A gravidade de Jupiter - Ariel F. Hitz

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A gravidade de Júpiter

Ariel F. H.
Para todes aqueles que se sentirem representades
9 de março, sábado

Eu estou escrevendo isso porque quero um lugar seguro. Esse


aqui é meu lugar seguro. Esse pequeno e estúpido caderno. Eu vou
esconder ele no fundo do meu guarda-roupas. Espero que ninguém
jamais o encontre. Talvez eu queime ele algum dia. Não sei.
Se eu não tenho ninguém para falar, talvez eu devesse
escrever, não é?
Não sei em quem confiar. Eu olho para as pessoas em minha
volta e fico pensando que todos irão me julgar se souberem o que
passa em minha mente. Que irão me colocar em praça pública como
se eu fosse uma bruxa durante a Inquisição e me queimarão
enquanto meu coração ainda bate.
Aposto que muitos ficariam felizes em me verem queimando.
Não é como se nunca tivessem queimado quem é como eu.
Quero dizer, não sei exatamente como eu sou.
Ok, eu provavelmente sei.
É desesperador.
Estúpido.
Tenho pensado em nomes.
Nomes femininos.
Odeio o meu nome.
Odeio que as pessoas me chamem por ele.
Não é meu. Sei que não é.
Eu só preciso contar para o mundo qual é o meu nome.

A.
10 de março, domingo

Às vezes eu fico pensando como seria se meus pais não


tivessem me adotado, se eu tivesse ficado em um orfanato para
sempre. Ou até mesmo se meus pais biológicos não tivessem me
abandonado. É estranho como a minha vida toda mudou por uma
única decisão de um casal aleatório.
Não sei se todos os filhos adotados se sentem na
responsabilidade de dar orgulho aos pais. Ou talvez todos os filhos
sintam isso, adotados ou não. Não sei. Tenho medo de ser uma
grande decepção para minha mãe e um desgosto para meu pai. Mas
talvez eu já seja isso.
Minha irmã é uma boa filha, eu acho. Ela e mamãe estão
sempre conversando. Eu não converso tanto assim com ela.
Ser eu é terrível.

A.
11 de março, segunda

Olhar para Júpiter é, sem dúvidas, a coisa mais estranha em


minha vida. Eu queria ter uma foto dele para colar aqui, porque juro
que nem mesmo as palavras mais bonitas conseguiriam descrever
uma pessoa tão incrível.
Ela tem uma pele que me lembra algodão doce. Acho que não
gosta muito de sol, porque é branca demais. Eu lembro que ela
tinha um cabelo castanho claro, antes, bem antes, quando todo
mundo a conhecia por um outro nome e a chamavam de homem e
ela própria se chamava assim. Hoje ela tem o cabelo tingido de
preto. Seu corte de cabelo vai até o ombro, todo repicado. Talvez ela
mesma corte seu cabelo. Parece algo que ela faria. Ela tem dois
piercings na orelha esquerda. Outro na sobrancelha direita. Tem
uma pintinha bem no canto do lábio que um dia eu achei que era
sujeira, mas era apenas uma pintinha adorável.
As pessoas ainda a chamam de homem, claro. Dizem que ela
sempre será um homem. Já ouvi dizerem inúmeras coisas ruins
sobre Júpiter, especialmente quando ela estava no terceiro ano do
ensino médio, ano passado, e eu estava no primeiro. Agora ela já se
formou e eu estou no segundo ano. Acho que Júpiter é muito
inteligente, porque se formou um ano mais cedo que o normal.
Meus colegas ainda lembram de Júpiter, às vezes. E é sempre de
uma forma ruim. Eu odeio isso.
Já ouvi uma garota da minha escola dizer que Júpiter estava
envolvida com satanismo. Ridículo, claro. Provavelmente tem algo a
ver com o fato de ela sempre estar vestindo preto. Sempre. Acho
que ela gosta muito disso. Não julgo. Fica bem nela. Se bem que
qualquer coisa ficaria bem nela, até um saco de batatas.
Eu vi Júpiter mais cedo, à tarde, quando minha mãe pediu
para eu regar as plantas dela. Há dias que não chove. Minha mãe
jamais deixaria suas flores morrerem de sede. Sério, eu acho mais
provável o mundo acabar do que aquelas plantas morrerem.
Júpiter é minha vizinha, o que é meu sonho e meu pesadelo
ao mesmo tempo. Fico pensando que talvez o Diabo tenha achado
divertido nos colocar morando perto. Ou Deus.
Ela mora bem ao meu lado há quase quatro anos, mas há
pouco tempo eu tenho prestado tanta atenção nela.
Eu estava apenas regando umas flores quando Júpiter saiu de
casa, de jeans e um coturno preto, mesmo estando calor.
Ela é muito bonita. Tipo, muito mesmo. Eu não sei explicar. O
rosto dela tem um formato incrível. O jeito que ela anda é de tirar o
fôlego.
Tentei fingir que não vi ela, o que nem fez muita diferença
porque ela nem olhou em minha direção.
Acho que Júpiter sequer sabe quem sou eu. Nunca tivemos
realmente uma conversa e eu nunca fui muito importante na escola
para que ela realmente soubesse quem eu sou. Em seus olhos — ou
aos olhos de qualquer um — eu sou um garoto estúpido qualquer.
Não sei porquê, mas quero que Júpiter preste atenção em
mim. Talvez eu devesse seguir ela em alguma rede social.
(Não. Definitivamente não. Ideia ridícula)
Eu tenho esses momentos em que me sinto totalmente
desconfortável com meu corpo, como se partes de mim não fossem
realmente partes de mim, mas sim de outra coisa. É como se eu
fosse um robô com peças faltando em alguns lugares e sobrando em
outras.
Que droga, queria ser um robô. Um daqueles montáveis.
Queria poder tirar e colocar peças em mim quando quiser.
Minha mãe fez chá de hortelã para mim e para minha irmã
hoje, um pouco antes de nosso pai chegar do trabalho. Ele é gerente
de uma loja de móveis no centro da cidade. A especialidade dele é
sofás, a da minha mãe é plantas e bordado. Eles formam um casal
estranho.
Eu tomei o chá que mamãe fez pensando que talvez, se eu
pudesse, morreria e reencarnaria em uma planta. Plantas não
desejariam ser um robô. Plantas não teriam esses sentimentos
horríveis.
A.
15 de março, sexta

Acho que tenho gostado disso de escrever sobre mim. Achei


que não duraria muito, mas é algo que realmente faz eu me sentir
melhor.
Eu queria ser tão próximo da minha mãe quanto minha irmã
é. Não que eu não seja próximo da minha mãe, mas eu queria ser
mais, sabe?
Sinto inveja da relação de Isadora com a nossa mãe.
Não sei. Tem algo de errado em mim.

A.
18 de março, segunda

Quarta foi aniversário da minha avó. Ontem, no domingo,


meus pais, Dora e eu fomos visitar ela e meu avô. Minha mãe
comprou um lindo vaso de flores de presente — ela é apaixonada
por plantas — e meu pai fez Dora entregar um relógio de pulso
embrulhado em papel de presente para nossa avó.
Não sei porquê fizeram questão disso. Na porta da geladeira
da casa dos meus avós tem foto de seis netos, grudadas com ímãs
em formato de bichinhos. Eles têm oito netos. Dora e eu não
estamos na geladeira.
Minha avó diz que eu não sou seu neto de verdade porque
não nasci da minha mãe. Eu ouvi ela dizendo isso quando tinha uns
seis anos. Nunca mais esqueci.
Meus pais tentam fazer eu e Dora incluídos na família, mas
nunca dá certo.
Minha família é meio estranha. Meu pai nasceu e morou na
Argentina até os quinze anos. Meus avós falam apenas espanhol.
Nunca os vi dizendo uma única palavra em português. Quando meu
pai está muito irritado ele começa a falar em um espanhol rápido e
difícil de entender. Acho que nem ele mesmo entende. Desde que eu
e minha irmã éramos crianças ele nos ensinou muito de espanhol.
Minha mãe foi concebida no Japão, mas veio para o Brasil
com menos de três anos. Ela não lembra nada de lá. As únicas
características asiáticas dela são características físicas.
Meus avós maternos morreram antes de eu nascer, então não
tenho nenhuma referência japonesa mesmo.
Minha mãe não consegue ter filhos biológicos. Isso é meio
que o assunto proibido da família, mas ela teve quatro abortos até
decidir que seria melhor adotar. Minha tia Elisa quem me contou
isso. Meu pai ficou muito bravo quando descobriu que sua irmã tinha
me contado sobre O Assunto Delicado.
Acho que ele ficou bravo porque sabe que isso deixa minha
mãe triste.
Minha tia Elisa é a única da família que realmente vê eu e
Dora como parte da família. Ela é quatro anos mais nova que meu
pai, tem uma tatuagem de serpente nas costas e sempre usa o
cabelo preso em um rabo de cavalo. Ela é meio a ovelha negra da
família porque não está casada até hoje.
Uma vez, uns anos atrás, eu estava procurando pelo meu
presente de natal no guarda-roupas dos meus pais e encontrei
algumas roupinhas de bebê que eu sei que não podem terem sido
usadas nem por mim e nem por Dora porque eram pequenas
demais. Nenhum de nós dois foi adotado tão jovem assim. E aí eu
encontrei um ultrassom dentro de uma caixa de papelão. E mais um.
E mais um. E mais um. Os quatro fetos abortados.
Eu não sei nada da minha família biológica. Nunca procurei
saber. Acho que minha mãe ficaria muito chateada se eu
mencionasse algo sobre isso. Ela sempre está dizendo coisas como
“Você e Dora é que me adotaram” e nos chamando de filho e filha
sempre que pode.
Eu entrei na família com um pouco mais de dois anos de
idade. Meus pais esperaram por meses na fila de adoção. Quando eu
tinha sete, minha irmã apareceu, com três anos.
Nunca tive ciúmes de Isadora. Meus pai diz que eu a acolhi
como se tivéssemos dividido um útero. Acho isso engraçado, porque
eu realmente sinto que dividimos algo íntimo assim.
A maioria das pessoas acha que Dora e eu somos primos e
não irmãos. A pele dela é negra, igual chocolate. A minha pele é
branca, tipo leite. Sempre gosto de ver a reação das pessoas quando
descobrem que somos irmãos. Adotivos, sim, mas isso não muda
nada. Isadora é tão minha irmã quanto seria se realmente
tivéssemos saído do mesmo útero. Eu fico triste que nem todo
mundo entende isso.
Já ouvi minha avó dizendo que meus pais deveriam ter filhos
de verdade e que não deveriam estar criando filhos de outras
pessoas.
“Quanto mais uma criança pretinha” foi assim que ela
terminou a conversa, se referindo à Isadora.
É esquisito. Meus pais fingem que temos uma boa relação
com meus avós (será que eu devo mesmo chamar eles assim?), mas
está mais do que na cara que eles nem nos consideram netos.
Acho que é pior para Isadora. Ela nunca gosta de ver vovô e
vovó. Ontem, quando entramos no carro à caminho da casa deles,
ela cruzou os braços e colocou o fone de ouvido no volume máximo,
como uma boa garota de quase treze anos. Dava pra ouvir a música
indie pop de longe. Ela faz isso quando está brava ou irritada. O
quarto dela é bem ao lado do meu, às vezes eu vou dormir ouvindo
a música baixinha que saí do quarto dela.
Ano passado Dora e meu pai tiveram uma briga meio séria
envolvendo toda a história com meus avós. Ela não queria visitar
vovô no dia dos pais. Meu pai ficou muito bravo e disse que ela
deveria “parar de gracinhas” e “obedecer os mais velhos”. Dora
respondeu que “não é gracinha não querer estar perto de quem não
gosta de mim”, o que foi bem corajoso e triste ao mesmo tempo.
Minha irmã disse isso enquanto estávamos almoçando, meu
pai olhou para minha mãe, talvez procurando por ajuda, mas mamãe
não disse nada.
“Ela não está errada” eu falei “Ele realmente não gosta de
mim e da Dora. Nem a vó. Você sabe disso”
Meu pai largou os talheres na mesa, com seu ódio agora
direcionado à mim.
“Vocês dois estão inventando coisas” ele disse “É normal na
adolescência achar que ninguém gosta de você”
“Eu sei que a mãe gosta de mim” Dora falou.
“Seus avós gostam de você também” meu pai respondeu.
“Não gostam, não”
Meu pai parecia decidido a convencer seus filhos de que eram
amados pelos avós, não sei porquê. Talvez ele quisesse ter uma
família linda e unida.
Bem, ele não vai conseguir isso com os pais que têm.
Mas acho que ele não entende isso.
“O vovô me odeia” Dora disse “E a vovó também. Eles não
me querem por perto. Preferem os outros netos. Eu não quero ir.”
“Eles nunca disseram isso” meu pai praticamente gritou, mas
dava para ver que ele não estava 100% seguro “Pare de ser
mentirosa”
Dora saiu da mesa e não voltou, mesmo com nosso pai a
chamando.
Mais tarde, à noite, Dora e eu ouvimos nossos pais discutindo
baixinho, naquele tipo de sussurro gritado que só eles sabiam
discutir.
“Você sabe que seus pais não gostam dos meus filhos” era a
voz da minha mãe.
“Seus filhos? Eles são meus também”
“De acordo com seus pais eles não são meus e nem seus”
Minha mãe é meio quieta, mas é muito boa com as palavras.
Se eu tiver filhos, espero que meus pais aceitem eles. Não
quero que meus filhos pensem que não são completamente amados.
Minha irmã acabou indo para o almoço do dia dos pais na
casa dos meus avós de qualquer jeito. Meu pai ameaçou tirar o
celular dela. Acho que ela decidiu que suportar nossos avós por
algumas horas era uma tortura menor do que ficar sem celular.
Não sei se concordo com isso.
Espero que não voltemos lá por muito tempo.
Preciso me arrumar para ir para a escola agora. Acordei mais
cedo do que o normal. Dora ainda está irritada por ontem. Acabei de
ouvir ela batendo a porta do banheiro com força. É minha vez de
escovar os dentes e talvez tomar banho agora.

A.
19 de março, terça

Eu odeio minha voz.


Não sei o que fazer sobre isso. Quero dizer, não sei se eu
posso fazer algo sobre isso.
Eu queria ter a voz da minha irmã. Ela tem uma voz bonita,
mas provavelmente vai mudar um pouco com o tempo ainda. Dora
só tem doze anos.
Eu ficaria feliz se tivesse a voz da minha mãe. É suave, mas
firme. Ela fala de um jeito bonito mesmo quando está brigando
comigo por não ter lavado a louça. Acho que minha voz é grossa
demais, meio desengonçada. Não sei. Tento não falar muito alto
para que as pessoas não percebam como é feia.
Acho que eu ficaria feliz até se tivesse a voz da minha tia
Elisa. Ela tem uma voz rouca, porque fuma muito, mas mesmo assim
é muito bonita.
Acho que preciso ir dormir agora. Só queria falar isso.
A.
21 de março, quinta

Elias é meu melhor amigo há alguns anos. Eu provavelmente


sou o melhor amigo dele também, já que, tirando a família, a
psiquiatra e a terapeuta dele, eu sou a única pessoa que sabe que
ele tem transtorno obsessivo-compulsivo.
É um nome meio assustador pra uma coisa muito
assustadora.
Não sei porque ele nunca contou para nossos amigos. Só para
mim. E pediu para que eu não contasse para ninguém.
Não contei, óbvio. Bem, exceto por você.
Ai, que merda. Estou considerando um caderno o meu amigo.
Não vou dar nome pra você, se é o que está pensando. Não cheguei
nesse nível de loucura ainda.
As pessoas acham que tem algo de errado com Elias, mas
ninguém fala realmente isso perto dele. Acho que nossos colegas
têm medo de perguntar algo e Elias surtar, sei lá. Não sei o que
passa na cabeça deles.
Elias tem uma obsessão pelo número oito. Ele só sai de casa
quando o relógio marca o número oito de alguma forma. Quando ele
vai dar exemplos de alguma coisa, ele dá oito exemplos. É
angustiante ver ele quebrando a cabeça para pensar em oito coisas.
Quase todas as coisas, para Elias, precisam ser em
quantidade oito. Ele tem oito camisetas vermelhas, oito calças jeans
exatamente iguais, oito calçados pretos idênticos. Quando não pode
fazer algo oito vezes, como dar oito garfadas no almoço, ele usa
números divisíveis por oito. Então ele leva o garfo à boca sessenta e
quatro vezes no almoço, por exemplo.
Ele está melhorando agora, porque que está em tratamento.
No ano passado, Elias teve um surto no meio da aula.
Foi feio.
Especialmente porque, no geral, ele é bem calmo. Ninguém
esperava por algo assim.
Ele costumava sentar no canto esquerdo da sala, colado na
parede. Na escola, nós temos um mapa de sala que diz onde você
deve sentar todos os dias.
Em julho, a professora de literatura mudou todo o mapa de
sala porque estava tendo muita conversa na sala. Elias foi trocado.
Ele ficou uma fila ao lado da que estava.
Então ele começou a pedir para não ser trocado de lugar.
E então ele começou a gritar para não ser trocado de lugar
quando a professora disse que ele deveria sentar onde foi mandado.
E então ele começou a gritar mais alto.
E então ele foi expulso da sala naquele dia.
É a outra obsessão dele: o lado esquerdo. Nada pode ficar do
lado esquerdo dele por muito tempo. Quando andamos juntos na
rua, eu sempre fico em seu lado direito.
Desde o episódio do mapa de sala, nossos amigos se
afastaram um pouco de Elias. Ele não foi para a escola uma semana
depois do que aconteceu e, quando voltou, as pessoas estavam
falando que ele teve um surto psicótico por excesso de maconha.
Eu sei que isso é a maior besteira porque Elias nunca fumou
maconha. Eu saberia se ele tivesse fumado. Ele teria me contado,
assim como me contou sobre o TOC.
E eu acho que Elias me chamaria pra fumar maconha com
ele. Mesmo que eu provavelmente diria não.
Naquela semana em que não veio na aula, Elias foi à uma
psiquiatra e um tempo depois finalmente recebeu o diagnóstico de
TOC. Ele nunca respondeu aos boatos sobre maconha e conseguiu
uma recomendação de sua psiquiatra para que sentasse colado na
parede ao seu lado esquerdo como sempre. Ajuda a não deixar ele
ansioso.
Tenho pensado nisso ultimamente. Mais especificamente no
fato de que ele contou apenas para mim sobre o diagnóstico.
Elias confidenciou uma coisa apenas para mim, para mais
nenhum de seus amigos. Isso significa que somos amigos de
verdade, não é? Porque é isso que amigos fazem, confiam nos
amigos.
Se ele fez isso, eu deveria fazer o mesmo? Eu deveria contar
para ele como me sinto às vezes sempre na maior parte do tempo?
Estou tentando lembrar de algum momento em que Elias
disse algo ruim sobre Júpiter, mas não consigo lembrar de nada
muito específico.
Eu só lembro de o ver rindo quando Samuel fez aquela piada
— que eu não vou repetir aqui — sobre Júpiter. Ou quando Thiago
comentou sobre o que Júpiter tem entre as pernas — eu não vou
repetir aqui também — então talvez Elias pense coisas ruins sobre
Júpiter.
Teve também quando Pietro falou que Júpiter acabaria se
prostituindo.
Eu lembro de ouvir Elias rindo disso. Lembro de eu ter
forçado uma risada, me sentindo horrível.
Acho que não não tem muita diferença entre você fazer
algum comentário merda sobre alguém e você rir sobre esse
comentário merda. De qualquer forma você está apoiando o
comentário merda.
Elias teria rido se o comentário merda fosse sobre mim e não
sobre Júpiter? Ele me conhece há anos. Somos amigos desde o
fundamental.
Vi Júpiter hoje de novo, quando voltava da escola, perto do
meio dia.
A mãe dela é dona de uma loja chamada Lumus que tem uma
fachada enorme toda lilás e aluga e vende vestidos de noiva. Eu
passei lá na frente. Talvez eu tenha olhado pra dentro da loja, da
calçada, procurando por ela. Só talvez. Ela estava lá, sentada atrás
do balcão, no computador. Percebi que gosto muito do cabelo dela.
Ah, que droga, será que Júpiter sabe como é bonita? Se não
sabe, alguém deveria avisar ela.
Queria ser linda lindo atraente assim.

A.
26 de março, terça

Minha mãe está brava com a minha irmã porque ela tem ido
muito mal na escola. Precisei ajudar a Dora a estudar pra duas
provas esse final de semana, por isso não fiz nada e nem escrevi nos
últimos dias..
Acho que Dora se irrita toda vez que nossa mãe diz que ela
deveria ser “mais como o irmão”. Todo mundo diz que eu sou um
bom exemplo na escola. Não sei se é verdade. Só entendo fácil as
coisas. Minhas notas são boas.
Isadora prefere ficar o tempo todo assistindo filmes. Ela tem
uma estante só de DVD’s e algumas fitas cassetes antigas, mesmo
que a gente possa assistir filmes online.
Eu queria ter algumas boas referências de filmes, pra quem
sabe ter mais assunto com ela, mas só assisto à uns filmes bem
ruins. Acho que ela iria revirar os olhos se soubesse que meu filme
favorito da vida é A hora do pesadelo.
Espero que Isadora vá bem nas provas, se não eu vou me
sentir inútil por não ter ensinado o suficiente.
Não vejo Júpiter desde semana passada. Tenho pegado o
caminho que passa pela Lumus, quando volto da escola, mesmo que
seja cinco minutos mais longo, mas não a vi mais. Acho que não é
sempre que ela está ajudando a mãe. Não sei o que Júpiter faz o
resto do tempo. Não sei nem se ela está na faculdade.
Hoje, no meio da aula de matemática, o Thiago, o garoto que
se senta bem ao meu lado falou sobre a Júpiter. Os garotos tem uma
piada interna de chamar outro menino de “próximo planeta” sempre
que algum faz alguma coisa feminina demais.
É uma referência ao nome de Júpiter. Samuel uma vez disse
que “se existe Júpiter, precisa existir os outros planetas, então quem
vai ser o próximo?” e desde então os meninos usam isso para fazer
piada uns com os outros. Eu só peguei metade da conversa. Já foi o
suficiente. Depois disso, desliguei minha mente.
Acho que talvez eu realmente quero ser um robô. Robôs tem
botão para ligar e desligar.
A.
31 de março, domingo

O dia foi bom ontem. Elias e eu fomos ao cinema assistir à


um filme de terror muito ruim. É um dos nossos passatempo
favoritos.
Ele se sentou bem na última poltrona do canto esquerdo. É
uma posição meio ruim para assistir ao filme, mas me sentei ao seu
lado de qualquer jeito. Comprei pipoca para nós dois porque às
vezes ele tem um troço quando não recebe oito reais de troco.
Nós dois passamos o filme todo rindo e fazendo comentários
sobre a atuação dos atores, como se fossemos críticos de cinema
bem cultuados. É divertido.
Isadora já nos viu assistindo filmes e disse que não
entendemos nada de arte.
Às vezes, quando Elias e eu assistimos no cinema um filme
mais famoso ou algum de super-herói, Thiago, Pietro e Samuel vêm
com a gente, mas percebi que é muito mais confortável quando
estou apenas com Elias. Acho que ele fica mais ansioso perto dos
três também.
E Samuel é meio babaca.
Ele costumava ser legal até o ano passado, mas aí começou a
ter barba — antes da maioria dos garotos da nossa turma — e se
tornou um imbecil. Ele fuma cigarros e passa a mão nos pentelhos
do rosto como se fosse um cantor de rock famoso.
Eu queria ver mais um filme, mas a mãe de Elias odeia
quando ele volta tarde para casa, então foi melhor não.
Quando estávamos voltando para casa, Elias me contou que
conheceu uma garota.
Ela se consulta na mesma clínica de terapia que Elias, mas
com outro terapeuta. Sempre que ele está chegando, ela está
saindo.
“O nome dela é Angelina” ele me disse.
“Angelina tem oito letras” eu observei sabiamente.
“Isso é completamente coincidência”
“Sei”
“É sério”
“Tá bom”
“Juro”
“Acredito em você”
“Ela tem depressão”
“Hã”
“E é artista”
“Legal. O que ela faz?”
“Pinta quadros e escreve poesia, mas ela nunca mostra
nenhuma poesia pra ninguém”
“Por quê?”
“Não sei. Ela não quis me mostrar nenhuma poesia”
“Eu acho que poesia é meio chato”
“Nunca diga isso na frente de Angelina”
“Vou anotar isso”
“Ela vai fazer uma exposição de arte daqui duas semanas”
“Ela é uma artista famosa?”
“Não, é um projeto da faculdade, algo assim, eu acho. Ela me
convidou para ver os quadros dela. Quer ir comigo?”
“Não sei. Não sou muito artístico. Nem sem quem foi Van
Gogh”
“Cara, todo mundo conhece Van Gogh”
“As pessoas só sabem que ele foi um pintor famoso”
“Exatamente”
“É meio triste a vida toda dele ser resumida à ser um pintor
famoso”
“Vai ter comida e bebida grátis”
“Quando é?” eu perguntei em parte para fazer piada e em
parte porque não queria chatear meu amigo dizendo que eu não
queria ir.
Elias me deu um tapa no braço e disse que iria checar a data
e o horário. Acho que eu vou virar do tipo artístico. Nunca me
imaginei numa exposição de arte.
Talvez eu devesse pesquisar um pouco sobre artistas famosos
para não pagar nenhum mico perto da Angelina. Elias parece gostar
dela. Ele falou bastante sobre ela. Eu achei fofo. Queria que alguém
falasse assim sobre mim.
Ignore essa última parte. Pareceu carente demais.

A.
2 de abril, terça

Vi Júpiter hoje. Ela saiu de casa bem quando eu estava


entrando no carro do meu pai para ir para a escola, mas acho que
nem chegou a me ver. Ela estava segurando o celular na orelha com
uma mão e fechando a porta da entrada de casa com outra mão.
Provavelmente estava conversando com alguém que gostava
muito, porque parecia feliz e até chegou a dar uma risada alta.
Meu pai deu um grunhido de irritação e até agora eu não sei
se ele estava irritado por ver Júpiter ou porque não conseguia
encontrar uma boa estação no rádio.
Na escola minha professora de história me elogiou pelo meu
ótimo trabalho que entreguei semana passada e meu professor de
biologia disse que eu deveria prestar biologia no vestibular no ano
que vem. Estou pensando que talvez minha fama de bom estudante
esteja um pouco mais além do que eu achei que estava.

A.
5 de abril, sexta

Eu estou me perguntando se todo mundo faz alguma coisa


em segredo que sente vergonha.
É uma da manhã agora. Eu levantei para ir ao banheiro e dei
de cara com a minha irmã em frente ao espelho, com o celular
apoiado na pia e um pincel de maquiagem na mão. O rosto dela
estava todo maquiado de azul escuro. Tinha uma caixa amarela
cheia de maquiagens e todo o tipo de coisa que eu não entendo
direito. Acho que ela estava vendo tutorial de maquiagem e
tentando reproduzir, porque estava usando fones de ouvido.
Eu dei uma risada quando a vi ali, daquele jeito.
“É uma da manhã, Isadora” eu falei “Que diabo é isso?”
Depois meio que me arrependi, porque ela pareceu
envergonhada e fez cara de quem queria gritar comigo e só não
gritou porque era de madrugada e poderia acordar nossos pais.
Dora me chamou de imbecil, de “babaca de merda”, disse
para eu “não me meter nas coisas dela” e fechou a porta na minha
cara. Estou esperando ela sair porque realmente preciso fazer xixi.
Um pensamento não some da minha mente. E se fosse ela
me pegando em um momento que eu não queria que me vissem?
Eu costumo fazer uma coisa que não me orgulho muito.
É meio vergonhoso, na verdade.
Às vezes eu entro em um site de fotografia e seleciono
imagens de roupas que eu gostaria de usar. Eu crio várias pastas
cheias de fotos de roupas que eu queria que estivessem no meu
guarda-roupas.
Tenho uma conta com um nome falso para que ninguém
possa me encontrar de jeito nenhum.
Sinto vontade de usar vestidos às vezes. Eu os acho tão
bonitos. Especialmente os floridos. Mas acho que não ficariam bem
em mim. Me sinto muito besta pensando essas coisas.
Quase todo dia vejo centenas de roupas que eu sinto vontade
de vestir, mas que ao mesmo tempo tenho a sensação de que
ficariam péssimas em mim.
E eu não teria coragem de usar elas, de qualquer forma. As
pessoas iriam rir da minha cara.
Tem outra coisa. Eu roubei peguei sem pedir um dos batons
de Isadora. Acho que ela não notou. Ou, se notou, pensou ter
perdido.
Ela tem muitos. Peguei um rosa claro. É minha cor favorita.
Eu o escondo dentro de uma luva de lã velha que nunca uso,
bem no fundo da minha gaveta de meias.
Às vezes, quando estou apenas eu e me sinto fora de sintonia
com meu próprio corpo, tiro o batom de dentro da luva e passo em
meus lábios. Então me imagino em um mundo em que eu não
estaria fazendo aquilo escondido.

A.
13 de abril, sábado

Fiz uma coisa muito imbecil.


A exposição de arte que Elias me chamou foi ontem à noite,
na Universidade que fica há trinta minutos andando daqui de casa.
Não era uma sala muito grande, mas tinha vários quadros e
desenhos e até algumas esculturas. Angelina estava esperando a
gente na porta de entrada. Ela nos deu um abraço, o que eu achei
bem gentil.
Elias pareceu ficar um pouco nervoso perto dela, mas talvez
tenha sido impressão minha.
(Apesar de que eu tenho certeza de que o vi tentando deixar
a coluna mais reta assim que viu Angelina)
Angelina mostrou seus quadros para Elias e eu. Ela desenha
bem. Não entendo nada de arte, mas achei todos lindos. Três deles
tinham uma cartolina na frente, escondendo o quadro, com a frase
“cuidado, esse desenho pode ser um gatilho” escrito com tinta
guache azul. Eu levantei a cartolina dos três por culpa da minha
curiosidade. Todos eles tinham figuras que lembravam demônios ou
seres sobrenaturais que pareciam ter saído de um desenho de terror,
mas a arte toda continuava linda. Em um dos desenhos, os
demônios pareciam estar sugando a alma de alguém.
Ela disse que não gostava de deixar esse tipo de desenho
livre para qualquer um ver porque nem todo mundo está com a
mente ok o tempo todo para ver aquelas coisas, então achou um
jeito de censurar.
A pele da Angelina me lembrou a cor da vitamina de banana
que eu bebia quando era criança. Ela estava toda vestida de azul.
Talvez seja a sua cor favorita. O cabelo preto e longo dela estava
preso para o lado, com uma trança. Eu vi uma tatuagem com
alguma palavra em chinês no pulso dela e me perguntei se ela era
do tipo que tatuava palavras asiáticas aleatórias pelo corpo, mas
então percebi que ela é asiática então a palavra provavelmente tem
mais significado pra ela do que ser uma palavra aleatória.
Tinha uma música francesa tocando um pouco alto. Elias e
Angelina estavam conversando e eu meio que estava sobrando,
então falei que iria olhar um pouco as coisas por aí porque achei que
os dois queriam um tempo sozinhos.
Andei pelo lugar todo fingindo que sabia alguma coisa sobre
arte. Um garoto de cabelo laranja me parou e tentou vender um dos
quadros dele pra mim (um pôr do sol com a água rosa e peixes com
asas), mas eu saí de perto dele dizendo que estava sem dinheiro.
Uma garota de vestido verde toda tatuada estava explicando
o conceito de um quadro dela para um grupo de umas cinco
pessoas. Tentei ficar por perto para ouvir, mas achei tudo chato
demais.
Tirei foto de algumas fotos que mostravam pinturas artísticas
e mandei para Isadora porque achei que ela iria gostar.
Acho que fiquei tempo demais encarando uma pessoa que
estava com uma máquina de fotografia na mão tirando fotos de
tudo. Primeiro, de costas, eu achei que fosse um garoto por culpa do
cabelo curto e da calça larga de estampa militar, mas então a pessoa
se virou de lado para mim e eu percebi que talvez fosse uma garota.
E então eu me senti meio lixo por ficar tentando descobrir qual era o
gênero daquela pessoa.
Ela (ou ele, não sei) estava mancando um pouco, por isso
fiquei encarando. Era meio sutil, mas toda vez que pisava com a
perna direita dava para ver. Talvez aquela perna seja curta demais
ou a pessoa tenha sofrido algum acidente.
A música já estava um pouco mais alta naquele ponto e
algumas pessoas estavam andando por ali com um copo de plástico
na mão e falando mais algo que o normal.
Desviei o olhar da pessoa com a perna curta/ machucada
porque provavelmente ele/ ela não gostaria de me ver encarando.
Eu peguei meu celular para mandar uma mensagem para
Elias. Foi então que eu a vi.
Ali, conversando com Perna Curta Ou Machucada.
Júpiter.
Perna Curta Ou Machucada ainda estava tirando fotos de
alguns quadros, mas Júpiter estava ao seu lado dizendo alguma
coisa. Os dois riram de algo.
Júpiter estava linda, como sempre. Cabelo preso. Argolas
prateadas gigantes nas orelhas. Um macacão de tecido preto que ia
até metade da canela e tênis branco.
Acho que meu cérebro parou de funcionar por uns instantes
assim que a vi.
Uma parte de mim queria ficar olhando para ela, mas fiz o
que a outra metade queria: saí dali o mais rápido possível.
Eu não queria que ela me visse, não sei porquê.
Ainda estava me xingando mentalmente quando reencontrei
Elias em um canto, sentado em um dos sofás dali, sozinho, bebendo
alguma coisa azul meio duvidosa no copo de plástico. Sentei ao lado
dele. O direito, claro.
“Eu fiz uma coisa muito burra” ele falou assim que me viu.
Eu quase falei Então somos dois.
“O que você fez?” eu falei por cima da música.
Ele aproximou a boca do meu ouvido.
“Angelina me cumprimentou com um abraço, né? A gente
conversou um pouco e depois ela disse que precisava falar com o
professor do curso de artes. Aí ela foi se despedir com outro abraço.
E eu pensei Dois é muito mais perto de oito do que um. Talvez isso
signifique que ela deva me dar oito abraços agora e não dois. Mas aí
eu pensei Isso é ridículo, por que ela iria precisar me dar oito
abraços? E depois eu fiquei, tipo, Por que ela não iria precisar dar?
Dois é um número horrível. Um número pavoroso. Oito é um número
muito melhor. E aí eu fiquei pensando Por que é que eu acho que
dois é um número ruim? E eu percebi que não acho. Minha cabeça
acha. Não eu. Aí minha cabeça ficou dizendo Você não pode dar dois
abraços quando pode dar oito. E eu tipo Por quê? E eu pensei Dois é
um número azarado. Nada de bom acontece duas vezes. As coisas
boas acontecem oito vezes. Eu pedi pra ela me dar mais seis
abraços, cara. Ela nunca mais vai querer olhar na minha cara. E
agora eu estou pensando se ela não deveria me dar oito abraços
seguidos. Será que aqueles dois de antes contaram? Você viu ela por
aí? Eu devo pedir desculpas por ser esquisito? Meu Deus, eu sou um
imbecil”
Eu fiquei em silêncio. Não sabia muito bem o que dizer. Elias
disse tudo muito rápido, praticamente vomitando as palavras pra
cima de mim.
Então reparei de novo no copo de plástico na mão dele.
“Quantos você bebeu?”
“Preciso de mais três para dar oito”
“Jesus, Elias, você ao menos pode beber enquanto toma seus
remédios?”
“Você acha que a Angelina me odeia agora?”
“Não. Ela não te odiaria por isso. Eu acho. Não é sua culpa,
de qualquer jeito. Ela sabe que você faz terapia e tudo mais”
“Sim, mas...”
“Então. Ela não vai te odiar. Se acalma”
Em resposta Elias apenas bebeu, rápido, a bebida do resto do
copo.
Ele faz uma coisa, às vezes, quando está nervoso ou ansioso,
que é arranhar a si mesmo. A unha do dedão dele é maior do que as
outras de propósito.
Eu o vi arranhar com força o pulso antes de se levantar para
encher o copo mais uma vez. Aproveitei e peguei para mim também.
Não queria estar sóbrio ali.
O líquido azul me passava a ideia de ser radioativo, mas não
parecia ter muito álcool ali. Graças a Deus. A última coisa que eu
precisava era lidar com Elias bêbado.
Felizmente Elias é muito resistente à alcool. Infelizmente, eu
não sou.
Não demorou muito para que eu começasse a sentir os
efeitos daquele negócio azul.
Fiquei conversando com Elias. Comentei sobre as obras de
arte, mas ele não sabia muito o que falar sobre isso, já que todo o
tempo que esteve ali estava mais ocupado em olhar para Angelina
ou ficar sentado com cara de triste.
Falando em Angelina, ela foi o motivo de eu ficar sem
nenhuma companhia mais uma vez.
Elias se levantou assim que viu ela de longe. Provavelmente
foi pedir desculpas, eu acho. Não sei. Elias é meio complicado de
entender. No geral, ele é bem calmo — ao menos por fora — , mas
tem momentos de ansiedade pura.
Eu fiquei ali, mordendo a bordinha do meu copo plástico.
Então veio a parte estranha.
Júpiter se sentou ao meu lado. Bem onde Elias estava
minutos antes.
Meu cérebro sempre trava só de olhar ela de longe, eu
praticamente dei pane total ao ver ela do meu lado. E o pior? Ela
estava olhando diretamente para mim.
“Você é meu vizinho” Júpiter disse.
Não sei se demonstrei muita reação. Júpiter não parecia
bêbada. Não estava nem sequer segurando algum copo na mão.
“Eu te vejo às vezes” ela continuou “Regando as plantas da
frente da sua casa”
“São da minha mãe” eu disse. Minha voz estava falhando.
Lembro de ter me sentido meio imbecil. Ela é tão linda e eu sou um
dedo torto “Ela gosta daquelas flores. Provavelmente gosta mais
delas do que gosta de mim”
Júpiter deu uma risadinha. Reparei mais uma vez na pintinha
no canto do lábio.
Por algum motivo, não calei a boca e falei:
“Eu achei que você nunca me via. Está sempre no celular”
“Eu sou multi tarefas. Faço tudo quando estou no celular”
“Eu sempre te vejo”
Júpiter levantou uma das sobrancelhas de um jeito meio
gracioso.
“Quero dizer, hum, é meio difícil não te ver”
Eu acho que talvez eu não seja muito bom com as palavras.
Júpiter perguntou se aquilo era um elogio ou um insulto e eu me
embolei tudo no que estava dizendo. Ela riu de mim e disse para eu
relaxar. Então eu tentei dizer que sempre a via porque ela
memorável. E aí ela perguntou Que tipo de memorável? E eu
precisei me segurar para não dizer Memorável tipo a mulher mais
linda que eu já vi E acabei falando É porque na escola todo mundo
falava sobre você. O que foi obviamente uma coisa péssima para se
dizer. Júpiter torceu a boca em uma careta, provavelmente
lembrando de todas as coisas ruins que ouvia na escola. Então eu
acabei dizendo Mas é meio que um elogio ser insultada por aquelas
pessoas, o que fez ela meio que rir, meio que me achar esquisito.
Depois disso meu cérebro provavelmente pensou “ei, banque
o maior idiota agora!” e falei E também porque todo mundo acha
que você é satanista. E eu meio que não entendo porquê você veste
essas roupas pretas. Sempre preto. Se eu pudesse me vestir com
roupas de mulheres, me vestiria com vestidos lindos. Vestidos
floridos, provavelmente. Já usou um? São lindos.
Eu percebi que falei algo muito estúpido porque Júpiter ficou
me encarando, sem entender nada.
Graças a Deus Elias apareceu bem naquele momento e me
tirou dali, porque eu provavelmente diria algo mais burro ainda se
tivesse mais tempo. Nunca fiquei tão grato pela mãe de Elias o
querer em casa cedo.
Quanto mais eu penso nessa conversa, mais eu quero bater
na minha própria cara.
No caminho para casa Elias perguntou porque eu estava com
Júpiter. Eu só respondi que ela tinha aparecido lá do nada, então ele
começou a falar sobre Angelina.
Não prestei muita atenção. Estava mais ocupado me sentindo
um otário.

A.
15 de abril, segunda

É uma da manhã e eu ainda estou me corroendo por tudo o


que falei para Júpiter.
Ao menos tenho boas notícias: Isadora tirou ótimas notas nas
provas que eu a ajudei a estudar. Ao menos isso.
Fico me perguntando o que Júpiter acha de mim agora. Ela
provavelmente nunca mais vai querer falar comigo.
Quero dizer, eu não falaria comigo se fosse ela.
Vou fazer outro caminho quando voltar da escola para casa,
para não correr o risco de ver ela pelo vidro da Lumus.
Que estranho, antes eu procurar ver ela e agora estou
fugindo.
Ah, meu pai levantou para ir ao banheiro e viu a luz do meu
quarto acesa. Preciso ir dormir antes que ele volte e brigue comigo.

A.
17 de abril, quarta

Eu preciso parar de fazer coisas burras.


Ou talvez não tenha sido algo tão burro dessa vez.
Eu estava me corroendo por ter sido um babaca na frente de
Júpiter. Hoje à tarde eu tive uma epifania e saí de casa. Parei bem
em frente à porta da casa de Júpiter. Eu sabia que ela estava ali
porque minutos atrás dava para ouvir um som muito alto de alguma
música punk, mas agora estava em silêncio e eu meio que talvez
tenha vigiado pela janela da sala se Júpiter tinha saído.
Pensei em dar meia volta, mas acabei tocando a campainha.
E lá estava ela, de camiseta preta e calça de malha azul. O
cabelo solto, meio bagunçado. Não sei como ela consegue ficar
charmosa de qualquer jeito.
Nós nos encaramos um pouco e eu meio que me atrapalhei
falando Eu quero me desculpar pelo que falei sexta à noite eu não
quis dizer que as roupas que você usa são ruins ou que você tem má
fama e não tem problema nenhum se você for realmente satanista
porque tipo eu não preciso me meter na religião de ninguém então
tipo tudo bem e eu não tenho nada contra preto ou suas roupas
serem pretas e eu sei que você não precisa que eu diga isso porque
você pode usar o que quiser mas eu só quero pedir desculpa por ter
sido babaca não era pra soar daquele jeito tá então ta bom tchau.
E AI ELA ME SEGUROU PELO BRAÇO!!!! E eu não consegui
sair dali como pretendia.
“Tudo bem” Júpiter disse “Tudo bem, tudo bem. Está tudo
bem. Você não precisa pedir desculpas. Não foi ofensivo e nem
nada, eu só me surpreendi um pouco de ter ouvido aquilo de você”
ela riu e me soltou “Mas está tudo bem. Nossa. Você pareceu um
furacão falando tudo isso”
“Desculpa”
“Não precisa pedir desculpas”
Reprimi o reflexo de pedir desculpas.
“Você não ficou preocupado com isso desde sexta, ficou?”
Olhei para o chão.
“Jesus”
“Eu estava pensando que talvez você tenha me achado, tipo,
um grande de um babaca. Como os babacas da escola”
“Ah, não, você não é assim. Eu sei. Eu lembro bem da cara
dos babacas”
Eu não soube o que responder para isso. Pensei que ficaria
um silêncio constrangedor, mas ela falou, assim que viu que eu não
responderia:
“Ei, eu preciso voltar ao trabalho agora. Minha mãe está
planejando vender algumas coisas em uma loja virtual e eu tenho
cuidado disso”
“Ah, claro, desculpa incomodar, eu já vou…”
“Não, não, tudo bem. Não é bem isso. É que uma amiga
minha cursa jornalismo e a gente estava conversando hoje mesmo
sobre ela precisar de mais pessoas para um projeto. Você gostaria
de participar? É uma pequena entrevista rapidinha. Tem poucas
pessoas que quiseram passar pela entrevista e isso vale muita nota.
Sexta ela vai vir aqui para filmar a minha entrevista, se você puder
aparecer pra ser entrevistado, quem sabe trazer alguns amigos que
queiram participar também, vai ajudar demais”
“Hã, tudo bem, eu acho. Eu posso vir. Sexta, né?”
“Isso. Lá pelas quatro”
“Ok”
“Você é um anjo. Muito obrigado”
Ela me chamou de Anjo.
Eu voltei para casa meio atordoada. Ainda bem que estava
sozinha sozinho.
Até agora eu não acredito que isso aconteceu.

A.

18 de abril, quinta

Acho que tenho um problema com pronomes. Sei que eu


deveria usar pronomes masculinos. Deveria. Mas odeio eles. Meu
cérebro sempre diz que eu deveria estar referindo a mim mesmo no
feminino ou eu deveria buscar por palavras que não definem gênero.
Fiz uma burrada hoje. Me chamei no feminino na frente da
Isadora. Nós estávamos tendo uma pequena discussão sobre quem
poderia usar a TV naquele momento.
“O que você quer assistir?” ela perguntou “Algum filme com
avaliação extremamente baixa no IMDB?”
E aí eu respondi:
“Só porque eu não sou viciada em filmes igual você não
significa que meu gosto é ruim”
Dora só torceu o nariz para isso. Eu fiquei imóvel, mas ela
não disse nada. Não sei se percebeu.
Espero que não. Não sei como lidar com isso.
Fiquei pensando se algum dia usei os pronomes errados na
frente de alguém e não percebi.

A.
19 de abril, sexta

Talvez eu tenha feito novos amigos hoje.


Eu fiquei com vergonha de falar com Elias sobre a promessa
que fiz para Júpiter de ajudar a amiga dela com o trabalho da
faculdade, mas não queria que Júpiter pensasse que eu não sou
uma pessoa de palavra.
No fim, tudo o que Elias fez quando eu comentei com ele
sobre, foi pedir se podia convidar Angelina para ir com a gente. Eu
disse que sim, porque Júpiter falou “chame uns amigos se puder”
então achei que tudo bem levar duas pessoas e não só uma.
Angelina me cumprimentou com um abraço. Acho que ela
gosta de abraços.
Eu e Angelina deixamos o lado esquerdo de Elias livre
enquanto íamos até a porta da casa de Júpiter.
Júpiter atendeu a campainha da casa e levou nós três para a
sala de estar.
Uma pessoa estava prendendo um lençol branco com fita
adesiva na parede.
Eu demorei um pouco para lembrar dela, mas era a mesma
pessoa que vi na exposição de arte, a com a perna manca ou
machucada. E aí eu fiquei realmente confuso porque Júpiter chamou
a pessoa de ele e eu lembro de que ela disse A minha amiga cursa
jornalismo e não O meu amigo. Pensei que talvez eu tivesse me
enganado.
O nome dele é Raví.
Raví agradeceu por todos estarmos ali e explicou que o
trabalho dele era entrevistar algumas pessoas e falar sobre saúde
mental nas escolas.
Eram apenas algumas perguntas. Júpiter foi a primeira a ser
entrevistada. O resto de nós ficou em silêncio, sentados no sofá. Eu
fiquei reparando na decoração da sala. Nunca tinha estado ali. Tinha
um quadro de um girassol na parede e algumas fotografias na
estante. Júpiter aparece em algumas delas.
Elias foi depois de Júpiter.
Não era perguntas muito difíceis. Eram coisas como: Idade?
Quantas escolas já frequentou? Quantas delas disponibilizavam
apoio psicológico profissional? Já teve aulas falando sobre isso?
Sente que a escola é um lugar seguro para você? Você possui algum
tipo de transtorno ou doença que já te atrapalhou ou possa vir a te
atrapalhar nas aulas?
(Elias respondeu não para a última pergunta)
Eu fui depois e, na vez de Angelina, ela pediu se podia ficar
sozinha com Raví para responder as perguntas, então Elias, Júpiter e
eu fomos até a cozinha e Júpiter serviu biscoitos veganos de
chocolate para a gente.
Acho que fiquei meio nervoso e só ouvi Elias e Júpiter
conversando.
Reparei em como Elias chamou Júpiter de ela sempre.
Raví e Angelina apareceram logo depois e Angelina começou
a conversar com Júpiter e Elias também. Eu não falei nada porque
estava ocupado demais ficando nervoso por estar na casa de Júpiter.
Eu tentei evitar olhar como Raví mancava enquanto andava.
O que é que tinha acontecido com ele, afinal?
Aí eu senti uma coisa na minha perna e fiquei com medo
porque achei que era algum bicho, mas era só um gato laranja se
esfregando em mim. Eu peguei ele no colo e Júpiter disse:
"A Raposa gostou de você. Ela não gosta de ninguém”
Acho que eu fiz uma cara estranha porque Raví disse:
"Eu também acho Raposa um nome péssimo”
Júpiter deu um tapa no braço dele.
Angelina falou:
"Por que você chamou a sua gata de Raposa?”
E Elias respondeu:
"Por que não chamar? Ela parece uma raposa”
Eu ainda estava com ela no colo quando Júpiter se aproximou
de mim e fez carinho na cabeça da Raposa. Acho que eu prendi
minha respiração.
Isso é estranho? Eu quero tanto estar perto dela, mas ao
mesmo tempo quando me aproximo dela eu só quero correr.
Nós cinco fomos para a sala e Elias colocou na TV um filme
estranho de suspense. Eu me sentei em uma ponta do sofá e Elias
em outra. Júpiter fez pipoca, Angelina fez limonada e eu fiquei com
Raposa no colo o tempo todo. Só a soltei antes de ir embora e ela
ficou miando para mim.
Foi um dia meio estranho.

A.
6 de maio, segunda

Ei. Não tenho escrito muito ultimamente. Passei a maior parte


dos últimos dias procurando por filmes para assistir e assim
conseguir me desligar da minha mente.
Não estou mais passando na frente da Lumus também. Tenho
medo de Júpiter me ver e tentar conversar comigo. Acho que eu
entraria em pânico.
Aconteceu uma coisa meio esquisita semana passada.
Elias disse que se sente meio mal pelas piadas que nossos
colegas fazem com Júpiter. Principalmente depois de ter conhecido
ela.
Eu disse que era horrível e que ninguém deveria ser tratado
daquela forma. E eu meio que falei Imagino como seria se fosse
comigo.
Mas Elias não disse nada. Só começou a falar sobre Angelina
novamente. Eles estão meio que namorando não oficialmente. Sei lá.
À noite eu recebi uma notificação no celular de que eu fui
colocado em um grupo por um número desconhecido.
Depois eu descobri que esse número era Raví e que Elias
passou meu número para Angelina que passou para Raví. Angelina e
Raví estudam na mesma universidade, então deve ter sido fácil.
Raví me convidou para a festa de aniversário dele. É meio
esquisito porque eu mal conversei com ele, mas Elias quer que eu vá
porque ele quer ir ver Angelina. Mas eu estou com medo porque
Júpiter vai estar lá.
Ah, eu preciso dormir. Dormir é tipo morte temporária e eu
não aguento mais a minha cabeça.

A.
9 de maio, quinta

Isadora tem muitas maquiagens. Tipo, muitas. Estou me


sentindo meio mal por fuxicar as coisas dela, mas foi mais forte que
eu.
Meu pai estava no trabalho e minha mãe tinha levado Dora
para comprar umas roupas novas. Eu não planejei ir até o quarto
dela, mas quando eu me vi ali…
Eu ia devolver. Juro. Peguei uma máscara de cílios e um
batom azul, guardei todas as outras coisas no lugar e me tranquei
no meu quarto. Pesquisei na internet como usar a máscara e fiquei
me encarando no espelho do meu quarto.
Quando eu ouvi o carro estacionando na garagem de casa, só
deu tempo de esconder as coisas na minha gaveta e correr para o
banheiro tirar tudo aquilo do meu rosto.
Fiquei lá dentro por vários minutos e quando saí me senti
meio nu e como um estranho nessa casa, mesmo que tenha sido
aqui que eu vivo desde que nasci.
Meu pai chegou do trabalho alguns minutos depois. Eu estava
na sala, procurando por um filme para assistir. Ele se sentou no meu
lado e comentou que meu professor de biologia comprou um sofá
dele hoje e disse que eu deveria cursar biologia na faculdade. Eu
contei que estava pensando em talvez fazer veterinária. Acho que
isso o fez se sentir muito orgulhoso, porque ele deu um sorriso e um
tapinha no meu joelho e falou que eu serei um bom homem quando
crescer.
Nós dois assistimos metade de um filme até que minha mãe
nos chamasse para o jantar.
Meu pai é meio distante e rígido demais às vezes, mas eu
gosto dele. O sorriso de orgulho no rosto dele é uma coisa que eu
não quero desfazer.

A.
11 de maio, sábado

Acho que o mundo está rindo de mim.


Eu não queria ficar em casa hoje, então chamei Elias para ir
na sorveteria que tem aqui por perto.
Nós sentamos bem ao lado da mesa onde Júpiter e Raví
estavam, então eles nos chamaram para mesa deles.
Júpiter estava com uma máquina de fotografia pendurada no
pescoço. Ele dividia a sua atenção entre mexer na máquina e tomar
um milkshake de morango.
Raví estava comendo uma tigela de açaí. Ele apontou a colher
para Elias e eu e disse:
"Vocês vão para a minha festa, não vão?”
“Acho que sim" eu falei.
"Com certeza" Elias respondeu "Eu vou levar ele comigo"
apontou para mim.
"Ótimo." Raví riu. "Eu quero ficar muito bêbada. Quanto mais
gente me vendo pagar mico, melhor”
Eu fiquei confuso com o bêbada. Palavra no feminino. Na
última vez em que vi Raví, era definitivamente um ele.
"Ok." Elias se curvou para frente. "Eu preciso perguntar. Eu
estou confuso. Definitivamente confuso. Como eu devo te chamar?
Angelina te chama de ele às vezes e às vezes de ela. E eu sei que
vocês meio que se conhecem há um tempo, então…”
Raví não hesitou:
"Hoje é ela. Na maior parte do tempo eu uso pronomes
masculinos, mas gosto de femininos também. Por enquanto, me
chame no feminino”
"Isso é meio confuso”
Raví deu de ombros.
"Você pode sempre me perguntar quais pronomes usar. Eu
não me importo se perguntar”
"Tá. Ok. Mas o que você é?”
Raví e Júpiter trocaram um olhar, como se compartilhassem
algo.
"Eu sou trans não-binário" Raví falou "Mais especificamente
agênero. E eu troco de pronomes às vezes”
"Entendi." Elias respondeu. “Não, não de verdade. Não
entendi. Mas entendi. Um pouco.”
Raví riu.
"Só respeita meus pronomes, tá?”
"Ai, meu Deus." isso foi Júpiter. Ela praticamente gritou. Olhei
para ela e, estranhamente, ela estava olhando para mim.
“O que foi?" eu perguntei.
Ela segurou a máquina de fotografia um pouco mais para
cima.
"Você." Júpiter disse. "O sol está bem atrás de você. E o seu
rosto é perfeito. Tudo isso combina pra caralho. Posso tirar uma foto
sua?”
"Hã… Não sei”
"Por favor? Vai ficar ótimo”
Eu não sei se algum dia eu vou dizer não para ela.
Especialmente depois de ela chamar o meu rosto de perfeito. Acho
que ninguém tinha definido meu rosto dessa maneira antes.
Júpiter tirou várias fotos. Depois puxou a sua cadeira para o
meu lado e me mostrou todas ela.
Não gosto muito do meu rosto, mas até que gostei de como
Júpiter me fotografou.
Ela continuou a passar as fotos e me mostrou as que tinha
tirado de Raví mais cedo, no lago da cidade. Depois apareceu as
fotos dos vestidos de noiva da Lumus.
"Acho que você não vai querer ver isso" ela disse.
"Eu quero" respondi. "Você é uma ótima fotógrafa”
Ela sorriu para mim.
Eu só consegui ouvir Raví e Elias conversando ao fundo
enquanto Júpiter estava tão perto de mim. Eu conseguia sentir o
perfume dela. Nós dois rimos vendo várias fotos da Raposa.
"Ela gostou de você“ Júpiter comentou, me mostrando uma
foto de Raposa em cima de uma árvore. "Talvez você devesse
aparecer lá em casa e fazer carinho de novo nela algum dia”
Não sei porquê, mas isso meio que fez o meu dia.
A.
12 de maio, domingo

Hoje foi o dia das mães.


Isadora e eu fizemos um café especial. Ela me acordou mais
cedo me cutucando nas costelas e quase gritou comigo duas vezes
por queimar algumas das panquecas, mas no fim tudo deu certo.
Nossa mãe quase chorou vendo o álbum de fotografia que
Dora e eu fizemos. Nós dois separamos as fotos juntos e Dora foi até
uma papelaria para personalizar o álbum. Meu pai deu para minha
mãe uma muda de uma planta. Pode parecer um presente meio
brega, mas foi especial porque era uma planta que minha mãe
queria muito.
Nós quatro comemos o café da manhã juntos. Eu gosto muito
desses momentos entre a minha família.
Mais tarde, meu pai disse que estava feliz por eu ser um bom
homem na casa. Ele sempre está dizendo coisas como “seja um bom
homem para as mulheres” ou “assuma as suas bolas” mas esse
último ele só diz quando está meio bravo. Acho que bolas não é um
termo muito bom para se dizer para seus filhos.
Não gosto quando ele fala essas coisas, então tento ignorar,
mas nem sempre consigo.
A.
18 de maio, sábado

A festa de aniversário de Raví foi ontem, mesmo que o


aniversário dele de fato seja só no dia 25.
A garagem da casa de Raví é enorme. Tinha várias pessoas
lá, uma mesa cheia de docinhos e dois bancos gigantes para sentar.
Ah, e eu descobri porque Raví anda meio mancando. Ela não
tem uma das pernas. Quero dizer, tem, mas é uma perna robótica.
Dava para ver a perna mecânica porque ele estava usando um
vestido.
Elias cochichou no meu ouvido “O que será que aconteceu
com ele?”
E eu respondi “Não pergunte. É feio”
E ele disse “Mas eu sou curioso”
E eu falei “Talvez a Angelina saiba”
E ele falou “Vou perguntar para ela”
E eu comentei “Me conte o que ela disser. Também quero
saber”
Júpiter estava muito linda com um vestido todo preto que mal
chegava na metade da coxa dela. Não queria dizer que eu reparei
nisso, mas eu meio que reparei bastante.
Foi Júpiter que encheu pela primeira vez o meu copo com
uma bebida vermelha bem docinha.
Raví apareceu do meu lado e pediu um gole para mim porque
ainda não tinha experimentado aquilo. Eu dei.
Angelina chegou logo depois e me cumprimentou com um
abraço. Ela acabou indo com Elias para um canto logo em seguida.
Eu estava conversando com Raví e no meio de alguma frase o
chamei por pronomes femininos. Ele me interrompeu e disse “É ele
agora”.
“Desculpa” eu pedi. Ainda é meio confuso. Ele estava usando
pronomes femininos na última vez em que nos falamos “É que você
está de vestido”
“Sim. E daí?”
Júpiter me deu um soquinho no braço.
“Não seja binarista”
“Desculpa” eu falei de novo.
“Eu te desculpo” Raví disse “Se você me der mais dessa
bebida”
Acho que fiquei com vergonha, por isso dei meu copo inteiro
para Raví. Depois ele disse que eu não precisava ter feito isso, que
tudo bem eu errar seus pronomes apenas por não saber qual usar
no momento, o que fez eu me sentir meio idiota, mas Júpiter foi
comigo pegar mais bebida, então tudo bem, eu acho.
Eu estava me sentindo muito deslocada ali porque conhecia
só quatro pessoas naquela festa, mas Júpiter estava comigo, então
tudo bem. Ela pediu para que eu segurasse o copo de bebida dela
enquanto ela tirava fotos de algumas pessoas.
Em algum momento eu falei para Júpiter que gostei dos
brincos dela. Acho que a bebida me deu coragem. Ela agradeceu
enquanto tocava na cruz invertida que estava em sua orelha.
Júpiter perguntou se eu estava deixando o cabelo crescer. Eu
falei que sim e ela disse que ficava muito bom em mim. Não soube
como reagir a isso.
Eu fiquei observando Júpiter tirar fotos. Especialmente fotos
de Raví. Ela tirou algumas de mim também.
Um pouco mais tarde nós cantamos Parabéns pra você para
Raví e eu comi um pedaço gigante do bolo de chocolate.
Elias apareceu e disse para mim:
“Angelina disse que não sabe o que aconteceu com a perna
do Raví. Aparentemente ele sempre conta uma história diferente
quando perguntam”
Eu continuei a comer meu bolo, mas percebi que o braço de
Elias estava todo arranhado.
“Você está bem?”
Ele apenas acenou afirmativamente. Logo depois eu o vi
arranhando o próprio braço. Segurei sua mão.
“Acho que você deveria parar com isso”
“Não consigo”
“Aconteceu alguma coisa?”
Ele negou.
“Eu só preciso beber”
E saiu.
Eu fiquei ali. Pensei que talvez devesse ir atrás dele, mas
minutos mais tarde eu o vi entrando na casa de Raví com Angelina,
na parte dos quartos.
Eu olhei em volta. As pessoas estavam todas dançando com a
música alta e a luz baixa. Me encostei na parede.
E então eu vi Júpiter beijando uma garota.
Eu não sei quem era. Não reparei na garota. Assim que meu
cérebro processou a imagem eu dei meia volta.
Fiquei triste. E com raiva. Raiva de quê, eu não sei. Mas
principalmente triste.
Peguei mais bebida.
Não sei quanto bebi. Acho que foi algo meio burro.
Eu queria ficar sozinho. Peguei mais um copo de bebida e
entrei na casa. A primeira porta que abri encontrei duas pessoas
desconhecidas se beijando. Ótimo. Todo mundo beijando menos eu.
A segunda porta que abri foi o banheiro, mas pensei que alguém iria
querer usar o banheiro, então não fiquei ali. A terceira porta não
consegui abrir, então andei mais ainda e encontrei a porta que dava
para o quintal da casa. Tinha um banco de madeira, mas me sentei
na grama.
Pensei em ir para casa. Talvez Elias não se importasse em
ficar sozinho ali. Ele estava muito ocupado com Angelina, de
qualquer jeito.
Então eu ouvi uma voz.
“Ei. Bernardo me disse que te viu vindo para cá”
Eu não sei quem é Bernardo.
Júpiter me encarou. Ela estava com a máquina de fotografia
na mão.
“Você estava beijando uma garota” eu falei.
Estava escuro, mas acho que a vi levantando as sobrancelhas.
“É”
“Achei que você gostasse de meninos”
“Eu gosto”
“Mas eu te vi beijando aquela garota”
“Eu sou pansexual”
“O que isso significa?”
“Significa que eu gosto de pessoas independente do gênero”
ela respondeu “Tenho uma pequena preferência por garotas, acho,
mas, ainda assim, gosto de todos os gêneros”
“Ah”
“Pois é”
“Eu gosto de meninas. Só meninas”
Ela deu uma risadinha.
“Você tem bom gosto, então. Posso tirar umas fotos suas?”
Júpiter não esperou a minha resposta. Ela deu um passo para
trás e um clique na câmera fotográfica. Um flash me atingiu.
Eu escondi meu rosto com a mão.
“Não” falei “Odeio minha cara”
“Por que?” ela perguntou “Você é muito lindo”
“Para um garoto”
Acho que eu tinha bebido meio demais.
Nós ficamos em silêncio.
Eu não olhei para ela.
“Eu posso tirar fotos de você algum dia” ela disse, por fim “De
algum jeito que você goste de se ver”
“O que isso quer dizer?”
Ela se sentou no banquinho de madeira e olhou para mim.
“Não sei. Tenho a impressão de que você não gosta de ser
ver assim”
Eu não sei exatamente o que ela quis dizer com isso, mas não
perguntei.
Estou pensando que talvez não devesse ter dito essas coisas.

A.
21 de maio, terça

Acho que tem algo de errado com Elias. Ele não foi para aula
nem segunda nem hoje. Mandei várias mensagens para ele e ele
não respondeu nenhuma. Mandei uma mensagem para Angelina e
ela disse que não fala com Elias desde sábado de madrugada.
Ninguém na escola tem notícias dele.
Estou pensando em ir até a casa dele. Acho que algo
aconteceu.

A.
22 de maio, quarta

Acabei de voltar em casa. Fui até Elias ver ele pessoalmente.


Ele não estava tomando seus remédios direito. Domingo à
noite ele tentou se machucar muito, muito feio. O antebraço dele
está enfaixado, bem onde eu o vi se arranhar na festa de Raví.
“Não me pergunta nada, por favor” Elias disse, assim que
ficamos sozinhos em seu quarto “Eu não quero falar sobre isso. Tudo
o que minha mãe tem perguntado é como eu estou. Ela acha que eu
sou suicida. A porta do meu quarto está sem tranca por causa disso”
“Por que você não respondeu minhas mensagens?” eu
perguntei.
Ele deu de ombros.
“Desculpe” pediu.
“Não se desculpe. Da próxima vez só me responda, tá? Nem
que seja só pra dizer que não quer conversar comigo”
“Tá”
“Tá tudo bem agora?”
“Cara, eu não sei explicar. Minha psiquiatra mudou meus
remédios e agora a minha mãe vai cuidar para que eu tome eles
direito. Eu não queria tomar eles, mas acho que percebi que no fim
preciso deles”
“Você deveria responder Angelina também. Ela está
preocupada”
“Eu sei. Acho que ela vai querer me bater. Ela sempre disse
pra eu tomar meus remédios direito. Ela toma os dela, pra
depressão, sabe, eu deveria seguir o exemplo dela”
“Deveria mesmo”
Nós ficamos em silêncio por um momento.
“Angelina me contou que é bissexual” Elias disse.
“Hummm”
“Você acha isso esquisito? Tipo, ela pode me trocar por uma
mulher”
“Você também pode trocar ela por uma mulher”
“Não é a mesma coisa”
“Por quê?”
Ele pareceu não saber o que responder. Ao invés disso, falou:
“Será que ela ainda vai querer namorar comigo?”
“Acho que deveria perguntar isso para ela”
“Mas ela pode me trair”
“Se ela quiser te trair, eu acho que não vai ser o número de
gêneros que ela se atraí que vão impedir ela de te trair. Quem quer
faz de qualquer jeito”
“Tá. Talvez. Não sei. Hum.”
“Você vai voltar para a escola logo?”
“Não sei”
“Você pode dizer que conseguiu isso aí no braço em uma
briga”
“Não sei se vai colar”
“Você pode tentar”
“A gente pode falar de outra coisa?”
“Tipo a Angelina? Você deveria pedir ela em namoro logo”
“Tenho medo de ela dizer não”
“Acho difícil”
“Por que você nunca me fala sobre as garotas que está afim?”
“Ah…”
Elias me deu um soquinho no braço.
“Angelina disse que você gosta da Júpiter”
Meu rosto ficou muito vermelho. Eu senti cada parte minha
queimar de vergonha.
“Angelina não sabe de nada” falei.
“Ei, calma, tá tudo bem”
“É mentira. Eu NÃO gosto dela”
“Tá”
“Não sei de onde isso surgiu”
“Cara…”
“Eu JAMAIS gostaria dela assim”
“Cara, tá bem, eu só comentei. É estranho, né? Porque ela
era homem e tudo mais”
“Ela não era homem”
“Você sabe o que eu quis dizer”
“Eu não gosto dela”
“Sem julgamentos”
“Tá”
“Sério”
“Pede a Angelina em namoro logo”
“A gente pode fazer encontros duplos. Eu e Angelina e você e
Júpiter”
Eu olhei para Elias, mas então percebi que ele só estava
zoando com a minha cara e falei:
“Imbecil”
E agora eu estou com vergonha de novo, escrevendo isso.

A.
24 de maio, sexta

Elias voltou para a escola. Ele está melhor, acho. Nós tivemos
uma prova de gramática hoje e eu passei algumas colas por debaixo
da mesa para ele.
Eu o ouvi dizer para Samuel que um de seus primos o atacou
com uma faca e acabou cortando seu braço, mas que estava tudo
bem. Não sei se Samuel ou os outros colegas da nossa turma
acreditaram.
Dei para Elias meus cadernos para que ele copie toda a
matéria que perdeu nos dias que não foi para a aula.
Ah, e ele e Angelina estão oficialmente namorando. Fiquei
com medo que ele fizesse outra piada sobre eu e Júpiter quando me
contou, mas nada aconteceu. Ele só disse que talvez pudesse pedir
para Angelina me juntar com alguma de suas amigas. Eu não
respondi.
Pela primeira vez em semanas eu passei na frente da Lumus
no caminho para casa, mas Júpiter não estava lá.
Sinto falta de olhar para Júpiter. Eu gosto de como tudo no
rosto dela se encaixa. Gosto da forma como ela se veste, da forma
como fala e se expressa.
Queria ser amigo dela.

A.
26 de maio, domingo

Eu acho que alguém mexeu nas minhas coisas.


Eu lembro muito bem de ter escondido a máscara de cílios
que peguei de Isadora dentro de uma meia velha e os dois batons
em outra meia. E eu sempre deixo tudo no canto direito, bem no
fundo da gaveta, mas hoje eu fui olhar e a máscara estava junto
com um dos batons.
Entrei em pânico por alguns minutos, mas por que alguém iria
mexer nas minhas coisas, guardar tudo de novo e não falar nada?
No almoço prestei atenção se meu pai ou minha mãe estavam
agindo diferente comigo. Se eles achassem maquiagens da minha
irmã na minha gaveta, com certeza estariam agindo diferente, mas
os dois estavam completamente normais.
Até mesmo Isadora estava agindo normalmente comigo.
Talvez seja coisa da minha cabeça, mas estou com medo
mesmo assim.
Escondi tudo em lugares diferentes. Estou pensando em
devolver as coisas para Isadora quando eu estiver sozinho em casa,
mas não sei se ela iria reparar e achar esquisito.

A.
27 de maio, segunda

Eu dei de cara com Júpiter hoje.


Ela estava saindo da Lumus bem quando eu passei em frente,
voltando da escola.
Foi meio estranho. Nós ficamos nos encarando por um tempo,
sem dizer nada.
Até que ela disse:
“Eu estava mesmo me perguntando quando ia conseguir falar
com você. Sempre te vejo passando por aqui e você nunca para”
Me perguntei se deveria agir como se não soubesse que ela
poderia estar ali.
Mas Júpiter me perguntou, antes que eu pudesse pensar
nisso:
“Você lembra o que a gente conversou na festa do Raví?”
“Hã…”
“Sobre eu tirar fotos suas”
“Não sei. Não me parece uma boa ideia”
“Olha, tem um parque meio abandonado do outro lado da
cidade que dá pra fazer uns cenários ótimos… Ou você pode ir lá em
casa e a gente faz o que você quiser”
“Não sou muito fotogênico”
“Fotos podem elevar a sua auto estima”
“Quem disse que eu preciso elevar a minha auto estima?”
“Eu” ela respondeu “Eu quero te fotografar para que você
veja como é lindo”
Acho que meu rosto ficou vermelho.
“Eu não tenho como te pagar” falei.
“E quem foi que disse sobre pagar?” ela respondeu “Eu não
fotografo profissionalmente. Não ainda”
“Tá. Mas não em público”
Ela sorriu.
Nós dois voltamos juntos para casa. Júpiter disse para eu ir
em sua casa amanhã à tarde. Não sei o que pensar disso.

A.
28 de maio, terça

Eu menti para meus pais que iria passar a tarde na casa de


Elias, mas fui para a casa ao lado.
Júpiter me recebeu com um sorriso. Ela estava com um
pacote de ração para gatos na mão. Eu me senti meio deslocado e
esquisito estando ali apenas com ela e com Raposa.
Enquanto Júpiter alimentava a gata, ela me disse que tinha
algumas ideias para fotos, mas que só iria funcionar se eu a
deixasse me maquiar. Eu quase gritei Por favor, mas só falei um “Ah,
tudo bem, não me importo”.
Isso a deixou contente.
“Eu não gosto de usar maquiagem em mim” Júpiter falou
“Mas eu curto maquiagem artística. Pensei em uma pra fazer em
você”
Então ela fez eu sentar em uma cadeira no meio da cozinha e
pegou uma caixa cheia de maquiagens. Eu fiquei de olhos fechados
enquanto sentia ela tão perto de mim.
“Você prefere lilás ou rosa?”
“Rosa” eu respondi.
“Fique de olhos fechados. Isso vai ficar ótimo”
Enquanto passava várias coisas em meu rosto, Júpiter disse
que era legal que eu não fosse um cara com frescura para
maquiagem. Eu me segurei para não rir. Ao invés disso perguntei se
ela já tinha feito algum curso de maquiagem, mas ela disse que
aprendeu tudo o que sabe na internet. Isso me fez lembrar de
Isadora.
Júpiter me contou que estava pensando em cursar fotografia
ou design gráfico na faculdade e estava tirando um ano sabático
para pensar na vida. Eu falei que gostaria de ser veterinário e ela
disse que combinava comigo, porque parecia que os animais
gostavam de mim.
Quando ela terminou de me maquiar, trouxe um pequeno
espelho para que eu visse meu rosto e, uau, eu estava muito bem.
Júpiter fez uma maquiagem toda rosa em mim, com glitter embaixo
dos olhos.
Nós fomos até o quarto dela e ela tirou algumas fotos do meu
rosto contra a luz do sol. Foi meio estranho porque eu senti ela me
observando sempre, mas de alguma forma eu gostei de saber que
alguém estava me olhando assim, como se captasse cada centímetro
de mim.
Ela falou para que eu me deitasse no chão e meio que ficou
em cima de mim, de pé, e pediu para que eu desse uma risada para
a câmera. Eu não consegui rir e ela disse “Toc toc” e eu perguntei
“Quem é?” e ela respondeu “Vera” e eu “Vera quem” e ela “Verá
quem é se abrir a porta” e foi tão horrível que eu dei uma
gargalhada da tentativa péssima dela de contar uma piada.
Eu me sentei ali mesmo, no chão, logo depois. Júpiter sentou
ao meu lado, mexendo na câmera. Eu ouvi um miado e logo em
seguida Raposa estava sentando no meu colo. Peguei a gata contra
meu peito e ouvi o click de Júpiter tirando fotos da gente, mas não
me importei.
“Vocês são as duas pessoas mais fotogênicas que eu já vi”
Júpiter falou.
Eu queria comentar que Raposa não é uma pessoa e que eu
não sou fotogênico, mas não disse nada porque Júpiter pediu para
que eu segurasse Raposa na altura do meu rosto. Nós dois rimos
quando a gatinha colocou uma das patas bem no meu nariz. Júpiter
deu um gritinho e falou “Essa ficou ótima”.
Júpiter ainda estava tirando fotos minhas quando uma voz
falou na porta do quarto:
“Juju, você tem visitas e não me contou”
Eu me virei e encontrei uma mulher muito parecida com
Júpiter, mas de cabelo loiro. Era a mãe dela. De repente, eu percebi
como era esquisito estar cheio de glitter na cara e segurando Raposa
no chão do quarto de Júpiter.
“Mãe, você está atrapalhando o nosso projeto”
A mãe de Júpiter olhou para nós dois e riu.
“Desculpe” ela pediu, então me encarou “Oi, querido. Você
vai ficar para o jantar? Eu vou fazer macarronada hoje. Posso
colocar mais um prato pra você”
“Hã” foi tudo o que eu consegui dizer, mas emendei: “Não,
obrigado, eu vou para casa daqui a pouco”
“Me avise se mudar de ideia. Se a Juju tivesse me contado
que você viria, eu teria feito algo especial”
E saiu do quarto.
Eu olhei para Júpiter, mas ela estava mexendo na máquina de
fotografia.
“Então” eu limpei a garganta “Juju”
Júpiter me olhou, com o rosto vermelho.
“Ah, não”
Eu ri “É fofo”
“Eu me sinto com doze anos”
“Mesmo assim, é fofo”
“Eu achei fofo no primeiro mês só”
“Por quê?”
“Porque foi logo que eu saí do armário e contei que queria ser
chamada de Júpiter. E tudo o que a minha mãe fez, depois de ficar
em choque, foi criar um apelido para mim, depois a emoção do
momento passou e eu só me sinto uma criança”
“A sua mãe parece muito legal”
“Ela é. Ela comprou meu primeiro sutiã. Constrangedor, mas
mesmo assim, foi maravilhoso”
Eu desviei o olhar, me sentindo meio… Não sei.
“Aqui” Júpiter falou.
Ela ficou perto de mim, tipo, muito perto, e me mostrou as
fotos. Eu estava… Muito bem. Eu gostei da forma como meu rosto
ficou. Parecia mais eu. Talvez seja algo estranho de dizer, mas, ei, eu
não controlo o que eu sinto.
E nem o que eu falo.
Enquanto Júpiter me mostrava as fotos, eu soltei um “Até que
eu me sinto bonita agora. Não, bonito. Bonito. Bonito. Merda.
Bonito” E eu senti o ar sumir de dentro de mim e tudo ficar distante.
“Ei” Júpiter falou. Nossos ombros estavam se encostando
“Tudo bem. Pode usar os pronomes que quiser”
“Eu sou homem. Eu sei qual pronome preciso usar”
“Você não precisa fazer nada”
“Preciso, na verdade, tirar isso da minha cara e ir para casa”
“Você está bem?”
“Sim”
Júpiter me deu alguns lencinhos para eu tirar a maquiagem
do rosto.
Quando eu cheguei em casa, vi que ela tinha me mandado
algumas das fotos por mensagem e, no final, ela disse “Espero que
isso te faça se sentir melhor”.
Eu não a respondi até agora.

A.
1 de junho, sábado

Oi.
Eu estive me sentindo muito mal nos últimos dias,
psicologicamente falando. Acho que minha cabeça está uma
bagunça.
Passei o dia todo ontem com Elias, o que foi bom. Nós dois
tivemos uma conversa e concluímos que o nosso grupo de amigos
da escola definitivamente não é mais para a gente. Samuel fez a sua
festa de aniversário na sexta e não nos chamou. A melhor parte é
que nem eu e nem Elias nos importamos muito com isso.
Eu contei para ele que, na noite passada, ouvi meus pais
fazendo sexo quando fui ao banheiro de madrugada, o que deu o
gancho para ele me contar uma história muito gráfica entre ele e
Angelina envolvendo nudez, cerveja e preservativos que iluminam no
escuro. Eca.
Eu gosto do fato de que Elias nunca riu de mim por eu ainda
ser virgem com quase dezessete anos.
Não sei porque escrevi isso. Agora estou com vergonha.
É tão esquisito escrever isso, mas aqui vai: acho que não me
sentiria muito confortável em ter qualquer contato mais íntimo com
ninguém no momento.
Falando na minha idade, meu aniversário é daqui há alguns
poucos dias. Elias disse que foi comprar meu presente semana
passada, mas que só vai me dar no dia certinho. Eu estou morrendo
de curiosidade para saber o que é, mas nem implorando muito ele
me contou.
Tudo o que ele falou foi que foi comprar em uma loja meio
chique e o segurança ficou encarando ele o tempo todo. Elias
sempre diz que se sente como se entrar em uma loja sendo negro é
como ter uma tatuagem escrito “ladrão” na testa.
Agora eu só quero que meu aniversário chegue logo para eu
descobrir o que é que ele comprou para mim.
Tenho pensado em dar um presente para mim mesma.
Provavelmente é uma ideia burra, mas tenho pensado em uma coisa
muito específica.
Quero falar com Júpiter. Sobre mim.
Não passei mais na frente da Lumus. Estive com medo de
encarar Júpiter depois do que aconteceu, mas vi ela algumas vezes
da janela da minha casa.
Pareço um stalker dizendo isso.
Ela me mandou uma mensagem, hoje cedo. Era uma foto de
Raposa, com a legenda “Ela está sentindo falta de você”.
Eu ainda não respondi, porque parte de mim sente muito
medo de me aproximar de Júpiter. Outra parte de mim sente que
estar perto dela é a coisa mais certa do mundo. É como se ela
realmente fosse um planeta e estivesse me puxando para perto dela
com a sua gravidade. E eu não estou reclamando disso.

A.
3 de junho, segunda

Eu estou feliz pra caralho.


Passei o dia todo trocando mensagens com Júpiter ontem.
Até mesmo durante o almoço. Meu pai brigou comigo por estar
comendo com o celular na mão, então eu tive que comer rápido
para correr para meu quarto e pegar o celular.
Eu sinto que estou flutuando.
O filme favorito de Júpiter é qualquer um que fale sobre
viagens no espaço, menos 2001 Uma odisséia no espaço porque ela
não entendeu nada. A cor favorita dela é lilás, menos pra roupa,
porque ela prefere preto. A mãe dela foi a primeira pessoa a saber
que ela é uma garota trans. O pai dela morreu quando ela tinha
onze anos. A parte favorita do dia dela é o nascer do sol. O signo
dela é aquário, mas eu não sei muito o que isso significa. Ela pediu a
data, o horário e o local de onde eu nasci para fazer meu mapa
astral, o que eu também não sei muito o que significa.
Eu fui dormir de madrugada. É estranho conversar pelo
celular com alguém que mora literalmente ao lado da sua casa, mas,
ei, é pra isso que serve a tecnologia.
A melhor parte é que, em toda a nossa conversa, eu me
chamei com pronomes femininos e Júpiter se referiu à mim com
pronomes femininos.
A gente não não falou sobre isso. Só foi algo que aconteceu.
Eu comecei a me chamar dessa forma e Júpiter só imitou, sem fazer
perguntas.
Ela me mandou bom dia hoje cedinho e disse que não podia
falar comigo nessa manhã porque estaria ajudando a mãe dela na
Lumus. Não fez muita diferença, já que eu estive na escola a manhã
inteira, mas Júpiter disse para eu passar na Lumus quando estivesse
voltando para casa, para que a gente pudesse fazer o caminho até
nossas casas juntas.
Eu entrei na Lumus pela primeira vez. A mãe de Júpiter
chamou ela de Juju umas cinco vezes e me deu um bombom de
doce de leite porque, de acordo com ela, eu estou muito magra.
Depois disso ela ainda disse que “Está com medo de a Juju
ficar magra demais agora que parou de comer carne”, o que fez
Júpiter me empurrar para fora dali enquanto eu me segurava para
não rir.
Nós andamos um pouco até que eu perguntei:
“Como foi quando você contou para sua mãe?”
“Contei o quê?”
“Ah… Você sabe”
“Foi meio difícil. Principalmente no começo. Ela achou que era
só uma fase, mas já está aceitando o fato de que eu não como
carne”
Eu fiquei meio sem graça e olhei para o outro lado.
Júpiter riu.
“Foi tudo bem. Sinceramente, está sendo mais difícil ela
aceitar que eu sou vegetariana do que aceitar que eu sou uma
garota”
Isso me deixou um pouco surpresa, o que obviamente Júpiter
notou, porque ela disse:
“A maioria das pessoas está acostumada com a narrativa de
pessoa trans que é expulsa de casa por ser trans ou que os pais não
aceitam de jeito nenhum. Por isso ficam surpresos quando
descobrem que a minha mãe, uma mulher de quarenta e cinco anos,
é muito mais compreensível do que um jovem de quinze com acesso
a internet e à informação. Mas, honestamente? A minha mãe só
quer que eu tome cuidado com a terapia hormonal. Só isso”
Eu estou pensando nisso desde que me despedi de Júpiter
mais cedo. Não consigo tirar da cabeça. Acho que eu sempre estive
esperando mais rejeição do que aceitação, mas, conversando com
Júpiter e com a sua mãe, eu me sinto mais esperançosa e um pouco
melhor.

A.
6 de junho, quinta.

Eu precisei ajudar Isadora a estudar para suas provas mais


uma vez. Ela não consegue se concentrar sozinha. Meu pai ficou
dizendo coisas como “siga o exemplo de seu irmão” e eu me
contorci toda porque está cada dia mais difícil ouvir as pessoas me
chamando por pronomes masculinos. Mas não digo nada em
nenhuma das vezes.
Mas eu também não quero que Dora pense que eu sou
melhor que ela só porque sou boa aluna, então não gosto do meu
pai dizendo essas coisas.
Nós duas estudamos juntas por horas, só paramos quando
minha mãe disse que a tia Elisa estava no telefone querendo dar um
oi para Dora e me desejar feliz aniversário adiantado.
Eu fiquei uns dez minutos conversando com ela. Eu gosto da
tia Elisa, ela fala bastante e é a filha menos preferida dos meus
avós.
Ela disse que iria me levar ao zoológico da próxima vez que a
gente se ver, e eu fiquei feliz mesmo que eu não goste realmente de
ir ao zoológico, mas era o meu passatempo favorito aos seis anos,
então acho que a tia pensa que continua sendo a minha coisa
favorita do mundo.
Mesmo assim, estou feliz.

A.
7 de junho, sexta

Hoje Júpiter me deu um bom dia por mensagem seguido de


outra mensagem dizendo “eu não sei o que te dar de aniversário e o
Raví não está tendo boas ideias. O que é estranho porque ele
sempre tem boas ideias”.
Eu fiquei confusa até lembrar que eu tinha falado meu
aniversário para ela quando ela pediu informações minhas para fazer
meu mapa astral.
Falei que não precisava me dar nada de presente, mas, meia
hora depois, ela me mandou outra mensagem “eu vou pensar em
algo, me aguarde”.
Na escola, Elias disse que tinha iria dar o meu presente de
aniversário hoje à noite e que eu deveria ir na casa dele porque seus
pais não estariam lá.
Foi uma coisa meio esquisita de se dizer, mas eu aceitei.
Deveria ter desconfiado ali.
Eu cheguei na casa de Elias e estava tudo escuro. Ele estava
me esperando na varanda e disse que eu estava um pouco
adiantada porque tinha dito para eu ir ali às sete e ainda eram sete
e meia, o que eu não entendi direito. Elias ficou tentando criar
assunto comigo por quase dez minutos, até que seu celular vibrou
no bolso e ele finalmente me levou para dentro de sua casa.
Nós passamos pela cozinha e, assim que entramos na
cozinha, eu fui surpreendida por três pessoas cantando “Parabéns
pra você”.
Eu demorei um pouco para reconhecer Angelina, Raví e
Júpiter.
Tinha um bolo com glacê rosa e umas velinhas também rosa.
Eles me fizeram apagar as velinhas e Raví disse para eu fazer um
pedido.
Elias tirou de debaixo da mesa um pacote com embrulho azul
escuro e me entregou. Era um disco de vinil do Cazuza, tipo, um
disco de vinil de verdade. Eu sempre quis ter um e Cazuza é meu
cantor favorito.
Angelina me deu uma camiseta do Homem-Aranha porque
Elias disse para ela que é o meu super-herói favorito (o que não é
bem verdade, porque eu prefiro o Hulk, mas os filmes dele são
muito ruins, mas gostei mesmo assim)
Raví me deu uma garrafa de vodka e um desenho feito por
ele em que eu e o Freddy Kruger estamos lutando um contra o
outro.
Júpiter disse que ela tinha feito o bolo (o que explica o glacê
rosa, eu contei para ela que rosa é a minha cor favorita em uma de
nossas conversas) mas ela também me deu uma edição de um dos
livros do Stephen King e falou que eu iria amar.
Nós cinco comemos bolo e depois Angelina preparou uma
bebida com vodka e morangos para a gente, mas ela não bebeu
nada (por conta dos remédios que toma) e Elias disse que a gente
precisava beber aquilo até às dez, porque era quando seus pais
chegavam em casa.
Raví tentou convencer todo mundo a puxar a minha orelha
dezessete vezes, o que acabou comigo correndo dele.
(No fim Raví realmente puxou a minha orelha dezessete
vezes).
Em algum momento, enquanto nós todos estávamos na sala,
eu falei que queria mais bolo e Júpiter disse que queria também,
então ela e eu fomos até a cozinha porque no fim todo mundo
queria mais bolo.
Enquanto ela cortava cinco pedaços de bolo e eu segurava os
pratos para levar até a sala, eu reparei um pouco muito nela.
Júpiter estava linda, como sempre. Estava vestindo uma
regata, jaqueta, short curto e coturno preto. Combina muito com
ela, isso tudo.
Eu estava feliz. Nunca recebi uma festa de aniversário
surpresa e estar ao lado dela era bom demais.
“O que foi?”
A voz de Júpiter me tirou do meu transe. Só então eu percebi
que a estava encarando.
Da sala, Raví estava rindo de algo que Angelina tinha dito e
Elias estava mudando a música do pequeno radinho dele várias e
várias vezes.
Mesmo assim, eu falei baixinho, para que ninguém ouvisse:
“Eu acho que sou mulher”
Júpiter não pareceu surpresa, mas largou a faca que estava
cortando bolo e sussurrou, tão baixo quanto eu tinha dito:
“Você acha? Você pode ser não-binária”
“Não, não, eu tenho certeza. Desculpa. Eu tenho certeza
disso. Ah.”
Ela tocou no meu ombro.
“Você está bem com isso?”
“Eu não sei. Estou com medo”
“É normal sentir isso. Eu sempre tive muito medo do que as
pessoas iriam achar. Com o tempo melhora, eu prometo”
Da sala, Elias gritou:
“Vocês estão fazendo outro bolo aí?”
Eu fiquei com vergonha, então fui rápido de volta até lá.
Fiquei meio distante de Júpiter. Me senti exposta demais.
Enquanto Elias e Raví competiam para ver quem contava a
pior piada e eu fingia beber aquela bebida com vodka, senti Júpiter
olhando para mim, mas fingi que não notei.
Meia hora antes das dez Elias fez todo mundo lavar a louça e
ajudar a arrumar a bagunça. Os pais dele iriam chegar logo e ele
queria apresentar Angelina para eles.
Ainda tinha um pouco de bolo, mas eu precisei deixar lá
porque eu não conseguiria explicar um bolo rosa para meus pais.
Raví andou por duas quadras comigo e com Júpiter, que
foram basicamente duas quadras em que Raví reclamava de um de
seus professores da faculdade e dizia que tirou nota máxima naquele
trabalho em que eu participei. Depois disso, ele seguiu um caminho
contrário até sua casa, então era só Júpiter e eu.
Ficou um clima meio estranho entre a gente.
Por um tempo ninguém disse nada. Era só nós, as estrelas e
a pouca movimentação das ruas.
Eu fiquei olhando para ela de canto de olho. Vi o colar com
pingente de caveira em seu pescoço, vi como ela não usava
maquiagem nenhuma, como a pintinha no canto de sua boca e até
mesmo a espinha no lado de seu rosto são perfeitas.
“Você não depila a perna” eu observei em voz alta, o que
meio que entregou que eu estava reparando muito nela.
“Não” Júpiter concordou, como se eu estivesse falando uma
coisa óbvia, o que realmente era.
“Por quê?”
“Eu não preciso depilar a perna pra ser mulher”
“Ah”
“Mas tudo bem se você quiser depilar. Nós somos diferentes,
sabe? A beleza do mundo é essa. As pessoas são diferentes umas
das outras”
Eu não soube como reagir àquilo. Sinceramente, não sei até
agora. É uma ótima coisa para se pensar. Acho que Júpiter está
certa.
“Você quer parar um pouco aqui?” ela perguntou. Eu percebi
que nós estávamos à uma quadra da esquina da nossa casa. “Pra
conversar”
Eu não entendi muito o que isso significava, mas me sentei
debaixo de um poste de luz ao seu lado mesmo assim. Não havia
ninguém na rua, mas eu me senti perto de uma multidão quando ela
disse:
“Eu estava pensando que você é trans desde que se chamou
por pronomes femininos lá na minha casa e se arrependeu depois”
“Eu poderia ser só um gay que usa pronomes femininos às
vezes. Os gays fazem isso, né?”
“Mas nenhum gay se desculpa tanto depois”
“Ah”
“Além disso, você disse para mim que gosta de meninas,
lembra? Na festa do Raví. E me pareceu bem sincera”
“Eu fui”
“Então… Você é uma mulher lésbica”
“Sim” eu falei, e depois percebi o que isso significa “Meu
Deus. Isso é… Uau. Eu sou uma mulher lésbica. Isso faz muito mais
sentido do que qualquer outra coisa na minha vida. Puta merda, eu
estou assustada pra caralho”
Júpiter deu uma daquelas risadas gostosas que só ela sabe
dar.
“Eu fiquei assim quando percebi que sou pansexual. A
sensação de descoberta é ótima, mas dá um medo. Vai ficar tudo
bem, um dia”
“E se esse dia nunca chegar?”
Júpiter respirou fundo, então fez algo que me surpreendeu:
segurou a minha mão.
“Vai chegar” ela garantiu.
E eu acreditei nela, naquele momento.
Eu desviei o olhar, porque estava envergonhada de ficar tão
perto dela, mas continuei segurando a sua mão. A sensação da sua
pele contra a minha é a melhor coisa que eu já vivenciei.
Olhei para o céu. Dava para ver algumas estrelas, mas não
muitas.
Senti que eu comecei a suar contra a mão de Júpiter, mas
não larguei. Ela também não largou, o que me deixou feliz.
Eu achei que ela estivesse olhando para as estrelas também
— ela é apaixonada por qualquer coisa que envolva o universo —
mas, quando me virei, ela estava olhando para mim como se eu
fosse o universo.
“Eu posso te beijar?”
Honestamente, ela ter feito a pergunta ao invés de partir
direto para a ação só me fez gostar ainda mais dela. Eu concordei
com a cabeça porque acho que não conseguiria falar naquele
momento.
Eu só tinha beijado duas garotas até então.
Alina, aos onze anos, em uma brincadeira de verdade ou
consequência, em que eu enfiei a minha língua nela de um jeito
desastroso enquanto os garotos gritavam e as meninas davam
risadinha.
Sabrina, na festa de aniversário de quinze anos de alguma
das minhas colega. Nós nos beijamos porque ela estava ali e eu
senti que precisava estar beijando uma garota para que não
fizessem piadas sobre mim.
Eu não quis beijar nenhuma das duas. Não de verdade. Quero
dizer, foi bom e tudo mais, mas eu não estava muito confortável em
estar ali.
Com Júpiter foi totalmente diferente. Eu nunca quis tanto
estar em um lugar. Eu nunca quis que meus lábios estivessem em
outro lugar se não nos lábios dela.
Ela colocou seus dedos na minha nuca enquanto me beijava.
Eu senti a ponta dos dedos dela e a sua unha curtinha contra a
minha pele, e era tudo tão bom e sensível e tão carinhoso. Eu me
senti tão especial ali.
Ela se afastou um pouco de mim e me deu um selinho. Suas
mãos se afastaram de mim também. Isso me deixou tão triste que
eu a puxei de volta para mim.
Eu nunca achei que ficaria beijando Júpiter sentada numa
calçada qualquer no meio da noite, mas ali estava eu.
Nós duas voltamos para casa de mãos dadas, em silêncio. Ela
se despediu de mim com um beijo rápido. Eu queria que tudo
tivesse durado mais.
Eu estou sentindo tanta falta dela e não faz nem uma hora
que nós estávamos juntas.

A.
9 de junho, domingo

Hoje é meu aniversário.


Minha mãe fez minha lasanha favorita no almoço e meu pai
me deu um celular novo de presente porque o meu antigo já estava
todo quebrado. Isadora foi quem me acordou, batendo duas panelas
bem do lado do meu rosto, igual eu fiz no aniversário dela. Acho que
ela esperou um ano só para me dar o troco.
Não fiz nada de muito especial o dia todo. Tia Elisa apareceu
aqui em casa à tarde com uma caixa de chocolates enorme de
presente para mim. Dora roubou alguns dos chocolates. Ela e eu
assistimos Procurando o nemo juntas enquanto nossos pais e tia
Elisa conversavam na cozinha. Depois a minha mãe foi mostrar para
Elisa algumas de suas flores no quintal de casa e o meu pai se
sentou com Dora e eu no sofá.
Agora eu estou pensando o que meu pai diria se soubesse o
que aconteceu entre eu e Júpiter. Ou, pior, se soubesse que eu não
sou homem.
É algo que eu penso constantemente.
Não falo com Júpiter desde sexta à noite. Nós apenas
trocamos algumas poucas mensagens, mas nada de muito
importante.
Estou com muita vontade de contar para Elias que Júpiter me
beijou, mas não sei como fazer isso. E tenho medo de como ele vai
reagir.

A.
13 de junho, quinta

Elias e eu agora somos conhecidos como “o surtado e o


viadinho” da escola.
Tipo, exatamente com essas palavras.
Henrique contou que Samuel e Pietro estavam chamando nós
dois assim na sua festa de aniversário.
Então acho que Elias e eu estamos oficialmente passando
todos os intervalos entre as aulas sozinhos, o que é até melhor.
Eu não quero a companhia das outras pessoas daquele lugar
e Elias também parece não querer
Hoje, no intervalo, eu aproveitei que estávamos sozinhos e
contei que tinha beijado Júpiter. A reação dele foi primeiro ficar
surpreso e então dizer:
“Eu consigo ouvir a Angelina dizendo Eu sabia daqui”
Eu fiquei muito vermelha. Era assim tão óbvio?
“Como foi?” ele perguntou “Beijar alguém que… Você sabe”
“Foi… Bom”
Foi o melhor beijo da minha vida toda, na verdade, mas eu
estava envergonhada demais para dizer aquilo.
Ao menos Elias não me julgou e não disse nada de ruim.

A.
15 de junho, sábado

Eu dormi com maquiagem essa noite. Ainda bem que tranquei


a porta antes de cair no sono, se não minha mãe teria me pegado
no flagra.
Queria ter alguma sombra para passar. Tenho visto alguns
tutoriais de maquiagem no youtube. Quero tentar fazer todos, mas
não tenho como.
Falei muito pouco com Júpiter nesses últimos dias, apenas
por mensagem. Estou evitando a Lumus. Tenho pensado se meu
beijo não foi muito bom, por isso ela está meio longe de mim.
Preciso ir correndo para o banheiro agora e tirar totalmente a
maquiagem. Tentei limpar tudo com uma blusa velha, mas não saiu
totalmente.

A.
17 de junho, segunda

Esqueça tudo o que eu disse sobre Júpiter.


Hoje à tarde ela me mandou uma mensagem dizendo apenas
“Tá livre? Quer vir aqui?”.
E eu aproveitei que não tinha ninguém em casa para eu dar
explicações e aceitei.
Quando Júpiter abriu a porta para mim, eu percebi que ela
estava usando o mesmo casaco de quando nos beijamos (talvez eu
esteja reparando muito nessas coisas). Acho que meu rosto ficou um
pouco vermelho assim que a vi.
Eu só percebi que não tinha planos nenhum para fazer ali
quando ela pediu se eu queria assistir Interestelar com ela.
Como está meio frio, ela trouxe uma cobertor azul para nós
duas. Eu jamais me imaginei assistindo um filme com Júpiter à meia
luz, quanto mais estando embaixo de uma coberta com ela.
Eu percebi que Júpiter não fala mais meu nome. Digo, o
nome que deram a mim, o nome que não me define realmente. Eu
fico feliz com isso. Ainda não sei como quero ser chamada, mas sei
que não quero continuar com esse nome que me deram.
Os nossos joelhos estavam se encostando embaixo da
coberta, e em nenhum momento eu quis me afastar.
No meio do filme eu me surpreendi com Júpiter tocando as
pontinhas do meu cabelo ao mesmo tempo que dizia:
“Eu amo tanto o tom da sua cor de cabelo”
Sem saber o que dizer, eu só falei:
“Eu estou deixando crescer. Quero ter um cabelo grande”
“Tipo o meu?”
“Não, maior”
“Sabia que sou eu mesma quem corto meu cabelo?”
“Eu desconfiei. Fica muito bom em você”
O filme meio que foi esquecido.
Ela me deu dicas de como fazer o cabelo crescer mais rápido.
Eu contei como sempre quis ter cabelo grande, desde criança. Ela
falou como estava querendo cortar mais curto, na nuca.
Nós duas fomos nos aproximando cada vez mais. Era bom.
Júpiter riu quando eu contei do meu hábito de associar a pele
das pessoas com comida. Eu disse que a pele da minha irmã é
chocolate, a pele do Raví é leite com uma pitada de achocolatado e
canela, a pele do Elias é caramelo e a pele da Angelina é parecida
com a vitamina de banana que minha mãe costumava fazer para
mim quando eu era criança. Então eu contei que a pele dela é
algodão-doce. Ela achou engraçado e perguntou o porquê.
"Porque parece ser macia e doce" não sei porquê falei isso.
Mas fico feliz que tenha falado. Júpiter segurou a minha mão e me
fez tocar na pele dela.
"Meu hidratante é caro" ela disse "Se minha pele não for
macia, eu vou ficar triste"
"É muito macia" eu falei, me sentindo meio boba. Tocar nela
me deu uma sensação estranha. Eu era um pouco mais eu ali,
conversando coisas bobas com Júpiter.
Eu queria tanto beijar ela de novo, desde que cheguei ali, que
quase gritei de alegria quando ela finalmente me beijou.
Lentamente, com muito carinho, assim como tinha feito naquela
noite.
Acho que estou apaixonada na forma como Júpiter me toca.
Eu me sinto um cristal precioso.
Mesmo assim, me sinto muito insegura. Júpiter claramente
tem muito mais experiência nessa área do que eu. Tenho medo de
estar fazendo algo de errado.
Foi por isso que, no meio do beijo, eu me afastei, com
vergonha.
“O que foi?” ela perguntou “Você está bem?”
Talvez, se fosse outra pessoa, eu não teria coragem de ser
honesta, mas era Júpiter ali, e a forma como ela fala não me passa
qualquer coisa além de confiança.
“Eu acho que estou fazendo algo de errado” falei “Você é a
primeira pessoa que eu beijo de verdade estando sóbria”
“Bem, não parece. Você não está fazendo nada de errado.
Está muito bom, na verdade. Muito bom mesmo”
Isso me fez ficar mais vermelha ainda.
“Desculpa” ela falou. “Eu não quero dizer ou fazer nada que
te deixe desconfortável”
“Não é isso… É que… Hã”
“O quê?”
“Eu não sei. Só é meio surreal tudo isso. Eu sempre olhei para
você e agora… Você está aqui”
“E olhou mesmo, hein? Eu sempre percebi como você me
olhava. Achei que ia tomar coragem para chegar em mim, mas isso
nunca aconteceu. Quem teve que tomar a iniciativa foi eu”
“Ai, meu Deus”
Eu escondi meu rosto com as mãos, tendo certeza de que
estava parecendo um tomate de tão vermelha.
Júpiter deu uma leve risada e se aproximou de mim
novamente.
“Ei” ela sussurrou “Está tudo bem, não se envergonhe. Eu
gosto de ser olhada. E eu gosto de olhar pra você também, então
acho que a gente não é muito diferente uma da outra. Eu poderia
passar horas olhando para você sem me cansar”
Eu tirei as mãos da frente do meu rosto lentamente.
Júpiter estava olhando para mim.
“Eu não queria parecer uma stalker olhando pra você” eu
disse.
“Eu acho meio fofo, na verdade”
Eu ri.
“Você é uma fofura” ela disse.
Eu queria tomar a iniciativa para beijá-la, mas não consegui.
Procurei pela mão dela embaixo na coberta e entrelacei seus dedos
nos meus.
Acabei apoiando minha cabeça na curva de seus pescoço. Nós
ficamos ali até que o filme acabasse. Eu não queria que ele acabasse
nunca.

A.
18 de junho, terça

Eu contei para Elias que Júpiter e eu nos beijamos de novo.


Não dei muitos detalhes, mas contei.
Ele disse que iria fazer um encontro duplo com Júpiter e eu e
ele e Angelina, o que eu acho a coisa mais brega do mundo, mas
meio que quero que aconteça.
Agora estou me perguntando o que é que eu e Júpiter somos.
Apenas amigas? Nós nos beijamos às vezes apenas? Amigas
coloridas? Mas amigos coloridos fazem mais do que apenas beijar,
não é? (Sério, o máximo que ela fez foi me dar um beijo no pescoço
e foi mais romântico do que realmente sexual. Eu estou com medo
de ela tentar algo mais além. Não me sinto bem com isso ainda).

A.
20 de junho, quinta

Hoje o dia foi muito bom. Não tive aula porque é feriado,
então passei quase o dia todo pesquisando vídeos sobre faculdade
de veterinária. Acho que é realmente o que eu quero fazer. Ainda
tenho o próximo ano inteiro e o resto desse para decidir o que
realmente quero, mas sinto que é isso mesmo. Gosto de animais e
sou muito bom na área de biológicas.
Eu vi Júpiter ontem, voltando para a escola, mas foi apenas
pelo vidro da Lumus. Ela estava concentrada no computador lá
dentro e eu fiquei com vergonha de entrar, então não nos falamos,
mas a gente tem trocado algumas mensagens no celular.
Ontem a noite eu fui dormir imaginando como seria ela me
pedindo em namoro.

A.
21 de junho, sexta

Eu estou com medo.


Aconteceu a pior coisa que poderia acontecer.
Foi tudo tão confuso.
Estava só Dora e eu em casa. Eu queria ver A hora do
pesadelo de novo na TV porque ele é o meu filme conforto. É o que
eu assisto para me sentir bem. Bobo, eu sei.
Dora queria ver algum filme cult de três horas. Eu sei disso
porque usei de argumento para eu usar a TV primeiro “Eu assisto
primeiro porque é mais rápido e depois você assiste o seu”.
Mas ela não concordou. Nós começamos a discutir. Não é algo
que a gente faça com frequência porque, no geral, a nossa relação é
muito boa. Mas aí tudo foi ficando ruim.
Eu estava no meio da sala, tentando convencer ela a me
entregar o controle da TV e ela estava tentando me bater com ele.
“Me dá isso” eu gritei.
“Não” ela gritou.
“Eu vou pegar de você de qualquer jeito” eu gritei “Você
querendo ou não”
“Não é novidade você pegar as minhas coisas” ela gritou.
E aí eu gelei.
“O quê?” eu não estava mais gritando.
Ela se afastou de mim.
“Eu sei que você está roubando as minhas maquiagens” ela
gritou “O meu batom azul favorito. Você achou que eu não ia
reparar? Porque eu reparei, seu imbecil”.
Ela estava gritando.
“Eu não sei do que você está falando” eu disse, o que
basicamente entregou que eu sabia do que ela estava falando.
“Você pegou o meu batom favorito! E eu sei que foi pra você
usar ele enquanto ninguém vê”
“O que está acontecendo aqui?”
Isso foi o meu pai.
Entrando na cozinha, encarando nós.
“Que tipo de coisa vocês dois estão discutindo?”
E a minha mãe apareceu logo atrás dele, quieta.
Eles tinham acabado de chegar em casa. Eu não sei o quanto
eles ouviram, mas acho que foi o suficiente.
Eu ainda lembro muito bem de Isadora apontando para mim
e dizendo “Ele está roubando as minhas maquiagens”.
Lembro da sensação de sentir todo o ar dentro de mim ir
embora. Eu só fiquei ali, enquanto os três me encaravam.
Minha mãe cruzou os braços.
“Isadora” ela disse, devagar “Vá para seu quarto”
“Por que eu?” minha irmã perguntou.
“Agora. Pro seu quarto”
Minha irmã foi. É meio difícil não obedecer a nossa mãe.
“Ela está mentindo” eu falei, assim que nós dois ficamos
sozinhos.
Minha mãe não estava exatamente olhando para mim, mas
meu pai me encarava.
Acho que eu nunca senti tanto medo.
“Eu sei que Dora não está mentindo” minha mãe falou “Quem
você acha que guarda as suas meias no lugar? Não foi muito difícil
de descobrir”
Meu pai se virou para ela.
“Você sabia disso?”
Minha mãe não respondeu.
Ela olhou para mim.
Eu me senti uma criancinha perdida.
Meu pai se virou para mim. Ele soltou uns três palavrões em
espanhol e então disse:
“O que é que você está fazendo com as maquiagens da
Isadora? Está se prostituindo para outros homens? O que é que você
anda fazendo?”
Eu não consegui dizer nada. Comecei a chorar. Eu só queria
sumir.
“Você precisa virar homem” meu pai falou “Que merda está
acontecendo com você? Assuma as suas bolas”
Com a minha visão borrada pelas lágrimas, eu vi a minha mãe
impedir meu pai de chegar mais perto de mim. Eu só consegui
compreender meu pai gritando e minha mãe o empurrando para
longe dali. Eu corri para meu quarto e me sentei no chão, atrás da
cama. Fiquei com medo do meu pai me bater. Eu nunca achei que
sentiria isso. É horrível. Fico me perguntando, agora, se meu pai se
arrepende de ter me adotado.
Fiquei vários minutos ouvindo meus pais discutirem, mas não
dava pra entender tudo claramente.
Quando eles pararam de falar, eu ouvi o som do carro saindo
da garagem e, logo em seguida, Isadora entrou no meu quarto.
Ela ficou lá, me encarando enquanto segurava uma mochila
grande em uma das mãos.
Eu nunca me senti tão merda, ali no chão, com os olhos
vermelhos e a minha irmãzinha me olhando com pena.
“A mãe disse para eu te ajudar a arrumar as suas coisas. Ela
vai te levar na tia daqui a pouco”
Tia só podia significar a tia Elisa.
Eu não me movi.
Isadora andou até o meu guarda-roupas e começou a colocar
umas coisas dentro da mochila.
Eu fiquei olhando para ela.
Olhei enquanto ela colocava algumas camisetas, calças,
meias, cuecas, blusas de moletom, olhei até quando ela tirou no
bolso da própria calça algumas maquiagens e colocou na mochila.
Nós não dissemos mais nada uma para a outra. Nem mesmo
quando a nossa mãe entrou no meu quarto e me segurou pelo
braço, me levando até o carro.
Eu acho que foi tudo como assistir uma cena de um filme.
“Está tudo bem” minha mãe disse “Seu pai só precisa de um
tempo. Eu tenho certeza que ele não vai se importar com você ser
gay. Está tudo bem”
Eu não tinha certeza que estava tudo bem porque ela estava
segurando o volante com força.
“Eu não sou gay” não sei de onde tirei coragem de dizer isso
“Eu não sou nem homem”
Fiquei com medo de minha mãe não ter entendido, porque
ela não disse nada e minha voz estava toda embaralhada por culpa
do choro.
“Eu sou trans” eu falei.
“Vai ficar tudo bem” foi a resposta dela.
Minha tia Elisa me recebeu com um abraço. Ela disse para eu
me ajeitar no quarto de visitas.
Eu entrei lá e fiquei sentado na cama enquanto ouvia as duas
conversando baixinho. Minha mãe entrou no quarto minutos depois.
“Você vai ficar aqui por uns dias, tá bem?”
Eu não respondi.
“Está tudo bem. A sua tia vai cuidar de você por algum
tempo. É melhor assim”
Eu comecei a chorar de novo depois que ela saiu. Peguei o
travesseiro de cima da cama e escondi a minha cara ali.
Eu não deveria ter sentido tudo isso só pela minha família
descobrir quem eu sou. Eu não deveria me sentir tão lixo por não
seguir as expectativas que tinham colocado em cima de mim.
Não consegui parar de chorar por muito tempo. Nem mesmo
quando tia Elisa apareceu e deu tapinhas no meu ombro. Ela disse
para eu chorar tudo o que eu queria chorar, mas acho que nem
chorando por dois meses seguidos eu conseguiria isso.
Ela pediu pizza e refrigerante de limão, porque sabe que é
meu favorito, mas eu não consegui comer nada.
“Me desculpa por te atrapalhar” eu falei, enquanto ela me
entregava um cobertor para eu dormir.
“Nunca mais diga isso. Nunca mais. Você nunca vai me
atrapalhar”
Ela desligou a luz quando saiu do quarto, mas eu me senti tão
sozinha e perdida que liguei a luz só para tentar fazer o sentimento
sumir.
Meu celular estava sem bateria, eu tentei procurar o meu
carregador na mochila mas acabei encontrando o meu caderno ao
invés disso.
Agora estou me perguntando o quanto Isadora sabe.
Eu estou com medo. Acho que meus pais nunca vão querer
me ver de novo. Especialmente meu pai.
A.
22 de junho, sábado

Eu pedi o carregador emprestado para Elisa. Tinha algumas


mensagens de Júpiter. A mãe dela ouviu meu pai gritando. Contei
toda a história para ela.
Júpiter pediu pelo endereço daqui, mas eu acho que não
quero ver ninguém, então pedi para que não viesse hoje.
Tia Elisa quis me levar no zoológico, mas não tenho animação
nenhuma para sair dessa cama.
Passei o dia todo deitada vendo vídeos no celular. Minha tia
fez macarrão ao molho branco de almoço e, mesmo estando muito
boa, não consegui comer muito.
Mamãe ligou hoje, um pouco depois do meio dia.
“Como você está?” ela perguntei.
“O pai me odeia?”
“Ele jamais de odiaria”
“Eu acho que ele me odeia”
“Ele não te odeia, meu filho. Ele só… Ele não é muito aberto à
essas coisas”
“Então ele me odeia”
“Dê um tempo para ele, apenas isso”
“Ele sempre disse para eu ser homem”
“É apenas o jeito dele”
“Eu não sou homem”
“... “
“Mãe?”
“Desculpa. Querido, você tem certeza disso? Você pode
apenas estar confuso. Eu falei com seu pai hoje e ele acha que é
melhor você ficar um tempo longe daquele nosso vizinho, sabe? Ele
provavelmente está te influenciando”
“Vizinho? Mãe, ela se chama Júpiter”
“O seu pai te viu saindo da casa dele no outro dia. Ele falou
comigo. Nós estamos apenas preocupados com você”
“Não tem ninguém me influenciando”
“Você é muito novo para entender isso”
“Mãe… “
“Um dia você vai… “
“Mãe! Eu me aproximei de Júpiter justamente por ser igual à
ela, não o contrário. Eu seria assim mesmo se nunca tivesse
conhecido ela”
“... “
“Mãe?”
“... “
“... Mãe?”
“Eu preciso ir agora, querido. Amanhã eu te ligo de novo,
tudo bem? Se cuida”
Ela desligou antes de eu conseguir responder.
Tia Elisa fez chá de hortelã para mim antes de eu dormir. É
meu favorito.

A.
25 de junho, terça

É quase duas da manhã. Não consigo dormir.


Passei os últimos dois dias apenas existindo. Minha mãe não
ligou mais. Tenho pensado se ainda é possível devolver alguém de
dezessete anos para a adoção.
Tia Elisa tem tentado me fazer feliz com algumas coisas. Nós
assistimos à um filme de terror trash no domingo à noite. Ela disse
que iria me levar na escola na segunda, mas não quis ir e ela
entendeu.
Elias me mandou mensagem perguntando porquê não fui na
aula ontem, mas não respondi. Estou evitando Júpiter também.
As únicas mensagens que respondi foram de Isadora. Ela me
pediu desculpas pelo que aconteceu e disse que nossos pais não
estão se falando. Eu me sinto culpada por isso, mas não consigo
pensar em nada que possa fazer para melhorar a situação toda.
Não quero mais ir para à escola. Minhas férias do meio do
ano vão começar semana que vem. Espero que tia Elisa me deixe
faltar até lá. Não quero precisar pensar em qualquer coisa pelos
próximos dias.

A.
26 de junho, quarta

Júpiter contou para Elias o que aconteceu.


Eu sei disso porque Elias me encheu de mensagens
perguntando como eu estava e dizendo que iria vir me ver, mas eu
falei para ele me deixar sozinho. Não sei exatamente quanto ela
contou para ele. Estou com medo.
Fiquei sozinha hoje o dia todo, mais uma vez. Tia Elisa precisa
trabalhar. Ela vem apenas para o almoço e fica o tempo todo
tentando conversar comigo. Na maior parte do tempo eu apenas a
escuto, mas é bom mesmo assim.
Minha mãe ligou hoje para meu celular no fim da tarde. Nós
tivemos uma conversa de quase meia hora. Foi tudo meio estranho e
desajeitado.
Eu falei que tenho plena certeza de que não sou homem. Me
sinto muito bem falando essas palavras. Eu sou mulher.
Ela disse que é muito difícil para ela entender isso tudo. Estou
tentando ser compreensível, mas a situação toda não é muito boa.
Minha mãe parece achar que eu estou apenas passando por
uma fase da adolescência. Ela está completamente errada.

A.
27 de junho, quinta

Elias veio aqui depois da aula. Eu não estava esperando ele.


Ainda estava vestindo meu pijama quando tia Elisa trouxe ele para o
quarto onde estou dormindo.
Está frio, então Elias se sentou do meu lado (deixando a
parede do quarto no seu lado esquerdo) e eu dei um dos meus
cobertores para ele. Ele começou falando que o Caio, nosso
professor de biologia, está sentindo minha falta. Aparentemente eu
sou a aluna favorita dele.
Eu acabei contando tudo para Elias. Tudo mesmo. Desde o
fato de que eu sempre gostei de Júpiter até tudo o que meu pai
disse para mim e como a minha mãe está me tratando.
Comecei a chorar do meio da conversa, o que me pareceu um
pouco humilhante. Ele ficou muito silencioso quando falei que sou
trans. Fiquei com medo, então olhei para ele. Elias estava dando
pequenas batidinhas no joelho com a ponta do dedo indicador. Eu
comecei a contar e percebi que ele estava batendo oito vezes,
depois parava, depois voltava a bater oito vezes. Até que disse:
“Eu meio que já sabia. Ou desconfiava, pelo menos. Todas as
vezes em que você se chamou por pronomes femininos deram um
bom indicativo”
“Eu fiz isso?”
“Sim, mas só quando estamos sozinhos. Foi algumas vezes
só. No começo eu achei que era brincadeira, mas então eu percebi
que você faz isso muito inconscientemente e só quando está muito à
vontade”
“Eu não sabia. Você nunca me falou isso”
“Eu fiquei esperando você tomar a iniciativa no assunto, mas
nunca aconteceu”
“Eu não sabia como falar. E eu tinha medo da sua reação”
“No começo eu pensei que você não confiava em mim como
eu confio em você”
“Não é isso”
“É porque eu confio muito em você, sabe? E eu quero que
você confie em mim também”
“Eu confio. Eu só não sabia como falar sobre isso. Mas com
tudo o que aconteceu e com as conversas que eu tive sobre Júpiter,
acho que tomei coragem para falar sobre isso”
“Tudo bem. Eu entendo. Então, você quer que eu te chame
de ela agora?”
“Eu acho que sim”
“Acha?”
“Eu tenho certeza. É que… “ eu me encolhi “Não sei. Isso
tudo é esquisito? Eu não quero que as coisas fiquem esquisitas”
“Não tem nada de esquisito. O que você prefere? Importa
mais o que você prefere. Ela ou ele?”
“Ela”
“E o seu nome?”
“O que tem ele?”
“Você vai ter um novo? Júpiter fez isso”
“Eu acho que preciso pensar melhor nisso”
“Eu vou te ajudar. Angelina e eu tivemos conversando sobre
como seria o nome dos nossos filhos e eu tive ideias maravilhosas.
Sua tia disse que tem pizza na geladeira. Quando é que você vai me
chamar pra comer? Eu estou morrendo de fome. Vim direto da
escola pra cá”
Eu coloquei a pizza no microondas e Elias colocou refrigerante
em dois copos com algumas pedrinhas de gelo, mesmo estando
muito frio. Nós dois comemos juntos sentados no chão da sala.
Ele disse que senta a minha falta na escola e tem passado
todos os intervalos sozinhos. Algumas pessoas perguntaram sobre
mim e ele respondeu que eu estava doente.
Elias me chamou no feminino o tempo todo. Às vezes ele
errava, mas sempre corrigia. Nas três horas em que ele ficou aqui,
eu sorri mais do que sorri na última semana inteira.
Ele acabou de ir embora agora. Só então percebi como me
sinto sozinha ultimamente. Ainda é no meio da tarde. Espero que tia
Elisa chegue logo. Será que ela ainda está aberta a me levar no
zoológico? Seria bom sair um pouco.
A.
27 de junho, quinta

Acho que nunca escrevi duas vezes no mesmo dia. Mas,


caralho, eu preciso escrever isso antes de ir dormir. Estou quentinha
no meu pijama novamente, deitada na cama.
Um pouco depois de Elias ir embora, a campainha tocou. Eu
pensei em não atender, mas acabei indo até a porta.
Júpiter estava lá.
“Desculpe por aparecer assim do nada. Eu vou embora se
você quiser, mas eu só preciso saber muito, muito mesmo como
você está”
Então eu fiz algo que queria fazer há muito tempo: abracei
ela. Eu senti tanta, tanta falta dela.
Nós nos sentamos no sofá da sala e, assim como foi na casa
dela, ficamos juntas embaixo de um cobertor quentinho. Ela tirou o
cachecol que usava e o deixou na mesinha de centro, então me
puxou para um abraço apertado e eu meio que deitei em cima dela
com seus dedos fazendo carinho no topo da minha cabeça. É tudo
mais surreal ainda quando eu escrevo isso.
Acabei pegando no sono nessa posição. Não tenho dormido
muito bem nos últimos dias.
Acordei com a minha tia forçando uma tosse. Então eu
percebi que eu e Júpiter estávamos dormindo abraçadas no meio da
sua sala.
“Bom dia” ela disse, mesmo que já fosse seis da tarde.
Acho que eu nunca tinha visto Júpiter ficar sem graça. Eu
fiquei muito vermelha.
Tia Elisa não disse mais nada, mas fez chá para mim e para
Júpiter porque está realmente muito frio. Ela também fez muitas
perguntas para Júpiter (onde estudava, o que fazia, como era seus
pais). Acho que Júpiter ficou muito envergonhada, porque foi
embora logo depois.
Nós não conversamos muito, mas a companhia dela me fez
muito bem. Agora que ela foi, estou arrependida por não ter tido a
oportunidade de a beijar mais uma vez.
Ah, e uma coisa esquisita: Júpiter disse que a minha mãe foi
falar com ela ontem. Eu não consigo visualizar a minha mãe e
Júpiter conversando, mas Júpiter me disse que ela apareceu em sua
casa no meio da tarde e fez várias perguntas do tipo “Você acha
mesmo que é mulher?” (Júpiter rebateu a pergunta com a mesma
pergunta), “Qual a sua relação com o meu filho?” (Ela respondeu
que somos só amigas, o que me deixou um pouco chateada) e
“Tomar hormônios para parecer mais feminina não te faz mal?”
(Júpiter precisou dar uma aula sobre isso para ela e ainda disse que
não era só porque eu me descobri trans que eu vou querer tomar
hormônios, mas eu meio que quero muito).
Júpiter acabou esquecendo o cachecol dela aqui. Eu estou
usando ele agora. Tem o cheirinho dela. É todo preto, bem do
jeitinho dela.
Estou pensando na minha mãe. Há dias não falo com ela,
mas ela se deu ao trabalho de ir conversar com Júpiter. Por quê?

A.
28 de junho, sexta

Elias está dormindo do meu lado agora. Ele veio me visitar de


novo e acabou ficando até tarde, então vai dormir aqui. Estou grata
por isso porque não fui na escola a semana inteira e estou me
sentindo muito sozinha aqui. Nós dois trouxemos colchões para a
sala. Ele disse que iria dormir comigo ao seu lado direito. Eu
perguntei se ele tinha certeza, mas ele não respondeu. Nós ficamos
deitados assistindo à um musical genérico, mas aí em dez minutos
ele não parou de se virar de um lado para o outro e pediu para
trocar de lugar comigo. Meia hora depois ele pediu para trocar de
lugar de novo. Está ali até agora. Acho que isso é bom, não sei.
Estou escrevendo com a luz da TV para não acordar Elias.
Nós passamos grande parte do tempo tentando decidir algum nome
para mim. É meio estranho dizer isso. Eu nunca pensei que ia
acontecer.
Elias escreveu à mão uma lista com trinta e dois nomes, mas
eu só gostei de verdade de dois.
Clarisse (ideia de Elias) e Aurora (ideia minha).
Na verdade, tenho pensado há muito tempo em Aurora. É
bonito. Acho que vou perguntar para Júpiter o que ela acha.

A.
29 de junho, sábado

A primeira coisa que fiz hoje foi conversar por mensagem com
Júpiter. Ela disse que Aurora combina muito comigo. Eu espero que
ela esteja certa porque, bem, já me decidi.
Meu nome é Aurora.
E eu sou uma mulher.
É tão bom escrever isso. Eu me sinto tão eu, finalmente.
Parece que estou criando um escudo ao redor de mim contra tudo
de ruim que está acontecendo no mundo.
Falei com tia Elisa mais cedo. Ela disse que Aurora é um nome
muito bonito. Eu perguntei se ela estava tudo bem com isso e ela
disse que estava mais que bem. Então ela me contou que é lésbica.
E eu quase dei um grito dizendo que eu sou também.
Descobri que a família toda ignora a sexualidade dela, então
ela simplesmente não fala nada com a família.
Nós duas passamos a noite toda conversando e tomando chá
de hortelã. Eu contei um pouco sobre Júpiter para ela.
Nós meio que tivemos A Conversa e ela disse para eu nunca
aceitar fazer sexo sem preservativo. Foi totalmente esquisito porque
eu nunca me imaginei tendo essa conversa justamente com tia Elisa.
Contei para Elias sobre meu nome e ele ficou feliz por mim.
Eu estou feliz por mim mesma. Finalmente tenho um nome que me
representa.

Aurora
2 de julho, terça

Eu dei uma sumida nesse final de semana. Mas é por um


motivo.
Eu voltei para a casa dos meus pais ontem. Está tudo meio
estranho aqui, mas eu tive uma conversa com meu pai ainda na
casa da tia Elisa.
Fiquei com medo de ele gritar comigo de novo, mas não
aconteceu.
Ele se desculpou. Se sentou do meu lado na cama e a minha
mãe ficou na porta do quarto, nos olhando.
“Eu não deveria ter dito aquelas coisas” ele estava falando
devagar, meio perdido nas palavras “Eu estive me sentindo culpado
pensando que talvez errei em algo na sua criação. Mas eu não me
importo. Você pode ser o que quiser, contanto que seja uma boa
pessoa”
Depois disso mamãe me ajudou a arrumar as minhas coisas
enquanto papai conversava com a tia Elisa.
Enquanto dobrava uma de minhas camisetas, ela me disse
que eu iria começar a ver um psicólogo logo porque alguém como
eu deve ter apoio psicológico profissional. Ela não disse que está
tentando mudar algo em mim ou coisa parecida, acho que ela
apenas quer que eu fique bem.
Meus pais continuam a me chamar por pronomes masculinos,
apenas minha mãe parece se atropelar nas palavras às vezes. Nós
ainda não tivemos essa conversa. Acho que é cedo demais e talvez
eu devesse dar um tempo para eles.
Isadora está me tratando melhor. Ela tem me chamado por
Aurora, mas apenas quando nossos pais não estão por perto. Ela
disse que eu posso pegar suas maquiagens quando quiser (isso foi
algo que eu não esperava ouvir).
Eu voltei para a escola ontem. Ainda tem uma semana até as
férias de julho. Está sendo muito ruim porque é um inferno ter todo
mundo me chamando de uma forma errada, mas eu estou
conseguindo lidar com tudo.
Passei a tarde toda hoje com Júpiter. Nós fomos juntas fazer
algumas compras e ela me ajudou a escolher umas roupas. A
vendedora ficou olhando estranho para mim quando me viu
entrando no provador com todas aquelas roupas da sessão feminina,
mas não disse nada. Eu chorei me olhando no espelho do provador.
É tudo tão assustador. Mas Júpiter disse que eu estava linda e isso
me fez sorrir. Ela me deu um beijo na bochecha quando nos
despedimos.
Elias está dizendo que eu deveria pedir ela em namoro, mas
não sei. Me parece uma ideia meio ruim e não consigo exatamente
pensar sobre isso porque estou mais ocupada pensando em como
meu pai está mais distante de mim. Ele mal fala comigo.

Aurora
19 de julho, sexta

Acho que eu nunca fiquei tanto tempo sem escrever aqui.


Eu tenho tido dias muito bons.
Estou mais próxima da minha mãe. Muito mais.
Ela me viu chorando em meu quarto um dia desses, assim
que cheguei da escola. Acabei desabafando tudo com ela e dizendo
como não aguento todos me chamando por ele. Eu me sinto
horrível. É como se me obrigassem a fingir ser alguém que não sou.
Mas eu também não tenho coragem de pedir para que me chamem
da maneira certa. Sei que isso não vai dar bons resultados.
Minha mãe fez um chá de camomila nesse dia para mim e,
pela primeira vez, ela me chamou de “minha filha”. Desde então ela
tem me chamado no feminino muitas vezes.
Mesmo assim, ela ainda torce a boca de um jeito estranho
toda vez que digo que estou saindo para ver Júpiter.
Nós temos nos visto muitas vezes mais (e nos beijando
também) e aquele encontro duplo que Elias queria fazer na verdade
virou um encontro quádruplo. Elias e Angelina, Raví e um garoto
chamado Bernardo que ele aparentemente está namorando, Júpiter
e eu e uma garota que Raví conhece da faculdade chamada
Samantha que levou seu namorado.
Samantha é uma mulher trans. Ficar no mesmo lugar que ela
e Júpiter me passou uma sensação pura de liberdade. Ela tem um
cabelo loiro todo cheio de cachinhos que vai até a cintura. É lindo.
Eu quero que o meu cabelo cresça logo. Eu não estou mais
aguentando ter um cabelo tão curto.
Todas essa pessoas me chamaram de Aurora a noite inteira.
Raví disse que era uma ótima escolha de nome.
A gente estava na casa do Raví e, em algum momento,
Júpiter saiu para fora com o namorado da Samantha para fumar. Eu
fiquei sentado no sofá bebendo cerveja. Estava usando uma das
jaquetas de Júpiter. Fica um pouco grande em mim, mas tenho
usado algumas das roupas dela porque não gosto das minhas
roupas compradas na sessão masculina. Fico muito desconfortável.
Samantha se sentou ao meu lado e disse:
“Eu odeio quando ele fuma” e apontou para seu namorado, lá
do lado de fora “Mas ele insiste nesse negócio. É horrível beijar uma
boca com gosto de cigarro”
Mais tarde, quando estávamos voltando para casa, eu fiz
questão de beijar Júpiter (tenho tomado a iniciativa às vezes agora)
e descobri que é realmente ruim.
Ah! Eu e Júpiter estamos namorando. Não teve realmente um
pedido. Ela apenas me chamou de “minha namorada” no meio de
uma frase aleatória e eu fiquei totalmente confusa.
“A gente está namorando?”
“Por mim a gente está namorando desde que a Raposa pediu
carinho para você. Se a minha gata gosta de você, quem sou eu
para discordar?”
Então ela disse que podia fazer um pedido oficial e até
comprar alianças pra gente se eu quisesse, mas eu disse que não
precisa. Eu gosto de estar namorando Júpiter, gosto de como tudo
foi surgindo naturalmente.
Mas agora a mãe dela quer me conhecer oficialmente, o que
está me deixando muito nervosa.

Aurora
9 de agosto, sexta

Isso é, provavelmente, a última coisa que vou escrever aqui.


Tenho passado muito tempo com a minha mãe. Ela comprou
algumas roupas novas para mim e disse que eu tenho um ótimo
gosto para vestidos.
Meu pai ainda anda distante de mim, mas agora Isadora está
me chamando de Aurora até na frente dele e ele não faz cara feia e
nem nada, então acho que estamos progredindo.
Eu ainda finjo ser um homem na escola, mas tem sido menos
pior agora que está tudo melhorando aqui em casa.
A mãe de Júpiter gosta muito de mim. Ela diz isso o tempo
todo e não se importa quando eu e Júpiter ficamos sozinhas no
quarto dela por tanto tempo.
Júpiter pintou as minhas unhas de preto ontem. Eu queria
outra cor, mas ela só tem esmalte preto. E as suas unhas são todas
roídas, então ela nem usa esmalte mais.
Pensei em tirar antes de ir para casa, mas não tirei. Meu pai
torceu o rosto quando viu, mas não disse nada.
A minha mãe apenas disse “preto?” e eu meio que não soube
como reagir, mas depois ela voltou para meu quarto com um
esmalte rosa e disse que ficaria melhor em mim do que preto.
Isso me fez lembrar daquela conversa que eu tive com Júpiter
quando ela disse que um dia tudo ficaria bem. Eu não acho que esse
dia já chegou, mas consigo sentir ele se aproximando.
Eu finalmente tenho esperanças.

Aurora
Agradecimentos

Esse livro só foi possível graças a várias pessoas. Muito


obrigado a todos que me ajudaram de diferentes formas possíveis.
Um obrigado especial para quem me ajudou a abortar TOC da
maneira mais respeitosa.
Eu fiz o meu melhor. Espero que o meu melhor seja o
suficiente.
Se você chegou até aqui sem me conhecer, saiba que pode
me encontrar no Twitter. Meu user é @arielfhitz. Se quiser fazer uma
crítica, um comentário, pode me chamar por lá. Eu vou amar saber a
sua opinião sobre a minha obra.

um abraço do
Ariel

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