Magda Soares
Magda Soares
Magda Soares
Letramento: caminhos e
descaminhos*
Um olhar histórico sobre a alfabetização escolar no Brasil revela uma trajetória de suces-
sivas mudanças conceituais e, consequentemente, metodológicas. Atualmente, parece que de
novo estamos enfrentando um desses momentos de mudança – é o que prenuncia o questio-
namento a que vêm sendo submetidos os quadros conceituais e as práticas deles decorrentes
que prevaleceram na área da alfabetização nas últimas três décadas: pesquisas que têm identi-
ficado problemas nos processos e resultados da alfabetização de crianças no contexto escolar,
insatisfações e inseguranças entre alfabetizadores, perplexidade do poder público e da popu-
lação diante da persistência do fracasso da escola em alfabetizar, evidenciada por avaliações
nacionais e estaduais, vêm provocando críticas e motivando propostas de reexame das teorias
e práticas atuais de alfabetização. Um momento como este é, sem dúvida, desafiador, porque
estimula a revisão dos caminhos já trilhados e a busca de novos caminhos, mas é também
ameaçador, porque pode conduzir a uma rejeição simplista dos caminhos trilhados e a propos-
tas de solução que representem desvios para indesejáveis descaminhos. Este artigo pretende
discutir esses caminhos e descaminhos, de que se falará mais explicitamente no tópico final; a
esse tópico final se chegará por dois outros que o fundamentam e justificam: um primeiro que
busca esclarecer e relacionar os conceitos de alfabetização e letramento, e um segundo que
pretende encontrar, nas relações entre esses dois processos, explicações para os caminhos e
descaminhos que vimos percorrendo, nas últimas décadas, na área da alfabetização.
96
visibilidade e importância à medida que a vida social e as atividades profissionais tornaram-
-se cada vez mais centradas na e dependentes da língua escrita, revelando a insuficiência de
apenas alfabetizar – no sentido tradicional – a criança ou o adulto. Em um primeiro momento,
essa visibilidade traduziu-se ou em uma adjetivação da palavra alfabetização – alfabetiza-
ção funcional tornou-se expressão bastante difundida – ou em tentativas de ampliação do
significado de alfabetização/alfabetizar por meio de afirmações como “alfabetização não é
98
da língua escrita, o ensino sistemático das relações entre a fala e a escrita, de que se ocupa a
alfabetização, tal como anteriormente definida. Como consequência de o construtivismo ter
evidenciado processos espontâneos de compreensão da escrita pela criança, ter condenado
os métodos que enfatizavam o ensino direto e explícito do sistema de escrita e, sendo funda-
mentalmente uma teoria psicológica, e não pedagógica, não ter proposto uma metodologia de
ensino, os professores foram levados a supor que, apesar de sua natureza convencional e com
Caminhos e descaminhos
A aprendizagem da língua escrita tem sido objeto de pesquisa e estudo de várias ciên-
cias nas últimas décadas, cada uma delas privilegiando uma das facetas dessa aprendizagem.
Para citar as mais salientes: a faceta fônica, que envolve o desenvolvimento da consciência
fonológica, imprescindível para que a criança tome consciência da fala como um sistema de
sons e compreenda o sistema de escrita como um sistema de representação desses sons, e a
aprendizagem das relações fonema-grafema e demais convenções de transferência da forma
sonora da fala para a forma gráfica da escrita; a faceta da leitura fluente, que exige o reco-
nhecimento holístico de palavras e sentenças; a faceta da leitura compreensiva, que supõe
ampliação de vocabulário e desenvolvimento de habilidades como interpretação, avaliação,
inferência, entre outras; a faceta da identificação e do uso adequado das diferentes funções
da escrita, dos diferentes portadores de texto, dos diferentes tipos e gêneros de texto, etc.
Cada uma dessas facetas é fundamentada por teorias de aprendizagem, princípios fonéticos
e fonológicos, princípios linguísticos, psicolinguísticos e sociolinguísticos, teorias da leitura,
teorias da produção textual, teorias do texto e do discurso, entre outras. Consequentemente,
cada uma dessas facetas exige metodologia de ensino específica, de acordo com sua natureza,
algumas dessas metodologias caracterizadas por ensino direto e explícito, como é o caso da
faceta para a qual se volta a alfabetização, outras caracterizadas por ensino muitas vezes inci-
dental e indireto, porque dependente das possibilidades e motivações das crianças, bem como
99
das circunstâncias e do contexto em que se realize a aprendizagem, como é caso das facetas
que se caracterizam como de letramento.
A tendência, porém, tem sido privilegiar na aprendizagem inicial da língua escrita apenas
uma de suas várias facetas e, por conseguinte, apenas uma metodologia: assim fazem os méto-
dos hoje considerados como “tradicionais”, que, como já foi dito, voltam-se predominantemen-
te para a faceta fônica, isto é, para o ensino e a aprendizagem do sistema de escrita; por outro
100