidade.
Na referida reportagem de O Liberal, aparecem pela primeira vez fontes não-
policiais na mídia, questionando a narrativa policial sobre o local. Esse fato forçou a cúpula
da Segurança Pública do Estado do Pará a emitir nota, esclarecendo que o local não era
investigado (Portal G1 PA, 2019).
A disputa de versões da cobertura inicial da chacina trouxe à tona o papel relevante
que exercem os agentes públicos de segurança na divulgação de informações sobre crimes.
Na perspectiva da estigmatização, pelo que apresentaram as duas versões contraditórias,
houve empenho em culpabilizar as vítimas e depois, pela repercussão negativa, empenho
em retificar tal versão incriminadora.
Na chacina do bar da Vanda houve o confronto de narrativas na grande mídia,
especialmente com relação ao lugar em que ocorreu a matança. A quem interessava
afirmar que o local já era investigado, que existiam fatos de relevância penal reduzidos à
termo, páginas numeradas e arquivos tombados por autoridade competente cujo objeto
seria o tráfico de entorpecentes? Perguntas sem respostas, não havendo nada dessas
linhas nos processos que apuram a responsabilidade.
Criminalizar o local do morticínio em “O bar onde ocorreu chacina no Guamá já era
investigado pela polícia” é inferir que a pessoas que ali frequentavam poderiam possuir
relação com atividades ilícitas. Nesse sentido as contribuições de Mbembe (2018)
ressignificam a noção de legitimar as mortes para que seus autores sejam isentos de
qualquer responsabilidade. Coincidentemente, quem deu a informação mais uma vez foi a
PMPA, conforme a reportagem acima, justamente quem não tem competência legal para
investigar crimes dessa natureza e muito menos um estabelecimento civil comercial.
A necropolítica como categoria de análise possibilita a compreensão de que a base
do discurso justificador também é naturalizada no processo de violência, uma vez que visa
estigmatizar o local como perigoso “já investigado”, monitorado, um local de “fechamento
total”, de total descrédito social.

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As matérias sobre a chacina do bar da Vanda, exemplificaram a funcionalidade do


discurso punitivo dando visibilidade à versão oficial (palavra dos policiais), reproduzindo o
discurso de que a matança ocorreu em lugar notoriamente perigoso (Santiago e Chaves,
2022). A chaga indelével terciária do discurso estigmatizante, o lugar perigoso, bairro
inseguro, somada ao segundo nível dos estigmas de Goffman (1974) – que é a ideia de que
as pessoas que sofreram a violência são culpadas por possuírem relação com o crime.
No exemplo acima, a narrativa midiática, forjada pelo discurso da “palavra dos
policiais”, é contraditada pela própria população local, que questionou se era realmente
do conhecimento dos agentes de oficiais de segurança investigar o lugar onde ocorreu a
chacina. Afinal, se era do conhecimento das autoridades, por que não fecharam o lugar?
O questionamento é relevante do ponto de vista complementar da análise da
necropolítica, pois considerando ordenamento jurídico do país, se a polícia já tinha
conhecimento (noticia criminis) de que o local era ponto de venda de drogas e sendo o
tráfico de drogas crime de natureza permanente8, podendo as pessoas serem presas em
flagrante delito a qualquer momento, por que então foram “deixadas para morrer”?
A influência do sistema penal induz a rotulação das pessoas vítimas como viciadas
ou traficantes ou em lugar onde o tráfico é praticado. A dissonância do discurso que
justifica o extermínio, sob o rótulo do traficante de drogas, torna evidente que a versão
oficial propagada pela mídia é um artifício de manutenção de relações de poder e de
exclusão social. Sob o pretexto da guerra às drogas, ativa-se o Estado de exceção que
legitima toda e qualquer violência (Agamben, 2015).
Como dito, a própria instituição da Polícia Militar do Estado do Pará, segundo as
mesmas fontes da mídia local, retificou o posicionamento, alegando que não era do
conhecimento de nenhuma autoridade da área da segurança pública de que o “bar da
Vanda” seria ponto de venda de drogas.

8
Conforme RHC 141.544: O ministro explicou também que o tráfico de drogas é crime permanente, e está em
flagrante quem o pratica em sua residência, ainda que para guarda ou depósito. "Legítima, portanto, a entrada de
policiais para fazer cessar a prática do delito, independentemente de mandado judicial, desde que existam elementos
suficientes de probabilidade delitiva" (STJ Notícias, 2021).

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Para Santiago e Chaves (2022), a expressão “ficha criminal” simbolicamente emerge


como requisito para justificar massacres. Segundo os autores é uma estratégia discursiva
de justificação que revela simbolicamente que existem “vítimas de péssima qualidade”,
como chegou a expressar um Desembargador9.
A preocupação excessiva dos veículos de comunicação de massa com justificativas
de crimes praticados aos montes contra vulneráveis é um dado sobressalente na pesquisa
de Rocha (2013). O autor concluiu que há uma grande tendencia das reportagens se
alinharem ao que informam as suas fontes, ressaltando que a maioria das fontes de
notícias sobre violência e crime são os agentes oficiais de Segurança.
Em tom dramático, o programa televisivo Balanço Geral, do Grupo Record de
Televisão, apresentou uma reportagem especial e dedicada ao morticínio, intitulando o
episódio como o maior já feito em toda a história de Belém: “Cobertura Dramática:
Balanço Geral Mostra a Maior Chacina da História de Belém”.
Segundo a reportagem, a chacina do Guamá teve repercussão nacional e nas
principais plataformas de comunicação mundial. O programa foi ao ar no dia 20 de maio de
2019, teve a duração de 13min 13s e pode ser dividido em três partes: apresentação
prévia, com as primeiras informações da chacina; a segunda parte como o contexto do
bairro do Guamá e entrevista de moradores; por fim, uma terceira parte em que relatos
dos familiares das vítimas são apresentados.
Incialmente, o apresentador ressalta que a situação no estado do Pará é triste, com
“policiais morrendo” e agora “onze pessoas mortas em um bar”. A sequência de eventos,
muito embora sem registros recentes de morte de policias relacionadas à Grande chacina,
pode ter sido um disparate inconsciente do apresentador, ou mesmo uma tentativa de
justificar as mortes. Afinal, na mesma frase se tem a morte de policiais para em seguida
“onze pessoas mortas em um bar”.
Ao entrevistar uma moradora, o repórter pergunta se ela se sente segura no bairro
e obtém como parte da resposta que “é preocupante porque infelizmente a imagem da
periferia é prejudicada, né? Nem todo mundo é assim aqui, muito trabalhador. Então, a

9
“Juiz diz que vítima era de 'má qualidade' e dá HC a réu por homicídio no PR (UOL, 2023).

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gente lamenta pela vida das pessoas e por essa imagem, né, do Guamá”. Em um outro
trecho, o repórter pergunta a uma vendedora como ela ficou sabendo, obtém como parte
da resposta que “isso [a chacina] também prejudica quem trabalha, e que irá já recolher
a venda”.
O processo de estigmatização na visão de Goffman (1988) pressupõe uma visão
interna da própria pessoa estigmatizada e isso é revelado nitidamente quando a moradora
do bairro do Guamá entrevista afirma “a imagem da periferia é prejudicada”.
Baseando-se em Charaudeau (2008), circuito de inferências preexistentes em um
contexto de mensagens entre emissor e receptor pode se revelar potencialmente
simbólico, sobretudo se as respostas foram imediatas, sem reflexão. No trecho em que a
moradora expressa “nem todo mundo é assim”, após dizer que a margem da periferia foi
prejudicada, percebe-se a nítida impressão de que nem todas as pessoas que moram no
bairro são “assim”.
O morticínio ecoa como um fato natural e de forma latente revela dois mundos, o
dos “trabalhadores” e os da vítima (os que são “assim”), e que isso “prejudicou a imagem
da periferia”. Atenta-se para o que Agamben (2015) destaca como uma das características
do “Estado de exceção”, quando qualquer ato gerado contra determinados grupos é aceito
sem qualquer indagação.
No primeiro fragmento acima, depreende-se de que no ato da comunicação da
mensagem “chacina”, a entrevistada imediatamente reportou-se em oposição às vítimas
“nem todos são assim”. O que se entenderia por “nem todos são assim”? Os que
morreram ou os que viveram, ou os que foram deixados para morrer? Na visão de
Zaffaroni (2012), a ideia de que o estigmatizado que sofre a violência e a segregação,
aceitando-a como natural, é subtema que se revela pertinente na presente análise, tendo
em vista a aceitação de dois mundos – “o “Nós e Eles”.
O programa prossegue informando que o medo tomou conta das ruas do bairro e a
“polícia ofereceu segurança”. Em seguida, outro repórter entra em cena, informando
o seguinte:
Quando eu cheguei, Pimenta, para conversar com esses familiares, eles
preferiram não gravar entrevista, mas eles relatam que, pelo menos as pessoas

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Savio Rangel U. Santiago, Andréa Bittencourt P. Chaves, Izabela da S. Jatene e Edson Marcos L. Soares Ramos

que estavam lá, que eram pessoas inocentes, que algumas pessoas que
morreram aí, dentro deste bar, no bairro do Guamá, lá na passagem Jambu,
passagem bambu [Jambu], era (sic) pessoas ali que estavam apenas se divertindo
(Santos, 2019).

Nosso ordenamento jurídico constitucional e penal proíbe que pessoas sejam


assassinadas em qualquer lugar, bares, praças, em casa, enfim. Entretanto, por mais dúbio
que possa parecer as afirmações do repórter, as duas possibilidades são erráticas do ponto
de vista legal. Primeiro, há uma excessiva preocupação no trecho da reportagem em
esclarecer que as vítimas era inocentes, “pelo menos as que estavam lá no bar”, ou pelo
menos os [familiares] que estavam lá [afirmaram] “que as pessoas eram inocentes e
estavam ali apenas se divertindo”. Nas duas perspectivas, o jornalista quer deixar claro,
primeiro, que ele próprio não está afirmando absolutamente nada sobre a inocência das
vítimas. Isso, segundo transmite, foram os familiares; segundo que, ele, jornalista, fez
perguntas para as pessoas sobre a inocência das vítimas, ou os familiares disseram
espontaneamente que as vítimas eram inocentes. Nos dois casos, revela-se que a primeira
preocupação com a notícia é a culpabilidade ou inocência das vítimas.
A reportagem também informa sobre a “impressionante ausência” dos familiares no
Instituto Médico Legal, existindo apenas policiais militares do 24º Batalhão acompanhando
e “dando suporte”.
A reportagem “Chacina deixa 11 pessoas mortas em Belém (PA)”, extraída da
plataforma oficial nacional da Rede Record, inicia com “onze pessoas foram mortas em um
massacre provocado pelo tráfico de drogas no Pará. Acompanhe a reportagem!” (Bacci,
2019). Em seguida, em uma descrição pormenorizada, o repórter de campo informa que as
pessoas estavam no bar, estavam bebendo, curtindo, fazendo música, que tinha um DJ
tocando na hora. Adiante informa que a força nacional, o delegado geral, a polícia militar,
a polícia civil e toda a Segurança Pública estava no local.
Segundo informação que acabamos de pegar com os policias, esse bar tem o
hábito de receber alguns criminosos, é claro que não são todos. Dentro do local, a
polícia, inclusive pode encontrar papelotes de maconha, papelotes de cocaína, o
que leva a crer que os frequentadores do bar, pelo menos alguns, estariam
consumindo essas substancias, consumindo drogas. Pelo menos esses elementos
foram encontrados dentro do estabelecimento comercial. Só que agora a polícia
busca identificar quem são as vítimas, quem são esses onze que foram executados
e o porquê, a motivação desse crime (Pimenta, 2019, grifo nosso).

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Em seguida ao entrevistar um policial militar o repórter pergunta: “é um local que a


polícia costuma, já conhecia esse espaço, esse ambiente”:
A passagem Jambu é conhecida, inclusive o próprio bar, ele não tem licença para
funcionamento, já tínhamos denúncias sobre consumo de drogas; só que sempre
que a polícia vem, os criminosos que estão internamente consumindo. Eles
conseguem se evadir porque têm rotas de fuga no fundo do estabelecimento
(Cel. Araújo, 2019, grifo nosso).

A narrativa exemplificada acima é apenas um dos pontos que o referido coronel da


polícia militar já havia transmitido ao ser entrevistado pelo jornal O Liberal. Mais uma vez,
ao se pronunciar sobre o episódio, o agente da lei frisa que o bar da Vanda era um ponto
conhecido de venda de drogas, que o bar não tinha licença para funcionar e que todos os
que estavam na parte interna são criminosos. Curiosamente, no bar, não existe parte
externa, que já é a rua, então como poderia o agente da lei referir-se a uma parte interna
ou externa do bar? curiosamente os mortos pela chacina do Guamá não eram criminosos e
estavam dentro, na parte interna, do bar, quando foram alvejados.
A parte externa, sim, por qualquer interpretação gramatical, seria os moradores,
transeuntes, sem qualquer ligação com os consumidores do bar. A afirmação do tenente
coronel parece também ecoar na opinião do entrevistador que ressalta logo em seguida:
A gente tá (sic) mostrando aí, coronel, essas imagens que a gente teve acesso
justamente isso, esse primeiro ambiente é um ambiente onde eles foram
surpreendidos esse segundo ambiente que está a parte de cima aberto serve
justamente para eles fugirem, né? Além, digamos assim, esse porão, essa parte
escura que a gente observa na foto maior, mas que já nessa outra foto mostra um
monte de cadeira e mesa, quer dizer, um ambiente realmente preparado para
isso (Bacci, 2019, grifo nosso).

Aspectos físicos do local são considerados como parte de camuflagem (o bar) e


parte interna (porão), parte em que os frequentadores utilizariam como ponto de venda e
uso de entorpecentes. Percebe-se nitidamente a preocupação exclusiva, tanto do
entrevistado quanto do entrevistador em estigmatizar o ambiente relacionando-o às
práticas criminosas. Em nenhum momento da entrevista buscou-se saber quem seria as
vítimas, se trabalham ou se tinham filhos, mãe ou esposa, esposo, companheiro ou

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companheira, e nem mesmo se o crime poderia ter sido cometido por milicianos, ou facção
criminosa, que se sabe existirem.
No segundo seguinte à “um ambiente preparado pra isso”, interpela-se o Coronel
Araújo, que responde:
É um ambiente preparado pro crime, né. Pro consumo de bebida alcoólica, mas
principalmente de entorpecentes e hoje eles foram surpreendidos
possivelmente por uma guerra entre os traficantes, surpreendidos pelo crime e
não conseguiram se evadir pelo fator surpresa (Cel. Araújo, 2019, grifo nosso).

A guerra do tráfico foi apresentada pela polícia militar como a mais provável
hipótese para a grande Chacina do Guamá. Nesse cenário, o oficial entrevistado, explica a
motivação para o morticínio, ressaltando que as ´vítimas estariam praticando crimes. Sobre
isso Zaffaroni (2012) pontua justamente a relação contundente entre o discurso da guerra
às drogas e a letalidade do sistema penal. Para o autor argentino, sob as lentes da
criminologia midiática à guerra às drogas tornou-se um arauto do punitivismo, legitimando
toda e qualquer ação como sendo excepcionalmente necessária.
Com a reprodução de que a guerras contra as drogas gera qualquer tipo de
intervenção violenta suscetível de ser justificada e com a implacável execução de corpos,
Butler (2016) aponta-nos a evidência de que nem mesmos esses cadáveres são dignos de
luto, já que o Estado já tratou de naturalizá-los como estorvo social. Ainda, segundo a
autora, parte da compreensão ontológica de vulnerabilidade como marca do corpo,
postulada como perspectiva política. Nessa perspectiva, a estigmatização primária seria a
própria exclusão social.
Em termos de violência e agressão, o fato de algumas comunidades estarem mais
propensas à violência exige que se coloque a pergunta pelas condições em que certas vidas
são mais vulneráveis e estão mais submetidas à agressão que outras. Na análise ontológica
e nas ações teleológicas da necropolítica enquanto dispositivo de governança para
vulneráveis, há formas de produção de vidas matáveis, que possibilita sustentar “formas
radicalmente diferentes de distribuição da vulnerabilidade física do homem em todo o
planeta” (Butler, 2006, p. 58).

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Na mesma reportagem, o posicionamento de um policial civil é totalmente diferente


do pontuado pelo agente público da polícia militar:

Dr., Diante de tudo isso que a gente tá vendo aqui vendo aqui, o que deu para
vocês já colherem de informação?
Bem, nós estamos nos levantamentos preliminares, né. Todos os nossos setores
da polícia, tanto o DH, quanto todas as diretorias estão envolvidas, ouvindo
pessoas primeiro, para primeira colher as primeiras informações. Não podemos
definir algo concreto, mas a gente tá aqui exatamente fazendo o levantamento
para dar uma resposta rápida (Bacci, 2019, grifo nosso).

A Polícia Civil, que possui a competência legal para investigar crimes dessa natureza
(Lei Complementar nº 22 de 1994), preliminarmente, não afirmou qual seria a motivação
ou autoria do crime, se o estabelecimento tinha ou não alvará de funcionamento, se já
estava sendo investigado e nem mesmo se as pessoas que lá estavam eram ou não
criminosas ou usuárias de drogas ilícitas.
Diante disso, é no mínimo açodado o posicionamento da PMPA, que na pessoa de
apenas um coronel, passadas poucas horas da matança, tenha concluído sobre possíveis
autores, vítimas e motivos do crime, além de afirmar que o local não tinha licença e já
era investigado.
Prossegue a reportagem agora entrevistando um policial civil: “Nas primeiras
informações falaram de carro, presença de uma moto, duas... tem essa confirmação pelo
menos” (Bacci, 2019).
É se fala em moto, mas a gente aí não tem certeza porque não temos a
identificação dos veículos. a oitiva de testemunhas oculares é que vai nos trazer
essas informações, assim como os levantamentos que estão sendo feitos.
A gente tá vendo oito pessoas, onze pessoas mortas aqui no loca, mas sabe no
total de pessoas que estavam dentro desse bar.
também não sabemos, porque a gente acha que teve gente que tava (sic) aí que
conseguiu escapar, e parece que tem alguém que foi localizado para ser ouvido. e
a gente vai só a partir desse momento que ouvirmos pessoas que sobreviveram,
inclusive tem um dos sobreviventes que está hospitalizado, que foi socorrido. a
partir dessa informação de quem estava aí dentro é que teremos uma noção de
quantas pessoas estavam (Bacci, 2019, grifo nosso).

Mais cauteloso que os demais entrevistados, a autoridade policial civil que estava no
local dos fatos evitou fazer conclusões, sem antes passar pela perícia.

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Apenas dois dias depois da entrevista do Cel. Wilson, concedida a diversos veículos
de comunicação, em entrevista coletiva, o Comandante Geral da Polícia Militar, Dilson
Júnior, negou que o local onde ocorrera a Chacina do Guamá, em Belém, fosse conhecido
como ponto de venda de drogas (Portal G1, 2019).
O bar já tinha sido fiscalizado em outras ocasiões, inclusive chegou a ser fechado
por poluição sonora e perturbação do sossego, mas não tínhamos essa
informação de que lá era um ponto de venda de drogas, porque se tivéssemos
teríamos atuado (Portal G1, 2019, grifo nosso).

A contradição das altas patentes da Polícia Militar, que ora culpabilizam as vítimas e
ora recuam, demostra a nuance com que se precipitaram, alguns agentes da segurança
pública, em legitimar o extermínio. Reforça-se que, em se tratando de tráfico de
entorpecentes, bastaria apenas a ciência dos policiais, para uma atuação rápida e eficaz,
pelo estado de flagrância. Assim evitar-se-ia a chacina.
Na mesma reportagem, o Delegado Geral da Polícia Civil, afirmou que não
divulgariam nenhuma linha de investigação para não comprometer o andamento do que
estava sendo apurado (Portal G1, 2019).

5 CONCLUSÃO: A PALAVRA DOS MORTOS, A PALAVRA DOS POLICIAIS


O estudo teve o escopo de analisar o processo de estigmatização sofrido pelas
vítimas da chacina do Guamá ocorrida em 2019 a partir da cobertura inicial midiática sobre
o morticínio.
Por implicação contextual a análise estendeu-se para questões já apontadas pela
literatura, conforme Santiago (2021), acerca das funções da criminologia midiática que
estigmatiza pessoas, lugares e moradores, o que também foi expresso por Santiago e
Chaves (2022).
Essa tendência pode ser observada em todas as coberturas trazidas à tona, neste
trabalho, tendo em vista que a dinâmica das reportagens trouxe elementos sobre o bairro,
a passagem Jambu, moradores e o bar da Vanda.
Diante desses contornos, a metodologia ajustou-se à realidade e abarcou,
necessariamente, a fala de moradores, autoridades, familiares (mediadas pelos

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entrevistadores), e também dos próprios entrevistadores que não se limitaram em expor


suas opiniões pessoais, pressuposições, sobretudo nas reportagens da Record TV.
Sobre isso, o presente estudo também se alinhou ao que Rocha (2013), concluiu
acerca das primeiras fontes jornalísticas sobre homicídios e crimes violentos serem os
agentes oficiais de Segurança. De fato, isso ocorreu na cobertura midiática da chacina do
Guamá de 2019, notadamente nas primeiras informações. Isso ocorre, segundo o autor,
pois existe uma tradição de fidedignidade na relação do jornalismo que cobre esse tipo de
notícia e as fontes policiais, que geralmente chegam primeiro. ao local dos fatos e são
responsáveis por conduzir as investigações.
Das três plataformas escritas e audiovisuais estudadas, todas apresentaram agentes
da segurança pública como fonte principal das informações. Apenas a Record TV
entrevistou moradores do bairro, o que também serviu de base para a análise do processo
de estigmatização, uma vez que se constatou que os próprios moradores se referiram às
vítimas como sendo pessoas diferentes deles.
Na Grande Chacina do Guamá de 2019 se constatou que, dentre as fontes policiais
informantes, a polícia militar ganhou maior destaque e espaço nas entrevistas concedidas
para informar sobre o massacre, com direito, inclusive, a versões díspares e antagônicas.
Anotou-se conclusivamente, no sentido das considerações de Zaffaroni (2012), que a
mídia explora o crime de tráfico de drogas como fato associado ao mundo das chacinas,
incluído o bairro. De acordo com o autor, essa exploração ocorre de forma proposital,
tendo em vista que a criminologia midiática possui um método para aceitação de suas
representações públicas das vítimas de extermínio, que é a divisão maniqueísta do mundo
entre “nós e eles”.
Ao se conjugar a ideia defendida por Agamben (2015) às teses defendidas por
Zaffaroni (2012), sob o prisma do conceito de criminologia midiática, compreendeu-se mais
claramente que a morte é um fenômeno inerente ao controle social, pois é parte de uma
política criminal fundada na ideia da guerra contra as drogas.
No mesmo sentido, é possível aproximar conclusivamente que a concepção de
Zaffaroni (2012) é complementada por Agamben (2015), que ao reformular o conceito de

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Estado de Exceção, adicionou à análise dos extermínios um elemento político capaz de


instrumentalizar a aceitação dos massacres.
Com o auxílio da categoria necropolítica o fenômeno da estigmatização, sobretudo
nos tipos dois e três, foram compreendidos além do poder de decisão de quem morre ou
de quem é deixado para morrer a partir da naturalização das mortes, no sentido as vítimas
eram indignas e carregavam culpas. Do mesmo modo, o lugar, a passagem Jambu,
conhecida por ser perigosa e abrigar usuário de drogas.
Dessa forma, com relação à estigmatização, constatou-se apenas os tipos ou níveis
dois e três nas reportagens analisadas. Ao considerarmos, para efeitos práticos, que a
questão da “ficha criminal” recai sobre a forte conotação de culpa individual das vítimas,
aqueles que “prejudicaram a imagem da periferia” ou, “nem todos são assim”. “A morte
deles por culpa deles mesmos” (Zaffaroni, 2012, p. 12). Nesse cenário, houve uma
preocupação excessiva pelo histórico das vítimas, que foram prejulgadas tanto pelos
informantes policiais, entrevistador e também por moradores entrevistados.
Relativamente ao nível três da estigmatização, que trata de questões raciais, etnias e
históricos culturais, verificou-se que a forte conotação depreciativa com relação ao bairro
(perigoso, inseguro), o lugar onde o bar funcionava (passagem Jambu – já conhecida pelo
crime), e o próprio bar (ambiente para a prática do crime de tráfico de drogas). O nível três
foi identificado em quase todas as reportagens analisadas.
As versões apresentas pela PMPA, que no dia do massacre afirmou que as vítimas
eram criminosas e que o lugar era investigado por ser ponto de venda de drogas, por meio
de um comandante distrital; e que dois dias depois, por meio do Comandante Geral, em
entrevista coletiva, a afirmação foi exatamente contrária, que o lugar não era conhecido
como ponto de venda de entorpecentes e que nem era investigado e que ainda estava
regular para o funcionamento, foi a principal contradição coligidas nas análises e dão a
entender que existiam setores dentro do sistema de Segurança Pública em apressar as
investigações, sugerindo a guerra de facções como vertente a ser encampada.
Verificou-se que a legitimidade da palavra dos policiais vale mais do que a dos
mortos e isso vai ao encontro do monopólio exercido por esses profissionais no uso da
força e na garantia da ordem, exclusividade essa debatida por Weber (1973). Com teor

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oficial, as reportagens visaram entender e justificar o extermínio com base na fala dos
agentes de segurança pública, conforme já explicitado por Rocha (2013). Não obstante, na
Grande chacina do Guamá, os entrevistadores avançaram para o alinhamento da fala dos
policiais, interpretando o episódio como sendo uma resposta à criminalidade do local.
Durante grande parte das entrevistas em nenhum momento problematizou-se a
precariedade das vidas que se perderam, trabalhadores do bar que morreram em serviço,
as seis mulheres mortas e nem mesmo procurou-se saber de onde eram as vítimas, se
todas do bairro ou da passagem Jambu. Pelo contrário, reforçou-se o excessivo teor de
culpabilização delas pelo massacre.
Sobre esse ponto Butler (2006) possibilitou compreender a relação existente entre a
precariedade das vidas suscetíveis da violência estatal sem responsabilização, permitindo
antever que a ideia da morte é um potencial discurso agregado às justificativas “questões
de Estado (Silva, 2021).
A guerra às drogas foi um dos principais temas das entrevistas, sendo relacionada na
maioria das vezes pelos entrevistados policiais e nos títulos das reportagens.
No mais, é possível levantar a hipótese de que a crescente atuação de grupos
milicianos na capital paraense, muitos dos quais formados por policiais ou ex-policiais
(Alepa, 2015), tende a tornar ainda mais difícil o presente campo de análise, em torno da
estigmatização de territórios, uma vez que os moradores podem se sentir ainda mais
inseguros para expressar suas versões acerca de eventos violentos perpetrados por
esses atores.

■■■

REFERÊNCIAS

ALEPA. Assembleia Legislativa do Pará. Relatório final da CPI das milícias. Belém, 2015.
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção: [Homo Sacer II, I]. São Paulo: Boitempo, 2015.
ARAÚJO, Luiz Victor Almeida de. Milicias e grupos de extermínio: análise dos homicídios
no município de Belém, Pará, Brasil. 2022. Dissertação (Mestrado em Segurança Pública) –
Universidade Federal do Pará, Belém, 2022.

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Savio Rangel U. Santiago, Andréa Bittencourt P. Chaves, Izabela da S. Jatene e Edson Marcos L. Soares Ramos

BACCI, L. C. Rede Record. Cidade Alerta: vídeos. 2019. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=IY45HZGeSKQ. Acesso em: 13 jun. 2023.
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Recebido em: 21/10/2023


Aprovado em: 25/04/2024

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