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1

2
3
Eugénio
de Andrade.
Todas as
casas, a casa.

Coleção Excursos
Eugénio
de Andrade.
Todas as
casas, a casa.

FOTOGRAFIAS TEXTO
Duarte Eucanaã Coleção
Belo Ferraz Excursos
11 Apresentação
Federico Bertolazzi

15 Todas as casas, a casa


Eucanaã Ferraz
10
Apresentação

No âmbito das Comemorações do Centenário do nascimento


de Eugénio de Andrade, a comissão organizadora dirigiu a
Eucanaã Ferraz um convite para proferir uma conferência
na Casa dos Livros, instituição da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto que recebeu uma parte do espólio
do poeta e que, em colaboração com a Biblioteca Municipal
do Porto, disponibiliza as digitalizações de documentos
e de registos fotográficos das obras de arte que também
compõem esse espólio.

Para que o texto da conferência pudesse ter a me-


recida divulgação, decidiu-se publicá-lo numa edição
promovida pelo Centro de Investigação Transdisciplinar
Cultura, Espaço e Memória (CITCEM), sediado naquela
mesma Faculdade, e pela Casa dos Livros, a cujos coorde-
nadores, Inês Amorim e Mário Barroca, respectivamente,
aqui agradeço.

Um agradecimento é necessário, também, a Pedro


Adão e Silva, Ministro da Cultura, que acolheu com entu-
siasmo o projecto das comemorações e que, com o apoio

11
concedido, tornou possível a realização de todas as activi-
dades programadas, assim como a Rui Moreira, Presidente
da Câmara Municipal do Porto, que acolheu favoravel-
mente as propostas que lhe foram dirigidas.

Porque a poesia de Eugénio de Andrade, e as figuras de


linguagem que o poeta elabora, têm uma concreta base na
realidade das coisas, propus a Eucanaã Ferraz que o seu texto
fosse acompanhado pelas fotografias de um dos grandes
intérpretes contemporâneos da paisagem, da paisagem em
geral, e da paisagem portuguesa, em particular. Falo de
Duarte Belo, fotógrafo (e arquitecto) que minuciosamente
percorreu o país, chegando a conhecê-lo como poucos, e
que mantém uma relação especial com outros intérpretes
da paisagem, como mostrou em relação a Orlando Ribeiro
e Sophia de Mello Breyner Andresen.

Agradeço aqui aos autores do texto e das fotografias


por terem aceitado o convite para este encontro, no qual a
poesia de Eugénio de Andrade sai enriquecida pelo olhar
dos dois.

FEDERICO BERTOLAZZI
ROMA, 15 DE DEZEMBRO DE 2023

12
14
Todas as casas, a casa

É preciso arder. E não só nos versos.


E.A., PROSA, P. 196.

Pertenço a uma raça que terá sempre a fascinação da chama.


E.A., PROSA, P. 197.

Quero, nesta casa, que atende pelo nome de Casa, falar so-
bre a casa. E não farei mais do que uma breve e incompleta
antologia comentada.

Era bom começar assim: por adentrarmos em uma das


moradas de Eugénio. E vê-lo ali. Para tanto, tomo os olhos
de outro poeta, José Tolentino Mendonça, que escreve em
prefácio ao volume que reúne a poesia daquele que este ano
completaria cem anos de idade:
[Eugénio] era arrumado, meticuloso, obsessivo com a
transparência do espaço, e do seu espaço. Algumas vezes
acompanhei-o até casa e assombrava-me a urgência
com que arrumava o que quer que trouxesse da rua
(fosse uma maçã, um livro, uma pedra), escolhendo um
lugar que se tornava indiscutível. Eugénio conseguia ser
vertiginosamente preciso até a lavar as mãos.1

1
Poesia, p. 11. As citações com a referência Poesia pertencem ao volume Poesia.
Porto: Assírio & Alvim, 2017.

15
Procura de ordem e transparência — reconhecemos de
imediato valores da poesia de Eugénio nos seus gestos coti-
dianos, nos seus rituais domésticos. Flagramos na arruma-
ção da casa, pelas palavras de Tolentino Mendonça, o lado
cristalino do homem e do poeta (distinção que serve apenas
para mostrar o quanto ambos se confundem, guiados pelos
mesmos valores, o que fazia do gestual mais simples a ex-
pressão de uma coerência).

Mas o retrato estaria incompleto se Tolentino não acres-


centasse à ordenação das coisas da casa a avaliação de um
gesto — “lavar as mãos” — como coreografia que se dava a
ver como a realização flagrante, em ato, de uma individua-
lidade que se exprimia na busca da precisão de um modo
exemplar: “vertiginosamente”. A vertigem, portanto, está
na própria precisão: é sua intensidade.

Tendo usado o termo “cristalino” como sinônimo do ad-


jetivo empregado por Tolentino — “transparente” —, recor-
ro a Ítalo Calvino, que em suas célebres Seis propostas para o pró-
ximo milênio lança mão de duas imagens simples e reveladoras:
“de um lado o cristal (imagem da invariância e de regularidade
das estruturas específicas), e de outro a chama (imagem da
constância de uma forma global exterior, apesar da incessante
agitação interna)”.2 Mas logo Calvino aponta a “justaposição
dessas duas figuras”, pois cristal e chama são “duas formas da
beleza perfeita da qual o olhar não consegue desprender-se,
duas maneiras de crescer no tempo, de desprender a matéria

2
Ítalo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990, pp. 84-85.

16
circunstante, dois símbolos morais, dois absolutos, duas cate-
gorias para classificar fatos, ideias, estilos e sentimentos”.3 Se
Eugénio, no trato da casa exibia sua “tendência racionalizan-
te, geometrizante ou algebrizante do espaço”,4 inclinando-se
para o cristal, deixava surpreender em simultâneo a força e a
intensidade da vertigem, ou ainda, a chama que o animava.

Creio que as imagens cristal e chama servem para pensar


a escrita de Eugénio, e que é sobremodo revelador que a
tensão entre elas se revele no ambiente da casa — porque
esta será um signo privilegiado nos poemas.

Afirmarei agora que o texto fundador do que se vai de-


senvolver nesses termos ao longo da obra é a célebre prosa de
abertura de Os amantes sem dinheiro. Leio o trecho que o conclui:
Certa manhã acordei sozinho em casa. Acordei a chorar.
— Ó mãe, mãe… — Mas a mãe não vinha. Não havia
mãe. Havia só a porta fechada. — Ó mãe, mãe… E a
casa deserta. Pelas trinchas largas da porta via a manhã lá
fora. Era uma manhã de sol quente, talvez de julho, talvez
de agosto. Devia haver medas de palha na eira em frente.
Mas os meus olhos mal viam, estavam rasos de água e de
angústia. — Ó mãe, mãe… – E de repente, na manhã
clara, começaram a cair estrelas pequeninas, estrelas
verdes, vermelhas, estrelas de oiro. As lágrimas caíam-me
pela cara. — Ó mãe, mãe… O nariz esmagado contra a
porta, os olhos muito abertos, vendo através das frinchas
as estrelas caindo umas atrás das outras. — Ó mãe, mãe…

3
Seis propostas para o próximo milênio, p. 85.
4
Seis propostas para o próximo milênio, p. 86.

17
E ninguém me abriu a porta para apanhar as estrelas. Nem
mesmo tu, mãe, pois a essas horas andavas a ganhar o pão
para a boca daquele que hoje te oferece estes versos.5

Chamo-lhe texto fundador movido por alguns fatores:


primeiro, porque se inicia de modo inequivocamente auto-
biográfico e porque espalhará tal qualidade no âmbito mais
propriamente imaginativo e fantasioso; pelo seu modo nar-
rativo, que dá conta de algo que tem de ser contado, narra-
do, e, por ser ainda, cabe observar, o primeiro poema em
prosa publicado por Eugénio; porque funciona também à
maneira de um prefácio, não por algum intuito crítico ou
teórico (o texto sequer trata do livro que antecede), mas pelo
que tem de guia, como se o que se conta ali devesse ecoar
na fruição do que se segue — e, em minha leitura, o que se
segue é não só aquele livro — Os amantes sem dinheiro —, mas
toda a obra de Eugénio; por fim, observo que a “mãe” até
então aparecera apenas uma vez, naquela breve canção de
um livro renegado, que apenas muito tempo depois passou
a abrir os volumes de poesia reunida; e, assim, é a primeira
vez que a “mãe” ganha relevância como personagem, dota-
da de valor biográfico, associada à poesia e, para os termos
que me interessam aqui, unida à casa.

O texto guarda um centro, do qual a memória se


irradia e em torno do qual tudo gravita. A casa? Sim. A
mãe? Sim. Ambas têm o mesmo valor, princípio de tudo,
de onde tudo irrompe e para onde tudo retorna e, desde
aí, fundidas como um signo complexo, dual. No plano da

5
Poesia, p. 44.

18
representação, porém, a casa é uma presença, enquanto a
mãe está ausente (ela é ausência). A unidade do que chamei
de signo exibe, portanto, no nível da representação, uma
estranha separação. Mas se a casa, fechada, impede que
o filho encontre a mãe, ou ainda, que a procure lá fora, o
fechamento promove o desejo de projeção para fora, para
além, para a mãe; é a casa cerrada, portanto, que lança o
filho na busca, e esta será, em consequência da imobilidade
forçada, uma procura por meio da voz — “Ó mãe, mãe…”.
A palavra, porém, parece dar ao menino, futuro poeta, uma
dura lição: chamar pela mãe não a faz presente; a palavra
não tem o poder de mover o real na direção do desejo. Há,
no entanto, um segundo ensinamento: o desejo, encarnado
na palavra, pode animar outros mundos.
A casa não é hermética. A linguagem tem suas frestas
— guarda secretas transparências, como um “claro enigma”,
célebre título de Carlos Drummond de Andrade. E é assim
que o filho vê “através das frinchas” as estrelas que caem.
Faz-se uma estranha e mágica transitividade. O corpo sofre:
os olhos choram, o nariz está “esmagado contra a porta” —
igualam-se as dores física e emotiva. Mas é exatamente nesse
quadro que coincidem o cair das lágrimas e o cair das estre-
las em delicada exuberância de cores: “estrelas pequeninas,
estrelas verdes, vermelhas, estrelas de oiro.” A ausência da
mãe traz a necessidade da palavra, é preciso chamar por ela;
a mãe não vem; substituem-na as estrelas numa festa celeste
na qual não falta um sabor infantil. Os astros luminosos e
coloridos caem, como as lágrimas: coincidem a manifesta-
ção do corpo e o fenômeno natural, este que também é, sem
dúvida, uma aparição do maravilhoso.

19
Ao deixar o filho protegido pela casa, a mãe deu ensejo
a uma série de descobertas extraordinárias, e tudo se passa
como um rito iniciático, no qual estão em cena o sacrifício,
a dor, e o consequente prêmio do aprendizado. A ausência
do essencial — a mãe — originou a experiência inaudita
da casa, do corpo, da paisagem, da dor, do júbilo, vivências
tocadas pelo que se poderá chamar deslumbramento, ou
fantástico, ou sublime, ou mágico, ou apenas belo.
A casa, fechada, traz consigo a força subordinadora do
cristal, sua fixidez, seu caráter de ordenamento e de limite
espaciais. Mas as frinchas — entrevistas, alcançadas, con-
quistadas com a procura dolorosa — dão a ver, nas estrelas,
a chama, ou seja, movimento, fluidez, intensidade, erotismo
e efemeridade.
Contrapostas à fixidez do corpo encerrado na casa, as
estrelas caem como que em resposta às lágrimas que tam-
bém caem. O olhar será, desde aí, uma afirmação do cor-
po, bem mais que a expressão de uma racionalidade que
apreendesse as coisas do mundo como matérias ordenadas e
estáticas. Retorno ao texto de José Tolentino, à visão de Eu-
génio “meticuloso, obsessivo com a transparência do espaço,
e do seu espaço” para reafirmar que aquela necessidade vee-
mente de ordem era o cristal que se pronunciava, mas o seu
grau, numa aparente contradição, fazia aparecer a chama; e
volto à imagem do menino para lembrar que seus olhos ver-
tem lágrimas de desalento e, ao mesmo tempo, veem uma
chuva de estrelas coloridas. Ou seja, os olhos enxergam atra-
vés da intensidade; ou ainda, o cristal está inapelavelmente
comprometido com a chama. Inseparáveis, seguirão assim ao
longo da vida e da obra.

20
Sigo com o texto, a fim de atentar na seguinte passagem:
“Pelas trinchas largas da porta via a manhã lá fora. Era uma
manhã de sol quente, talvez de julho, talvez de agosto. Devia
haver medas de palha na eira em frente. Mas os meus olhos
mal viam, estavam rasos de água e de angústia.” De início,
portanto, os olhos não conseguem ver, ou veem mal. São
as lágrimas que impedem a visão. Mas o que não pode ser
visto é, curiosamente, o que está mais visível e próximo, “em
frente”: as “medas de palha”. No passo seguinte, porém, os
mesmos olhos poderão ver mais além: ver as estrelas que
caem em pleno dia. Eles veem o que só se pode ver quando
o cristal está avivado pela chama.

As imagens implicam deslocamento e verticalidade — dois


princípios inseparáveis e definidores da poética de Eugé-
nio de Andrade. E a casa será sempre distinguida por eles.
O deslocamento não se limitará nunca a descrever um efeito
físico, não obedecerá à lógica espaciotemporal nem a leis
exteriores ao poema. Seriam sem-número os exemplos, mas
permanecerei no percurso da poesia de Eugénio até chegar
aqui, a Os amantes sem dinheiro, e volto a um breve e conhecido
poema, As mãos e os frutos:
Tenho o nome de uma flor
quando me chamas.
Quando me tocas,
nem eu sei
se sou água, rapariga,
ou algum pomar que atravessei.6

6
Poesia, p. 29.

21
Move-se o poema perplexo e manso por indecisões, ge-
radas pela reversibilidade entre os nomes, as coisas, os seres;
e o sujeito que tudo vive e enuncia, levado por um outro
— por sua palavra e seu toque. Importa-me apontar especifi-
camente para o fechamento, com a extraordinária imagem
da hesitação que traz a possibilidade de o sujeito ser o lugar
que ele mesmo atravessou. O sujeito, portanto, não é apenas
aquele que se move no espaço, mas, sem deixar de o ser, é
também o próprio lugar por onde passa. O deslocamento,
na poesia de Eugénio, é sempre essa movimentação avas-
saladora, que implica o sujeito na paisagem e faz com que
todas as coisas se atravessem e reconstituam, por desloca-
mento, suas singularidades no espaço e no tempo.

O deslocamento implicará, não raro, a verticalidade.


Retorno ao primeiro texto: as estrelas em queda reverberam,
sem nomeação, o céu e a sua capacidade de instalar em nós,
mais do que qualquer outra coisa à nossa volta, a vaga mas
decisiva sensação de uma totalidade inconsútil, impalpável,
elevada, a um só tempo acima de nós e a nos envolver. Na
paisagem à nossa roda, a presença de qualquer elemento
vertical é sempre uma projeção para o céu. No texto de Eu-
génio, a queda das estrelas remete à presença à presença de-
las no céu, com o que se cria, na apreensão global do texto,
uma espécie de vetor cuja verticalidade orienta-nos para o
alto e, logo a seguir, para baixo.

Também ela, a mãe, deslocou-se: saíra da casa; estava


em movimento: “andava[s] a ganhar o pão para a boca”
de seu filho. A sobrevivência exigira a locomoção, o que
acarretou a ausência e todos os seus efeitos. Cabe notar, de

22
passagem, que em vez da construção “estava a ganhar o
pão”, Eugénio opta pelo verbo “andar”, o que acentua o
dinamismo do quadro.

A casa reaparecerá no poema “Outro madrigal”, de Mar


de setembro:
A mão
que levei à boca
interminavelmente fresca
é outra vez a casa
onde a palavra
acaba de nascer
e o verão.7

Agora é o corpo que se confunde com a casa; e com a es-


crita, concebida como fala, posto que a mão é levada à “boca”.
Essa espécie de cena originária — “a palavra acaba de nascer”
— ecoa o drama do filho a chamar pela mãe, que andava a
ganhar o pão para a “boca” daquele que, mais tarde, já no
domínio da escrita, oferecer-lhe-á “versos”. Como se ganhas-
se uma extrema liberdade, o sujeito já não vive a casa como
algo externo a ele — o corpo agora é a casa, verdade que será
explicitada logo a seguir, no mesmo livro, em “Espelho”:
Que rompam as águas:
é de um corpo que falo.
Nunca tive outra pátria,
nem outro espelho;
nunca tive outra casa.

7
Poesia, pp. 111-112.

23
O corpo é também o seu reflexo no corpo amado. O
verso inicial traz a violência da natureza para anunciar a
irrupção de uma verdade. Os versos seguintes são peremp-
tórios e a sequência conclui-se com a “casa”. Se o tópico
central do poema é o corpo — a abertura é clara: “é de
um corpo que falo” —, a casa não seria mais do que uma
de suas circunstâncias, ou atributos, mas, bem mais do que
isso, ela é um dos signos que surge como equivalência8 pos-
sível no encadeamento transitivo das coisas que o poema
arregimenta. Estamos diante do que Óscar Lopes nomeou
como “princípio da metamorfose”.9 E, não há dúvida, a
casa estará presente inúmeras vezes no processo que faz
uma coisa transformar-se em outra e em outra, ou estará
mesmo na origem, como se vê em “Metamorfoses da casa”,
de Ostinato rigore:
Ergue-se aérea pedra a pedra
a casa que só tenho no poema.

A casa dorme, sonha no vento


a delícia súbita de ser mastro.

Como estremece um torso delicado,


assim a casa, assim um barco.

Uma gaivota passa e outra e outra,


a casa não resiste: também voa.

8
Tomo o conceito de “equivalência” a Eduardo Prado Coelho que o utiliza pela
inconveniência do termo “identidade” em seu Relatório duma leitura da poesia
de Eugénio de Andrade, e do prazer que ela provoca no leitor. In 21 ensaios
sobre Eugénio de Andrade. Porto: Editorial Inova, [s.d.], p. 90.
9
Óscar Lopes, Uma espécie de música (A poesia de Eugénio de Andrade). Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1981, p. 40.

24
Ah, um dia a casa será bosque,
à sua sombra encontrarei a fonte
onde um rumor de água é só silêncio.10

A casa, que podia ser o próprio corpo e o corpo do outro,


pode ser também a própria casa, numa conexão com a terra
reduzida à sua matéria primeira, a pedra, também material
de uma construção civil elementar que ecoa na escrita: “a
casa que só tenho no poema.” Mas a casa logo será trans-
formada em mastro, em torso, em gaivota, em barco, rea-
lidades do mundo em movimento, imagens que se transfi-
guram em ritmo ininterrupto, arrebatador, ascensional e de
arremesso no espaço, até que a casa retorne à terra, trans-
mutada, todavia, em bosque, espaço aberto, amplo, sem, no
entanto, as dimensões do céu ou do mar, mas apenas lugar
onde é possível pousar, como numa chegada apaziguadora
a um sítio anterior à própria casa. Ser bosque — ascender
à condição de espaço aberto, ou de paisagem — é o destino
da casa, o que ela um dia “será” — futuro previsto, desejado,
devir, culminância do processo de metamorfose.

Detenho-me na imagem do “mastro”, que até então apare-


cera uma única vez, no plural, em “Não é verdade”, de As pala-
vras interditas, e desde ali como elemento associado às “casas”. É
deste poema que cito: “os mastros e as casas escorrem sombra.”
Apesar da contiguidade e de se assemelharem, já que ambos
“escorrem sombra”, “mastros” e “casas” aparecem como ele-
mentos separados entre si, ou seja, aproximam-se, mas não se
confundem. Noutros termos, não há comutação entre eles.

10
Uma espécie de música (A poesia de Eugénio de Andrade), p. 135.

25
A partir de “Metamorfoses da casa”, porém, o mastro será
recorrente como sinal de verticalidade que se funde com a
casa; será um signo privilegiado de expansão e vertigem, con-
vertido em espécie de elemento arquitetural que empresta à
casa a feição de um barco.
Cito Óscar Lopes: “O espaço poético de Eugénio de An-
drade é um espaço cheio e como que sagrado; o seu símbolo
está na casa a casa arquetípica em volta do fogo, com colu-
nas ou aberturas para os deuses de cima; ou, mais do que a
casa, está no barco, espécie de casa móvel, a cuja estabilida-
de, apenas relativa, se comunica a força viva do vento, na
perspectiva de um mar ilimitado.”11 Observo, porém, que
muitas vezes a casa é o elemento que se vai transformar em
barco, e que nem sempre é possível delimitar quando come-
ça uma imagem e termina a outra, exatamente porque não
raro a casa é também barco — e os mastros são o elemento
decisivo para a constituição imagético-arquitetônica desse
símbolo dual. O poema “No extremo do possível”, de Véspe-
ra da água, é eloquente quanto a isso:
A casa
privada de mastros
facilmente é
exígua e rasa.

Azul estridência
do silêncio
o céu
consome-se na pedra
O cume é a água.12

11
Uma espécie de música (A poesia de Eugénio de Andrade), p. 32.
12
Uma espécie de música (A poesia de Eugénio de Andrade), p. 204.
26
A imagem da casa “privada de mastros” pressupõe uma
casa com mastros. É ela mesma, a casa, portanto, que tem,
digamos, a qualidade do barco. Estamos, sim, diante do que
Óscar Lopes chamou de “casa móvel”, mas não se trata de
um barco, já que os mastros pertencem à casa. Sem eles, a
casa tornar-se-ia “exígua e rasa”, ou seja, estaria resumida a
ser apenas o edifício, preso ao chão, geométrica e espacial-
mente delimitado, ou, se quisermos, cristal sem chama. Os
mastros, sinal de verticalidade, como já observei, projetam
para o alto e lançam pelo vento o barco e a casa, o olhar
e o corpo, a palavra e o poema, atuam na escrita metoni-
micamente para constituir a imagem casa-barco. Mas se os
mastros emprestam à casa a fluidez da navegação, impõem
um dinamismo tão intenso que a casa-barco e o barco, ele
mesmo, não podem resistir. Para voltar a Óscar Lopes, a co-
municação com “a força viva do vento” ganha a “perspec-
tiva de um mar ilimitado”. Retorno então a “Metamorfoses
da casa” para ver uma projeção que vai além da “delícia sú-
bita de ser mastro”, quando, na mesma marinha, aspira-se a
uma liberdade que vai além do barco: “Uma gaivota passa e
outra e outra, / a casa não resiste: também voa.”

Os dois versos que abrem “Metamorfoses da casa” —


“Ergue-se aérea pedra a pedra / a casa que só tenho no
poema.” — ecoarão logo adiante em “Dissonâncias”, de
Obscuro domínio, que se inicia desse modo: “Pedra a pedra / a
casa vai regressar.”13 Quanto ao primeiro poema, observei
que as pedras fundam uma conexão com a terra, com sua
materialidade, sendo também a memória de um modo de

13
Uma espécie de música (A poesia de Eugénio de Andrade), p. 173.

27
construção rudimentar. No segundo poema, o verbo “re-
gressar” sugere uma memória mais pessoal, de gosto auto-
biográfico, o que nos lança outra vez para o texto onde o
menino chama pela mãe na casa fechada. Há que se notar
agora o quanto a inclinação para a dispersão na paisagem,
a fluidez, a liquidez das águas e a agitação livre do vento
encontram, em contrapartida, o desejo pela terra e o amor
pelas coisas terrenas, mas, no mundo de Eugénio, estas pos-
suem uma vibração de chama que impede a configuração
plena do cristal. Assim, toda a primeira estrofe de “Disso-
nâncias” nos diz:
Pedra a pedra
a casa vai regressar.
Já nos ombros sinto o ardor
da sua navegação.14

A casa regressada traz com ela não a experiência da imo-


bilidade no espaço ou no tempo, mas outra vez a fusão casa-
-barco na imagem da “navegação”, que associada a “ardor”,
tem reforçado o que nela é energia, paixão, enfim, a intensi-
dade da chama, ou do contato com ela. Portanto, água e fogo
reúnem-se na mesma imagem para figurar a casa que re-
gressa. O poema, no entanto, conclui-se do seguinte modo:
O outono amadurece nos espelhos.
Já nos meus ombros sinto
a sua respiração.
Não há regresso: tudo é labirinto.15

14
Uma espécie de música (A poesia de Eugénio de Andrade), p. 173.
15
Uma espécie de música (A poesia de Eugénio de Andrade), p. 174.

28
O retorno à casa — casa da infância, ou seja, o próprio
tempo da infância — é, por fim, impossível. O sujeito flagra
tal impossibilidade em si mesmo, vendo-se “nos espelhos”.
O outono, alojado no corpo, é o tempo presente que dis-
solve a ilusão de regresso; e com ele o que era movimento,
liberdade, expansão, erotismo, parece constrangido pelos li-
mites do labirinto, imagem exemplar dos valores associados
por Ítalo Calvino ao cristal. Vemos aí que a inclinação pelo
cristalino no âmbito de uma poesia solar e apaixonada, de-
sassombradamente sensual, não se instala como dimensão
unívoca numa espécie de felicidade, de plenitude satisfeita
com os rigores da disciplina, do cuidado minucioso e da
transparência medida. A poesia de Eugénio vive da tensão
que faz impossível acomodar separadamente o que é cristal
e o que é chama. A inequívoca serenidade dos versos é a face
cristalina de um universo que arde apaixonadamente. Reco-
lho a seguinte declaração em uma entrevista: “Atraem-me
os valores da claridade, mas a ambiguidade é intrínseca à
própria poesia, sobretudo quando ela é tão metafórica com
a minha.”16 Em outro momento, Eugénio fala de “um rigor
que não sufoca o instinto” e cita uma definição de sua poesia
por Marguerite Yourcenar: “limpidez no ardor”.17

Os poucos elementos construtivos e vocabulares rendem


uma exuberância que parece provir da inclinação ora por
um polo ou por outro. Todo o material que ergue os poe-
mas, e que o poema ergue, parece mesmo movimentar-se

16
Prosa, p. 201. As referências Prosa pertencem ao volume Prosa. Porto: Assírio &
Alvim, 2022.
17
Prosa, p. 204.

29
entre versos, entre livros, num rearranjo que refaz o lugar
de seus signos na cadeia infinita de combinações. E assim,
por exemplo, a “pedra” aparece na parte I de “Branco no
branco” (poema e livro) na forma de um comando: “Não di-
gas pedra, diz janela.”18 O verso vem na sequência do poema,
que se abre desse modo: “Faz uma chave, mesmo pequena,
/ entra na casa.”19 Portanto, a pedra que se desejara em ou-
tros poemas ressurge para ser recusada. O que se quer então
é a chama. Cito outros versos: “Invoca o fogo, a claridade, a
música / dos flancos.” Cristal e chama exibem-se nessa hora,
portanto, como valores inconciliáveis.

Mas o que parece ser uma escolha em determinado poe-


ma é apenas uma das faces da tensão, a inclinação para um
dos polos. E se em “Branco no branco” parece haver cisão
e decisão, a escolha pelo “fogo” — pelo que dele provém (a
“claridade”) e pelo que traz seu ardor (a “música dos flancos”)
— não seria difícil ver o quanto os versos mantêm a ordem
cristalina, a atenção que sílaba a sílaba constrói o poema
como uma casa faz-se “pedra a pedra”. Nesses termos, seria
fácil demais afirmar que a forma será sempre uma força cris-
talina, mas seria necessário, mais uma vez, ver neste empenho
uma paixão e, na ordem mesma, o fogo que arde no cristal.

Talvez a passagem em que a poesia de Eugénio faz mais


explícita uma possível harmonia entre os polos de sua tensão
esteja no poema “Arquitectura açoriana”, de Homenagens e ou-
tros epitáfios, no qual se lê: “onde a veemência da luz / concilia

18
Poesia, p. 373.
19
Poesia, p. 373.

30
a terra imóvel / com a brusca paixão dos mastros.” Os versos
são tão eloquentes quanto precisos como proposição de um
acordo. Ainda assim, faço a sua paráfrase: a imobilidade da
terra (o cristal) e o livre ardor dos mastros (a chama) podem-se
manifestar em aliança, conciliados, com a intermediação da
luz, veemente. Eis a lição vislumbrada na arquitetura açoria-
na. Talvez estranhe, à primeira vista, que caiba à “veemência
da luz” conciliar aqueles polos opostos, pois, afinal, ela parece
participar do paradigma da chama. Como ela poderia pôr os
contrários em harmonia se está comprometida com um de-
les? A suspeição exige que se veja mais de perto.

É sem dificuldade que reconhecemos nestes versos um


poema sobre o poema, que colhe da arquitetura açoriana
uma lição porque nela reconhece valores concernentes à
escrita. A imagem de uma “veemência da luz” parece ade-
quar-se perfeitamente à escrita de Eugénio: por um lado,
aponta para a transparência, a justeza, o senso de medida e
de harmonia; por outro lado, a “veemência da luz” faz vi-
brar tudo o que toca, arranca do chão, lança no espaço, per-
turba, queima. A conciliação da “terra imóvel com a brusca
paixão dos mastros” pode realizar-se, como prova a lição da
arquitetura, justamente porque a “veemência da luz” parti-
cipa dos dois polos antagônicos: cristal e chama.

A casa, não raro, é o lugar da luz, ou do sol, seu máximo


irradiador. Mas em “Sobre o coração”, de Ofício de paciência,
é no coração que tudo começa, ele é casa, e nela arde o sol:
“Eras a casa, o lugar / onde o sol / ardia sobre a pedra.”20

20
Poesia, p. 526.

31
Tais versos de abertura serão reconfigurados ao final do poe-
ma: “o lugar do sol / era a casa — e ardia.”21 No início,
portanto, o coração é a casa, que é o lugar do sol; no fecho,
o coração é (nome e verbo suprimidos, mas subentendidos)
o lugar do sol e o lugar do sol é a casa. Tais mudanças não
geram alteração de sentido, mas efeitos de movimentação
(graças aos deslocamentos sintáticos dos elementos) e de
concentração (graças à supressão de elementos). De tal ope-
ração resulta uma espécie de irradiação intensa, como se os
sentidos se espalhassem musicalmente, livres, culminando
numa imagem-verbo que tudo reagrupa para, mais uma
vez, iluminar: “e ardia”. A fusão corpo-(coração)-casa-luz
é perfeita. Carlos Mendes de Sousa bem observa que “luz e
corpo configuram um lugar harmonizador, a um nível onto-
lógico”.22 Na afirmação, curiosamente, o uso da expressão
“lugar” parece trazer implícito um terceiro termo: casa.

Em sua dimensão de espaço aberto, a casa é de tal modo


atravessada pela luz que suas paredes parecem transpa-
rentes. Impossível não trazer aqui o sétimo fragmento de
“Rente à fala” (poema e livro):
Um dia te direi como é de vidro
a casa onde o rasto do verão
no silêncio perde o nome a cal
o mar a liberdade de vaga em vaga
há um galo que canta sem razão.23

21
Poesia, p. 527.
22
Carlos Mendes de Sousa, O nascimento da música – a metáfora em Eugénio de
Andrade. Coimbra: Almedina, 1992, p. 111.
23
Poesia, p. 297.

32
“Vidro”, no poema, não é o material (vidro), mas um
modo de nomear uma qualidade específica: a transparên-
cia. Com ela, outras qualidades, que migram da visibilidade
para uma abertura total, uma perfeita integração da nature-
za. Eugénio já usara a palavra “vidro” anteriormente, com
sentido análogo, em “Labirinto ou alguns lugares de amor”,
de Véspera da água, na seguinte estrofe:
a nudez do vidro
a luz
o prumo dos mastros24

É exatamente a nudez vítrea, transparência e abertura


para a luz, que se vê na casa de “Rente à fala”. Ali, a realida-
de material do vidro (como em outros poemas, a pedra) não
é, digamos, estrita, pois trata-se da extensão de um certo
campo sensitivo. Naquele contexto — como nos outros poe-
mas de Eugénio em que a palavra aparece25 — instala a me-
mória de uma sensação, ou melhor, dá nome a um feixe de
sensações ligadas à visibilidade, à limpidez, à leveza, ao aé-
reo, à aliança com a natureza. Não é índice de urbanidade,
não sugere proteção, não alude a qualquer gesto, situação
ou coisa cortante. E se, de um modo geral, o vidro, quando
signo da mineralidade, da impermeabilidade, da superfície
plana e fria, pertence, sem dúvida, à ordem do cristal, no(s)
poema(s) de Eugénio, ao contrário, ele é da ordem da chama,
pois não é senão a completa nudez aberta à luz intensa.

24
Poesia, p. 199.
25
Adiante, Eugénio usará a mesma palavra na imagem “um mar de vidro” em “Sul”,
de Os lugares do lume.

33
A culminância de um tal investimento numa poética
da chama seria a própria consumição da matéria. Eugénio
levará a imagem da casa a tal patamar em “O lugar da
casa”, de O sal da língua:
Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso (...) 26

A hipótese é a de uma casa que ardeu pelo fogo do que


se viveu nela, a ponto de desaparecer e sobrar algo como
uma memória ontológica, uma presença pela ausência; lu-
gar-zero: “areal deserto”. Mas imediatamente a imagem é
reavaliada, radicalizada, e a casa torna-se o lugar — que
guardaria a memória do fogo que se acendera na casa.

Se o poema exibe uma imagem extrema, seria preciso,


para não perder de vista a proposição de que a poética de Eu-
génio de Andrade vive da tensão entre a chama e cristal, trazer
o outro extremo, que vislumbro num breve poema em prosa
de Vertentes do olhar, chamado, exemplarmente, “Casa no sol”:
A casa é branca, branca da cal (que de todos os brancos é o
único que é branco), debruada de azul, por ser à beira-mar
a cor da alegria. Branca e fechada — não vá o sol que arde
nos telhados penetrar insidiosamente por alguma fresta e
incendiar o silêncio melindroso da alcova. A obscuridade
quase não consente a contemplação do rosto infantil que
ali dorme até o sol ter amansado. Só então desperta e se
refugia nos braços que já o esperam.

26
Poesia, p. 542.

34
Por esse rapazito serias capaz de correr o mundo à pé-
coxinho, se ele to pedisse, ou entrar pelo buraco da
fechadura só para o veres dormir.27

Chamo a atenção para a seguinte passagem: “Branca


e fechada — não vá o sol que arde nos telhados penetrar
insidiosamente por alguma fresta e incendiar o silêncio
melindroso da alcova.” A luz do sol agora é recusada. A
violência da chama fica patente no verbo “incendiar”. A
“fresta” que, lá atrás, permitiu ao menino ver as estrelas
caindo é rejeitada, já que por ela a estridência solar per-
turbaria o sono infantil e o conforto do silêncio em torno
dele. A casa está em paz. A mãe não está longe. Há a
mãe. Ou ainda, os braços maternais estarão lá quando
o “rapazito” despertar. Não há solidão, nem medo, nem
abandono. O cristal é aqui arquitetura silenciosa, imacu-
lada: casa “branca da cal”.

A casa eugeniana é, assim, movimento também pelos


modos como surge nos muitos poemas. À procura de uma
síntese acabada, recorro ao prefácio de Carlos Mendes de
Sousa para O sal da língua: “Um dos signos que mais emble-
maticamente traduz o universo eugeniano é justamente a
casa: do habitáculo originário ao lugar da oficina e do en-
contro amoroso, do sítio literal à metáfora do poema como
última morada ou cenotáfio, lugar de uma perpetuação do
nome pela escrita.” 28

27
Poesia, p. 421.
28
Carlos Mendes de Sousa, Um lugar onde o lume foi aceso. Prefácio de O sal da
língua. Porto: Assírio & Alvim, 2018, p. 12.

35
Um dos modos de a casa se fazer nos poemas é a
aproximação à arquitetura. A criação e organização dos
espaços, os princípios, normas e materiais, mas também
a relação com a natureza, aproximam-se materialmente
de certas qualidades essenciais da escrita, como visto
em “Arquitectura açoriana”. É revelador que Homenagens
e outros epitáfios apresente este poema numa sequência de
três, que formam uma unidade, ou ainda, um conjunto
singular em meio às homenagens: “Relação de casas boas
e más para juízo dos arquitectos Carlos Loureiro e Pádua
Ramos”, “Casa de Álvaro Siza na Boa Nova” e o próprio
“Arquitectura açoriana”.

O primeiro já no título deixa clara a exploração dos


contrastes entre as “casas boas” e as “más”, e o poema
constrói-se, assim, por dois paradigmas estendidos fluida-
mente por dez estrofes sem rigidez métrica, sem número
fixo de versos nas estâncias e sem padrão na alternância
entre o que chamei de paradigmas. Os versos de abertura
das estrofes, no entanto, abrem-se sempre do mesmo modo,
sutilmente anafórico — “Há casas […]” — o que empresta
ao conjunto uma regularidade propriamente construtiva.
Assim começa o poema:
Há casas cuja beleza começa no projecto; outras, e são
talvez as mais belas, existem só na cabeça do arquitecto.

Cá estão no início do poema — como um retorno à


origem da própria arquitetura — casas anteriores às casas.
O que se deseja — em processo no projeto — vem da
vontade de beleza. É ela que se projeta, a beleza; é a ela, essa

36
abstração, que se quer dar forma. E se a realização estará —
talvez? Inexoravelmente? — aquém do plano, permanecerá
a casa desejada “na cabeça” de quem a desejou, viverá
suspensa em sua perfeição de objeto inapreensível. A
homenagem, portanto, traz a arquitetura ao seu sentido
primeiro e último, a habitação, e aponta para seu caráter
utópico: projeção de algo irrealizável.

Se o título nomeia Carlos Loureiro e Pádua Ramos, o


poema é sobretudo uma homenagem ao arquiteto, ao seu
ofício, revelando-se aí uma forte sintonia com o poeta e sua
oficina. E como se buscasse no repertório da arquitetura
universal algo como um símbolo, ou uma metonímia
capaz de concentrar tudo o que se disse e de antecipar o
que será dito adiante, a segunda estrofe homenageia, sem
nomeá-lo, Frank Lloyd Wright, por meio de sua célebre
Casa da Cascata: 29
Há casas feitas à medida do homem,outras há para andar
de bicicleta; há casas sobre cascatas onde ao sortilégio da
água se junta a música de Bach.

É evidente o quanto repercute nesses versos o gosto


de Eugénio, ou ainda, o paradigma eleito por ele como
horizonte de sua escrita. Destaco, no entanto, algo que revela
sua inteligência como observador de uma obra arquitetônica,
ao lembrar que a casa projetada por Wright se integra a
um curso d’água, de modo que os moradores estariam em
contato permanente com a queda e o fluxo do riacho numa

29
Fallingwater foi projetada por Frank Lloyd Wright entre os anos de 1936 e 1939.

37
experiência sensorial que não se dá visualmente, mas por
meio do som que se propaga por toda a casa. A ligação com
a natureza acontece, portanto, numa espécie de apreensão
musical. Ou, nas palavras do poema, “ao sortilégio da água
/ se junta a música de Bach”.
Ao longo das imagens reconhecemos vários tópos eu-
genianos — “um verso de Cesário”, o “jasmim”, “pátios
caiados”, “o mar”, “um gato”, “o coração”, “o amor”, as
“abelhas”, o “rumor”, “o silêncio”, “um barco”, “os diós-
piros”, a “vinha”, o “trigo” e outros —, mas deparamos
sobretudo com versos nos quais é decisivo o pendor para a
escala humana, a exatidão, a harmonia, a síntese, o vigor;
o cristal e a chama: “Há casas como um cristal, / casas de
luz circular.” Em “Casa de Álvaro Siza na Boa Nova”, há
uma espécie de recorte exemplar: eis “a casa boa”. Há um
prolongamento tão perfeito da escrita de Eugénio na sua
apreensão poética da arquitetura de Siza, que o poema
poderia ter por título apenas “A casa”.
A musical ordem do espaço,
a manifesta verdade da pedra,
a concreta beleza
do chão subindo os últimos degraus,
a luminosa contenção da cal,
o muro compacto
e certo
contra toda a ostentação,
e refreada
e contínua e serena linha
abraçando o ritmo do ar,
a branca arquitetura

38
e nua
até aos ossos.
Por onde entrava o mar.30

Eugénio escreve a casa. Sem descrições, aqui estão, no-


meados, a “pedra”, a “cal”, o “muro”. Mais que isso, vemos
com nitidez a casa de Eugénio e mantemos a visão da casa
de Siza: uma mesma casa, que não de todo a de Siza, pois a
casa agora é casa-escrita, nem inteiramente de Eugénio, pois
o poema é a paisagem de que trata.

A casa — “de Álvaro Siza na Boa Nova” — está no poe-


ma em sua dimensão material, com sua concreção, o ritmo
de suas formas no espaço, sua economia formal, e uma reti-
dão que emana de tudo isso como uma moral — “verdade”;
uma estética — “beleza”, uma economia — “contenção”.
Vigoram a luz, a abertura, o movimento, a transparência;
e, no último verso, o encontro com a natureza, figurado e
transfigurado em êxtase sexual.

Apesar do nome de seu grande arquiteto, a casa, aos


olhos de Eugénio, dá a ver as qualidades das casas anônimas,
as mais simples, providas do que é essencial — por isso as
mais belas. Como as mais antigas construções, “manifesta a
verdade da pedra”.

Para concluir, vou a um dos mais belos e conhecidos


poemas de Eugénio, “Casa na chuva”, no qual a tensão en-
tre cristal e chama encontra um sereno equilíbrio de forças:

30
Poesia, p. 278.

39
A chuva, outra vez a chuva sobre as oliveiras.
Não sei por que voltou esta tarde
se minha mãe já se foi embora,
já não vem à varanda para a ver cair,
já não levanta os olhos da costura
para perguntar: Ouves?
Ouço, mãe, é outra vez a chuva,
a chuva sobre o teu rosto.31

A simplicidade da cena e da expressão, o ritmo suave,


o perfeito deslizar dos versos, as delicadas repetições, tudo
contribui para um quadro de cores esbatidas, com suas tin-
tas como que diluídas pela água da chuva. Mal percebemos
as transições e os deslocamentos.

Lemos que a chuva cai “outra vez”, que ela “voltou”.


O poema não diz que chove outra vez, mas que a chuva voltou,
como se fosse uma mesma chuva retornada do passado. A
declaração “não sei porque voltou esta tarde / se minha
mãe já se foi embora” pressupõe uma razão para que a
chuva voltasse, e o estranhamento advém da incoerência:
se a mãe se foi, a chuva não voltará; a chuva existia para
que ela fosse à varanda para a ver cair, para que levantasse
os olhos da costura e perguntasse: Ouves? Seria esse,
digamos, o texto implícito, ou ainda, a lógica implícita ao
poema, a lei que resultaria inteiramente do amor, como
se todas as coisas do mundo, inclusive, ou sobretudo, as
coisas naturais, tivessem no amor — “o amor, que move o
sol e os outros astros”, nas palavras de outro poeta — o fio
condutor de suas ações, a razão de suas presenças.

31
Poesia, p. 239.

40
É o incoerente retorno da chuva, no entanto, que faz a
voz da mãe desprender-se do passado, dirigindo-se ao filho
que lhe responde hoje, dentro do presente. A resposta é,
em primeiro lugar, uma confirmação — “Ouves? / Ouço,
mãe” — com o que se mantém a harmonia sem fissuras e se
adense a atmosfera de gravidade religiosa; a resposta realiza
a perfeita aliança dos tempos e reafirma um laço afetivo
que se mantém para além dos tempos; logo sobrevém o
retorno do primeiro verso — “outra vez a chuva” —, o que
traz para a estrutura do poema a circularidade de um pleno
retorno; o verso final retoma o primeiro num paralelismo de
grande beleza: “a chuva sobre as oliveiras” refaz-se em “a
chuva sobre teu rosto”. A simples substituição de um termo
por outro parece, à primeira vista, criar uma mudança de
espaço — do exterior para o interior: lá fora, as oliveiras;
dentro da casa, a mãe (o seu rosto). Mas como choveria
dentro da casa? Ou a mãe está fora da casa? Se a mãe não
está dentro nem fora, porque está na memória, como pode
a chuva de hoje molhar o seu rosto? As indeterminações
criam mais que desafios para uma leitura que se guiasse por
uma lógica exterior ao poema — elas impedem que uma
tal leitura se faça.

Na casa, não há dentro e fora. O menino antes preso


na casa da infância libertou-se para sempre dos limites que
constrangem o corpo e a livre circulação das sensações. A
casa ganhou mastros, lançou-se na água e no vento, recolheu
amores, foi corpo e palavra. Se naquele texto inaugural o
filho chamava pela mãe que não vinha, que “não havia”,
ela agora calmamente instala-se na casa. Trazida pelo

41
mundo — a chuva — ou pelas palavras? Mundo e palavras
tornaram-se um mesmo destino. Tudo é casa e é poema. As
estrelas que caíam parecem retornar na chuva, que ao cair
sobre o rosto da mãe parece repetir as lágrimas que caíam
sobre o rosto do filho — “outra vez”. O paralelismo entre
o título e o verso final é revelador: a “casa na chuva” / a
“chuva sobre o teu rosto”: a casa é a mãe.

O poema pode ser lido como um retorno reparador


daquela perda inicial — por meio de uma presença instituída
pela memória, pedra a pedra. Pela poesia, sílaba a sílaba.

EUCANAÃ FERRAZ
RIO DE JANEIRO, OUTUBRO, 2023

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