A3_ TRANSEXUALIDADE E PSICANÁLISE

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TRANSEXUALIDADE E PSICANÁLISE

UC Psicanálise Teoria e Técnica

ACADÊMICOS:

Cássia Cristine Calegari- RA:122112749


Giseli Petri - RA: 122124613
Lucia Elisa Araújo Chaves - RA: 122318204
Shirlei Cardoso Moreira de Souza - RA: 122221319

CURSO: Psicologia

CAMPUS: Anita Garibaldi

Joinville, 2024

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Sumário

Introdução 3
1. Nos escritos e tempos de Freud 4
2. Como teorizou Jacques Lacan 7
3. Novos conceitos de Stoller 12
4. A contribuição filosófica de Butler 15
5. O questionamento de Coutinho Jorge 17
6. Rafael Kalaf Cossi sobre as intervenções no corpo 18
7. Um certo Paul Preciado 19
8. Jacques Alain-Miller do Dócil ao Trans 21
9. Considerações Finais 24
10. Referências Bibliográficas 29

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INTRODUÇÃO

Ao se procurar traçar uma ideia sobre as transexualidades, temos um tema bastante


desafiador no sentido de estarmos engendrados numa estrutura social que naturaliza os
sujeitos biologicamente falando e que se esquiva do entendimento do ser em sua completude
multidimensional, patologizando as diferenças pelo entendimento dualista dos sexos -
natureza da procriação, homem/mulher.
Pelo viés psicanalítico iniciado primeiramente pelo seu benfeitor Sigmund Freud e
reconduzido por Jacques Lacan e outros autores até a atualidade, é possível uma maior
compreensão do sujeito na transfiguração do seu ser para além daquilo que ele sabe.
As teorias psicanalistas oferecem um viés de entendimento possível, uma vez que sua
prática sempre pautada na singularidade pelo processo de análise corrobora para a descoberta
de infinitas possibilidades de desejos como forma de produzir saberes até então inalcançáveis.
Para JORGE (2008, pág.9) “segundo a leitura lacaniana de Freud, a pulsão é o conceito
psicanalítico que mais se revela inseparável da questão sobre o que é o inconsciente”,
podendo iniciar através desse ponto a falar sobre a relação entre psicanálise e
transexualidade. Porém, alguns pontos necessitam ser destacados em relação à
transexualidade, para que se possa compreender as particularidades que envolvem essa
temática. Para Ceccarelli (apud Moura, 2018, pág. 97) “é necessário entender o fenômeno
que se apresenta nas discussões que envolvem a transexualidade, pois, existem alguns
elementos que precisam ser pautados para compreensão do analisando. Dessa forma, deve-
se questionar: que corpo se escutar em análise? De que corpo o sujeito nos fala?”.

“Nos mais diversos contextos e entre diferentes abordagens que tratam o tema da
transexualidade, há algo em comum: existe uma síncope entre o sexo biológico e o
sexo psicológico. As pessoas transexuais têm o desejo de viver e se afirmar
identitariamente de forma oposta ao gênero que a ela foi designada com base em
seu sexo de nascimento, entretanto, nem sempre desejam passar pelo processo de
transgenitalização (COELHO, 2013 apud Moura 2018, pág. 97)”.

Para desenvolver esse entendimento é necessário compreender que o corpo e a


identidade apresentam-se de formas diferentes, bem como a sexualidade e da qual a
psicanálise está a se debruçar em tempos atuais para manter-se e atualizar seus pressupostos
teóricos que a fundamentam em Freud e Lacan.

“Para a psicanálise, o corpo que interessa não é o organismo – o corpo que é tratado
pela medicina. Não, o corpo que interessa é o corpo vivo, tal como o amamos ou
rejeitamos, tal como é inscrito em nossa história e tal como é envolvido na troca
afetiva, sensual e inconsciente com nossos parceiros. O corpo que interessa a
psicanálise é o corpo tal como o vivemos, tal como o interpretamos e, tal como o
fantasiamos (NASIO, 2009 apud Moura, 2018, pág. 99)”.

Porém, apesar do passar dos anos e das inúmeras possibilidades fornecidas pela
ciência, ainda se mantêm as ideias constitutivas do corpo como o “ser homem ou mulher” e
embora haja todo um aparato tecnológico favorável à transição sexual das pessoas trans,
ainda há a atribuição de um teor patológico a essas pessoas.
Definida como transtorno mental no CID-10 pelo código F64.0, em 2019 foi
reclassificada como incongruência de gênero no CID-11, onde a OMS justifica, não se tratar de
um problema de saúde mental, mas sim de uma condição relacionada à saúde sexual. Já para o
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), se trata de disforia de
gênero que se caracteriza por uma forte incongruência entre o gênero vivenciado e o sexo
atribuído ao nascimento.

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“A patologização das transidentidades via Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais (DSM 5) como disforia de gênero, ocorre em virtude de uma
cadeia de disciplinas que cooperam com a manutenção dessa lógica diagnóstica:
medicina-psiquiatria, psicologia, direito etc. Tais saberes se articulam e corroboram
com a produção de normas de gênero. Para Sampaio e Coelho (2013) o Código
Internacional de Doenças (CID) ou o DSM 5 não devem ser empregados como verdades
absolutas sobre o conceito de doença, como muitos o entendem, mas, somente como
uma possível ferramenta que nos dá uma definição. Diante disso, a psicanálise emerge
com a capacidade de contribuir com um novo olhar para as(os) transexuais, pois
amplia o discurso da ciência, fazendo entender que dizer para o sujeito o que ele deve
ser/fazer é tentar impor nossos desejos, crenças pessoais, ideológicas e expectativas
sociais para o outro, negando a ele o direito de caminhar rumo a um processo de
singularização, privando-o da autonomia sobre si (COELHO, 2006). Então, se “o gênero
não é uma essência, mas um devir, os seus destinos dependem dos atores políticos e
clínicos implicados, e as possibilidades de subjetivação se fazem de acordo com a
contingência histórica em que se apresentam” (ARÁN et al., 2008, p. 78 apud Moura
2018, pág. 102)

A contribuição da psicanálise, portanto, é de grande relevância para a compreensão


do homem enquanto sujeito a estar inscrito num corpo da qual se constitui na realidade
também pela simbolização, quanto pela imaginação em processos inconscientes e do qual
esse denominamos na atualidade como “corpo trans”.
O texto a seguir trata-se, portanto da construção do tema Transexualidade junto a
Psicanálise, através dos recortes de muitos autores que contribuíram para o desenvolvimento
teórico, sendo assim direcionado sobre o entendimento da noção de sujeito, corpo,
sexualidade que estes propuseram até os dias atuais, mesmo que de forma não objetiva e nem
tanto conclusiva.
Considera-se esse o caminho através da revisão bibliográfica de autores para o
entendimento da introdução de novos saberes desde o início da Psicanálise.
Trata-se portanto de uma investigação acerca dos lugares ocupados pelo corpo Trans
nas publicações psicanalíticas ao longo dos últimos anos, numa crescente adequação aos
tempos.

1. Nos escritos e tempos de Freud

Sigmund Freud (1856-1939), o pai da psicanálise iniciou a sua compreensão sobre o


sujeito psíquico para além do corpo, ao estudar a histeria, onde se desvinculou da anatomia do
corpo para o entendimento do sujeito para além de si mesmo. Presas numa dimensão
corporal, Freud logo percebeu que nas mulheres histéricas havia uma condição de não
representação e expressão pela linguagem de desejos, dos movimentos pulsionais intrínsecos,
tal qual a sexualidade e que terminavam em implicações corporais sintomáticas diversas. O
entendimento desse fenômeno através das pulsões não realizadas e pela relação com a
sexualidade o direcionou ao desenvolvimento de uma clínica pela escuta, articulada pela
singularidade de cada sujeito.

“A psicanálise propiciou ao sujeito uma compreensão de sua circulação pulsional, lhe


permitindo um maior conhecimento de sua dinâmica identificatória. Embora agindo
no corpo, as pulsões respondem a processos inconscientes. Os caminhos pulsionais
resultam de uma série de acontecimentos que se interagem e se complementam,
não de algo natural, predeterminado (CECCARELLI, 2011 apud Moura et all, 2018, pág.
100).

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A partir daí, a psicanálise passa a teorizar a sua concepção de sexualidade, enfatizando
que este fenômeno tem um lugar marcante na constituição do sujeito, tendo essas teorias
gerado muitas críticas no meio médico, pois o foco saia da biologia para um ser humano
cultural. “A sexualidade tem uma multiplicidade de significados e não um sentido único,
então ela seria não só da ordem do biológico, mas também da linguagem. A condição da
sexualidade é ser polimorfa, o que significa que esta tem uma pluralidade de objetos
possíveis (LAZZARINI; VIANA, 2006 apud Moura, 2018, pág. 100)
Freud foi além no desenvolvimento da psicanálise, dando sentidos até então
inimagináveis para a sexualidade, de uma vazão criativa pelo qual nos constituímos
individualmente e culturalmente.

“Para Freud (1927/2020), a cultura é tudo aquilo em que a vida humana se elevou
acima das suas condições animalescas. Não obstante, o sujeito estabelece leis e regras
que servem de orientação e coerção de comportamentos e atitudes, bem como
resguardam das investidas e invasões do outro. Do mesmo modo que uma
investigação sobre a cultura já é, de antemão, comprometida por diversos fatores
(FREUD, 1927/2017) assim também é a investigação psicanalítica sobre o corpo. É a
partir dessa relação entre psicanálise e cultura que se considera importante o olhar
aos corpos Trans.” (Oliveira, 2021, pág. 24)

É sempre importante considerar que os primeiros ensaios psicanalíticos de Freud sobre a


sexualidade operavam em outro zeitgeist, da qual Freud deu vazão a uma sexualidade
reprimida, que já se debatia por avançar rumo à libertação identitária, porém ainda nem tão
avançada nos processos de transição sexual. Porém, Freud foi um libertador do estigma,
descolando a sexualidade da reprodução da espécie - separando prazer e desejo de
reprodução-, bem como separando o sexo biológico da orientação sexual – para escolha
objetal.
Com isso, Freud deu lugar à perspectiva até então não faladas através do texto “Três
Ensaios sobre a Sexualidade”, onde fala que a sexualidade não está dada de nascença, e que é
sim constituída, partindo de que “os conceitos de masculino e feminino, cujo significado
parece tão inequívocos a pessoas comuns, estão entre os mais confusos que ocorrem na
ciência” (MARIOTTO, 2018, pág. 90).
Freud inicia seu texto contribuindo para uma análise da sexualidade pelo que ele
chamou a época de uma “imagem infiel da realidade” (FREUD, 1996, pág. 128) referindo-se as
representações pulsionais que popularmente se faz somente pela natureza homem e mulher
presente somente na vida adulta, introduzindo assim uma investigação minuciosa a cerca do
tema.

“A teoria popular sobre a pulsão sexual tem seu mais belo equivalente na fábula
poética da divisão do ser humano em duas metades – homem e mulher – que aspiram
a unir-se de novo no amor. Por isso, causa grande surpresa tomar conhecimento de
que há homens cujo objeto sexual não é a mulher, mas o homem, e mulheres para
quem não o homem, e sim a mulher, representa o objeto sexual. Diz-se dessas pessoas
que são de “sexo contrário”, ou melhor, ‘invertidas’, e chama-se o fato de inversão. O
número de tais pessoas é bastante considerável, embora haja dificuldades de apurá-lo
com precisão.” (FREUD, 1996, pág. 129)

Para tanto, Freud descola a sexualidade do campo biológico e que a fantasia, tal como
o desejo está em busca de realização de uma fantasia inconsciente, e que o faz situando a
sexualidade como não estando restrita a genitalidade:

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“(...) a experiência psicanalítica demonstra que a fantasia dos neuróticos é habitada
por aquilo que as práticas sexuais ditas perversas realizam e, desse modo, borra a
suposta definida barreira entre o normal e patológico na esfera das práticas sexuais,
já que a diferença fica situada entre o que se recalca e o que se realiza; desse modo
coloca que a bissexualidade ou homossexualidade não implicam nenhuma
degenerescência ou monstruosidade, como costumava-se afirmar na época, como se
aqueles que não dessem todas as voltas que levariam ao prazer nas práticas
heterossexuais fossem feitos de outra matéria e não da mesma que habita em nós,
desde a natureza aos trilhos de linguagem que inscrevem nossas
fantasias”.(MARIOTTO, 2018, pág. 91).

Com esse texto, na narrativa da universalidade das chamadas ‘perversões sexuais’ em


seus pacientes, “Freud conclui que a sexualidade humana apresenta uma verdadeira
‘constituição sexual’ que assume o lugar de uma ‘disposição neuropática geral’, formulação do
qual ele torna inexistente a fronteira entre o normal e o patológico, tão nitidamente marcadas
pelo discurso médico e psicológico”, conforme JORGE (2008, pág.21).
O mesmo autor ainda pergunta e responde:

“Mas o que é a bissexualidade psicológica para Freud? Trata-se da oposição entre a


heterossexualidade e a homossexualidade, presente para cada sujeito em sua escolha
de objeto, pois aprendemos que todos os seres humanos são bissexuais nesse
sentido; que distribuem sua libido, de maneira manifesta ou latente, entre objetos
de ambos os sexos”. (JORGE, 2008, pág.35)

Contudo, Freud se opôs a considerar que a bissexualidade ou a homossexualidade


corresponderiam a um terceiro sexo, já que a diversidade sexual é própria do ser humano e
atravessada pelo feminino e masculino desde os primórdios da humanidade, e
exemplificadas desde a antiguidade.

“A investigação psicanalítica opõe-se com toda firmeza a tentativa de separar os


homossexuais dos outros seres humanos como um grupo de índole singular. Ao
estudar outras excitações sexuais além das que se exprimem de maneira manifesta,
ela constata que todos os seres humanos são capazes de fazer uma escolha de objeto
homossexual e que de fato a consumaram no inconsciente. As vinculações por
sentimentos libidinosos com pessoas do mesmo sexo desempenham, inclusive, um
papel nada insignificante como fatores da vida anímica normal, e um papel ainda
maior do que as vinculações semelhantes com o sexo oposto como motor do
adoecimento. A psicanálise considera, antes, que a independência da escolha objetal
em relação ao sexo do objeto, a liberdade de dispor igualmente de objetos masculinos
e femininos, tal como observada na infância, nas condições primitivas e nas época pré-
históricas, é a base originária da qual, mediante a restrição num sentido ou no outro,
desenvolvem-se tanto o tipo normal como o invertido”.(FREUD, 1996, pág. 137)

Considerando assim a bissexualidade inata, Freud diz que “há entre a pulsão sexual e
o objeto sexual apenas uma solda” e “assim somos instruídos a afrouxar o vínculo que existe
em nossos pensamentos entre a pulsão e o objeto” (FREUD, 1996, pág. 140), chamando a
atenção para a não conformidade da determinação biológica sobre escolha objetal, da qual
escreveu as variedades de possíveis relações sexuais, elegendo o termo “invertido” para a
época para o que nomeamos hoje como transexualidade e suas variações.
Freud, também desvela a complexidade desse tema e da qual se apresenta de uma
diversidade de formas, e não estando a nenhuma ordem propriamente estabelecida, mas a
uma serie de apontamentos possíveis para o entendimento da sexualidade na “inversão”

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com “os resultado da investigação psicanalítica para aprofundamento e relevância científica”
(FREUD, 1996, pág. 124).
Assim, a que se considerar que para além de “Os Três ensaios da sexualidade” o
desenvolvimento da teoria freudiana compreendeu, em seu percurso, a determinação de
importantes características da sexualidade: os desvios dos comportamentos, dos objetos e
dos objetos sexuais; a organização inicialmente bissexual da criança (FREUD, 1905/1996); as
diferenças entre anatomia e destinos sexuais (FREUD, 1925/1996); a passagem pelo Complexo
de Édipo (FREUD, 1924/1996).

JORGE (2008, pág.30), “a teoria da bissexualidade (...), embora tenha sido útil
para Freud no sentido de colocar as questões referentes à sexualidade humana de
forma inovadora, desfigura a verdadeira descoberta feita pela psicanálise, a do objeto
perdido do desejo. A bissexualidade constitui, na verdade, a possibilidade de
nomeação por Freud, das incidências produzidas pela perda originária do objeto do
desejo sobre a sexualidade humana”.

Este último, talvez o mais estruturante assunto psicanálise, da qual Freud teoriza sobre
os mecanismos psíquicos e a escolha objetal, consagrando a passagem pelo Édipo como um
importante marco de cada sujeito, onde a triangulação relacional se faz necessária para a
separação entre mãe e filho pela função paterna, culminando assim na identificação fálica
que desperta a busca por aquilo que lhe falta.
Assim, o “Complexo de Édipo é um processo a ser atravessado e que leva o sujeito a se
posicionar sexualmente: ou do lado feminino ou do lado masculino, finalmente identificando-
se com membros do seu próprio sexo e tomando o membro do sexo oposto como seu objeto
sexual (COSSI, 2010, pág. 204).” E, compreendendo as diferenças, a partir desse pressuposto
base, Freud acrescenta em nota de 1915 uma ressalva da qual em suas palavras diz que “É
verdade que a Psicanálise não trouxe até agora um esclarecimento completo da origem da
inversão; não obstante, desvendou o mecanismo psíquico de sua formação e enriqueceu
substancialmente a colocação dos problemas envolvidos. (FREUD,1996, pág. 138)
Considera-se que o título da obra, denominada “ensaio”, certamente escolhido por
dispor de uma ideia não conclusiva, deu passo inegavelmente grande em relação à época, de
colocar a sexualidade então repressora e adoecedora a vista da compreensão humana, dando
lugar às trajetórias pessoais e singulares infinitas possibilidades de ser.
O termo transexualidade não era ainda de uso, porém seu conceito se encontra escrito
em partes, em seus relatos de pacientes, das quais usou o termo “invertido” para descrever
esse conceito que é marcado pela diferença daquilo que as ciências biológicas e o meio
caracterizavam como a “função amorosa exigida pela normalidade” da época (FREUD, 1996,
pág. 221).

2. Como teorizou Jacques Lacan

Jacques Lacan (1901-1981), cunhou uma visão da psicanálise voltada para um regresso
aos postulados de Sigmund Freud, e “em sua releitura à obra freudiana, trouxe importantes
contribuições para a compreensão das manifestações do inconsciente acerca do sujeito, do
Outro, do gozo, sexualidade, desejo, castração, dentre outros articulados à constituição do
corpo próprio numa estruturação psíquica.
Portanto, Lacan vai se debruçar sobre as obras de Freud e influenciado pela linguística
irá organizar a teorização das três estruturas – psicótico, neurótico e perverso – como forma
de funcionamento psíquico e como formas de se inscrever no campo da linguagem, colocando
o Complexo de Édipo em três tempos lógicos para a constituição do sujeito:

 Teoria do Espelho: Imaginário

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 Teoria do Édipo: Simbólico
 Teoria da Alienação :Real
Ainda conforme FARIA (2020), “pode se considerar uma quarta que seria a teoria do
nós. Mas em todas elas, é a inscrição do ser no campo da linguagem.(...) É a entrada na
linguagem como inscrição do ser no campo do outro: o grande Outro.” Pois para Lacan nos
constituímos pela inscrição no campo da linguagem, e necessitamos passar por esses três
tempos lógicos e talvez ainda um quarto que estaria ligada ao nó Borromeano que liga os
pontos entre essas fases.
Assim, ao longo dos seus Seminários, para Lacan, a noção de corpo é formada pela
estruturação interna, psíquica e inconsciente :

“Pode ser pensado a partir de vários momentos da teoria. A exemplo disso, tem-se
que na obra lacaniana há teorizações acerca do corpo divididas a partir dos ensinos do
autor, ou seja, o corpo no “primeiro Lacan”, o corpo no “segundo Lacan”, o corpo nos
ensinos do “ultimíssimo Lacan”. Além disso, algumas leituras operam uma divisão a
partir dos registros do Real, Simbólico e Imaginário, bem como uma noção de corpo
que é impossibilitada sem a amarração entre os três registros ao considerar o nó
borromeano (Oliveira, 2021, pág. 37)”.

Por isso, tem se na psicanálise lacaniana a ideia de que o corpo não é um dado
orgânico, natural e originário, pois esse é construído na relação do corpo com a linguagem,
estando sujeito a uma consistência imaginária numa cadeia de significantes e significados.

“Segundo Miller (2004), ‘é um corpo onde se passam coisas’ (p. 50), onde ocorrem
coisas imprevistas. Ao considerar o Estádio do Espelho, Lacan fornece subsídios para
se pensar a essencial diferença entre o organismo biológico e o corpo visual - este
último constituindo uma imagem que encarna o sujeito sob identificações imaginárias,
uma matriz de sua corporização. É na sua teorização sobre o Estádio do Espelho que
Lacan irá estipular que a imagem corporal total com a qual o sujeito se identifica tem
valor de vida para o mesmo (Souto, 2016, pág. 193)”.

Assim, pela via da realização, primariamente imáginária – Estádio do Espelho - que possibilita
ao ser um suporte de fantasia e sua relação com as chamadas “identidades sexuais”, a ideia
de “diferença sexual” a ser compreendida como resultado de uma ordenação simbólica de
significantes e as relações estabelecidas com e pelo corpo enquanto enunciação de
desejo”(SOUTO, 2016, pág. 188). Nota-se, portanto, que o corporal é uma contingência para o
sujeito. O corpo é inscrito pelo desejo e as noções de homem e de mulher são apenas
significantes (LACAN, 1972-1973/1985 apud Souto, 2016. Pág. 193).
No caso do transexualismo existe uma não identificação, como se o sujeito não
pertencesse a esse corpo, na qual deseja livrar-se daquilo que pra ele não diz respeito a sua
significação, e passa a empreender em busca ao falo, aquilo que lhe falta. Por isso Lacan foi
bastante criticado devido as suas falas no sentido de se tomar precaução quando do
entendimento e posição do significante e significado para esse sujeito, como forma de não
incorrer em mudanças catastróficas. No Seminário 18, Lacan diz:

“O transexualismo consiste, precisamente, num desejo muito energético de passar,


seja por que meio for, para o sexo oposto, nem que seja submetendo-se a uma
operação, quando se está do lado masculino [...] Desta forma, para ter acesso ao outro
sexo, realmente é preciso pagar o preço, o da pequena diferença, que passa
enganosamente para o real por intermédio do órgão, justamente no que ele deixa de
ser tomado como tal e, ao mesmo tempo, revela o que significa ser órgão. Um órgão
só é instrumento por meio disto em que todo instrumento se baseia: é que ele é um

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significante. É como significante que o transexual não o quer mais, e não como
órgão. No que ele padece de um erro, que é justamente o erro comum. Sua paixão, a
do transexual, é a loucura de querer livrar-se desse erro, o erro comum que não vê
que o significante é o gozo e que o falo é apenas o significado. O transexual não quer
mais ser significado como falo pelo discurso sexual, o qual, como anúncio, é
impossível. Existe apenas um erro, que é querer forçar pela cirurgia o discurso sexual,
que, na medida em que é impossível, é a passagem do real (LACAN, 1970-1971/2009,
p. 30 apud Souto, 2016, pág. 30).”

Esse olhar de compressão se faz necessário, visto que é importante considerar as


diferenças que se apresentam em relação à transexualidade, visto que a diversidade se
apresenta pela necessidade ou não de transformação corporal.
Há casos, como no caso do filme Transamérica (2005) que existe uma repulsa pelo
pênis na personagem principal - "Ele me enoja. Nem consigo olhá-lo" – querendo a todo custo
retirá-lo. Em outros, em que a tomada de hormônios para a emasculação do corpo produzirá
pêlos, podendo ser algo que também lhe causa repulsa, embora exista o desejo de transição.
Para isso, os procedimentos cirúrgicos, estéticos, hormonais visam à reintegração do sujeito
ao seu verdadeiro Eu, mas para tanto, a psicanálise pode ser um instrumento de
colaboração, sendo a análise imprescindível com o máximo entendimento, no sentido de
ajudar o sujeito a entender como o sujeito constrói não o próprio corpo, mas o corpo próprio
e quais os significantes e significados a que se imagina, simboliza e realiza no inconsciente, e
como se realiza nesse gozo único e singular.

“Do corpo imaginário a “o imaginário é o corpo” parece ser essa a relação das
pessoas Trans com o espelho e, posteriormente, com um outro que lhes confere
certa identificação. A partir dessa claudicação é que se articula essa dimensão
imaginária do corpo com a noção do “ter um corpo” trazida por Lacan em sua obra “O
seminário, livro 23: o sinthoma” (LACAN, 1975-76/1999). Ao considerar que o sujeito
tem um corpo e não que ele é um corpo, abre-se o campo de discussão para uma
certa invenção. Invenção que cada sujeito terá que empreender para construir para
si certa consistência corporal (Oliveira, 2021, pág. 38).”

Dessa forma, articulando o campo imaginário pelo estádio do espelho, produziu uma
simbolização naquilo que lhe falta inconsciente quando da passagem pelo Édipo.

“A psicanálise compreende que é no tempo do Complexo de Édipo que ocorre a


inclusão do significante do Nome-do-Pai no Outro, que marca a entrada do sujeito na
ordem simbólica e permite a inauguração da cadeia do significante no inconsciente,
implicando as questões do sexo e da existência, questões fechadas ao sujeito
neurótico (LACAN, 1957-1958/1999). A intervenção do Nome-do-Pai no Outro faz com
que a identificação da criança com o falo da mãe seja destruída, ou, pelo menos,
recalcada).“Por intermédio da metáfora paterna, a significação do falo é evocada no
imaginário do sujeito. Antes disso, não havia tal possibilidade. Mas o preço de tornar-
se significante é o próprio desaparecimento do falo. O efeito da castração aparece no
imaginário como falta. O falo é, pois, o significante que permitirá ao sujeito atribuir
significações a seus significantes, é o significante que, por excelência, permite ao
sujeito situar-se na ordem simbólica e na partilha dos sexos como homem ou mulher
(QUINET, 2006 apud Souto, 2016, pág. 197)”.

Em relação ao modo ao qual o sujeito se posiciona em relação ao falo, Lacan defende:

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“O Complexo de Édipo tem a função normativa, não simplesmente na estrutura moral
do sujeito, nem em suas relações com a realidade, mas quanto à assunção do seu sexo
[...]. [...] há no Édipo a assunção do próprio sexo pelo sujeito, isto é, para darmos os
nomes às coisas, aquilo que faz com que o homem assuma o tipo viril e com que a
mulher assuma certo tipo feminino, se reconheça como mulher, identifique-se com
suas funções de mulher. A virilidade e a feminilização são os dois termos que traduzem
o que é, essencialmente, a função do Édipo (LACAN, 1957-1958/1999 apud Souto,
2016, pág. 198)”.

Compreendendo assim a significação que a psicanálise direciona ao falo - com o efeito


da castração - como uma falta que todo o ser compartilha e necessita. No caso das
transexualidades, há uma recusa pela assunção desse “próprio sexo”, pois não há a
passagem do imaginário para o simbólico. O sujeito não simboliza o seu sexo conforme a
descrição da castração pelo Édipo. E como não simboliza, corrobora para uma possível
inscrição no campo da linguagem como psicótico, pois a este não há recalque.
Diante disso, a preocupação da psicanálise está diante da realização do falo quando
esse torna-se significante, ou seja, não se realiza como significado da castração, no caso das
transições, esse corpo para o sujeito fica a mercê de continuar significante, no sofrimento da
não significação, pois todo desejo é causado pela busca dessa falta, além de que essa falta é
estruturante do simbólico, da linguagem.

“O desejo humano é causado por um objeto que falta e que, como tal, é responsável
pela estrutura faltosa que produziu o advento do simbólico enquanto fator
absolutamente novo da evolução. Com o advento do simbólico, o sujeito humano
desenvolveu uma linguagem que mediatizou um acesso diferente ao real, e, por meio
dele, abriu portas que constituíram seus quatro mais excelentes caminhos: arte,
ciência, filosofia e religião (...). Mas o que significa afirmar, com Lacan, que o objeto do
desejo é um objeto faltoso? Perdido em algum momento da evolução da espécie
humana, o objeto de desejo se inscreve como falta estruturante: perdido para a
espécie, o objeto é faltoso para cada sujeito (JORGE, 2008, pág.36).”

Considerando ainda a função fálica, é através dela que Freud e mais ainda Lacan
articula a noção da inscrição no campo simbólico de ser homem e mulher. Pois;

“Quando se trata de saber o que é um homem ou uma mulher, não há outra


referência que não seja o falo. O homem se encontra apoiado numa identificação que
corresponde ao seu sexo - o pênis. Já, para as mulheres esse traço que suportaria sua
identificação não existe, pois, diante da referência do falo, há dois modos de
manifestação: a sua presença ou a sua ausência. Em referência a tal afirmativa, Freud
em Organização Genital Infantil (1923/1996) afirma: "o sexo feminino parece não ser
jamais descoberto" (Souto, 2016, p.183-184).

E indo mais além, é nessa ordem que Lacan fala “A mulher não existe”. Uma frase
bastante polêmica, que ao som dos não entendidos pode soar uma afronta. Mas é através dela
que pelo “lado da mulher, Lacan institui a noção de "não-todo" no que se refere à inscrição na
ordem simbólica. Lacan acrescenta um "a mais". Diz ele: "Não é porque ela é não-toda na
função fálica que ela deixa de estar nela de todo. Ela não está lá não de todo. Ela está lá a
toda. Mas há algo a mais" (LACAN, 1972-1973/1985, p. 100 apud Souto, 2016,pág 194)”.

“Em Freud, a compreensão do feminino foi vista a partir da lógica fálica: ter ou não ter
o falo. Para Lacan, não se pode encontrar em uma mulher a essência da feminilidade

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sob a forma de um significante. Ele utiliza, então, o termo "essência feminina" para
definir um modo de operar com o gozo fálico, que é o "não todo fálico" (LEITE, 2012).
No Seminário 10, A angústia (1962-1963/2005), Lacan começa a despregar a
compreensão do feminino pela lógica de Freud e afirma no capítulo XIV, intitulado "A
Mulher, mais Verdadeira e mais Real", que existe um gozo mediado pelo falo que
coexiste com um gozo não todo mediado pelo falo. Ou seja, para Lacan a questão do
feminino implica tanto pensar a mulher regida por um gozo fálico em sintonia com a
lógica do significante, portanto um gozo limitado e localizado; quanto por um gozo
Outro, um gozo que não cai sobre a barra do significante.(Souto, 2016,pág 195)”.

Fica explícito que para a mulher não é toda regida pela lógica fálica, essa lógica não lhe
é própria e não satura de todo o circuito da pulsão sexual. Com essa nova perspectiva, Lacan
situa uma parte da sexualidade feminina num mais além da função fálica. A sexualidade
feminina teria como correlato um gozo Outro que não àquele dito sexual, o que pode ser
evidenciado na relação ao pênis, em que este não se constitui como um limite para a
constituição de sua subjetividade feminina. Ela se dá pela inscrição de diferentes formas, a
depender de cada sujeito e sua relação com o próprio corpo, para a construção do corpo
próprio, utilizando-se assim das fantasias, vestimentas para a construção disso que lhe falta.

“É em torno da noção lacaniana de objeto a que se pode precisar o alcance da ideia de


bissexualidade para Freud, salientando que não se trata de uma bissexualidade
constitucional orgânica, mas sim da falta estrutura de inscrição do objeto do desejo
no inconsciente. Trata-se de que o objeto do desejo do sujeito faltante é faltoso por
natureza e, nesse sentido, este poderia ser chamado chistosamente, com Lacan de a-
ssexual. Se Freud se empenhou em destacar a relação entre fantasias e a
bissexualidade, não será porque é nas fantasias sexuais que a proliferação da
vestimenta imaginária do objeto enquanto eminentemente faltoso – a? Daí Lacan ter
inscrito o matema da fantasia como sendo $◊a, isto é, a relação desejante do sujeito
com o objeto a. (JORGE, 2008, pág.35)

Conclui-se portanto em Lacan que o corporal é uma contingência para o sujeito. O


corpo é inscrito pelo desejo e as noções de homem e de mulher são apenas significantes
(LACAN, 1972-1973/1985 apud Souto, 2016, pág.193).
Porém, a problemática em torno da redesignação sexual ainda incorre num outro ponto
para a psicanálise, no sentido de compreender o modo de funcionamento e de qual estrutura
se fala, pois conforme Teixeira (2006 apud Souto, 2016, pág.201) sinaliza:

“Que o mais provável é que a castração do órgão precipite o sujeito num quadro
delirante, pois a cirurgia de mudança de sexo mutila, de forma legal, o transexual:
castra o órgão, não é capaz de redesignar a identificação sexual do transexual como
tal, desaloja a paixão de passar ao outro sexo da porção do corpo onde ele se
localizava de forma eletiva. Isso não erradica o tormento do gozo, mas promove o
aparecimento de um corpo protético que, no final, já não é de homem, tampouco de
mulher”.

Conforme é visto no caso Schreber, conforme QUINET ( 2006 apud Souto, 2016, pág.198),
um conhecido caso de psicose que ocorre a foraclusão, ou seja, corresponde no sujeito à
abolição da lei simbólica, colocando em causa todo o sistema do significante. A foraclusão do
Nome-do-Pai implica a não travessia do Édipo, uma vez que o sujeito não é submetido à
castração simbólica, não havendo, portanto, possibilidade de a significação fálica advir. E por
não ter acesso ao falo, significante que traz efeito de significação sob seu sexo, o sujeito se

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encontra numa problemática fora-do-sexo, pois, não tendo essa referência, ele não se situa na
partilha dos sexos. O psicótico é um sujeito ex-sexo.
É por esse pressuposto estrutural, que para Lacan o transexualismo é considerado uma
psicose, e acredita que o sintoma transexual funciona efetivamente como suplência do Nome-
do-Pai.
“Lacan sustenta que seu delírio de se transformar em mulher seria decorrente da
foraclusão do Nome-do-Pai. Schreber, desprovido do significante fálico se vê
impossibilitado de se situar na partilha dos sexos como um homem ou uma mulher e,
identificando-se imaginariamente ao falo da mãe, é conduzido pelo que Lacan definirá
posteriormente como o empuxo à Mulher, o qual se define justamente em oposição à
identificação a uma mulher: trata-se aqui do delírio de se tornar "A Mulher", a mulher
enquanto essência do feminino, a mulher enquanto totalidade, enfim, "A Mulher", na
leitura de Lacan, "não existe" (LACAN, 1972-1973/1985 apud Souto, 2016, pág.198).

Sendo assim:

O sintoma transexual funcionaria como suplência do Nome-do-Pai na medida em que o


transexual visa encarnar "A mulher"; Não uma mulher, do lado do ‘não-toda’, o que
resulta que nenhuma mulher é Toda, inteiramente mulher, que nenhuma vale por
todas as mulheres - com efeito, a posição do transexual consiste em se querer Toda,
inteiramente mulher, mais mulher que todas as mulheres e valendo por todas. (...) A
mulher com M maiúsculo, precisamente aquela que Lacan diz não existir (MILLOT 1992
apud Souto, 2016, pág.200).

Millot conclui que o sintoma transexual teria uma função estruturante que Lacan atribui
à identificação com "A mulher", sendo aqui o quarto elemento que permite, na ausência do
Nome-do-Pai, o entrelaçamento de R, S e I. É justamente pelo fato de seu sintoma funcionar
como suplência do Nome do Pai que o sujeito transexual pode, com frequência, não
apresentar sintomas psicóticos. Entretanto, a suplência nesta perspectiva, liga apenas o
Simbólico e o Imaginário. O Real, em contrapartida, não se encontra ligado, "e a demanda do
transexual consiste em reclamar que neste ponto seja feita a correção que ajustaria o Real
do sexo ao nó I e S" (MILLOT 1992, p. 40 apud Souto, 2016, pág.200).
Para tanto, a preocupação com a retirada de algum órgão (pênis, seios) se pensado
como um caso de psicose pode ser um ponto que nem todo sujeito psicótico pode sustentar,
uma vez que não tem recursos simbólicos para dar conta de extrema situação de
despedaçamento do corpo, podendo repercutir na formação de delírios e alucinações. Eis a
grande preocupação pela psicanálise através da estruturação de Lacan!
A partir das considerações de Lacan, é possível situar o transexual num campo
enigmático de investigação, sendo suas certezas questionáveis, quando da busca por uma
completude a se fazer através da cirurgia, pelo preenchimento de uma falta, e alcance de uma
felicidade pela promoção de uma identidade e reconhecimento social que não carrega
garantias nenhumas.
Avançando para além das estruturas, Lacan nos aponta a invenção do sujeito com o
quarto nó que promove as amarrações nas ordens do Real, Simbólico e Imaginário, o savoir a
faire, ou saber fazer com "a dor de existir". Por isso, chama atenção, para se pensar
nesse lugar ocupado pelo transexual em sua escolha pela cirurgia, se esta vem a servir
enquanto possível solução para o sujeito em sofrimento.

3. Novos Conceitos de Stoller

Robert Jesse Stoller (1924-1991), norte americano, foi professor de psiquiatria e como
pesquisador na Clínica de Identidade de Gênero na Faculdade de Medicina da UCLA, sendo

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alvo de muitas críticas devido ao tema de suas pesquisas, pois procurando encontrar a causa
das identidades transgênero, com sua intencionalidade em preveni-las, voltava-se a estudos
antropológicos, com o objetivo de investigar como se constitui as identidades sexuais e a
expressão dos diferentes papéis de gênero de outras culturas. Ficou assim conhecido pelas
suas teorias sobre o desenvolvimento da identidade de gênero como também por suas teorias
sobre a dinâmica da excitação sexual.
Stoller foi o responsável por ter trazido para a Psicanálise em 1964 a noção de gênero
através de um artigo, publicado posteriormente num livro intitulado “Sex and Gender”,
cunhando o termo núcleo de identidade de gênero, da qual reconduziu os fenômenos
transexuais de volta aos trilhos na teoria psicanalítica freudiana, onde “apresenta teses
inovadoras e muitas contestadas a respeito das formas modernas da sexualidade humana,
renovando as interrogações freudianas sobre a identidade sexual, diferença sexual e a
sexualidade em geral (ROUDINESCO E PLON, pp.730-731 apud Cossi, 2010, pág. 203)”.
Para Stoller (1982 apud Cossi, 2010, pág. 203) caracterizou o conceito de gêneros
ligados aos aspectos psicológicos, sociais e históricos associados à masculinidade, a
feminilidade por outros aspectos, definindo desta forma que o sexo no sentido anatômico,
diferencia-se da identidade sexual, e que os mesmos não são naturalmente
correspondentes. As concepções defendidas por Freud e Lacan, trabalharam com o termo
“identificações” do sujeito e objeto, sendo o termo Identidade de gênero e Identidade sexual
cunhados por Stoller.
Stoller analisou as teorias de Freud a respeito do desenvolvimento social, pondo em
questão as posições clássicas da psicanálise. Se posiciona contra a tese da bissexualidade
originária, da masculinidade da libido e do papel preponderante do complexo de Édipo na
formação da identidade sexual, opondo se a concepção binária, universalista e constitucional.
Defende a existência de uma feminilidade primária a qual todos são submetidos, em
função da qualidade simbólica a partir do vínculo inicial estabelecido entre mãe e filho e o
efeito feminino a menina não precisa superar, já que deve ser feminina, mas o menino sim,
para tornar-se masculino. “Para ingressar no conflito edipiano e no estado heterossexual, um
passo a mais deve ser dado em direção da identidade masculina. O menino deve superar essa
primeira ligação simbiótica feminilizante (Cossi, 2010, pág. 204)”.

“Segundo Stoller, no Édipo normal, e sobre o já desenvolvido senso de masculinidade


e o medo de perdê-lo que a castração tem para o menino, uma perspectiva
ameaçadora, ele faz a opção não só para preservar o símbolo de sua virilidade, (o
pênis), mas principalmente sua identidade como homem. Enfatiza que nada disso é
observado em um sujeito transexual, o complexo edipiano é ausente. A
masculinidade não é desenvolvida e ele permanece no estágio anterior ao Édipo, no
qual a feminilidade lhe foi transmitida passivamente pela mãe sem manifestar
defesas e tão pouco conflitos internos. O conflito edipiano pressupõe a separação
entre mãe e filho, para que assim este possa tomá-la como objeto de amor. Para que
tal superação ocorra se faz necessário a entrada de um terceiro sujeito “o pai”. No
menino transexual, mãe e filho permanecem conectados e o pai não interfere nesta
relação. A mãe não é tomada como objeto sexual pelo filho, o pai não é tomado como
objeto de identificação e o filho é condenado à feminilidade primária.” (Cossi, 2010,
pág. 204)

Diante destes conceitos estabelecidos por Stoller, o transexual, esta no estágio mais
primitivo do desenvolvimento da masculinidade e da feminilidade, o núcleo da identidade
genérica, então o senso de pertencer ao masculino ou feminino não ocorre sem a passagem
pelo drama edípico, mas a primeira parte da identidade genérica é a mais importante e
decisiva e viria antes do Édipo.

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Para Stoller (1993 Cossi, 2010, pág. 205) os fatores biológicos, biopsíquicos e
psicológicos são os que determinam a formação da identidade genérica. Todas as alterações
ocorridas nestes três fatores influenciam no desenvolvimento da identidade do sujeito.
Segundo ele, os fatores biológicos podem ter papel fundamental na formação da identidade
genérica, mas opta por não estudá-los, focando a sua teoria nos aspectos biopsíquicos
representados pelos mecanismos do “imprinting” e do condicionamento”.
Conforme Cossi (2010, pág. 205), a terminologia imprinting é utilizada da etologia, onde
referência como alguns animais, por terem estado em contato somente com seres humanos
no período inicial de sua vida passaram a tentar acasalar-se somente com seres humanos. O
imprinting se dá de forma não conflitual, sendo passiva. Para ele, Stoller levanta a hipótese
que para o ser humano esse processo psicobiológico colabora para a escolha de objeto ou
para o desenvolvimento do comportamento genérico. Na instância do condicionamento, as
influências da aprendizagem, desde o nascimento, contribuem para modelar no menino o
estereótipo masculino e o feminino na menina. O meio social transmite para o menino regras
de como se comportar para afirmação de sua masculinidade, onde alguns comportamentos
são reforçados e outros desencorajados, formando os primeiros núcleos de identidade
sexual, até o seu primeiro ano de vida, aos quais vão se aglutinando, configurando uma
qualidade masculina no seu comportamento, compreendendo que a identidade de gênero do
filho também se desenvolve sem conflitos.
A partir de observações clínicas, Stoller (1982 apud Cossi, 2010 pág. 206) identificou um
certo padrão das famílias de transexuais masculinos: com uma dinâmica muito peculiar entre
seus membros: “uma mãe bissexual, com um desejo parcialmente suprimido quanto a ser
homem, cronicamente deprimida e o filho é considerado muito bonito e gracioso, mantido
perto dela, física e emocionalmente, o pai não consegue atravessar esta simbiose entre mãe e
filho.”
Para o autor (ibid. p. 206), não é uma simbiose comum, mas uma denominada
“simbiose Feliz”, pois há uma adoração pelo filho, com contato físico excessivo entre eles, a
mãe trata o filho como parte do seu próprio corpo, ele responde de forma afirmativa,
considerando-se como parte do corpo dela, preenchendo sua necessidade, aliviando-a de sua
depressão e solidão. Stoller explica porque a escolha de um filho ou outro, que é identificado
por ser considerado o mais belo pela mãe e pelos outros. Essa simbiose feliz se mantém
devido à negação da figura do pai, tanto como interditor deste vínculo, quanto como modelo
de identificação, sendo a identificação feminina solidificada, enquanto a masculina é
impedida. Segundo ele, cria-se um distúrbio profundo no ego corporal da criança: ele se sente
como sendo mulher, apesar de ter conhecimento de que é um homem.
Cossi (2010 pág. 206), “na hipótese stolleriana, o transexualismo é marcado por um
distúrbio egoíco, causando uma problemática quanto ao registro imaginário do corpo”. A
teoria da constituição do ego corporal apresenta similaridade com a teoria do espelho de
Lacan. A fase do espelho o corresponde ao advento do narcisismo primário, em um
momento de prematuridade do sistema nervoso, a criança antecipa imaginariamente a
imagem unificada do seu corpo com o da sua mãe, configurando o primeiro esboço da
formação do ego, abrindo caminho para as identificações secundárias.
Respondendo fantasmaticamente ao desejo do Outro (mãe).
Numa análise psicanalítica, esse é um ponto que diferencia uma análise, da qual
geralmente se recorre à estruturação clínica de perversão ou psicose para a explicação do
fenômeno. Assim segundo Stoller apud Cossi (2010, pág. 207), “Perversão pode ser entendida
a partir de uma fase específica de que o sujeito lança mão quando do conflito edípico.
Transexualismo não é uma defesa em frente ao Édipo, já que tal conflito não existe aqui. Além
do mais, em toda perversão há fetichização, o que não aparece nos sujeitos transexuais”. E a
psicose não corresponderia, conforme Garcia (2001 apud Cossi, 2010, pág. 207).

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“O transexual ‘sabe’ que não é possível ‘transformar-se’ num ser do outro sexo e não
alucina sua realidade anatômica: aqui não se trata de uma imposição paranóica, mas
de um forte desejo seu de que seu corpo corresponda ao do gênero oposto. Como não
reconstrói seu corpo à maneira psicótica, pede por uma intervenção médica que
tornaria coerentes seu corpo com sua identidade sexual”.

Dessa forma, Stoller foi fundamental para a psicanálise no sentido de fazer sentido e
retirar o transexual de uma estruturação fixa e imutável sobre o seu psiquismo, além de
colaborar com o entendimento psicanalítico, reconduzindo os fenômenos transexuais e
diferenciando sexo biológico de gênero, cunhando assim uma identidade conceituada como
núcleo de identidade de gênero (Lopes, 2017, p.109).

“(...) Quando duas verdades são incompatíveis, como a de que os cromossomos são
masculinos, mas a identidade está fixada no feminino, com um sentimento de
feminilidade, a verdade da identidade deve prevalecer (Stoller, 1975, p. 1408 apud
Lopes , 2017, p.112).”

4. A contribuição filosófica de Butler

Judith Butler (1956), é uma filósofa pós estruturalista estadunidense que elaborou uma
das principais teorias contemporâneas sobre o feminismo e a Teoria Queer, trazendo a ideia
de gênero performativo, como somatório de repetições de comportamentos socialmente
praticados ao longo da história.
Butler desenvolveu trabalhos com o conceito de gênero e suas relações com o poder e a
transformação social. E ao defender a transexualidade como uma existência legítima,
lança críticas severas a epistemologia psicanalítica e aos seus pressupostos estruturalistas.
Para isso, Butler vai se referenciar na Psicanálise lacaniana, que conforme
Mariotto (2018, p. 53), “ela executa uma hipérbole das referências à dimensão imaginária da
identidade sexual para justificar sua noção de gênero.” Sendo uma crítica a sua teoria, pois
coloca o imaginário em detrimento do real e simbólico e resumindo em termos psicanalíticos a
assumpção de condutas, comportamentos, estilos, etc.
Em seu trabalho sobre a Teoria Queer, Butler denuncia a instabilidade das identidades,
desnaturalizando a binaridade do gênero masculino e feminino revelando a estrutura de
poder que determina a aceitação ou não de identidades e práticas sexuais.
Assim, Conforme Mariotto (2018, p. 53), Butler define que “o gênero é a estilização
repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura regulatória
altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de
uma classe natural de ser”.
A ideia de gênero performativo seria para a autora, como o somatório de repetições de
comportamentos socialmente praticados ao longo da história, e a performatividade é pensada
como uma linguagem e uma forma de ação social, trazendo sempre consigo o efeito de
mudança, enfatizando a possibilidade da fala transformar-se em ação. Consolida a ideia que
a escolha de gênero é socialmente construída por meio de discursos do dia a dia e também por
meio de comunicação não verbal, que definem e sustentam as identidades. Conforme
Mariotto (2018, pág. 59), Butler considera o gênero como um estilo corporal, um ato”(...)
sendo que leva a dizer:

“A minha formulação de que gênero é performativo se torna a base de vários tipos de


intrepretações. A primeira, que nós radicalmente escolhemos os nossos gêneros e a
segunda que nós somos determinados por normas de gênero. Essas respostas
divergentes querem dizer que nem tudo foi articulado e compreendido sobre essas

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dimensões duplas de qualquer tipo de performatividade. Pois a língua age sobre nós e
continua a agir em nós a cada instante em que nós agimos. (...) A escolha vem depois do
processo de performatividade (...)”.

Assim, sua teoria encontra na psicanálise grandes entraves, sobretudo nos pressupostos
de Lacan que situa o corpo no imaginário e entra em contradição com suas teses
fundamentais, além de que conforme Mariotto (2018, pág. 68):

“A respeito do caráter consciente ou inconsciente da construção de gênero, não há


uma definição precisa: ela pode ser tanto um ato volutivo quanto um processo
inconsciente – embora a prática militante dessa teoria opte claramente pela primeira
possibilidade, aproximando-se ironicamente da ideologia liberal à qual pretende se
contrapor ao invocar o direito do indivíduo de escolher seu próprio sexo, como se
escolhe uma roupa, um carro”.

Mas, seu legado é inegável, mesmo levando as escolhas como ato puramente
consciente. Pois ao pensar o feminino, Butler o faz em seu sentido expandido, e não
meramente como a defesa do feminismo ou das mulheres, indicando historicamente a
politização dos corpos, que naturalmente não são “homens” ou mulheres” - portanto são
artificiais os sexos identificados pelos genitais e pelos gêneros masculino e feminino.

O feminismo defendido pela filósofa, caminha na vertente de desmontagem de todo o


tipo de identidade de gênero que oprime as singularidades humanas que não se encaixam, que
não são corretas ou adequadas aos padrões pré estabelecidos de normalidade da sociedade ao
qual o indivíduo está inserido, pois a heteronormatividade determina a concepção binária do
sexo e do gênero, que precisam ser concordantes entre si.

“A instituição de uma heterossexualidade compulsória e naturalizada exige e regula o


gênero como uma relação binária em que o termo masculino se diferencia do termo
feminino, realizando-se essa diferenciação por meio de práticas do desejo heterossexual.
O ato de diferenciar os dois momentos oposicionais da estrutura binária resulta na
consolidação de cada um de seus termos, da coerência interna respectiva do sexo, do
gênero e do desejo. (BUTLER,2003, pág. 45 apud Cossi, 2010, pág. 212)”.

A matriz heterossexual naturaliza e uniformiza os corpos, gêneros e desejos, definindo


um modelo hegemônico. A formação da identidade de gênero seguindo estes conceitos
segundo Butler (2003) é uma manobra de poder médico e jurídico como forma de manter a
coerção social, como uma prática reguladora dos indivíduos, que define o que fica dentro e o
que fica fora do cenário social. Esses excluídos são denominado por Butler de “adjetos”, sendo
assim aqueles que não se enquadram nos gêneros inteligíveis, não mantendo relações de
coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo, condenando os gêneros
ininteligíveis a serem portadores de uma patologia.
A sociedade exclui os sujeitos que não se enquadram no sistema ideal de coerência e
continuidades criadas por ela, não correspondendo aos gêneros inteligíveis , masculino e
feminino, colocados à margem da sociedade, na invisibilidade.
Butler ao definir gênero como um ato performativo define que sexo e gênero são
construídos a partir de uma unidade ilusória. A repetição dos atos que criam a ilusão de
naturalidades encenadas a partir de convenções pré estabelecidas. Gênero é um conjunto de
atos encenados em caráter contingente e imitativo. Performatividade se refere na criação de
uma ilusão de substância, com o propósito de manter o gênero em sua estrutura binária.
Diante dos conceitos apresentados por Butler se apoiando nos conceitos psicanalíticos,
Cossi nos diz (2010, pág. 214):

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“Nos termos de Butler, a visão stolleriana adota sexo e gênero como se apresentassem
caráter ontológico e ratifica a matriz de heterossexualidade compulsória da
modernidade por meio da qual a coerência entre sexo e gênero é encarada como
natural. Os casos de descontinuidade, como o transexualismo, são catalogados como
distúrbios. A Psicanálise Lacaniana também reproduziria a heteronormatividade dos
gêneros em vigor? Para Butler, apoiando-se nos conceitos psicanalíticos de diferença
‘sexual ‘e ‘simbólico’, sim!”

Assim, sua crítica sobre a Psicanálise recai no desenvolvimento de uma psicanálise mais
atenta às questões dos gêneros minoritários, que foram colocados às margens da sociedade,
para oportunizar a sua inserção qualitativa, apoiando-se nas contribuições da antropologia, da
sociedade, da filosofia e da história, com a ressignificação das categorias metapsicológicas,
concebendo maior ênfase ao real historicamente construído ao longo do tempo.

5. O questionamento de Coutinho Jorge

Marco Antonio Coutinho Jorge, psicanalista e médico psiquiatra brasileiro, é professor


associado do Instituto de Psicologia da UERJ, onde ensina no Programa de Pós-Graduação em
Psicanálise. Diretor do Corpo Freudiano Seção Rio de Janeiro, é membro da Association
Insistance (Paris) e da Sociedade Internacional de História da Psiquiatria e da Psicanálise. Além
de Fundamentos da psicanálise (4 vols.), é coautor, entre outros, de Transexualidade (finalista
do prêmio Jabuti 2019 na categoria Ciências) e Histeria e sexualidade (ambos com Natália
Pereira Travassos), publicados pela Zahar, onde dirige a coleção Transmissão da Psicanálise.
Coutinho Jorge, conhecido por suas contribuições para a teoria psicanalítica
contemporânea, abordou a transexualidade em sua obra “Transexualidade, O corpo entre o
sujeito e a ciência". Sua perspectiva oferece uma compreensão profunda sobre a
complexidade dessa questão. Enquanto Freud rompe fronteiras ao falar da “psicopatologia da
vida cotidiana”, e Lacan sintetiza dizendo, o inconsciente é a verdadeira doença mental do
homem, ele se utiliza dos conceitos da psicanálise para refletir acerca dessa condição humana.
Para Jorge, a transexualidade é uma expressão da diversidade humana, que desafia as
categorias tradicionais de gênero. Ele defende que a identidade de gênero é uma construção
psíquica complexa, influenciada por fatores biológicos, psicológicos e sociais.
Jorge destaca a importância de considerar a subjetividade e a singularidade de cada
indivíduo trans, evitando generalizações e estigmatizações. Ele enfatiza que a transexualidade
não é uma patologia, mas sim uma variante da experiência humana.
Para Coutinho Jorge (2018), o corpo do transexual é um lugar de significação, onde o
sujeito expressa o que falta ou “falta” como central no entendimento da transexualidade,
indicando que o desejo de transitar de um gênero para outro revela algo essencial sobre o
inconsciente e a busca por uma identidade coerente. Ele aponta que “o corpo é um espelho
do inconsciente, um território onde as marcas do desejo e do sofrimento psíquico se
inscrevem”.
Coutinho Jorge também examina o papel da ciência e da medicina na vida dos
transexuais, ponderando sobre o quanto os avanços tecnológicos ajudam ou limitam a vivência
subjetiva dessas pessoas. Ele questiona até que ponto as intervenções cirúrgicas e hormonais
respondem de fato às necessidades do sujeito, afirmando que “a ciência muitas vezes reduz
o sujeito à sua anatomia, desconsiderando a singularidade do desejo e da inconsciência”.
Para ele, a psicanálise contribui ao trazer a dimensão do inconsciente para a discussão
sobre o gênero, vendo o transexual não apenas como alguém que busca modificar seu corpo,
mas como um sujeito em busca de completude e reconhecimento. Coutinho Jorge sustenta

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que é necessário entender "o desejo do sujeito em sua relação com a linguagem e o corpo"
para que se possa compreender plenamente a experiência da transexualidade.

6. Rafael Kalaf Cossi sobre as intervenções no corpo

Rafael Kalaf Cossi é graduado em Psicologia pela Universidade de São Paulo (2000),
mestre (2010) e doutor (2017) em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo, é
pesquisador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (LATESFIP-USP) e engajado
nas atividades da Escola de Psicanálise do Fórum do Campo Lacaniano (EPFCL-SP).
Segundo Cossi, o transexualismo é um fenômeno contemporâneo, uma vez que se
refere a um fenômeno que se questiona no contexto da identidade sexual junto aos
pressupostos psicanalíticos.
Em seus vários trabalhos, escritos muitos conjuntamente a outros autores, Cossi faz
uma leitura atualizada da psicanálise junto aos novos termos propostos a questão de
gênero, proporcionando um diálogo com teóricos de diferentes tempos como Judith Butler,
Christian Dunker, Patrícia Porchat, Jacques Lacan e outros, sendo o pioneiro ao empregar o
termo transexualismo de alma ou transexualismo psíquico.

“O texto ‘Psicanálise sem gênero?’ de Christian Dunker e Rafael Kalaf Cossi, parece
anunciar as bases do que se discutirá em toda a coletânea; a possibilidade de produzir e
situar um diálogo entre a teoria lacaniana e os estudos de gênero, em especial as
proposições de Judith Butler. Esse diálogo tenso é apresentado de forma ainda mais
clara em ‘A diferença sexual de Butler a Lacan: gênero, espécie e família. (...) “Em sobre
o estatuto do sexo em psicanálise” reafirma as bases conceituais que permitem que o
diálogo entre psicanálise e estudos de gênero ramifique, sustentando a recusa em
limitar o sexual ao genital; gesto inaugural feito por Freud e repetido a cada confronto
entre uma leitura superficial da teoria psicanalítica e outros campos de conhecimento
(Cossi, 2019, pág. 7)”.

No livro Faces do Sexual: Fronteiras entre gênero e inconsciente, Rafael kalaf Cossi é o
organizador e trabalhou por aproximar os textos em um ordenamento lógico, mantendo um
estilo de discussão articulado, a fim de propor uma análise da patologização e normatização da
diferença nas transexualidades.
No texto transexualismo e Psicanálise: Considerações para além da gramática fálica
normativa (2010) propõe uma investigação teórica acerca do transexualismo, buscando
instrumentos da teoria psicanalítica que possam abrir novas possibilidades de compreensão do
fenômeno para além do campo da patologia. Os fundamentos de base psicanalítica do autor
estão na ordem de inscrição tal qual na sequencia histórica – Freud, Lacan e Stoller – e vem
junto às contribuições de Butler conversar a respeito das muitas prerrogativas das questões
de gênero, identidade e sexualidade nas condições patológicas descritas pela psicanálise,
especialmente das psicoses e perversões.
Assim, através desse último trabalho muitos questionamentos são levantados, e sob
diferentes perspectivas se propõe investigar sobre o tratamento do transexualismo, bem
como questionam dialogicamente se a cirurgia de redesignação sexual seria o único
tratamento apropriado.
De acordo com Cossi (ibid), o sujeito transexual, experimenta uma desconexão entre seu
corpo, biologia, órgãos genitais, masculinos ou femininos e sua identidade. Ele se vê como
pertencente ao sexo oposto, frequentemente se submetendo a procedimentos hormonais,
redesignação sexual e alterações na sua identidade civil.
Assim, para o mesmo, na perspectiva médica, prevalece uma concepção normativa, a
partir da qual se concebe que o corpo biológico valida que o gênero sexual pertence ao sujeito,

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ou seja, o corpo e o gênero devem ser coeso, o sujeito tem um corpo de homem deve ser
coerente à masculinidade e o da mulher a feminilidade.
Portanto, para Cossi (2010, pág. 201), quando os indivíduos experimentam essa
incongruência entre corpo e identidade sexual são portadores de um transtorno de identidade
sexual e tal incompatibilidade causa grande sofrimento e prejuízo.
Cossi critica a perspectiva de certos profissionais que escolhem classificar como
transexuais apenas aqueles que se submetem à cirurgia de redesignação sexual, sendo que
muitos transexuais não exigem passar por esta.
O autor ainda dialoga sobre as teorias psicanalíticas, mais propriamente sobre as
psicoses e perversões envolvidas em transtorno mental, e junto a essas organiza a
transexualidade como uma rejeição ao seu sexo biológico, acompanhado do desejo de possuir
um corpo sexual oposto ao que nasceu. Porém, coloca a ressalva de que as cirurgias de
redesignação sexual devem ser cuidadosamente avaliadas sobre esses aspectos, para se
garantir quanto ao perigo de o indivíduo se arrepender e desenvolver problemas psicológicos
posteriores - drogas, álcool e outras substâncias, culminando até mesmo em suicídio.
Ele acredita que nenhum critério diagnóstico pode garantir que todos os transexuais
queiram passar por tais procedimentos. Para alguns indivíduos, a simples mudança do nome
civil é suficiente, assim como para outros que procuram outros tipos de tratamento.
Cossi, influenciado por Butler, em seu livro Problemas de Gênero (2003), argumenta que
o gênero se manifesta de forma performática, através da perspectiva do indivíduo transexual,
desafiando as convenções sociais que estabelecem o gênero binário, masculino e feminino,
sendo assim um processo contínuo de reconstrução, onde se encena e repete as
características de uma identidade social já existente, seja ela feminina ou masculina, formando
assim um estilo corporal que tal comportamento é designado.
Assim, conclui-se que Cossi também defende a singularidade de cada indivíduo,
defendendo que esse indivíduo transexual receba escuta e apoio qualificado.

7. Um certo Paul Preciado

Paul B. Preciado (1970) é um filósofo espanhol e escritor transgênero, cujas obras


referem-se aos temas sexualidade, identidade de gênero, biopolítica, subjetivação, era
farmacopornográfica e manifesto contrassexual.
Identificando-se anteriormente como mulher cisgênero lésbica, Preciado iniciou sua
transição em 2014, de forma lenta e em 2015 escolheu Paul como seu nome retificado.
Em seu livro “Manifesto Contrassexual” (2002), reflete sobre os modos de subjetivação
e identidade, assim como a construção social de política do sexo, tendo como referências
Judith Butler e Michel Foucault. Em outro livro “Texto Junkie” (2008) analisa o que ele chama
de regime ou era farmacopornográfica, isto é, a indústria farmacêutica, onde o capitalismo
tardio e a pornografia adquirem e desempenham um papel crucial, incluindo assim o seu
próprio processo de transição, da qual a autoadministração da testosterona sintética é
relatada como um ensaio corporal e de intoxicação voluntária.
Porém, foi após a intervenção por ele realizada em 2019 na Jornada da École de la
Cause Freudienne em Paris, que deu origem à publicação de um livro, em 2020, intitulado “Eu
sou um monstro que vos fala: informe para uma academia de psicanalistas” que Preciado
passou a reiterar sobre os postulados psicanalistas, interrogando a posição política dos
psicanalistas europeus, apontando cumplicidades com o dispositivo de poder hetero-
patriarcal-colonial em sua abordagem das transidentidades, considerando essas patologizantes
para os dissidentes de gênero e sexualidade. Nesse sentido, para Preciado as transexualidades

19
desafiam o estatuto jurídico historicamente naturalizado da diferença sexual: homem e
mulher.
A partir da intervenção do filósofo Paul B. Preciado evidenciou que o que está em jogo
nas temáticas de gênero não é apenas uma questão quanto ao registro das identificações, mas
também uma problemática mais ampla concernente à violência social e ao modo como a
psicanálise irá se posicionar diante do regime da necrobiopolítica que atravessa o mundo
contemporâneo. Assim, conforme Lima (2022)

“ (...)argumentamos que a questão trazida por Preciado (2020b) relativa à diferença


sexual e às pessoas trans, que pode parecer um problema particular restrito a certo
grupo de pessoas (como Miller deixa entrever em seu texto e Roudinesco sugere em
seu livro), envolve também uma questão mais ampla sobre a postura da psicanálise
diante da necrobiopolítica que produz a subalternização e o extermínio das
subjetivações dissidentes de gênero, raça e sexualidade no mundo e, em especial, no
Brasil, país que é o líder mundial, há anos seguidos, em assassinatos de pessoas trans e
travestis, bem como o responsável por um genocídio sistemático de sua população
preta, pobre e periférica.

Sua proposição trata-se de incitar uma posição frente às normas dessa tradição
hetero-patriarcal-colonial, da qual coloca a psicanálise como colaboradora dessas dinâmicas de
poder no laço social e suas diferentes segregações, como em relação à homofobia e transfobia.
Lima (2022), responde que mesmo que há nas teorias o sentido de contribuir de desmontar as
identificações imaginárias do Eu, há posicionamentos narcísicos que submetem ao poder.
É importante considerar que a leitura da teoria psicanalítica feita por Preciado se dá de
forma superficial, olhando de longe pontos de contato da psicanálise com dispositivos de
poder que talvez não percebamos quando estamos muito inseridos em um campo ou em
nosso próprio tempo, e não considera que há inúmeros pontos de subversão ao poder que
Freud e Lacan introduziram.
“Paul se nomeia como "um dissidente do sistema sexo-gênero (Lima, 2022)” e
testemunha o fato de que ele próprio não é o personagem trans que quiseram fazer dele, não
estando restrito a uma tipologia médico-psiquiátrica que hoje muitas pessoas trans buscam
alienar-se.
"Devia me converter em uma boa namorada heterossexual, em uma boa esposa, em
uma boa mãe, em uma mulher discreta" (Preciado, 2020b, p. 23, tradução nossa).
Nada mais longe de suas aspirações; ao mesmo tempo que, conforme nos diz,
tampouco se tratava de um desejo de "ser homem": "Não, eu não queria me converter
em um homem como os outros homens. Sua violência e sua arrogância política não me
seduziam" (p. 28, tradução nossa). Também não estava em jogo ser considerado
"normal" e/ou "saudável"; ele dizia buscar, antes, uma saída que lhe permitisse
escapar "dessa paródia da diferença sexual", em que se é ou um homem ou uma
mulher conforme a norma binária, assumindo e incorporando uma identidade
masculina ou feminina prêt-à-porter. (Preciado, 2008/2018, p. 102)
"Como homem trans, desidentifico-me da masculinidade dominante e de sua
definição necropolítica. [...] Não gozo com essa estética do antigo regime sexual. Não
me excita ‘molestar' quem quer que seja. Não me interessa sair de minha miséria

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sexual passando a mão nos outros no metrô" (Preciado, 2019/2020a, p. 316). E, ao
mesmo tempo, não pretende "representar em nenhuma medida nenhum coletivo"
(Preciado, 2019/2020a, p. 312).

Paul denuncia uma resistência por parte dos analistas diante da questão de gênero, e
de que as leituras psicanalistas são da presença do imaginário no reconhecimento do gênero
de alguém, das concepções do que é (ou deve ser) a boa forma de uma pessoa, concepções
essas que são frequentemente estruturadas pelos roteiros normativos da cisgeneridade na
cultura e que podem ter implicações clínicas violentas para sujeitos que não se reconhecem
por essas categorias.
Portanto, Trata-se de construir outra forma de habitar um corpo, que não esteja
encarcerada pelas obrigações rígidas de uma "identidade".

“Está em jogo, portanto, a tentativa de construir outra forma de vida, que lhe permita
escapar tanto às regulações biopolíticas do gênero quanto às determinações
mortíferas da necropolítica - seja enquanto corpo ininteligível subalternizado e
destinado à morte seja enquanto corpo convocado a reencenar a norma da
masculinidade hegemônica. Nesse mesmo sentido, Paul pensa sua transição não como
a passagem de A a B, com um ponto de partida e um ponto de chegada bem
delimitados (de uma ficção biopolítica a outra), mas sim como a construção constante
de um fora (em relação ao binário normativo da diferença sexual); ele pensa a
"fabricação" da sua "liberdade" não como um estado, mas como um "túnel"(lima,
2022)

E assim, o que assusta, pois ele evoca a dimensão do "monstro", isto é, "aquele que
vive em transição" (Preciado, 2020b, p. 45, tradução nossa), aquele cujo rosto e cujo corpo,
cujas práticas e cuja linguagem não são reconhecidas como legítimas em um determinado
regime de inteligibilidade, de saber e poder, alguém que pode parecer monstruoso à luz da
maneira tradicional ou hegemônica de se entender o que é ser um homem ou uma mulher
(lima, 2022).”
O autor convoca a escutar a singularidade de cada um, sendo assim:

“O que está em “jogo uma recusa à violência mortificadora do Outro, a fim de


construir um corpo vivo capaz de gozar a seu modo. Com sua operação, temos, ao
mesmo tempo, uma subversão das biopolíticas de gênero e a construção de uma linha
de fuga em relação à necropolítica. Ele reivindica aqui o seu direito à vida, seu direito
de viver à sua maneira, e, nesse ponto, como analistas, talvez devêssemos fazer com
ele uma aliança inegociável, fazendo valer sua convocação a nos posicionarmos
criticamente diante da necrobiopolítica contemporânea (lima, 2022)”.

8. Jacques Alain-Miller do Dócil ao Trans

Jacques-Alain Miller é psicanalista e dirige o Departamento de Psicanálise da


Universidade de Paris VIII, tendo Fundado a Associação Mundial de Psicanálise (AMP), sendo o

21
seu primeiro delegado-geral. Nomeado herdeiro moral pelo próprio Lacan, é responsável pelo
estabelecimento de texto de seus Seminários e também diretor da coleção Campo Freudiano,
na França e no Brasil.
Sendo assim um contemporâneo psicanalista francês e conhecido como herdeiro de
Lacan ao transcrever os seminários por este realizados, também se torna responsável por
responder as prerrogativas que assim seguem a Psicanálise. E, o tema transexualidade por
assim tornou-se uma das questões a se debater junto ao meio, por assim se contrapor por
muitos aos postulados freudianos e lacanianos. Miller, num texto rico de exemplificações
históricas assim se manifesta.
Em uma escrita aberta através de seu site oficial, Miller faz questionamentos abertos e
cheios de interrogativas num texto que ele titulou de “Dócil ao Trans” (2021), onde afirma que
a “revolta dos Trans” está em marcha. “A tempestade desabou” sobre os psicanalistas. “A
crise Trans está sobre nós”. As frases mencionadas anunciam o redirecionamento do olhar e
da escuta psicanalíticas para as novas formas de subjetividade na contemporaneidade.
Num misto sarcástico interrogativo da boa linguagem francesa, Miller dialoga numa
viagem de confronto as teorias de gênero, deixando claro o desconcerto que atualmente se faz
na psicanálise.

“Um frisson novo Hugo escreveu, de Baudelaire para Baudelaire, que ele havia criado
“um frisson novo”. É isto. Com a entrada em cena do trans, personagem muitas vezes
cheio de cores em nossa comédia humana (o trans em Balzac? Claro, na figura do
andrógino, Séraphitus Séraphita), um frisson novo passa à civilização. O que o trans
nos traz é perturbação. Não perturbação no gênero, intrinsecamente confuso, mas
turbulência, polvorosa na guerra imemorial dos sexos. Antes do trans, o monstro era o
hermafrodita. Este também perturbava a ordem pública sexual. Mas o
hermafroditismo é apenas um assunto de órgãos. Um hermafrodita é um caso
biológico, o que é raro. A androginia, em contrapartida, é uma criatura de mito, um
assunto de look e de lifestyle. Um andrógino é alguém cuja aparência não lhes permite
determinar a qual sexo pertence. Já era assim na Grécia antiga ou em Roma: vejam, de
Luc Brisson, Le sexe incertain. Um transtorno de identidade sexual não é assim. O
trans, é ainda outra coisa.” (Miller,2021,pág 13)

E tudo isso como resposta ao filósofo Paul Preciado, quanto de sua intervenção por ele
realizada em 2019 na Jornada da École de la Cause Freudienne em Paris, que deu origem à
publicação de um livro, em 2020, intitulado Eu sou um monstro que vos fala: informe para uma
academia de psicanalistas. Preciado, assim fez uma interrogação à posição de enunciação
política dos psicanalistas europeus, apontando sua cumplicidade com os dispositivos de poder
hetero-patriarcal-colonial em sua abordagem das transidentidades com consequências
patologizantes para dissidentes de gênero e sexualidade que, como o próprio filósofo,
desafiam o estatuto jurídico naturalizado da diferença sexual.
Como o próprio título da obra provocante de Preciado e direta a Psicanálise, Miller
como sucessor de Lacan e por assim dizer, de Freud, um dos nomes mais expoentes da teoria
psicanalista, não deixou de se opor, porém não o fez através de uma explicação teórica. Ao
contrário, escreveu de maneira política à crítica da qual a psicanálise estaria a serviço politico e
patologizante.

22
Assim, Miller (2021) em suas perspectivas busca defender a psicanálise do que
entende ser ameaças ao campo por parte dos debates contemporâneos sobre identidade, da
qual esta estaria por “reduzir os problemas de gênero a questões do imaginário, como se o
gênero se tratasse apenas de um capricho narcísico do eu, dirigido à identificação alienante a
uma dada identidade ou a um grupo, sem outros atravessamentos políticos e subjetivos além
de um alegado fenômeno narcísico de massa”.
Assim, no texto "Dócil ao trans", pode-se ler a ênfase crítica e irônica de Miller (2021)
sobre a dimensão egóica do gênero , e da qual numa escrita em tom de irônico, como se
condenado estivesse ao defender sua obra e de outros, coloca-se em primeira pessoa para
num ato de rendição fazer adoçar seu coro numa condição heroica de ao mesmo tempo
entregar-se e emponderar-se através da sua escuta, resposta e militância.

“Meu trans imaginário diria algo como: Nem Marty, nem você, nem mesmo Butler são
trans. Vocês falam dos trans. Os trans são objetos de suas fofocas, como são há muito
tempo objetos do discurso médico, do discurso psiquiátrico, do discurso psicanalítico.
Bom, agora tudo isso acabou. Um deslocamento de forças de uma amplitude que
vocês não imaginam, capaz de perturbar cultura e civilização, fez com que os trans
tomassem a palavra – como no passado tomaram a Bastilha, dizia Michel de Certeau
sobre maio de 68. Agora os trans falam dos trans, falam dos trans para os trans, falam
dos trans para os não-trans, que por sua vez, têm muito a aprender e muito a se
desculpar. Quem mais além de um trans está qualificado para falar de um trans?” Ele
ou ela continuaria: “Em detrimento do que um vão povo pensa e deseja, não
voltaremos atrás. O Gênio não entrará na garrafa. É assim. No futuro vocês terão que
contar conosco e com a nossa fala, com nossa sensibilidade, com nossas reivindicações
e nossas esperanças, nossos sofrimentos, tal como os expressamos com nossas
palavras e com as de vocês, que entre nós, fedem a mofo. Não acreditam mais em
vocês, vocês estão perdidos, não têm mais credibilidade.” (Miller, 2021, pág .13)

Assim, Miller coloca-se em sua situação de herdeiro de um novo tempo, da qual diz
que “não havia no tempo de Freud grupos militantes nem lobbies dedicados à emancipação
das histéricas”, portanto estes seriam tempos dóceis e da qual “Lacan abriu um caminho novo
com sua invenção do discurso do Mestre como o avesso da psicanálise, de onde vem sua ideia
de que “o inconsciente, é a política”, fórmula bastante esclarecedora que foi pouco entendida.
Lacan faz o elogio de Freud, que soube se mostrar “dócil à histérica”. Também eu gostaria de
poder felicitar o praticante de hoje por ter sabido se fazer “dócil ao trans”. Será que é o caso?
(Miller, pág 20)”
De qualquer forma, em seus outros escritos, o mesmo se mostra a acompanhar as
transformações não como desejo, mas como uma necessidade, assim quando diz que “corpo
aparece na psicanálise como ponto de estudo da subjetividade e “não obstante, as
transformações que ocorrem na teoria são uma constante, ainda que contingentes, visto que
dependem da cultura, da época, do tempo e do espaço. “A psicanálise muda, isso não é um
desejo, mas um fato (MILLER, 2015, p. 119 apud Oliveira, 2021, pág.61)

23
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Psicanálise vem contribuir ao pensamento a respeito da constituição dos corpos


Trans, ou melhor, à constituição do corpo próprio, como um saber que deve estar atento a
subjetividade de sua época, pois “cada época atribui um significado ao corpo, o constrói e o
reconstrói, o decora e o desvela, mas também, o destrói, o deforma e o mutila.(...) E os
modos de se utilizar e de se dispor do corpo refletem as normas e os valores da dinâmica
cultural da sociedade em questão(CECCARELLI, 2011 apud Moura, 2018, pág. 99).”

Os diferentes autores consideram que as contribuições sobre os conceitos de


identificação, gênero, sexuação e seus signficados devem ser abarcados a Psicanálise, pois a
transexualidade se constitui como uma dessas formas de subjetivação, onde o corpo que
interessa é o corpo vivo, que sente, que interpreta, fantasia, ama ou rejeita envolvido nas
trocas afetivas com o outro.

Conforme Moura (2018, pág. 103),

“(...) pode-se evidenciar que a noção de corpo é produto das diferentes culturas e
momentos históricos onde esse corpo circula. Da mesma forma, o gênero enquanto
resultado de designações socioculturais, mas se tratando das identidades dos sujeitos
percebe-se que isso reflete determinações inconscientes que permeiam a constituição
de cada pessoa.(...)As noções de masculinidade e feminilidade estão postas no
imaginário social, tais conteúdos vão fazer parte da constituição inconsciente de
cada sujeito, refletida na forma como esse se apresenta nas relações, onde a
transexualidade se constitui como uma dessas formas de subjetivação”.

Dito isso, é importante para a psicanálise questionar essa forma de subjetivação pela
transexualidade, questionando conforme Moura (2018, pág. 99) “O que é um corpo? O que é
ter um corpo? O que é hoje a nossa corporeidade? Que possibilidades nos são abertas e que
experiências nos são possíveis a partir do corpo?” Pois as subjetivações fazem parte do
conteúdo inconsciente de cada sujeito, e é por onde a psicanálise transita e considera como
sendo aquilo que o sujeito ainda não sabe sobre si. A Psicanálise, portanto busca desvelar esse
inconsciente de maneira responsável, analisando a subjetividade de cada ser com critérios
profundos de análise, pois conforme Mariotto (2018, pág. 57) “nos últimos anos foram
divulgados críticas de vários autores que apontam uma desvalorização do inconsciente na
ênfase dedicada ao gênero (...).Ora não importa qual corrente psicanalista consideremos,
todas concordam que a identidade sexual jamais é resultado de uma escolha consciente, mas
algo que o sujeito se dá conta sem ser capaz de definir como ela constituiu”.

Dito de outra forma, conforme CECCARELLI (2011, apud Moura, 2018, pág. 99):

“A psicanálise discute um corpo subjetivo, abordado pelo instrumental


clínico/teórico, onde se privilegia a linguagem, como material de estudo. No entanto,
essa forma de pensar o corpo fez com que durante muito tempo algumas pessoas
argumentassem que a psicanálise negligenciava o corpo e privilegiava o discurso
(LAZZARINI; VIANA, 2006). Muito pelo contrário, com a descoberta do inconsciente, a

24
“vida dupla do corpo” é desvelada, trazendo assim, novas perspectivas clínicas para a
compreensão das relações eu/ corpo. A particularidade da psicanálise encontra-se no
fato de que ao superar a dimensão biológica do corpo, ela trabalha com sua
perspectiva imaginária, simbólica e real. Para a psicanálise a imagem do corpo é
compreendida como a própria substância do nosso eu, porém, não existe eu puro; o eu
resulta sempre da interpretação pessoal e afetiva do que sentimos e do que vemos de
nosso corpo. Então, não somos apenas nosso corpo em carne e osso. Sendo assim, o
corpo real seria o corpo que sentimos: a imagem do corpo real. Já o corpo imaginário,
o corpo que vemos: a imagem especular. E o corpo simbólico, o corpo que
nomeamos: a imagem do corpo simbólico (NASIO, 2009 apud Moura, 2018, pág. 99)

Além do mais, a imagem que o sujeito constrói sobre o seu corpo – real, imaginário e
simbólico - é inscrito pela visão do Outro - o “grande Outro” – da qual também se relacionam
a cultura, e o simbólico sendo certos atributos considerados masculinos em determinada
época e cultura que outrora eram atributos femininos, que conforme Lacan, são como
“atributos que restam a determinar”, que não são fixos. Portanto, conforme Moura (2018, pág.
102),

“Não há uma identidade sexual de base, ao sujeito dividido, acrescentar-se-ão os


atributos masculinos ou femininos, mas nenhum atributo proporcionará uma
identidade sexual. A identidade é construída a partir da “cristalização das
identificações”, das fixações de gozo, da inserção da castração, de sua negação, sua
recusa radical ou de seu desmentido. Como é exemplificado no aporte lacaniano,
masculino e feminino são apenas semblantes, máscaras construídas, roupas,
maquiagem ou ainda temperamento afirmativo que este sujeito supõe ao masculino
ou ao feminino. Sentir-se homem ou mulher é uma questão de encontrar uma
identidade (MIRANDA, 2015). Barreto e Ceccarelli (2015) afirmam não haver nenhuma
predeterminação natural ao que concerne aos caminhos pulsionais e as escolhas de
objetos. E que o descompasso entre anatomia e o sentimento de identidade sexual
desses sujeitos se apresenta como uma equação psíquica, pois recorda não apenas o
estranho familiar, mas também a identificação, fazendo com que o Eu entre num
questionamento constante e inquietante: “Quem sou Eu?” Porém, deve-se
compreender que não existe um padrão fixo do ser transexual. Neste sentido, a
experiência trans, trata-se de várias formas singulares de subjetivação (ARÁN et al.,
2008). É particularmente consenso ouvir: “tenho o corpo de um sexo e a alma do
outro”. No entanto, as pessoas transexuais são diferentes umas das outras, assim
como todas as demais pessoas não transexuais (SAMPAIO; COELHO, 2013). A aparente
semelhança entre os discursos manifestos pode camuflar uma grande diversidade de
conteúdos latentes, senão recalcados, e falar do “transexual típico” é tão absurdo
quanto falar do “heterossexual típico” ou do “homossexual típico” (CECCARELLI, 1998).
Um exemplo disso está no fato da experiência da transição das pessoas trans, pois,
nem todas(os) necessitam passar pelo processo de redesignação sexual, há
aquelas(es) que se satisfazem apenas com o processo de hormonização. Neste
sentido, para algumas pessoas “a cirurgia é imprescindível”, outras “podem esperar”
e ainda outras “podem desistir” da cirurgia sem “deixarem de ser transexuais”

25
(ARÁN et al., 2008). Então, qualquer estratégia de ajudar estes sujeitos, deve levar em
conta à particularidade de trajeto transexual de cada um”.

Considerando essas várias formas singulares de subjetivação, e de toda a disposição de


meios tecnológicos que favorecem a transição, a psicanálise se preocupa com o sujeito
produtor do seu destino, considerando sua autonomia de escolha e contribui sobre a
despatologização das transidentidades, evidenciando a importância da compreensão sobre a
diversidade das formas de subjetivação na transexualidade, sendo essa uma das muitas
possibilidades humanas de determinação do próprio gênero.
Por conseguinte, há ainda uma discussão acerca do lugar ocupado pela nomeação
“Trans” para essas pessoas, considerado enquanto um dos nomes para o corpo próprio, porém
“é preciso partir do conjunto “Trans” rumo à singularidade enquanto possibilidade para
pensar a psicanálise em articulação e diálogo com essa temática como forma de fazer (r)existir
e consistir o corpo próprio enquanto potência de transformação. (Oliveira, 2021, pág. 18)”
Dessa forma, na singularidade desse conjunto é importante conceituar :

“O termo “Trans” serve à referência de pessoas que se autonomeiam Trans, bem como
àquelas que expressam o intenso sentimento de não pertencimento ao sexo e/ou
gênero atribuído no momento do nascimento e que não apresentam bases orgânicas
- como nos casos de hermafroditismo, nas manifestações de distúrbios delirantes ou
outros tipos de anomalias endócrinas. Por conseguinte, o Trans representa um dos
modos inventados pelo sujeito em lidar com o desencontro que se opera e que
impede a adequação entre o discurso e a imagem do corpo. (Oliveira, 2021, pág. 35)”.

“Pessoa “trans” é aquela que está em permanente “transformação”, disposta a


“transpor” todos os obstáculos. É aquela pessoa que “transgride” regras e padrões de
conduta, “transmitindo” à sociedade, de forma absolutamente “transparente”, novas
ou inexploradas possibilidades de realização. Pessoa “trans” é aquela que
“transcende” a si mesma, tentando expressar ao mundo a pessoa que ela realmente é
em vez da pessoa que o mundo acha que ela deveria ser. (Letícia Lanz Apud Oliveira,
2021, pág. 31)”.

Assim, podemos considerar que a própria transgressão como forma de realização,


satisfação, de movimentos pulsionais que não se restringem a diferença anatômica e nem as
identificações, mas se endereça às relações do sujeito com seus modos de gozo. Assim diz
MACÊDO (2016, p. 6 apud Oliveira, 2021, pág 88), “nas bordas da sexuação há o homem e a
mulher”. (...) Do lado de lá, a existência de ao menos um que não se submete a regra, é o
todo na exceção. Do lado de cá, a impossibilidade da universalidade. E assim Lacan (1972-
73/2008, p. 86 apud Oliveira, 2021, pág. 88), “quem quer que seja ser falante se inscreve de
um lado ou de outro”. Isto é, todo ser falante coloca-se do lado homem ou do lado mulher das
fórmulas da sexuação. Mas isso não implica em fixidez ou permanência e quanto a isso, ele
também é enérgico quando diz que “a todo ser falante [...] é permitido, qualquer que ele
seja, quer ele seja ou não provido dos atributos da masculinidade – atributos que restam a
determinar – inscrever-se do lado mulher ou do lado homem”.

26
Assim, pelos contornos da linguagem está posta a impossibilidade de abarcar todos os
atributos Trans – atributos que restam a determinar, pois aos atributos masculinos e femininos
também há impossibilidade de universalidade. A todo ser falante encontra-se o desafio de
constituir um corpo, de no percurso de sua história saber o que fazer com ele. E a partir dele
extravasar a pulsão na sexualidade que lhe satisfaz, da qual produz efeito do seu gozo, como
forma de dar vazão a essa energia que lhe é própria, para conseguir lidar com o vazio
fundamental que habita todo ser falante.
É por isso que para Lacan “a relação sexual não existe”, via que o vazio é inerente ao
ser e impossível de ser preenchidas e satisfeitas por completo, assim como afirmar que não há,
na ciência contemporânea, formas de construção de um sujeito completo. É enquanto ser
faltante que se lida com o corpo próprio e com os desencontros e desalinhos que se
estabelecem entre corpo e imagem que o sujeito se constitui um corpo vivo.
A grande preocupação que aqui se faz na leitura de diversos autores psicanalistas, é de
que o corpo Trans não deve ser visto como um corpo errado, equivocado, mas um corpo que
não necessariamente se submeta aos dispositivos da tecnociência para se livrar das suas
indagações e modifica-lo a todo custo, mas na liberdade de viver o corpo sem desconforto ou
violência, sem pressões que derrubem sua autoestima, visto que há um descompasso entre o
que o sujeito sente, sua anatomia, seu gênero, sua identidade e sua orientação sexual.

Assim, “nos seres falantes, as escolhas sexuais não são da ordem das identidades,
mas das identificações, ou seja, são condicionadas pelos ditos do Outro simbólico,
levando, por vezes, a mudanças no corpo próprio e à busca por reconhecimento
social” (ABRAMOVITCH, 2017, p. 129). Ademais, a essa simbolização escapa um real
indizível da imagem do corpo que se coloca como questão para o sujeito
(ABRAMOVITCH, 2017; MARQUES; LAVINAS; MÜLLER, 2018; MIRANDA, 2015; SOUZA,
2016). Por conseguinte, Miranda (2019) considera que a identidade é construção, é a
condensação das identificações, das fixações de gozo, da inserção da castração, de
sua negação, sua recusa radical ou de seu desmentido. É preciso ressaltar que “a
identidade não é um conceito psicanalítico, pois tanto Freud quanto Lacan abordaram
a questão pela via da ‘identificação’, sendo essa o mecanismo principal de constituição
do eu” (TRIVEÑO, 2013, p. 255, tradução nossa), uma vez que as identificações ao
mesmo tempo que velam uma falta, proporcionam uma ficção para o sujeito, ainda
que seja de forma falida (TRIVEÑO, 2013). Além disso, para Lutterbach (2016), o que
está em jogo para a psicanálise é a posição de objeto que cada ser falante ocupa para
o Outro e qual o destino dado a isso na fantasia inconsciente que irá direcionar a
identificação sexual e a escolha (inconsciente) de objeto de cada um. (Oliveira, 2021,
pág. 81)

Dito isso, a complementariedade é da ordem do impossível para Lacan, somente da


ordem da fantasia, porém suas fixações de gozo dizem respeito a sua posição de objeto para o
Outro, da sua solitude do gozo e sua significação, pois o mal estar permeia a todos e sempre
haverá um desencontro entre o sujeito e objeto, ou de incompletude do ser.
Assim, cabe aqui considerar a noção de orientação sexual, a fim de se separar não
apenas conceitualmente os conceitos de gênero, identidade, identificação e corpo, mas por
que se expressam por diferentes formas contemporaneamente.

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“A noção de orientação sexual enquanto a atração emocional, afetiva ou sexual por
indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim
como relações íntimas e sexuais com essas pessoas (BRASIL, 2017; PRINCÍPIOS, 2006).
Isto é, homossexual, heterossexual, bissexual, assexual, panssexual (BRASIL, 2017;
INTERDONATO; QUEIROZ, 2017; NOGUEIRA; AQUINO; CABRAL, 2017; REIS, 2018).
Dessa forma, as pessoas Trans podem “ser heterossexuais, homossexuais ou
bissexuais, caso seu desejo seja direcionado ao gênero oposto, ao mesmo gênero ou
a ambos os gêneros, respectivamente” (INTERDONATO; QUEIROZ, 2017, p. 43).
Segundo Nery (2011), é possível falar em transidentidades: homens sem pênis, gays
lésbicos, cross-dresser, drags (queen e king), trans-gay, etc. [...] inúmeras formas de
transversalidades de gênero. Além disso, considera-se que “a pessoa não precisa de
cirurgias, tratamento hormonal, laser, binder, packer, cabelo curto ou comprido,
gostar do gênero oposto, odiar a genitália para ser Trans de ‘verdade’” (MOIRA et al.,
2017, p. 11 apud Oliveira, 2021, pág. 34)”

A psicanálise se pauta numa prática orientada pela singularidade, e recusa a


categorizações generalizantes e teorias totalizantes sobre o homem e sua subjetividade.
É através de uma escuta atenta para aquilo que há de particular, único, no um a um, por essa
busca daquilo que nem ele mesmo sabe – inconsciente -, e desvelar essas formas de
subjetivação e a ordem simbólica que assim o constitui, seu significante e seu significado.
Do corpo imaginário a “o imaginário é o corpo”, nessa relação das pessoas Trans com o
espelho e com um Outro que o sujeito constrói sua identidade pelas suas identificações, na
proposição desse corpo próprio, dessa invenção que cada sujeito empreende para construir
para si sua própria autobiografia, a partir dos três registros – Simbólico, Imaginário e Real ao
considerar que ambos se configuram modos inventados pelo ser falante de estar no mundo.
E nessa escuta, o analista deve sempre considerar que “o significado não tem nada a
ver com os ouvidos, mas somente com a leitura, com a leitura do que se ouve de significante.
O significado não é aquilo que se ouve. O que se ouve é significante. O significado é efeito do
significante” (LACAN, 1972-73/2008, p. 39 apud Oliveira, 2021, pág. 47). Consideremos assim,
o significante como o seu corpo através da relação com o Outro da qual esse sujeito se
inscreve no campo da linguagem. O significado, portanto pode estar nos seus desejos, na
satisfação da identificação ou na transgressão desses mesmos desejos, da qual Freud
denominou de perversão (a fantasia dos neuróticos).
Fez se importante aqui nesse trabalho acrescentar as Teorias de Gênero de Judith
Butler para a compreensão dessas nomeações. Mas, a nomeação seria a “cristalização, no
imaginário, de um significado que a pessoa pôde conferir a sim mesma a cerca de sua
identidade de gênero” (Marioto, 2018, pág. 130). Por isso é importante diferenciar essa
vertente teórica da psicanálise. É importante diferenciar que “na teoria de gênero, o termo
escolha é tomado como ato de um sujeito sem divisão, e portanto de um indivíduo que faz da
sexualidade um ato performativo. Em Psicanálise, o termo escolha é inconsciente, ou seja, de
alguém que se surpreende enquanto tal, que se dá conta, que se apercebe de seu desejo
mesmo aí onde não quer” (Marioto, 2018, pág. 97). Assim escolher o corpo próprio nunca é
uma decisão tranquila, e no caso trans envolve muito mais sofrimento, pois o desejo está para
além da vontade do Eu, pois este sempre o divide. “A psicanálise constrói o seu conhecimento
pautado em uma ética, a saber, a ética do desejo. É nesse sentido que o saber/fazer em

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psicanálise é o de uma práxis articulada a uma teoria, aplicação essa que não visa modificar
condutas de um sujeito, mas auxiliá-lo a caminhar rumo ao desejo que o conduz (SOUZA, 2016,
Oliveira, 2021, pág. 64).

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