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ISSN 2359-5582
ESTIGMATIZAÇÃO DAS VÍTIMAS
DA GRANDE CHACINA DO
GUAMÁ: UMA ANÁLISE DAS Savio Rangel U. Santiago1
Andréa Bittencourt P. Chaves2
NARRATIVAS MIDIÁTICAS Izabela da Silva Jatene 3
Edson Marcos L. Soares Ramos4
RESUMO: O texto em tela buscou compreender as ABSTRACT: The text sought to understand journalistic
referências jornalísticas sobre as vítimas da Grande Chacina references to the victims of the Grande Chacina do
do Guamá, ocorrida em 2019 na cidade de Belém do Pará. Guamá, which occurred in 2019 in the city of Belém do
Para tanto, buscou-se analisar os discursos justificantes Pará. To do so, it analyzed justificatory discourses
elaborados sobre o referido morticínio, veiculados nos sítios elaborated about the aforementioned massacre, as
eletrônicos dos principais meios de comunicação. Os conveyed in the electronic sites of the main media outlets.
conceitos de estigma e de criminologia midiática são os The central contributions to the approach are the
aportes centrais da abordagem. A metodologia empregada concepts of stigma and media criminology. The
abarcou o levantamento bibliográfico e documental, com methodology employed encompassed bibliographical and
base na análise de conteúdo Bardin (1977) e de discurso de documentary research, based on Bardin's content analysis
Loureiro (2018), com ênfase nas reportagens das (1977) and Loureiro's discourse analysis (2018), with an
justificativas do massacre como persistência temática. Os emphasis on the reports justifying the massacre as a
resultados apontaram que, muito além dos onze corpos persistent theme. The results indicated that, far beyond
exterminados, as reportagens da Grande Chacina do Guamá the eleven exterminated bodies, the reports of the
visaram estabelecer a culpabilização das próprias vítimas do Grande Chacina do Guamá aimed to establish the
massacre e as mortes como produto inevitável da “guerra culpabilization of the massacre's own victims and the
contra as drogas”. Demonstrou-se também como o sistema deaths as an inevitable product of the "war on drugs." It
criminal de justiça opera na legitimação e justificação das was also demonstrated how the criminal justice system
mortes, reforçando o eficientismo penal. Os resultados operates in legitimizing and justifying deaths, reinforcing
demonstraram o papel preponderante dos agentes do penal efficiency. The results demonstrated the
Estado como fontes da mídia na cobertura de fatos violentos, preponderant role of state agents as media sources in
ao passo que as justificativas das mortes reforçaram a covering violent events, while the justifications for the
estigmatização em um bairro historicamente segregado. deaths reinforced stigmatization in a historically
segregated neighborhood.
1
Mestrando em Segurança Pública na Universidade Federal do Pará (UFPA). Bacharel em Direito e em Psicologia pela
Universidade Federal do Pará.
2
Doutora em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido pela Universidade Federal do Pará. Mestra em
Sociologia Geral e em Serviço Social pela Universidade Federal do Pará. Bacharela em Ciências Sociais pela União das
Escolas Superiores do Pará. Professora Titular da Universidade Federal do Pará.
3
Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). Mestre em Antropologia e Graduada em
Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará. Professora do Programa de Pós-Graduação em Segurança Pública
(PPGSP/UFPA). Diretora da Faculdade de Ciências Sociais (FACS/UFPA).
4
Doutor em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Estatística pela
Universidade Federal de Pernambuco. Bacharel em Estatística pela Universidade Federal do Pará. Professor Titular da
Universidade Federal do Pará. Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
44
Savio Rangel U. Santiago, Andréa Bittencourt P. Chaves, Izabela da S. Jatene e Edson Marcos L. Soares Ramos
■■■
1 INTRODUÇÃO
Doze vítimas diretas, onze mortes, apenas um minuto (Cavalcante, 2019). Com isso,
a chacina do Guamá de 2019, ocorrida no conhecido bar da Vanda, no bairro mais
populoso da região norte (IBGE, 2010)5, tornou-se o maior massacre em apenas um lugar
na capital paraense (Portal G1 PA, 2019; Record, 2019). Por esse motivo, o mencionado
morticínio será chamado de “A Grande Chacina do Guamá”, sendo esse caso, portanto, o
foco das análises sobre o fenômeno da estigmatização das vítimas.
Ainda não existem estudos sobre a grande Chacina do Guamá. No geral, os estudos
apontam, de forma panorâmica, o cenário violento da capital paraense e a atuação de
grupos milicianos e de extermínio em bairros como Guamá e Terra Firme (Araújo, 2022).
Duarte (2022), por sua vez, adentra no cenário estatístico dos crimes de homicídios
ocorridos em Belém, entre 2018 e 2020, tendo o Guamá com maior ocorrência de
homicídios e indicando que a política nacional antidrogas produz a morte de indesejáveis.
Indo além, as informações coletadas sobre o morticínio em análise concentram-se
em fontes documentais – processos judiciais e dados em texto e áudio visuais –
disponibilizados em sítios eletrônicos dos principais meios de comunicação em massa.
O texto está ancorado no referencial teórico do estigma como trabalhado por
Goffman (1988), associado a contribuições mais recentes da criminologia crítica – Zaffaroni
(2012), Baratta (2001), Batista (2011), Morais (2016) e Gomes (2015). A metodologia
abarca a revisão bibliográfica narrativa sobre o tema das chacinas e dos processos de
criminalização, conjugando-se aos aportes teóricos da análise de conteúdo (Bardi, 1977) e
de discurso (Loureiro, 2018) no que se refere às reportagens que cobriram a grande
chacina do Guamá. Ademais, foram feitas também entrevistas não estruturadas com
moradores da passagem Jambu em 2023.
5
O estudo ateve-se ao Censo IBGE de 2010 por serem estes os únicos dados oficiais divulgados até a coleta de dados.
O Censo de 2022 ainda não disponibilizou dados mais atuais.
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2 PROCESSOS DE CRIMINALIZAÇÃO
As chacinas se relacionam com os processos de criminalização, sobretudo no que diz
respeito ao fenômeno da seletividade penal, que atua sob o viés da vulnerabilidade social,
criminalizando indivíduos pobres e marginalizados historicamente (Zaffaroni, 2012). Não
obstante, esse fenômeno excludente e violento das persecuções criminais repercute
também nas condutas violadoras de determinados agentes estatais, que atuam à margem
do sistema repressor, cometendo sistemáticas violações a esses mesmos grupos
seletivamente criminalizados.
Ao conjunto de violações perpetradas por esses agentes, Zaffaroni (2012) definiu
como sendo o Sistema Penal Subterrâneo. Com efeito, as torturas, violações de direitos
humanos e extermínios, quando operados por forças estatais e que por essa razão deixam
de ser devidamente apurados ou denunciados, são também manifestações do sistema
penal. As chacinas se relacionam com os processos de criminalização, sendo resultado de
relações assimétricas de poder.
Definidos em duas fases distintas e complementares, uma primária e outra
secundária, os processos de criminalização ocorrem o tempo todo. Para Gomes (2015), a
criminalização é o resultado concatenado de complexas definições e seleções de condutas
e de indivíduos. Nesse ponto, com a eleição de condutas tipificadas no código penal, as
agências estatais não estariam preocupadas em investigar fatos, mas sim pessoas,
principalmente, aquelas mais vulneráveis ao sistema penal (Gomes, 2015). O status de
criminoso, portanto, é o que há de maior relevância na atuação repressiva estatal, sem o
qual afunda-se a própria eficácia do Estado em resolver os problemas de Segurança
Pública. Para Gomes (2015), muito embora exista a previsão legal e as prerrogativas que
impõem aos agentes públicos do sistema criminal de justiça à persecução penal em estrita
observância à sistemática legal, as agências estatais atuam de maneira seletiva, refletindo
a segregação e exclusão social do sistema capitalista.
Assim, a criminalização primária corresponde à fase legislativa em que há a criação
dos tipos penais, enquanto a criminalização secundária corresponde à atuação concreta e
seletiva das instituições da Segurança Pública e da Justiça. Partindo dessas premissas,
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Zaffaroni (2012) explica que os mortos produzidos pelo sistema criminal de justiça são
produtos da violenta política criminal instrumentalizada, principalmente, pela ideia de que
o extermínio físico de criminosos do mundo das drogas é o que garante o efetivo controle
social a ser exercício pela polícia em “zonas de guerra”, que, na verdade, são espaços
territoriais da periferia, segregados historicamente (Silva, 2021, p. 265).
No caso da periferia de Belém, Couto (2018) revela a existência de redes de poder
controladas por organizações criminosas, tanto do narcotráfico como de milicianos,
pressupondo a territorialização no âmbito da precarização urbana e dos “aglomerados
urbanos de exclusão” (Silva, 2021). A apropriação por grupos de traficantes e/ou milicianos
de territórios nessas ditas “zonas de guerra” constitui-se, em última análise, a tecnologia
de vigilância e de controle a partir do qual se estabelecem formas violentas
de enfrentamento.
Deluchey (2019), ao analisar a ocorrência de chacinas no Estado do Pará aponta para
a consolidação e ampliação de mercados ilícitos e de redes criminosas locais. Para o autor,
as chacinas possuem duas funções: aumentar o poderio de grupos armados nas periferias
frente a conivência do Estado e enviar mensagens à população local definindo quem
controla o território.
Com feito, a expansiva e seletiva atuação das agências de controle social, com
massiva instrumentalização da persecução criminal a partir de indivíduos marginalizados e
igualmente considerados perigosos, se constata na periferia como o espaço contínuo de
vigilância, de controle e de dominação. Nesse cenário, as chacinas constituem ações de
necropolítica (Mbembe, 2018), refletindo o silêncio da sociedade civil e a omissão estatal.
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forma extrema possui dois contornos: uma via democrática (argumento de legitimidade) e
uma via totalitária (servindo aos interesses antidemocráticos).
Agamben (2015) assimila a existência de forte tensão simultânea na política e no
direito, em sua relação com a vida humana. De tal forma que o dispositivo excepcional do
agir extremo do Estado, com o objetivo de impor a sua soberania diante de ameaças
igualmente extremas, torna-se uma arma arbitrária nas mãos de um paradigma etiológico,
por exemplo.
A ideia central está no fato do Estado dispor de um dispositivo de uso extremo da
violência, desde que fortemente amparado por razões de Estado, igualmente extremadas.
Zaffaroni (2012) aponta que a divisão entre cidadão e não cidadão, que autoriza a violência
extrema sobre o segundo, na América Latina está ancorada no paradigma da guerra às
drogas. Para o criminalista argentino, essa guerra explicaria os motivos de tantos corpos
empilhados pelo sistema criminal.
Os mortos são um produto natural a violência deles. A criminologia midiática
naturaliza essas mortes, pois todos os efeitos letais do sistema penal são para ela
um produto natural (inevitável) na violência própria deles, chegando ao
encobrimento máximo nos casos de execuções sem processo disfarçadas de
mortes em enfrentamentos, apresentadas como episódios da guerra contra o
crime, em que se mostra o cadáver do fuzilado como sinal de eficiência
preventiva, como o soldado inimigo morto na guerra (Zaffaroni, 2012, p. 311,
grifo nosso).
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Fonte: Elaborado pelos autores, com base nas informações do IBGE (2010)
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(Ramos, 2002); e ii) a ocupação das áreas como extensão do bairro de São Braz, onde se
encontravam principalmente migrantes nordestinos que chegavam a Belém, atraídos pela
economia da borracha (Dias Jr., 2009).
De acordo com o relato dos moradores, o nome da passagem se deu em razão do
mato que existia no local antes do saneamento, com predominância da planta Jambu
(Moradora “A”, Comunicação Pessoal, 09 de outubro de 2023 6). Ainda de acordo com os
relatos, nos anos 1980 a passagem foi aterrada com lixo, sendo praticamente impossível
respirar (Moradora “S”, Comunicação Pessoal, 09 de outubro de 2023).
Entre os inúmeros bairros e distritos existentes em Belém, o Guamá assumiu
destaque por ser considerado o bairro mais violento em razão do elevado número de
homicídios, sobretudo se comparado com os demais bairros da Região Metropolitana de
Belém (Chagas, 2014). De acordo com o mesmo autor, no ano de 2014, o bairro apresentou
a maior taxa de homicídio do estado do Pará, enquanto o bairro Jurunas ocupou a segunda
posição. Naquele ano, ocorreu morticínio conhecido como “Chacina do Guamá e
Cremação”, fazendo nove vítimas, dentre elas moradores do bairro Guamá (DOL, 2014).
Em 2017, ocorreu outro morticínio, que se alastrou por toda Belém, com vinte e
nove pessoas mortas e dezenas de feridos, em sua maioria jovens, negros e indígenas, em
diversos bairros, incluindo o bairro Guamá (Silva Junior, 2023).
Ao analisar o fenômeno das chacinas, Oliveira Neto (2020, p. 40) aponta para a
participação de agentes da segurança pública e milicianos na dinâmica dos homicídios no
território, que usualmente envolve vários autores no exercício de diferentes funções (no
transporte, proteção e facilitação da fuga do matador), indicando dinâmicas planejadas por
grupos. Normalmente, os homicídios são dissimulados como resultado de confronto
armado, resultado do serviço policial ordinário e mais raramente descritos como execuções.
Ademais, é opaca a linha que separa a intervenção policial legal do extermínio hediondo,
visto que mesmo intervenções policiais inicialmente legítimas podem findar em
assassinatos. Para o mesmo autor, a visibilidade dos assassinatos tem por lógica espalhar o
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Moradores relataram medo e preferiram não se identificar.
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Fonte: Elaborado pelos autores, 2023, com base nos sítios de reportagens acima
A reportagem informa que o crime ocorreu em plena luz do dia, na frente de todos
os frequentadores e moradores da passagem Jambú. A fonte da reportagem é a polícia
civil e frisa a informação de que a polícia investiga a relação das vítimas com o tráfico de
entorpecentes.
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Na plataforma da ORM também é possível a colacionar reportagens no sítio nacional Portal G1, que possui parceria
com o grupo comunicacional.
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Tal como asseverado por Zaffaroni (2012), a primeira linha de investigação visa
demostrar uma compreensão moral de que os vitimados estariam fazendo algo de errado
e por isso foram mortos. Não há nenhuma informação, durante todo o texto, sobre
possíveis suspeitos ou sobre as vítimas assassinadas. De acordo com a reportagem, a
polícia civil investiga a suposta relação com o tráfico, o que é um levantamento inicial.
No dia 22 de maio de 2019, no mesmo grupo de comunicação, veiculou-se a
seguinte reportagem "Se era ponto de venda de drogas, por que não foi fechado?" -
Moradores da passagem Jambu, onde ocorreu a chacina de domingo, questionam versão
de que bar seria fachada para crimes, assinada pelo jornalista Dilson Pimentel. A
reportagem trouxe falas do tenente-coronel da Polícia Militar, Jorge Wilson de Araújo,
então comandante do 20º batalhão da Polícia Militar – com abrangência jurídica no bairro
do Guamá – e um dos primeiros a chegar ao local após a chacina. O policial declarou em
conversa gravada a um repórter do jornal O Liberal:
Este local aqui é um ponto muito conhecido, o Bar da Vanda, como um local para
o consumo de entorpecentes. Inclusive já fizemos vários levantamentos aqui, só
que, se vocês adentrarem [no estabelecimento] vão perceber que há várias rotas
de fuga, e por isso a gente nunca conseguia ter êxito nas prisões. Então, o bar,
realmente é uma fachada e é utilizado para o consumo de drogas.
No corpo das pessoas que vieram a óbito tem droga, inclusive nós tiramos várias
fotos, mas estamos preservando para fins de levantamento junto à Polícia Civil.
Não sei dizer se [há vestígio de drogas] em todos os corpos, até porque a gente
não pode violar o local de crime (Pimentel, 2019).
Mais uma fonte policial sobre o fato é explorada, com a afirmação de que o bar da
Vanda “já era muito conhecido” “como um local para consumo de entorpecentes”.
Observa-se que a conclusão é tirada por um policial militar, no local dos fatos, a poucas
horas da ocorrência, que legalmente não possui a competência para investigar crimes
daquela natureza.
Constata-se que as vítimas foram revistadas, que foram encontrados “pacotes de
drogas em seus bolsos”, podendo o relato ser caracterizado como violação da cena do
crime (Greco, 2013).
Com base em Greco (2013), torna-se questionável o interesse da PMPA em relatar
evidências para fins processuais na cena do crime e “nos bolsos das vítimas”, enquanto a
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Polícia Civil do Pará (PCPA) de forma muito objetiva prezou pela inviolabilidade da cena do
crime. Assim, baseado Goffman (1988), a violação dos corpos compreendida como natural
decorre da aceitação de que aquelas pessoas são desacreditadas, suas histórias de vida
não possuem dignidade.
Na referida reportagem de O Liberal, aparecem pela primeira vez fontes não-
policiais na mídia, questionando a narrativa policial sobre o local. Esse fato forçou a cúpula
da Segurança Pública do Estado do Pará a emitir nota, esclarecendo que o local não era
investigado (Portal G1 PA, 2019).
A disputa de versões da cobertura inicial da chacina trouxe à tona o papel relevante
que exercem os agentes públicos de segurança na divulgação de informações sobre crimes.
Na perspectiva da estigmatização, pelo que apresentaram as duas versões contraditórias,
houve empenho em culpabilizar as vítimas e depois, pela repercussão negativa, empenho
em retificar tal versão incriminadora.
Na chacina do bar da Vanda houve o confronto de narrativas na grande mídia,
especialmente com relação ao lugar em que ocorreu a matança. A quem interessava
afirmar que o local já era investigado, que existiam fatos de relevância penal reduzidos à
termo, páginas numeradas e arquivos tombados por autoridade competente cujo objeto
seria o tráfico de entorpecentes? Perguntas sem respostas, não havendo nada dessas
linhas nos processos que apuram a responsabilidade.
Criminalizar o local do morticínio em “O bar onde ocorreu chacina no Guamá já era
investigado pela polícia” é inferir que a pessoas que ali frequentavam poderiam possuir
relação com atividades ilícitas. Nesse sentido as contribuições de Mbembe (2018)
ressignificam a noção de legitimar as mortes para que seus autores sejam isentos de
qualquer responsabilidade. Coincidentemente, quem deu a informação mais uma vez foi a
PMPA, conforme a reportagem acima, justamente quem não tem competência legal para
investigar crimes dessa natureza e muito menos um estabelecimento civil comercial.
A necropolítica como categoria de análise possibilita a compreensão de que a base
do discurso justificador também é naturalizada no processo de violência, uma vez que visa
estigmatizar o local como perigoso “já investigado”, monitorado, um local de “fechamento
total”, de total descrédito social.
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Conforme RHC 141.544: O ministro explicou também que o tráfico de drogas é crime permanente, e está em
flagrante quem o pratica em sua residência, ainda que para guarda ou depósito. "Legítima, portanto, a entrada de
policiais para fazer cessar a prática do delito, independentemente de mandado judicial, desde que existam elementos
suficientes de probabilidade delitiva" (STJ Notícias, 2021).
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“Juiz diz que vítima era de 'má qualidade' e dá HC a réu por homicídio no PR (UOL, 2023).
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gente lamenta pela vida das pessoas e por essa imagem, né, do Guamá”. Em um outro
trecho, o repórter pergunta a uma vendedora como ela ficou sabendo, obtém como parte
da resposta que “isso [a chacina] também prejudica quem trabalha, e que irá já recolher
a venda”.
O processo de estigmatização na visão de Goffman (1988) pressupõe uma visão
interna da própria pessoa estigmatizada e isso é revelado nitidamente quando a moradora
do bairro do Guamá entrevista afirma “a imagem da periferia é prejudicada”.
Baseando-se em Charaudeau (2008), circuito de inferências preexistentes em um
contexto de mensagens entre emissor e receptor pode se revelar potencialmente
simbólico, sobretudo se as respostas foram imediatas, sem reflexão. No trecho em que a
moradora expressa “nem todo mundo é assim”, após dizer que a margem da periferia foi
prejudicada, percebe-se a nítida impressão de que nem todas as pessoas que moram no
bairro são “assim”.
O morticínio ecoa como um fato natural e de forma latente revela dois mundos, o
dos “trabalhadores” e os da vítima (os que são “assim”), e que isso “prejudicou a imagem
da periferia”. Atenta-se para o que Agamben (2015) destaca como uma das características
do “Estado de exceção”, quando qualquer ato gerado contra determinados grupos é aceito
sem qualquer indagação.
No primeiro fragmento acima, depreende-se de que no ato da comunicação da
mensagem “chacina”, a entrevistada imediatamente reportou-se em oposição às vítimas
“nem todos são assim”. O que se entenderia por “nem todos são assim”? Os que
morreram ou os que viveram, ou os que foram deixados para morrer? Na visão de
Zaffaroni (2012), a ideia de que o estigmatizado que sofre a violência e a segregação,
aceitando-a como natural, é subtema que se revela pertinente na presente análise, tendo
em vista a aceitação de dois mundos – “o “Nós e Eles”.
O programa prossegue informando que o medo tomou conta das ruas do bairro e a
“polícia ofereceu segurança”. Em seguida, outro repórter entra em cena, informando
o seguinte:
Quando eu cheguei, Pimenta, para conversar com esses familiares, eles
preferiram não gravar entrevista, mas eles relatam que, pelo menos as pessoas
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que estavam lá, que eram pessoas inocentes, que algumas pessoas que
morreram aí, dentro deste bar, no bairro do Guamá, lá na passagem Jambu,
passagem bambu [Jambu], era (sic) pessoas ali que estavam apenas se divertindo
(Santos, 2019).
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companheira, e nem mesmo se o crime poderia ter sido cometido por milicianos, ou facção
criminosa, que se sabe existirem.
No segundo seguinte à “um ambiente preparado pra isso”, interpela-se o Coronel
Araújo, que responde:
É um ambiente preparado pro crime, né. Pro consumo de bebida alcoólica, mas
principalmente de entorpecentes e hoje eles foram surpreendidos
possivelmente por uma guerra entre os traficantes, surpreendidos pelo crime e
não conseguiram se evadir pelo fator surpresa (Cel. Araújo, 2019, grifo nosso).
A guerra do tráfico foi apresentada pela polícia militar como a mais provável
hipótese para a grande Chacina do Guamá. Nesse cenário, o oficial entrevistado, explica a
motivação para o morticínio, ressaltando que as ´vítimas estariam praticando crimes. Sobre
isso Zaffaroni (2012) pontua justamente a relação contundente entre o discurso da guerra
às drogas e a letalidade do sistema penal. Para o autor argentino, sob as lentes da
criminologia midiática à guerra às drogas tornou-se um arauto do punitivismo, legitimando
toda e qualquer ação como sendo excepcionalmente necessária.
Com a reprodução de que a guerras contra as drogas gera qualquer tipo de
intervenção violenta suscetível de ser justificada e com a implacável execução de corpos,
Butler (2016) aponta-nos a evidência de que nem mesmos esses cadáveres são dignos de
luto, já que o Estado já tratou de naturalizá-los como estorvo social. Ainda, segundo a
autora, parte da compreensão ontológica de vulnerabilidade como marca do corpo,
postulada como perspectiva política. Nessa perspectiva, a estigmatização primária seria a
própria exclusão social.
Em termos de violência e agressão, o fato de algumas comunidades estarem mais
propensas à violência exige que se coloque a pergunta pelas condições em que certas vidas
são mais vulneráveis e estão mais submetidas à agressão que outras. Na análise ontológica
e nas ações teleológicas da necropolítica enquanto dispositivo de governança para
vulneráveis, há formas de produção de vidas matáveis, que possibilita sustentar “formas
radicalmente diferentes de distribuição da vulnerabilidade física do homem em todo o
planeta” (Butler, 2006, p. 58).
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Dr., Diante de tudo isso que a gente tá vendo aqui vendo aqui, o que deu para
vocês já colherem de informação?
Bem, nós estamos nos levantamentos preliminares, né. Todos os nossos setores
da polícia, tanto o DH, quanto todas as diretorias estão envolvidas, ouvindo
pessoas primeiro, para primeira colher as primeiras informações. Não podemos
definir algo concreto, mas a gente tá aqui exatamente fazendo o levantamento
para dar uma resposta rápida (Bacci, 2019, grifo nosso).
A Polícia Civil, que possui a competência legal para investigar crimes dessa natureza
(Lei Complementar nº 22 de 1994), preliminarmente, não afirmou qual seria a motivação
ou autoria do crime, se o estabelecimento tinha ou não alvará de funcionamento, se já
estava sendo investigado e nem mesmo se as pessoas que lá estavam eram ou não
criminosas ou usuárias de drogas ilícitas.
Diante disso, é no mínimo açodado o posicionamento da PMPA, que na pessoa de
apenas um coronel, passadas poucas horas da matança, tenha concluído sobre possíveis
autores, vítimas e motivos do crime, além de afirmar que o local não tinha licença e já
era investigado.
Prossegue a reportagem agora entrevistando um policial civil: “Nas primeiras
informações falaram de carro, presença de uma moto, duas... tem essa confirmação pelo
menos” (Bacci, 2019).
É se fala em moto, mas a gente aí não tem certeza porque não temos a
identificação dos veículos. a oitiva de testemunhas oculares é que vai nos trazer
essas informações, assim como os levantamentos que estão sendo feitos.
A gente tá vendo oito pessoas, onze pessoas mortas aqui no loca, mas sabe no
total de pessoas que estavam dentro desse bar.
também não sabemos, porque a gente acha que teve gente que tava (sic) aí que
conseguiu escapar, e parece que tem alguém que foi localizado para ser ouvido. e
a gente vai só a partir desse momento que ouvirmos pessoas que sobreviveram,
inclusive tem um dos sobreviventes que está hospitalizado, que foi socorrido. a
partir dessa informação de quem estava aí dentro é que teremos uma noção de
quantas pessoas estavam (Bacci, 2019, grifo nosso).
Mais cauteloso que os demais entrevistados, a autoridade policial civil que estava no
local dos fatos evitou fazer conclusões, sem antes passar pela perícia.
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Apenas dois dias depois da entrevista do Cel. Wilson, concedida a diversos veículos
de comunicação, em entrevista coletiva, o Comandante Geral da Polícia Militar, Dilson
Júnior, negou que o local onde ocorrera a Chacina do Guamá, em Belém, fosse conhecido
como ponto de venda de drogas (Portal G1, 2019).
O bar já tinha sido fiscalizado em outras ocasiões, inclusive chegou a ser fechado
por poluição sonora e perturbação do sossego, mas não tínhamos essa
informação de que lá era um ponto de venda de drogas, porque se tivéssemos
teríamos atuado (Portal G1, 2019, grifo nosso).
A contradição das altas patentes da Polícia Militar, que ora culpabilizam as vítimas e
ora recuam, demostra a nuance com que se precipitaram, alguns agentes da segurança
pública, em legitimar o extermínio. Reforça-se que, em se tratando de tráfico de
entorpecentes, bastaria apenas a ciência dos policiais, para uma atuação rápida e eficaz,
pelo estado de flagrância. Assim evitar-se-ia a chacina.
Na mesma reportagem, o Delegado Geral da Polícia Civil, afirmou que não
divulgariam nenhuma linha de investigação para não comprometer o andamento do que
estava sendo apurado (Portal G1, 2019).
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oficial, as reportagens visaram entender e justificar o extermínio com base na fala dos
agentes de segurança pública, conforme já explicitado por Rocha (2013). Não obstante, na
Grande chacina do Guamá, os entrevistadores avançaram para o alinhamento da fala dos
policiais, interpretando o episódio como sendo uma resposta à criminalidade do local.
Durante grande parte das entrevistas em nenhum momento problematizou-se a
precariedade das vidas que se perderam, trabalhadores do bar que morreram em serviço,
as seis mulheres mortas e nem mesmo procurou-se saber de onde eram as vítimas, se
todas do bairro ou da passagem Jambu. Pelo contrário, reforçou-se o excessivo teor de
culpabilização delas pelo massacre.
Sobre esse ponto Butler (2006) possibilitou compreender a relação existente entre a
precariedade das vidas suscetíveis da violência estatal sem responsabilização, permitindo
antever que a ideia da morte é um potencial discurso agregado às justificativas “questões
de Estado (Silva, 2021).
A guerra às drogas foi um dos principais temas das entrevistas, sendo relacionada na
maioria das vezes pelos entrevistados policiais e nos títulos das reportagens.
No mais, é possível levantar a hipótese de que a crescente atuação de grupos
milicianos na capital paraense, muitos dos quais formados por policiais ou ex-policiais
(Alepa, 2015), tende a tornar ainda mais difícil o presente campo de análise, em torno da
estigmatização de territórios, uma vez que os moradores podem se sentir ainda mais
inseguros para expressar suas versões acerca de eventos violentos perpetrados por
esses atores.
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