Medicina de Família e Comunidade, Atenção Primária à Saúde e Estratégia Saúde da Família Relações, Desafios e Potencialidades

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Medicina de Família e Comunidade,

Atenção Primária à Saúde e


Estratégia Saúde da Família:
Relações, Desafios e
Potencialidades

Maria Inez Padula Anderson


Ricardo Donato Rodrigues
SOCIEDADE BRASILEIRA DE MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE

diretoria (gestão 2020-2022)

Presidente - Zeliete Linhares Leite Zambon


Vice-Presidente Marco Túlio Aguiar Mourão Ribeiro
Secretário Geral Marcos Filipe Rodrigues Bosquiero
Diretoria Administrativo e Financeiro José de Almeida Castro Filho
Diretoria de Comunicação Julia Barban Morelli Rosas
Diretoria de Titulação e Certificação Igor Tavares da Silva Chaves
Diretoria de Exercício Profissional e Mercado de Trabalho Alexandre Telles
Diretoria de Medicina Rural Leandro Araújo da Costa
Diretoria de Graduação e Pós-Graduação Strictu Sensu Ricardo Souza Heinzelmann
Departamento de Graduação Alexandre José de Melo Neto
Departamento de Pós-Graduação stricto Fabiano Guimarães
Diretoria Científica e de Desenvolvimento Profissional Contínuo Maria Inez Padula Anderson
Departamento de Educação Permanente Bárbara Luiza Rosa
Departamento de Publicação Leonardo Cançado Monteiro Savassi
Departamento de Pesquisa Andreia Beatriz Santos
Diretoria de Residência Médica Pós-Graduação Lato Sensu Lucas Gaspar Ribeiro
Departamento De Residência Marcos Vinicius Soares Pedrosa
Departamento de especialização Wandson Alves Ribeiro Padilha

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Índice

Sumário Executivo ..................................................................................................................................04

Introdução ................................................................................................................................................09

Reforma Flexner, Crise dos sistemas de saúde e (re)surgimento da Medicina de Família e


Comunidade .............................................................................................................................................13

Conceito de Medicina de Família e Comunidade e sua relação com a Atenção Primária


à Saúde ......................................................................................................................................................15

Medicina de Família e Comunidade no Brasil, contexto técnico e político ..............................21

Estratégia Saúde da Família e Medicina de Família e Comunidade no Brasil hoje .................22

Estratégia Saúde da Família, políticas de indução, crescimento e ameaças de desmonte ..24

Desafios presentes para a Medicina de Família e Comunidade na Estratégia Saúde da


Família..........................................................................................................................................................25

Considerações finais ...............................................................................................................................26

Referências bibliográficas ......................................................................................................................27

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Medicina de Família e Comunidade, Atenção Primária à Saúde e
Estratégia Saúde da Família:
Relações, Desafios e Potencialidades (1)
Maria Inez Padula Anderson (2), Ricardo Donato Rodrigues (3)

SUMÁRIO EXECUTIVO
Por que, mais de 40 anos após Alma Ata, a Atenção Primária à Saúde (APS) e a Medicina de
Família e Comunidade (MFC), ainda não conseguiram se consolidar no Brasil e na grande maioria
dos países da América Latina? Por que a Estratégia Saúde da Família, apesar de todos os avanços
que têm trazido ao Sistema de Saúde brasileiro está sofrendo um processo de desmonte?

Esta Nota Técnica foi produzida com o propósito de refletir sobre uma matriz explicativa que
possa ampliar a compreensão das motivações que, até os dias de hoje, impedem o
desenvolvimento adequado da Medicina de Família e Comunidade e da própria Atenção Primária
à Saúde nos sistemas de saúde de todo o mundo, mas, principalmente, no Brasil e na América
Latina. Avalia-se que compreender e refletir sobre estas motivações mais seminais podem
contribuir para desenvolver estratégias e planos de ação mais competentes e resolutivos no
enfrentamento e superação destes problemas. Para tanto, entende ser pertinente analisar os
impactos da Reforma Flexner na formação e na prática médica, em praticamente todo o mundo
ocidental, a partir de 1910, , uma vez que esta reforma se traduziu e se traduz em uma
determinada forma de entender saúde e doença, e de valorizar algumas práticas e modelos de
sistemas de saúde em detrimento de outros.

Parte 1 Introdução – Nesta parte, o documento discorre sobre o nascimento e incorporação


da medicina científica no ensino e na prática médica. Assinala que tal nascimento ocorreu entre
o final do século XVIII e os primeiros anos do século XIX e relata sua natureza biologicista e
mecanicista inspirada no método cartesiano de pesquisa científica. Salienta, em seguida, que
esta medicina científica ensaiada nos hospitais terapêuticos recém instituídos, concentra sua
atenção na abordagem diagnóstica e terapêutica de alterações fisiopatológicas processadas na
intimidade do corpo e suas relações com as manifestações clínicas apresentadas pelos doentes.
Para tanto, institui um método clínico coerente aberto à incorporação progressiva de tecnologias
duras –
________________________________________________
[1]Nota Técnica encomendada à SBMFC para compor o 3º Seminário da Rede APS, em 2021
[2] Maria Inez Padula Anderson, Médica de Família e Comunidade, Doutora em Saúde Coletiva, Professora Adjunta da
Faculdade de Ciências Médicas da UERJ, Diretora Cientifica da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e
Comunidade
[3] Ricardo Donato Rodrigues, Clínico Geral, Doutor em Saúde Coletiva, Professor Adjunto aposentado da Faculdade
de Ciências Médicas da UERJ

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fármacos e equipamentos médico-hospitalares – na sua prática. Enfatiza que esta medicina com
foco na doença fragmenta o olhar profissional em um número crescente de especialidades e
respectivas áreas de atuação em detrimento da pessoa em sua integralidade e que tal modelo
assistencial assume uma posição hegemônica a partir da Reforma Flexner do ensino médico
iniciada em 1910 nos Estados Unidos. Neste contexto, a medicina generalista perde espaço e
reconhecimento.

Parte 2 Impactos do Reforma Flexner: crise dos sistemas de saúde e surgimento da


Medicina de Família e Comunidade – Aqui o documento ressalta que o crescente
desenvolvimento tecnológico, a subespecialização, o hospitalocentrismo e o foco na doença (e
não na pessoa), são quatro dos elementos fundamentais que passaram a definir qualidade da
formação e da prática médica a partir da implantação do Relatório Flexner. Os sistemas de
saúde centrados na lógica flexneriana, cuja orientação biomédica se torna cada vez mais
biotecnológica, passaram a conviver com situações de crise, inclusive pelos altos custos dos
procedimentos médico-hospitalares. Crises que induziram o desenvolvimento de projetos de
“contrarreforma” nos sistemas de saúde, a exemplo do Relatório Dawson, já em 1920. Nos EUA e
no Canadá, nos anos de 1940, a insatisfação com os impactos da Reforma Flexner se fizeram
sentir como uma resposta dos médicos generalistas - maioria dos médicos em atividade até
então - através da criação de academias e faculdades dedicadas à medicina de generalista, com
fortes críticas à superespecialização da medicina. Destaca também que, em 1962, a OMS deu
ênfase à Medicina de Família como estratégia de organização dos sistemas de Saúde e que na
década de 1960, nos EUA e no Canadá, surgem as primeiras residências para a formação de
Médicos de Família, seguidos, alguns anos depois, em meados da década de 1970 pela América
Latina e Caribe,no México, Brasil, Bolívia, Costa Rica, Argentina, Colômbia, Equador e Venezuela.
Neste contexto, o documento chama a atenção para o fato de que a Medicina de Família surgiu
como resposta a uma necessidade social, uma mudança de paradigma na ciência em geral,
passando de uma abordagem reducionista para uma sistêmica - representada pela abordagem
biopsicossocial e não pelo modelo cartesiano, anátomo-clinico ou biomédico, da medicina
tradicional. Este modelo mais ampliado de compreender o processo saúde-adoecimento é
coerente com as questões de saúde que se apresentam no âmbito da APS tendo em conta a
multidimensionalidade do processo saúde-adoecimento. Desde então, a Medicina de Família
vem se desenvolvendo como especialidade, em praticamente todo o mundo, nas diferentes
dimensões que caracterizam uma especialidade: como uma disciplina, como um papel
profissional, como um campo de pesquisa como uma área de serviços de saúde.

Parte 3 - Desafios para o desenvolvimento de uma APS inclusiva e qualificada em quase


todos os países da América Latina - Esta parte do documento destacaque os efeitos da
biomedicina, e do complexo médico-industrial se fazem sentir e os poderes sociais e
econômicos por eles gerados têm sido superiores à lógica trazida pelas recomendações de
inclusão da APS e da MFC. De tal forma que os sistemas de saúde na maior parte do mundo, e
especialmente na América Latina, ainda resistem sem as reformas fundamentais e sem
considerar medicina de família e comunidade como especialidade central; nem adotaram o
modelo organizacional proposto pelo Dawson.

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O documento de 2007, da Organização Pan-americana da Saúde - Renovação da Atenção
Primária em Saúde nas Américas - identifica as resistências à implantação e ao desenvolvimento
da APS nas Américas, que podem ser consideradas atuais, até os dias de hoje. Os opositores à
APS estão apresentados como "[...] aqueles que veem a renovação da APS como uma ameaça a
um status quo que desejam manter. [e, neste contexto] alguns médicos especialistas e suas
associações, hospitais, assim como a indústria farmacêutica e algumas organizações de difusão
para suas ideias”. Chama ainda a atenção para o fato de que esses grupos estão entre os “mais
poderosos em termos de recursos e capital político [e, seus] interesses estão frequentemente
alinhados em oposição a muitos esforços de reforma da saúde”.

Parte 4 - Relação entre os conceitos e princípios que regem a Medicina de Família e


Comunidade e as necessidades da própria na APS - Esta parte do documento apresenta as
relações entre e a APS e a MFC. Para tanto, explora diferentes movimentos que buscaram
conceituar e caracterizar a MFC e relacioná-la com os conceitos e características da APS. A
Declaração de Alma Ata, da Conferência Mundial de Saúde, em 1978, estabelece características da
APS que coincidiam com outras descritas, previamente em 1977, por exemplo, pelo Grupo de
Trabalho de Leeuwenhorstsobre o trabalho do especialista em medicina de família, destacando
alguns pontos-chave: os cuidados personalizados a pessoas e famílias de um território
determinado; a visão abrangente, integrando fatores físicos, psicológicos e sociais; as atividades
colaborativas com outras disciplinas e a responsabilidade profissional com a comunidade. Esta
descrição, além de estar em sintonia com Alma Ata, mostra-se coerente também com os atributos
que caracterizam a Atenção Primária à Saúde segundo o entendimento da consagrada professora
e pesquisadora Bárbara Starfield, a saber: acesso, longitudinalidade, integralidade, coordenação
do cuidado (atributos essenciais), orientação familiar, orientação comunitária e competência
cultural (atributos transversais). Em 2010, a Confederação Iberoamericana de Medicina Familiar,
uma das sete regionais da WONCA (da qual a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e
Comunidade faz parte) no documento: Perfil do Médico de Família e Comunidade: Definição
Iberoamericana destaca que a "Medicina de Família e Comunidade como especialidade clínica é a
disciplina com melhores capacidades para liderar a aplicação da estratégia da Atenção Primária
em Saúde, dado a perspectiva clínica com a qual atua, com estratégias, tecnologias e técnicas que
lhe são próprias, além de seu enfoque na prevenção de riscos, na atenção contínua, na
integralidade e no humanismo”. Este documento chama especial atenção para o trabalho
multidisciplinar e intersetorial, bem como a importância do trabalho comunitário da MFC na
Região.

Parte 5 Implantação e desafios para desenvolvimento da Medicina de Família e


Comunidade no Brasil, contexto técnico e político – Esta parte do documento faz um breve
histórico da criação da especialidade, dos desafios e do contexto político que acontecia à época.
Recorda que os primeiros projetos de formação em Medicina de Família e Comunidade, surgem
ainda antes de Alma Ata: os primeiros programas de Residência em Medicina Geral Comunitária
(nome original da especialidade) surgem em 1976 na Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(UERJ), no Murialdo (Porto Alegre) e em Vitoria de Santo Antão, Pernambuco, sendo logo seguidos
pelos programas do Grupo Hospitalar Conceição, em Porto Alegre e de Natal no Rio Grande do
Norte.

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Ao longo dos seus 45 anos de existência no Brasil, a MFC vem sofrendo desafios como ameaças
de extinção como especialidade. A criação em 1994, do Programa de Saúde da Família (PSF),
tornado Estratégia Saúde da Família (ESF) em 1996, abre afinal a possibilidade de um campo de
trabalho para a MFC no Brasil, no contexto de um modelo de APS mais robusto, afastado
daquela ideia simplista sempre associada à APS.

Parte 6 - Estratégia Saúde da Família e Medicina de Família e Comunidade no Brasil


hoje - Esta parte do documento apresenta a Estratégia Saúde da Família, como um modelo
exitoso de APS, pelo seu caráter abrangente e multidisciplinar, constituindo, de fato, uma
oportunidade única para a reforma do sistema de saúde brasileiro, com saída do modelo
hospitalocêntrico, para um outro, conformado por uma rede poliárquica de serviços. Relaciona a
ESF como espaço de atuação para a MFC e também como cenário privilegiado de formação em
MFC, e para outras profissões na área da saúde, especialmente a enfermagem e a odontologia,
mas não exclusivamente. Evidencia como os princípios, conceitos e práticas da MFC se articulam
e guardam sintonia aos da ESF. Para tanto, recupera a resolução 05/2002 da Comissão Nacional
de Residência Médica que regulamenta a MFC, e o currículo baseado em competências da
Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), lançado em 2014. . Destaca,
neste contexto, as competências relativas ao trabalho em equipe multiprofissional, e os tipos de
atividades de MFC que têm inserção prevista nas da ESF, sejam elas atividades de consulta
individual, de abordagem familiar; ; visitas domiciliares; atividades de grupo terapêutico e de
educação em saúde; atividades interdisciplinares intersetoriais; de abordagem e diagnóstico
comunitário; participação em reuniões de equipe para avaliação e planejamento de ações; entre
outras.

Parte 7 - Políticas de indução e posterior desmonte da APS/ESF implementadas a partir


do golpe parlamentar de 2016 e impactos na MFC– Esta parte do documento cita as
numerosas políticas de qualificação e indução que foram promovidas pelo Ministério da Saúde e
Ministério da Educação, especialmente entre o início dos anos 2000 até 2016, para o
crescimento e fortalecimento da ESF e que estavam permitindo avanços incontestes na
organização do SUS (Anderson, 2019). Todas estas inciativas foram e são necessárias para
vencer as barreiras ainda presentes na conformação e qualificação de uma APS robusta no SUS.
Reconhecidamente, uma das principais é aumentar o quantitativo de especialistas em MFC. O
país requer, no mínimo, sessenta mil médico/médicas de família e comunidade. Vencer este
desafio exige políticas públicas – especialmente em relação à definição do percentual de vagas
para programas de residência médica, como é feito em diversos países, como Canadá – onde a
média percentual de vagas para programas de residência em medicina de família e comunidade
é de 44%. Cita o “golpe” de Estado no Brasil, em 2016, caracterizando um período de governo de
características neoliberais que institui medidas que fazem regredir os avanços na área da saúde,
em especial, da APS. Neste contexto, busca-se privilegiar os interesses econômicos de
empresários da saúde, abrindo caminho para o desmonte da ESF e para a privatização da APS,
com a criação da Agência para o Desenvolvimento da APS (ADAPS), na forma de pessoa jurídica
de direito privado, que deslocou a gestão pública da APS para o âmbito privado no nível federal.

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Além disso, cita outras políticas, como parte deste processo de desmonte: a PNAB 2017, o
programa Saúde na Hora; o Médicos pelo Brasil; o Previne Brasil. Ressalta que estas iniciativas
apontam para o comprometimento dos princípios da universalidade e da integralidade que
regem o SUS e restringem o alcance do olhar profissional, limitando o espectro da prática em
saúde na APS, valorizando apenas o cuidado clínico individual, em detrimento das abordagens
familiar e comunitária.

Parte 8 - Desafios presentes e estratégias de enfrentamento para a Medicina de Família


e Comunidade na Estratégia Saúde da Família - Nesta parte, o documenta apresenta
sumariamente, os principais desafios enfrentados hoje pela MFC na ESF na forma das seguintes
perguntas: Quais estratégias técnico-políticas, de curto e médio prazo, para alcançamos o
número de 60.000 (no mínimo) e 100.000 (necessário) MFC? Como atrair e fixar MFC nos
municípios? Como atrair estudantes de MFC para a especialidade? Como estabelecer um plano de
cargos, carreira e salários que apresente uma possibilidade de estabilidade financeira e de
projeto de vida para a MFC? Como manter a visão e a prática ampliada da MFC, incluindo a
necessária e inextricável simultaneidade entre Abordagem Centrada na Pessoa, Abordagem
Familiar e Abordagem Comunitária? Como atuar para manter a lógica da ESF/NASF e a perspectiva
multidisciplinar? Como atuar para alcançar uma população adscrita que seja adequada para o
cuidado em saúde dentro de limites razoáveis? (no máximo 3.000 pessoas/equipe – e se
população vulnerabilizada até 2.500 pessoas?) Como lidar com o agressivo movimento que
algumas operadoras de planos de saúde vêm fazendo para contratar médicos de família para
atuar no setor privado? Como lidar com a possibilidade de fechamento de serviços e unidades
públicas de saúde com o agravamento do já insuficiente financiamento do SUS? Como lidar com o
agravamento da iniquidade que pode advir da não resolução destas situações? Conclui
apontando algumas estratégias centrais para o enfrentamento destes desafios: APS e MFC para
atingirem seu potencial, necessitam superar as limitações do modelo cartesiano-anátomo-clínico
e biomédico que comprometem a compreensão do processo saúde-adoecimento em sua
integralidade, necessitando atuar sob a égide do paradigma sistêmico e complexo. A ESF,
caracterizada pelo trabalho em equipe multiprofissional, é reconhecidamente um dos modelos de
APS mais avançados do mundo a exigir ações concretas de resistência às tentativas de desmonte,
bem como ao lado de outras tantas, voltadas para seu desenvolvimento permanente.

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INTRODUÇÃO
Por que, mais de 40 anos após Alma Ata, a Atenção Primária à Saúde (APS)e a Medicina de Família
e Comunidade (MFC), ainda não conseguiram se consolidar no Brasil e na grande maioria dos
países da América Latina? Por que a Estratégia Saúde da Família, apesar de todos os avanços que
têm trazido ao Sistema de Saúde brasileiro está sofrendo um processo de desmonte? Esta nota
técnica objetiva apresentar respostas a estas perguntas, tomando como base de análise uma
matriz explicativa que se relaciona aos princípios e conceitos que apoiaram a organização dos
sistemas de saúde em todo o mundo a partir do Século XX. Parte do pressuposto de que é
necessário compreender a raiz dos problemas que até hoje impactam e afetam negativamente a
APS e a MFC, para que se possa enfrentá-los de modo mais resolutivo. Para tanto, entende-se
pertinente analisar os impactos da Reforma Flexner na formação e na prática médica, no mundo
ocidental, desde 1910. Neste contexto, aborda também as dificuldades para a desenvolvimento
da MFC no Brasil, desde os primeiros programas de residência na área, em 1976, e que se
referem também às dificuldades para o desenvolvimento de uma APS qualificada, em quase toda
a América Latina. Descreve os conceitos da especialidade que se relacionam densamente com os
da própria APS. Reflete sobre as políticas de indução instituídas nos primeiros 16 anos do século
XXI para o desenvolvimento da Estratégia Saúde da Família, modelo reconhecido e exitoso de APS
e aponta o desmonte das políticas neste âmbito desde o golpe de estado de 2016. Finaliza
contextualizando os desafios atuais para a MFC na ESF/APS, bem como aponta as principais
estratégias a serem desenvolvidas para sua superação.

É importante lembrar, inicialmente, que a maioria absoluta dos cuidados em saúde que as
pessoas necessitam receber ao longo da vida concentram-se na Atenção Primária à Saúde (APS),
inclusive as necessidades de atendimento clínico, uma atividade estratégica na prática do
especialista em Medicina de Família e Comunidade (Gascon et al, 2019; Anderson & Rodrigues,
2017).

Entretanto, o acelerado progresso experimentado no campo das biociências a partir de meados


do século XX e a incorporação intensiva de tecnologias duras, industrialmente produzidas, no
âmbito da prática médico-hospitalar acabaram, sob o olhar da biomedicina, por valorizar mais o
papel do nível terciário de atenção à saúde e o papel das especialidades médicas “focais”, de
acordo com os sistemas orgânicos afetados, sexo ou faixa etária das pessoas ou tipo de doença.
(Gascon et al, 2019; Rodrigues & Anderson, 2018; Zurro, Gascon, Ceitlin, 2019).

Mas, de onde teria vindo a racionalidade científica que deu origem a este modelo fragmentário e
tecnicista de saúde que se tornou hegemônico em todo o mundo ocidental?

Descartes (1596 – 1650), filósofo, físico e matemático francês, é considerado o primeiro a forjar o
método que serviu de base às ciências modernas, incluindo a medicina – o paradigma cartesiano,
ainda hegemônico. Este paradigma, caracterizado por uma concepção mecanicista e reducionista
do mundo, pressupõe que recortar a realidade em suas partes constituintes permitiria estudá-la
de modo mais objetivo e assim apreender e explicar a verdadeira natureza dos fenômenos
(Descartes apud Membros do grupo de discussão Acrópolis, 2018)

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A partir deste paradigma, na transição entre os séculos XVIII e XIX emergiu um padrão assistencial
tecnicista, no qual o modelo explicativo das doenças partia do estabelecimento de uma
correlação entre o quadro clínico de doentes hospitalizados e os achados anatômicos revelados
em seus corpos, depois de mortos, pela técnica de necropsia, por isso também denominada
medicina anátomo-clínica (Rodrigues & Anderson 2018).

Na perspectiva do paradigma cartesiano, os fenômenos naturais ocorriam de acordo com leis


mecânicas e qualquer objeto material poderia ser conhecido e explicado na sua totalidade a partir
da organização e do movimento de suas partes. A redução, simplificação e fragilidade que
caracterizam este paradigma, podem ser identificadas na lógica que o instrumentaliza:
necessidade de retirar um fenômeno do próprio ecossistema ao qual pertence para, no momento
seguinte, ser analisado em si mesmo (Anderson & Rodrigues, 2017).

Não por acaso, no contexto da Revolução Industrial e dos problemas sociais e sanitários trazidos
por ela - agravados pelas exigências do mercado de trabalho que reclamavam por um rápido
retorno da mão de obra para o processo de produção - surgem as iniciativas da Fundação
Carnegie, tendo à frente dois bilionários norte-americanos, Andrew Carnegie (1835-1919),
magnata da siderurgia, e John D. Rockefeller (1839-1937), magnata do petróleo. Esta fundação
financiou um estudo sobre a “Educação Médica nos EUA e Canadá”, levado a cabo por Abraham
Flexner que resultou no conhecido Relatório Flexner (Flexner, 1910).

Este relatório teve por base a avaliação de que havia grande variabilidade nos cursos de formação
médica, seja em relação ao padrão de qualidade, seja em relação ao conteúdo do que se
ensinava, à época bastante influenciado por práticas da medicina tradicional, consideradas como
não cientificas.

Neste cenário, com a necessidade de ampliar o conhecimento das ciências fundamentais no


ensino médico, os laboratórios passaram a ser fundamentais para o diagnóstico e o combate a
doenças, segundo relaciona Pritchett (1857-1939, presidente da Fundação Carnegie por 25 anos,
desde sua a criação até 1930, incluindo o período do Relatório Flexner). “Um hospital sob
completo controle educacional é tão necessário a uma escola de medicina quanto um laboratório
de química ou patologia. O ensino de alto nível em um hospital introduz influência salutar e
benéfica na rotina da escola.” (Revista Ensino Superior Unicamp, 2010).

Em 1910, o Relatório Flexner (Flexner Report) é publicado, sendo considerado até os dias de hoje,
o maior responsável pela mais importante reforma das escolas médicas de todos os tempos nos
Estados Unidos da América (EUA), com profundas implicações tanto para a formação médica,
como para a prática médica e para a própria modelagem dos sistemas de saúde em todo o
mundo. Mas, apesar de ter focado nas escolas médicas, os princípios, os pressupostos e as
recomendações do relatório também afetaram a formação e a prática de todas as profissões da
área da saúde.

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As recomendações de Flexner, visando uniformizar e aprimorar o desempenho profissional,
centravam-se na reorganização do ensino médico em torno do modelo anátomo-clínico
constituído na transição entre os séculos XVIII e XIX, um modelo de medicina instituído no rastro
da “progressiva autoridade epistemológica e social das ciências” (Luz, 1988: 117). Assim, Flexner
consagrava os princípios da biomedicina e enfatizava a importância das ciências biológicas e
naturais como eixo estruturador das atividades de ensino, pesquisa e prática médica (Rodrigues
& Anderson, 2018).
Sintonizado com a concepção científica dominante em sua época, Flexner descrevia o corpo
humano à semelhança de uma complexa máquina artificial, cujas partes, formadas por tecidos e
órgãos, deviam receber uma abordagem científica e especializada.

Por isso mesmo, entre outras medidas, o Relatório Flexner preconizou:


− a inclusão da pesquisa nos programas de ensino médico;
− a fragmentação do currículo em disciplinas específicas de acordo com a segmentação do
organismo;
− a dicotomia entre os ciclos básico e profissional, e, finalmente:
− que o treinamento clínico dos estudantes se desse em hospitais filiados às faculdades de
medicina.

Vale ressaltar que de acordo com a biomedicina, a fisiopatologia da doença é entendida como o
próprio agravo, e não como sua expressão.

Na realidade, nesta época, o paradigma cartesiano, que preconiza a fragmentação do corpo para
melhor entender a doença, afastava as concepções multi e interfatoriais dos processos saúde-
adoecimento, já preconizadas por Hipócrates. Já se sabia, à época, que o processo saúde-doença
é influenciado por um conjunto heterogêneo de variáveis biológicas, psicológicas e
socioambientais.

Mas na insuficiência de bases científicas mais consistentes as conexões entre elas eram
desenhadas segundo uma lógica linear de acordo com os mandamentos da ciência cartesiana.
Isto quando não se recorria a meras especulações que em certas circunstâncias ainda emergem
do senso comum.

Foi preciso esperar que a teoria ou paradigma da complexidade (Kapra, 1996, Maturana, 1995,
Morin, 1996); do modelo biopsicossocial (Engel, 1977) e os conhecimentos da
psiconeuroimunoendocrinologia (Arias, Arzt, Bonet, 1998) inspirassem as ciências da saúde e,
particularmente, instrumentalizassem a biologia contemporânea para revelar uma nova realidade.
Isto é, para desvelar a teia de relações entre a mencionada constelação de variáveis que
condicionam o processo saúde-doença, materializando o fenômeno que Deveza (1983) chamou
de condensação de expressões. Essa fragmentação do olhar, advinda do paradigma
cartesiano/flexneriano reduz perigosamente a compreensão do processo saúde adoecimento
como fenômeno complexo, bem como restringiram e restringem o universo de intervenções
possíveis (Anderson & Rodrigues, 2019; Aguiar, 2007).

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Assim, a implantação das diretrizes do Relatório Flexner, com a consolidação do ensino médico
em bases flexnerianas se constituiu um caminho decisivo para potencializar o desenvolvimento
da biomedicina, de base cartesiana. Primeiro, no nível do conhecimento médico e, logo depois,
em termos da prática médica, e, consequentemente, em termos do próprio modelo técnico-
assistencial dos sistemas de saúde.

A medicina cartesiana, com base no modelo anátomo-clínico, assume, então, uma posição
hegemônica no contexto assistencial dos Estados Unidos, Canadá e a seguir no mundo ocidental.
Essa escalada se processou em detrimento de outros modelos médicos. Particularmente, em
detrimento da homeopatia, que até então coexistia em igualdade de condições com o modelo
científico e desfrutava de considerável prestígio na sociedade americana. Com base nesta lógica
docente-assistencial, o hospital foi tido como cenário privilegiado para formar um bom médico.
Derivativamente, consolida-se o modelo docente-assistencial hospitalocêntrico que se tornou
hegemônico, em praticamente todo o mundo.

Vale lembrar que, até os anos 1800, ainda sem o advento da Revolução Industrial, as populações
ainda residiam majoritariamente em pequenas cidades, e a agricultura e a produção de bens
eram a base principal da economia. Os cuidados em saúde não eram estruturados; o médico
costumava visitar seus pacientes em um cavalo ou em uma charrete. A maioria dos médicos não
tinha treinamento formal; alguns aprenderam o trabalho como aprendizes, trabalhando com
médicos mais velhos ou participando de pequenos cursos e oficinas. Não havia escolas médicas,
nem treinamento organizado, nem medicina organizada e nenhum sistema para garantir a
qualidade do atendimento (Gutierrez & Scheid, 2002). No período compreendido entre a
Revolução Francesa e a Revolução Industrial, antes da constituição da medicina cientifica
propriamente dita, era comum, a figura do “médico de cabeceira” ou “generalista”, profissional
considerado com qualificação técnica e conhecimentos em medicina, que se encarregava dos
problemas de saúde e atuava como conselheiro das famílias, bem como de problemas
educacionais (Zurro, Gascón,Ceitlin, 2019).

Após a apresentação e a implementação do Relatório Flexner, em 1910, nos Estados Unidos, o


“generalista” perde espaço para a progressiva subespecialização, incorporando a lógica do
paradigma anátomo-clinico, com foco na doença e não na pessoa enferma, com perda e
despersonalização da relação médico-paciente, com a fragmentação do olhar e a perda da
percepção integral e harmoniosa do indivíduo doente, e da dimensão sociopsicológica das suas
necessidades de saúde (Rivero, Marty, et cols, 2010). Assim, além do florescimento de
subespecialidades, se pode afirmar que o modelo flexneriano de base cartesiana, definitivamente
contribuiu para o crescimento e fortalecimento da medicina centrada na doença, que por sua vez
atraiu o interesse de duas poderosas indústrias: a farmacêutica e a indústria de dispositivos
industriais para suporte diagnóstico e terapêutico (Zurro, Gascón,Ceitlin, 2019).

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Apesar dos reconhecidos benefícios advindos da produção de medicamentos, não seria
despropositado usar o termo indústria da doença para caracterizar o incremento da indústria
farmacêutica, como também a de equipamentos diagnósticos e de tratamento que, no contexto
do mundo capitalista, deram origem ao chamado complexo médico-industrial da saúde, um dos
setores mais concentradores de riqueza desde a segunda metade do século XX. Este poderoso
complexo e suas potentes estratégias de marketing, incluindo o financiamento de estudos,
mesmo nos mais respeitados núcleos de pesquisa no mundo, afetou e tem afetado os rumos da
educação médica e da própria concepção da população acerca da saúde e da prática médica. O
crescente desenvolvimento tecnológico, a subespecialização, o hospitalocentrismo e o foco na
doença (e não na pessoa), são quatro dos elementos fundamentais que passaram a definir
qualidade da formação e da prática médica a partir da implantação do Relatório Flexner (Zurro,
Gascón,Ceitlin, 2019).

Reforma Flexner, crise dos sistemas de saúde e (re)surgimento da Medicina de Família e


Comunidade

Todos esses elementos característicos da medicina e dos sistemas de saúde, que tiveram por
base a lógica da medicina flexneriana, têm sido acompanhados por uma crise dos sistemas de
saúde, incluindo um aumento progressivo dos custos. Novas tecnologias são caras e precisam de
novos especialistas para seu projeto e operação. Os hospitais crescem e se tornam cada vez
mais complexos, absorvendo cada vez mais recursos humanos e materiais, que são usados para
cuidar de uma pequena parte de todos os problemas de saúde individuais e coletivos. A
população cria demandas pautadas nas novas tecnologias, assim como mais e melhores serviços
de saúde, e os recursos não seguem um crescimento paralelo que permita atender
integralmente às necessidades, nem tampouco que atenda as verdadeiras necessidades de
saúde da população (Zurro, Gascón,Ceitlin, 2019).

Por isso, era necessário estabelecer uma contrarreforma, baseada em políticas que delimitassem
claramente as prioridades dos sistemas de saúde, de acordo com critérios de equidade, eficácia
e eficiência. Entretanto, se é preciso mudar o sistema de saúde em profundidade, saindo do
modelo flexeneriano/hospitalocêntrico, seria necessário também atuar em profundidade na
formação e na prática médica e dos demais profissionais da saúde.

Uma iniciativa mundialmente reconhecida no sentido de mudar a lógica hospitalocêntrica cada


vez mais orientadora da modelagem dos sistemas de saúde, foi aquela originada do Relatório
Dawson, de 1920, na Inglaterra do pós-guerra. O Relatório Dawson (Dawson, 1920) aponta
claramente para a necessidade de um sistema de saúde regionalizado, com sistema de
referência e contrarreferência, estabelecendo as competências de cada nível do sistema e
afirmando a necessidade da capilaridade dos centros de saúde (unidades de atenção primária) e
de que tipo de profissionais seriam necessários ali.

Neste contexto, na introdução do Relatório Dawson está escrito acerca da má distribuição de


unidades de saúde e da necessidade dos médicos gerais (identificados como general practitioner
– termo que até hoje prepondera para referência do médico de família na Inglaterra):

13
“Essa falta de organização tem se tornado mais evidente pela ampliação do conhecimento e pela crescente
convicção de que é preciso colocar à disposição de todos os cidadãos os melhores meios de manutenção da saúde
e de cura das doenças. [...] O centro de saúde primário é a instituição encarregada de prestar cuidados médicos de
nível primário ... dotado de serviços de medicina preventiva e curativa, conduzidos por um médico generalista
[General Practitioner] distrital [...] A maioria dos pacientes será atendida por um médico generalista de seu distrito
e manterá os serviços de seus próprios médicos”.

Como é sabido, o Relatório Dawson, apesar de ter sido apresentado em período próximo ao do
Relatório Flexner, não teve a mesma repercussão que este, possivelmente porque o de Flexner
afetou diretamente a formação e a prática médica dos Estados Unidos e Canadá, e o de Dawson,
se relacionava preponderantemente à organização do sistema de saúde da Inglaterra.

De todo modo, a insatisfação com os impactos da Reforma Flexner na formação e na prática


médica se fizeram sentir inicialmente, e justamente, nos EUA e no Canadá, já nos anos de 1940,
com uma resposta dos médicos generalistas - maioria dos médicos em atividade até então -
através da criação de academias e faculdades dedicadas à medicina geral para promover a
prática médica com base no modelo de clínica geral, com fortes críticas à superespecialização da
medicina.

Em 1962, um Comitê de Expertos em Educação Profissional e Técnica de Pessoal Médico, da


Organização Mundial da Saúde, se reuniu, analisando a necessidade de os sistemas de saúde
disporem de especialistas em medicina de família, e não somente médicos generalistas –
considerados todos aqueles que saem da graduação em medicina. Foi então produzido um
relatório (WHO, 1963) que definiu os médicos de família como aqueles

“que têm a característica essencial de oferecer, a todos os membros das famílias que atendem, acesso direto e
contínuo aos seus serviços. [...]Esses médicos aceitam a responsabilidade pelo cuidado integral, seja pessoalmente,
seja providenciando outros recursos clínicos ou sociais especializados”. (WHO, 1963).

O comitê registrou ainda

“um entendimento forte de que há uma continua e significante necessidade de médicos de família” [e que] “em
todos os países do mundo parece haver uma escassez de médicos de família, isso se aplica a todos os países,
independentemente de seu estágio de desenvolvimento” (WHO, 1963).

“O termo "Medicina de Família" aparece também, em 1966, nos Estados Unidos, no Relatório
Willard (1966) como parte de um movimento norte-americano que teve por objetivo se contrapor
a esta despersonalização do cuidado em saúde, com a (re)valorização da prática da medicina de
família, pautando a necessidade de uma forma diferenciada de atendimento médico. Estes
movimentos consideraram, inclusive, o descontentamento manifestado pela sociedade americana
com o tipo de atendimento médico à época, baseado em uma medicina praticada por
especialistas focais, fortemente tecnológica e predominantemente hospitalar.

14
No Canadá, como parte deste movimento, o College of Family Physicians foi fundado em 1954 e
em 1969, criado o American Board of Family Practice e as primeiras residências para a formação
de médicos de família nos EUA. Na América Latina e no Caribe, alguns anos depois, em meados
da década de 1970, inicia-se a formação de pós-graduação em medicina de família no México,
Brasil, Bolívia, Costa Rica, Argentina, Colômbia, Equador e Venezuela (Gascón, Ceitlin, Anderson,
Ortiz , 2019).

Neste contexto, pode-se afirmar que a Medicina de Família surgiu como resposta a uma
necessidade social. Segundo o sociólogo John Naisbitt (1983, apud Zurro , Gascón, Ceitlin, 2019)
seu surgimento responde a uma tendência da sociedade à época com o reconhecimento da
necessidade de um contato mais humano, e como uma reação ao mundo tecnológico que a
invade. Mas também está inserida em uma mudança de paradigma na ciência em geral, passando
de uma abordagem reducionista para uma sistêmica que, na medicina em particular, é
representada pela abordagem biopsicossocial e não pelo modelo cartesiano, anátomo-clinico ou
biomédico da medicina tradicional (Engel, 1977; Gascón, Ceitlin, Anderson, Ortiz, 2019; Zurro,
Gascón, Ceitlin , 2019.)

De fato, os anos 1960 trouxeram um senso de responsabilidade social: O Movimento dos Direitos
Civis, o Movimento pela Paz, os Protestos da Guerra do Vietnã, entre outros. Os anos 60
trouxeram as forças sociais apropriadas e o ambiente adequado para que a Medicina de Família
(re)nascesse como uma nova especialidade. Na realidade, muitas pessoas veem a Medicina de
Família como uma consequência do “movimento de contracultura” dos anos 60/70 (Gutierrez &
Scheid, 2002).

Desde então, a Medicina de Família vem se desenvolvendo como especialidade, em praticamente


todo o mundo, nas diferentes dimensões que caracterizam uma especialidade: como uma
disciplina, como um papel profissional, como um campo de pesquisa como uma área de serviços
de saúde.

Entretanto, os efeitos da biomedicina, e do complexo médico-industrial, se fazem sentir e os


poderes sociais e econômicos por eles gerados têm sido superiores à lógica trazida pelas
recomendações dos relatórios de Willard. Os sistemas de saúde na maior parte do mundo, e
especialmente na América Latina, ainda resistem sem as reformas fundamentais e sem
considerar medicina de família e comunidade como especialidade central; nem adotaram o
modelo organizacional proposto pelo Dawson.

Conceito de Medicina de Família e Comunidade e sua relação com a Atenção Primária à


Saúde
Como visto anteriormente, o declínio da prática generalista a partir do início do século XX, esteve
relacionado aos preceitos do Relatório Flexner, com base na biomedicina, fragmentadora do olhar
e da prática médica. As resistências a este declínio também contribuíram para uma necessária
revisão do conceito e dos princípios paradigmáticos da Medicina de Família, já reconhecida como
especialidade médica, e não somente como uma medicina generalista, necessitando, portanto, de
desenvolver seu campo de saber e de prática, com base em proposições das ciências modernas.

15
Um dos aspectos a ser destacado neste processo se relaciona à nomenclatura da especialidade
neste período de transição, em um mundo sem ainda uma tecnologia de comunicação que
facilitasse os encontros e para que se pudesse retirar uma posição mais uniforme sobre este
tema. Em boa parte do mundo, o nome Medicina de Família foi assumido como o nome da
especialidade. Em muitos outros países, como Canadá, Espanha, Brasil, Uruguai a nomenclatura
adotada para a especialidade é Medicina de Família e Comunidade. Neste sentido e para efeitos
deste texto, Medicina de Família e Comunidade (MFC) será utilizado como sinônimo de Medicina
de Família. McWhinney (2010) destaca que a denominação é uma questão importante mas o
principal aspecto para todas as especialidades médicas é o significado prático da especialidade,
considerado por ele, no caso da MFC, comum em todos os lugares.

Para McWhinney, um dos mais respeitados médicos de família e comunidade e uma das principais
referências em MFC do mundo, autor do primeiro Tratado de Medicina de Família e Comunidade
(2010) – que escreveu durante os anos 1968 e 1987 ((Ramirez e Norman, 1991), há quatro
competências próprias desta especialidade indispensáveis para a consecução dos atributos da
APS:
1) solução de problemas que se apresentem indiferenciados; 2) competências preventivas; 3)
competências terapêuticas (de problemas frequentes de saúde); 4) competência de gestão de
recursos.

Já em 1996, McWhinney fez referência, no seu artigo The importance of being diferente, às
características essenciais e próprias da especialidade que persistem fundamentais até os dias de
hoje:
1.” É a única disciplina que se autodefine em termos
de relacionamentos, especialmente a relação médico- pessoa;
2. Médicos de Família tendem a pensar em termos
de pacientes concretos, mais do que abstrações generalizadas;
3. Medicina de Família é baseada numa visão do organismo,
mais do que numa visão mecanicista da biologia;
4. Medicina de Família é o único campo significativo de
conhecimento que transcende a visão dualista entre mente e corpo”

Nesta época, o movimento pelo renascimento da Medicina de Família também ganhou força na
Europa com a realização da I European Conference in the Teaching of General Practice, em
Bruxelas, no ano de 1970 (Campos, 2005). Três documentos/declarações elaboradas pelo Grupo
de Trabalho Leewenhorst criado durante a II Conference in the Teaching of General Practice em
1974 também contribuíram para fortalecer a implantação de um modelo mais consistente no
campo da medicina de família na Europa (Campos, 2005).

A necessidade de os países adotarem programas de residência em medicina de família tornava-se


cada vez mais enfatizado. O próprio GT Leeuwenhorst propôs em 1979 que todos os países
passassem a “formar generalistas nos quais o povo possa ter completa confiança e isto não poderia ser
alcançado sem que a qualidade e a duração do treinamento sejam comparadas com outros clínicos”.

16
A progressiva introdução da Atenção Primária à Saúde na rede de atenção à saúde nos anos
subsequentes, haveria de abrir caminho para o crescimento da medicina de família e comunidade
enquanto especialidade médica e tornar-se campo privilegiado de atuação dos seus especialistas.

Em 1978, a crise dos sistemas de saúde, baseados no modelo hospitalocêntrico de atuação e


flexneriano de formação, já havia ganhado repercussão internacional. A histórica Conferência
Internacional de Atenção Primária à Saúde promovida pela Organização Mundial de Saúde em
parceria com o UNICEF, em Alma Ata, com a participação de 134 países e realizada em 1978, insta
os governos a implementar a Atenção Primária à Saúde (APS) como parte de um sistema nacional
de saúde integral e em coordenação com outros setores para enfrentar os condicionantes
econômicos, sociais e ambientais da saúde, mobilizando vontade política e recursos e
incentivando a participação social.

Consagra-se então a Atenção Primária à Saúde como estratégia indispensável para que os países
viessem alcançar a meta “Saúde Para Todos” [no ano 2000] . E a APS firma-se finalmente como
cenário privilegiado de atuação do especialista em Medicina de Família e Comunidade no âmbito
internacional.

Vale salientar que o contexto histórico em que surgiram estas propostas foi marcado pela
crescente urbanização, pelo crescimento populacional acentuado e pela desigualdade social. Os
governos estavam sendo chamados a buscar estratégias para melhorar o acesso aos sistemas de
saúde com a otimização de custos e melhoria dos indicadores de saúde e doença.

Para tanto, a Declaração de Alma Ata enfatizou que a APS havia de ser considerada como:

“parte integrante do Sistema Nacional de Saúde, que constitui a função central e o núcleo principal do
desenvolvimento social e econômico global da comunidade. Representa o primeiro nível de contato dos
indivíduos, da família e da comunidade com o Sistema Nacional de Saúde, levando o mais próximo possível
a atenção à saúde no lugar onde residem e trabalham as pessoas, constituindo o primeiro elemento de um
processo permanente de assistência à saúde” (Declaração de Alma-Ata, 1978)

Estas orientações da Declaração de Alma Ata, coincidiam com aquelas descritas, previamente em
1977, pelo Grupo de Trabalho de Leeuwenhorstsobre o trabalho do especialista em medicina de
família, destacando alguns pontos-chave: os cuidados personalizados a pessoas e famílias de um
território determinado; a visão abrangente, integrando fatores físicos, psicológicos e sociais; as
atividades colaborativas com outras disciplinas e a responsabilidade profissional com a
comunidade: (LEUWENHORST GROUP, 1977, p.1).

É inegável que tal descrição mostra-se coerente com os atributos que caracterizam a Atenção
Primária à Saúde segundo o entendimento da consagrada professora e pesquisadora Bárbara
Starfield, a saber: acesso, longitudinalidade, integralidade, coordenação do cuidado (atributos
essenciais), orientação familiar, orientação comunitária e competência cultural (atributos
transversais).

17
Estes preceitos do Grupo de Trabalho de Leeuwenhorst foram revistos pela Wonca Europa
(2002), no documento: A Definição Europeia de Medicina Geral e Familiar (Clínica Geral / Medicina
Familiar) sendo destacados os cinco núcleos centrais da especialidade: 1. Gestão de cuidados
primários; 2. Cuidados centrados na pessoa; 3. Aptidões específicas de resolução de problemas;
4. Orientação comunitária e 5. Modelação holística.

Em 2010, a Confederação Iberoamericana de Medicina Familiar, uma das sete regionais da


WONCA (4) (da qual a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade faz parte)
considerando a importância de desenvolver um perfil de base para a especialidade na região,
lança o documento: Perfil do Medico de Família e Comunidade: Definição Iberoamericana (CIMF,
Wonca, 2010). Neste documento, destaca que a “Medicina de Família e Comunidade como
especialidade clínica é a disciplina com melhores capacidades para liderar a aplicação da
estratégia da Atenção Primária em Saúde, dado a perspectiva clínica com a qual atua, com
estratégias, tecnologias e técnicas que lhe são próprias, além de seu enfoque na prevenção de
riscos, na atenção contínua, na integralidade e no humanismo”.

Literalmente aponta entre outras características:

“A Medicina de Família e Comunidade é a especialidade clínica que se


ocupa da manutenção da saúde e da resolução dos problemas frequentes
de saúde dos indivíduos, famílias ou comunidades,
independentemente da idade, do sexo, do órgão ou sistema afetado.
É, além disso, a especialidade que se integra em profundidade
às ciências biológicas, clínicas e comportamentais dando o enfoque característico
de uma abordagem bio-psico-social e espiritual.
A efetividade da Medicina de Família e Comunidade, ao responder as necessidades
assistenciais da população em 90 a 95% das vezes,
potencializa o uso dos recursos com um alto sentido humano.”

O Documento chama especial atenção para o trabalho multidisciplinar e intersetorial, bem como
a importância do trabalho comunitário da MFC na Região:

“Os médicos de família e comunidade trabalham de maneira interdisciplinar [...] formando uma Equipe de
Saúde. Na maior parte dos países da Região, o trabalho na comunidade se destaca como prioritário. Por
isto, o cuidar da comunidade merece um lugar especial neste documento que define o perfil do médico de
família e comunidade. Em todas as instâncias envolvidas nas ações comunitárias, o médico de família e
comunidade deve trabalhar interdisciplinarmente e intersetorialmente, ser parte ativa da equipe de saúde
e de equipes interculturais.”

_______________________________________________
4 - A Organização Mundial de Médicos de Família (WONCA) é uma organização sem fins lucrativos e foi
fundada em 1972 com organizações membros em 18 países. WONCA tem atualmente 118 organizações
membros em 131 países e territórios, com a adesão de cerca de 500.000 médicos de família e mais de 90
por cento da população mundial. https://www.globalfamilydoctor.com

18
A partir de Bárbara Starfield, especialmente, temos uma bibliografia robusta a evidenciar os
benefícios concretos da APS e da Medicina de Família e Comunidade, como: a maior oferta de
médicos de família está associada a maior expectativa de vida ao nascer; a adição de um médico
de família à APS está associado a um aumento de mais de um ano na expectativa de vida em
média. Evidencia-se também que a APS de alta qualidade, contando com médicos de família e
comunidade na sua organização, promove clara redução nas taxas de mortalidade infantil, assim
como na redução de internações por condições sensíveis à APS, e está associada à redução das
iniquidades em saúde, além de proporcionar outros tantos benefícios (Shi et al, 2003; Mendonça
et al, 2019; Starfield, Shi , Macinko 2005).

A despeito das evidências, e apesar da atenção primária ter sido implantada na maior parte dos
países mais ricos economicamente do mundo, com sistemas universais, as resistências à sua
implantação e desenvolvimento, especialmente nos países em desenvolvimento, persistem até os
dias de hoje. Assim como também persistem as resistências à incorporação e ao desenvolvimento
da Medicina de Família e Comunidade, seja no nível da prática, seja no nível da formação médicas.
Uma das explicações possíveis para a resistência às mudanças nos sistemas de saúde pode estar
na ascensão ao poder de dirigentes conservadores na Europa e nos Estados Unidos que
adotaram políticas neoliberais com suas receitas únicas, sem alternativas.

Nas palavras de Giovanella et al (2019)

“a partir de propostas do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e da Fundação Rockefeller,
concebeu-se uma atenção primária seletiva e focalizada, voltada à saúde infantil, em contradição com o ideário
amplo de equidade e saúde como direito universal da Carta de Alma-Ata.. [...] Na América Latina, nas décadas de
1980 e 1990, acompanhando os programas de ajuste estrutural e imposições do Banco Mundial, difundiram-se
pacotes mínimos de serviços de APS direcionados a grupos específicos como o materno-infantil ou populações em
extrema pobreza”.

Estas resistências à implantação da APS e da MFC têm sido objeto de estudos e de diferentes
movimentos de reforma sanitária liderados por diversas instituições de caráter nacional e
internacional. Um destes foi a Conferência de 1994, organizada pela OMS em parceria com a
Wonca (em Ontário, Canadá), intitulada: Tornar a Prática e a Educação Médica mais relevantes
para as necessidades de Saúde das pessoas – A Contribuição da Medicina Familiar
(WHO&WONCA, 1994) ocorrida, portanto há quase 27 anos, e quase 20 anos após Alma Ata.

O Relatório deste documento apresenta reflexões, argumentos e vinte recomendações válidas até
os dias de hoje, dentre as quais destacam-se as de número um e quatro respectivamente
(WHO&WONCA, 1994):

19
Recomendação 1 - Aceitar que os sistemas de saúde devem mudar: Mudanças fundamentais precisam ocorrer
nos sistemas de saúde para se tornarem mais equitativos, custo-efetivos e atenderem melhor as necessidades de
saúde das pessoas; e a MFC deve ter um papel central neste processo, provendo atenção médica de elevada
qualidade e integrando os cuidados individuais com os cuidados comunitários.

Recomendação 4 - A maioria dos médicos de um país devem ser médicos de família. ... e se devem estabelecer
políticas nacionais no sentido de atingir este objetivo o mais rápido possível.

Em 2008, considerando ainda as resistências a mudanças no sentido de uma APS qualificada, a


OMS lança um relatório, intitulado Primary Health Care: now, more than ever (OMS, 2008). Este
relatório surge 30 anos após a Conferência de Alma-Ata de 1978. O relatório reconhece que,
apesar dos avanços, desde Alma Ata, o progresso na saúde tem sido profunda e inaceitavelmente
desigual, com muitas populações desfavorecidas ficando cada vez mais para trás ou até mesmo
perdendo espaço. Argumenta que caminhar em direção à saúde para todos requer que os
sistemas de saúde respondam aos desafios de um mundo em mudança e expectativas
crescentes de melhor desempenho. Isso envolve uma reorientação e reforma substanciais das
formas como os sistemas de saúde operam na sociedade hoje: essas reformas constituem a
agenda da renovação da APS. Estrutura as reformas da APS necessárias em quatro grupos, dos
quais destacamos aquelas nas quais os sistemas de saúde possam contribuir para a equidade na
saúde, a justiça social e o fim da exclusão, principalmente avançando para o acesso universal e a
proteção social da saúde. Exemplifica com países de contextos mais ricos onde a reforma foi
adequada, referenciando a médicos com especialização em medicina familiar. Também cita como
exemplo exitoso a experiência de países em desenvolvimento e especificamente o Brasil com a
Estratégia Saúde da Família.

Em 2007, a Organização Pan-americana da Saúde se reúne para lançar o documento Renovação


da Atenção Primária em Saúde nas Américas (OPAS, 2007). Neste relatório são identificadas ainda
resistências à implantação e ao desenvolvimento da APS nas Américas. Estes opositores estão
apresentados como "[...] aqueles que veem a renovação da APS como uma ameaça a um status quo
que desejam manter. [e, neste contexto] alguns médicos especialistas e suas associações, hospitais,
assim como a indústria farmacêutica e algumas organizações de difusão para suas ideias”. Chama
ainda a atenção para o fato de que esses grupos estão entre os “mais poderosos em termos de
recursos e capital político [e, seus] interesses estão frequentemente alinhados em oposição a muitos
esforços de reforma da saúde”.

Em 2018, na comemoração dos 40 anos da Declaração de Alma-Ata, e por iniciativa da OMS, do


UNICEF e do Governo do Cazaquistão, realizou-se, em Astana, Conferência Global sobre Atenção
Primária à Saúde, com o propósito de renovar o compromisso da APS para o alcance da
cobertura universal em saúde (Universal Health Coverage - UHC) e os Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável (ODS).

20
A Conferência de Astana ocorre em um contexto internacional distinto daquele de Alma-Ata,
com políticas de austeridade, crise migratória e ameaças à democracia. Restringe o sentido da
APS integral de Alma-Ata e o alcance do direito à saúde ao subsumi-la à UHC. A UHC, moldada
na última década com forte influência da Fundação Rockefeller e do Banco Mundial, congrega
diretrizes das reformas pró-mercado como a redução da intervenção estatal, subsídios à
demanda, seletividade e focalização nas políticas de saúde (Giovanella et al, 2019).

A Carta de Astana pode ser considerada simplista na medida que não faz uma auto-avaliação
ou uma avaliação dos motivos mais profundos pelos quais a APS ainda não é priorizada nem
estabelecida - nem sequer a partir dos estudos realizados pela própria instituição em 2018
(OMS/OPAS). Também continua sem apontar a necessidade do médico especialista em APS, não
cita a MFC. Continua a banalizar a APS e a pensar numa APS pobre para pobres, especialmente
nos países mais pobres, que justamente, precisam de uma APS altamente qualificada – e, além
disso, não critica a gestão em saúde e as políticas de saúde.

É necessário, finalmente, ainda que tardiamente, fazer de fato, Alma Ata acontecer. Agora com
mais conhecimento, com base em novos paradigmas científicos que deem conta da
complexidade do processo saúde –adoecimento do mundo contemporâneo.

Medicina de Família e Comunidade no Brasil, contexto técnico e político

No Brasil, os primeiros projetos de formação em Medicina de Família e Comunitária, surgem


ainda antes de Alma Ata: os primeiros programas de Residência em Medicina Geral Comunitária
(nome original da especialidade) surgem em 1976 na Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(UERJ), no Murialdo (Porto Alegre) e em Vitoria de Santo Antão, Pernambuco, sendo logo
seguidos pelos programas do Grupo Hospitalar Conceição, em Porto Alegre e de Natal no Rio
Grande do Norte (Falk, 2004).

Em 1981, a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) formaliza e regulamenta os


Programas de Residência Médica (PRM) inclusive de Medicina Geral Comunitária, oficializando
esta especialidade no Brasil.

Ainda em 1981, é fundada em Petrópolis, estado do Rio de Janeiro, a Sociedade Brasileira de


Medicina Geral Comunitária (SBMGC), que pouco tempo depois fica desativada pelas
dificuldades de contato a nível nacional.

Em 1986, o Conselho Federal de Medicina (CFM) reconhece a Medicina Geral Comunitária como
Especialidade Médica e a Sociedade Brasileira de Medicina Geral Comunitária como sua
representante.

Neste ano de 1986, acontece a 8a Conferência Nacional de Saúde, a partir de intensa


movimentação da sociedade civil, discutindo e apresentando propostas que subsidiaram a
criação do SUS. Durante a 8ª Conferencia, ,a SBMMG é reativada sendo eleita nova diretoria e
passando a sede para Porto Alegre (Falk, 2004).

21
Naquela época, antes da constituição do SUS, o Instituto Nacional de Assistência Medica da
Previdência Social (INAMPS) financiava a maioria das bolsas de residência médica em todo o
país. Em 1987, a presidência INAMPS corta o financiamento de praticamente todas as bolsas
dos programas de residência em Medicina Geral Comunitária, exceto aquelas financiadas com
recursos provenientes de outras fontes, como foi o caso do programa de residência em MFC da
UERJ, com financiamento estadual. Foi um duro golpe para a especialidade, uma vez que a
maioria dos programas foram extintos e outros mudaram de nome para Preventiva e Social,
como uma estratégia de sobrevivência (Falk, 2004). Ai, temos uma questão emblemática de
fundo: um conflito entre duas especialidades essenciais, com algumas áreas comuns de campo,
mas com núcleos de atuação distintos, ambas igualmente importantes para o SUS: Preventiva
Social e Geral Comunitária.

Em 1994, o Ministério da Saúde cria o Programa de Saúde da Família (PSF), tornado Estratégia
Saúde da Família (ESF) em 1996. Para a Medicina Geral Comunitária se abre – afinal a
possibilidade de um campo de trabalho no Brasil, no contexto de um modelo de APS mais
robusto, afastado daquela ideia simplista sempre associada à APS.

Apesar disto, em 1999, a MCG ainda enfrenta novo desafio, desta vez por parte da Comissão
Nacional de Residência Médica (CNRM) que promove um Seminário em Campinas (Brasil, 1999),
junto com representantes da especialidade e Residência da Preventiva e Social, em conjunto
com representantes da especialidade e residência em MGC para avaliar se esta seria extinta, ou
se tornaria o 3º ano da Residência Médica em Preventiva em Social. O resultado do seminário
apontou para a manutenção das duas residências e das duas especialidades (Brasil, 1999).

Paralelamente, com o desenvolvimento e implementação da ESF, a SBMGC que havia ficado


desativada mais um período, desta vez de 1986 a 2001, é reativada a partir do 1° Encontro
Luso-Brasileiro de Medicina Geral, Familiar e Comunitária, realizado em 2000, no Rio de
Janeiro/RJ (Falk, 2004).

Em 2002, a SBMGC decide pela mudança do nome da especialidade de Medicina Geral


Comunitária para Medicina de Família e Comunidade e em 2004, realiza a primeira prova para
obtenção de título de especialista, em parceria com a Associação Médica Brasileira (AMB).

Estratégia Saúde da Família e Medicina de Família e Comunidade no Brasil hoje


A Estratégia Saúde da Família, pelo seu caráter robusto, abrangente e multidisciplinar vem
constituindo, de fato, uma oportunidade única para a reforma do sistema de saúde brasileiro,
com saída do modelo hospitalocêntrico, para um outro, conformado por uma rede poliárquica
de serviços (Mendes, 2011), onde a APS poderá se tornar, de fato, coordenadora do cuidado em
saúde. A ESF tem se constituído um espaço de atuação para a MFC. Também é espaço de
ensino-aprendizagem para a APS, tanto para a graduação em medicina e outras áreas da saúde,
e cenário privilegiado de formação em MFC, e para outras profissões na área da saúde,
especialmente a enfermagem e a odontologia, mas não exclusivamente.

22
Os princípios, conceitos e práticas da MFC se articulam e guardam sintonia aos da ESF. A
atuação da MFC na ESF pode ser descrita tomando por base algumas das características da
especialidade através da Resolução 05/2002 que a regulamenta no âmbito dos programas de
residência médica da Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM, 2002):

A característica básica da MFC é atuar, prioritariamente, em Atenção Primária à Saúde, a partir de uma
abordagem biopsicossocial do processo saúde adoecimento, integrando ações de promoção, proteção,
recuperação e de educação em saúde no nível individual e coletivo, priorizando a prática médica centrada na
pessoa, na relação médico-paciente, no cuidado em saúde e na continuidade da atenção; atender, com elevado
grau de qualidade, sendo resolutivo em cerca de 85% dos problemas de saúde relativos a diferentes grupos
etários; desenvolver , planejar, executar e avaliar programas integrais de saúde, para dar respostas adequadas
às necessidades de saúde da população sob sua responsabilidade; estimular a participação e a autonomia dos
indivíduos, das famílias e da comunidade; desenvolver novas tecnologias em atenção primária à saúde;
identificar os problemas e necessidades de saúde da comunidade, particularizando grupos mais vulneráveis;
implementar ações de promoção, proteção e recuperação da saúde de caráter coletivo e no âmbito da atenção
primária; atuar com sistema de referência e contrarreferência dentro e fora da unidade e também desenvolver
ação intersetorial, acionando secretarias municipais, entidades, instituições e outras organizações sempre que se
fizer necessário.

Por sua vez, o currículo baseado em competências da Sociedade Brasileira de Medicina de


Família e Comunidade (SBMFC, 2014), destaca cinco características básicas da especialidade: (1)
Oferecer uma ampla gama de serviços dentro de seu escopo de ações e adaptar sua prática às
necessidades de seus pacientes. (2) Conhecer os seus pacientes e sua família e ampliar esse
conhecimento ao longo do tempo. (3) Coordenar o cuidado de seus pacientes. (4)Conhecer o
contexto familiar e comunitário de seus pacientes. (5) Adaptar sua prática ao contexto cultural
em que está inserido.

O documento descreve detalhadamente as competências necessárias para cada uma destas


dimensões das quais destacamos aqui àquelas relativas à importância do trabalho em equipe
multiprofissional para a MFC:

· Trabalhar o cuidado de forma compartilhada [...], propiciando


momentos de troca de conhecimentos com outros profissionais.
· Trabalhar junto com a equipe no reconhecimento das necessidades
de saúde da sua comunidade,
buscando atuar em equipe de forma ativa e respeitosa.

Assim a MFC tem inserção prevista nas atividades da ESF, sejam elas atividades de consulta
individual, de abordagem familiar; visitas domiciliares; atividades de grupo terapêutico e de
educação em saúde; atividades interdisciplinares intersetoriais; de abordagem e diagnóstico
comunitário; participação em reuniões de equipe para avaliação e planejamento de ações; entre
outras.

23
Estratégia Saúde da Família, políticas de indução, crescimento e ameaças de desmonte
A partir da ESF, numerosas políticas de qualificação e indução foram promovidas pelo Ministério
da Saúde e Ministério da Educação, especialmente entre o início dos anos 2000 até 2016, que
estavam permitindo avanços incontestes na organização do SUS (Anderson, 2019).

Podem ser citadas como algumas destas iniciativas: Pró-saúde, Programa Nacional de
Reorientação da Formação Profissional em Saúde, lançado em 2005; a Política Nacional de
Atenção Básica (PNAB) de 2006, instituída com o propósito de revitalizar a Atenção Primária a
partir da consolidação e qualificação da Estratégia Saúde da Família como modelo oficial de APS
e centro ordenador da rede de atenção à saúde no SUS; as equipes de Saúde Bucal em 2004; o
Telessaúde – integrando ensino e serviço por meio de ferramentas de tecnologias da
informação, para promover a Tele assistência e a Telê educação, com lançamento em 2007; a
Criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família, em 2008; o Programa Nacional de Apoio à
Formação de Médicos Especialistas em Áreas Estratégicas (Pró-Residência Médica), lançado em
2009; o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde) iniciado em março de
2010; o Sistema Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS) lançado em dezembro de 2010; a PNAB
de 2011 que reforçou o papel dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF); a Portaria nº
3.147/2012 sobre Residência de Medicina de Família e Comunidade e Apoio à gestão municipal,
em dezembro de 2012, para incentivar os municípios a desenvolverem o Programa de
Residência de Medicina de Família e Comunidade; o Programa de Requalificação de Unidades
Básicas de Saúde (Requalifica UBS), instituído em 2011; a estratégia Consultório na Rua,
instituída pela pela Política Nacional de Atenção Básica, em 2011; o Programa Nacional de
Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ), lançado em 2011; o Programa
Mais Médicos (PMM) em outubro de 2013, por meio da Medida Provisória nº 621,
posteriormente convertida na Lei nº 12.871, em outubro de 2013; que previa a criação entre
outras iniciativas, de 12.000 vagas para PRMFC; a criação do Mestrado Profissional em Saúde da
Família (ProfSaúde) com elaboração iniciada em 2013 e lançado em 2016, um programa de pós-
graduação stricto sensu, de caráter nacional, reconhecido pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) do Ministério da Educação (Anderson,
2019).

Todas estas iniciativas foram e são necessárias para vencer as barreiras ainda presentes na
conformação e qualificação de uma APS robusta no SUS. Reconhecidamente, uma das principais
é aumentar o quantitativo de especialistas em MFC. O país requer, no mínimo, sessenta mil
médicos e médicas de família e comunidade. Vencer este desafio exige políticas públicas –
especialmente em relação à definição do percentual de vagas para programas de residência
médica, como é feito em diversos países, como Canadá – onde a média percentual de vagas para
programas de residência em medicina de família e comunidade é de 44% (Canadá, 2014).

Todas estas iniciativas apontam para o comprometimento dos princípios da universalidade e da


integralidade que regem o SUS e restringem o alcance do olhar profissional, limitando o espectro
da prática em saúde na APS, valorizando apenas o cuidado clínico individual, em detrimento das
abordagens familiar e comunitária.

24
Desafios presentes para a Medicina de Família e Comunidade na Estratégia
Saúde da Família
Os principais desafios enfrentados hoje pela MFC na ESF estão nas respostas a estas
perguntas:

Quais estratégias técnico-políticas, de curto e médio prazo, para alcançamos o


número de 60.000 (no mínimo) e 100.000 (necessário) MFC?
Como atrair e fixar MFC nos municípios?
Como atrair estudantes de MFC para a especialidade?
Como estabelecer um plano de cargos, carreira e salários que apresente uma
possibilidade de estabilidade financeira e de projeto de vida para a MFC?
Como manter a visão e a prática ampliada da MFC, incluindo a necessária e
inextricável simultaneidade entre Abordagem Centrada na Pessoa, Abordagem
Familiar e Abordagem Comunitária?
Como atuar para manter a lógica da ESF/NASF e a perspectiva multidisciplinar?
Como atuar para alcançar uma população adscrita que seja adequada para o
cuidado em saúde dentro de limites razoáveis? (no máximo 3.000 pessoas/equipe –
e se população vulnerabilizada – até 2.500 pessoas?)
Como lidar com o agressivo movimento que algumas operadoras de planos de
saúde vêm fazendo para contratar médicos de família para atuar no setor privado?
(Coelho, G.C., Antunes, VH., Oliveira, A., 2019)
Como lidar com a possibilidade de fechamento de serviços e unidades públicas de
saúde com o agravamento do já insuficiente financiamento do SUS?
Como lidar com o agravamento da iniquidade que pode advir da não resolução
destas situações?

25
Considerações finais
Para alcançar o pleno desenvolvimento da APS é necessário alcançar igual desenvolvimento da
Medicina de Família e Comunidade e outras disciplinas que atuam na linha de frente da ESF/APS,
especialmente a Enfermagem e a Odontologia.

Para atingirem seu potencial, necessitam superar as limitações do modelo cartesiano – anátomo-
clínico e biomédico que comprometem a compreensão do processo saúde-adoecimento em sua
integralidade. Para tanto necessitam atuar sob a égide do paradigma sistêmico e complexo, vez
que saúde e adoecimento são fenômenos complexos, e afetados por condições relacionadas ao
campo biológico, psico-afetivo, sócio-cultural, ambiental, espiritual-existencial. É na APS que estas
relações e condicionantes se evidenciam com maior nitidez. Por isso mesmo, a APS revela-se
como um nível de atenção da mais alta complexidade, a exigir, portanto, profissionais
especialistas qualificados. Neste cenário, a ESF, caracterizada pelo trabalho em equipe
multiprofissional é – reconhecidamente - um dos modelos de APS mais avançados do mundo a
exigir ações concretas de resistência às tentativas de desmonte, bem como ao lado de outras
tantas, voltadas para seu desenvolvimento permanente.

26
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