Todo o Resto é Muito Cedo - Luiza Mussnich (Março 2023) (1)

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Todo o resto é muito cedo

LUIZA MUSSNICH
Time exists in order that it doesn’t happen all at once. Space exists so that it doesn’t all happen to
you.
Susan Sontag

The Heart asks Pleasure — rst —


and then — Excuse from Pain
Emily Dickinson

Every peak is a crater. This is the law of the volcanoes.


Adrienne Rich

if day has to become night, this is a beautiful way

e. e. cummings

O presente do terremoto é perder o medo das ruínas.


Adelaide Ivánova

& what are we


to one another but a means
to a meaning we haven’t yet
discovered two points of light
on the inky dark
sky Claudia Rankine

Tectonic plates shift, deep currents move, islands vanish, rooms get forgotten.
Joan Didion

O corpo do homem é sempre a metade possível de um atlas universal.


Michel Foucault
fi
rubrica
descrever
descrever uma cena
descrever uma cena em que um homem
descrever uma cena em que uma mulher
descrever uma cena em que um homem e uma mulher
descrever uma cena em que um homem e uma mulher
se desejam
descrever uma cena em que um homem e uma mulher
se desejam mas
descrever uma cena em que um homem e uma mulher
se desejam mas nada
descrever uma cena em que um homem e uma mulher
se desejam mas nada acontece
descrever uma cena em que um homem e uma mulher
se desejam mas nada acontece entre
descrever uma cena em que um homem e uma mulher
se desejam mas nada acontece entre eles
descrever uma cena em que um homem e uma mulher
se desejam mas nada vai acontecer entre eles
descrever uma cena em que um homem e uma mulher
se desejam mas nada pode acontecer entre eles
descrever uma cena em que um homem e uma mulher
se desejam mas nada deveria acontecer entre eles
descrever uma cena em que um homem e uma mulher
se desejam mas algo acaba acontecendo entre eles
descrever uma cena em que um homem e uma mulher
se desejam mas muito acaba acontecendo entre eles
descrever uma cena em que um homem e uma mulher
se desejam e tudo acontece entre eles
cena depois de Amós Oz

descrever uma cena em que um homem e uma mulher


se desejam mas nada acontece
entre eles é muito mais
difícil do que descrever
uma cena em que um homem e uma mulher
se desejam
e tudo acontece entre eles
casco
se o coração funcionasse
como se estivesse em constante
estado de paixão
arrebentaria as costelas

como uma tartaruga que precisa


se expandir mundo afora
porque precisa ir
mesmo que devagarzinho
mas paixão

paixão é precisar ir muito


muito rápido
perigosamente rápido
pra dentro de alguém
com casco e tudo
arrebentando
o que vier
o que vir pela frente
mili-helena
a quantidade de beleza necessária para mandar um navio à guerra
origem da representação
um homem prestes a partir
para a guerra para
diante da parede branca
a mulher repara
na sombra que se forma às suas costas
contorno exato
o ombro contraído
a mandíbula rígida
as veias escalando o pescoço
os lábios receosos de palavras

ela pega um lápis para contorná-lo


caso a batalha seja incontornável
carótidas
o amor ca suspenso
em tempos de guerra
não ha cabeça para nada daquilo
em que geralmente se pensa
nos períodos de paz

em tempos como esse


pensamos em não morrer
em não deixar morrerem
as mulheres e crianças
de todos os navios
que não deveriam estar afundando

em tempos de guerra os amores


param o tempo
param no tempo
o amor segundo plano
planos para depois

as urgências demandam todo o aqui e agora que nos cabe nas mãos
nos braços erguidos em misericórdia
todo o aqui e agora que somos capazes de sustentar sobre os ombros
os ombros das mulheres estão cheios de mortos
as gargantas das mulheres verdadeiros calabouços

palavras começam uma guerra


palavras terminam uma guerra
o amor perde sentido na guerra
o amor é o contrário da guerra
o amor não vence a guerra
porque os homens amam mais
a guerra do que suas mulheres

em tempos de guerra ainda assim


fi
penso em você
minha batalha perdida
baixo as guardas
os ossos doem
você vem pelos ancos
invade minhas trincheiras
imovél, derrubo a arma
não basta que eu decida capitular
te ofereço o pescoço
você pensa nas minhas carótidas

mas o que você conhece da guerra?


o que você conhece do amor?
não importa agora
derrotas em períodos de paz
são muito piores
fl
(sem título)
qual o nome da unidade de medida
que calcula a distância
entre a clavícula e a mandíbula
de uma mulher?

por gambiarra
estimam-na em beijos
como antes se usava o palmo o passo

deveriam parar de querer


calcular tudo
igualdade
meia
nove
receituário em resposta a Chico Alvim

diferentemente
do que se faz com um resfriado
pondo um casaquinho na bolsa
meias pra dormir
não se prevenir
da paixão

por mais que depois


a gente que tremendo
a gente que temendo
a gente que de ressaca
a gente que doído
doido atrás de um remedinho
fi
fi
fi
fi
paixão
um alvo do qual procuramos desviar
mas que atingimos sem querer apesar
da falta de pontaria
aperto o gatilho
quem cai
sou
eu
(sem título)
já tentou brincar
de jogo do sério
apaixonado?
turismo
quando alguém diz
que conheceu uma cidade
porque por lá passou
três quatro dias
visitou a igreja tal
o castelo medieval
tomou um sorvete em frente ao monumento
de um cavaleiro empunhando uma espada
se debruçou no parapeito daquela sacada
com vista para o rio
provou a comida típica
o chope com muita espuma
para conhecer uma cidade
para conhecer alguém
é preciso mais
do que três quatro dias
por mais que sejam dias longos e bonitos
que clareie tarde
quando alguém diz
que conheceu uma cidade
numa viagem turística
tenho vontade de dizer
que quando vou a uma nova cidade
tenho sempre a sensação
de não a conhecer
como você e eu
turistas um do outro
que temos apenas
nos visitado
mas com a assiduidade
com que visitamos alguém
gravemente doente
o cenário é quase o mesmo:
nós ali febris
tentando não padecer
accident to Iris Murdoch

notes about that evening:


restaurant was a disaster
can’t remember what we ate
wine was tasteless
St. Anthony’s dance
we didn’t dance much
fell down the steps
and seem to have fallen
in love with —
loteria
vocês se conhecem sem saber
se aquilo vai durar
um erte no bar
romance epistolar
uma embriaguez
as horas daquela noite num motel ao lado
alguns minutos num lavabo
tempo de a neve parar de cair
trinta meses, o quanto duram as paixões
dá pra embaçar um carro
tempo su ciente para passar a madrugada ajudando o outro a expelir catarro
tempo que os tempos não comportam
um namoro em que se conheçam as famílias
um carnaval
duas lhas
uma viagem de cinco dias
alguns poemas
um casamento
uma testamento
três cachorros
um bonsai
uma música
uma biblioteca compartilhada
uma tartaruga
uma vida inteira
a vida inteira tentando esquecer
fl
fi
fi
trinta e nove e meio
a real função do amor deve ser
ampliar o tamanho do mundo
não espremer o coração contra a costela feito um pé que cisma em caber no sapato vermelho dois números menor da liquidação
obviedade
o coração das mulheres bater mais rápido
(sem título)
home is where tem calcinha no registro
apropriação
bota a buceta
na mesa
metalinguagem depois de Agnès Varda

são dois adolescentes


que ainda não deram o primeiro beijo
e por ora estudam
seus menores movimentos nas poltronas
as angulações do assento

cruzam e descruzam as pernas


calculam ante qual distância
os joelhos não tocam o encosto da frente
quase medem a quantidade de ar que sai
junto às palavras que murmuram
em desculpa para aproximar os lábios

apoiam os cotovelos no descanso de braço


quase um choque
quando as peles se encostam
o queixo na mão
como se toda aquela atenção
tensão
fosse apenas para a projeção
mas enquanto miram a tela
a visão periférica procura a silhueta ao lado
um per l ainda não xado
na memória
sincronizam o riso
e há tanto de um no outro
que caberiam num só corpo

alguém poderia rodar esse curta metragem


os dois no cinema
porque adoram metalinguagens
(e meter as línguas nas bocas)

imagina se esse lme existisse


fi
fi
fi
imagina se esse lme não acabasse

então os dedos tocam devagar o rosto


passeiam pela curva da mandíbula
parece que os movimentos desprogramam
a capacidade de raciocinar

parece que é 1969


e o homem acaba
de ncar o pé na lua
fi
fi
sinais
o nervosismo mastiga as unhas
o frio eriça os pelos do braço
a vergonha tem bochechas vermelhas
o tesão faz despencar cataratas, ergue monumentos
a fome devora o bom humor
a tristeza mingua
o prazer aperta os olhos
a sedução mordisca os lábios
a felicidade inventa dentes pelo rosto
a ansiedade umedece mãos
o sono escancara a boca
a raiva dói nos nós dos dedos
(sem título)
talvez fosse mais fácil amar
com a passividade que temos
diante das coisas mágicas:

o arco-íris, a luz elétrica, o traçado da gota na vidraça, o meteoro,


o som do violão, uma batata gratinando no forno, o cair do sol,
o respiro de um pulmão, o útero programando a personalidade num bebê

dispositivos que funcionam


por mistério
(sem título) depois de Ana Martins Marques

duas pessoas
arrumando os mesmos livros
em estantes em instantes
diferentes
formam um par?
(sem título)
a distância entre espaços dói menos que a distância entre tempos
(sem título)
gostar das coisas porque:
correspondem às nossas expectativas
quebram nossas expectativas
(sem título)
o que realmente importa do passado se divide
em duas categorias:
coisas que gostaríamos de lembrar
coisas que não pudemos esquecer
não acredito que seja o amor, edward

love is the voice under all silences


e. e. cummings

a fotogra a insiste que nada disso aconteceu


porque a nal não se pode repetir uma emoção
ou lembrança:
a sua não é a mesma da minha

quantos ossos você acha que cabem no meu corpo?


não se preocupe porque um dia
as larvas comerão tudo
até mesmo estas palavras

a vela não clareia, apenas escancara o breu


os signos que nos orientam no mundo estão desaparecendo, você não percebeu?

há uma voz por debaixo de todos os silêncios


mas não acredito que seja o amor, edward,
talvez o cabo de aço do elevador, as formigas pelo tapete, os cacos de vidro na mesa de cabeceira

achamos que nada daquilo poderia dar errado


apesar do copo de uísque sem descanso, do livro rabiscado, daquelas perguntas

algumas coisas começam pelo meio


e por isso nunca podem ter início
ou m
aliás, é impossível terminar realmente alguma coisa, Alberto sempre soube

agora você aguarda


sem saber o que fazer com as mãos
tão versáteis que poderiam
aplaudir, apertar um botão, um gatilho, acender um cigarro, afastar o cabelo da nuca, telefonar,
fechar a porta, segurar a porta, uma mulher pelos ancos, colocar um disco no vinil, manusear a
faca, escrever um bilhete anônimo, lavarem-se, impedir que eu parta
fi
fi
fi
fl
mas estão ali, inertes, tergiversando
à espera do próximo espanto
essa misteriosa mobilidade de um coração
(sem título)
você também passa noites sem dormir
imaginando como
seres de outro planeta
fazem amor

se é que haverá
uma loucura como essa
por aquelas bandas
cromossomo x para Alexia

homens pouco bonitos e muito inteligentes


casam
com mulheres muito bonitas e pouco inteligentes
os lhos nunca saem
muito bonitos
tampouco inteligentes
fi
doença
contraiu matrimônio
(sem título) depois de fotogra a de Vicente de Mello

apesar da luz algo


ainda não aparece algo
ainda parece se mover pela sombra
pela sobra do contorno de um corpo
e que agora
é somente dobra de lençol esfriado

dobras que poderiam ser contadas


como as ranhuras de uma árvore derrubada
para denotar o tempo ou a distância
para detonar a ausência
mas o movimento inerte

o que será que faz convulsionar


a memória?

é apenas uma lembrança


se debatendo um peixe
que parece uma or murcha que já
quase não existe
brocha sobre um piso de grama sintética
os olhos ainda sentem
a quentura e o cheiro invisível da pele deslizante
fl
fi
(sem título)
os resquícios no corpo
demoram mais a se desintegrar
que uma garrafa plástica boiando no mar
depois de Platão
se olhar com calma
dá pra se apaixonar
todo dia
por alguém
(sem título)
se você não acredita em reencarnação
o jeito é tentar o mundo todo
apocalipse
se o mundo acabar amanhã
sobram baratas
assentos do meio
jujubas laranjas
tesão
poemas
pizzas de aliche
pelúcias na maquininha do parque
tamanhos pp
carros brancos
chupetas perdidas
sonhos incompreendidos
milhares de galáxias intactas
o amor
crime
sonegar lembranças
riscos
dizem que é sempre nos olhos
que as pessoas são mais tristes
mais do que no vale formado entre as clavículas, no dorso das mãos, no ombro esquerdo, atrás dos
joelhos, no lábio inferior, na mecha de cabelo que recai sobre o rosto

o tempo sempre aumenta


as ssuras?

que tipo de informação seria possível obter


se eu contasse os riscos
dos seus olhos lilases
como se faz com o tronco de uma árvore derrubada?
eu poderia chegar ao cerne? descobrir aquilo que você ama? o que faz lacrimejar?
não é somente sua íris rajada que se locomove depressa tentando escapar da escuridão
há ainda fantasmas dançando nas sombras rachadas destas paredes
fi
anarquia
memória
protocolo do m
e se precisar urgentemente
ouvir a voz do outro?
fi
inventário
duzentos e setenta e nove momentos de admiração
mil e cinquenta e cinco dias acordando juntos
trinta e três ataques de ciúme
novecentos e trinta e seis te amos
mil setecentos e dezoito briguinhas
cinquenta e três brigas
doze brigas feias
nenhum pneu furado
sete nudes
trinta e sete gozos sincronizados
dezoito descuidos
três brochadas
uma fugidinha no Yom Kippur
sete puns sonoros
trezentos e noventa e oito pedidos para abaixar a tampa do vaso
vinte e três viagens de avião (uma com vômito, duas com Rivotril)
um atum esquecido no forno
um aniversário de avô esquecido porque beberam demais
um aniversário de namoro esquecido
quatro orgasmos ngidos
dez trepadas sem vontade
duas traições
dezenove perguntas não feitas
três vontades de ir embora
sete malas, algumas sacolas, doze caixas de papelão
uma caçamba quase cheia
órfãs declarações de amor
fi
ns
fechar portas é diferente
de fechar parênteses

(o livro sempre
podemos reler)
fi
pluma
escrevo esse poema no centésimo sexto dia sem te ver
começo a esquecer sua voz
a memória precisaria de fotogra as
para recriar sua imagem
você já prestou atenção
que lembrar é de certa forma aproximar
do esquecimento?
lembrar é tornar algo cada vez mais
distante do real

depois de vividas
as lembranças vão para o lóbulo pré frontal
depois para o hipocampo
uma área mais profunda do cérebro
mais longe de todos aqueles agoras

volto aos acontecimentos


como regatasse um náufrago
também não consigo sentir suas mãos
agarradas a mim
como se eu pudesse te salvar
estico os braços
quase te encosto apesar da distância
o desejo nos faria levitar
se essas coisas existissem

a sensação é de te ter aqui


você me acordando de madrugada
não porque dorme ao lado
não sei sequer se você dorme
se pensa em mim ao menos
ao mesmo tempo em que penso em você
isso poderia ser o diálogo de um lme
assim poderíamos inventar esse pensamento
fi
fi
que não ocupa espaço algum
esse pensamento pluma
com força para erguer um monumento
um móbile do Calder orbitando sobre nossas cabeças
pupilas
as sombras são mais bonitas que o normal
ou talvez eu preste mais atenção agora do que antes
tudo permanece no mesmo lugar
por isso os espaços são tão diferentes
tenho vontade de te escrever e não escrevo
é preciso fazer algo com as vontades reprimidas

a sombra das mãos é sempre maior que as mãos


a lembrança das mãos sobre o corpo é sempre maior que as mãos que o corpo
poderia haver luz vindo de trás para que meus dedos
simulassem animais abrindo e fechando bocas
sem violência

vultos que poderiam ser nós


e não são

checo no espelho, ngindo arrumar o cabelo, o tamanho das pupilas

elas crescem com novidades, interesse


as pupilas são a única parte visível do nosso sistema nervoso
aumentam quando pensamos muito quando saímos do oftalmologista quando usamos drogas ou
quando camos sexualmente excitados

minhas pupilas estão mínimas


como se fossem desaparecer dos olhos
a terra vista por um satélite é uma bolinha azulada utuando no fundo de um poço
com as pupilas é diferente
há um ponto negro que boia na íris colorida.

serão, amanhã cedo,


as sombras mesmo
tão bonitas quanto as imaginei?
tão bonitas quanto como apareceram para mim?
um homem sorrindo de cabeça para baixo, uma luz cintilando bem ali onde caria o coração
fi
fi
fl
fi
da mesma forma que as sensações vêm
elas passam
adormecem comigo
se reduzem a matéria de sonho,
esse nada

as pupilas voltam a pertencer aos olhos enquanto as mãos vagam pela cama
sós
(sem título)
o que vimos no céu aquela noite
é algo que já não existe
não será por vezes o amor
uma dessas estrelas
que ainda brilham
mas já não estão lá?

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