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Eugénio
de Andrade.
Todas as
casas, a casa.
Coleção Excursos
Eugénio
de Andrade.
Todas as
casas, a casa.
FOTOGRAFIAS TEXTO
Duarte Eucanaã Coleção
Belo Ferraz Excursos
11 Apresentação
Federico Bertolazzi
11
concedido, tornou possível a realização de todas as activi-
dades programadas, assim como a Rui Moreira, Presidente
da Câmara Municipal do Porto, que acolheu favoravel-
mente as propostas que lhe foram dirigidas.
FEDERICO BERTOLAZZI
ROMA, 15 DE DEZEMBRO DE 2023
12
14
Todas as casas, a casa
Quero, nesta casa, que atende pelo nome de Casa, falar so-
bre a casa. E não farei mais do que uma breve e incompleta
antologia comentada.
1
Poesia, p. 11. As citações com a referência Poesia pertencem ao volume Poesia.
Porto: Assírio & Alvim, 2017.
15
Procura de ordem e transparência — reconhecemos de
imediato valores da poesia de Eugénio nos seus gestos coti-
dianos, nos seus rituais domésticos. Flagramos na arruma-
ção da casa, pelas palavras de Tolentino Mendonça, o lado
cristalino do homem e do poeta (distinção que serve apenas
para mostrar o quanto ambos se confundem, guiados pelos
mesmos valores, o que fazia do gestual mais simples a ex-
pressão de uma coerência).
2
Ítalo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990, pp. 84-85.
16
circunstante, dois símbolos morais, dois absolutos, duas cate-
gorias para classificar fatos, ideias, estilos e sentimentos”.3 Se
Eugénio, no trato da casa exibia sua “tendência racionalizan-
te, geometrizante ou algebrizante do espaço”,4 inclinando-se
para o cristal, deixava surpreender em simultâneo a força e a
intensidade da vertigem, ou ainda, a chama que o animava.
3
Seis propostas para o próximo milênio, p. 85.
4
Seis propostas para o próximo milênio, p. 86.
17
E ninguém me abriu a porta para apanhar as estrelas. Nem
mesmo tu, mãe, pois a essas horas andavas a ganhar o pão
para a boca daquele que hoje te oferece estes versos.5
5
Poesia, p. 44.
18
representação, porém, a casa é uma presença, enquanto a
mãe está ausente (ela é ausência). A unidade do que chamei
de signo exibe, portanto, no nível da representação, uma
estranha separação. Mas se a casa, fechada, impede que
o filho encontre a mãe, ou ainda, que a procure lá fora, o
fechamento promove o desejo de projeção para fora, para
além, para a mãe; é a casa cerrada, portanto, que lança o
filho na busca, e esta será, em consequência da imobilidade
forçada, uma procura por meio da voz — “Ó mãe, mãe…”.
A palavra, porém, parece dar ao menino, futuro poeta, uma
dura lição: chamar pela mãe não a faz presente; a palavra
não tem o poder de mover o real na direção do desejo. Há,
no entanto, um segundo ensinamento: o desejo, encarnado
na palavra, pode animar outros mundos.
A casa não é hermética. A linguagem tem suas frestas
— guarda secretas transparências, como um “claro enigma”,
célebre título de Carlos Drummond de Andrade. E é assim
que o filho vê “através das frinchas” as estrelas que caem.
Faz-se uma estranha e mágica transitividade. O corpo sofre:
os olhos choram, o nariz está “esmagado contra a porta” —
igualam-se as dores física e emotiva. Mas é exatamente nesse
quadro que coincidem o cair das lágrimas e o cair das estre-
las em delicada exuberância de cores: “estrelas pequeninas,
estrelas verdes, vermelhas, estrelas de oiro.” A ausência da
mãe traz a necessidade da palavra, é preciso chamar por ela;
a mãe não vem; substituem-na as estrelas numa festa celeste
na qual não falta um sabor infantil. Os astros luminosos e
coloridos caem, como as lágrimas: coincidem a manifesta-
ção do corpo e o fenômeno natural, este que também é, sem
dúvida, uma aparição do maravilhoso.
19
Ao deixar o filho protegido pela casa, a mãe deu ensejo
a uma série de descobertas extraordinárias, e tudo se passa
como um rito iniciático, no qual estão em cena o sacrifício,
a dor, e o consequente prêmio do aprendizado. A ausência
do essencial — a mãe — originou a experiência inaudita
da casa, do corpo, da paisagem, da dor, do júbilo, vivências
tocadas pelo que se poderá chamar deslumbramento, ou
fantástico, ou sublime, ou mágico, ou apenas belo.
A casa, fechada, traz consigo a força subordinadora do
cristal, sua fixidez, seu caráter de ordenamento e de limite
espaciais. Mas as frinchas — entrevistas, alcançadas, con-
quistadas com a procura dolorosa — dão a ver, nas estrelas,
a chama, ou seja, movimento, fluidez, intensidade, erotismo
e efemeridade.
Contrapostas à fixidez do corpo encerrado na casa, as
estrelas caem como que em resposta às lágrimas que tam-
bém caem. O olhar será, desde aí, uma afirmação do cor-
po, bem mais que a expressão de uma racionalidade que
apreendesse as coisas do mundo como matérias ordenadas e
estáticas. Retorno ao texto de José Tolentino, à visão de Eu-
génio “meticuloso, obsessivo com a transparência do espaço,
e do seu espaço” para reafirmar que aquela necessidade vee-
mente de ordem era o cristal que se pronunciava, mas o seu
grau, numa aparente contradição, fazia aparecer a chama; e
volto à imagem do menino para lembrar que seus olhos ver-
tem lágrimas de desalento e, ao mesmo tempo, veem uma
chuva de estrelas coloridas. Ou seja, os olhos enxergam atra-
vés da intensidade; ou ainda, o cristal está inapelavelmente
comprometido com a chama. Inseparáveis, seguirão assim ao
longo da vida e da obra.
20
Sigo com o texto, a fim de atentar na seguinte passagem:
“Pelas trinchas largas da porta via a manhã lá fora. Era uma
manhã de sol quente, talvez de julho, talvez de agosto. Devia
haver medas de palha na eira em frente. Mas os meus olhos
mal viam, estavam rasos de água e de angústia.” De início,
portanto, os olhos não conseguem ver, ou veem mal. São
as lágrimas que impedem a visão. Mas o que não pode ser
visto é, curiosamente, o que está mais visível e próximo, “em
frente”: as “medas de palha”. No passo seguinte, porém, os
mesmos olhos poderão ver mais além: ver as estrelas que
caem em pleno dia. Eles veem o que só se pode ver quando
o cristal está avivado pela chama.
6
Poesia, p. 29.
21
Move-se o poema perplexo e manso por indecisões, ge-
radas pela reversibilidade entre os nomes, as coisas, os seres;
e o sujeito que tudo vive e enuncia, levado por um outro
— por sua palavra e seu toque. Importa-me apontar especifi-
camente para o fechamento, com a extraordinária imagem
da hesitação que traz a possibilidade de o sujeito ser o lugar
que ele mesmo atravessou. O sujeito, portanto, não é apenas
aquele que se move no espaço, mas, sem deixar de o ser, é
também o próprio lugar por onde passa. O deslocamento,
na poesia de Eugénio, é sempre essa movimentação avas-
saladora, que implica o sujeito na paisagem e faz com que
todas as coisas se atravessem e reconstituam, por desloca-
mento, suas singularidades no espaço e no tempo.
22
passagem, que em vez da construção “estava a ganhar o
pão”, Eugénio opta pelo verbo “andar”, o que acentua o
dinamismo do quadro.
7
Poesia, pp. 111-112.
23
O corpo é também o seu reflexo no corpo amado. O
verso inicial traz a violência da natureza para anunciar a
irrupção de uma verdade. Os versos seguintes são peremp-
tórios e a sequência conclui-se com a “casa”. Se o tópico
central do poema é o corpo — a abertura é clara: “é de
um corpo que falo” —, a casa não seria mais do que uma
de suas circunstâncias, ou atributos, mas, bem mais do que
isso, ela é um dos signos que surge como equivalência8 pos-
sível no encadeamento transitivo das coisas que o poema
arregimenta. Estamos diante do que Óscar Lopes nomeou
como “princípio da metamorfose”.9 E, não há dúvida, a
casa estará presente inúmeras vezes no processo que faz
uma coisa transformar-se em outra e em outra, ou estará
mesmo na origem, como se vê em “Metamorfoses da casa”,
de Ostinato rigore:
Ergue-se aérea pedra a pedra
a casa que só tenho no poema.
8
Tomo o conceito de “equivalência” a Eduardo Prado Coelho que o utiliza pela
inconveniência do termo “identidade” em seu Relatório duma leitura da poesia
de Eugénio de Andrade, e do prazer que ela provoca no leitor. In 21 ensaios
sobre Eugénio de Andrade. Porto: Editorial Inova, [s.d.], p. 90.
9
Óscar Lopes, Uma espécie de música (A poesia de Eugénio de Andrade). Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1981, p. 40.
24
Ah, um dia a casa será bosque,
à sua sombra encontrarei a fonte
onde um rumor de água é só silêncio.10
10
Uma espécie de música (A poesia de Eugénio de Andrade), p. 135.
25
A partir de “Metamorfoses da casa”, porém, o mastro será
recorrente como sinal de verticalidade que se funde com a
casa; será um signo privilegiado de expansão e vertigem, con-
vertido em espécie de elemento arquitetural que empresta à
casa a feição de um barco.
Cito Óscar Lopes: “O espaço poético de Eugénio de An-
drade é um espaço cheio e como que sagrado; o seu símbolo
está na casa a casa arquetípica em volta do fogo, com colu-
nas ou aberturas para os deuses de cima; ou, mais do que a
casa, está no barco, espécie de casa móvel, a cuja estabilida-
de, apenas relativa, se comunica a força viva do vento, na
perspectiva de um mar ilimitado.”11 Observo, porém, que
muitas vezes a casa é o elemento que se vai transformar em
barco, e que nem sempre é possível delimitar quando come-
ça uma imagem e termina a outra, exatamente porque não
raro a casa é também barco — e os mastros são o elemento
decisivo para a constituição imagético-arquitetônica desse
símbolo dual. O poema “No extremo do possível”, de Véspe-
ra da água, é eloquente quanto a isso:
A casa
privada de mastros
facilmente é
exígua e rasa.
Azul estridência
do silêncio
o céu
consome-se na pedra
O cume é a água.12
11
Uma espécie de música (A poesia de Eugénio de Andrade), p. 32.
12
Uma espécie de música (A poesia de Eugénio de Andrade), p. 204.
26
A imagem da casa “privada de mastros” pressupõe uma
casa com mastros. É ela mesma, a casa, portanto, que tem,
digamos, a qualidade do barco. Estamos, sim, diante do que
Óscar Lopes chamou de “casa móvel”, mas não se trata de
um barco, já que os mastros pertencem à casa. Sem eles, a
casa tornar-se-ia “exígua e rasa”, ou seja, estaria resumida a
ser apenas o edifício, preso ao chão, geométrica e espacial-
mente delimitado, ou, se quisermos, cristal sem chama. Os
mastros, sinal de verticalidade, como já observei, projetam
para o alto e lançam pelo vento o barco e a casa, o olhar
e o corpo, a palavra e o poema, atuam na escrita metoni-
micamente para constituir a imagem casa-barco. Mas se os
mastros emprestam à casa a fluidez da navegação, impõem
um dinamismo tão intenso que a casa-barco e o barco, ele
mesmo, não podem resistir. Para voltar a Óscar Lopes, a co-
municação com “a força viva do vento” ganha a “perspec-
tiva de um mar ilimitado”. Retorno então a “Metamorfoses
da casa” para ver uma projeção que vai além da “delícia sú-
bita de ser mastro”, quando, na mesma marinha, aspira-se a
uma liberdade que vai além do barco: “Uma gaivota passa e
outra e outra, / a casa não resiste: também voa.”
13
Uma espécie de música (A poesia de Eugénio de Andrade), p. 173.
27
construção rudimentar. No segundo poema, o verbo “re-
gressar” sugere uma memória mais pessoal, de gosto auto-
biográfico, o que nos lança outra vez para o texto onde o
menino chama pela mãe na casa fechada. Há que se notar
agora o quanto a inclinação para a dispersão na paisagem,
a fluidez, a liquidez das águas e a agitação livre do vento
encontram, em contrapartida, o desejo pela terra e o amor
pelas coisas terrenas, mas, no mundo de Eugénio, estas pos-
suem uma vibração de chama que impede a configuração
plena do cristal. Assim, toda a primeira estrofe de “Disso-
nâncias” nos diz:
Pedra a pedra
a casa vai regressar.
Já nos ombros sinto o ardor
da sua navegação.14
14
Uma espécie de música (A poesia de Eugénio de Andrade), p. 173.
15
Uma espécie de música (A poesia de Eugénio de Andrade), p. 174.
28
O retorno à casa — casa da infância, ou seja, o próprio
tempo da infância — é, por fim, impossível. O sujeito flagra
tal impossibilidade em si mesmo, vendo-se “nos espelhos”.
O outono, alojado no corpo, é o tempo presente que dis-
solve a ilusão de regresso; e com ele o que era movimento,
liberdade, expansão, erotismo, parece constrangido pelos li-
mites do labirinto, imagem exemplar dos valores associados
por Ítalo Calvino ao cristal. Vemos aí que a inclinação pelo
cristalino no âmbito de uma poesia solar e apaixonada, de-
sassombradamente sensual, não se instala como dimensão
unívoca numa espécie de felicidade, de plenitude satisfeita
com os rigores da disciplina, do cuidado minucioso e da
transparência medida. A poesia de Eugénio vive da tensão
que faz impossível acomodar separadamente o que é cristal
e o que é chama. A inequívoca serenidade dos versos é a face
cristalina de um universo que arde apaixonadamente. Reco-
lho a seguinte declaração em uma entrevista: “Atraem-me
os valores da claridade, mas a ambiguidade é intrínseca à
própria poesia, sobretudo quando ela é tão metafórica com
a minha.”16 Em outro momento, Eugénio fala de “um rigor
que não sufoca o instinto” e cita uma definição de sua poesia
por Marguerite Yourcenar: “limpidez no ardor”.17
16
Prosa, p. 201. As referências Prosa pertencem ao volume Prosa. Porto: Assírio &
Alvim, 2022.
17
Prosa, p. 204.
29
entre versos, entre livros, num rearranjo que refaz o lugar
de seus signos na cadeia infinita de combinações. E assim,
por exemplo, a “pedra” aparece na parte I de “Branco no
branco” (poema e livro) na forma de um comando: “Não di-
gas pedra, diz janela.”18 O verso vem na sequência do poema,
que se abre desse modo: “Faz uma chave, mesmo pequena,
/ entra na casa.”19 Portanto, a pedra que se desejara em ou-
tros poemas ressurge para ser recusada. O que se quer então
é a chama. Cito outros versos: “Invoca o fogo, a claridade, a
música / dos flancos.” Cristal e chama exibem-se nessa hora,
portanto, como valores inconciliáveis.
18
Poesia, p. 373.
19
Poesia, p. 373.
30
a terra imóvel / com a brusca paixão dos mastros.” Os versos
são tão eloquentes quanto precisos como proposição de um
acordo. Ainda assim, faço a sua paráfrase: a imobilidade da
terra (o cristal) e o livre ardor dos mastros (a chama) podem-se
manifestar em aliança, conciliados, com a intermediação da
luz, veemente. Eis a lição vislumbrada na arquitetura açoria-
na. Talvez estranhe, à primeira vista, que caiba à “veemência
da luz” conciliar aqueles polos opostos, pois, afinal, ela parece
participar do paradigma da chama. Como ela poderia pôr os
contrários em harmonia se está comprometida com um de-
les? A suspeição exige que se veja mais de perto.
20
Poesia, p. 526.
31
Tais versos de abertura serão reconfigurados ao final do poe-
ma: “o lugar do sol / era a casa — e ardia.”21 No início,
portanto, o coração é a casa, que é o lugar do sol; no fecho,
o coração é (nome e verbo suprimidos, mas subentendidos)
o lugar do sol e o lugar do sol é a casa. Tais mudanças não
geram alteração de sentido, mas efeitos de movimentação
(graças aos deslocamentos sintáticos dos elementos) e de
concentração (graças à supressão de elementos). De tal ope-
ração resulta uma espécie de irradiação intensa, como se os
sentidos se espalhassem musicalmente, livres, culminando
numa imagem-verbo que tudo reagrupa para, mais uma
vez, iluminar: “e ardia”. A fusão corpo-(coração)-casa-luz
é perfeita. Carlos Mendes de Sousa bem observa que “luz e
corpo configuram um lugar harmonizador, a um nível onto-
lógico”.22 Na afirmação, curiosamente, o uso da expressão
“lugar” parece trazer implícito um terceiro termo: casa.
21
Poesia, p. 527.
22
Carlos Mendes de Sousa, O nascimento da música – a metáfora em Eugénio de
Andrade. Coimbra: Almedina, 1992, p. 111.
23
Poesia, p. 297.
32
“Vidro”, no poema, não é o material (vidro), mas um
modo de nomear uma qualidade específica: a transparên-
cia. Com ela, outras qualidades, que migram da visibilidade
para uma abertura total, uma perfeita integração da nature-
za. Eugénio já usara a palavra “vidro” anteriormente, com
sentido análogo, em “Labirinto ou alguns lugares de amor”,
de Véspera da água, na seguinte estrofe:
a nudez do vidro
a luz
o prumo dos mastros24
24
Poesia, p. 199.
25
Adiante, Eugénio usará a mesma palavra na imagem “um mar de vidro” em “Sul”,
de Os lugares do lume.
33
A culminância de um tal investimento numa poética
da chama seria a própria consumição da matéria. Eugénio
levará a imagem da casa a tal patamar em “O lugar da
casa”, de O sal da língua:
Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso (...) 26
26
Poesia, p. 542.
34
Por esse rapazito serias capaz de correr o mundo à pé-
coxinho, se ele to pedisse, ou entrar pelo buraco da
fechadura só para o veres dormir.27
27
Poesia, p. 421.
28
Carlos Mendes de Sousa, Um lugar onde o lume foi aceso. Prefácio de O sal da
língua. Porto: Assírio & Alvim, 2018, p. 12.
35
Um dos modos de a casa se fazer nos poemas é a
aproximação à arquitetura. A criação e organização dos
espaços, os princípios, normas e materiais, mas também
a relação com a natureza, aproximam-se materialmente
de certas qualidades essenciais da escrita, como visto
em “Arquitectura açoriana”. É revelador que Homenagens
e outros epitáfios apresente este poema numa sequência de
três, que formam uma unidade, ou ainda, um conjunto
singular em meio às homenagens: “Relação de casas boas
e más para juízo dos arquitectos Carlos Loureiro e Pádua
Ramos”, “Casa de Álvaro Siza na Boa Nova” e o próprio
“Arquitectura açoriana”.
36
abstração, que se quer dar forma. E se a realização estará —
talvez? Inexoravelmente? — aquém do plano, permanecerá
a casa desejada “na cabeça” de quem a desejou, viverá
suspensa em sua perfeição de objeto inapreensível. A
homenagem, portanto, traz a arquitetura ao seu sentido
primeiro e último, a habitação, e aponta para seu caráter
utópico: projeção de algo irrealizável.
29
Fallingwater foi projetada por Frank Lloyd Wright entre os anos de 1936 e 1939.
37
experiência sensorial que não se dá visualmente, mas por
meio do som que se propaga por toda a casa. A ligação com
a natureza acontece, portanto, numa espécie de apreensão
musical. Ou, nas palavras do poema, “ao sortilégio da água
/ se junta a música de Bach”.
Ao longo das imagens reconhecemos vários tópos eu-
genianos — “um verso de Cesário”, o “jasmim”, “pátios
caiados”, “o mar”, “um gato”, “o coração”, “o amor”, as
“abelhas”, o “rumor”, “o silêncio”, “um barco”, “os diós-
piros”, a “vinha”, o “trigo” e outros —, mas deparamos
sobretudo com versos nos quais é decisivo o pendor para a
escala humana, a exatidão, a harmonia, a síntese, o vigor;
o cristal e a chama: “Há casas como um cristal, / casas de
luz circular.” Em “Casa de Álvaro Siza na Boa Nova”, há
uma espécie de recorte exemplar: eis “a casa boa”. Há um
prolongamento tão perfeito da escrita de Eugénio na sua
apreensão poética da arquitetura de Siza, que o poema
poderia ter por título apenas “A casa”.
A musical ordem do espaço,
a manifesta verdade da pedra,
a concreta beleza
do chão subindo os últimos degraus,
a luminosa contenção da cal,
o muro compacto
e certo
contra toda a ostentação,
e refreada
e contínua e serena linha
abraçando o ritmo do ar,
a branca arquitetura
38
e nua
até aos ossos.
Por onde entrava o mar.30
30
Poesia, p. 278.
39
A chuva, outra vez a chuva sobre as oliveiras.
Não sei por que voltou esta tarde
se minha mãe já se foi embora,
já não vem à varanda para a ver cair,
já não levanta os olhos da costura
para perguntar: Ouves?
Ouço, mãe, é outra vez a chuva,
a chuva sobre o teu rosto.31
31
Poesia, p. 239.
40
É o incoerente retorno da chuva, no entanto, que faz a
voz da mãe desprender-se do passado, dirigindo-se ao filho
que lhe responde hoje, dentro do presente. A resposta é,
em primeiro lugar, uma confirmação — “Ouves? / Ouço,
mãe” — com o que se mantém a harmonia sem fissuras e se
adense a atmosfera de gravidade religiosa; a resposta realiza
a perfeita aliança dos tempos e reafirma um laço afetivo
que se mantém para além dos tempos; logo sobrevém o
retorno do primeiro verso — “outra vez a chuva” —, o que
traz para a estrutura do poema a circularidade de um pleno
retorno; o verso final retoma o primeiro num paralelismo de
grande beleza: “a chuva sobre as oliveiras” refaz-se em “a
chuva sobre teu rosto”. A simples substituição de um termo
por outro parece, à primeira vista, criar uma mudança de
espaço — do exterior para o interior: lá fora, as oliveiras;
dentro da casa, a mãe (o seu rosto). Mas como choveria
dentro da casa? Ou a mãe está fora da casa? Se a mãe não
está dentro nem fora, porque está na memória, como pode
a chuva de hoje molhar o seu rosto? As indeterminações
criam mais que desafios para uma leitura que se guiasse por
uma lógica exterior ao poema — elas impedem que uma
tal leitura se faça.
41
mundo — a chuva — ou pelas palavras? Mundo e palavras
tornaram-se um mesmo destino. Tudo é casa e é poema. As
estrelas que caíam parecem retornar na chuva, que ao cair
sobre o rosto da mãe parece repetir as lágrimas que caíam
sobre o rosto do filho — “outra vez”. O paralelismo entre
o título e o verso final é revelador: a “casa na chuva” / a
“chuva sobre o teu rosto”: a casa é a mãe.
EUCANAÃ FERRAZ
RIO DE JANEIRO, OUTUBRO, 2023
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