A3_ TRANSEXUALIDADE E PSICANÁLISE
A3_ TRANSEXUALIDADE E PSICANÁLISE
A3_ TRANSEXUALIDADE E PSICANÁLISE
ACADÊMICOS:
CURSO: Psicologia
Joinville, 2024
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Sumário
Introdução 3
1. Nos escritos e tempos de Freud 4
2. Como teorizou Jacques Lacan 7
3. Novos conceitos de Stoller 12
4. A contribuição filosófica de Butler 15
5. O questionamento de Coutinho Jorge 17
6. Rafael Kalaf Cossi sobre as intervenções no corpo 18
7. Um certo Paul Preciado 19
8. Jacques Alain-Miller do Dócil ao Trans 21
9. Considerações Finais 24
10. Referências Bibliográficas 29
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INTRODUÇÃO
“Nos mais diversos contextos e entre diferentes abordagens que tratam o tema da
transexualidade, há algo em comum: existe uma síncope entre o sexo biológico e o
sexo psicológico. As pessoas transexuais têm o desejo de viver e se afirmar
identitariamente de forma oposta ao gênero que a ela foi designada com base em
seu sexo de nascimento, entretanto, nem sempre desejam passar pelo processo de
transgenitalização (COELHO, 2013 apud Moura 2018, pág. 97)”.
“Para a psicanálise, o corpo que interessa não é o organismo – o corpo que é tratado
pela medicina. Não, o corpo que interessa é o corpo vivo, tal como o amamos ou
rejeitamos, tal como é inscrito em nossa história e tal como é envolvido na troca
afetiva, sensual e inconsciente com nossos parceiros. O corpo que interessa a
psicanálise é o corpo tal como o vivemos, tal como o interpretamos e, tal como o
fantasiamos (NASIO, 2009 apud Moura, 2018, pág. 99)”.
Porém, apesar do passar dos anos e das inúmeras possibilidades fornecidas pela
ciência, ainda se mantêm as ideias constitutivas do corpo como o “ser homem ou mulher” e
embora haja todo um aparato tecnológico favorável à transição sexual das pessoas trans,
ainda há a atribuição de um teor patológico a essas pessoas.
Definida como transtorno mental no CID-10 pelo código F64.0, em 2019 foi
reclassificada como incongruência de gênero no CID-11, onde a OMS justifica, não se tratar de
um problema de saúde mental, mas sim de uma condição relacionada à saúde sexual. Já para o
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), se trata de disforia de
gênero que se caracteriza por uma forte incongruência entre o gênero vivenciado e o sexo
atribuído ao nascimento.
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“A patologização das transidentidades via Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais (DSM 5) como disforia de gênero, ocorre em virtude de uma
cadeia de disciplinas que cooperam com a manutenção dessa lógica diagnóstica:
medicina-psiquiatria, psicologia, direito etc. Tais saberes se articulam e corroboram
com a produção de normas de gênero. Para Sampaio e Coelho (2013) o Código
Internacional de Doenças (CID) ou o DSM 5 não devem ser empregados como verdades
absolutas sobre o conceito de doença, como muitos o entendem, mas, somente como
uma possível ferramenta que nos dá uma definição. Diante disso, a psicanálise emerge
com a capacidade de contribuir com um novo olhar para as(os) transexuais, pois
amplia o discurso da ciência, fazendo entender que dizer para o sujeito o que ele deve
ser/fazer é tentar impor nossos desejos, crenças pessoais, ideológicas e expectativas
sociais para o outro, negando a ele o direito de caminhar rumo a um processo de
singularização, privando-o da autonomia sobre si (COELHO, 2006). Então, se “o gênero
não é uma essência, mas um devir, os seus destinos dependem dos atores políticos e
clínicos implicados, e as possibilidades de subjetivação se fazem de acordo com a
contingência histórica em que se apresentam” (ARÁN et al., 2008, p. 78 apud Moura
2018, pág. 102)
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A partir daí, a psicanálise passa a teorizar a sua concepção de sexualidade, enfatizando
que este fenômeno tem um lugar marcante na constituição do sujeito, tendo essas teorias
gerado muitas críticas no meio médico, pois o foco saia da biologia para um ser humano
cultural. “A sexualidade tem uma multiplicidade de significados e não um sentido único,
então ela seria não só da ordem do biológico, mas também da linguagem. A condição da
sexualidade é ser polimorfa, o que significa que esta tem uma pluralidade de objetos
possíveis (LAZZARINI; VIANA, 2006 apud Moura, 2018, pág. 100)
Freud foi além no desenvolvimento da psicanálise, dando sentidos até então
inimagináveis para a sexualidade, de uma vazão criativa pelo qual nos constituímos
individualmente e culturalmente.
“Para Freud (1927/2020), a cultura é tudo aquilo em que a vida humana se elevou
acima das suas condições animalescas. Não obstante, o sujeito estabelece leis e regras
que servem de orientação e coerção de comportamentos e atitudes, bem como
resguardam das investidas e invasões do outro. Do mesmo modo que uma
investigação sobre a cultura já é, de antemão, comprometida por diversos fatores
(FREUD, 1927/2017) assim também é a investigação psicanalítica sobre o corpo. É a
partir dessa relação entre psicanálise e cultura que se considera importante o olhar
aos corpos Trans.” (Oliveira, 2021, pág. 24)
“A teoria popular sobre a pulsão sexual tem seu mais belo equivalente na fábula
poética da divisão do ser humano em duas metades – homem e mulher – que aspiram
a unir-se de novo no amor. Por isso, causa grande surpresa tomar conhecimento de
que há homens cujo objeto sexual não é a mulher, mas o homem, e mulheres para
quem não o homem, e sim a mulher, representa o objeto sexual. Diz-se dessas pessoas
que são de “sexo contrário”, ou melhor, ‘invertidas’, e chama-se o fato de inversão. O
número de tais pessoas é bastante considerável, embora haja dificuldades de apurá-lo
com precisão.” (FREUD, 1996, pág. 129)
Para tanto, Freud descola a sexualidade do campo biológico e que a fantasia, tal como
o desejo está em busca de realização de uma fantasia inconsciente, e que o faz situando a
sexualidade como não estando restrita a genitalidade:
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“(...) a experiência psicanalítica demonstra que a fantasia dos neuróticos é habitada
por aquilo que as práticas sexuais ditas perversas realizam e, desse modo, borra a
suposta definida barreira entre o normal e patológico na esfera das práticas sexuais,
já que a diferença fica situada entre o que se recalca e o que se realiza; desse modo
coloca que a bissexualidade ou homossexualidade não implicam nenhuma
degenerescência ou monstruosidade, como costumava-se afirmar na época, como se
aqueles que não dessem todas as voltas que levariam ao prazer nas práticas
heterossexuais fossem feitos de outra matéria e não da mesma que habita em nós,
desde a natureza aos trilhos de linguagem que inscrevem nossas
fantasias”.(MARIOTTO, 2018, pág. 91).
Considerando assim a bissexualidade inata, Freud diz que “há entre a pulsão sexual e
o objeto sexual apenas uma solda” e “assim somos instruídos a afrouxar o vínculo que existe
em nossos pensamentos entre a pulsão e o objeto” (FREUD, 1996, pág. 140), chamando a
atenção para a não conformidade da determinação biológica sobre escolha objetal, da qual
escreveu as variedades de possíveis relações sexuais, elegendo o termo “invertido” para a
época para o que nomeamos hoje como transexualidade e suas variações.
Freud, também desvela a complexidade desse tema e da qual se apresenta de uma
diversidade de formas, e não estando a nenhuma ordem propriamente estabelecida, mas a
uma serie de apontamentos possíveis para o entendimento da sexualidade na “inversão”
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com “os resultado da investigação psicanalítica para aprofundamento e relevância científica”
(FREUD, 1996, pág. 124).
Assim, a que se considerar que para além de “Os Três ensaios da sexualidade” o
desenvolvimento da teoria freudiana compreendeu, em seu percurso, a determinação de
importantes características da sexualidade: os desvios dos comportamentos, dos objetos e
dos objetos sexuais; a organização inicialmente bissexual da criança (FREUD, 1905/1996); as
diferenças entre anatomia e destinos sexuais (FREUD, 1925/1996); a passagem pelo Complexo
de Édipo (FREUD, 1924/1996).
JORGE (2008, pág.30), “a teoria da bissexualidade (...), embora tenha sido útil
para Freud no sentido de colocar as questões referentes à sexualidade humana de
forma inovadora, desfigura a verdadeira descoberta feita pela psicanálise, a do objeto
perdido do desejo. A bissexualidade constitui, na verdade, a possibilidade de
nomeação por Freud, das incidências produzidas pela perda originária do objeto do
desejo sobre a sexualidade humana”.
Este último, talvez o mais estruturante assunto psicanálise, da qual Freud teoriza sobre
os mecanismos psíquicos e a escolha objetal, consagrando a passagem pelo Édipo como um
importante marco de cada sujeito, onde a triangulação relacional se faz necessária para a
separação entre mãe e filho pela função paterna, culminando assim na identificação fálica
que desperta a busca por aquilo que lhe falta.
Assim, o “Complexo de Édipo é um processo a ser atravessado e que leva o sujeito a se
posicionar sexualmente: ou do lado feminino ou do lado masculino, finalmente identificando-
se com membros do seu próprio sexo e tomando o membro do sexo oposto como seu objeto
sexual (COSSI, 2010, pág. 204).” E, compreendendo as diferenças, a partir desse pressuposto
base, Freud acrescenta em nota de 1915 uma ressalva da qual em suas palavras diz que “É
verdade que a Psicanálise não trouxe até agora um esclarecimento completo da origem da
inversão; não obstante, desvendou o mecanismo psíquico de sua formação e enriqueceu
substancialmente a colocação dos problemas envolvidos. (FREUD,1996, pág. 138)
Considera-se que o título da obra, denominada “ensaio”, certamente escolhido por
dispor de uma ideia não conclusiva, deu passo inegavelmente grande em relação à época, de
colocar a sexualidade então repressora e adoecedora a vista da compreensão humana, dando
lugar às trajetórias pessoais e singulares infinitas possibilidades de ser.
O termo transexualidade não era ainda de uso, porém seu conceito se encontra escrito
em partes, em seus relatos de pacientes, das quais usou o termo “invertido” para descrever
esse conceito que é marcado pela diferença daquilo que as ciências biológicas e o meio
caracterizavam como a “função amorosa exigida pela normalidade” da época (FREUD, 1996,
pág. 221).
Jacques Lacan (1901-1981), cunhou uma visão da psicanálise voltada para um regresso
aos postulados de Sigmund Freud, e “em sua releitura à obra freudiana, trouxe importantes
contribuições para a compreensão das manifestações do inconsciente acerca do sujeito, do
Outro, do gozo, sexualidade, desejo, castração, dentre outros articulados à constituição do
corpo próprio numa estruturação psíquica.
Portanto, Lacan vai se debruçar sobre as obras de Freud e influenciado pela linguística
irá organizar a teorização das três estruturas – psicótico, neurótico e perverso – como forma
de funcionamento psíquico e como formas de se inscrever no campo da linguagem, colocando
o Complexo de Édipo em três tempos lógicos para a constituição do sujeito:
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Teoria do Édipo: Simbólico
Teoria da Alienação :Real
Ainda conforme FARIA (2020), “pode se considerar uma quarta que seria a teoria do
nós. Mas em todas elas, é a inscrição do ser no campo da linguagem.(...) É a entrada na
linguagem como inscrição do ser no campo do outro: o grande Outro.” Pois para Lacan nos
constituímos pela inscrição no campo da linguagem, e necessitamos passar por esses três
tempos lógicos e talvez ainda um quarto que estaria ligada ao nó Borromeano que liga os
pontos entre essas fases.
Assim, ao longo dos seus Seminários, para Lacan, a noção de corpo é formada pela
estruturação interna, psíquica e inconsciente :
“Pode ser pensado a partir de vários momentos da teoria. A exemplo disso, tem-se
que na obra lacaniana há teorizações acerca do corpo divididas a partir dos ensinos do
autor, ou seja, o corpo no “primeiro Lacan”, o corpo no “segundo Lacan”, o corpo nos
ensinos do “ultimíssimo Lacan”. Além disso, algumas leituras operam uma divisão a
partir dos registros do Real, Simbólico e Imaginário, bem como uma noção de corpo
que é impossibilitada sem a amarração entre os três registros ao considerar o nó
borromeano (Oliveira, 2021, pág. 37)”.
Por isso, tem se na psicanálise lacaniana a ideia de que o corpo não é um dado
orgânico, natural e originário, pois esse é construído na relação do corpo com a linguagem,
estando sujeito a uma consistência imaginária numa cadeia de significantes e significados.
“Segundo Miller (2004), ‘é um corpo onde se passam coisas’ (p. 50), onde ocorrem
coisas imprevistas. Ao considerar o Estádio do Espelho, Lacan fornece subsídios para
se pensar a essencial diferença entre o organismo biológico e o corpo visual - este
último constituindo uma imagem que encarna o sujeito sob identificações imaginárias,
uma matriz de sua corporização. É na sua teorização sobre o Estádio do Espelho que
Lacan irá estipular que a imagem corporal total com a qual o sujeito se identifica tem
valor de vida para o mesmo (Souto, 2016, pág. 193)”.
Assim, pela via da realização, primariamente imáginária – Estádio do Espelho - que possibilita
ao ser um suporte de fantasia e sua relação com as chamadas “identidades sexuais”, a ideia
de “diferença sexual” a ser compreendida como resultado de uma ordenação simbólica de
significantes e as relações estabelecidas com e pelo corpo enquanto enunciação de
desejo”(SOUTO, 2016, pág. 188). Nota-se, portanto, que o corporal é uma contingência para o
sujeito. O corpo é inscrito pelo desejo e as noções de homem e de mulher são apenas
significantes (LACAN, 1972-1973/1985 apud Souto, 2016. Pág. 193).
No caso do transexualismo existe uma não identificação, como se o sujeito não
pertencesse a esse corpo, na qual deseja livrar-se daquilo que pra ele não diz respeito a sua
significação, e passa a empreender em busca ao falo, aquilo que lhe falta. Por isso Lacan foi
bastante criticado devido as suas falas no sentido de se tomar precaução quando do
entendimento e posição do significante e significado para esse sujeito, como forma de não
incorrer em mudanças catastróficas. No Seminário 18, Lacan diz:
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significante. É como significante que o transexual não o quer mais, e não como
órgão. No que ele padece de um erro, que é justamente o erro comum. Sua paixão, a
do transexual, é a loucura de querer livrar-se desse erro, o erro comum que não vê
que o significante é o gozo e que o falo é apenas o significado. O transexual não quer
mais ser significado como falo pelo discurso sexual, o qual, como anúncio, é
impossível. Existe apenas um erro, que é querer forçar pela cirurgia o discurso sexual,
que, na medida em que é impossível, é a passagem do real (LACAN, 1970-1971/2009,
p. 30 apud Souto, 2016, pág. 30).”
“Do corpo imaginário a “o imaginário é o corpo” parece ser essa a relação das
pessoas Trans com o espelho e, posteriormente, com um outro que lhes confere
certa identificação. A partir dessa claudicação é que se articula essa dimensão
imaginária do corpo com a noção do “ter um corpo” trazida por Lacan em sua obra “O
seminário, livro 23: o sinthoma” (LACAN, 1975-76/1999). Ao considerar que o sujeito
tem um corpo e não que ele é um corpo, abre-se o campo de discussão para uma
certa invenção. Invenção que cada sujeito terá que empreender para construir para
si certa consistência corporal (Oliveira, 2021, pág. 38).”
Dessa forma, articulando o campo imaginário pelo estádio do espelho, produziu uma
simbolização naquilo que lhe falta inconsciente quando da passagem pelo Édipo.
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“O Complexo de Édipo tem a função normativa, não simplesmente na estrutura moral
do sujeito, nem em suas relações com a realidade, mas quanto à assunção do seu sexo
[...]. [...] há no Édipo a assunção do próprio sexo pelo sujeito, isto é, para darmos os
nomes às coisas, aquilo que faz com que o homem assuma o tipo viril e com que a
mulher assuma certo tipo feminino, se reconheça como mulher, identifique-se com
suas funções de mulher. A virilidade e a feminilização são os dois termos que traduzem
o que é, essencialmente, a função do Édipo (LACAN, 1957-1958/1999 apud Souto,
2016, pág. 198)”.
“O desejo humano é causado por um objeto que falta e que, como tal, é responsável
pela estrutura faltosa que produziu o advento do simbólico enquanto fator
absolutamente novo da evolução. Com o advento do simbólico, o sujeito humano
desenvolveu uma linguagem que mediatizou um acesso diferente ao real, e, por meio
dele, abriu portas que constituíram seus quatro mais excelentes caminhos: arte,
ciência, filosofia e religião (...). Mas o que significa afirmar, com Lacan, que o objeto do
desejo é um objeto faltoso? Perdido em algum momento da evolução da espécie
humana, o objeto de desejo se inscreve como falta estruturante: perdido para a
espécie, o objeto é faltoso para cada sujeito (JORGE, 2008, pág.36).”
Considerando ainda a função fálica, é através dela que Freud e mais ainda Lacan
articula a noção da inscrição no campo simbólico de ser homem e mulher. Pois;
E indo mais além, é nessa ordem que Lacan fala “A mulher não existe”. Uma frase
bastante polêmica, que ao som dos não entendidos pode soar uma afronta. Mas é através dela
que pelo “lado da mulher, Lacan institui a noção de "não-todo" no que se refere à inscrição na
ordem simbólica. Lacan acrescenta um "a mais". Diz ele: "Não é porque ela é não-toda na
função fálica que ela deixa de estar nela de todo. Ela não está lá não de todo. Ela está lá a
toda. Mas há algo a mais" (LACAN, 1972-1973/1985, p. 100 apud Souto, 2016,pág 194)”.
“Em Freud, a compreensão do feminino foi vista a partir da lógica fálica: ter ou não ter
o falo. Para Lacan, não se pode encontrar em uma mulher a essência da feminilidade
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sob a forma de um significante. Ele utiliza, então, o termo "essência feminina" para
definir um modo de operar com o gozo fálico, que é o "não todo fálico" (LEITE, 2012).
No Seminário 10, A angústia (1962-1963/2005), Lacan começa a despregar a
compreensão do feminino pela lógica de Freud e afirma no capítulo XIV, intitulado "A
Mulher, mais Verdadeira e mais Real", que existe um gozo mediado pelo falo que
coexiste com um gozo não todo mediado pelo falo. Ou seja, para Lacan a questão do
feminino implica tanto pensar a mulher regida por um gozo fálico em sintonia com a
lógica do significante, portanto um gozo limitado e localizado; quanto por um gozo
Outro, um gozo que não cai sobre a barra do significante.(Souto, 2016,pág 195)”.
Fica explícito que para a mulher não é toda regida pela lógica fálica, essa lógica não lhe
é própria e não satura de todo o circuito da pulsão sexual. Com essa nova perspectiva, Lacan
situa uma parte da sexualidade feminina num mais além da função fálica. A sexualidade
feminina teria como correlato um gozo Outro que não àquele dito sexual, o que pode ser
evidenciado na relação ao pênis, em que este não se constitui como um limite para a
constituição de sua subjetividade feminina. Ela se dá pela inscrição de diferentes formas, a
depender de cada sujeito e sua relação com o próprio corpo, para a construção do corpo
próprio, utilizando-se assim das fantasias, vestimentas para a construção disso que lhe falta.
“Que o mais provável é que a castração do órgão precipite o sujeito num quadro
delirante, pois a cirurgia de mudança de sexo mutila, de forma legal, o transexual:
castra o órgão, não é capaz de redesignar a identificação sexual do transexual como
tal, desaloja a paixão de passar ao outro sexo da porção do corpo onde ele se
localizava de forma eletiva. Isso não erradica o tormento do gozo, mas promove o
aparecimento de um corpo protético que, no final, já não é de homem, tampouco de
mulher”.
Conforme é visto no caso Schreber, conforme QUINET ( 2006 apud Souto, 2016, pág.198),
um conhecido caso de psicose que ocorre a foraclusão, ou seja, corresponde no sujeito à
abolição da lei simbólica, colocando em causa todo o sistema do significante. A foraclusão do
Nome-do-Pai implica a não travessia do Édipo, uma vez que o sujeito não é submetido à
castração simbólica, não havendo, portanto, possibilidade de a significação fálica advir. E por
não ter acesso ao falo, significante que traz efeito de significação sob seu sexo, o sujeito se
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encontra numa problemática fora-do-sexo, pois, não tendo essa referência, ele não se situa na
partilha dos sexos. O psicótico é um sujeito ex-sexo.
É por esse pressuposto estrutural, que para Lacan o transexualismo é considerado uma
psicose, e acredita que o sintoma transexual funciona efetivamente como suplência do Nome-
do-Pai.
“Lacan sustenta que seu delírio de se transformar em mulher seria decorrente da
foraclusão do Nome-do-Pai. Schreber, desprovido do significante fálico se vê
impossibilitado de se situar na partilha dos sexos como um homem ou uma mulher e,
identificando-se imaginariamente ao falo da mãe, é conduzido pelo que Lacan definirá
posteriormente como o empuxo à Mulher, o qual se define justamente em oposição à
identificação a uma mulher: trata-se aqui do delírio de se tornar "A Mulher", a mulher
enquanto essência do feminino, a mulher enquanto totalidade, enfim, "A Mulher", na
leitura de Lacan, "não existe" (LACAN, 1972-1973/1985 apud Souto, 2016, pág.198).
Sendo assim:
Millot conclui que o sintoma transexual teria uma função estruturante que Lacan atribui
à identificação com "A mulher", sendo aqui o quarto elemento que permite, na ausência do
Nome-do-Pai, o entrelaçamento de R, S e I. É justamente pelo fato de seu sintoma funcionar
como suplência do Nome do Pai que o sujeito transexual pode, com frequência, não
apresentar sintomas psicóticos. Entretanto, a suplência nesta perspectiva, liga apenas o
Simbólico e o Imaginário. O Real, em contrapartida, não se encontra ligado, "e a demanda do
transexual consiste em reclamar que neste ponto seja feita a correção que ajustaria o Real
do sexo ao nó I e S" (MILLOT 1992, p. 40 apud Souto, 2016, pág.200).
Para tanto, a preocupação com a retirada de algum órgão (pênis, seios) se pensado
como um caso de psicose pode ser um ponto que nem todo sujeito psicótico pode sustentar,
uma vez que não tem recursos simbólicos para dar conta de extrema situação de
despedaçamento do corpo, podendo repercutir na formação de delírios e alucinações. Eis a
grande preocupação pela psicanálise através da estruturação de Lacan!
A partir das considerações de Lacan, é possível situar o transexual num campo
enigmático de investigação, sendo suas certezas questionáveis, quando da busca por uma
completude a se fazer através da cirurgia, pelo preenchimento de uma falta, e alcance de uma
felicidade pela promoção de uma identidade e reconhecimento social que não carrega
garantias nenhumas.
Avançando para além das estruturas, Lacan nos aponta a invenção do sujeito com o
quarto nó que promove as amarrações nas ordens do Real, Simbólico e Imaginário, o savoir a
faire, ou saber fazer com "a dor de existir". Por isso, chama atenção, para se pensar
nesse lugar ocupado pelo transexual em sua escolha pela cirurgia, se esta vem a servir
enquanto possível solução para o sujeito em sofrimento.
Robert Jesse Stoller (1924-1991), norte americano, foi professor de psiquiatria e como
pesquisador na Clínica de Identidade de Gênero na Faculdade de Medicina da UCLA, sendo
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alvo de muitas críticas devido ao tema de suas pesquisas, pois procurando encontrar a causa
das identidades transgênero, com sua intencionalidade em preveni-las, voltava-se a estudos
antropológicos, com o objetivo de investigar como se constitui as identidades sexuais e a
expressão dos diferentes papéis de gênero de outras culturas. Ficou assim conhecido pelas
suas teorias sobre o desenvolvimento da identidade de gênero como também por suas teorias
sobre a dinâmica da excitação sexual.
Stoller foi o responsável por ter trazido para a Psicanálise em 1964 a noção de gênero
através de um artigo, publicado posteriormente num livro intitulado “Sex and Gender”,
cunhando o termo núcleo de identidade de gênero, da qual reconduziu os fenômenos
transexuais de volta aos trilhos na teoria psicanalítica freudiana, onde “apresenta teses
inovadoras e muitas contestadas a respeito das formas modernas da sexualidade humana,
renovando as interrogações freudianas sobre a identidade sexual, diferença sexual e a
sexualidade em geral (ROUDINESCO E PLON, pp.730-731 apud Cossi, 2010, pág. 203)”.
Para Stoller (1982 apud Cossi, 2010, pág. 203) caracterizou o conceito de gêneros
ligados aos aspectos psicológicos, sociais e históricos associados à masculinidade, a
feminilidade por outros aspectos, definindo desta forma que o sexo no sentido anatômico,
diferencia-se da identidade sexual, e que os mesmos não são naturalmente
correspondentes. As concepções defendidas por Freud e Lacan, trabalharam com o termo
“identificações” do sujeito e objeto, sendo o termo Identidade de gênero e Identidade sexual
cunhados por Stoller.
Stoller analisou as teorias de Freud a respeito do desenvolvimento social, pondo em
questão as posições clássicas da psicanálise. Se posiciona contra a tese da bissexualidade
originária, da masculinidade da libido e do papel preponderante do complexo de Édipo na
formação da identidade sexual, opondo se a concepção binária, universalista e constitucional.
Defende a existência de uma feminilidade primária a qual todos são submetidos, em
função da qualidade simbólica a partir do vínculo inicial estabelecido entre mãe e filho e o
efeito feminino a menina não precisa superar, já que deve ser feminina, mas o menino sim,
para tornar-se masculino. “Para ingressar no conflito edipiano e no estado heterossexual, um
passo a mais deve ser dado em direção da identidade masculina. O menino deve superar essa
primeira ligação simbiótica feminilizante (Cossi, 2010, pág. 204)”.
Diante destes conceitos estabelecidos por Stoller, o transexual, esta no estágio mais
primitivo do desenvolvimento da masculinidade e da feminilidade, o núcleo da identidade
genérica, então o senso de pertencer ao masculino ou feminino não ocorre sem a passagem
pelo drama edípico, mas a primeira parte da identidade genérica é a mais importante e
decisiva e viria antes do Édipo.
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Para Stoller (1993 Cossi, 2010, pág. 205) os fatores biológicos, biopsíquicos e
psicológicos são os que determinam a formação da identidade genérica. Todas as alterações
ocorridas nestes três fatores influenciam no desenvolvimento da identidade do sujeito.
Segundo ele, os fatores biológicos podem ter papel fundamental na formação da identidade
genérica, mas opta por não estudá-los, focando a sua teoria nos aspectos biopsíquicos
representados pelos mecanismos do “imprinting” e do condicionamento”.
Conforme Cossi (2010, pág. 205), a terminologia imprinting é utilizada da etologia, onde
referência como alguns animais, por terem estado em contato somente com seres humanos
no período inicial de sua vida passaram a tentar acasalar-se somente com seres humanos. O
imprinting se dá de forma não conflitual, sendo passiva. Para ele, Stoller levanta a hipótese
que para o ser humano esse processo psicobiológico colabora para a escolha de objeto ou
para o desenvolvimento do comportamento genérico. Na instância do condicionamento, as
influências da aprendizagem, desde o nascimento, contribuem para modelar no menino o
estereótipo masculino e o feminino na menina. O meio social transmite para o menino regras
de como se comportar para afirmação de sua masculinidade, onde alguns comportamentos
são reforçados e outros desencorajados, formando os primeiros núcleos de identidade
sexual, até o seu primeiro ano de vida, aos quais vão se aglutinando, configurando uma
qualidade masculina no seu comportamento, compreendendo que a identidade de gênero do
filho também se desenvolve sem conflitos.
A partir de observações clínicas, Stoller (1982 apud Cossi, 2010 pág. 206) identificou um
certo padrão das famílias de transexuais masculinos: com uma dinâmica muito peculiar entre
seus membros: “uma mãe bissexual, com um desejo parcialmente suprimido quanto a ser
homem, cronicamente deprimida e o filho é considerado muito bonito e gracioso, mantido
perto dela, física e emocionalmente, o pai não consegue atravessar esta simbiose entre mãe e
filho.”
Para o autor (ibid. p. 206), não é uma simbiose comum, mas uma denominada
“simbiose Feliz”, pois há uma adoração pelo filho, com contato físico excessivo entre eles, a
mãe trata o filho como parte do seu próprio corpo, ele responde de forma afirmativa,
considerando-se como parte do corpo dela, preenchendo sua necessidade, aliviando-a de sua
depressão e solidão. Stoller explica porque a escolha de um filho ou outro, que é identificado
por ser considerado o mais belo pela mãe e pelos outros. Essa simbiose feliz se mantém
devido à negação da figura do pai, tanto como interditor deste vínculo, quanto como modelo
de identificação, sendo a identificação feminina solidificada, enquanto a masculina é
impedida. Segundo ele, cria-se um distúrbio profundo no ego corporal da criança: ele se sente
como sendo mulher, apesar de ter conhecimento de que é um homem.
Cossi (2010 pág. 206), “na hipótese stolleriana, o transexualismo é marcado por um
distúrbio egoíco, causando uma problemática quanto ao registro imaginário do corpo”. A
teoria da constituição do ego corporal apresenta similaridade com a teoria do espelho de
Lacan. A fase do espelho o corresponde ao advento do narcisismo primário, em um
momento de prematuridade do sistema nervoso, a criança antecipa imaginariamente a
imagem unificada do seu corpo com o da sua mãe, configurando o primeiro esboço da
formação do ego, abrindo caminho para as identificações secundárias.
Respondendo fantasmaticamente ao desejo do Outro (mãe).
Numa análise psicanalítica, esse é um ponto que diferencia uma análise, da qual
geralmente se recorre à estruturação clínica de perversão ou psicose para a explicação do
fenômeno. Assim segundo Stoller apud Cossi (2010, pág. 207), “Perversão pode ser entendida
a partir de uma fase específica de que o sujeito lança mão quando do conflito edípico.
Transexualismo não é uma defesa em frente ao Édipo, já que tal conflito não existe aqui. Além
do mais, em toda perversão há fetichização, o que não aparece nos sujeitos transexuais”. E a
psicose não corresponderia, conforme Garcia (2001 apud Cossi, 2010, pág. 207).
14
“O transexual ‘sabe’ que não é possível ‘transformar-se’ num ser do outro sexo e não
alucina sua realidade anatômica: aqui não se trata de uma imposição paranóica, mas
de um forte desejo seu de que seu corpo corresponda ao do gênero oposto. Como não
reconstrói seu corpo à maneira psicótica, pede por uma intervenção médica que
tornaria coerentes seu corpo com sua identidade sexual”.
Dessa forma, Stoller foi fundamental para a psicanálise no sentido de fazer sentido e
retirar o transexual de uma estruturação fixa e imutável sobre o seu psiquismo, além de
colaborar com o entendimento psicanalítico, reconduzindo os fenômenos transexuais e
diferenciando sexo biológico de gênero, cunhando assim uma identidade conceituada como
núcleo de identidade de gênero (Lopes, 2017, p.109).
“(...) Quando duas verdades são incompatíveis, como a de que os cromossomos são
masculinos, mas a identidade está fixada no feminino, com um sentimento de
feminilidade, a verdade da identidade deve prevalecer (Stoller, 1975, p. 1408 apud
Lopes , 2017, p.112).”
Judith Butler (1956), é uma filósofa pós estruturalista estadunidense que elaborou uma
das principais teorias contemporâneas sobre o feminismo e a Teoria Queer, trazendo a ideia
de gênero performativo, como somatório de repetições de comportamentos socialmente
praticados ao longo da história.
Butler desenvolveu trabalhos com o conceito de gênero e suas relações com o poder e a
transformação social. E ao defender a transexualidade como uma existência legítima,
lança críticas severas a epistemologia psicanalítica e aos seus pressupostos estruturalistas.
Para isso, Butler vai se referenciar na Psicanálise lacaniana, que conforme
Mariotto (2018, p. 53), “ela executa uma hipérbole das referências à dimensão imaginária da
identidade sexual para justificar sua noção de gênero.” Sendo uma crítica a sua teoria, pois
coloca o imaginário em detrimento do real e simbólico e resumindo em termos psicanalíticos a
assumpção de condutas, comportamentos, estilos, etc.
Em seu trabalho sobre a Teoria Queer, Butler denuncia a instabilidade das identidades,
desnaturalizando a binaridade do gênero masculino e feminino revelando a estrutura de
poder que determina a aceitação ou não de identidades e práticas sexuais.
Assim, Conforme Mariotto (2018, p. 53), Butler define que “o gênero é a estilização
repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura regulatória
altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de
uma classe natural de ser”.
A ideia de gênero performativo seria para a autora, como o somatório de repetições de
comportamentos socialmente praticados ao longo da história, e a performatividade é pensada
como uma linguagem e uma forma de ação social, trazendo sempre consigo o efeito de
mudança, enfatizando a possibilidade da fala transformar-se em ação. Consolida a ideia que
a escolha de gênero é socialmente construída por meio de discursos do dia a dia e também por
meio de comunicação não verbal, que definem e sustentam as identidades. Conforme
Mariotto (2018, pág. 59), Butler considera o gênero como um estilo corporal, um ato”(...)
sendo que leva a dizer:
15
dimensões duplas de qualquer tipo de performatividade. Pois a língua age sobre nós e
continua a agir em nós a cada instante em que nós agimos. (...) A escolha vem depois do
processo de performatividade (...)”.
Assim, sua teoria encontra na psicanálise grandes entraves, sobretudo nos pressupostos
de Lacan que situa o corpo no imaginário e entra em contradição com suas teses
fundamentais, além de que conforme Mariotto (2018, pág. 68):
Mas, seu legado é inegável, mesmo levando as escolhas como ato puramente
consciente. Pois ao pensar o feminino, Butler o faz em seu sentido expandido, e não
meramente como a defesa do feminismo ou das mulheres, indicando historicamente a
politização dos corpos, que naturalmente não são “homens” ou mulheres” - portanto são
artificiais os sexos identificados pelos genitais e pelos gêneros masculino e feminino.
16
“Nos termos de Butler, a visão stolleriana adota sexo e gênero como se apresentassem
caráter ontológico e ratifica a matriz de heterossexualidade compulsória da
modernidade por meio da qual a coerência entre sexo e gênero é encarada como
natural. Os casos de descontinuidade, como o transexualismo, são catalogados como
distúrbios. A Psicanálise Lacaniana também reproduziria a heteronormatividade dos
gêneros em vigor? Para Butler, apoiando-se nos conceitos psicanalíticos de diferença
‘sexual ‘e ‘simbólico’, sim!”
Assim, sua crítica sobre a Psicanálise recai no desenvolvimento de uma psicanálise mais
atenta às questões dos gêneros minoritários, que foram colocados às margens da sociedade,
para oportunizar a sua inserção qualitativa, apoiando-se nas contribuições da antropologia, da
sociedade, da filosofia e da história, com a ressignificação das categorias metapsicológicas,
concebendo maior ênfase ao real historicamente construído ao longo do tempo.
17
que é necessário entender "o desejo do sujeito em sua relação com a linguagem e o corpo"
para que se possa compreender plenamente a experiência da transexualidade.
Rafael Kalaf Cossi é graduado em Psicologia pela Universidade de São Paulo (2000),
mestre (2010) e doutor (2017) em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo, é
pesquisador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (LATESFIP-USP) e engajado
nas atividades da Escola de Psicanálise do Fórum do Campo Lacaniano (EPFCL-SP).
Segundo Cossi, o transexualismo é um fenômeno contemporâneo, uma vez que se
refere a um fenômeno que se questiona no contexto da identidade sexual junto aos
pressupostos psicanalíticos.
Em seus vários trabalhos, escritos muitos conjuntamente a outros autores, Cossi faz
uma leitura atualizada da psicanálise junto aos novos termos propostos a questão de
gênero, proporcionando um diálogo com teóricos de diferentes tempos como Judith Butler,
Christian Dunker, Patrícia Porchat, Jacques Lacan e outros, sendo o pioneiro ao empregar o
termo transexualismo de alma ou transexualismo psíquico.
“O texto ‘Psicanálise sem gênero?’ de Christian Dunker e Rafael Kalaf Cossi, parece
anunciar as bases do que se discutirá em toda a coletânea; a possibilidade de produzir e
situar um diálogo entre a teoria lacaniana e os estudos de gênero, em especial as
proposições de Judith Butler. Esse diálogo tenso é apresentado de forma ainda mais
clara em ‘A diferença sexual de Butler a Lacan: gênero, espécie e família. (...) “Em sobre
o estatuto do sexo em psicanálise” reafirma as bases conceituais que permitem que o
diálogo entre psicanálise e estudos de gênero ramifique, sustentando a recusa em
limitar o sexual ao genital; gesto inaugural feito por Freud e repetido a cada confronto
entre uma leitura superficial da teoria psicanalítica e outros campos de conhecimento
(Cossi, 2019, pág. 7)”.
No livro Faces do Sexual: Fronteiras entre gênero e inconsciente, Rafael kalaf Cossi é o
organizador e trabalhou por aproximar os textos em um ordenamento lógico, mantendo um
estilo de discussão articulado, a fim de propor uma análise da patologização e normatização da
diferença nas transexualidades.
No texto transexualismo e Psicanálise: Considerações para além da gramática fálica
normativa (2010) propõe uma investigação teórica acerca do transexualismo, buscando
instrumentos da teoria psicanalítica que possam abrir novas possibilidades de compreensão do
fenômeno para além do campo da patologia. Os fundamentos de base psicanalítica do autor
estão na ordem de inscrição tal qual na sequencia histórica – Freud, Lacan e Stoller – e vem
junto às contribuições de Butler conversar a respeito das muitas prerrogativas das questões
de gênero, identidade e sexualidade nas condições patológicas descritas pela psicanálise,
especialmente das psicoses e perversões.
Assim, através desse último trabalho muitos questionamentos são levantados, e sob
diferentes perspectivas se propõe investigar sobre o tratamento do transexualismo, bem
como questionam dialogicamente se a cirurgia de redesignação sexual seria o único
tratamento apropriado.
De acordo com Cossi (ibid), o sujeito transexual, experimenta uma desconexão entre seu
corpo, biologia, órgãos genitais, masculinos ou femininos e sua identidade. Ele se vê como
pertencente ao sexo oposto, frequentemente se submetendo a procedimentos hormonais,
redesignação sexual e alterações na sua identidade civil.
Assim, para o mesmo, na perspectiva médica, prevalece uma concepção normativa, a
partir da qual se concebe que o corpo biológico valida que o gênero sexual pertence ao sujeito,
18
ou seja, o corpo e o gênero devem ser coeso, o sujeito tem um corpo de homem deve ser
coerente à masculinidade e o da mulher a feminilidade.
Portanto, para Cossi (2010, pág. 201), quando os indivíduos experimentam essa
incongruência entre corpo e identidade sexual são portadores de um transtorno de identidade
sexual e tal incompatibilidade causa grande sofrimento e prejuízo.
Cossi critica a perspectiva de certos profissionais que escolhem classificar como
transexuais apenas aqueles que se submetem à cirurgia de redesignação sexual, sendo que
muitos transexuais não exigem passar por esta.
O autor ainda dialoga sobre as teorias psicanalíticas, mais propriamente sobre as
psicoses e perversões envolvidas em transtorno mental, e junto a essas organiza a
transexualidade como uma rejeição ao seu sexo biológico, acompanhado do desejo de possuir
um corpo sexual oposto ao que nasceu. Porém, coloca a ressalva de que as cirurgias de
redesignação sexual devem ser cuidadosamente avaliadas sobre esses aspectos, para se
garantir quanto ao perigo de o indivíduo se arrepender e desenvolver problemas psicológicos
posteriores - drogas, álcool e outras substâncias, culminando até mesmo em suicídio.
Ele acredita que nenhum critério diagnóstico pode garantir que todos os transexuais
queiram passar por tais procedimentos. Para alguns indivíduos, a simples mudança do nome
civil é suficiente, assim como para outros que procuram outros tipos de tratamento.
Cossi, influenciado por Butler, em seu livro Problemas de Gênero (2003), argumenta que
o gênero se manifesta de forma performática, através da perspectiva do indivíduo transexual,
desafiando as convenções sociais que estabelecem o gênero binário, masculino e feminino,
sendo assim um processo contínuo de reconstrução, onde se encena e repete as
características de uma identidade social já existente, seja ela feminina ou masculina, formando
assim um estilo corporal que tal comportamento é designado.
Assim, conclui-se que Cossi também defende a singularidade de cada indivíduo,
defendendo que esse indivíduo transexual receba escuta e apoio qualificado.
19
desafiam o estatuto jurídico historicamente naturalizado da diferença sexual: homem e
mulher.
A partir da intervenção do filósofo Paul B. Preciado evidenciou que o que está em jogo
nas temáticas de gênero não é apenas uma questão quanto ao registro das identificações, mas
também uma problemática mais ampla concernente à violência social e ao modo como a
psicanálise irá se posicionar diante do regime da necrobiopolítica que atravessa o mundo
contemporâneo. Assim, conforme Lima (2022)
Sua proposição trata-se de incitar uma posição frente às normas dessa tradição
hetero-patriarcal-colonial, da qual coloca a psicanálise como colaboradora dessas dinâmicas de
poder no laço social e suas diferentes segregações, como em relação à homofobia e transfobia.
Lima (2022), responde que mesmo que há nas teorias o sentido de contribuir de desmontar as
identificações imaginárias do Eu, há posicionamentos narcísicos que submetem ao poder.
É importante considerar que a leitura da teoria psicanalítica feita por Preciado se dá de
forma superficial, olhando de longe pontos de contato da psicanálise com dispositivos de
poder que talvez não percebamos quando estamos muito inseridos em um campo ou em
nosso próprio tempo, e não considera que há inúmeros pontos de subversão ao poder que
Freud e Lacan introduziram.
“Paul se nomeia como "um dissidente do sistema sexo-gênero (Lima, 2022)” e
testemunha o fato de que ele próprio não é o personagem trans que quiseram fazer dele, não
estando restrito a uma tipologia médico-psiquiátrica que hoje muitas pessoas trans buscam
alienar-se.
"Devia me converter em uma boa namorada heterossexual, em uma boa esposa, em
uma boa mãe, em uma mulher discreta" (Preciado, 2020b, p. 23, tradução nossa).
Nada mais longe de suas aspirações; ao mesmo tempo que, conforme nos diz,
tampouco se tratava de um desejo de "ser homem": "Não, eu não queria me converter
em um homem como os outros homens. Sua violência e sua arrogância política não me
seduziam" (p. 28, tradução nossa). Também não estava em jogo ser considerado
"normal" e/ou "saudável"; ele dizia buscar, antes, uma saída que lhe permitisse
escapar "dessa paródia da diferença sexual", em que se é ou um homem ou uma
mulher conforme a norma binária, assumindo e incorporando uma identidade
masculina ou feminina prêt-à-porter. (Preciado, 2008/2018, p. 102)
"Como homem trans, desidentifico-me da masculinidade dominante e de sua
definição necropolítica. [...] Não gozo com essa estética do antigo regime sexual. Não
me excita ‘molestar' quem quer que seja. Não me interessa sair de minha miséria
20
sexual passando a mão nos outros no metrô" (Preciado, 2019/2020a, p. 316). E, ao
mesmo tempo, não pretende "representar em nenhuma medida nenhum coletivo"
(Preciado, 2019/2020a, p. 312).
Paul denuncia uma resistência por parte dos analistas diante da questão de gênero, e
de que as leituras psicanalistas são da presença do imaginário no reconhecimento do gênero
de alguém, das concepções do que é (ou deve ser) a boa forma de uma pessoa, concepções
essas que são frequentemente estruturadas pelos roteiros normativos da cisgeneridade na
cultura e que podem ter implicações clínicas violentas para sujeitos que não se reconhecem
por essas categorias.
Portanto, Trata-se de construir outra forma de habitar um corpo, que não esteja
encarcerada pelas obrigações rígidas de uma "identidade".
“Está em jogo, portanto, a tentativa de construir outra forma de vida, que lhe permita
escapar tanto às regulações biopolíticas do gênero quanto às determinações
mortíferas da necropolítica - seja enquanto corpo ininteligível subalternizado e
destinado à morte seja enquanto corpo convocado a reencenar a norma da
masculinidade hegemônica. Nesse mesmo sentido, Paul pensa sua transição não como
a passagem de A a B, com um ponto de partida e um ponto de chegada bem
delimitados (de uma ficção biopolítica a outra), mas sim como a construção constante
de um fora (em relação ao binário normativo da diferença sexual); ele pensa a
"fabricação" da sua "liberdade" não como um estado, mas como um "túnel"(lima,
2022)
E assim, o que assusta, pois ele evoca a dimensão do "monstro", isto é, "aquele que
vive em transição" (Preciado, 2020b, p. 45, tradução nossa), aquele cujo rosto e cujo corpo,
cujas práticas e cuja linguagem não são reconhecidas como legítimas em um determinado
regime de inteligibilidade, de saber e poder, alguém que pode parecer monstruoso à luz da
maneira tradicional ou hegemônica de se entender o que é ser um homem ou uma mulher
(lima, 2022).”
O autor convoca a escutar a singularidade de cada um, sendo assim:
21
seu primeiro delegado-geral. Nomeado herdeiro moral pelo próprio Lacan, é responsável pelo
estabelecimento de texto de seus Seminários e também diretor da coleção Campo Freudiano,
na França e no Brasil.
Sendo assim um contemporâneo psicanalista francês e conhecido como herdeiro de
Lacan ao transcrever os seminários por este realizados, também se torna responsável por
responder as prerrogativas que assim seguem a Psicanálise. E, o tema transexualidade por
assim tornou-se uma das questões a se debater junto ao meio, por assim se contrapor por
muitos aos postulados freudianos e lacanianos. Miller, num texto rico de exemplificações
históricas assim se manifesta.
Em uma escrita aberta através de seu site oficial, Miller faz questionamentos abertos e
cheios de interrogativas num texto que ele titulou de “Dócil ao Trans” (2021), onde afirma que
a “revolta dos Trans” está em marcha. “A tempestade desabou” sobre os psicanalistas. “A
crise Trans está sobre nós”. As frases mencionadas anunciam o redirecionamento do olhar e
da escuta psicanalíticas para as novas formas de subjetividade na contemporaneidade.
Num misto sarcástico interrogativo da boa linguagem francesa, Miller dialoga numa
viagem de confronto as teorias de gênero, deixando claro o desconcerto que atualmente se faz
na psicanálise.
“Um frisson novo Hugo escreveu, de Baudelaire para Baudelaire, que ele havia criado
“um frisson novo”. É isto. Com a entrada em cena do trans, personagem muitas vezes
cheio de cores em nossa comédia humana (o trans em Balzac? Claro, na figura do
andrógino, Séraphitus Séraphita), um frisson novo passa à civilização. O que o trans
nos traz é perturbação. Não perturbação no gênero, intrinsecamente confuso, mas
turbulência, polvorosa na guerra imemorial dos sexos. Antes do trans, o monstro era o
hermafrodita. Este também perturbava a ordem pública sexual. Mas o
hermafroditismo é apenas um assunto de órgãos. Um hermafrodita é um caso
biológico, o que é raro. A androginia, em contrapartida, é uma criatura de mito, um
assunto de look e de lifestyle. Um andrógino é alguém cuja aparência não lhes permite
determinar a qual sexo pertence. Já era assim na Grécia antiga ou em Roma: vejam, de
Luc Brisson, Le sexe incertain. Um transtorno de identidade sexual não é assim. O
trans, é ainda outra coisa.” (Miller,2021,pág 13)
E tudo isso como resposta ao filósofo Paul Preciado, quanto de sua intervenção por ele
realizada em 2019 na Jornada da École de la Cause Freudienne em Paris, que deu origem à
publicação de um livro, em 2020, intitulado Eu sou um monstro que vos fala: informe para uma
academia de psicanalistas. Preciado, assim fez uma interrogação à posição de enunciação
política dos psicanalistas europeus, apontando sua cumplicidade com os dispositivos de poder
hetero-patriarcal-colonial em sua abordagem das transidentidades com consequências
patologizantes para dissidentes de gênero e sexualidade que, como o próprio filósofo,
desafiam o estatuto jurídico naturalizado da diferença sexual.
Como o próprio título da obra provocante de Preciado e direta a Psicanálise, Miller
como sucessor de Lacan e por assim dizer, de Freud, um dos nomes mais expoentes da teoria
psicanalista, não deixou de se opor, porém não o fez através de uma explicação teórica. Ao
contrário, escreveu de maneira política à crítica da qual a psicanálise estaria a serviço politico e
patologizante.
22
Assim, Miller (2021) em suas perspectivas busca defender a psicanálise do que
entende ser ameaças ao campo por parte dos debates contemporâneos sobre identidade, da
qual esta estaria por “reduzir os problemas de gênero a questões do imaginário, como se o
gênero se tratasse apenas de um capricho narcísico do eu, dirigido à identificação alienante a
uma dada identidade ou a um grupo, sem outros atravessamentos políticos e subjetivos além
de um alegado fenômeno narcísico de massa”.
Assim, no texto "Dócil ao trans", pode-se ler a ênfase crítica e irônica de Miller (2021)
sobre a dimensão egóica do gênero , e da qual numa escrita em tom de irônico, como se
condenado estivesse ao defender sua obra e de outros, coloca-se em primeira pessoa para
num ato de rendição fazer adoçar seu coro numa condição heroica de ao mesmo tempo
entregar-se e emponderar-se através da sua escuta, resposta e militância.
“Meu trans imaginário diria algo como: Nem Marty, nem você, nem mesmo Butler são
trans. Vocês falam dos trans. Os trans são objetos de suas fofocas, como são há muito
tempo objetos do discurso médico, do discurso psiquiátrico, do discurso psicanalítico.
Bom, agora tudo isso acabou. Um deslocamento de forças de uma amplitude que
vocês não imaginam, capaz de perturbar cultura e civilização, fez com que os trans
tomassem a palavra – como no passado tomaram a Bastilha, dizia Michel de Certeau
sobre maio de 68. Agora os trans falam dos trans, falam dos trans para os trans, falam
dos trans para os não-trans, que por sua vez, têm muito a aprender e muito a se
desculpar. Quem mais além de um trans está qualificado para falar de um trans?” Ele
ou ela continuaria: “Em detrimento do que um vão povo pensa e deseja, não
voltaremos atrás. O Gênio não entrará na garrafa. É assim. No futuro vocês terão que
contar conosco e com a nossa fala, com nossa sensibilidade, com nossas reivindicações
e nossas esperanças, nossos sofrimentos, tal como os expressamos com nossas
palavras e com as de vocês, que entre nós, fedem a mofo. Não acreditam mais em
vocês, vocês estão perdidos, não têm mais credibilidade.” (Miller, 2021, pág .13)
Assim, Miller coloca-se em sua situação de herdeiro de um novo tempo, da qual diz
que “não havia no tempo de Freud grupos militantes nem lobbies dedicados à emancipação
das histéricas”, portanto estes seriam tempos dóceis e da qual “Lacan abriu um caminho novo
com sua invenção do discurso do Mestre como o avesso da psicanálise, de onde vem sua ideia
de que “o inconsciente, é a política”, fórmula bastante esclarecedora que foi pouco entendida.
Lacan faz o elogio de Freud, que soube se mostrar “dócil à histérica”. Também eu gostaria de
poder felicitar o praticante de hoje por ter sabido se fazer “dócil ao trans”. Será que é o caso?
(Miller, pág 20)”
De qualquer forma, em seus outros escritos, o mesmo se mostra a acompanhar as
transformações não como desejo, mas como uma necessidade, assim quando diz que “corpo
aparece na psicanálise como ponto de estudo da subjetividade e “não obstante, as
transformações que ocorrem na teoria são uma constante, ainda que contingentes, visto que
dependem da cultura, da época, do tempo e do espaço. “A psicanálise muda, isso não é um
desejo, mas um fato (MILLER, 2015, p. 119 apud Oliveira, 2021, pág.61)
23
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“(...) pode-se evidenciar que a noção de corpo é produto das diferentes culturas e
momentos históricos onde esse corpo circula. Da mesma forma, o gênero enquanto
resultado de designações socioculturais, mas se tratando das identidades dos sujeitos
percebe-se que isso reflete determinações inconscientes que permeiam a constituição
de cada pessoa.(...)As noções de masculinidade e feminilidade estão postas no
imaginário social, tais conteúdos vão fazer parte da constituição inconsciente de
cada sujeito, refletida na forma como esse se apresenta nas relações, onde a
transexualidade se constitui como uma dessas formas de subjetivação”.
Dito isso, é importante para a psicanálise questionar essa forma de subjetivação pela
transexualidade, questionando conforme Moura (2018, pág. 99) “O que é um corpo? O que é
ter um corpo? O que é hoje a nossa corporeidade? Que possibilidades nos são abertas e que
experiências nos são possíveis a partir do corpo?” Pois as subjetivações fazem parte do
conteúdo inconsciente de cada sujeito, e é por onde a psicanálise transita e considera como
sendo aquilo que o sujeito ainda não sabe sobre si. A Psicanálise, portanto busca desvelar esse
inconsciente de maneira responsável, analisando a subjetividade de cada ser com critérios
profundos de análise, pois conforme Mariotto (2018, pág. 57) “nos últimos anos foram
divulgados críticas de vários autores que apontam uma desvalorização do inconsciente na
ênfase dedicada ao gênero (...).Ora não importa qual corrente psicanalista consideremos,
todas concordam que a identidade sexual jamais é resultado de uma escolha consciente, mas
algo que o sujeito se dá conta sem ser capaz de definir como ela constituiu”.
Dito de outra forma, conforme CECCARELLI (2011, apud Moura, 2018, pág. 99):
24
“vida dupla do corpo” é desvelada, trazendo assim, novas perspectivas clínicas para a
compreensão das relações eu/ corpo. A particularidade da psicanálise encontra-se no
fato de que ao superar a dimensão biológica do corpo, ela trabalha com sua
perspectiva imaginária, simbólica e real. Para a psicanálise a imagem do corpo é
compreendida como a própria substância do nosso eu, porém, não existe eu puro; o eu
resulta sempre da interpretação pessoal e afetiva do que sentimos e do que vemos de
nosso corpo. Então, não somos apenas nosso corpo em carne e osso. Sendo assim, o
corpo real seria o corpo que sentimos: a imagem do corpo real. Já o corpo imaginário,
o corpo que vemos: a imagem especular. E o corpo simbólico, o corpo que
nomeamos: a imagem do corpo simbólico (NASIO, 2009 apud Moura, 2018, pág. 99)
Além do mais, a imagem que o sujeito constrói sobre o seu corpo – real, imaginário e
simbólico - é inscrito pela visão do Outro - o “grande Outro” – da qual também se relacionam
a cultura, e o simbólico sendo certos atributos considerados masculinos em determinada
época e cultura que outrora eram atributos femininos, que conforme Lacan, são como
“atributos que restam a determinar”, que não são fixos. Portanto, conforme Moura (2018, pág.
102),
25
(ARÁN et al., 2008). Então, qualquer estratégia de ajudar estes sujeitos, deve levar em
conta à particularidade de trajeto transexual de cada um”.
“O termo “Trans” serve à referência de pessoas que se autonomeiam Trans, bem como
àquelas que expressam o intenso sentimento de não pertencimento ao sexo e/ou
gênero atribuído no momento do nascimento e que não apresentam bases orgânicas
- como nos casos de hermafroditismo, nas manifestações de distúrbios delirantes ou
outros tipos de anomalias endócrinas. Por conseguinte, o Trans representa um dos
modos inventados pelo sujeito em lidar com o desencontro que se opera e que
impede a adequação entre o discurso e a imagem do corpo. (Oliveira, 2021, pág. 35)”.
26
Assim, pelos contornos da linguagem está posta a impossibilidade de abarcar todos os
atributos Trans – atributos que restam a determinar, pois aos atributos masculinos e femininos
também há impossibilidade de universalidade. A todo ser falante encontra-se o desafio de
constituir um corpo, de no percurso de sua história saber o que fazer com ele. E a partir dele
extravasar a pulsão na sexualidade que lhe satisfaz, da qual produz efeito do seu gozo, como
forma de dar vazão a essa energia que lhe é própria, para conseguir lidar com o vazio
fundamental que habita todo ser falante.
É por isso que para Lacan “a relação sexual não existe”, via que o vazio é inerente ao
ser e impossível de ser preenchidas e satisfeitas por completo, assim como afirmar que não há,
na ciência contemporânea, formas de construção de um sujeito completo. É enquanto ser
faltante que se lida com o corpo próprio e com os desencontros e desalinhos que se
estabelecem entre corpo e imagem que o sujeito se constitui um corpo vivo.
A grande preocupação que aqui se faz na leitura de diversos autores psicanalistas, é de
que o corpo Trans não deve ser visto como um corpo errado, equivocado, mas um corpo que
não necessariamente se submeta aos dispositivos da tecnociência para se livrar das suas
indagações e modifica-lo a todo custo, mas na liberdade de viver o corpo sem desconforto ou
violência, sem pressões que derrubem sua autoestima, visto que há um descompasso entre o
que o sujeito sente, sua anatomia, seu gênero, sua identidade e sua orientação sexual.
Assim, “nos seres falantes, as escolhas sexuais não são da ordem das identidades,
mas das identificações, ou seja, são condicionadas pelos ditos do Outro simbólico,
levando, por vezes, a mudanças no corpo próprio e à busca por reconhecimento
social” (ABRAMOVITCH, 2017, p. 129). Ademais, a essa simbolização escapa um real
indizível da imagem do corpo que se coloca como questão para o sujeito
(ABRAMOVITCH, 2017; MARQUES; LAVINAS; MÜLLER, 2018; MIRANDA, 2015; SOUZA,
2016). Por conseguinte, Miranda (2019) considera que a identidade é construção, é a
condensação das identificações, das fixações de gozo, da inserção da castração, de
sua negação, sua recusa radical ou de seu desmentido. É preciso ressaltar que “a
identidade não é um conceito psicanalítico, pois tanto Freud quanto Lacan abordaram
a questão pela via da ‘identificação’, sendo essa o mecanismo principal de constituição
do eu” (TRIVEÑO, 2013, p. 255, tradução nossa), uma vez que as identificações ao
mesmo tempo que velam uma falta, proporcionam uma ficção para o sujeito, ainda
que seja de forma falida (TRIVEÑO, 2013). Além disso, para Lutterbach (2016), o que
está em jogo para a psicanálise é a posição de objeto que cada ser falante ocupa para
o Outro e qual o destino dado a isso na fantasia inconsciente que irá direcionar a
identificação sexual e a escolha (inconsciente) de objeto de cada um. (Oliveira, 2021,
pág. 81)
27
“A noção de orientação sexual enquanto a atração emocional, afetiva ou sexual por
indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim
como relações íntimas e sexuais com essas pessoas (BRASIL, 2017; PRINCÍPIOS, 2006).
Isto é, homossexual, heterossexual, bissexual, assexual, panssexual (BRASIL, 2017;
INTERDONATO; QUEIROZ, 2017; NOGUEIRA; AQUINO; CABRAL, 2017; REIS, 2018).
Dessa forma, as pessoas Trans podem “ser heterossexuais, homossexuais ou
bissexuais, caso seu desejo seja direcionado ao gênero oposto, ao mesmo gênero ou
a ambos os gêneros, respectivamente” (INTERDONATO; QUEIROZ, 2017, p. 43).
Segundo Nery (2011), é possível falar em transidentidades: homens sem pênis, gays
lésbicos, cross-dresser, drags (queen e king), trans-gay, etc. [...] inúmeras formas de
transversalidades de gênero. Além disso, considera-se que “a pessoa não precisa de
cirurgias, tratamento hormonal, laser, binder, packer, cabelo curto ou comprido,
gostar do gênero oposto, odiar a genitália para ser Trans de ‘verdade’” (MOIRA et al.,
2017, p. 11 apud Oliveira, 2021, pág. 34)”
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psicanálise é o de uma práxis articulada a uma teoria, aplicação essa que não visa modificar
condutas de um sujeito, mas auxiliá-lo a caminhar rumo ao desejo que o conduz (SOUZA, 2016,
Oliveira, 2021, pág. 64).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
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2021. 121 f.: il. Orientador: Susane Vasconcelos Zanotti. Dissertação (Mestrado em Psicologia)
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Desconstruindo gêneros e patologias com Judith Butler Editora: Juruá. 1 Paris, 2014
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