formação inicial de professores

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FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES: DESAFIOS DO ESTÁGIO

CURRICULAR SUPERVISIONADO E TERRITORIALIDADES NA


LICENCIATURA
FERNANDES, Cleoni Maria Barboza – UNISINOS – [email protected]
SILVEIRA, Denise Nascimento da – UNISINOS – [email protected]
GT: Didática / n.04
Agência Financiadora: CNPq

O estágio nos cursos da formação inicial de professores tem sido historicamente um


objeto de estudo que envolve a discussão do próprio curso/percurso dessa formação e as
relações de teoria e prática, conteúdo e forma e profissionalidade dentre outras relações.
Essa discussão nos encaminha para uma urgente necessidade de ampliar o campo de
compreensão do estágio para outros lugares nos cursos de formação de professores,
envolvendo outras relações entre Universidade/Escola; formação específica/formação
pedagógica; ensino/pesquisa em um contexto histórico-cultural e epistemológico
diferenciado de formação de professores.
Consideramos que essa compreensão que envolve outros lugares para o estágio nos
cursos de formação de professores exige uma superação de uma organização curricular
normativa, aprisionada em estruturas de poder hieraquizadas, tanto do ponto de vista
epistemológico, quanto dos processos apreendidos nas relações produzidas entre o campo
da formação (Universidade) e o campo profissional (Escola).
Nessa direção, encontramos em Marcelo Garcia (1999) uma concepção de formação
de professores que tem nos permitido aprofundar nossos estudos e que se aproxima de uma
inserção mais qualificada do campo da Didática nessas relações e da possibilidade da sua
mediação como um diálogo epistêmico entre os vários campos epistemológicos nos Cursos
de Licenciatura do Ensino de – das disciplinas matérias das séries finais do Ensino
fundamental e do Ensino Médio.
O campo da formação de professores estuda os processos através dos quais os professores –
os professores em formação ou em exercício – se implicam individualmente ou em equipe,
em experiências de aprendizagem através das quais adquirem ou melhoram os seus
conhecimentos, competências ou disposições, e que lhes permite intervir profissionalmente
no desenvolvimento do seu ensino, do currículo e da escola com o objetivo de melhorar a
qualidade da educação que os alunos recebem. (MARCELO GARCIA: 1999, p.25)

Os interrogantes que fazemos nessas discussões com as parcerias de pesquisa trazem


uma outra lógica de pensar os cursos de formação de professores, em nosso caso – de
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pesquisa da formação inicial – e tem nos exigido cada vez mais trabalhar com as dimensões
epistemológicas, políticas, técnicas e culturais em movimentos de interação constante entre
o curso/universidade e a escola, contextualizados no mundo da vida e do trabalho. Os dados
que temos coletado em nossas pesquisas revelam que há uma espécie de limbo onde está o
ensino de 5ª à 8ª série e, no ensino médio, essa discussão da formação inicial de
professores é um território ainda bastante inexplorado.
A inserção da prática de ensino, prática como componente curricular desde o
início do curso e o estágio curricular supervisionado desde a metade desse curso,
presentes na legislação que trata da organização curricular nos cursos de graduação, aqui
circunscritos aos cursos de licenciatura – formação inicial de professores, encaminhou-
nos para uma reflexão mais contextualizada no cenário das políticas públicas.
O discurso oficial evidencia a presença de um discurso que é marcado por uma
linguagem que define padrões, que re-semantiza significados (JANELA AFONSO:
2002), mas que se esvazia em si mesma, sem questionar o conhecimento, categoria
fundante, a ser produzido e trabalhado na formação de professores, como em uma teia de
relações histórico-culturais, políticas, epistemológicas, pedagógicas e éticas.
Quando não discutimos nessa teia de relações, para que e para quem são estes
conhecimentos, eles facilmente se transformam em um bem de utilidade imediata, de
ascensão social, de mercadoria, e são renominados em vários sentidos: competências,
habilidades, valores, interação com o meio, acúmulo de informações, sociedade do
conhecimento, perfil profissional, perfil profissiográfico, produto final, solidariedade,
cidadania.
Essas palavras e expressões que aparecem no discurso oficial estão presentes nos
projetos políticos pedagógicos dos cursos como indicadores de inovação, de inserção na
realidade, de conhecimento interdisciplinar, dentre outros e que vêm nos alertando para
que tenhamos um cuidado com a discussão do estágio e suas implicações pedagógicas de
identidade da profissionalidade, as quais não se constituem em um constructo arbitrário.
Implicações decorrentes de uma concepção de mundo, de educação e de currículo, que
mediados pelo trabalho com o conhecimento, como categoria fundante das relações
pedagógicas, humanas e sócio-culturais, possibilitam o ato educativo na organização
curricular.
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O estágio está assim conectado à formação do professor de ensino de, que tem na
discussão mais ampla da própria idéia de professor suas finalidades ético-culturais e cidadãs,
que precisam nos inquietar mais para produzir sentidos1 que permitam uma compreensão e
uma intervenção possível nos processos formativos, processos estes impregnados das
ideologias e dos valores do campo científico e do campo profissional, nem sempre
percebidos, mas revelados nos atos e nas escolhas que fazemos.
Então, pensar em estágio é falar em projeto de curso, em formação específica e
formação pedagógica, é tocar no calcanhar de Aquiles dos processos educativos: teoria e
prática; conteúdo e forma; modos de produção do conhecimento: conhecimento novo e
conhecimento existente (FREIRE e SHOR: 1987), que incidem sobre a prática como
componente curricular, desde o início do curso.
As práticas vividas revelam concepções de conhecimento, de aprendizagem e de
sociedade, que se situam em um paradigma dominante (SOUSA SANTOS: 1987) que
privilegiam dicotomias, tais como:
• sujeito e objeto;
• teoria e prática;
• mente e matéria;
• conteúdo e forma;
• alma e corpo.
Dicotomias que são separações e, também, antagonismos, em que o conhecimento é
coisificado e isolado do processo de construção pessoal. Esse paradigma que se funda em
uma única racionalidade, a cognitiva instrumental, desqualifica todas as outras formas de
conhecer e de compreender o conhecimento e o mundo da vida e do trabalho, trazendo uma
supervalorização da teoria sobre a prática; uma redução da ciência a uma única lógica; uma
perda das visões globais e integradoras dos campos científicos.
Essa relação da teoria e da prática apresenta-se como um problema ainda não
resolvido em nossa tradição filosófica, epistemológica e pedagógica. A teoria vista na ótica
da marca cognitiva instrumental traz como representação a idéia de que a teoria se comprova
1
O termo sentido, neste texto, está fundado na idéia de Marilena Chauí: “O mundo suscita sentidos e palavras,
as significações levam a criação de novas expressões lingüísticas, a linguagem cria novos sentidos e interpreta
o mundo de maneiras novas”. (CHAUÍ: 1998, p. 149).
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na prática, condicionando uma visão de que a teoria antecede à prática e, que esta, aplica
soluções trazidas pela teoria em movimentos de padrões universais, descontextualizados,
com modelos que reduzem a complexidade do mundo da vida e do trabalho.
Esta visão polarizada da teoria e da prática não dá conta da complexidade do mundo
da vida e do trabalho e da compreensão da instância epistêmica, onde se produzem as
teorias, que são recortes de realidade desse mundo, em uma relação intermutável de tempo e
de espaço e, produzida nas condições e possibilidades dos processos histórico-culturais de
cada tempo e de cada espaço, ou melhor, dizendo de cada espaço-tempo.
Nesse sentido há uma emergência de uma postura tensionada entre elas, entendendo
que a teoria dialeticamente está imbricada com a prática. Senão, a teoria tende a se tornar
um acúmulo de informações sem uma sistematização que lhe fundamente as evidências
colhidas numa prática refletida que tensione e recrie a teoria.
Essa relação dialetizada nas contradições e imprevisibilidades que a realidade
complexa, mutante e ambivalente possibilita, faz com que na prática a teoria seja outra, para
então se mudar a teoria e se transformar a prática. São dimensões indissociáveis do ato de
conhecer.
A cisão entre sujeito e objeto, que tem nos coisificado, se reproduz na cisão teoria
e prática, como se fora possível construir uma teoria sem que ela tenha passado pelo
filtro da prática refletida em seu locus sócio-cultural, e de uma prática sem reflexão, sem
ter um cerne teórico, embora não explicitado.
O risco de uma teoria geral sem embate com a prática e, esta reduzida a uma ação
repetida sem questionamentos, não só dicotomizam o ato de conhecer, como alienam os
sujeitos de seus objetos de estudo para compreensões mais elaboradas e transformadoras
em suas realidades.
Nessa perspectiva, a prática fica reduzida à execução de tarefas, ou a uma ação sem
reflexão que deva buscar a teoria para ser questionada, recriada ou contestada. A prática
tende a ser vista como uma experiência reducionista, sendo esta experiência, uma vivência
pontual, sem ex-por-se (LARROSA: 2002), sem sair para fora de si, sem produzir um
sentido para o vivido, sem recriá-lo, sem confrontá-lo com o mundo lá fora e com nosso
próprio mundo interior.
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Daí a necessidade de enfrentar o desafio da produção de sentido para o nosso fazer


pedagógico de professores formadores e o fazer pedagógico dos professores em formação
(FERNANDES: 2005) – nosso estudante de licenciatura.
Destacamos, nesse momento, o lugar de onde compreendemos a visão de prática
componente curricular, como uma prática pedagógica, entendendo-a como:

“Prática intencional de ensino e de aprendizagem, não reduzida à questão didática


ou às metodologias de estudar e aprender, mas articulada a uma educação como
prática social e ao conhecimento como produção histórica e cultural, datado e
situado, numa relação dialética e tensionada entre prática-teoria-prática,
conteúdo-forma, sujeitos-saberes-experiências e perspectivas interdisciplinares.”
(FERNANDES in MOROSINI et al: 2003; p.376).

Assim, reafirmamos na discussão do estágio e da prática de ensino a necessidade


de uma interconecção e interação no projeto de curso, em processo de reformulação,
como resultante das políticas públicas na Educação, embora sem adentrar neste texto nas
novas diretrizes, mas tendo-as como estruturantes, no contexto brasileiro.
Contexto este, marcado por uma inundação de reformas que respondem às demandas
internacionais de um mercado insaciável: reformas econômicas, fiscais, tributárias,
previdenciárias, produtivas e educacionais, com quebra de princípios constitucionais e
acelerada privatização do Estado. (SGUISSARDI e SILVA JÚNIOR: 1997).
A seguir, apresentamos algumas reflexões decorrentes de um recorte da pesquisa2
feita em quatro (04) universidades gaúchas e, que envolveu quatorze (14) cursos de
licenciatura em seis (06) campos epistemológicos (Biologia, História, Física, Língua
Portuguesa, Matemática e Química) e quarenta e um (41) interlocutores entrevistados,
distribuídos entre pró-reitores e diretores de graduação, coordenadores de curso e
professores do campo específico dos cursos referidos. Na coleta de dados foram utilizadas
entrevistas semi-estruturadas e, análise documental da legislação pertinente e dos projetos
políticos pedagógicos de curso já elaborados e, em alguns casos, em processo de elaboração.

2
Pesquisa interinstitucional A Licenciatura e a Resolução CNE/CP 2 de 19 de Fevereiro de 2002 –
possibilidades e limites – reconfigurações de Projetos Pedagógicos. Pesquisa em parceria realizada no período
de 2003 a 2006, com produções apresentadas em eventos nacionais e internacionais.
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Alguns interrogantes e recortes da travessia de pesquisa


A análise documental sobre a proposta da formação inicial de professores trazida
pela legislação apontou para a necessidade de currículos organizados em processos que
devem privilegiar a tematização dos conhecimentos escolarizados, dos saberes da
experiência, da iniciação científica, da inserção no campo profissional desde o início do
curso, do estágio curricular supervisionado a partir da metade do curso, da identidade do
curso de Licenciatura – cursos de formação inicial de professores – sem ser um apêndice
do bacharelado.
Um grande impacto trazido nessa proposta incidiu diretamente sobre a necessidade
de uma outra articulação entre o campo da formação (Universidade) e o campo profissional
(Escola) – a inserção na Escola desde o início do curso por meio da prática como
componente curricular, passando a exigir uma visão de curso em suas múltiplas dimensões
de totalidade.
Visão esta que exige uma concepção orgânica no estabelecimento de conexões e
interações entre as partes e as totalidades, encontrando eco na afirmação de Kosik (1976:
p.42) “[...] que o todo não pode ser petrificado na abstração situada por cima das partes,
visto que o todo se cria a si mesmo na interação das partes”.
A inserção do professor em formação no estágio desde a metade do curso busca
romper com uma visão de que a teoria antecede à prática e esta, a prática, reduz-se à
aplicação de teorias, compreensão de conhecimento e de ciência arraigada em nossos
currículos e em nossas concepções.
Repensar o estágio a partir de outra matriz teórica, na busca de superação do estágio
como campo de aplicação de conhecimentos nos remete aos desafios de superação da idéia
de Universidade como detentora dos saberes3 válidos, entendendo que esses saberes são
produzidos nas práticas de ensino como práticas sociais e que se complementam na

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Aqui compreendido como “saber é poder manusear, poder compreender, poder dispor. O saber está
vinculado ao mundo prático, o qual não é somente condição de possibilidade para qualquer enunciado, mas
também o lugar efetivo onde a enunciação pode ser produzida. Portanto, a investigação do saber como
epistêmico remete ao prático, pois o saber revela-se em instância que vincula o homem ao mundo.”
(BOMBASSARO: 1992; p.21). Nessa direção, fazemos aproximações teóricas com Tardif para compreender a
configuração e a produção dos saberes do professor em sua formação e do professor em formação.
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necessidade de interação entre o campo da formação e o campo profissional desde o início


do curso.
A alteração de carga horária da Resolução CNE/CP 2 de 19 de Fevereiro de 2002 trouxe
as 400h de prática de ensino e as 400h de estágio curricular supervisionado e, especialmente,
apoiada em outras resoluções trouxe a separação entre bacharelado e licenciatura, o que à
primeira vista poderia ser um ganho histórico para a construção identitária de ser professor.
Está posta a necessidade de inverter a lógica anterior, dos três (3) anos de formação
específica e um (1) de formação pedagógica, conhecido por 3+1, em que a responsabilidade
de formar o professor, era reduzida às chamadas matérias pedagógicas: Didática; Psicologia;
Sociologia e, em alguns casos, Filosofia e Antropologia, tendo como pressupostos básicos: a
teoria antes da prática e o estágio no final do curso como um momento de aplicação da
teoria e, não como uma experiência de aprendizagem e fortalecimento da construção da
identidade profissional do trabalho docente.
Mas como as questões que envolvem a compreensão do conhecimento, da ciência e do
mundo da vida e do trabalho são regidas de forma predominante pelo paradigma dominante
(SOUSA SANTOS: 1987), permanece a dualidade cultural dicotômica que acima foi
nomeada.
Há uma tentativa, de superar uma dualidade histórica e cultural da formação de
professores em sua base epistemológica e pedagógica: os saberes e conhecimentos da
formação específica, os saberes e conhecimentos da formação pedagógica em um contexto
de campo profissional, tensionando as relações entre este campo e o campo da formação.
Essa reorganização/construção da matriz curricular demanda uma outra concepção
que rompe com a lógica vigente – concebendo o conhecimento com dupla entrada –
epistemológica e societal, sem a tradicional hierarquização entre conhecimento e saberes,
estes, emprenhados da práxis cotidiana do mundo profissional com suas transformações e
contradições, um processo que requer contínuas interlocuções com a ciência e com a prática
social, na busca de colocar um dever ético em um espaço em que há apenas poder.
Na discussão dessa reorganização/construção da matriz curricular, reencontramo-nos
com os interrogantes produzidos com nossos parceiros de pesquisa: quais conhecimentos
estamos validando ou legitimando? Que relações estamos estabelecendo entre teoria e
prática? Entre forma e conteúdo? Como trabalhamos a formação pedagógica com a
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especificidade epistemológica de cada curso de licenciatura? Para quem e para que estamos
formando professores? De que formação estamos falando? Ou estamos esvaziando o
conhecimento, em seus meios de produção histórica e cultural, em sua recriação pedagógica
desses meios de produção? Ou desconsiderando o conteúdo ético, interrogante fundamental
para responder aos porquês e para quê produzimos sentidos para o conhecimento novo ou
para conhecer o conhecimento existente (FREIRE e SHOR: 1987)? Estamos mudando a
lógica que presidia a organização curricular na formação de professores? Qual a
compreensão de estágio que habita o projeto de curso e a nossa própria concepção como
professoras de Didática?
Enfim, interrogantes que precisam entrar em nosso cotidiano como pilares fundantes
de nossa interação e intervenção nas licenciaturas com as quais trabalhamos, considerando
os limites feudais em que nos encarceramos em disciplinas e departamentos, tanto da dita
formação específica, quanto da dita formação pedagógica.
Como se fora possível uma forma sem conteúdo e um conteúdo sem forma, tanto na
visão de uma formação específica (que especificidade?) que julga prescindir da formação
pedagógica (não será esta também uma outra especificidade?) , quanto na visão de formação
pedagógica que se isola em redutos de procedimentos de ensinar e de aprender sem voltar ao
objeto epistêmico de cada curso e à possibilidade de diálogo para discutir o curso como uma
totalidade em movimento, como se os meios de produção do conhecimento fossem
independentes dos modos de produção do conhecimento no espaço-tempo de sua produção e
da recriação pedagógica em cada contexto de ensinar e aprender.
Ou ainda, a idéia de que a teoria está na formação específica, enquanto a prática está
situada na formação pedagógica, em termos de ensinar e aprender, como se fora possível
um como ensinar, sem saber como aprender e um aprender, sem compreender o modo de
produção do conhecimento específico, que é a própria reconstrução pedagógica do
conhecimento em seus meios de produção desse conhecimento, historicamente
contextualizado. É uma tarefa hercúlea, pois não temos a tradição do debate e do embate no
campo das idéias, da reflexão coletiva, da visão de conhecimento mais ampliada e
aprofundada da História da Ciência, do processo histórico-cultural da vida humana.
De modo geral, não trazemos em nossa formação uma antropologia reflexiva que nos
questione sobre as finalidades da ciência e da existência para uma compreensão filosófica da
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pesquisa científica (VIEIRA PINTO: 1969) e, conseqüentemente, de nosso fazer pedagógico


de professores formadores de professores em formação.
Outras concepções de conhecimento, de ciência e de seus modos de produção
precisam se incorporar às nossas práticas cotidianas, porque incidem diretamente na
produção dos saberes, dos conhecimentos para além dos conhecimentos considerados
válidos oriundos do campo legal, do campo científico e do campo profissional, e necessitam
de interrogantes e interrogadores que os contextualizem e os resignifiquem com rigor
epistemológico e ético (FREIRE e SHOR: 1987).
Nessa direção, há que se redobrar os cuidados com a retórica re-semantizada de
conceitos fundamentais à formação de professores, em que a
(...) capacitação de professores foi traduzida como profissionalização;
participação da sociedade civil, como articulação com empresários e ONGS;
descentralização como desconcentração da responsabilidade do Estado;
autonomia como liberdade de captação de recursos; igualdade como eqüidade,
cidadania crítica como cidadania produtiva; formação do cidadão como
atendimento ao cliente; a melhoria da qualidade como adequação ao mercado e,
finalmente, o aluno foi transformado em consumidor. (SHIROMA, e outros:
2000, p.52).

Não se trata de negar o avanço que a inserção da prática como componente


curricular e do estágio ao longo do curso representam, trata-se de não banalizá-los com um
ativismo, que prescinda da teoria. A prática é produzida na materialidade das relações
concretas do cotidiano, por isto mesmo, entranhada pelos significados locais, sociais e
culturais, as quais produzem sentidos porque são também práticas sociais.
Outra questão preocupante apontada pelos dados coletados é que os Trabalhos de
Conclusão de Curso (TCCs) dos professores em formação tendem fortemente a uma não-
articulação de tematizações relacionadas às práticas de ensino experienciadas por esses
sujeitos na sua inserção no campo profissional, ou seja, são em grande parte estudos
bibliográficos que não chegam a passar pelo filtro da realidade problematizada,
especialmente em relação às experiências de ensino-aprendizagem do estágio ou das
inserções iniciais das práticas de ensino no campo profissional. Há um certo esvaziamento
do sentido da pesquisa como princípio educativo na formação de professores e como espaço
de mediação da possibilidade de diálogo entre teoria e prática e conteúdo e forma.
Nessa perspectiva, trabalhar a compreensão de prática como prática social e do curso
como uma unidade de totalidades em movimento, o estágio configura-se como um território
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a ser ocupado em uma triangulação interativa – não um triângulo retângulo – entre a


formação pedagógica, a formação específica e a inserção no campo profissional sem as
hierarquias das estruturas de poder entre a Universidade e a Escola.

À guisa de conclusão – de volta ao começo


Na tentativa de sistematizar as reflexões até aqui produzidas, apresentamos uma
síntese provisória de algumas inferências e implicações sobre o estágio curricular
supervisionado em busca de uma territorialidade4 na licenciatura, entendendo o trabalho
com o conhecimento como categoria de mediação na prática pedagógica cotidiana
indissociada da prática social:
• Trabalho – a inserção dos professores em formação no campo profissional na prática
social, nas suas relações dos meios de produção, apropriação e disseminação dos
saberes e dos conhecimentos, poderia trazer a compreensão da docência como
trabalho, na possibilidade da reflexão sobre o trabalho que fariam, aproximando-se
da visão de Vieira Pinto (1969, p. 28) fundamentos existenciais, os suportes sociais e
as finalidades culturais (...) que explicariam o trabalho realizado;
• Trabalho docente – a compreensão da natureza da educação como um trabalho não
material, cujo produto não se separa do ato de produção, permitindo situar a
especificidade da educação como relacionada aos conhecimentos, às idéias, aos
conceitos, aos valores, às atitudes, aos hábitos, aos símbolos, como elementos
necessários na formação da humanidade em cada indivíduo singular, na forma de
uma segunda natureza, que se produz, deliberada e intencionalmente elas relações
pedagógicas. Retomada da categoria trabalho para pensar em teoria e prática;
• Dialogicidade – disponibilidade para o diálogo na concepção freireana, como
possibilidade humana e opção democrática nas relações humanas, históricas e
culturalmente produzidas pela intencionalidade de efetivá-lo, tanto no interior dos
cursos entre a formação específica e a formação pedagógica, quanto na ausculta da
realidade, alterando as relações de poder entre a Universidade e a Escola; em que a

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Aqui compreendida no sentido construído por Fernandes (1999): como a ocupação, circulação e apropriação dos vários
territórios na materialidade das relações humanas e pedagógicas produzidas no mundo da vida e do trabalho.
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complementaridade constitua-se em um princípio epistemológico e ético para reger


as relações entre a Universidade (campo da formação) e a Escola (campo
profissional), tensionando estas relações em um processo dialógico constante;
• Interdisciplinaridade – a inserção na prática profissional e na prática social exige
como centralidade um processo de trabalho em que a operação com o conhecimento
provoque a compreensão de que a realidade sendo complexa em suas relações e
interações e mudanças, o conhecimento e os saberes nela e com ela produzidos,
seriam também de perspectiva interdisciplinar, como uma transgressão do disciplinar
– aquilo que diz respeito ao conteúdo e/ou conhecimento relativo de uma disciplina,
como a busca da ultrapassagem das fronteiras estabelecidas arbitrariamente num
dado momento histórico – como uma tentativa do resgate da totalidade;
• Modos de conhecer – a compreensão da ciência como processo histórico e cultural
exige uma formação que articule a tecitura complexa da realidade no contexto das
ciências sociais e da História como um processo humano, o que poderia dar conta de
uma outra concepção epistemológica e pedagógica dos conhecimentos e dos saberes
presentes no desenvolvimento curricular para que o estágio possa ser um território de
consolidação do processo inicial da construção da identidade de ser professor e da
docência como um trabalho;
• Territorialidade – o estágio tende a se tornar um território de conflitos entre
professores e estudantes, tanto pelo choque com a realidade da escola/outro espaço,
quanto pelo isolamento e desarticulação entre a Universidade e o professor da escola
ou responsável de outro local de estágio. Muitas vezes, o estágio tem sido
considerado um território menor, sob a orientação de um professor ou de um grupo,
que acaba imprimindo sua marca e, não a marca do curso como uma totalidade em
movimento, como uma responsabilidade coletiva dos professores, da instituição
formadora e de quem recebe os estagiários, em um projeto construído em parceria
fortalecendo relações pedagógicas triangulares mediadas por este projeto. Relações
que precisam ser construídas e fortalecidas entre as gentes – professor em formação,
professor orientador e alunos da classe, conectados com a realidade local do estágio,
com papéis diferenciados e respeitados, porque acolhidos com suas diferenças, em
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que essas diferenças sejam uma categoria de conteúdo ético e, não apenas por
diferenças de papéis sociais e culturais.

Na rápida mirada no recorte feito dos quadros de análise dos dados coletados da
pesquisa, foi possível identificar nas falas dos interlocutores, que há uma certa dificuldade
de compreender o trabalho como mediação tanto no plano intelectual, quanto no plano
profissional. E este fato, demandou a idéia de que o estágio é uma experiência interessante e
necessária para o estudante, mas não tende a ser um território do campo profissional em
fronteiras abertas com as outras disciplinas e atividades do curso, ficando desterritorializado
do projeto de curso.
Apoiamo-nos em Santos (1996, p.262) para usar a expressão desterritorialização
como um estranhamento e, de aproximá-la nessa reflexão à idéia do sentido que separa o
centro da ação e a sede da ação (idem, p. 272), a sede do estágio: um lugar com outros
lugares – as várias territorialidades isoladas do que seria o lugar da identidade nucleada – o
Curso.
Entretanto, como nem a História, nem as instituições são lineares, os espaços de
contradição são produzidos e se produzem no movimento das relações de produção da
VIDA, o que tem permitido rupturas e continuidades, como foi constatado em nossa
pesquisa, encontrando ressonância na afirmação de Cunha (2006) sobre essa formação:
Formação de professores como um campo de construção/contradição (p.66).
O estágio está sendo pensado em alguns cursos, por um grupo de professores para ser
discutido e assumido no Colegiado de Curso, a partir da leitura de realidade do mundo da
vida e do trabalho e das condições concretas do cotidiano, carregado de sobrecarga de
trabalho e de muitas dúvidas, ansiedades e inseguranças, mas sendo pensado para além de um
projeto de curso cartorial, envolvendo professores da formação específica e da formação
pedagógica. Poucos? Muito, muito poucos, mas que estão se ocupando, se apropriando e
disseminando essa discussão em suas instituições, em busca de uma territorialidade do
estágio na licenciatura com suas tensões e conflitos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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