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À margem de Outubro:

comunistas e questão racial


no Brasil
Weber Lopes Góes* e Renata Gonçalves**

Resumo:
A revolução de 1917 inspirou revolucionários em diversas partes do mundo. Os ecos
de Outubro também se fizeram ouvir quando o centro da luta consistia em derrubar o
colonialismo europeu em solo africano ou a segregação racial estadunidense. No entanto,
aqui no Brasil, apesar do surgimento de um Partido Comunista logo nos primeiros anos da
vitória bolchevique, a questão racial não foi percebida como uma componente para as lutas
contra a exploração capitalista.
Palavras-chave: Revolução de Outubro; desigualdade racial; comunismo; movimento negro.

On the Margins of October: Communists


and Racial Question in Brazil
Abstract:
The 1917 revolution inspired revolutionaries in various parts of the world. The echoes of October
were also heard where the center of the struggle consisted in overthrowing European colonia-
lism on African soil or U.S. racial segregation. Nevertheless, here in Brazil, despite the rise of a
Communist Party during the first few years after the Bolshevik victory, the racial question was
not perceived as a component of the struggles against capitalist exploitation.
Keywords: October Revolution; racial inequality; communism; black movement.

Proletários de todos os países, uni-vos!


A Revolução Russa de 1917 é parte das tentativas de reorganização dos
trabalhadores internacionalmente, como proposto por Marx e Engels em 1864.

* Doutorando em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC. Professor do


colegiado de Serviço Social da Faculdade de Mauá-SP, Brasil. End. eletrônico: [email protected]
** Doutora em Ciências Sociais. Professora da Universidade Federal de São Paulo, campus Baixada
Santista, Santos-SP, Brasil. End. eletrônico: [email protected]

192 • Recebido em 06 de maio de 2017. Aprovado em 09 de junho de 2017.


Após a vitória bolchevique, os trabalhadores europeus e de outros continentes
passaram a se reorganizar contra a ordem capitalista. Sob a orientação ideológica
de Outubro, criaram partidos comunistas, buscaram intercâmbios entre outras
nações, promoveram atividades sobre a situação conjuntural e estrutural em
relação à ordem capitalista etc. Todas estas ações foram enriquecidas a partir, de
1919, nos congressos realizados na III Internacional Comunista1, onde surgiram
“análises e resoluções, que possibilitam detalhar o surgimento e desenvolvimento
de teses ligadas à classe trabalhadora mundial. Dentre estas teses, a questão racial
viria a ter, por iniciativa de Lenin, um papel central” (Chadarevian, 2007: 77).
Neste artigo, procuramos recuperar a influência das teses de Outubro acerca
da questão racial sobre o movimento negro estadunidense, a luta anticolonialista
na África e a posição dos comunistas do Brasil, cujo Partido fora criado em 1922,
no bojo da Revolução Bolchevique.
Um pouco antes do processo revolucionário, em O direito das nações à autode-
terminação, de 1914, Lenin (1976) defende a autodeterminação dos povos face à
opressão dos países mais desenvolvidos. Embora as lutas dos oprimidos sejam de
natureza nacionalista, o autor as considera legítimas e, em virtude de o desenvol-
vimento das forças produtivas das nações serem menores, em comparação com
as grandes, era necessário defender o crescimento no interior daquelas. Este é
o ponto de partida para as formulações de Lenin sobre a situação dos negros,
especialmente nos Estados Unidos.
Em 1918, no texto Capitalismo e agricultura nos Estados Unidos da América:
novos dados sobre as leis de desenvolvimento do capitalismo na agricultura, o pensador
russo denuncia a situação dos afro-americanos (Lenin, 1980). Ao examinar o
capitalismo estadunidense, o autor apreendeu a natureza do desenvolvimento
das forças produtivas e do patamar em que o modo de produção capitalista se
encontrava naquele país que difundia a ideia de uma democracia consolidada,
responsável em assegurar a igualdade, sem distinção de “raça”, onde todos os
cidadãos poderiam gozar de liberdade e oportunidade. Todavia, diz o autor, não é
esta a situação dos negros no Sul do país. Ao comparar o percentual de negros
e brancos naquela região, demonstra que embora o número de descendentes
de africanos escravizados seja menor em relação ao de brancos, são eles que
mais sofrem com a dominação e opressão. Lenin expõe a situação em que os
negros se encontram, desde as condições materiais, passando pela violência, as
desigualdades, a degradação e o pauperismo, que ele assemelha aos camponeses
russos (Lenin, 1980).

1
Ver Broué (2007), em especial o Tomo I.

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O autor preparava, em 5 de junho de 1920, o famoso documento Teses
preliminares: as questões coloniais e nacional, para o II Congresso da Internacional Co-
munista, em que afirma que os “partidos comunistas devem prestar ajuda direta
aos movimentos revolucionários das nações dependentes e desfavorecidas (por
exemplo, a Irlanda, os negros Americanos, etc.)” (Lenin, 1974: 171). E a partir
das contribuições de Lenin, em 30 de novembro de 1922, no IV Congresso da
Internacional Comunista, foi defendida a tese Sobre a questão negra. Ali se analisa
o desenvolvimento do movimento revolucionário nos países coloniais e semi-
-coloniais, se denuncia as atrocidades propagadas no período escravagista e após a
abolição da escravatura, como por exemplo, os linchamentos – provável referência
à Ku Klux Klan – e as perseguições aos negros. A Tese enaltece a resistência dos
africanos ao escravismo, principalmente a luta dos africanos nos Estados Uni-
dos. O documento explicita a prática do racismo que perdurou naquele país. A
questão negra tornou-se, portanto, parte integrante da revolução mundial. Logo,
a Internacional se comprometeu em apoiar todas as formas de movimento negro
que visassem minar ou enfraquecer o capitalismo e o imperialismo ou impedir
a sua expansão (Comintern, 2000).
Com as preocupações de Lenin, as ações preconizadas pela Internacional
Comunista e a vitória da Revolução de Outubro, não demorou muito para que
as proposituras do movimento comunista russo encontrassem ecos em outras
partes do mundo, inclusive nos Estados Unidos. Um dos representantes mais
importantes do movimento pan-africanista norte-americano W.E.B. Du Bois se
entusiasmou pela União Soviética após uma viagem à região em 1926, chegando
a afirmar: “se isso é bolchevismo, então eu sou bolchevique” (Adi, 2017: s/p).

A receptividade da Revolução Bolchevique nos Estados Unidos


A influência da Revolução Russa nos Estados Unidos, em especial no
movimento negro, só pode ser entendida se concatenarmos com os amplos
lastros de lutas travadas pelo(a)s negro(a)s estadunidenses desde o momen-
to em que este(a)s foram traficado(a)s. As diversas estratégias de resistência,
durante e após a escravidão, é o ponto de partida dos laços entre os africanos
dos EUA, resultando num amplo movimento denominado Pan-Africanismo2. A

2
O movimento pan-africanista teve sua origem nas lutas dos africanos na diáspora, contra a
escravatura e o colonialismo; e contra o racismo praticado aos africanos. Embora pan-africanismo
e pan-africano tenham sido utilizadas no final do século XIX, tal movimento remete às práticas
bem anteriores contra a escravidão e a opressão, em benefício de organizações pela abolição da
escravatura e pela propagação da união entre africanos espalhados no mundo. Dentre as principais
referências do movimento pan-africano, destacamos: Edward W. Blynden (1832-1912), W.E.B. Du
Bois (1868-1963), Marcus Garvey (1887-1940), George Padmore (1903-1959), Kwame Nkrumah
(1909-1972), Aimé Césaire (1913-2008). A este respeito, ver Boahen (2010) e Mazrui; Wondji (2011).

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particularidade do desenvolvimento do capitalismo nos Estados Unidos conso-
lidou organizações que impulsionaram as lutas, como por exemplo, a presença
de escritore(a)s, produções literárias para a conscientização de negro(a)s. Esta
particularidade também impulsionou, de forma peculiar, uma política racista
norte-americana, sobretudo com a lei de segregação e a criação dos guetos, o
que, por sua vez, tornou possível, com muita luta, a criação de universidades,
sindicados, agremiações, inclusive de cariz religiosa, para responder à realidade
do(a)s afro-americano(a)s.
São emblemáticas as formas de organização do(a)s negro(a)s em solo
estadunidense. Destacam-se Frederick Douglas (1818-1895), com a luta pela
abolição da escravatura, e W.E.B. du Bois, responsável por criar, em 1906, “o
Movimento do Niágra, juntamente com oito intelectuais negros” (Fabre, 1977:
182). Du Bois almejava tanto a recuperação do vigor e da agressividade para
o protesto negro, como a retomada da campanha pela igualdade civil (Fabre,
1977). Por sua vez, Marcus Garvey, será outro representante na luta contra a
opressão do(a)s negro(a)s norte-americano(a)s na busca do “orgulho negro”,
despertando interesse de milhões de negro(a)s americano(a)s pela África depois
da Primeira Guerra Mundial” (Ralston, 2010: 876). Garvey, em 1914, quando
retorna à Jamaica, cria a Universal Negro Improvent and Conservation Association and
African Communities League, conhecida por UNIA, com o propósito de promover
a emigração de negro(a)s para a África (Raslton, 2010).
Dentre as instituições consolidadas pelos afro-americanos, está a Liga
Urbana, de 1910. Financiada pelos industriais do Norte, tinha o objetivo de
assegurar a igualdade no mercado de trabalho e a “qualificação” profissional de
trabalhadore(a)s negro(a)s. Segundo Fabre, o Brotherhood of Sleeping (Irman-
dade do Sono) foi o primeiro sindicato negro criado, em 1925, por A. Philip
Randolph, com a finalidade de combater a discriminação no emprego, sobretudo
nas fábricas de armamento (Fabre, 1977: 183). A militância inicial de A. Philip
Randolph foi tão importante na luta contra a opressão, que ele chegou a ser
chamado de “Lenin do Harlem”, devido à sua orientação leninista.
Os intentos acima demonstram que havia uma tentativa de estabelecer uma
união entre os negros norte-americanos a fim de tornar mais potentes as lutas
travadas contra o racismo, a discriminação e a desigualdade. Foram muitas as
organizações com esta perspectiva, tais como a Frente Unida dos Negros, criada
em 1936; o Negro American Labor Council, de 1960, que visava combater a dis-
criminação nos sindicatos (Fabre, 1977). Somente em 1942 foi criado o CORE
(Congresso Nacional pela Igualdade Racial), com a participação de intelectuais
e segmento da classe média negra, responsáveis pela propagação, em 1967, do

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slogan “Black Power”3.
Estes segmentos não adotaram uma perspectiva explicitamente de orientação
comunista4. Sua finalidade era o enfrentamento do racismo, da discriminação e
da desigualdade, mas, ao mesmo tempo, cada movimento expressava a conjun-
tura (interna e externa) e, à medida que as contradições de classes se acirravam,
a natureza do movimento tomava proporções para a esquerda ou para a direita.
É o caso da The African Blood Brotherhood (Irmandade do Sangue Africano),
organização de inspiração socialista, que emergiu dos conflitos do “Verão Verme-
lho”, em 1919, após as explosões das revoltas de negros que retornaram da guerra
e mantiveram as armas e combateram as práticas do racismo e a discriminação
(Sustar, 2012a). De acordo com Lee Sustar, no ano de 1919 houve uma onda
de greves no país, mas nada comparável ao “Verão Vermelho” daquele ano, que
“expôs as enormes divisões raciais na classe trabalhadora americana”. Em pelo
menos 25 grandes cidades foram registrados confrontos violentos por “distúr-
bios raciais”. Apesar de 500 negro(a)s mortos, os afro-americanos resistiram aos
ataques truculentos do estado racista (Sustar, 2012a).
Nesse clima se consolida a The African Blood Brotherhood, cujo principal
incentivador foi Cyril Briggs. Este, no entusiasmo com a Revolução Bolchevique,
criou um jornal para abordar a situação do(a)s negro(a)s nos Estados Unidos.
Procurou se aproximar do Partido Socialista, precursor do Partido Comunista
norte-americano, mas sua Irmandade foi inicialmente considerada separatista
pelos socialistas, que afirmaram não terem “‘nada de especial’ para oferecer aos
trabalhadores negros” (Sustar, 2012a). Na prática, o(a)s negro(a)s foram vistos
“apenas como trabalhadores e não como uma minoria oprimida”. Ignoraram
tanto a luta contra os linchamentos e o racismo, como também não consideraram
o enorme movimento nacionalista negro que explodiu após a Primeira Guerra
Mundial (Sustar, 2012a). O ânimo com a Revolução de Outubro levou também
à criação, em setembro de 1919, do Partido Comunista, como substituto do So-
cialista. Porém, a plataforma e a declaração de princípios comunistas nada disse
sobre o(a)s trabalhadore(a)s negro(a)s estadunidenses.

3
A Igreja teve papel importante na militância do(a)s negro(a)s, como por exemplo a Southern
Christian Leadership Conference que, após o boicote aos transportes públicos realizado em
Montgomery em 1957, ajudou a divulgar as ideias de Martin Luther King. Mais tarde, vêm as
contribuições de Malcolm X e a formação dos Panteras Negras na luta contra a discriminação,
o racismo e a desigualdade étnico-racial. A respeito destes movimentos, consultar Fabre (1977).
4
O mesmo A. Philip Randolph, o “Lenin do Harlem”, com o passar do tempo se tornou um
“burocrata” da AFL – Federação Americana do Trabalho. Entidade que tinha uma política de
alinhamento com a direita e fechava acordos com o setor patronal. O “Lenin do Harlem” foi
responsável pelo cancelamento da Marcha sobre Washington, em 1941. Sua atuação em favor da
direita, o transformou num conservador anticomunista. Ver Sustar (2012).

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Isto mudaria após as orientações de Lenin. Houve uma aproximação dos
comunistas com Briggs levando à possibilidade de uma organização de esquerda
com vistas a combater o racismo, ao mesmo tempo em que se fortaleceria a luta
de classes. Contribuiu para esta mudança o acúmulo de lutas travadas pelos afro-
-americanos, sobretudo desencadeadas em Chicago e em Nova York, particular-
mente no Harlem5, bairro de onde surgiram inúmeros militantes do movimento
socialista negro. A partir destas lutas, a Internacional Comunista passou a ver a
questão negra numa perspectiva pan-africana, ou seja, “se os Africanos tinham
que enfrentar problemas comuns, estavam implicados numa luta comum, como
se os seus destinos estivessem de certa forma ligados. O Comintern conservou
esta abordagem, com algumas reservas, até ao seu VII congresso, em 1935” (Adi,
2017).

Ecos africanos da Revolução Bolchevique


Em relação ao continente africano, a receptividade da revolução russa se deu
por dois caminhos: 1) veio das teses de Lenin e dos temas debatidos na III Inter-
nacional Comunista; e 2) por meio da influência do movimento pan-africano6,
sobretudo com a geração dos anos 1930 aos 1970. O pan-africanismo se estendeu
aos estudantes negros que passaram a frequentar as universidades europeias. Das
organizações de estudantes africanos, que já tematizavam a situação dos negros
e africanos na Europa, saem os quadros do pós anos 30, que tomaram em seus
ombros a luta pela libertação em África7.
Segundo Thiam e Mulira, as “relações da África com os países socialistas
remontam à época durante a qual, pouco após a revolução bolchevique de 1917,
Lenin prometeu a cooperação do jovem Estado soviético a todos os povos co-
lonizados” (2011: 965). A União Soviética e os países alinhados à sua política
como, por exemplo, a China e Cuba, passaram a apoiar as lutas pela libertação
em África, inclusive depois das conquistas de independência.
Entre os anos de 1920 e 1930, a Comintern8 construiu estratégias para pe-
netrar no seio dos movimentos de libertação em África, por meio das lideranças

5
Mesmo bairro que recepcionou Fidel Castro em 1960, na ocasião de sua ida à Assembleia Geral
da ONU. Neste evento, Harlem foi considerado capital dos trabalhadores do mundo (Mealy, 1995).
6
Sobre o movimento pan-africanista na África, consultar Harris e Zeghidour (2011).
7
É o caso, em Angola, de Agostinho Neto (1922-1979); em Gana, de Kawame Nkrumah (1909-1972);
em Moçambique, de Samora Machel (1933-1986); na África do Sul, de Stive Biko (1946-1977); na
República Democrática do Congo, de Patrice Lumunba (1925-1961); no Burkina Faso, de Thomas
Sankara (1949-1987); na Martinica, de Frantz Fanon (1925-1961); e, no Senegal, de Cheikh Anta
Diop (1923-1986) e Léopold Sédar Senghor (1906-2001).
8
Adotamos os argumentos políticos e linguísticos de Pierre Broué (2007): Comintern é acrônimo
da Internacional Comunista, assim mesmo no gênero feminino.

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africanas, pan-africanas e de outras localidades. Dentre estas lideranças, repre-
sentantes de expressão no movimento negro internacional, destacamos Syvester
Williams, antilhano, influenciado por Marcus Garvey, e Kwame Nkrumah, que
recebeu a influência de W.E.B. du Bois e, fortemente, a de Lenin9.
Em 1921, logo após a convocação de uma reunião realizada pelo Conselho
Executivo da III Internacional, foi deliberado que o Partido Comunista Francês
criaria um Conselho Comunista Colonial, responsável por provocar distúrbios
nas colônias europeias, na África e em outros continentes. No ano seguinte, 1922,
já havia delegados africanos no IV Congresso da Internacional Comunista. A
partir daí, o movimento comunista torna-se mais robusto em África, resultando
na formação da Liga Contra o Imperialismo e pela Independência Nacional,
patrocinado pelo Partido Comunista Francês.
A ascensão do fascismo e a Segunda Guerra interferiram na política de
cooperação do movimento comunista europeu nas lutas de libertação. Todavia,
a partir de 1945, a cooperação é retomada e o sucesso do marxismo foi tamanho
que, tanto na África francófona e anglófona como em outras partes do continente
africano, havia organizações consolidadas capazes de edificar lutas para derrotar
os países imperialistas. A União Soviética se comprometeu em contribuir10 para
o sucesso da revolução e assinou um acordo com vistas a manter a relação com
os revolucionários africanos: além da formação de quadros, forneceu professo-
res e pesquisadores russos para atuar nas universidades e centros de pesquisas.
Formaram-se 30.000 africanos no ensino superior na URSS (Thiam; Mulira,
2011).
Sob a influência do marxismo e da revolução russa, houve a articulação
dos movimentos africanos contra o imperialismo e o neocolonialismo. A coo-
peração da Comintern e a participação de lideranças, inclusive do movimento
pan-africanista, tornaram expressivas as lutas travadas em África, principalmente
porque enriqueceram a perspectiva de um horizonte para além do capital, daí a
importância da articulação dos movimentos africanos contra o imperialismo e
o neocolonialismo.
Vários fatores contribuíram para malograr a perspectiva de transformação:
burocratização, traições nas organizações e tantos outros que o espaço deste artigo
não permite aprofundá-los. Porém, não podemos desconsiderar o forte empre-

9
Sobre a forte influência de Lenin, ver o artigo de Felipe Paiva (2017) nesta edição de Lutas Sociais,
vol. 21, n. 38.
10
Os africanos tiveram também apoio da China e do Vietnã, por exemplo, receberam “técnicas de
guerrilha, contribuindo para a conquista da independência de alguns Estados, como o Zimbábue”
(Thiam; Mulira, 2011: 976).

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endimento do capital, isto é, das forças imperialistas para aniquilar as revoluções,
como foi o caso em Angola. Se a URSS e Cuba apoiaram os revolucionários
angolanos, em especial o Movimento Pela Libertação de Angola (MPLA), os Es-
tados Unidos sustentaram a contrarrevolução encabeçada pelas Frente Nacional
de Libertação de Angola (FNLA) e União Nacional para a Independência Total
de Angola (UNITA). Este financiamento expressivo contribuiu para a derrota da
revolução socialista no continente africano. Os sucessivos golpes de Estado afas-
taram as lideranças socialistas africanas. Foram assassinados Patrice Lumumba, à
época ministro do primeiro governo do então Zaire; Amilcar Cabral e Eduardo
Mondlane, que lutaram pela libertação de Guiné-Bissau e Moçambique. Kwame
Nkrumah, presidente de Gana, e Milton Obote, primeiro ministro de Uganda,
foram debelados. Os antigos colonizadores mantiveram seu controle sobre os
países que empreenderam a luta de libertação. Com a capa informal da igualdade
jurídica e “fora” do continente africano, a burguesia externa – que passou a fi-
nanciar a burguesia interna – conservou o seu domínio sobre os africanos, tanto
no âmbito científico e cultural como no militar e econômico. Os “colonizados
de ontem se tornaram os subdesenvolvidos de hoje. Da categoria de selvagens
e de primitivos a serem civilizados, eles ganharam, depois da independência, as
condições de subdesenvolvidos a serem desenvolvidos” (Serrano e Munanga,
1995: 71).
Apesar das derrotas, estas lutas pela independência foram importantes.
Demonstraram que o capital receia movimentos que colocam em cheque sua
forma de intercambio. É exatamente aí que reside a vitória da luta dos povos
africanos. As querelas impulsionadas pelos movimentos negros africanos coloca-
ram na ordem do dia o horizonte da superação do capital e demonstraram que é
possível transformar a sociedade, embora, seja difícil e árduo. A história de luta e
resistência dos africanos revolucionários, inspirados no ideário da Revolução de
Outubro, nos convida a aprender que é possível resistir e, mais ainda, nos lança
o desafio de (re)pensar outras e novas formas de lutar.

Sinfonia de 1917: greve geral no Brasil e a Revolução Russa


Como em solo estadunidense ou como nas lutas de libertação em África, no
Brasil também se ouviu os estrondos da Revolução de Outubro e num contexto
político bastante caro ao proletariado. As agitações operárias de julho de 1917 em
São Paulo pareciam em sintonia com os acontecimentos que sacudiam a Rússia
czarista. Aqui também, o(a)s trabalhadore(a)s dos incipientes setores da indústria
e do comércio se colocaram em movimento e fizeram a primeira grande greve
operária da história brasileira. O movimento operário, em especial o paulista se
levantou contra o violento regime de trabalho da época.

À margem de Outubro... Góes, W. L. e Gonçalves, R. • 199


Tratava-se de um proletariado que vagarosamente se constituía na mais
profunda heterogeneidade. Analfabeto(a)s e sem preparo técnico, o(a)s
trabalhadore(a)s estavam sujeito(a)s aos baixíssimos salários e a condições de
trabalho das mais terríveis. Naquele período não havia espécie alguma de legislação
trabalhista, levando a jornadas extensas de 10h-12h, incluindo mulheres e incor-
porando crianças desde a idade de 6 e 7 anos (Basbaum, 1976). Ao contingente
de miseráveis “nacionais”, composto por ex-escravizado(a)s, trabalhadore(a)s
que fugiam da seca do nordeste e agregado(a)s expulso(a)s do campo, somou-
-se uma população diversificada de imigrantes, parte dela com fortes tradições
de lutas operárias. A chegada deste(a)s trabalhadore(a)s contribuiu não apenas
com o crescimento numérico do proletariado brasileiro, mas sobretudo com a
força política da organização operária. Por melhores condições de trabalho, o
movimento de 1917, sob influência anarquista, conseguiu colocar uma massa
proletária nas ruas.
Frente à combatividade do operariado, a classe dominante mostrou-se inábil
em assegurar sua hegemonia. Nem a costumeira prática de repressão, com níveis
notáveis de brutalidade, nem o fechamento de sindicatos ou a prisão de líderes
foram capazes de conter a organização proletária. Ao contrário, acuada, a burgue-
sia foi forçada a negociar e a ceder um aumento de 20% sobre os salários. Além
disso, o(a)s operário(a)s conseguiram a libertação dos presos e a não demissão
do(a)s grevistas (Beiguelman, 1981). O(a)s operário(a)s assumem a tarefa de
organizar a massa proletária. O que não foi tão simples: passada “a mobilização,
o governo investiu contra os sindicatos cuja atividade florescia sob o impulso da
greve, especialmente entre os ferroviários da São Paulo Railway. Em setembro de
1917, a repressão se abateu sobre as lideranças operárias” (Fausto, 1977: 205).
Todavia, a greve de 1917 entrou para a história como a primeira grande
conquista operária no Brasil. Estes acontecimentos mostraram a importância da
organização da classe operária. A Revolução ganhou destaque nos jornais, nos
sindicatos, no Congresso e nas ruas (Moniz-Bandeira et alii, 1967). Uma das
consequências diretas das lições daquele ano foi a criação, em 1922, do Partido
Comunista do Brasil. No entanto, um espectro rondava os comunistas brasileiros,
sem que sequer percebessem: o fantasma da escravidão negra...

Sem ecos de Outubro: os comunistas do Brasil e a questão racial


A história da escravidão no Brasil é marcada por resistências do povo negro
para romper com o cativeiro11. As lutas contra a escravidão também fizeram parte

11
A este respeito, consultar o trabalho pioneiro de Clóvis Moura, Rebeliões da senzala: quilombos,
ressurreições, guerrilhas (2014), cuja primeira edição data de 1959; e Quintão (2002).

200 • Lutas Sociais, São Paulo, vol.21 n.38, p.192-207, jan./jun. 2017.
de campanhas do ainda inexpressivo proletariado brasileiro no final do século
XIX, que comprou alforrias, criou escola noturna gratuita para os libertos, par-
ticipou das campanhas abolicionistas (Moniz-Bandeira et alii, 1967). Todavia, a
participação operária na luta pela abolição não se traduziu em uma inserção dos
trabalhadore(a)s negro(a)s, agora libertos, no proletariado em formação. Sob o
capitalismo “velhos estereótipos foram revitalizados e surgiram outros novos que
identificavam o ‘liberto’ como ‘negro’ e ‘negro’ como ‘vagabundo’” (Fernandes,
1978: 81). A indústria capitalista foi “um agressivo e grandioso misturador de
pessoas”, ao mesmo tempo em que foi “agente de discriminação racial e étnica,
além de gerador de doutrinas e estereótipos raciais” (Ianni, 1978: 123). A mão-
-de-obra negra passou a ser desqualificada e foi facilmente substituída pela do
branco europeu, eleito pela classe dominante como tipo ideal representativo da
superioridade étnica. Na outra ponta, um tipo negativo e inferior foi atribuído
à população negra (Moura, 1988). Uma postura que coincidia com as teorias
raciais do determinismo biológico propagadas no século XIX. Schwarcz (1994),
ao analisar os discursos dos homens de ciência do final daquele século e do início
do seguinte, evidencia o quanto os argumentos científicos foram fundamentais
para justificar as hierarquias sociais consolidadas e defender a supremacia racial.
Do ponto de vista ideológico, “o negro e outras camadas não-brancas não foram,
assim, incorporados a esse proletariado incipiente, mas foram compor a grande
franja de marginalizados exigida pelo modelo do capitalismo dependente que
substituiu o escravismo” (Moura, 1988: 65).
A questão racial não foi percebida desta forma pelos dirigentes comunistas.
Conquistada a abolição, o(a)s ex-escravizado(a)s foram deixado(a)s à própria
sorte. Pairava o sentimento de dever cumprido. Talvez isto tenha contribuído
para as interpretações que os comunistas fizeram da questão racial, mesmo
muito tempo depois. Em O ano Vermelho, por exemplo, lê-se logo nas primeiras
páginas o reconhecimento da luta dos escravizados “a cuja participação se deveu,
é verdade, a vitória da abolição, o maior movimento de massas do Brasil”. No
entanto, a mesma frase é precedida de uma observação acerca do caráter demo-
crático da República que havia traduzido “a ascensão conjunta, no plano social,
do pequeno-burguês, do proletário e do homem de cor” (Moniz-Bandeira, 1967:
10). Os camaradas comunistas acreditaram que no Brasil havia uma democracia
racial.
Leôncio Basbaum, por exemplo, descreve como os negros, agora “cidadãos
livres”, foram jogados “à rua, sem terra, sem qualquer espécie de instrução, sem
profissão e sem teto e, o que é mais importante, sem meios e possibilidades ou
possibilidades de adquirir o mínimo para a sua alimentação” (1976: 179). No
entanto, o historiador atribui aos “cidadãos livres” uma sensível influência em
vários setores da sociedade, como é caso do aumento da miscigenação, que, aliás,

À margem de Outubro... Góes, W. L. e Gonçalves, R. • 201


já ocorria desde o Brasil colônia, quando os “primitivos colonizadores, à falta de
mulheres12 [sic] entre os novos povoadores, para não interromper suas ativida-
des reprodutoras, exercidas aliás em grande escala, cruzavam [sic] com índias e
negras escravas” (Basbaum, 1976: 179). O mesmo ocorreu com os senhores de
terras e de escravos. Quando a República foi proclamada, complementa o autor,
“metade da população brasileira era de cor” (1976: 179).
A abolição teria intensificado da mistura de raças, pois, escreve o comunista,
agora eram “todos livres”. E conclui: o “que importa observar no momento é
que essa mistura de cores e raças impediu que o preconceito racial assumisse as
formas violentas e odiosas que caracterizam hoje as relações raciais nos Estados
Unidos e na África do Sul” (Basbaum, 1976: 180). Isto não significa, porém, o não
reconhecimento das precárias condições impostas a trabalhadore(a)s, negro(a)s.
Pelo contrário, ao longo de inúmeras linhas são descritas as condições degra-
dantes a que foram submetido(a)s este(a)s trabalhadore(a)s que, afastado(a)s dos
melhores trabalhos, se transformaram em mão-de-obra abundante e barata para
o capital. Segundo o historiador, foi esta “discriminação em relação à chance de
emprego e salários” que “impediu em última análise que o negro se integrasse
na vida política nacional, fazendo com que ele se sentisse um estranho dentro de
sua pátria, por longos anos” (1976: 181). Para o(a)s negro(a)s, continua o autor, o
problema da integração racial se tornou mais importante que a integração social.
Em suas palavras,
depois da abolição, o negro passou a sentir mais os prejuízos da cor que a ex-
ploração de classe. Para ele, todos os males lhe provinham do fato de ser negro
e não de ser um proletário. Daí a sua ausência dos sindicatos e dos movimentos
políticos da classe operária, onde só começou a militar com alguma evidência,
depois da Primeira Guerra. Durante um longo período, a única perspectiva de
progresso social do negro, embora ele não o soubesse, seria subir à categoria de
operário, integrar-se no seio da nova classe, onde não havia preconceitos raciais e
onde encontrava aspirações comuns (Basbaum, 1976: 181).

Os problemas raciais se resolveriam definitivamente por meio da luta do(a)


s trabalhadore(a)s negro(a)s e branco(a)s em conjunto. Esta formulação, dema-
siada abstrata, desconsiderou o quanto o racismo estava entranhado na emer-
gente classe trabalhadora e ignorou que o proletário branco brasileiro buscou
assegurar como pôde sua identificação com o senhor de escravos, perpetuando
a ideia de superioridade da raça branca. Nas considerações de Basbaum, há um
deslocamento do problema: é o(a) negro(a) que não consegue se adaptar e sente

12
O autor parece considerar mulheres apenas as brancas.

202 • Lutas Sociais, São Paulo, vol.21 n.38, p.192-207, jan./jun. 2017.
os prejuízos da cor e, pour cause, não se politiza, não participa das organizações
operárias. Nenhuma palavra acerca da discussão racial ou da falta dela no interior
do jovem Partido Comunista do Brasil, que nasce bastante alinhado às propostas
inovadoras de Moscou.
Ora desde 1919, com a retomada da III Internacional havia um esforço
muito grande, em especial por parte de Lenin, de debater a questão racial e de
por fim à opressão das minorias. Debate, aliás, que remonta ao final do século
XIX, quando vários marxistas perceberam “que o imperialismo subjugava cul-
turas diferentes sob o pretexto de inferioridade racial, mas com o objetivo na
realidade de tirar destes povos proveito econômico” (Chadarevian, 2007: 81).
Se para estes, o problema racial se resolveria eliminando as contradições de
classe, desde 1914 Lenin avança ao fazer a distinção entre dependência política
e dependência econômica, o que o levou a considerar que a opressão às minorias
não se resolveria simplesmente por decreto.
No I Congresso da Internacional Comunista esta questão volta à tona. É
destacada por Lenin “a falsa promessa de igualdade racial, religiosa e sexual das
democracias burguesas” (Chadarevian, 2007: 83). Como vimos, às vésperas da
Revolução de Outubro, o líder revolucionário estava às voltas com o capitalismo
estadunidense. É inútil, escreve Lenin,
discorrer sobre a situação degradante à qual eles [os negros] estão submetidos:
neste aspecto, a burguesia americana não é melhor que a de outros países. Após
ter “libertado” os negros, ela se esforçou, tomando por base o capitalismo “livre”
e republicano-democrático, por fazer o possível e o impossível para oprimir os
negros da maneira mais vil e escandalosa (Lenin, 1980: 18).

Em 1921, ano que antecede a criação do Partido Comunista do Brasil (PCB),


ocorreu o III Congresso da Comintern, onde pela primeira vez o racismo contra
o(a) negro(a) é compreendido como “um problema mundial e um fenômeno que
deve ser analisado separadamente da questão da classe” (Chadarevian, 2007: 84).
No Congresso seguinte, os debates sobre a questão negra ganhariam centralidade.
As seções da Internacional Comunista foram chamadas a contribuir previamente
com esta discussão. O PCB, partido recém-criado, respondeu a este chamado
afirmando “que o racismo era uma questão ‘absolutamente estranha ao Brasil,
onde jamais se manifestaram quaisquer preconceitos de raça’” (Buonicore, 2015:
s/p). Havia negros no Brasil, mas não uma questão negra.
Enquanto a Internacional Comunista avançava no debate e nas resoluções
acerca do enfrentamento do racismo em escala mundial, no Brasil as análises do
jovem Partido Comunista estavam impregnadas pela ideologia da democracia
racial. Esta posição do Partido lhe rendeu críticas de outras Seções Comunistas

À margem de Outubro... Góes, W. L. e Gonçalves, R. • 203


da América Latina. Os camaradas brasileiros foram acusados de terem uma ideia
falsa sobre a realidade existente no terreno da democracia formal. O PCB se
esforçava em mostrar sua própria organização interna como exemplo de demo-
cracia racial, com a participação de negros tanto na base como na direção do
partido. Definitivamente, não havia no país um problema racial. A cegueira do
Partido, escreve Buonicore,
levou os comunistas brasileiros a se atrasarem em levantar bandeiras específicas
contra a discriminação dos negros no trabalho e mesmo na sociedade. Naquele
tempo a população negra – inclusive os membros das camadas médias – era ex-
cluída de vários espaços públicos, como hotéis, bares, parques e clubes. Situação
que perdurou até recentemente (2015: s/p).

Até o final da década de 1920, os comunistas brasileiros, no que diz respeito


à questão racial, ficaram à margem de Outubro. Não se atentaram às principais
ideias difundidas pela Internacional Comunista. No entanto, os congressos do
período foram bastante densos teórica e politicamente. Em particular, o IV
Congresso, de 1922, mesmo ano de fundação do PCB. Ali, reconheceu-se que
a questão negra era parte integrante da revolução mundial e adotou-se a posi-
ção de lutar pela igualdade racial de negro(a)s e branco(a)s, por salários iguais e
igualdade de direitos sociais e políticos. Foi neste Congresso que a Internacional
Comunista considerou essencial apoiar todas as formas de lutas do movimento
negro que visam combater o capitalismo. Os comunistas do Brasil, ao omitirem
o racismo, acabaram por negligenciar os determinantes raciais da exploração
capitalista de classe no país, desconsideraram que racismo e capitalismo estão
articulados entre si, alimentam-se e se fortalecem mutuamente. Nesta cegueira,
não tentaram alianças com os movimentos negros que surgiam para fazer frente
ao racismo. Diferentemente dos comunistas estadunidenses que, sob a orientação
de Lenin, se vincularam aos movimentos negros, aqui os movimentos negros
foram acusados de direitistas nacionalistas ou de submissos aos interesses da
burguesia. Ora, não estariam o(a)s negro(a)s brasileiro(a)s simplesmente em
busca de terra, trabalho e pão? Tal parece ser lema da mais importante organi-
zação negra no país, a Frente Negra Brasileira13, que surge no início dos anos
1930. Mesmo período em que, no tocante à questão racial, os ecos de Outubro
começaram a ser ouvidos pelos comunistas brasileiros. A sinfonia revolucionária

13
A este respeito, consultar dentre outros, Moura (1989). A FNB recebia convites de filiação de
ideologias à esquerda e à direita e argumentava manter-se neutra. Jamais foi um bloco monolítico
ou livre de dissensões: “nela militavam negros monarquistas, fascistas, socialistas e comunistas,
por meio de facções organizadas ou não” (Domingues, 2005: 283). A chegada de Vargas muda o
curso frentenegrino. Assunto para outro artigo.

204 • Lutas Sociais, São Paulo, vol.21 n.38, p.192-207, jan./jun. 2017.
contra o racismo começava finalmente a tocar por estas bandas, mas com notas
e acordes ainda muito dissonantes...

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À margem de Outubro... Góes, W. L. e Gonçalves, R. • 207


Clóvis Moura: delineamentos
gerais para a superação do
racismo à brasileira
Weber Lopes Góes* e Renato Pereira Correia**
Resumo:
O artigo apresenta alguns pontos da trajetória política e da produção teórica do intelectual
Clóvis Moura a fim de fomentar pesquisas sobre sua produção bibliográfica. Neste percurso, a
desconstrução do ideário da “democracia racial”; a manifestação religiosa do africano no Brasil
enquanto forma de organização/resistência do(a) negro(a) brasileiro(a); a crítica ao conceito
de aculturação e o culturalismo são aspectos privilegiados para a exposição e análise da obra
do autor.
Palavras-chave: Clóvis Moura; Democracia Racial; Ideologia do Racismo; Aculturação.

Clóvis Moura: General Outline for Overcoming Brazilian Racism


Abstract:
This article presents some aspects of the political trajectory and theoretical production of
the intellectual Clóvis Moura in order to foment research on his bibliographic production. The
deconstruction of the idea of “ racial democracy,” the use of African religion as a form of orga-
nization and resistance of black Brazilians, and the criticism of the concepts of acculturation
and culturalism are some aspects of the author’s work that are highlighted.
Keywords: Clóvis Moura; racial democracy; racist ideology; acculturation.

Introdução
Intelectual orgânico da classe trabalhadora, Clóvis Moura (1925-2003), de
maneira insistente, mergulhou nos estudos sobre a realidade brasileira, produziu
teoricamente com o objetivo de alicerçar os movimentos sociais. Nascido em
1925 no Estado de Piauí, oriundo de família de classe média-baixa, se colocou
ao lado do oprimido e empreendeu seus esforços teórico-práticos na crença da
superação da ordem vigente. Filho de pai branco e mãe negra, adotou um posi-
cionamento político no âmbito identitário e afirmava ser negro.

* Mestre em Ciências Sociais pela UNESP/Marília; professor do colegiado de Serviço Social da


Faculdade de Mauá-SP, Brasil. End. eletrônico: [email protected]
** Mestre em Antropologia pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC/
SP, São Paulo-SP, Brasil. End. eletrônico: [email protected]

174 • Recebido em 12 de dezembro de 2014. Aprovado em 20 de fevereiro de 2015.


Após a mudança de sua família para Natal, Rio Grande do Norte, onde
residiu de 1935 a 1941, iniciou sua militância política no movimento estudantil,
escrevendo artigos no jornal O Potiguar, veículo de comunicação do então Grêmio
Estudantil, fundado no Colégio Santo Antônio, denominado Grêmio Cívico-
-Literário “12 de Outubro” (Mesquita, 2003). Em 1942, ao residir em Salvador,
começou a atuar no Partido Comunista, exercendo a função de jornalista no
diário do Partido intitulado O movimento. Foi eleito deputado estadual em 1947,
porém, com a cassação do Partido Comunista sua candidatura foi impugnada.
Segundo Mesquita (2003), este acontecimento contribuiu para que, em 1949,
Moura fosse para São Paulo e atuasse na Frente Cultural do PCB, iniciando seus
contatos com personagens expressivos do Partido, como Caio Prado Júnior.
Datam deste período o início de seus estudos sobre as lutas do africano no
Brasil, a contribuição do negro à formação social brasileira e as contradições de
classes a partir da colonização. Procurou compreender as determinações sociais
que dão sustentação ao racismo no modo de produção capitalista. Seu livro Rebe-
liões da Senzala, publicado em 1959, foi um trabalho que nasceu “clássico”. Com
densa pesquisa sobre os quilombos e outras resistências, demonstrou a rebeldia
do negro brasileiro no interior das lutas sociais do Brasil, desconstruindo a visão
oficial do africano como “passivo” no período do escravismo.

Contra a democracia racial


Ao contrário do que se propagou, Gilberto Freyre não cunhou o termo
“democracia racial”1, como explica Antonio Sérgio Guimarães (2002). Trata-se
de um pacto criado na ditadura varguista visando incluir o Brasil na constelação
dos países que expressam a perspectiva da democracia e, nos anos de 1960,
após a instituição da ditadura civil militar, com vistas a combater o discurso
de negritude, oriundo do movimento encabeçado por Aimé Césare2, com a
finalidade de reivindicar a cultura e a identidade negra, procurando eliminar a
visão pejorativa do termo “negro” e atribuir a este uma qualidade. Razão pela
qual o movimento preconizava a ideia do orgulho de ser negro, de demonstrar
a participação e a contribuição do africano ao processo civilizatório. Em suma,

1
A este respeito, ver Guimarães (2002), especialmente o capítulo “Democracia racial: o ideal, o
pacto e o mito”.
2
Para os interessados em conhecer Césare, sugerimos uma das suas principais obras: Discurso sobre
o colonialismo, disponível no sitio: http://antropologiadeoutraforma.files.wordpress.com/2013/04/
aime-cesaire-discurso-sobre-o-colonialismo.pdf . No Brasil um dos pioneiros do movimento
“negritude” foi Abdias do Nascimento (1914-2011), criador do Teatro Experimental do Negro no
ano de 1944 e autor de uma série de obras, dentre as quais destacamos: O genocídio do negro
brasileiro (1978); O Quilombismo (1980) e O negro revoltado (1982).

Clóvis Moura: delineamentos... Góes, W. e Correia, R. • 175


o discurso da negritude visava apresentar o(a)s negro(a)s como seres históricos
e protagonistas da sua própria história. A “democracia racial”, portanto, viria na
contramão de qualquer projeto de construção de negritude. É nesta perspectiva
que Freyre utiliza o referido conceito para afirmar um país “luso-tropical”. Mais
tarde, Florestan Fernandes (2008: 309) denunciará que a democracia racial no
Brasil não passa de mito.
Partindo desta constatação, Clóvis Moura, na obra O negro: do bom escravo a
mau cidadão? (1977), afirma que a mitologia da democracia racial é um mecanismo
de barragem ideológica do negro brasileiro, que impede o enfrentamento ao pre-
conceito e escamoteia a concreta situação racial e racista no Brasil. No raciocínio
de Moura, trata-se de um adicional ao ideário do branqueamento progressivo pela
miscigenação, efetivado pelas classes dominantes que não deseja que os pobres
(leia-se os descendentes de africanos escravizados) alcancem os mesmos direitos
na sociedade de classes.
A raiz do “mito da democracia racial”, para Moura, é outra versão da domi-
nação de classe no pós-abolição. Ainda no período escravagista já havia pesquisas,
tanto de estrangeiros como de brasileiros, que passaram a ventilar a crença na
existência de um Brasil modelo de “paraíso racial”. Clóvis Moura é contrário
à tese freyriana de que inexistem contradições de classes, como explicitado no
trecho a seguir:
De escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu
de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha
que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata
que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou
no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação
completa de homem. Do muleque que foi o nosso primeiro companheiro de
brinquedo. (Freyre, 1988: 307).

Não é preciso reproduzir outras partes do texto de Freyre para demonstrar


que na sua perspectiva havia no Brasil uma relação harmoniosa entre escravizado
e escravizador. Em Freyre, o africano não é protagonista de sua história e é redu-
zido a serviçal do senhor; a mulher negra em Casa-Grande e Senzala serve para a
realização dos prazeres do branco no âmbito sexual; as crianças são concebidas
como objetos de contemplação das brancas. É nesta medida que Clóvis Moura
afirma que toda a obra freyriana é uma glorificação do escravo passivo, dócil,
masoquista. Gilberto Freyre “transformou a escravidão doméstica, da mucama,
da Mãe Preta e dos pardos, filhos de senhores-de-engenho e escravas brincando
a sombra da casa-grande, como sendo o quadro representativo da escravidão no
Brasil”. (Moura, 1977: 74).

176 • Lutas Sociais, São Paulo, vol.19 n.34, p.174-185, jan./jun. 2015.
Essa forma de conceber as relações entre senhores e escravizados é repu-
diada por Moura. Os africanos no Brasil durante o período escravagista, observa
Moura, combateram rebelaram-se contra escravismo. Ao contrário da argumen-
tação do autor de Sobrados e Mucambos, as mulheres negras eram estupradas pelos
senhores de engenho. O ideário de “democracia racial” é, portanto, uma nova
versão de relações de poder e opressão no contexto do trabalho assalariado. As
duas racionalizações, a do bom senhor e a da democracia racial, foram, segundo Clóvis
Moura, “habilmente arquitetadas para apresentar o senhor como bom, motivo
pelo qual a escravidão no Brasil teria características suaves.” (Moura, 1977: 74).
O autor, em seu livro sociologia do negro brasileiro (1988), aprofunda
sua crítica à “democracia racial”. Ao analisar os processos de esvaziamento das
organizações de resistências do negro no Brasil, especialmente as religiões de
matrizes africanas, afirma que as classes dominantes adotaram o termo em questão
para perdurar seus privilégios e a discriminação racial, assegurando o domínio
da religião dominante sobre a dominada, diluindo “as religiões afro-brasileiras,
incorporadas subalternamente ao nível de um catolicismo popular, sem maior
expressão teológica” (Moura, 1988: 55).
No Brasil, o “mito da democracia racial” é um mecanismo ideológico
para preservar a divisão em classes, encobrindo a existência de desigualdades
étnico-raciais expressas através de uma unidade orgânica da sociedade brasileira
“civilizada, branca, cristã e capitalista”. Nas palavras de Moura (1988: 55): “Na so-
ciedade de capitalismo dependente que se estabeleceu no Brasil, após a Abolição,
necessitou-se de uma filosofia que desse cobertura ideológica a uma situação de
antagonismo permanente, mascarando-a como uma situação não competitiva”.
Este quadro efetivou uma estrutura de Estado para garantir a dominação dos
oprimidos, e criou uma democracia estreita, parte constitutiva da particularidade
e objetivação do capitalismo brasileiro eficiente para manter os oprimidos em
espaços delineados pela classe dominante, neutralizando suas organizações nos
níveis político, cultural e ideológico. Num país em que a classe trabalhadora
constitui-se na sua maioria de descendentes de africanos escravizados, a criação
do “mito da democracia racial” desarticula suas crenças, suas religiões e desor-
ganiza também os próprios africanos no Brasil, transformando-os em simples
manifestações de laboratório (Moura, 1988).
O “mito da democracia racial” se consolidou e funciona para combater a
classe trabalhadora, majoritariamente negra. O fantasma do protesto negro faz te-
mer a classe burguesa que, para não correr riscos, lança mão da mitologia do bom
senhor e de todos os simbolismos atrelados a ela. Já não há mais a necessidade
de uma classe senhorial, pois a dominação burguesa se empenhou em transferir
este mito para a democracia dos dias atuais (Moura, 1988: 56). É esta mesma

Clóvis Moura: delineamentos... Góes, W. e Correia, R. • 177


dominação de classe que considera inconcebível atender às demandas históricas
do(a)s negro(a)s brasileiro(a)s de reparações políticas e sociais, especialmente
no que tange à distribuição da riqueza social. A democracia racial, portanto, não
passa de ideologia. Neste sentido, ela jamais será efetivada por meio de campanhas
humanitárias, educacionais ou de fundo filantrópicos. Necessita-se, segundo o
autor, de ser criado “um universo social não competitivo, fruto da economia de
uma sociedade que saia do plano da competição e do conflito e entre na faixa
da planificação e da cooperação” (Moura: 1977: 87).

Religião e resistência do negro brasileiro


A religião, para Clóvis Moura, ocupa uma função privilegiada no que diz
respeito à luta dos africanos no Brasil, do período colonial ao pós-abolição da
escravatura. Mesmo com a consolidação do trabalho assalariado, a religiosidade
para os negros tem sido uma forma de organização, articulação e permanência
das tradições existentes no continente africano. Em virtude da dominação do
opressor, os africanos passaram a fazer da religião um meio de combate à opres-
são e discriminação étnico-racial. Longe de ser o “ópio do povo”, as religiões de
matriz africana foram o sustentáculo dos descendentes de africanos escravizados,
em razão de seu espírito de sociabilidade e coletivização.
Ao contrário da historiografia oficial, Moura demonstra que a região Sudeste,
especialmente São Paulo foi erguida pelo trabalho escravizado. A Lei Eusébio
de Queiroz, de 1850, que proibiu o tráfico internacional de escravos, não im-
pediu que este estado recorresse à mão-de-obra negra, especialmente porque o
aumento da demanda de café no âmbito internacional implicava na necessidade
de braços para a produção e escoamento da referida mercadoria. Sem a possi-
bilidade de traficar escravos, os negros foram então transportados de diversos
estados da região Nordeste e do estado de Minas Gerais como força de trabalho
primordial. São Paulo se tornou majoritariamente negro, levando em conside-
ração não somente o espaço de produção de mercadorias, mas de organização
dos trabalhadores escravizados. Para além de exercerem funções mercantis, os
africanos consolidaram organizações que lhes permitiu enfrentar o escravismo.
É o caso das Irmandades Negras, da Nossa Senhora do Rosário, dos Remédios,
da Santa Efigênia e outras, que passaram a ser utilizadas como locais de lutas e
resistências, viabilizando a formação de expoentes do movimento abolicionista
oriundos dessas agremiações como, por exemplo, Luís Gama e Antônio Bento.
Os negros organizavam festejos, eventos de natureza coletiva, como os
famosos “cordões”, as coroações de reis e rainhas do Congo e o samba rural.
No bairro da Bela Vista, configurou-se o Quilombo de Saracura; na região co-
nhecida atualmente como Sítio da Ressaca, formou-se o Quilombo de Jabaquara,

178 • Lutas Sociais, São Paulo, vol.19 n.34, p.174-185, jan./jun. 2015.
responsável pelo contato entre os quilombolas da região de Santos. Em suma, o
Estado de São Paulo foi palco de inúmeras organizações negras que, a partir da
urbanização do centro da capital paulista, no final do século XIX, passaram por
um processo de segregação espacial, sendo a Irmandade do Rosário transferida
para o atual Largo do Paissandu. As manifestações da cultura negra, como a
capoeira, a feitiçaria, o curandeirismo etc., com a introdução do Código Penal de
1893 foram consideradas práticas criminais, isto é, se tornaram caso de polícia.
Da mesma maneira, a Macumba, que era responsável por congregar a dança,
a religiosidade, a coletividade etc., como uma forma de o africano manter seu
caráter identitário, foi desagregada. Esta desagregação, segundo Clóvis Moura,
transformou a Umbanda no espaço de organização religiosa dos negros.
A esse potencial de organização religiosa do negro urbano paulista liga-se a ansie-
dade de uma população marginalizada, vinda em grande parte do campo para a
metrópole, sem polos de apoio capazes de ajustá-la aos padrões dessa sociedade.
(Moura, 1980: 163).

A capital de São Paulo passou a ser um local privilegiado da proliferação


dos terreiros de Umbanda. Foi ali que o negro pode não apenas “se reencontrar
étnica e culturalmente, mas, ao mesmo tempo, por estar engastado em uma so-
ciedade de classes opressora, usou suas unidades religiosas para se preservar e se
recompor socialmente”. (Moura, 1980: 163). A realidade social das populações
pobres contribuiu para que as religiões de matriz africana extrapolassem para
outras dimensões, como a da cura. Por meio da prática curadora, os pais e mães
de santo exerciam um desempenho expressivo num país em que a classe traba-
lhadora carecia de médicos. Os centros de umbanda e de candomblé tornaram-se,
portanto, grandes hospitais públicos.
Essas religiões vão transformando-se paulatinamente e, de simples sentimento
de adoração contemplativa ao sobrenatural, passam a modificar empiricamente
a realidade. A medicina popular, impregnada de elementos mágicos, tem o seu
centro mais poderoso nos terreiros de umbanda, que substituem os médicos que
faltam e, ao mesmo tempo, exercem um papel de autoafirmação psicológica e
cultural muito grande entre seus adeptos. Isso explica a proliferação surpreendente
dos centros de umbanda no Brasil, sendo, hoje, a religião popular mais difundida
em todo território nacional. Fazem o papel de consultório médico e psiquiátrico
e ocupam o vácuo social que existe neste particular. Por isto mesmo, quando os
caboclos [grifo do autor] baixam, chamam os médicos de burros da terra [grifo
do autor], como a exprimir o desencanto pela sua ineficiência diante dos proble-
mas que afligem as populações carentes que os procuram. (Moura, 1988: 127).

A citação acima para além de explicitar o potencial dos negro(a)s no Brasil,


nos possibilita identificar as agressividades do Estado brasileiro em relação aos

Clóvis Moura: delineamentos... Góes, W. e Correia, R. • 179


descendentes de africanos escravizados. Tais agressividades explicam o porquê
da “demonização” destas religiões e a razão da criminalização que sofrem ainda
hoje. No modo de produção capitalista, a sociedade dividida em classes tem
como premissa destruir laços comunitários. Ora não causa espanto que justa-
mente as organizações negras tenham sido alvo de desmobilização e decapitação,
desmoralizando e/ou empurrando o(a)s adepto(a)s das manifestações religiosas
de matriz africana para as religiões de dominação, consolidando o projeto de
branqueamento do país.
Sem supervalorizar a religiosidade africana, o autor ao demonstrar o prota-
gonismo do negro no combate às opressões da sociedade de classes, afirma que a
liberdade religiosa só pode ser efetivada em uma sociedade não competitiva. Em
uma sociedade sem classes, as religiões se manifestarão de maneira libertária e
igualitária, seja qual for a sua natureza, cada um ocupando o seu próprio espaço na
explicação sobrenatural do mundo, “sem reproduzirem, na competição religiosa
entre eles, a competição e os níveis de sujeição e dominação que a sociedade
capitalista cria na terra. Com isto, irão desaparecendo lentamente das sociedades
por falta de função e necessidade para os homens” (Moura, 1988: 57).

Crítica à aculturação e ao culturalismo


Na contramão dos programas de entretenimento, principalmente os televi-
sivos, as festas populares e as inúmeras manifestações das denominadas “culturas
marginais” eclodem nas grandes periferias metropolitanas, o que tem motivado
vário(a)s pesquisadore(a)s a acreditarem em um novo contexto de protagonismo. A
“cultura” marginalizada, para este(a)s estudioso(a)s, é um caminho de resistência
e organização daqueles que estão “excluídos” da sociedade e o(a) protagonista
da “transformação social” estaria assegurado(a) uma vez que os “novos” sujeitos
tomassem em seus ombros o destino dos “despossuídos”. A cultura, portanto,
passa a ser concebida como um meio de superação das questões candentes
vivenciadas pelo(a) oprimido(a). Neste sentido, recuperar as críticas mourianas
ao termo aculturação e culturalismo abre caminhos para captar os “fenômenos
culturais” no contexto atual, sobretudo a partir das décadas de 1990 do século
XX aos nossos dias.
Para Clóvis Moura, o conceito de aculturação foi criado para explicar o
contato entre as culturas em expansão e transmissoras da “civilização” aos po-
vos denominados “primitivos”, uma vez que os grupos portadores de “cultura”
primitiva ao assimilar os valores da “superior” passariam para uma posição mais
“avançada” e vice-versa.
Toda a manipulação conceitual objetivava a demonstrar como nesse contato cul-
tural os povos dominados sofriam a influência dos dominadores e disto resultaria

180 • Lutas Sociais, São Paulo, vol.19 n.34, p.174-185, jan./jun. 2015.
uma síntese na qual os dominados também transmitiriam parte de seus padrões à
dominadora que os incorporaria à sua estrutura cultural básica. (Moura, 1988: 45).

No processo de “renúncia cultural” todos são contemplados. Todavia, em


relação ao Brasil, mesmo que aparentemente haja “trocas” entre as culturas,
para Moura “o catolicismo continua sendo a religião dominante, a indumentária
continua sendo a ocidental-europeia, a culinária afro-brasileira continua sendo
apenas uma cozinha típica de uma minoria étnica e assim por diante” (1988: 45).
As contradições de classes perduram, cabendo à dominante determinar quem
é superior e inferior na vida material, pois a aculturação não transforma subs-
tancialmente a realidade do oprimido. Os negros podem se aculturar e assimilar
a religião da classe dominante, influir na culinária, contribuir para a criação de
músicas, participar de manifestações populares, mas suas condições econômicas
e sua inserção social permanecerão as mesmas.
À esteira do autor piauiense, podemos dizer que mesmo que os jovens
elaborem atividades de natureza cultural, promovendo eventos, saraus culturais,
agregando e possibilitando o intercâmbio de produção artística em diversas
localidades, a situação daqueles que vivem nas periferias não sofre alteração
substancial. Curiosamente, são muitos os jovens produtores culturais contrata-
dos por instituições que, inclusive, financiaram a ditatura civil militar de 1964. É
importante notar que o Estado tem sido um grande elaborador de editais para
promover cada vez mais eventos “culturais” incentivando a entrada de “artistas”
ou, como querem alguns estudiosos do tema, “sujeitos periféricos”. Porém, nas
mesmas periferias o acesso às universidades públicas continua limitado aos jovens
que lá habitam; a perseguição policial e as chacinas são cada vez mais naturali-
zadas; estes jovens permanecem distantes dos espaços culturais de qualidade e
dos equipamentos de saúde etc. Os “protagonistas da cultura marginal”, como
os estudiosos das Ciências Sociais insistem em nomeá-los, ocupam os trabalhos
mais precarizados e, se considerarmos a divisão racial e sexual do trabalho, ve-
remos que a precarização se acentua. A contribuição de Moura, portanto, está
em demonstrar que caso a conexão entre as lutas sociais e o horizonte da pers-
pectiva da transformação social ocorra apenas pelo viés da “produção cultural”,
os oprimidos não mudarão a sua real situação.
No seio da controvérsia da aculturação, Moura afirma que o reivindicado
conceito é um dos elementos que estão contidos na ideologia da democracia
racial. Mesmo que “todos”, brancos e negros, das diferentes classes sociais se
“confraternizem”, não significa que as diferenças étnico-raciais estejam equali-
zadas. Nas suas palavras:

Clóvis Moura: delineamentos... Góes, W. e Correia, R. • 181


Uma branca dançando em uma escola de samba com um negro não seria sím-
bolo dessa democracia tão apregoada, via canais da aculturação? Nada mais
lógico dentro desta ótica de analise da realidade. No entanto, socialmente, esses
dois membros da escola de samba estão inseridos em uma escala de valores e
de realidade social bem diferentes e em espaços sociais imensamente distantes.
Simbolicamente, contudo, eles são projetados como elementos que comprovam
como, através da aculturação, chegamos a diluir os níveis de conflitos sociais
existentes. (Moura, 1988: 48).

A aparente harmonia é desmontada na realidade concreta, pois estamos nos


referindo ao modo de produção capitalista, cuja estrutura política e econômica
da sociedade determina a posição dos indivíduos de acordo com a sua classe,
mesmo que haja interação entre os membros de classes distintas. No tocante ao
carnaval, o negro continua concebido como um sub-ser e, ao encerrar o evento,
a mulher negra e o homem negro retornarão para as favelas, permanecerão es-
tigmatizados, serão parados e exterminados pela polícia. Em suma, permanecem
destituídos de humanidade. Quanto àqueles pertencentes à classe dominante,
continuarão tratados como “superiores”, acessarão os espaços de privilégio na
sociedade brasileira e a sua cultura manifestará o padrão almejado: branco, oci-
dental e cristão.
A aculturação é aceita porque cria espaços culturais neutros para impedir a
união dos descendentes de africanos escravizados. Para o autor, “ante a desgraça
comum”, a aculturação é um meio de dominação das classes dominantes e os
seus seguidores ideológicos para “neutralizar a radicalização da população negra,
de um lado, e, de outro, mostrar-nos internacionalmente como democracia do
mundo”. (Moura, 1988: 48).
A partir da crítica à aculturação, Clóvis Moura expõe os limites do culturalis-
mo, como forma de autonomizar e descolar as relações concretas do todo histórico.
Não é a cultura que determina as condições materiais. Ao contrário, é o estatuto
material que determina a cultura e esta, é construída historicamente. O fato de
haver intercâmbio cultural entre as classes sociais não significa afirmar a extensão
do ponto de vista econômico. A propriedade privada continua aos membros da
“cultura superior”, das classes dominantes que, por sua vez, possuem os meios
de produção da vida material e espiritual. A tentativa intransigente em explicar
as contradições de classes por meio da cultura não possibilita captar a realidade
concreta. Apesar das manifestações expressivas da cultura dos descendentes de
africanos escravizados, o nível de dominação e subordinação não foi alterado.
O culturalismo não possibilita identificar a realidade social. Ele impede a con-
solidação da crítica radical da sociedade.

182 • Lutas Sociais, São Paulo, vol.19 n.34, p.174-185, jan./jun. 2015.
Ao tematizar conceitos de aculturação e culturalismo, Moura enfrenta a
sugestão de Arthur Ramos, que almejava explicar a dominação colonial por meio
da psicanálise; e a perspectiva do antropólogo Gerard Kubik, que sugeriu a subs-
tituição dos conceitos de aculturação e cultura por transculturação. Para o autor de
Sociologia do negro brasileiro, tais divagações não explicam a empresa do capital
como uma forma política, ideológica e violenta de dominação e subordinação
da classe trabalhadora. Não é através de terapia junto às elites que será sanada
a dominação de classe. A ausência de historicidade, o repúdio à “dialética do
concreto” por parte dos culturalistas e o subjetivismo do método psicanalítico
aplicado “para explicar processos sociais globais, levam certos cientistas sociais
a se perderem em critérios analógicos de explicação e interpretação que não se
sustentam cientificamente” (Moura, 1988: 52).
Por fim, é preciso mencionar que combater a ideologia do culturalismo e da
aculturação, não significa propor a “supervalorização” da produção cultural do
negro. Em seu trabalho Brasil: as raízes do protesto negro (1983), nosso autor foi um
crítico da exaltação da cultura e a identidade negra, encabeçada por Léopold Sédar
Sanghor, um dos principais expoentes do movimento negritude no continente
africano, e, no Brasil, por Abdias do Nascimento. Para Clóvis Moura, o racismo
e todas as formas de dominação e de preconceitos estão ligados à propriedade
privada, fruto da divisão social do trabalho. O modo de produção capitalista não
pode ser superado através da aculturação ou por meio do culturalismo, visto que
esses conceitos não substituem a luta de classes.

Conclusão: a atualidade de Clóvis Moura


Em contraposição à historiografia oficial, nosso autor foi um dos responsá-
veis em identificar o negro do Brasil como protagonista e sujeito da sua própria
história. Desde o período do trabalho escravizado até à efetivação do trabalho
assalariado, o(a)s negro(a)s construíram meios para combater a situação de vio-
lência e subsunção a que foram submetidos. A superação do racismo só poderia
ser efetivada a partir da compreensão da realidade histórica e social do Brasil.
O racismo não pode ser extinto em uma sociedade de classes sem considerar a
ideologia da “superioridade do branco” como um mecanismo de dominação e
justificação de subordinação das classes subalternas. Para pulverizar o racismo é
necessário organizar um movimento que coloque no horizonte a transformação
social.
Moura, em seus estudos, demonstrou a natureza conservadora da burguesia
brasileira, em cujos projetos estavam contidos a hostilização popular culminando
em uma democracia restrita. Esta burguesia não pode abrir mão de qualquer
privilégio, em razão de seu caráter de espoliar o trabalhador para produzir e

Clóvis Moura: delineamentos... Góes, W. e Correia, R. • 183


reproduzir seu valor. Assim, o racismo passa a ser ele próprio o mecanismo e a
expressão do conservadorismo, sob o manto da ideologia da “democracia racial”,
combatida por Clóvis Moura.
Sobre a religião, o autor a concebia como resistência e organização de
negro(a)s brasileiro(a)s. Moura compreendia seu significado expressivo no que se
refere à demonstração da possibilidade de produção da vida humana em comu-
nidade, isto é, as formas de organizações consolidadas pelos africanos no Brasil
só não foram minguadas por que havia nelas laços societários, demonstração da
possibilidade de uma sociedade coletivizada, que o capital em sua capacidade
de extrair tempo de trabalho não pago do trabalhador, teima em destruir. Não é
de se estranhar que no período da acumulação primitiva do capital, denunciado
por Marx (1975) e referenciado por Moura, o modo de produção capitalista só
pôde ser objetivado através do uso da violência, do tráfico de seres humanos,
da exploração do trabalho proletário e, por fim, aniquilando comunidades, seja
no continente africano, no interior da Europa, no continente americano e, pos-
teriormente no asiático. Esta é a “grandeza” do capital, e coube a Clóvis Moura
demonstrar que esses processos históricos estão concatenados com a ideologia
do racismo.
Por fim, ressaltamos que voltar aos estudos do pensamento mouriano pode
nos munir em duas frentes. A primeira diz respeito à necessidade de desconstruir
a ideia de que a esquerda não lidou com a chamada “questão racial”, acusação
que na realidade é a expressão do conservadorismo e prática exercida pelo
academicismo conservador, combatido por Moura. A referida falácia só vem a
corroborar para o enriquecimento da ideologia da impossibilidade da superação
da ordem vigente. A outra frente aborda a perspectiva da esquerda no Brasil no
que tange ao combate do racismo e da superação da sociedade de classes. Para
Moura não basta aos movimentos negros questionar a suposta “esquerda” em
não reconhecer a existência do racismo como arma de dominação do modo de
produção capitalista, é preciso que os movimentos negros não reproduzam a
visão da “casa-grande”, ou seja, não podem esperar que o outro – o branco – faça
pelo negro. Ao contrário, os movimentos que acreditam na superação do racismo
e da sociedade de classes têm de ser a esquerda. Somente por meio desta práxis
a eliminação da sociedade de classes pode vir a se concretizar. Para a efetivação
desta, é necessária a organização do movimento de maneira autônoma aludindo
o enfrentamento e o fim da divisão social do trabalho.
Neste sentido, retomar a produção teórica de Moura é de suma importância
para que possamos de fato reavivar um movimento de esquerda que tenha como
escopo o trabalho como finalidade e o horizonte da revolução social. Reconhe-
cer a envergadura de Clóvis Moura significa convidar para a reflexão e a prática

184 • Lutas Sociais, São Paulo, vol.19 n.34, p.174-185, jan./jun. 2015.
não somente os estudantes comprometidos com os oprimidos, mas também os
seguimentos que se colocam na esquerda e que acreditam no fim do racismo e
na superação do capital.

Bibliografia
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Clóvis Moura: delineamentos... Góes, W. e Correia, R. • 185


Original Article

Capitalism and Agrarian South: Journal of


Political Economy

Racism in the Logue 1–23


© 2022 Centre for Agrarian Research

Durée: An Analysis and Education for South (CARES)


Reprints and permissions:

of Their Reflexive in.sagepub.com/journals-permissions-india


DOI: 10.1177/22779760211073683

Determinations journals.sagepub.com/home/ags

Weber Lopes Góes1 and Deivison M. Faustino2

Abstract
The genesis of racism, its specific features, conceptual boundaries,
and position within capitalist relations of production have been widely
discussed. Although there is no consensus as to what came first, and
neither as to what prevails in the complex and relational dynamics of
social reproduction, there is a general agreement that racism is a multi-
dimensional phenomenon that combines group discrimination and hier-
archization, guided by naturalized assumptions and supposedly inherent
differences. This study examines the historical features of several racist
theories to provide a more accurate view of the reflexive determina-
tions between capitalism and racism.

Keywords
Capitalism, racism, slavery, labor, Marx

1
PhD in Human and Social Sciences, Federal University of ABC, and Researcher at the
Centre for Peripheral Studies, Federal University of São Paulo, East Zone campus, Brazil.
2
Postgraduate Program in Social Work and Social Policies, Federal University of São
Paulo, São Paulo, Brazil.

Corresponding author:
Weber Lopes Góes, E-mail: [email protected]
2 Agrarian South: Journal of Political Economy

Introduction
The genesis of racism, its specific features, conceptual boundaries,
and position within capitalist relations of production have been widely
discussed. Although there is no consensus as to what came first, and
neither as to what prevails in the complex and relational dynamics
of social reproduction, there is a general agreement that racism is
a multidimensional phenomenon that combines discrimination and
hierarchization between groups of human beings, based on naturalized
assumptions and supposedly inherent differences. In this study, we
examine the historical features of certain racist theories to provide a more
accurate view of the reflexive determinations, in the terms provided by
Marx (1904), between capitalism and racism.
The question that matters is: what is the place of the concept of race in
its genesis and, above all, what is its function in the capitalist context of
class struggle? We argue that, although racism is historically linked to
slavery, and even though slave labor preceded modernity, it is under
capitalism that slavery became intimately intertwined with racism to
become a fundamental tool for the rise and reproduction of capital. Thus,
racism continued to evolve as a political ideology of domination in line
with the phases of development of capitalism until the current monopolistic
phase marked by eugenics.

The Expansion of Pre-capitalist Slavery


In this itinerary, one immediately encounters a historical relationship
between the African and European continent, or more precisely, between
the various peoples surrounding and interacting—over the longue durée—
in the Mediterranean Sea. Although there is a common belief, even in a
significant part of the official historiography, insistently defending that
contact between the peoples of the African and the European continents
started with the advent of modern colonization, such contact goes back
to ancient periods in the history of the two territories. In “classical
antiquity,” the Mediterranean Sea was considered an important route for
interaction, commerce, contention, and mutual influence for the peoples
of both continents, although at that time, those we now call “Europeans”
(Greeks and Romans) only knew the northern region of the African
continent, which they divided into Libya, Ethiopia and Egypt (Mudimbe,
1994).1 It is also noteworthy that before classical antiquity, despite the
Góes and Faustino 3

reciprocity of contact, cultural, economic, and political influence were


unequally favorable to Egypt with its very highly developed forces
of production compared to other social formations of the same period
(Diop, 2001).
With the Muslim expansion into Northern Africa in the eighth century
and the subsequent religious-political battle between Muslims and
Christians, this contact gained a new chapter. First, the large-scale
slavery, inaugurated by the Romans (Inikori, 1992; Malowist, 1992;
Devisse & Labib, 1984), reached new dimensions with the Arab-Islamic
expansion based on the advent of international and intercontinental
commerce of enslaved human beings in the various parts of the world
known to them, and the subjection of the Africans under their domain to
the condition of “Raptor States” in a process that increasingly prioritized
the African continent as a large territory for the supply of commercialized
human beings.
This means, in the first place, that slavery is an ancient phenomenon
in human history, but it became the dominant economic form during the
Roman Empire. Secondly, the Arab-Muslim trafficking of human
beings—prior to European mercantilism—not only inaugurated a large-
scale slave trade, but also paved the way towards a certain racialization
of slavery, governed by ideological-religious notions that justified
slavery based on skin colour, seen as a divine curse (N’diaye, 2008).
Still, there is no evidence that such a form of enslavement was exclusively
race-based, as it came to be later—since its victims, although in larger
quantity, were not exclusively African (Callinicos, 1992)—nor was it
exogenous to the African continent. The incremental conversion of
African kingdoms into Raptor States favored the consolidation of intra-
African trafficking of human beings brought from sub-Saharan Africa to
be sold in Egypt, Sudan, Libya, and Morocco (Austen, 2001).
This is relevant for two reasons. First, because the Iberian Peninsula
was invaded, dominated, and completely transformed by the Moors2 in
the early seventh century and renamed Al Andalus. They took with them
people, in the majority originating in Sub-Saharan Africa, but also Turks,
North Africans, and even enslaved Europeans to integrate the region into
the above-mentioned slave trade. Second, because the defeat of the
occupiers by Afonso III, in 1249, put an end to Islamic domination in the
Portuguese lands, but not without the continuity and influence of the
culture and economy of the Moors—which included the dissemination
of a number of stereotypes (Mott, 2015) and, once more, the slave trade
and, in some cases, the enslavement of the Moors themselves by some of
the Portuguese. As Clóvis Moura argues, slavery in Portugal “came from
4 Agrarian South: Journal of Political Economy

immemorial times and, paradoxically, it grew with the so-called


bourgeois revolution of 1383, which, by stimulating the Portuguese
economy, required compulsory labour for construction and other types
of activities” (Moura,1994, p. 130, our translation). In the fifteenth
century, a key period for the events that resulted in the great mercantilist
navigations, the conquest of Ceuta, an Islamic city in North Africa, by
the Portuguese and then their arrival in Senegal, in 1483, and Kongo, in
1483, marked a new period of large-scale capture of human beings,
directly undertaken by the Christian Portuguese:

Indeed, between 1450 and 1500, Portugal imported an estimated 700 to 900
African slaves annually. By the beginning of the seventeenth century there
were an estimated 100,000 slaves in Portugal and its Madeiras Islands. In
1468, the Portuguese Crown initiated the famous asiento (monopoly), over
the trade in slaves south of the Senegal River.

In 1492, the military conquest of Granada by the Christian Monarchy of


Castile brought an end to the 800 years of existence of Al Andaluz and
inaugurated a new form of conquest that would become the mark of the
colonization of the Americas, a few years later, with economic expro-
priation, the expulsion of the Moors, and the racialized persecution of
the Jews. Thereafter, the Portuguese state underwent astonishing devel-
opment and, shortly after, with the colonial conquests, consolidation
under the leadership of a new social class: the bourgeoisie. From then on,
the religious dispute took a back seat to new concerns: “it was through
the gold and the slaves torn from its bosom that the African presence
became most clearly visible in the Mediterranean economy”3 (Devisse &
Labib, 1984, p. 646). In Malowist’s (1992, p. 1) words, the “period from
1500 to 1800 was to witness the establishment of a new Atlantic-oriented
geo-economic system, with its triangular trading pattern, linking Europe,
Africa and the Americas,” which led, at the same time, to major impedi-
ments and constant economic downturns in the most developed regions
of the African continent (Rodney, 1973).
This aspect is synthesized in Marx’s (1976, p. 915) emblematic
passage, in Chapter 31 of Capital, when he affirms that Africa, America,
and enslavement played a fundamental role in the consolidation of the
capitalist mode of production:

The discovery of gold and silver in America, the extirpation, enslavement


and entombment in mines of the indigenous population of that continent, the
beginnings of the conquest and plunder of India, and the conversion of Africa
into a preserve for the commercial hunting of blackskins, are all things which
Góes and Faustino 5

characterize the dawn of the era of capitalist production. These idyllic pro-
ceedings are the chief moments of primitive accumulation.

From that point on, the lucrative trade—amplified by the large human-
trafficking companies and the appropriation of precious metals in Africa,
Asia, and America (Inikori, 1992; Marx, 1976; Williams, 1944)—was
responsible for the capture of “10 to 15 million African slaves in the
course of the next five centuries, and it was in the New World that African
slavery most flourished under European rule” (Klein, 1987, p. 21). The
development of the capitalist mode of production was only possible,
among other factors, because of the transatlantic slave trade, generalized
racial slavery, and the indigenous genocide, indispensable to the task of
violent provision of the lands appropriated by the extractive Sesmarias
(Da Silva, 2019). “The colonial system,” Marx affirmed (1976, p. 918):

ripened trade and navigation as in a hot-house… The colonies provided a


market for the budding manufactures, and a vast increase in accumulation
which was guaranteed by the mother country’s monopoly of the market.
The treasures captured outside Europe by undisguised looting, enslavement
and murder flowed back to the mother-country and were turned into capital
there… It was the ‘strange God’ who perched himself side by side with the
old divinities of Europe on the altar; and one fine day threw them all over-
board with a shove and a kick. It proclaimed the making of profit as the ulti-
mate and the sole purpose of mankind.

That said, we aim to demonstrate the role of racism within this emerging
sociability in the colonies and its relation to the concrete totality of
capitalist relations of production emerging in Europe precisely as a
direct result of colonial violence.

Capitalism, Slavery, and the Ideology of Racism


Given the low level of development of the productive forces in the mer-
cantilist period of capitalist accumulation—added to which were the social
and demographic conditions found in the colonies—the only viable and
profitable form of production was through slave and servile labor, some-
thing already widely known to the Portuguese. However, in this context,
it was no longer possible to enslave human beings without completely
denying their human condition, dignity, and culture (Genovese, 1976),
reducing the individual to a “tributable” asset (Alencastro, 2000). In terms
of the law, the slave was described as an object of property; however, from
6 Agrarian South: Journal of Political Economy

the viewpoint of exploitation, assimilating a human being to an object or


even an animal is a contradictory and unsustainable fiction:

In practice, slaves are not used as objects or animals... In all tasks, even in
porterage, and if only to a limited extent, there is appeal to the reason of the
slave, and one’s utility and productivity grows in proportion to the use of
one’s intelligence. (Meillassoux apud Pétré-Grenouilleau, 2009, p. 45)

However, it is on the basis of the “right” to property that the “owner” is


socially justified in imposing the condition of a slave on another human
being. Such a venture, therefore, is made effective through violence
(Alencastro, 2000). This means that slavery—even if historically
constituted by racialized groups and supported by racial arguments—
cannot be explained on a racial basis, but rather by the economic reasons
that made it possible, as affirmed by Marx (2010, p. 9), in a text published
in April 1849:

[l]abour was not always wage-labour, i.e., free labour. The slave did not sell
his labour-power to the slave-owner, any more than the ox sells his labour to
the farmer. The slave, together with his labour-power, was sold to his owner
once for all. He is a commodity that can pass from the hand of one owner to
that of another. He himself is a commodity, but his labour-power is not his
commodity.

In Capital, Marx (1976, p. 680) takes up the issue of the difference


between wage-labor and slave-labor, arguing that,

[i]n slave labour, even the part of the working day in which the slave is only
replacing the value of his own means of subsistence, in which he therefore
actually works for himself alone, appears as labour for his master. All his
labour appears as unpaid labour. In wage-labour, on the contrary, even sur-
plus labour, or unpaid labour, appears as paid.

Although it seems obvious, it is fundamental to emphasize that being a


slave is not a “natural” aspect inherent to human beings; on the contrary, it
is subject to a specific social relationship. The characteristics of slave labor
and the form by which the laborer is submitted to compulsory labor is what
differs from wage labor. In the case of slavery, there was no consent, no
contract with the master. Although wage labor is a form of submission of
the worker to the exploitation of labor power, the “option” to sell one’s
labor capacity differs from that of the enslaved laborer, whether concerning
the nature of the craft or the place of work. The enslaved worker enjoys no
Góes and Faustino 7

such alternative but to be worked to death. There is, therefore, a strange


paradox here. Fanon (1967, pp. 33–34) argues that the colonial enterprise
“is a gigantic business and every approach must be governed by this data.
The enslavement, in the strictest sense, of the native population is the prime
necessity”; however, to make this objectification ethically, aesthetically,
politically, and spiritually possible:

[f]or this its systems of reference have to be broken. Expropriation, spolia-


tion, raids, objective murder, are matched by the sacking of cultural patterns,
or at least condition such sacking. The social panorama is destructured; val-
ues are flaunted, crushed, emptied. The lines of force, having crumbled, no
longer give direction. In their stead a new system of values is imposed, not
proposed but affirmed, by the heavy weight of cannons and sabers.

When the colonial enterprise began, there emerged discussions on


Europe’s political and religious spheres about how to justify slavery
as, for example, naturalization. Some argued that Europeans had the
right to enslave Africans because, supposedly, the latter were already
slaves in Africa; others used theological arguments—already employed
by the Arabs centuries before but now made more sophisticated by the
new papal insignias—to claim that slavery was the divine will, as per
the biblical myth of Ham:“[t]he strength of this biblical and church
dimension provided an inestimable basis for earlier ideas on the ‘savage’
and ‘inferior’ nature of Africans” (Harris, 1992, p. 113), so that the
“natural” reservoir of slaves would remain in “black Africa, which was
also the full embodiment of paganism” (Losurdo, 2010, p. 147, our
translation). That is why we must consider the point made by Williams
(1944) when he shows how the ideology of racism became a fundamental
element in the development of the capitalist mode of production.
As the capitalist mode of production developed, racist arguments
became increasingly sophisticated. The Enlightenment period, especially
at the turn of the eighteenth century, was characterized by a theoretical and
ideological clash between the European bourgeoisie—now well enriched
due to colonialism but not yet in control of the political and institutional
powers—and the backward societal remnants of the old regime. In this
clash, there was, on the one hand, a bet on the development of empirical
sciences and the notion that rationality was a way to discover universal
laws that would leverage productivity in all aspects; and, on the other
hand, there was a search for a philosophy that could justify its decisive
interference in the polis that was developing. In this sense, the concepts of
rationale, universality, equality, and freedom became the foundations of
8 Agrarian South: Journal of Political Economy

knowledge production and political projects, later providing the basis for
the social rupture that resulted in the French Revolution, in 1789.
It turns out that this same social class (the bourgeoisie) that played a
leading role in this important milestone, which founded modern democracy
and had as a premise the idea of liberty and equality as universal natural
facts of the human condition, is the same class that kept growing richer
through colonial violence in Africa and the Americas. Racial difference
stood, once again, as a paradox: if all human beings are naturally and
equally free, on what is slavery founded? Either not all human beings are
free—which might have sounded contradictory to a pro-democratic
political agenda that needed to affirm equality and freedom to confront the
hereditary differentialism of the aristocracies—or, perhaps, Africans and
native peoples of the Americas are not human, and thus the paradox was
resolved, preserving the political agenda in question.
It was in this context that philosophers started to classify peoples as
black, white, yellow and red, and pari passu tried to hierarchize and
overrate the “white race,” whose history of humanity began and ended
on the European continent; thereafter, philosophical arguments would
give sustenance to the colonial project and strengthen the ideology of
racism. As a result, the differences between social groups were conceived
through a hierarchical bias, according to which white people would be at
the top, attributing the status of “animality” to black people (Azevedo,
2004; Santos, 2007). Moreover, the concept of race came to be used in
order to confirm the existence of “different” human races, culminating in
bourgeois hegemony.
Therefore, as the legitimate ideological child of paradoxical capitalist
slavery, liberalism came to act in an undeclared relationship with its
Siamese twin, racism. During the heyday of the Industrial Revolution
and its need to expand commerce and boost markets, liberal ideas were
conceived as humanistic, while this same humanism found its economic
basis in slavery, which required, in turn, that Africans and Native
Americans be regarded as belonging to “savage races” in a “minor”
position that could be enslaved or civilized.
Not coincidentally, it was in the Netherlands—“which first brought the
colonial system to its full development,” the country that in 1648 “already
stood at the zenith of its commercial greatness,” with nearly exclusive
control of the trade in the East Indies and between the southeast and
northwest of Europe (Marx, 1976, p. 1918)—that the humanist, jurist, and
diplomat Hugo Grotius (1583–1645) formulated his considerations on life
and property. For Grotius, the basis of natural law was private property,
and the state was an expression of that contract. Grotius, who is also
Góes and Faustino 9

considered the founder of international and commercial law, was


contemporary with the commercial incursions by Dutch India, which he
legally defended, given that in that context, mercantilism was booming
(Cotrim, 2011). The Dutch thinker regarded colonized peoples as
superstitious and idolaters of the religious cult and pagans, in his words,

of a nature little suited to a Being of goodness and of purity: Human sac-


rifices; naked races up and down the temples; games and dances replete
with obscenity; instances whereof are seen even at this day among the sav-
age natives of America and Africa, who are still lost in the thick clouds of
Paganism. (Grotius apud Losurdo, 2011, p. 22)

For him, the people subjected to European colonial expansion were


targeted because they rebelled against God. Thus, it would be a crime
against the Creator not to submit them to colonization. Slavery and
genocide were not forms of violence but rather ways in which freemen
of the Netherlands chose to punish unbelievers. Therefore, a just war
against barbarian peoples, pagans, and “wild beasts” would be justified
(Losurdo, 2011). In the same vein, John Locke (1632–1704), who was
a shareholder in the African trade—in the Royal African Company—
also made efforts to justify the expansion of the white settlers when he
was secretary of the Council of Trade and Plantations, in 1673–1674
(Losurdo, 2011). In Locke’s view, the indigenous people of America
were a mortal threat for not adopting private property as a form of tenure,
and considered American lands “no-one’s property.” Moreover, because
the “Indians” did not worship money, they were aliens to civilisation and,
therefore, had no relationship with humanity. In this regard, the natives
of America would continue to commit crimes against the development of
civilization due to their failure to transform the uncultivated land. There
was no other choice left but to equate natives with “wild savage beasts
with whom men can have no society nor security… [and who] therefore
may be destroyed as a lion or a tiger” (Locke apud Losurdo, 2011, p. 24).
The purpose here is to emphasize the connection—and not the opposi-
tion—between liberalism, slavery, and racism, where the concepts of
freedom and property are tied to the depreciation of Africans and the native
peoples of this continent in order to legitimize compulsory labor (Góes,
2018). The ideology of racism emerged, therefore, as an unstated counter-
part of the bourgeois defense of liberty, equality, property, and democracy.
By reducing the universal and generic concept of humanity to white people
and Europe, such an ideology worked as a kind of differential universal-
ism, taking away from the colonized peoples the chance to be recognized
10 Agrarian South: Journal of Political Economy

as humans. Banned from ethics, aesthetics, and politics, they experience a


kind of death before death (Faustino, 2018), that is, a relative social death,
provoked by interdicting the acknowledgment of the colonized people’s
humanity, authorizing, in advance, their violation, expropriation, enslave-
ment, and extermination according to the interests of the uneven and com-
bined development and universalization of capital.
Although the concept of racism was only explicitly formulated in
dictionary entries at the end of the nineteenth century (Hofbauer, 2006),
its effective concretion gained form and foundation since the capitalist
mode of production started to be objectified. Such objectification,
however, was neither linear nor mechanical; it was gradually forged in a
concrete way, in the dialectical relationship with the complex totality of
the social metabolism of which it is part. If the complex of social-
metabolic complexes of capital is historically and geographically
unequal, the forms of appearance of racist ideologies, even in their
relative autonomy, will be likewise unequal. If the Enlightenment
period—which was marked by the bourgeoisie’s progressive struggle in
its universal democratic aspirations and defence of private property—
resulted in a specific type of racism, the period that followed its victory
and consolidation as the dominant social class in the new social order led
to other changes in the forms racist ideologies.

Race, Science, and Ideology Under


Monopoly Capital
The colonization process stimulated the accumulation of capital and
made possible the development of “true capitalism”; its expansion
occurred on the basis of mercantile capital by means of the extraction
and production of commodities in the American continent, where the
trafficking of Africans and enslaved labor were paramount for the
concentration of property in the hands of capital. However paradoxical
it might seem, such a process allowed the emergence of the proletarian
worker within Europe. As Marx demonstrated, without slave labor
in the New World, the establishment of the free worker would have
been impossible. It was enslaved labor that imparted dynamism to
European capitalism, especially in England,4 and, consequently, offered the
material and spiritual conditions for the development of bourgeois society
in all of Europe and, later, in an unequal and combined manner, in the very
colonies and other territories affected by capital. This is what allows us to
assert that liberal ideology is the Siamese twin of racist ideology.
Góes and Faustino 11

As the development of the productive forces within Europe made the


capitalist relations of production more complex, “merchant’s capital is
reduced from its former independent existence to a special phase in the
investment of capital, and the levelling of profits reduces its rate of profit to
the general average. It functions only as an agent of productive capital”.
However, it should be stressed that this violent process of primitive
accumulation of capitals was not restricted to the initial (mercantilist) stage
of capitalism (Yeros & Jha, 2020). The raw material that fed the great textile
industry during industrialisation, white cotton, was produced by the black
hands of enslaved workers through an exploitation process that did not even
enter into the calculus of surplusvalue (Da Silva, 2019). The colonial
monopoly, likewise, established the conditions for primary accumulation
and the set of factors that allowed the constitution of industrial capitalism,
whose raw materials were produced in the Americas and in which
compulsory labor played a significant role. The slave social formations
were “highly articulated political-economic organizations, with their
centres of power, command and execution principles and procedures,
methods of control and repression” (Ianni, 1988, p. 27, our translation).
On the one hand, the master/slave relationship was based on
production, aiming to establish two class structures in order to produce
absolute surplus-value, whether in Latin and Central America or the
South of the USA. The focus of the slave units was to maintain
compulsory labor through mechanisms of domination. On the other
hand, with the formation of the proletariat and the consolidation of
industrial capital, the bourgeoisie came to require not only the expansion
of its commodities but the forms of relations based on free labor, in view
of the movements in central countries, especially in England, for the end
of slavery. Unlike in the initial stages of capitalism, when production
was subject to mercantile capital, in mature capitalism, production in the
colonies became subject to industrial capital. Marx (1973, p. 224)
described the character of big industry within the organization of
compulsory labor as follows:

Negro slavery—a purely industrial slavery—which is, besides, incompatible


with the development of bourgeois society and disappears with it, presup-
poses wage labour, and if other, free states with wage labour did not exist
alongside it, if, instead, the Negro states were isolated, then all the social
conditions there would immediately turn into pre-civilized forms.

When the accumulation stage was complete, the slavery system that gave
life to it became obsolete and incompatible with free labor. Therefore,
12 Agrarian South: Journal of Political Economy

industrial capital came to interfere in, blend, and even destroy those
forms of social organization and relations of production that did not meet
its needs, the techniques, values, and ideologies that no longer fit, in any
way, with its “rhythm and meaning,” forcing the abolition of slave labor
(Ianni, 1988, p. 34). Such antinomies between enslaved and free labor,
industrial and mercantile capital, the abolition of slavery and the interests
of the central bourgeoisies and even local ones (as in the case of the United
States) were identified by Engels (1987, p. 98), especially when the various
“humanitarian” struggles erupted for the abolition of slavery:

And it is significant of the specifically bourgeois character of these human


rights that the American constitution, the first to recognise the rights of man,
in the same breath confirms the slavery of the coloured races existing in
America: class privileges are proscribed, race privileges sanctified.

The contradiction pointed out by Engels shows that the process of primitive
accumulation represented a twin birth, because, while the establishment of
slave labor in the colonies was taking place, European proletarian labor was
developing. On the threshold of capitalism constitution, one could see that
“the veiled slavery of the wage labourers in Europe needed the unqualified
slavery of the New World as its pedestal” (Marx, 1976, p. 925). Once
that stage was completed, but above all, driven by new requirements of
accumulation in an unprecedented scenario of fusion between banking and
industrial capital, and especially, upon the emergence of large monopolies
and conglomerates eager for privileged access to raw materials and
consumer markets, capital not only needed to ensure its production and
reproduction within Europe, but also to penetrate the territories it first used
as places to capture human beings. A new perspective emerged: the need
to penetrate territories, not only to continue to drain raw materials, but also
to sell commodities, create spaces so that production could be consumed,
which was the reason why slavery was abolished.
This was the moment in which the European bourgeoisie, now
consolidated as the sole and unequivocal ruling class in the order of
capital, felt at ease giving up the universalist and progressive aspirations
it had hitherto defended to confront the retrograde forces of the old
regime. Perhaps it is more accurate to say that the bourgeoisie felt
cornered by one of the rebellious offspring of the Enlightenment and the
French Revolution, who now demanded that that which until now had
been implemented only in a formal way be actually put into practice:
equality, freedom, and, above all, the power to transform social reality,
seeking new horizons once gained towards the revolutionary supersession
Góes and Faustino 13

of society and bourgeois sociability. Violent clashes then broke out


across the European continent, such as the July Revolution of 1848 and
the Paris Commune in 1871. Those struggles led the bourgeoisie to
become reactionary, conservative, and anti-democratic. The solution was
to fight the workers’ movements, both on a political-military and
theoretical-ideological level, and at the same time cement the conditions
for the conquest of new colonies on the African and Asian continents.
This was the historical basis of the partition of the African continent
among the European powers at the end of the nineteenth century, whose
effect was to bring 90% of the African continent under the control of the
European bourgeoisie and to transform Asia into a field for the plunder
of grain to subsidize the wealth of the European bourgeoisie.
In this context, the attack on Enlightenment universalism and its
egalitarian delusions presented itself as a vital task. It was then that
Arthur de Gobineau’s (1816–1882) anti-democratic ideology gained
unprecedented international and intercontinental projection. The author
of An Essay on the Inequality of the Human Races (published between
1853 and 1855) was important to substantiate racism, above all at the
end of the nineteenth century. Born in a noble, reactionary, and
conservative family, Gobineau positioned himself against the mottos of
liberty, equality, and fraternity, to mount a radical critique of the
bourgeois revolution. Borrowing from the aristocratic aspirations of
Count Henri Boulainvilliers (1658–1722), the author of the Essay
defended the return of the aristocracy and the hegemony of the aristocrats
as a solution to overcome the emerging problems in his setting.
To validate his endeavor, Gobineau tried to explain social relations on
the basis of race, whose conceptual matrix would be that of race-lineage.
His intention was to demonstrate that the aristocracy should be
represented through its various lineages, in this case, the propertied
families that would be classified as superior, and, thereby, the fraternity
among aristocrats. The defense of racial hierarchy through the bias of
family has as its purpose the fight against equality; the French thinker
formulated his nostalgic proposal of the return to feudalism and built
his historical explanation anchored in the concept of race-lineage; he
exalted the Aryans for the invasion of India and the destruction and
subjugation of the “aboriginal races.” Such excitement shows the
naturalisation of the hierarchies defended by the author. According to
Losurdo (2019, pp. 413–414):

‘Proud of its extraction’ and attached to the ‘idea of nobility’, the victor and
conqueror took care not to disappear in the ‘crowd’… Gobineau described
14 Agrarian South: Journal of Political Economy

with satisfaction the violence vented on those who violated the banning of
miscegenation and on their offspring, the Chandala…

Gobineau affirmed white superiority over yellow and black people. From
his point of view, white people could be identified by their intelligence,
capacity for reflection, and love of freedom. He further proclaimed the
superiority of pure Aryans over other white peoples (Lemos, 2000) and
their monopoly on beauty and strength (Munanga, 2004). It is thus that
the Aryan was conceived as a superior race, with the inferior races being
only useful as slaves, animated machines, or beasts in the service of the
superior races (Lukács, 1959). Gobineau sought to justify inequality
between races by affirming that the “primitive populations of Asia
Minor” were unable to be incorporated into civilization, being left only
with the condition of human debris; the Aryan victor was a loophole
he found to justify the return to the feudal past, and, for this reason,
he identified aristocrats with the Germanic people and assigned to the
latter the role of conquerors and superiors, thus aiming to re-establish
the social hierarchies.
Gobineau, the diplomat, occupied a privileged position as an activist
thinker who developed the theory of racism after a long journey whereby
he disseminated a new idea in the racial field to large circles of opinion,
composed by a range of decadent intellectuals. His essay was written and
published in a reactionary period, that is, during the years of Napoleon
III. His work must be regarded as the first modern racist theory to have
historical-social repercussions (Lukács, 1959). In this manner, Gobineau’s
statements were assimilated by the reactionary bourgeoisie, not only to
fight the insurrections of the European working class, but also to legiti-
mize the stage at which capitalism had entered, that of imperialism,
which paved the way to a new colonialism that resulted in the partition
of the African continent after the Congress of Berlin (1884–1885), which
divided the “motherland” in order to expand capital. The racial theories
created by Gobineau strengthened the ideology of racism and subsidized
the creation of new disciplines of knowledge, such as Social Darwinism
and eugenics (Góes, 2018).
With respect to Social Darwinism, the concept was created by Herbert
Spencer (1820–1909), an engineer, journalist, and one of the founders of
political philosophy and sociology. By assimilating Darwin’s theory of
selection, Spencer defended the thesis that within society there existed
the rule of the survival of the fittest. According to Spencer, society is an
organism and it evolves as an organism, meaning that adaptation would
be the rule for survival within a competitive society, whose less adaptable
Góes and Faustino 15

individuals would be eliminated. Excited about his theoretical


formulations, he condemned those who wanted to help the “less favored
ones” (Tort, 2000); consequently, Social Darwinism became a means to
validate the “superior” groups supported by the theory of the survival of
the “fittest” and advocates of competition among the various species—in
this case, human beings.
Another fundamental ideologue of science, or rather of Social
Darwinism, who gave sustenance to racism at the end of the nineteenth
century, was Ludwig Gumplowicz (1838–1909). He claimed that there
were evolutionary processes in the development of society, whereby,
initially, people lived in small natural bands, ethnic or consanguineous,
which had rudimentary economies and lived in sexual promiscuity, but
enjoyed equality among themselves. Gumplowicz argued that the solidarity
between the groups evolved gradually and that such evolution could be
grasped when situated in the transition from matriarchism to patriarchalism,
culminating in the first form of organized control (Lemos, 2000). Similarly,
the development of society occurred by means of wars between the
interests of distinct groups, whereby the conqueror prevailed over the
vanquished. Conflicts were posited by Gumplowicz as the keydrivers in
social evolution, whereby the state, as well as the nation, was the result of
the development of groups. This evolutionary thinking was a result of a
misrepresentation of Darwin’s thought. When Gumplowicz (n.d.) wrote
one of his main works, The Struggle of Races, he believed that the engine
of history was “race” and supported his argument as against those of
Montesquieu and Buckle, relying on Gobineau’s Essay, the latter seeing
“the centre of history as located at any given moment there where the
purest, most intelligent, and strongest white group resides, thereby
responding to the influence of climate as opposed to the influence of race”
(Gumplowicz, n.d., p. 22, our translation).
Gumplowicz elaborated on a sociology of humanity’s natural history
by reducing the social phenomena to supposed natural laws; his
theoretical framework laid a convincing foundation for the formulation
of fascism, since his alleged scientific-natural method, that is, Social-
Darwinism, eliminated history, and by doing so, Gumplowicz’s Darwinist
sociology not only eliminated the economy as an important element in
grasping society’s contradictions, but also extinguished the chance of
understanding the social whole. Gumplowicz’s pseudo-scientific thought
created a dichotomy between the concepts of civilized and primitive
humans; his anti-historicism became a “cosmic law,” since in his theory
there is no progress for all humankind, except for the Europeans who
were able to adapt. In this sense, by repudiating humanity’s unitary
16 Agrarian South: Journal of Political Economy

history, the author laid ideological roots in the imperialist bourgeoisie of


the nineteenth century, being that one of the main aspirations of capital
was to utilize Social Darwinism as a means of breaking with unitary
history and replacing it with natural history. The most developed nations
had a mission: to bring “civilization” to those considered barbarian,
underdeveloped, savage, and backward.
As far as eugenics is concerned, its main precursor was Francis Galton
(1822–1911). His ambition was to assign biological nature to human
behavior, as in the case of delinquency and prostitution, among others.
The founder of eugenics provided the supposed theoretical basis to
understand hereditary generations and find the “improvement” for the
characteristics of the population as a whole. The English word eugenics
is derived from the Greek eugénes, meaning “well-born.” Etymologically
speaking, eugenics is the science of good births; grounded in Mathematics
and Biology, it had at its core the identification of the “best” members in
society and the stimulation of their reproduction, while at the same time
diagnosing the “degenerates” and preventing their multiplication (Góes,
2018).
What is subsumed in the Galtonian formula is the construction of
alternatives for the industrial bourgeoisie of this period, such as the
issues involving the working-class districts, where crowding favored the
dissemination of epidemics, poverty, and diseases, issues which, in his
view, were the workers’ own responsibility; therefore, eugenics was the
remedy to overcome such contradictions. The eugenicist thinker believed
it was necessary to create a database to record information, such as
physical characteristics and questionnaires. Excited by the good reception
of eugenics, Galton argued that the world “was beginning to perceive
that the life of each individual is in some real sense a prolongation of
those of his ancestry” (Galton, 1988, p. 116, our translation). To support
his intent, Galton appropriated the ideas of his cousin, the same Charles
Darwin (1809–1882), and incorporated in his studies the precepts of
Herbert Spencer. Thus, the African people became the subjects of his
studies and research with the aim of determining the differences between
the attitudes resulting from “social” causes and those of a biological
nature. To support his argument, Glaton provided an extensive list of
genealogical information and the results of studies with families, seeking
to prove “by simple genealogical and statistical methods that human
aptitude was a function of heredity,” unrelated to education (Stepan,
2005, p. 30, our translation).
Eugenics was used to enhance what was understood as a civilizing
process, that is, “raise” the “human race” by managing biological
Góes and Faustino 17

reproduction through birth control of the supposed “carriers” of “social


disorders,” so that the whole of society would benefit by getting rid of
the “depraved.” In this sense, eugenics would provide the basis for civi-
lization’s expansion. The destiny of the non-civilized would be in the
hands of the upper class, and the “degenerates” would be extinguished
through “birth control” policies, so that antisocial individuals could be
prevented from proliferating. Moreover, other measures defended by
Galton in his proposal, beyond the creation of “dysgenic” spaces, includ-
ing making the state responsible for the implementation of social pro-
grams that would monitor the marriages of criminals and “degenerates”
and prevent the reproduction of individuals considered “weak.”
Between 1860 and 1945, studies related to eugenics were conducted
by biologists dedicated to curbing human degeneration; the urge to
improve the human species was shared within intellectual circles, at
universities and public security institutions, among doctors, psychologists,
and others. The Galtonian theoretical architecture enabled the
development of two aspects of racism: first, Darwin’s cousin, by
considering that, biologically speaking, there are differences not only
among peoples, but within each people, there is a superior elite within
each people, whether in physical or mental aspects, whose traits their
descendants would inherit. Second, and following this, eugenics would
be the justification for the domination by some peoples over others, and
within each society, by one class over the other (Bernardo, 1998).
Another name worth highlighting as a representative of the eugenics
movement, is Karl Pearson (1857–1936), whose concern was education as
a means to enable the personal development of individuals. It is no
coincidence that his first inclinations involved him in the reform of the
University of London, while, at the same time, he engaged in the “education
of workers and dissemination of socialism” (Priven, 2013, p.18). After
taking a chair in Applied Mathematics and Mechanics at University
College London (UCL), in 1884, seven years later Pearson was appointed
to teach Geometry in the Gresham chair, at Gresham College. The targets
of his conferences were the members of the City of London (Priven, 2013).
The context in which Pearson was active was precisely the period when
the concepts of biometry were being formulated, which coincided with the
moment when statistics was inserted in biology. The first syntheses of his
investigations were collected in one of his main works entitled The
Grammar of Science, which consisted of nothing more than the lectures he
delivered in his courses in 1891, but which would rank the British thinker
as one of the major references in science, in what today we could refer to
as “logical positivism.”
18 Agrarian South: Journal of Political Economy

According to Priven’s study (2013, p. 21), Pearson’s appreciation for


Darwinian studies, the discussion on the theory of evolution, and the
studies on zoology resulted not only in his biometrics program, but also
in the implementation of the discipline of statistics. Owing to his works,
statistics began to be considered a science, and it is not surprisingly that,
in Applied Human Sciences and Administration courses, it became a
way to “explain” reality based on catalogued data. However, it was from
1893 onwards that Pearson developed a new mathematical theory of
evolution, which culminated in a new discipline called Biometrics. It
consisted of the collection of biological data and the primary statistical
theory for the data’s treatment. In 1901, together with Walter F. R.
Weldon (1860–1906), Pearson founded the journal Biometrika and in
1903 he inaugurated the Biometrics Laboratory for the manipulation of
statistical data in the field of biology, besides resolving and substantiating
studies grounded on Darwin’s theory through the interpretation of
catalogued documents, where the task of science was to describe facts,
events, or data, rather than explain them. Like the supporters of eugenic
ideas, Pearson believed that the socially constructed features were due to
heredity; therefore, he bet on the control of fertility as a way to curb the
reproduction of individuals with bad “endowments,” given that “neither
education, nor social legislation, nor the sanitary reforms would ever be
able to transform a degenerate and deficient endowment into a healthy
and strong one” (Priven, 2013, p. 22).
Considering all that has been said about Pearson, we may conclude
that he was one of the most prestigious references in the eugenics
movement, both within and outside the European continent. His concern
to substantiate the “abnormalities” and provide scientific support through
statistics gained him acclaimed in the main circles of the English society,
whether in academia, among medical and public health professionals, or
all those who believed in eugenics as a means for the improvement of
humankind. In other words, the belief in selective birth control was the
work of those in line with the precepts of eugenics, and it was up to
“scientists” to provide the fundamental basis, which would allow such an
aspiration to enter into effect, that is, to encourage the reproduction of
the fittest and prevent the reproduction of the undesirable.
For the founder of Biometrics and other eugenicists, any policy of
social assistance, education, rest, and other policies that benefit the poor,
stimulates and promotes the reproduction of the degenerate. In this sense,
statistics, biometrics, which in turn would provide support to eugenics
and the means to improve state policies, besides being the best remedy to
fight the “parasites” of society, should enable the reproduction of the
Góes and Faustino 19

so-called superior groups. After the offensives of Galton and Pearson,


the eugenics movement gained international dimension, with the support
of other theorists who believed in eugenics as a means to solve the
economic and social contradictions in their own countries, including in
those in which there was concern with building a “nation.” Besides
England, among the countries of the European continent that embraced
eugenic precepts were Germany, Italy, France, Switzerland, Sweden, and
Belgium. Outside of Europe, eugenics got support in the USA, Cuba,
Chile, Argentina, Ecuador, and Brazil, and, in the Asian continent, Japan.
Even though the eugenics movement found support in the places
above, it should be noted that eugenic ideas were a mechanism in
response to the specific demands created by the dominant classes,
according to their own particularities. That is, the eugenics movement
was leveraged and encouraged by the bourgeois class throughout the
world against the working class, assuming different shapes according to
its adherents. It is no coincidence that those who invested in research, the
institutions for the implementation of eugenics, were segments of big
capital, such as businessmen and tycoons with vast fortunes, and who, in
order to maintain the valorization of capital and its class hegemony, had
to bet on eugenics as a means of control and exploitation of the working
class (Góes, 2018).

Conclusion
In this article, we have seen that the expansion of the capitalist mode of
production took place, in the first instance, the interior of the European
continent, due to the ramifications of the modern era. Based on this
exposition, we verified that capitalism had as its mechanism, the use of
violence, invasions, and plunder to enable the social organization that
began in the fifteenth century. Therefore, to guarantee its production
and reproduction, the capitalist mode of production had to drag in and
corral other forms of social organization, penetrating other localities
like a whirlwind, subordinating peoples from the four corners of the
world. In Europe, it destroyed the feudal-vassal relations, undermined
the rural-based social relations, and subjugated rural workers in the
cities, transforming them into a proletariat to be exploited. Elsewhere,
capital was disseminated through colonization and the subordination of
the original peoples and Africans. Having as a goal a class validation
project, the ideology of racism was forged in the threshold of capitalism,
based on theological and philosophical arguments.
20 Agrarian South: Journal of Political Economy

By exposing the processes of metamorphosis of capital, we identified


that, from the Industrial Revolution onwards, and with the ideas regarding
the “nation” and the consolidation of imperialism, capital created
disciplines disguised as “sciences” whose aim was to ratify its expansion,
further strengthening the ideology of racism intertwined with the
productive base. Accordingly, we found that scientism is reconcilable
with the productive form anchored in relative surplus value, and for that
reason, it obscures the existence of labor exploitation and the identification
of the various forms of subsumption of labor by capital. In this sense, the
ideology of racism was a fundamental aspect in dividing and exploiting
the working class, based on theories of race, nationalism, and many other
concepts created by the new sciences, the function of which is, in fact, to
conceal class contradictions.

Declaration of Conflicting Interests


The authors declared no potential conflicts of interest with respect to the research,
authorship, and/or publication of this article.

Funding
The authors received no financial support for the research, authorship, and/or
publication of this article.

ORCID iD
Deivison M. Faustino https://orcid.org/0000-0002-3454-7966

Notes
1. All these were exogenously given names to those people who, in the first
instance, used other denominations to refer to themselves (Goelet, 1999).
2. Africans of different ethnicities and other Muslim people, especially Turks
and Arabs. However, over the centuries, Europeans who converted to Islam
also came to be called Moors by Christians or Muldi by the Moors (Cuesta,
2005).
3. According to Devisse and Labib (1984, p. 646): From the tenth to the twelfth
century, African gold contributed above all to the excellence of the Fatimid,
“Umayyad, Almoravid, Almohad, and Hafsid coinages. Gold continued
to flow towards North Africa, with a few fluctuations about which too lit-
tle is known, until the end of the fifteenth century… It still provided the
rulers, who controlled its circulation with varying degrees of success, not
only with the raw material for minting coins, but also with political prestige
and a degree of luxury at their courts which the Arabwriters describe. But
new developments gradually modified the position to the advantage of the
Europeans”.
Góes and Faustino 21

4. For more on this matter, see Marx (1976), in the section on “so-called primi-
tive accumulation,” especially the “bloody legislation” against expropriated
peasants, a measure that led to the consolidation of wage labor.

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Outubro no seio do movimento negro
nos EUA: da revolução à política de con-
cessões

Weber Lopes Góes1

Resumo: Neste artigo, examinamos as determinações em que emergiram os movimentos


de natureza socialista nos Estados Unidos da América a partir da Revolução de Outubro
de 1917. Apresentamos, a grosso modo, as formas de organização e perspectivas dos mo-
vimentos sociais, sindicatos e partidos, a saber: a luta contra o racismo, a discriminação
racial e a tentativa de superação da ordem do capital. Por fim, apresentamos as estratégias
elaboradas pelas classes dominantes norte-americanas para debelar os movimentos so-
ciais naquele país.
Palavras-chave: Movimento negro; Luta contra o racismo; Revolução de outubro.

80

Abstract: In this article, we examine the determinations that emerged from the movements
of a socialist nature in the United States of America after the October Revolution of
1917. We intend to present roughly the forms of organization and the perspectives of
social movements, trade unions and parties, namely: the fight against racism, racial
discrimination and overcoming the order of capital. Finally, we present the strategies
developed by the dominant American classes to overthrow the social movements in that
country.
Keywords: Black movement; Fight against racism; October Revolution.

1
Doutorando em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC e professor do colegiado de
Serviço Social da Faculdade de Mauá-SP, Brasil. E-mail: [email protected]
Agradeço à Renata Gonçalves pela leitura atenta e pelas sugestões incorporadas ao texto.

Ponto e Vírgula - PUC SP - No. 21 - Primeiro Semestre de 2017 - p. 80-95


WEBER LOPES GÓES OUTUBRO NO SEIO DO MOVIMENTO NEGRO (...)

Introdução

Marx, ao redigir o documento para o lançamento da Associação Internacional


dos Trabalhadores em 1864 (conhecida como Internacional Comunista), afirmou que
a “luta por uma tal política externa faz parte de uma luta geral pela emancipação do
proletariado” (MARX, s/d., p. 321). Havia uma aposta na internacionalização da luta dos
trabalhadores e o fim da #IC em 1876, não acabou com as tentativas de reorganizar os
trabalhadores internacionalmente, como fica explícito no combate ao caráter reformista
da II Internacional feito pelas tendências que defendiam a ruptura com o capital por meio
de transformações radicais. Com a Revolução de 1917, o anseio pela organização dos
trabalhadores é retomado sob o protagonismo de Lenin, em 1919. Os trabalhadores europeus
e de outros continentes passaram a se organizar contra a ordem capitalista tendo como
referência Outubro e a orientação ideológica e política do comunismo. Neste contexto,
foram realizados os congressos da III Internacional Comunista, de 1919 a 1935, sendo os
#cinco primeiros coordenados por Lenin. Nestes congressos, elaborou-se uma gama de
discussões, documentos, “análises e resoluções, que possibilitam detalhar o surgimento
e desenvolvimento de teses ligadas à classe trabalhadora mundial. Dentre estas teses, a
81
questão racial viria a ter, por iniciativa de Lenin, um papel central” (CHADAREVIAN,
200, p. 77).
A importância de Lenin está em sua capacidade de organização do proletariado
russo, nos embates travados ao longo da sua biografia, no conjunto de sua obra, mas
também em virtude da sua agilidade em captar o movimento do real, especialmente no
que tange à dinâmica do capitalismo e das lutas dos trabalhadores em outros continentes.
Neste particular, insere-se o texto escrito em fevereiro e maio de 1914, O direito das nações
à autodeterminação (1976), onde o líder revolucionário defende a autodeterminação dos
povos face à opressão dos países mais desenvolvidos. Embora as lutas dos oprimidos sejam
de natureza nacionalista, Lenin as considera legítimas e, em virtude de o desenvolvimento
das forças produtivas das nações serem menores, em comparação com as grandes nações,
seria necessário defender o crescimento interior da nação. Decorrem destas primeiras
observações, as suas análises sobre a situação dos negros, em especial nos Estados Unidos
das América. A opressão dos negros estadunidenses será tematizada em seus escritos,
sobretudo no texto publicado em 1918, Capitalismo e Agricultura nos Estados Unidos
da América: novos dados sobre as leis de desenvolvimento do capitalismo na agricultura

Ponto e Vírgula - PUC SP - No. 21 - Primeiro Semestre de 2017 - p. 80-95


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(1980), onde o pensador e ativista russo denuncia a situação dos afro-americanos naquele
continente.
Ao apreciar o estágio do capitalismo estadunidense, Lenin pôde apreender a
natureza do desenvolvimento das forças produtivas e do patamar em que o modo de
produção capitalista se encontrava nos Estados Unidos considerando as diferenças entre o
Norte e o Sul e, principalmente, a condição dos afro-americanos. Nos Estados Unidos se
propagava, desde o seu nascedouro, a ideia de uma democracia consolidada, responsável
pela garantia de igualdade, sem distinção de “raça”, cujos cidadãos poderiam usufruir de
liberdade e oportunidade. Todavia, o pensador russo, quando se debruçou sobre a situação
dos descendentes de africanos escravizados naquele país, percebeu que os atributos
ideológicos elaborados pelas classes dominantes do Norte da América não condiziam
com a realidade. Lenin denunciou a opressão da burguesia sobre os afro-americanos,
em especial no momento em que dedicou sua atenção à situação econômica. Quando
comparou o percentual de negros e brancos naquela região, expôs o número de afro-
americanos que, embora menor em relação aos brancos2, são quem mais sofrem com a
dominação e opressão. O autor descortinou a situação em que os negros se encontravam,
desde as condições materiais, passando pela violência, desigualdades, degradação e
82
pauperismo, o que, aliás, considerou semelhante aos camponeses russos. Nas palavras de
Lenin:
É inútil discorrer sobre a situação degradante à qual eles estão submetidos:
neste aspecto, a burguesia americana não é melhor que a de outros países.
Após haver “libertado” os negros, ela se esforçou, com base de capitalismo
“livre” e republicano-democrático, por estabelecer tudo que fosse possível
para ser restabelecido, por fazer o possível e o impossível para oprimir os
negros da maneira mais descarada e vil. Para caracterizar o seu nível cultural,
basta mencionar um pequeno fato estatístico; (...) A semelhança da situação
dos negros na América e dos camponeses ex-servos de latifundiários na Rússia
agrícola do centro é verdadeiramente surpreendente. (1980, p. 17-18).

Logo no 1º Congresso da III Internacional Comunista, de 1919, “uma das teses


colocadas em discussão por Lenin é a falsa promessa de igualdade racial, religiosa e
sexual das democracias burguesas” (CHADAREVIAN, 2007, p. 83). Em 5 de junho de
1920, Lenin prepara as Teses Preliminares: as questões coloniais e nacional. No item
1 do referido documento é abordado o problema da igualdade na sociedade capitalista

2
“Até o presente, o número de negros, que não ultrapassa 0,7% a 2,2% da população das regiões Norte
e Oeste, representa no Sul 22,6 a 33,7% do total da população. A proporção de negros é de 10,7% para o
conjunto dos Estados Unidos”. (LENIN, 1980, p. 17).

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e o líder revolucionário afirma que esta não passa de uma “forma abstrata e formal”
que compõe a natureza da democracia burguesa. Para Lenin, a burguesia, ao pulverizar
o ideário de igualdade jurídica entre proprietários e os proletários, é uma forma de
enganar “grosseiramente as classes oprimidas”. Ao argumentar que os indivíduos são
“absolutamente iguais”, a burguesia “está transformando a ideia de igualdade, que é em
si um reflexo das relações de produção de mercadorias, numa arma na sua luta contra
a abolição das classes” (LENIN, 1974, p. 171). A igualdade substantiva entre os seres
humanos, portanto, só poderia ser efetivada por meio da superação do capital, pela
eliminação das classes sociais.
Lenin apostava na agitação e propaganda, tanto no interior como fora do parlamento
e sugere que os partidos comunistas deveriam expor e denunciar as constantes violações
e desigualdades propaladas pelas nações em relação aos direitos das minorias nacionais,
práticas existentes em todos os países capitalistas, embora travestidas de “democráticas”.
Esta argumentação – item 9 da Tese – preconiza a necessidade de explicar constantemente
que somente o poder Soviético seria capaz de assegurar a igualdade entre as nações, por
meio da união entre os proletários contra a burguesia. Logo,
...todos os partidos comunistas devem prestar ajuda direta aos movimentos
revolucionários das nações dependentes e desfavorecidas (por exemplo, a 83
Irlanda, os negros Americanos etc.) e nas colónias. Sem esta última condição,
que é particularmente importante, a luta contra a opressão de nações dependentes
e colónias, bem como o reconhecimento do seu direito de secessão, são apenas
uma frase falsa, como é evidenciado pelos partidos da Segunda Internacional.
(LENIN, 1974, p. 171).

Estas contribuições de Lenin serão fundamentais para que, em 30 de novembro


de 1922, no 4º Congresso da Internacional Comunista, fosse defendida a tese “Sobre a
questão negra”. Neste documento, no item 1, estão contidas as denúncias em relação à
invasão dos países capitalistas monopolistas.
O capitalismo Francês reconhece claramente que o poder pré-guerra do impe-
rialismo Francês só pode ser mantido através da criação de um império Fran-
co-Africano, defendido por uma ferrovia Trans-Saariana. Os magnatas finan-
ceiros Americanos (que já exploram 12 milhões de negros no seu próprio país)
começaram uma invasão pacífica de África. A medida em que a Grã-Bretanha,
por sua vez, teme qualquer ameaça à sua posição na África é claramente mos-
trada pelas medidas extremas que tomou para reprimir as greves na África do
Sul. (...)Embora a concorrência entre as potências imperialistas no Pacífico
cresceu com a ameaça de uma nova guerra mundial, a rivalidade imperialista
na África, também desempenha um papel sinistro. Finalmente, a guerra, a re-

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WEBER LOPES GÓES OUTUBRO NO SEIO DO MOVIMENTO NEGRO (...)

volução Russa e a rebelião anti-imperialista entre os povos asiáticos e muçul-


manos têm despertado a consciência de milhões de negros que durante séculos
foram oprimidos e humilhados pelo capitalismo na África, e, provavelmente,
ainda em maior grau na América. (COMITERN, 2000, s/p).

Assim, “por 250 anos”, os africanos “foram tratados como gado humano”,
subordinados à violência do “feitor americano”. O trabalho escravizado “limpou as
florestas, construiu estradas, cultivou algodão, construiu ferrovias nas quais repousa
a riqueza da aristocracia do sul dos EUA”. Estes aspectos, abordados no documento,
se acoplam aos resultados da violência da escravidão: “o analfabetismo, a pobreza e a
degradação”. No documento, em especial no item 2, consta a denúncia da utilização dos
negros na guerra civil norte-americana:
A guerra civil, que não era uma guerra para a emancipação dos negros, mas
uma guerra para a preservação da hegemonia industrial do Norte, confrontou os
negros com uma escolha entre o trabalho forçado no Sul e a escravidão salarial
no Norte O sangue, suor e lágrimas dos “emancipados” negros ajudaram
construir o capitalismo Americano, e quando o país, que agora se tornou uma
potência mundial, foi inevitavelmente puxado para a Segunda Guerra Mundial,
os negros Americanos ganharam a sua igualdade de direito com os para matar
e para morrer pela “democracia” (COMITERN, 2000, s/p).
Outro aspecto relevante que precisa ser salientado tem a ver com a contraposição à 84

história oficial. É corriqueiro na história dos “vencedores” os africanos escravizados serem


concebidos como passivos, sem história e outros atributos não humanos. Ora, os africanos
não eram dóceis. Sua “história é cheia de revoltas, rebeliões, e uma luta clandestinas pela
liberdade, mas todos os seus esforços para se libertarem foram violentamente reprimidos”.
Na mesma direção, o documento considera a resistência dos povos africanos aos ataques
dos exploradores:
(...) A luta internacional da raça negra é uma luta contra o inimigo comum. Um
movimento negro internacional com base nesta luta deve ser organizado: nos
Estados Unidos, o centro da cultura negra e protesto negro, na África, com a
sua reserva de mão-de-obra humana para o desenvolvimento do capitalismo, na
América Central (Costa Rica, Guatemala, Colômbia, Nicarágua e outros países
“independente”), onde o domínio do capitalismo Americano é absoluto, em
Porto Rico, Haiti, São Domingos e outras ilhas do Caribe, onde o tratamento
brutal dos nossos irmãos negros pela ocupação Americana provocou um
protesto em todo o mundo de negros conscientes e trabalhadores brancos
revolucionários, na África do Sul e Congo, onde a industrialização crescente
da população negra levou a todos os tipos de revoltas, e no leste da África,
onde as incursões do capital mundial levou a população local a iniciar um ativo
movimento anti-imperialista. (COMITERN, 2000, s/p).

Ponto e Vírgula - PUC SP - No. 21 - Primeiro Semestre de 2017 - p. 80-95


WEBER LOPES GÓES OUTUBRO NO SEIO DO MOVIMENTO NEGRO (...)

A perspectiva da internacionalização da luta dos trabalhadores era candente e


muito presente na Tese. Assim, a “questão negra tornou-se parte integrante da revolução
mundial”, não por acaso, no item 6, o documento encerra com as seguintes propostas:
i) O IV Congresso considera essencial apoiar todas as formas do movimento
negro que visam minar ou enfraquecer o capitalismo e o imperialismo ou im-
pedir a sua expansão.

ii) A Internacional Comunista lutará pela igualdade racial de negros e brancos,


por salários iguais e igualdade de direitos sociais e políticos.

iii) A Internacional Comunista vai fazer todo o possível para forçar os sindi-
catos a admitirem trabalhadores negros onde a admissão é legal, e vai insistir
numa campanha especial para alcançar este fim. Se esta não tiver êxito, irá
organizar os negros nos seus próprios sindicatos e então fazer uso especial da
táctica da frente única para forçar os sindicatos gerais a admiti-los.

iv) A Internacional Comunista vai tomar imediatamente medidas para convo-


car uma conferência ou congresso internacional negro em Moscovo. (COMI-
TERN, 2000, s/d).

A Internacional Comunista se comprometeu, portanto, em apoiar todas as formas


de movimento negro que visam minar ou enfraquecer o capitalismo e o imperialismo
ou impedir a sua expansão3. As preocupações de Lenin, as ações preconizadas pela
85
Internacional Comunista, somadas às ideias da Revolução de Outubro, contribuíram para
que as proposituras do movimento comunista russo reverberassem em outras partes do
mundo, inclusive nos Estados Unidos da América, na África (HARRIS, 2011; THIAM
e MULIRA, 2011; RALSTON, 2010) e na Ásia. Foi assim que um dos representantes
mais importantes do movimento pan-africanista norte-americano W.E.B. Du Bois se
entusiasmou pela União Soviética e os movimentos negros passaram a receber as ideias
socialistas.

Os movimentos negros nos EUA e a receptividade das ideias

socialistas

A influência do comunismo russo no movimento negro estadunidense tem uma relação


direta com as lutas travadas pelos negros norte-americanos desde o momento em que
foram traficados no continente africano, considerando as diversas estratégias de resistência

3
Para maior apreciação dos documentos referente à “questão negra”, conferir em: http://ciml.250x.com/
archive/comintern/portuguese/4_congress_comintern_30_november_1922_negro_question_portuguese.
html

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(durante e após a escravidão) e a construção de laços entre os africanos dos EUA,


que resultou num amplo movimento que passou a ser denominado Pan-Africanismo4.
A particularidade do desenvolvimento do capitalismo nos Estados Unidos consolidou
organizações e lutas específicas, mas também impulsionou uma política racista norte-
americana, principalmente com a lei de segregação (Jim Crow) e a criação dos guetos. A
este processo se vinculam a criação de universidades, sindicados, agremiações, inclusive
de cariz religiosa para poder responder à realidade dos afro-americanos. No que tange
à forma de organização dos negros, são emblemáticas lideranças como as de Frederick
Douglas (1818-1895) na luta pela abolição da escravatura, e W.E.B. du Bois, que “formou,
em 1906, o Movimento do Niágara, juntamente com oito intelectuais negros, pretendia
recuperar vigor e agressividade para o protesto negro e retomar a campanha pela igualdade
civil” (FABRE, 1977, p. 182). Na mesma direção, encontramos Marcus Garvey, um
protagonista na busca por aguçar o “orgulho negro”, “despertando interesse de milhões de
negros americanos pela África depois da Primeira Guerra Mundial” (RALSTON, 2010, p.
876). Em 1914, Garvey cria a organização Universal Negro Improvent and Conservation
Association and African Communities League, conhecida por UNIA, a fim de promover
a emigração de negros para a África (RALSTON, 2010).
86
Encontramos neste período também as organizações socialistas, sobretudo
sindicatos e partido político, cujos protagonistas (operários brancos) em virtude da
ideologia do racismo, não aceitavam a participação de descendentes de africanos
escravizados e menos ainda a participação das mulheres5. A partir da criação da organização
Industrial Workers of the World [Trabalhadores Industriais do Mundo] – IWW, em 1905,
as mulheres passaram a ter uma atuação orgânica e o racismo passa a ser tematizado no
seio dos trabalhadores. A IWW, conhecido popularmente como “Wobblies”, tinha como
finalidade a luta pelo socialismo e defendia a não conciliação entre classes. A organização
acreditava na inviabilidade de diálogo entre patrão e empregado. E mais, conseguiu
identificar outras formas de opressão à classe trabalhadora, a “IWW dirigia a sua atenção
explicitamente aos problemas específicos da população negra” (DAVIS, 2016, p. 157).

4
O pan-africanismo é um movimento que tem a sua origem nas lutas dos africanos na diáspora, isto é,
contra a escravatura, o colonialismo; contra o racismo praticado aos africanos. Embora a palavra pan-
africanismo e pan-africano tenha sido utilizadas no final do século XIX, já havia a prática de tal movimento
desde as práticas contra a escravidão e opressão, as práticas de organizações pela abolição da escravatura
e, principalmente pela propagação da união entre os africanos espalhados no mundo. Consultar: Boahen
(2010) e Mazrui; Wondji (2011).
5
Em relação à atuação das mulheres nos partidos e sindicatos nos EUA, conferir em Angela Davis
(2016).

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Os afro-americanos constituíram também a Liga Urbana, em 1910, financiada pelos


industriais do Norte, cuja finalidade era assegurar a igualdade no mercado de trabalho
e a “qualificação” profissional de trabalhadores negros. Na sequencia, foi organizado
o Brotherhood of Sleeping6, o primeiro sindicato negro, criado em 1925, por A. Philip
Randolph, com o objetivo de combater a discriminação no emprego, principalmente nas
fábricas de armamento (FABRE, 1977, p. 183).
Havia, portanto, uma tentativa de estabelecer uma união entre os negros norte-
americanos a fim de tornar mais potente as lutas travadas contra o racismo, a discriminação
e a desigualdade, desembocando na Frente Unida dos Negros, criada em 1936, e no Negro
American Labor Council, de 1960 (FABRE, 1977). Apesar de todas as lutas, somente em
1942 foi criado o Congresso Nacional pela Igualdade Racial (CORE), organização que
tinha a participação de intelectuais, segmento da classe média negra, responsável pela
propagação, em 1967, do slogan “Black Power”.
O trajeto que percorremos até aqui demonstra que as organizações menciona-
das não tiveram explicitamente uma perspectiva de orientação comunista7, à exceção de
IWW. As referidas organizações tinham como objetivo o enfrentamento do racismo, da
discriminação e da desigualdade, mas, ao mesmo tempo, cada movimento expressava
87
o contexto interno e externo em que estava inserido, e à medida que as contradições de
classes se acirravam, a natureza do movimento podia tomar os rumos da esquerda ou
da direita. Este foi o caso da Brotherhood of the African Blood8 (Irmandade do Sangue
Africano), organização que surgiu a partir dos conflitos do “Verão Vermelho”9, em 1919.
Tratam-se de revoltas que começaram quando os negros retornaram da guerra, não viram
suas vidas alteradas e resolveram manter as armas para combater as práticas de racismo e

6
Irmandade do Sono.
7
Embora a Brotherhood of Sleeping tenha como protagonista A. Philip Randolph, que no início da sua
militância teve importante atuação contra a opressão, chegando a ser chamado de “Lenin do Harlem”, devi-
do a sua orientação leninista. Com o tempo, ele se tornou um “burocrata” da AFL – Federação Americana
do Trabalho. Tal entidade tinha uma política de alinhamento com a direita e fechava acordos com o setor
patronal. O “Lenin do Harlem” foi responsável pelo cancelamento da Marcha sobre Washington, em 1941.
Sua atuação em favor da direita, o transformou em anticomunista e conservador.
A este respeito, consultar: https://translate.googleusercontent.com/translate_c?depth=1&hl=p-
t-BR&prev=search&rurl=translate.google.com.br&sl=en&sp=nmt4&u=https://socialistworker.
org/2012/08/10/from-harlem-to-the-afl&usg=ALkJrhh9UIyFSdAGZPtfNDON6zuYfbZHYQ .
8
Referente a Brotherhood of the African Blood cf. https://translate.googleusercontent.com/translate_c?-
depth=1&hl=pt-BR&prev=search&rurl=translate.google.com.br&sl=en&sp=nmt4&u=https://socialis-
tworker.org/2012/06/01/african-blood-brotherhood&usg=ALkJrhh4shU0j2vacbKVKdJUURMIdpx-QA .
9
Os dias de “distúrbios da raça” envolveram mais de 25 grandes cidades. Morreram, em média, 500 negros.
Todavia, os afro-americanos resistiram aos ataques truculentos do estado racista.

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a discriminação. Nesse clima, se consolidou uma organização socialista negra, cujo prin-
cipal quadro foi Cyril Briggs, responsável por um jornal em que começa a tematizar a si-
tuação dos negros nos Estados Unidos da América. Até 1920, esta organização não tinha
contato com o Partido Socialista (que em pouco tempo se tornaria o Partido Comunista)
norte-americano, que acreditava que a Irmandade era separatista10. Após as orientações
de Lenin, os socialistas se aproximaram de Briggs possibilitando uma organização de
esquerda, buscando fortalecer o movimento contra o racismo e a classe trabalhadora na
luta pelo socialismo (SUSTAR, 2012).
No seio do movimento socialista, identificamos um forte protagonismo das
mulheres negras estadunidenses. De acordo com Angela Davis (2016), foram inúmeras
mulheres que tiveram um papel importante na luta pela emancipação, não somente das
mulheres, ou das mulheres negras, mas da classe trabalhadora como um todo. Davis elen-
ca uma quantidade expressiva de mulheres socialistas que atuaram no seio do movimento
de esquerda norte-americano. Como, por exemplo, Helen Holman, integrante do Partido
Socialista, que teve um papel decisivo na defesa pela liberdade de Kate Richards O’Hare,
quando estas se encontrava presa; ou Lucy Parsons11 (1853-1942), cuja “trajetória política
abrangeu desde a defesa do anarquismo, na juventude, até a filiação ao Partido Comu-
88
nista”. Para esta, “o racismo e sexismo eram ofuscados pela ampla exploração da classe
trabalhadora pelos capitalistas” (DAVIS, 2016, p. 158-159). Ella Reeve Bloor (1862-
1951) foi outra militante socialista que tinha a capacidade de captar a relação entre raça
e classe. Em 1929, ao participar da convenção organizada pela Defesa Operária Interna-
cional, realizada em Pittsburgh, Pensilvânia, Bloor combateu a discriminação de delega-
dos negros que foram impedidos de entrarem no Hotel (DAVIS, 2016). Responsável em
organizar uma delegação dos Estados Unidos para participar do Congresso Internacional
de Mulheres em Paris, Bloor levou consigo quatro militantes trabalhadoras negras que
tiveram uma participação expressiva no congresso12. Além das mulheres, a Igreja desem-

10
Relação muito semelhante ao dos comunistas no Brasil no mesmo período. A este respeito, ver Góes e
Gonçalves (2017).
11
Em 1877 Parsons publicava seus artigos e poemas no jornal Socialist. Integoru o Sindicato de Trabalha-
doras de Chicago. Seu protagonismo ganhou vulto após participar ativamente na libertação dos ativistas
que foram presos em 1º de maio de 1886, na praça Haymarker. Segundo Angela Davis, “sua reputação fez
dela um alvo muito frequente da repressão. Em Columbos, Ohio, por exemplo, o prefeito proibiu um de
seus discursos previsto no mês de março – e ela se recusou a respeitar o mandato de interdição, o que levou
a polícia a prendê-la” (2016: 158). Davis observa que em cada cidade a que Parsons ia, as portas se fecha-
vam no último minuto e a polícia a mantinha sob constante vigilância.
12
Em virtude do curto espaço, não é possível apresentar as mulheres que tiveram uma ampla participação

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penhou papel fundamental na militância dos negros, como foi o caso da Southern Chris-
tian Leadership Conference (SCLC), após o boicote aos transportes públicos realizado
em Montgomery em 1957, que tomou maior capilaridade com a atuação de Martin Luther
King13.
Ressaltamos, portanto, que nos Estados Unidos da América, houve um acúmulo
de lutas, principalmente daquelas que emergiram em Chicago e Nova York, sobretudo
no Harlem, de onde surgiram inúmeros militantes negros do movimento socialista. As
lutas travadas pelos negros norte-americanos contribuíam para que a Comintern passasse
a ver a questão negra numa perspectiva pan-africana, ou seja, “se os Africanos tinham
que enfrentar problemas comuns, estavam implicados numa luta comum, como se os seus
destinos estivessem de certa forma ligados. O Comintern conservou esta abordagem, com
algumas reservas, até ao seu VII congresso, em 1935” (ADI, 2017).

Da emancipação às políticas de concessões

A perseguição dos afro-americanos tem seu início, especialmente, a partir da


abolição da escravatura. Quando os afro-americanos foram “libertados”, uma série de
89
medidas foi adotada a fim de condicioná-los ao pauperismo e subordiná-los a condições
estabelecidas pelos governos dos EUA. Desde quando os negros pisaram compulsoriamente
os pés no continente, foram subsumidos à institucionalização: da escravização (1619-
1865), passando pela lei de segregação Jim Crow (1865-1965), até a efetivação dos Guetos
(1915-1968) e, de 1968 para cá, do Hipergueto (WACQUANT, 2017). A organização de
extrema direita o Ku Klux Klan teve papel fundamental neste processo. Criada em 1860,
continua a existir, sob outra roupagem, nos dias de hoje. Esta organização teve o seu
apogeu com a abolição da escravidão norte-americana, em 1865. Defendeu o retorno
dos afro-americanos para a África e o extermínio dessa população através da prática
do linchamento, perseguição e outras formas consolidadas para debelar os negros. A
atuação do Ku Klu Klan é tão emblemática ao ponto de ser concebida como uma das
primeiras organizações a colocar os Estados Unidos da América enquanto precursor do
nazismo (LOSURDO, 2017). A organização foi ainda responsável por contribuir para

no movimento socialista norte-americano, tal empreitada nos levaria a outro caminho do presente artigo.
Porém, os interessados em mergulhar na temática, podem consultar Angela Davis em Mulheres, raça e
classe, especialmente o capítulo 10 “Mulheres Comunistas”.
13
Outros viriam na sequência: Malcom X e os Panteras Negras.

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a criação do “mito” do estuprador negro, cuja finalidade era justificar os massacres e


linchamentos, bem como a criminalização de afro-americanos. Com as organizações dos
afro-americanos, desde as comunidades religiosas, sindicais e partidárias, os descendentes
de africanos escravizados passaram a ser alvo preferido do Ku Klux Klan. As vítimas da
organização conservadora eram pessoas isentas ou com vínculos de engajamento político.
A organização reacionária pode, portanto, ser concebida enquanto um mecanismo
(paramilitar) que se efetivou para manter a supremacia branca e os privilégios das classes
dominantes nos Estados Unidos.
Na medida em que o movimento socialista crescia nos Estados Unidos, diversas
medidas foram tomadas para impedir este avanço. Assim, o FBI criado em 1908, passou
a ser utilizado para frear e desmantelar as organizações anarquistas e socialistas naquele
país.
O fantasma de 1917 precisava ser combatido. Não por acaso, os EUA serão palco
de uma gama de mobilizações dos movimentos negros e de organizações socialistas.
Tal é o caso dos movimentos sociais negros que crescem a partir da década de 60 do
século passado. Em 04 de abril, depois de Johnson suspender os ataques ao Vietnã do
Norte e renunciar à candidatura à presidência, segundo Moniz-Bandeira, “o assassinato
90
de Martin Luther King, líder dos direitos civis e do movimento pela igualdade racial,
provocou a erupção de revoltas nos bairros negros de 19 cidades nos Estados Unidos, que
deixaram cerca de cinquenta mortos” (2009, p. 278). As múltiplas manifestações contra
a segregação racial, acompanhadas de saques e violências abalaram as classes dirigentes
americanas. Nessa ocasião, “sete brigadas de infantaria, totalizando 21.000 soldados,
estavam prontas para intervir e um centro de computação, altamente sofisticado, fornecia
informações” (MONIZ-BANDEIRA, 2009, p. 278). Os Estados Unidos investiram US$
2,7 milhões, sendo que 150 funcionários monitoravam as revoltas nas cidades e havia
tropas à disposição, que poderiam ser deslocadas, se fosse necessária para qualquer
Estado (MONIZ-BANDEIRA, 2009). Uma série de práticas foi engendrada para brecar
os movimentos sociais no norte da América, com destaque para a CIA e o FBI, que
tiveram um papel importante no desmonte da esquerda, dentro e fora dos Estados Unidos.
A CIA esteve engajada durante 20 anos na realização de vigilância, infiltrando agentes
nas organizações, realizando escutas telefônicas, além de averiguar cartas e catalogação
de indivíduos envolvidos em organizações, por meio de fotografias e a obtenção de cópias
de telegramas (MONIZ-BANDEIRA, 2009). Suas práticas estavam pari passu com o
FBI. Este executava o Counter Intelligence Program (COINTELPRO), programa de

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realização de sabotagem, vigilância eletrônica, sendo uma de suas vítimas Luther King
e outras lideranças políticas. Na mira do FBI estavam o “Comunist Party, o Socialist
Workers Party, Whit Hate Group, a Studants for Democratic Society e o Black Panther,
em sua lista de 2.300 organizações, classificadas como Old Left, New Left e Right Wing.
Partido Comunista”14 (MONIZ-BANDEIRA, 2009, p. 350).
A ofensiva da burguesia norte-americana possibilitou o desmonte das organizações
numa perspectiva de impedir o avanço das lutas sociais, por meio do assassinato de
lideranças, da criminalização de movimentos sociais e partidos políticos. Esta ofensiva
também se traduziu na política de concessão que ganhou corpo com o desmantelamento
dos imperialismos baseados na Europa. A Declaração de Direitos Humanos da ONU e
os estudos da UNESCO desautorizaram o racismo. A burguesia correu para demonstrar
o seu apreço à “democracia”. Os Estados Unidos da América passam a ser o “guardião”
da igualdade e o defensor dos “direitos” civis. Já não havia movimentos de esquerda a
esmagar.
No estudo Capitalismo Monopolista – ensaio sobre a ordem econômica e social
americana, Paul Baran e Paul Sweezy (1978), especialmente no capítulo dedicado às
relações étnico-raciais nos Estados Unidos, evidenciam que o capitalismo monopolista
91
possibilitou a ascensão de uma classe média e uma burguesia negra. No entanto, os
autores demonstram que tais investidas só foram realizadas devido à emigração de negros
do Sul para o Norte dos Estados Unidos, considerando que na parte industrializada desse
país a oferta de empregos era maior devido à presença de indústrias, mesmo havendo
discriminação aos trabalhadores negros. A racionalização da política de imigração e a
Segunda Guerra permitiram, segundo os autores, que houvesse ofertas de empregos para a
população negra, além de sua inserção nos setores públicos. Baran e Sweezy argumentam
que através desse quadro ventilou-se a crença segundo a qual os negros sofreriam
alternância em relação à situação social o que acabaria por eliminar a discriminação e o
preconceito. Porém, os pensadores argumentam que para além do aumento da pobreza,
tais mudanças foram viabilizadas apenas no âmbito individual e para o conjunto dos afro-
americanos, visto que a maioria está confinada nos guetos. Neste contexto, os Estados
Unidos da América passaram a ventilar o ideário de um país democrático ao implementar

14
“Durante a Operation CHAOS, implantada em 1968 e expandida em 1969, a NSA, a CIA e o FBI pu-
seram mais de 300.000 estudantes e outros cidadãos americanos sob vigilância; interceptaram correspon-
dência, investigaram e infiltraram os campi universitários e centenas de organizações dentro dos Estados
Unidos. Por volta de 1976, a CIA e outras agências gastavam mais de US$ 12 bilhões em investigações
oficiais, algumas vezes ilegais e frequentemente sem o controle do governo” (Moniz-Bandeira, 2009: 350).

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políticas de “concessões”, as políticas de ação afirmativa, demandas elaboradas pelos


movimentos negros norte-americanos e que foram plagiadas pela burguesia dos EUA
em seu favor. Se tais políticas fossem instituídas, como era a aposta, “a capacidade
revolucionária em potencial do movimento negro de protesto poderá ser neutralizada”
(BARAN e SWEEZY, 1978, p. 273).
Na mesma direção, segundo o geógrafo David Harvey,
Foi preciso cultivar e projetar no exterior o pró-americanismo. E assim teve
início o amplo ataque cultural aos valores europeus “decadentes” e a promoção
da superioridade da cultura americana e dos “valores americanos”. Empregou-
se o poder do dinheiro para dominar a produção cultural e influenciar os valores
culturais. [...] O imperialismo cultural tornou-se importante arma na luta para
afirmar a hegemonia geral. Hollywood, a música popular, formas culturais e
até movimentos políticos inteiros, como os direitos civis, foram mobilizados
para promover o desejo de emular o modo americano de ser. Os Estados Unidos
foram concebidos como um farol da liberdade dotado do poder exclusivo de
engajar o resto do mundo numa civilização duradoura caracterizada pela paz e
prosperidade (HARVEY, 2006, p. 53).

Houve a decapitação dos movimentos sociais de esquerda por meio da violência


e da criminalização. As políticas de concessões vieram complementar, viabilizando o
92
acesso a políticas de ação afirmativa, a fim de criar uma classe média e uma burguesia
negras que passaram a propagar “conquistas” de natureza liberal, que atenderam uma
parcela e não a totalidade da população negra. Esta continuou condenada à segregação e
ao encarceramento.

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Conclusão

Após a Revolução de Outubro, as experiências e a tentativa de impulsionar as lutas


pela emancipação extrapolou o continente europeu e atravessou o atlântico resultando no
fortalecimento dos movimentos sociais norte-americanos. O esforço para a superação
do capital pôde ser explicitada nos diversos segmentos sociais estadunidenses, tanto nas
organizações sociais compostas por brancos, como no interior dos movimentos sociais
negros, sindicatos e partidos políticos.
O êxito destes movimentos sociais obrigou os dirigentes da classe dominante a
elaborar estratégias para dificultar as atividades das organizações e minar a perspectiva
de transformação social, seja por meio do extermínio de lideranças do movimento negro,
da destruição das organizações sociais, como por exemplo os Panteras Negras, seja por
meio da cooptação de quadros para o campo da direita.
Houve, sem dúvida, inúmeros equívocos no interior dos próprios movimentos –
tema que não foi possível explorar no presente artigo –, todavia, o capital lançou mão
de ferramentas capazes de minguar os movimentos e impedir a ascensão de projetos
emancipatórios que buscavam a superação da ordem do capital.
93
As lutas encampadas pelos movimentos sociais negros nos Estados Unidos da
América, principalmente a partir da influência e colaboração dos comunistas demonstraram
que é possível resistir e buscar outra sociabilidade. A história é feita de contradições e não
chegamos ao seu fim, visto que são os homens que a fazem dentro de condições dadas e
herdadas do passado, conforme Marx. Talvez a lição que devamos tirar de Outubro e dos
movimentos sociais negros é que a classe trabalhadora quando se organiza pode alterar o
curso da história.

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Resenhas Frantz Fanon: um
revolucionário particularmente
negro*
de Deivison Mendes Faustino

Frantz Fanon e a construção


de outra humanidade

Frantz Fanon and the Construction of Another Humanity

por Weber Lopes Góes**

Em 2015, o Departamento do Programa de Pós-Graduação em Sociologia


da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) foi palco de uma defesa de
tese de doutorado intitulada Por que Fanon, porque agora? Frantz Fanon e os fanonismos
no Brasil, cuja autoria é de Deivison Mendes Faustino, sociólogo e hoje professor
da Universidade Federal de São Paulo – Campus Baixada-Santista. A referida
pesquisa, em virtude da envergadura, seriedade e rigor teórico-metodológico,
recebeu Menção Honrosa do Prêmio CAPES, em 2016, como a melhor tese de
Sociologia. Três anos depois, o Ciclo Contínuo Editorial torna pública uma parte
do trabalho de Faustino.
Frantz Fanon: um revolucionário particularmente negro é um livro que apresenta
uma trajetória política e intelectual de Frantz Fanon (1925-1961), que dedicou
uma parte expressiva de sua vida à defesa da libertação dos povos oprimidos no
mundo. Autor de Peles negras, máscaras brancas (2008) e Os condenados terra (1979),
não hesitou em despender esforços para denunciar as desigualdades étnico-raciais
no seio da sociabilidade do capital, de atuar nas lutas de libertação na África,
particularmente na Argélia.

* São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018.


** Doutorando em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC. Professor da
Faculdade de Mauá-SP, Brasil. Autor de Racismo e eugenia no pensamento conservador brasileiro.
São Paulo: LiberArs, 2018. End. eletrônico: [email protected]

Recebida em 01 de maio de 2018. Aprovada em 24 de maio de 2019 • 185


A pesquisa de Faustino se deu por meio de duas contribuições: a primeira é
fruto do contato que estabelecera com um intelectual e fundador do Movimento
Negro Unificado (MNU), Milton Barbosa, que lhe apresentou Frantz Fanon,
estimulando o aprofundamento sobre o ativista martinicano, principalmente
sobre a receptividade de sua obra no Brasil. A segunda contribuição emergiu a
partir de uma indagação – Por que Fanon, por que agora? – feita por Stuart Hall
em um encontro promovido pelo Institute of Contemporany Arts (ICA), em
Londres, no ano de 1995. Depois de 23 anos, a questão do pensador jamaicano
mereceu o título da tese de Deivison Mendes Faustino.
Frantz Fanon: um revolucionário particularmente negro é o primeiro livro sobre
Frantz Fanon no Brasil. Passados 57 anos da sua morte, estudantes, ativistas de
movimentos sociais e demais interessados em conhecer o edifício teórico e o
protagonismo de Fanon podem encontrar no presente trabalho não somente
informações que o autor disponibiliza, mas uma ferramenta para a apreensão da
sociabilidade na qual estamos inseridos.
De fato, a opção de Faustino em eleger Frantz Fanon para a sua pesquisa
não é arbitrária. Ao contrário, é uma maneira de jogar luz para que possamos
agarrar a realidade brasileira, sobretudo num contexto em que acentuam as con-
tradições de classes, principalmente no país que ocupa a terceira posição no que
se refere à taxa de encarceramento de seres humanos1, em especial, de jovens
negro(a)s e, ainda, devido o caminho anticivilizatório que o Brasil tem trilhado,
o qualificando como um dos países mais violentos do planeta2.
Nessa direção, a obra de Deivison Mendes Faustino, ao trazer a lume o autor
martinicano, permite identificarmos quais as facetas do racismo, os seus impactos
na subjetividade daqueles que são alvo dessa perversa forma de estranhamento
humano e quais os mecanismos de controle do capital sobre o trabalho. Neste
caso, o livro pode nos oferecer pistas para desvelar as artimanhas de dominação
do capital e abre senda para a sua superação.
Faustino, ao biografar Frantz Fanon, longe de canoniza-lo, expõe um pen-
sador humano, com suas contradições e dilemas ao longo da sua vida, como por
exemplo, desde a sua infância teve de encontrar meios para superar a ausência de
seu pai e, pelo fato de ser oriundo da Martinica, colônia francesa, acreditava ser
um “francês”, mas quando chega à França para realizar seus estudos é percebido
pelos gauleses enquanto um “negro martinicano”. Em suma, o texto apresenta

1
Cf. o documento intitulado Levantamento nacional de informações penitenciárias: INFOPEN.
Atualização – Junho 2016. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento
Penitenciário Nacional, 2017.
2
Trata-se do Estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA) e o Fórum Brasileiro de
Segurança Publica (FBSP), sobre o Mapa da Violência recém-publicado.

186 • Lutas Sociais, São Paulo, vol.22 n.40, p.185-190, jan./jun. 2018.
um pensador que, mesmo com as suas questões, subjetivas e objetivas, despendeu
esforços para a superação da ordem vigente.
Ainda no âmbito biográfico (p. 84), ao mesmo tempo em que Fanon é
apresentado de forma “cronológica”, o leitor poderá acompanhar uma gama de
eventos que ele pôde vivenciar, desde a sua participação nas lutas de libertação
na Argélia, que teve o seu início oficialmente nos anos de 1954, ao o I Primeiro
Congresso Internacional de Escritores e Artistas Negros, organizado pela revista Présence
Afriaine, em 1956, além de travar relação com importantes referências que atuaram
em prol da libertação dos países africanos, dos quais destacamos Aimé Cesaire
(1913-2008), Léopold Sédar Senghor (1906-2001), Alioune Diop (1910-1980),
dentre outros.
Na mesma toada, o livro expõe um Frantz Fanon que teve uma carreira
sólida e, em virtude de uma perspectiva que extrapola o seu interesse pessoal,
resolve abandonar o curso de Odontologia, guinando para a Psiquiatria, no qual
assume, em 1953, a direção de um hospital psiquiátrico na cidade de Blida, na
Argélia. Esse período foi significativo, pois o possibilitou compreender os im-
pactos do “colonialismo na estrutura psíquica humana” (Faustino, 2018, p. 66),
se deparando com pacientes franceses e argelinos sob os transtornos mentais
decorrentes da violência.
Ao atuar no hospital psiquiátrico, Fanon extinguiu a segregação racial exis-
tente naquele local, proporcionando o convívio entre árabes, berberes e franceses
na mesma ala, além de assegurar a liberdade dos pacientes para entrar e sair de
acordo com seus anseios e aboliu o uso de camisa de força, medida que passaria
a ser utilizada em casos extremos. Tais reformas fizeram com que Fanon fosse
visto pelos colegas de trabalho de forma pejorativa, enquanto “Doutor Árabe”
(Faustino, 2018, p. 69).
Entretanto, sua prática no hospital psiquiátrico não se restringiu às reformas
acima. Ao travar contato com os membros da Frente de Libertação Nacional
da Argélia (FLN), em 1955, fornecendo materiais às famílias dos militantes que
se encontravam presos, atendendo os combatentes que sofriam de distúrbios
psíquicos, Fanon realizava treinos de primeiros socorros para os integrantes da
FLN e contrabandeava medicamentos para que os combatentes tivessem sucesso
no front. Todas as ações eram efetivadas clandestinamente (Faustino, 2018).
Em Frantz Fanon: um revolucionário particularmente negro, o professor Deivison
Faustino apresenta uma série de assuntos que Fanon enfrentou: o papel do
imperialismo nas colônias africanas e no mundo; o uso da violência encampada
pela burguesia imperialista sobre os países neocolonizados; as tematizações
referentes ao conceito de “homem universal e singular”, como a ideologia do
racismo construiu um “tipo” de ser humano, cujos povos, não-europeus, não
eram considerados membros da “comunidade humana” (Fanon, 2008).

Frantz Fanon: um revolucionário... Góes, W. • 187


Os aspectos mencionados são abordados de forma minuciosa por Faustino,
que o leitor ora tem a possibilidade de prestigiar. Para elucidar a qualidade do
presente livro, elencamos dois enunciados que consideramos significativos para
o leitor. Trata-se do conceito de racismo e cultura.
Foi na comunicação intitulada “Racismo e Cultura”3, apresentada no I Pri-
meiro Congresso de Escritores e Artistas Negros, que Fanon tematizou o significado
do racismo. Para além de ser um meio de dominação político e econômico, o
racismo, não seria um “choque” entre as civilizações, tampouco uma luta de
“raças”. O racismo é um mecanismo utilizado para estabelecer a hegemonia
de uma classe sobre a outra, cuja eficácia é tirar daqueles que são subjugados,
o status de humanidade, logo, a eficiência do racismo está na degradação e no
esvaziamento do ser humano, destroçando-o de sua cultura e história.
Na perspectiva fanoniana, o racismo ganha um aspecto cultural para que
seja validado. Porém, se o racismo é um constructo cultural, existem culturas
sem racismo, isto significa que não somente há povos racistas e não racistas,
mas a possibilidade de construir uma sociedade ausente da cultura do racismo
dependeria da ação daqueles comprometidos com outra organização societária.
No que tange ao aspecto cultural, Fanon (1969) acreditava que a cultura não
é um elemento arbitrário ou autônomo em relação às ações dos seres humanos,
que neste caso, acreditava na importância da resistência cultural, principalmente
dos povos colonizados que tinham como fito exaltar a sua cultura, a história
acumulada pelos grupos sociais dominados pela burguesia monopolista. Todavia,
“essa exaltação do que foi negado, quando estabelecida de forma unilateral – tal
como feito anteriormente no ato da sua negação – guarda em si uma perigosa
armadilha” (Faustino, 2018, p. 89).
Neste quadro, a cultura, enquanto uma manifestação histórica, não pode ser
concebida como um ente fechado, pois atribuir a “cultura” a impossibilidade de
alteração, não passa de uma estratégia de controle e dominação do colonialismo,
culminando numa “mumificação do pensamento individual” (Fanon, 1969, p. 38).
A resistência cultural só tem sentido quando é tomada como possibilidade de
transformação, isto é, como busca de “um projeto maior” (Faustino, 2018, p. 90).
A lucidez de Fanon em tematizar as questões acima está presente na atua-
lidade. Basta nos atentarmos para as hodiernas bandeiras dos movimentos que
atuam em torno das identidades específicas. Neste caso, como transcender a ob-
jetificação da própria existência? São questões como estas que Deivison Mendes
Faustino busca enfrentar a partir dos estudos de Fanon.

3
Texto de intervenção de Frantz Fanon no 1º Congresso dos Escritores e Artistas Negros em Pais, em
setembro de 1956. Publicado no número especial darevista Présence Africaine, jun-nov. de 1956.

188 • Lutas Sociais, São Paulo, vol.22 n.40, p.185-190, jan./jun. 2018.
No livro de Faustino está contido uma das emergentes mensagens do Fa-
non, conforme indica Sartre (1979, p. 07): “o que Fanon explica a seus irmãos
da África, da Ásia, da América Latina: realizaremos todos em conjunto e por
toda a parte o socialismo revolucionário ou seremos derrotados um a um por
nossos antigos tiranos”. Neste caso, a ânsia do autor de Os condenados da terra
é a conclamação dos oprimidos do mundo para que, de fato, a superação das
desigualdades sociais, da divisão social do trabalho, da apropriação privada da
riqueza social e todas as formas de exploração, pelas quais os subalternizados
são subsumidos sejam fenecidas.
Talvez a resposta à questão que abre o referido livro – Por que Fanon, por
que agora? – possa ser respondida pelo próprio Frantz Fanon, conforme consta
na sua conclusão in Os condenados da terra:
[...] se quisermos que a humanidade avance um furo, se queremos levar a hu-
manidade a um nível diferente daquele onde a Europa a expôs, então temos de
inventar, temos de descobrir. Se queremos corresponder à expectativa de nossos
povos, temos de procurar noutra parte, não na Europa. Mais ainda, se queremos
corresponder à expectativa dos europeus, não devemos devolver-lhes uma ima-
gem, mesmo ideal, de sua sociedade e de seu pensamento, pelos quais eles expe-
rimentam de vez em quando uma imensa náusea. Pela Europa, por nós mesmos e
pela humanidade, camaradas, temos de mudar de procedimento, desenvolver um
pensamento novo, tentar colocar de pé um homem novo (Fanon, 1979, p. 275).

Considerando os aspectos levantados por Fanon, a sua mensagem está


mais que atual, visto que ao longo do século XX, acumulamos malogros no que
tange às tentativas revolucionárias. Nesse caso, é tempo de conhecer a história
do pensador martinicano, tendo em vista que suas análises abrem espaço para
que possamos (re)configurar e talvez construir caminhos cujo escopo deva ser
uma outra sociabilidade. Ou seja, o apelo de Frantz Fanon é para a construção
de outra humanidade, a fim de superar o estado de coisas que nos encontramos
para que tenhamos um pensamento novo e colocar de pé um homem novo. É
com esta ânsia que o livro Franz Fanon: um revolucionário particularmente negro”
chega ao público.

Referências
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
_____________. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
_____________. Racismo e Cultura. In: Defesa da Revolução africana. Lisboa:
Livraria Sá da Costa, 1969.

Frantz Fanon: um revolucionário... Góes, W. • 189


FAUSTINO, Deivison Mendes. Frantz Fanon: um revolucionário particularmente
negro. São Paulo: Círculo Contínuo Editorial, 2018.
SARTRE, Jean-Paul. Prefácio. In: Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1979.

190 • Lutas Sociais, São Paulo, vol.22 n.40, p.185-190, jan./jun. 2018.

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