PIVA.A linguagem

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A tecnologia número 1: a linguagem humana

“A tecnologia nos constitui, é inseparável de nós, de nossa


cognição. Sendo assim, a tecnologia condiciona o nosso modo
de conhecer e, portanto, a nossa educação. Quando conseguiu
pôr-se de pé, o novo ser humano (agora bípede) deu ao seu
cérebro as condições de crescer, trazendo, como consequência,
o incremento também de sua inteligência. Foi a partir daí que
conseguiu desenvolver a sua primeira grande tecnologia: a
fala, a linguagem. O aparecimento da linguagem no homem
condicionou toda a história de seu formidável progresso em
relação às demais espécies animais. Eis porque, para bem
entender o alcance das mudanças civilizatórias, é preciso
abordar, antes, a questão histórica fundamental do
processamento da informação e da comunicação, por ser este
o centro gerador de toda a mutação”,
Lucia Santaella

A linguagem foi a tecnologia que impulsionou o homo sapiens em seu grandioso


processo evolutivo. E é a partir dessa importante visão que mostrarei a vocês como
a evolução da linguagem ao longo da história da humanidade trouxe grandes
impactos em nossa civilização. E, claro, como isso se relaciona com o Direito.

A ideia de trazer esse cenário é sair da discussão mainstream Revolução Agrária vs.
Industrial vs. Digital para compreender o que estamos vivendo a partir da evolução
da nossa linguagem, que é a nossa tecnologia número 1.

Quero mostrar que precisamos analisar os processos que já se repetiram ao longo


da nossa evolução de alguma forma. Para isso, vamos dar uma passada rápida pelas
seis etapas — civilização oral, civilização escrita, civilização impressa, cultura de
massa, cultura de mídias e cultura digital (cibercultura).

Essas fases, que não são estanques, foram acontecendo de forma gradual e
trouxeram impactos cumulativos. Cada momento novo se integra ao anterior,
trazendo ajustes e algumas características desses momentos desaparecem, mas
perceber cada momento histórico-cultural com a sua respectiva técnica de
comunicação trará uma análise rica das recorrências e nos ajudará a compreender
como estamos vivenciando isso na era digital.

A evolução da comunicação humana


A comunicação é um marco histórico que revolucionou a humanidade, mas pouco
olhamos para isso. Aqui, iremos analisar o quanto cada era comunicacional moldou
nossa forma de pensar e agir enquanto humanos.

A linguagem dos símbolos e sinais


- há 90 mil anos

Esse tipo de linguagem começou a ser usado muito antes dos nossos ancestrais
primitivos andarem eretos: a comunicação era realizada por meio de ruídos e
movimentos corpóreos que constituíam símbolos e sinais mutuamente entendidos.

Os hominídeos não falavam e se utilizavam de gestos, sons e alguns outros sinais


padronizados, os quais eram passados às novas gerações para que se pudesse viver
socialmente. O ritmo da troca de informações era lento e impreciso gerando um
lapso de tempo, em milhões de anos, de uma evolução cultural vagarosa.

Civilização Oral
- há cerca de 35 e 40 mil anos
A fala possibilitou ao homem dar um salto no desenvolvimento humano, pois, por
meio dela, foi possível transmitir mensagens complexas, contestar e contar histórias.
Neste momento, o homem começou a incluir a arte em seu repertório a partir de
pinturas rupestres e suas primeiras tentativas de armazenar informações e também
fez uso dos benefícios do acúmulo de conhecimentos para se fixar em aldeias.

Civilização Escrita
- por volta de 4.000 aC

Cada sociedade criou uma forma particular de escrita, mas foram os sumérios que
transformaram os sons em símbolos, pioneiros no uso de caracteres para
representar sílabas, dando o primeiro passo para a escrita fonética. Mais tarde,
fizeram uso de papiro, pedra e placas de argila para gravar mensagens, que eram
carregadas por estafetas que percorriam quilômetros de distância para levar a
informação ao seu destino.

Escrita pictográfica: desenhos que representam ideias;


Escrita fonética: símbolos que representam sons.

Por volta de 1200 a.C., os fenícios, grandes mercadores do mar, desenvolveram um


alfabeto que foi muito utilizado por diversos povos da época e que teve papel
essencial na popularização da escrita. De lá para cá, a escrita passou por um lento e
longo processo de simplificação, mas foi só graças à evolução dessa tecnologia da
linguagem que grandes movimentos da ciência, das artes, da administração e da
religião foram possíveis.

Civilização Impressa
- a partir do séc. XV

Até o século XV, as pessoas reproduziam livros na Europa preparando manuscritos,


reproduções dos livros existentes feitas à mão. O trabalho era imenso e, por isso, o
número de livros era restrito, acessíveis somente a quem possuía muitos recursos
Tudo mudou em 1462, quando Johannes Gutenberg inventou um sistema com tipos
móveis que permitia a reprodução mecânica da escrita e a reprodução sistemática
de milhares de cópias de determinado livro. Considerada uma das invenções mais
poderosas da humanidade, a imprensa de Gutenberg também permitiu que o
processo de alfabetização avançasse e fez com que o conhecimento fosse divulgado
em todos os níveis da sociedade.

A primeira publicação impressa foi a Bíblia de Gutenberg. Com a passagem dos


manuscritos para impresso, o leitor teve acesso a teorias e conhecimentos que antes
eram restritos aos mestres, trazendo um aspecto mais individual para as leituras e
interpretações.

💡 Medo do novo
Gutenberg escolheu a Bíblia como primeiro projeto, pois temia que as
pessoas julgassem suas reproduções como imitações baratas dos tão
bem elaborados livros manuscritos.

Cultura de Massa
- a partir do séc. XIX

O amplo acesso aos jornais pelas pessoas comuns e o surgimento de novas


tecnologias como o telégrafo e o telefone no século XIX deram espaço para uma
nova cultura, que fincou suas raízes no começo do século seguinte, com a invenção
do cinema, do rádio e da televisão, as chamadas mídias de massa.

Com a capacidade de difundir informações simultaneamente para um grande


número de pessoas, os meios de comunicação de massa tiveram grande influência
em diversos cenários, com impactos na política, educação, economia e no convívio
social.

Essas mudanças nos padrões das relações cotidianas de convivência e na


perspectiva psicológica dos indivíduos já eram reconhecidas por cientistas no final do
século XIX. Para o sociólogo norte-americano Charles Horton, esses veículos eram
mais eficazes do que os processos de comunicação de qualquer sociedade anterior
em termos de expressividade, permanência de registro, presteza e difusão.

Cultura digital
- atualmente

Estamos vivendo a era digital, um tempo marcado pela mudança radical dos
paradigmas e a redefinição de muitos conceitos tidos por nós como absolutos. Há
informação para todos os lados, com propagação em rapidez e agilidade nunca
vistas; o cidadão comum consegue expressar suas opiniões e colher feedbacks com
facilidade, enquanto interesses e objetivos comuns são compartilhados em todas as
esferas, do campo afetivo ao político.

Esse novo momento vem recheado de novos desafios para a sociedade e,


consequentemente, para o Direito, uma vez que novos fenômenos surgem em
enorme volume, variedade e velocidade.

O encurtamento do tempo, causado pela velocidade da era digital, traz um momento


bastante paradoxal para as Ciências Jurídicas: temos a rigidez e dogmatismo, que
mantém as estruturas sólidas, em contraponto com a rapidez de novas tecnologias
digitais e dos seus importantes efeitos, especialmente sobre institutos seculares que
fazem parte da compreensão dos fenômenos jurídicos.

Os efeitos desses artefatos — aqui com foco nas tecnologias digitais que, sobretudo,
não são neutras — deverão ser observados pelos Cientistas do Direito, os quais
precisarão investigar os fenômenos de forma projetada e a longo prazo, ainda que
este exercício seja desafiador. Juntamente com isso, esses fenômenos terão de ser
contextualizados, mas sem isolá-los do fluxo e dos atores envolvidos em sua
produção.

A bússola que nos orienta para a primeira mudança de lentes, necessária para fazer
a travessia rumo aos futuros do Direito, seria, portanto, iniciada pela compreensão
de que a cada mudança das mídias de comunicação (aqui compreendidas como
meios) são interruptores de grandes mudanças na civilização.

Ao mesmo tempo em que causaram rupturas na sociedade, essas mudanças


trouxeram consigo grandes transformações. Isso nos ajuda a entender os motivos
pelos quais a internet tem impactado tão profundamente nosso modo de viver,
conhecer, se relacionar e resolver problemas.

A partir da ideia de vida interconectada, que se coloca em todas as nossas relações


de direitos e deveres, o papel das tecnologias digitais e de informação já não é mais
apenas ferramental: são forças ambientais que afetam cada vez mais quem somos,
como socializamos, como percebemos a realidade e como interagimos com o
contexto.
Para pensar além
A Reforma Protestante, inspirada pelas ideias do monge católico Martinho Lutero, foi
uma consequência do amplo acesso às leituras que, antes da imprensa, eram
exclusivas a grupos seletivos. O filme Lutero, disponível no YouTube, faz um retrato
do poder de transformação que esse novo momento da linguagem causa.

Movida pela conexão de saberes e pela inquietude,


Silvia Piva é advogada, professora, pesquisadora e
fundadora da Nau d’Dês.

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