Elogio de Platão a Arte Egipcia
Elogio de Platão a Arte Egipcia
Elogio de Platão a Arte Egipcia
ARTIGO I ARTICLE
Rafael Brunhara i
https://orcid.org/0000-0002-3351-2139
[email protected]
i
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – RS –
Brasil.
i
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – RS –
Brasil.
https://doi.org/10.14195/1984-249X_32_07 [1]
2 Rev. Archai (ISSN: 1984-249X), vol. 32, Brasília, 2022 e03207
I — Introdução
Este artigo pretende, em um primeiro momento, explanar o
elogio à arte egípcia enunciado pelo Estrangeiro Ateniense, em Leis
II, 653c — 654a, e como esse se insere no projeto educacional e
político descrito pelo diálogo. Nesse sentido, será feita uma breve
reconstrução do objetivo mais geral de Leis, seguida por uma análise
da passagem específica, junto a uma tradução própria do trecho.
Depois, as posições de três comentadores e intérpretes dessa
passagem serão apresentadas: as dos classicistas Ian Rutherford e
Stephen Halliwell e a do egiptólogo Whitney A. Davis. Estes
comentadores foram escolhidos por apresentarem uma interpretação
mais robusta, detalhada ou distinta do elogio, que consideram
também registros da cultura material relacionados à arte visual
egípcia. Outros pesquisadores também abordam o elogio, embora
optem por interpretá-lo de um modo mais acessório, como um
exemplo paradigmático da posição platônica expressa no diálogo e
sem considerar detalhes específicos da arte especificamente visual do
Antigo Egito (da qual se tem abundantes registros materiais).
Portanto, o foco deste artigo estará nestas três interpretações. Por fim,
será feita uma análise crítica de cada uma dessas posições,
considerando suas peculiaridades, equívocos e sucessos. Os
argumentos apresentados pelo artigo serão também reforçados por
um breve retorno à arte visual egípcia e quais eram suas possíveis
funções religiosas, políticas e educativas. Assim, pretende-se
investigar em que sentido Platão poderia estar correto e, por outro
lado, em que partes do seu elogio há equívocos — sejam eles
deliberados ou não —, além de propor um significado ao elogio que
se articula com o objetivo último do diálogo: instituir Magnésia, a
segunda cidade perfeita. Para tal, a análise de imagens da arte egípcia
terá mais do que um papel secundário, mas será essencial para o
desenvolvimento do argumento do artigo. Assim, será possível
visualizar e esclarecer o que se está tentando pontuar acerca da arte
egípcia.
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Ἀθηναῖος
Ateniense:
3A edição de Leis que está sendo seguida é a de John Burnet, presente em Platonis
Opera (1903).
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refere a um conjunto de artes que é mais ampla do que a música, pelo menos de
acordo com definições atuais desta última. Aqui, no entanto, traduzo por “música”
para fazer mais sentido no contexto específico, pois não se trata mousike lato sensu,
mas está restrita às músicas específicas performadas nos festivais.
6 Dionisiaco e Alterità nelle Leggi di Platone investiga, sobretudo, quais as funções
Como aqui será tematizado principalmente o elogio à arte egípcia, sua tese mais
geral sobre Magnésia como a tragédia mais verdadeira foge do escopo deste artigo.
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Ἀθηναῖος
Κλεινίας
Ἀθηναῖος
Κλεινίας
θαυμαστὸν λέγεις.
Ἀθηναῖος
Κλεινίας
7 Morrow (1993, p. 307) ajuda a compreender melhor esse ponto a partir das
tradições musicais gregas. Segundo ele, os gregos costumavam associar certos
“modos” de expressão com agressividade, serenidade, lamentos entre outros.
Portanto, já havia uma identificação de certos movimentos e expressões físicas com
caracteres específicos antes mesmo de Platão propor uma correção do schema em
relação ao caráter que representa.
“VAIS TE MARAVILHAR AO OUVIRES!” 15
Ainda assim, não está bem claro o que Platão designa na arte
egípcia como melos e schema. Contudo, é possível que o filósofo
tivesse uma certa razão ao afirmar que a arte egípcia era baseada em
tradição e conservadorismo. Mesmo que se verifique nos registros
arqueológicos variações consideráveis, durante milênios a arte
egípcia manteve algum nível (variável) de consistência visual, que
nos permite identificar um "estilo" egípcio, e poderia ter sido assim
considerado por Platão. Conclui, enfim, que o argumento do filósofo
é um exagero, pois não há evidências arqueológicas suficientes para
garantir que os egípcios associavam a mousike com funções
pedagógicas e reguladoras, pelo menos nos termos que o Ateniense
apresenta em Leis. Segundo Rutherford, essa remissão ao Egito é
como que uma ficção antropológica baseada em alguns padrões
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Baumgarten e Kant.
“VAIS TE MARAVILHAR AO OUVIRES!” 21
11Acredita-se, inclusive, que os egípcios tinham uma técnica para pintar em que
eles dividiam o espaço em linhas e colunas, e com base nisso, desenhavam o que
estivessem representando. Não que isso significasse um molde com proporções
exatas a ser copiado por todo artista, mas sim como um guia para dispor
corretamente a figura no espaço disponível.
“VAIS TE MARAVILHAR AO OUVIRES!” 25
12
Aqui, não estarei mais tratando de mousike, mas especialmente de artefatos
visuais. Para tornar isso defensável, poderíamos argumentar que o próprio schema
“VAIS TE MARAVILHAR AO OUVIRES!” 29
trate de "artes visuais", visto que Platão afirma que schema foi conservado nas
paredes de templos.
13 É importante salientar que os egípcios não possuíam uma palavra ou conceito
para “arte” com sentido semelhante ao que se tem hoje, tendendo-se a uma
definição eurocêntrica de arte como “belas artes”. Havia, contudo, uma palavra que
designava "trabalhos manuais" (crafts) em geral, hmt (Baines, 2007; Riggs, 2014).
Levando isso em consideração, pode-se entender que, por um lado, os usos da arte
estariam voltados não somente a um aspecto de apreciação estética, mas também
às funções sociais, religiosas, políticas e educativas da arte, essenciais para a
compreensão da arte egípcia. Por outro lado, somente uma parte muito selecionada
e curada da arte egípcia nos restou: a técnica empregada, a durabilidade e qualidade
dos materiais, o contexto de sua conservação, a pragmática do objeto na cultura
egípcia e um longo processo de curadoria e seleção estética tornou nossa recepção
da arte egípcia bastante acidentada e condicionada (Ikram, 2015).
14 Um exemplo disso é como no Antigo Egito se acreditava que a representação
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