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Morto-vivo: breve glossário crítico - Luiz Renato Montone Pera

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Morto-vivo: breve glossário crítico - Luiz Renato Montone Pera

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ARTIGOS

Morto-vivo: breve glossário crítico

Luiz Renato Montone Pera


Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Resumo
Abjeto, body horror, close-up, ferida, gore, horror, necropolítica, terrir e zumbi são entradas deste glossário crítico
imaginado a partir da figura do morto-vivo. Presente na cultura popular e midiática, este personagem, com suas
ambiguidades, possibilita relacionar horror, artes visuais e cinema, contra o pano de fundo sociopolítico daquilo
que a filósofa mexicana Sayak Valencia chama de “capitalismo gore”. Busca-se, aqui, pensar a relação entre a
virtualidade da imagem – no presente neoliberal, caracterizada por superfícies lisas e luminosas próprias ao regime
obsceno da circulação e da visibilidade totais – e a fisicalidade irredutível do corpo – traduzida, no gênero do horror
e nos mortos vivos, por representações escatológicas da carne putrefata, da violência e da morte, sintomas
sintetizados, em parte, pela noção de necropolítica. O texto se vale de uma forma fragmentária, ensaística e por
associações por vezes díspares, de modo a incorporar a própria lógica dos objetos analisados.

Palavras-chave: morto-vivo; horror; necropolítica; cinema; arte contemporânea.

Abjeto (subjetividade morto-vivo)

[...] sem maquiagem ou máscaras, dejetos e cadáveres exibem o que permanen-


temente reprimo para poder viver […] ali, estou na borda da minha condição de orga-
nismo vivo […] até que, de perda em perda, nada permanece e meu corpo cai para
além da borda […] é a morte infectando a vida (Kristeva, 1982, p. 3).1

À guisa de introdução, neste ensaio pretendo abordar a figura do morto-vivo e o gênero


do horror, em interseções entre artes visuais e cinema. Para justificar a sua relevância
conceitual, devemos, primeiro, situar o problema precisamente no cruzamento entre as
possibilidades de figuração das imagens recentes – realizadas com tecnologias avançadas, em
alta definição –, a violência da necropolítica cotidiana contemporânea e o quadro da espoliação
total do neoliberalismo. Veremos aí satisfeitas todas as necessidades do espetáculo, em seu
registro assumidamente obsceno, gore.

1 Todas as traduções são nossas, exceto quando indicado.

ARJ – Art Research Journal: Revista de Pesquisa em Artes | v. 11, n. 2, 2024


ABRACE, ANDA, ANPAP e ANPPOM em parceria com a UFRN | ISSN 2357-9978
PERA | Morto-vivo: breve glossário crítico 2

Como se sabe, o termo necropolítico foi formulado pelo filósofo e cientista político
camaronês, Achille Mbembe (2016). Procura designar o controle da morte em massa exercido
por governos (totalitários ou não) e milícias privadas, em âmbito planetário. O conceito parte do
racismo, mas permite também pensar outros marcadores sociais como classe, gênero,
sexualidade e situação geopolítica. Coloca a questão de quais populações devem viver e quais
serão exterminadas sistematicamente. Já o espetáculo, tal como formulado por Guy Debord
(1997), é a cultura do consumo que assume uma forma totalitária ao infiltrar-se em todos os
aspectos da vida de um indivíduo, utilizando, para isto, as tecnologias de fabricação e difusão
de imagens. Quanto ao neoliberalismo, este consiste no regime da exploração máxima da força
produtiva precarizada. Conforme a síntese dramática proposta por Hardt e Negri (2001, p. 51),
“não existe nada, nenhuma ‘vida nua e crua’, nenhum panorama exterior que possa ser proposto
fora desse campo permeado pelo dinheiro; nada escapa ao dinheiro. A produção e a reprodução
são vestidas de trajes monetários”. Esboçado este panorama, nos perguntamos: que tipo de
subjetividade e quais modos de resistência são possíveis? Esta reflexão tem um caráter
radicalmente fragmentário – na forma de um glossário crítico – e opera por estudos de caso,
seja de obras artísticas ou de conceitos.
O psicanalista Christian Dunker relaciona a figura do morto-vivo a um certo tipo de
subjetividade caracterizada como “pós-traumática, cuja expressão de sofrimento seria
semelhante a lesões cerebrais, como afasias e demências” (Dunker, 2012, p. 232). É o sujeito
que precisa acertar as contas com a realidade de um mundo fraturado por guerras, genocídios,
autoritarismos e pela normalização cotidiana da violência. Recorrendo à noção de choque,
retirada, por sua vez, de Walter Benjamin, e ao “inominável da experiência” da violência, Dunker
nos diz que “seu paradigma literário são os zumbis ou mortos-vivos, seres funcionais que repetem
automaticamente uma ação, incapazes de reconstruir a história da tragédia que sobre eles se
abateu.” Assim prossegue o autor: “Parecem seres que perderam a alma e cujo sofrimento
aparece em meio a mutismos seletivos, fenômenos psicossomáticos e alexitimias (dificuldade de
perceber sentimentos e nomeá-los)” (p. 232). O conceito de “choque” de Walter Benjamin, que
interessa a Dunker, advém do ensaio Experiência e pobreza (Benjamin, 1993), no qual o autor
relaciona a experiência sofrida por combatentes da Primeira Guerra e a incapacidade desses
indivíduos de produzir relatos sobre o que viveram. Há neste texto uma denúncia da violência
generalizada, seguida pela constatação de que há “honradez” em “confessar nossa pobreza”, em
que o autor exorta, então, o enfrentamento altivo dessa exaustão provocada pelo choque: “[...]
não se deve imaginar que os homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-
se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente
sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso” (p. 118).2 Se, por um

2Significativamente, Benjamin continua: “[...] eles "devoraram" tudo, a "cultura" e os "homens", e ficaram saciados
e exaustos [...] Ao cansaço segue-se o sonho, e não é raro que o sonho compense a tristeza e o desânimo do dia,

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PERA | Morto-vivo: breve glossário crítico 3

lado, Benjamin aposta na “confissão” da pobreza a que o corpo é submetido sob o totalitarismo e
o capitalismo, por outro, o autor observa que a experiência paradigmática do choque é
internalizada no trabalho artístico. Benjamin trata, em outros textos (Benjamin, 1994), da relação
da arte com os choques e perigos da vida urbana no âmbito da modernização – desde a multidão
que reúne indivíduos privados que competem entre si no mercado, à luta de classes, aos
“conspiradores” boêmios, à observação anônima do flâneur (“qualquer pista seguida pelo flâneur
vai conduzi-lo a um crime”), ao regime escopofílico marcado pela fantasmagoria da luz artificial,
pelo ritmo acelerado e pelo movimento constante (atributos do espetáculo nascente
testemunhado pelo autor nas primeiras décadas do século 20). Como uma espécie de inoculação
e espelhamento da saturação do aparato sensorial e cognitivo, a arte incorporaria o choque em
seu nível formal.3 A figura do morto-vivo, a partir da relação sugerida por Christian Dunker e
expandida nesta reflexão, associa-se ao choque da sociedade industrial e do espetáculo
nascente, assim como é, contemporaneamente, um efeito da violência praticada por regimes
totalitários e pelo estado permanente de exceção descrito pelo conceito de necropolítica.4 Deste
modo, a figura do morto-vivo, tomada como alegoria da violência e da precarização do sujeito
contemporâneo é, portanto, um tema absolutamente atual. É, também, transdisciplinar,
encontrado em muitos estratos da cultura popular e midiática, o que respalda a postura
experimental e híbrida dos objetos analisados nesta reflexão.
Soma-se a esta subjetividade fraturada pelo choque a noção de “abjeto”, expressão cabal
da “confissão” exigida por Walter Benjamin. Na literatura sobre o cinema de horror não é incomum
encontrar o abjeto mediando a experiência do caráter polimorfo do corpo e da realidade (Creed,
1993). Tal experiência aparece na forma do monstruoso, do insólito, do indeterminado e da
violência extrema. É expressa pelo recurso a um universo pré-simbólico, caracterizado por fluidos,
substâncias, matérias informes, orgânicas ou inorgânicas, que são relativas ao corpo, mas que
não produzem identificações com as noções de personalidade, estrutura (leia-se corpo estrutu-
rado, íntegro) e binarismos. Como se sabe, um texto celebrado sobre o abjeto é Powers of Horror,

realizando a existência inteiramente simples e absolutamente grandiosa que não pode ser realizada durante o dia,
por falta de forças” (Benjamin, 1993, p. 118).
3 Nos diz Benjamin: “A técnica submeteu […] o sistema sensorial a um treinamento de natureza complexa. Chegou
o dia em que o filme correspondeu a uma nova e urgente necessidade de estímulos. No filme, a percepção sob a
forma de choque se impõe como princípio formal. Aquilo que determina o ritmo da produção na esteira rolante
[fabril] está subjacente ao ritmo da receptividade, no filme” (Benjamin, 1994, p. 125). Podemos pensar a operação
de montagem do filme como choque de elementos heterogêneos, e a associação do fluxo dos fotogramas com a
produção fabril, não somente pelo ritmo, mas também pela fragmentação operacional no interior do fluxo em
unidades autônomas, porém encadeadas, como também ocorre na linha de montagem. Mais adiante no mesmo
texto, Benjamin procurará relacionar o comportamento da multidão ao automatismo e coisificação do trabalho
industrial: “Seus transeuntes se comportam como se, adaptados à automatização, só conseguissem se expressar
de forma automática. Seu comportamento é uma reação a choques” (p. 126).
4 A narrativa benjaminiana é apenas uma parte da história. Outra parte deve tomar o sequestro, a fragmentação
do corpo e a violência total, conforme alerta Denise Ferreira da Silva, como efeitos das dinâmicas da raciali-
dade/colonialidade do poder (Ferreira da Silva, 2019). O termo necropolítica procura incluir, ainda que de modo
insuficiente, esta tensão racial.

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PERA | Morto-vivo: breve glossário crítico 4

de Julia Kristeva (1982). Logo na introdução, a autora caracteriza o abjeto como a ameaça de
uma “exterioridade ou interioridade exorbitantes”, excessivamente “próximas”, mas que não
podem ser “assimiladas”, “toleradas”, nem mesmo nomeadas, por não se tratar de “objetos
definíveis”. O abjeto opõe-se tanto ao sentido auto-evidente, quanto ao “eu” autônomo, uma vez
que habita uma zona ao mesmo tempo familiar, porém completamente estranha: “no limite da não
existência [porquanto não há reconhecimento] e da alucinação, uma realidade que, se tomo
conhecimento, me aniquila”. Kristeva sugere que o abjeto produz uma instabilidade violenta das
identificações. Segundo Hal Foster (2017, p. 148), “a ambiguidade fundamental em Kristeva é seu
deslizamento entre a operação de abjetar e a condição de ser abjeto”.5 Num primeiro momento,
sob o domínio do corpo materno, ou seja, misturado a esse corpo e aos seus fluidos, o bebê, para
separar-se dele, precisa recusá-lo. Pode ocorrer aí uma inabilidade em realizar essa separação,
fracassando na batalha pela autonomia. A própria autonomia (em termos psicanalíticos, o ego) é,
então, evacuada, “abjetada”, tornada um lugar vazio. Processo que se realiza por meio da identi-
ficação (imitação) com aquilo que é limítrofe em relação ao corpo, aquilo que é evacuado,
indiferenciado do elo com a mãe e com os seus fluidos. Esses dois momentos seriam instâncias
nas quais a posição de sujeito é perturbada. Abjetar é um recurso necessário para tornar-se um
sujeito, enquanto ser abjeto significa estar morto, indiferenciado, identificado à realidade material
do cadáver, numa lógica possível de ser aplicada tanto ao indivíduo quanto ao corpo social.
Temos, então, uma caracterização do abjeto como um território de ambivalências, como aquilo
que desestabiliza noções de identidade, sistema e ordem por um certo desvio nos limites entre o
vital e o inerte, o familiar e o estranhamento radical, a proteção e a ameaça de dissolução (Bataille,
1987).6 O paradigma do morto-vivo (o sujeito como cadáver vivente) produz, portanto, uma
contaminação, uma frustração da capacidade de separar, contrastar, diferenciar. Tal como um
objeto fóbico, não é possível sublimar ou fetichizar um estranhamento que não foi codificado pela
linguagem, pois é a manifestação sem reservas de um horror primordial.

Body horror

Assistir ao [filme de] horror é uma experiência que pode nos aproximar dos limites
da senciência, do limiar das sensações, do que significa “tornar-se carne” (Aldana
Reyes, 2012, p. 71).7

5 Em nota de rodapé da mesma página, o autor complementa: “Ser abjeto é ser incapaz de abjeção, e ser
completamente incapaz de abjeção é estar morto, o que faz do cadáver o derradeiro (não) sujeito da abjeção.”
Sobre o abjeto, também nos diz: “uma categoria do (não) ser, definida por Julia Kristeva como nem sujeito nem
objeto, e sim antes de ser o primeiro (antes da total separação da mãe) ou depois de se tornar objeto (como um
cadáver entregue ao estado de objeto)” (Foster, 2017, p. 143).
6Para Bataille, o cadáver deve ser retirado da vista para proteger os vivos de seu medo constante da perda de
seu ser descontínuo, de sua individualidade, com a fusão ao homogêneo indiferenciado que é a morte.
7
No original: “Watching horror is an experience that can bring us closer to the limits of sentience, of sensorial
liminality, of what it means to be in a state of ‘becoming meat’.”

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PERA | Morto-vivo: breve glossário crítico 5

Nos termos de Linda Williams, body horror – horror corporal – consiste no “espetáculo do
corpo capturado em situações de sensações e emoções intensas”, que produzem um “senso de
envolvimento excessivo” (overinvolvement) nessas mesmas sensações e emoções (Williams,
1991, p. 4-5).8 Assim, se por um lado, o horror trata da experiência do corpo tornado imagem –
na sua totalidade ou em partes, agigantado na tela de cinema, a engolfar o espectador –, por
outro lado, trata de um tipo de evento que exacerba as experiências de fisicalidade do corpo.
Segundo Williams, os body genres ocorrem em gêneros tidos como sensacionalistas ou
exploitation, como a pornografia, o melodrama e o horror, além do musical e da comédia. Suas
representações são “displays de emoções primais, até mesmo infantis, em narrativas
aparentemente circulares e repetitivas” (p. 3). Suas figurações mais evidentes relacionam-se com
a violência, o sexo explícito e o choro, bem como imagens de fluidos corporais, como sangue,
esperma, saliva e lágrimas, para mencionar apenas alguns. Os body genres são, muitas vezes,
tomados como “gratuitos”, como nos diz a autora, que se opõe a esta definição. Williams oscila
entre perceber, de um lado, o horror corporal como uma mímica realizada pelo espectador daquilo
que ocorre na narrativa do filme, e de outro, como uma válvula de escape, por assim dizer, às
estruturas repressivas da perversão e da castração (Laplanche; Pontalis, 2001, p. 341-344; 72-
76) – o desvio da descarga sexual dos meios genitais para meios não genitais (fetiche) e o retorno
ao evento traumático da descoberta da diferença sexual, em registro binário sob suspeição na
atualidade. Articula-se aí, tanto na mímica, quanto no fetiche e no trauma, uma relação, a um só
tempo, estreita e dissociada entre imagem e corpo, violência e prazer; entre corpos
desmembrados ou informes, feridas, choques, monstros etc., e um erotismo mórbido que se
realiza na descarga excessiva de sensações e emoções que incidem sobre o corpo.
Xavier Aldana Reyes também trabalhará a ideia de uma mímica que o espectador
realizaria dos choques e emoções sofridas por personagens dos filmes de horror. O autor
propõe o horror corporal como um “momento cinemático” (Aldana Reyes, 2016, p. 3) produzido
por contágio, de modo somático, no corpo do espectador, a partir do “contato visceral” com as
imagens, e em particular, nas cenas explícitas de violência, mutilação corporal e tortura. Aldana
Reyes (2016, p. 14) nos lembra que o termo horror deriva do latim horreo, referido ao espanto
que causa a resposta corporal do arrepio,9 estabelecendo uma relação de fisicalidade intrínseca

8 Ver, também, os ensaios presentes em Body Horror (1986), edição da revista Screen. Destacamos o ensaio de
Philip Brophy, que afirma haver um interesse, a partir dos anos 1960 e 1970, pela “destruição do corpo” e sobre o
“desconforto físico” que ela provoca no espectador (Brophy, 1986, p. 8), mais do que no sentimento de medo da
morte manipulado pelo filme de horror. Outro texto icônico publicado nesta edição é o artigo de Barbara Creed,
Horror and the monstrous-feminine: an imaginary abjection, em que a autora parte da noção de abjeto elaborada,
como vimos anteriormente, por Julia Kristeva, para relacionar o feminino como ameaça à ordem simbólica
essencialmente patriarcal. Creed, porém, denuncia o filme de horror como aquilo que termina por ‘purificar’ a
relação do espectador com o abjeto, mantendo intocadas as categorias patriarcais (Creed, 1986).
9 Linda Badley, antes, havia sugerido essa somatização na forma infinitiva do verbo em latim, horrère. Nos diz: “At
its simplest, it [the horror film] delivers a frisson that originates as a somatic response. horror comes from horrère,
which refers to the "bristling of the hair on the nape of-the neck" [...] The phenomenon has been taken to its logical
conclusion in images of the body that evoke the greatest possible physical response.” (Badley, 1995, p. 11).

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com a experiência da narrativa de horror. Nos diz o autor: “[...] afetos corporais são constituídos
como ‘movimentos passionais’ e não como objetos que necessitam decodificação”. E continua:
“a intensidade [...] é caracterizada por sua ruptura do progresso linear da vida: perturba o estado
presente do corpo [...] O afeto é intensivo e involuntário e, portanto, a resposta é sempre anterior
ao momento de decisão consciente” (p. 56-58).10
Esta somatização interessa diretamente à nossa reflexão. Primeiramente, por permitir
recodificar a experiência perceptiva em termos de uma fenomenologia do extremo, baseada na
hiperintensidade e na ameaça. Segundo, pela perda de qualquer limite ontológico entre imagem
e corpo. Linda Williams (2008), por exemplo, ajuda a pensar o fenômeno cinemático da diluição
dos limites entre imagem e corpo não no sentido de uma mímica total, mas de um jogo ativo,
dinâmico, entre percepção, autoconsciência e autoalienação.11 Aldana Reyes (2016, p. 8) irá
afirmar que “respostas somáticas [...] produzidas por efeitos de sobressaltos nos devolvem ao
nosso corpo vivo e a uma forma de autoconsciência que é corporificada e orgânica”.12 Qualquer
sentido emancipatório fenomenológico, como este que se insinua no texto do autor, deve ser
visto com desconfiança. Tal saturação da cognição não deve ser tomada por sua capacidade
de restaurar a noção de corpo integral – e, consequentemente, de subjetividade autônoma. O
excesso corrobora justamente para o desmantelamento do corpo como o conhecemos e, no
limite, para a alienação da noção de personalidade e de sujeito. Neste ponto, vale lembrar que
Aldana Reyes (2012, p. 20) propõe, ainda, uma diferenciação entre um tipo de horror
desencantado, cujo corpo é vitimado e representado como limite material da existência, e um
horror corporal ligado às múltiplas possibilidades de redefinição anatômica do corpo (polimorfo,
monstruoso, como nos filmes de David Cronenberg). Apostando neste caráter polimorfo do
corpo, Kelly Hurley nos aponta o sentido preciso do que buscamos afirmar acima, ao
recusarmos a restituição da integridade fenomenológica do corpo:

A narrativa contada pelo body horror, repetidas vezes, é sobre um sujeito humano
desmontado e demolido: um corpo humano cuja integridade é violada, uma
identidade humana cujos limites são fissurados por todos os lados [...] Aqui, estou
menos preocupada com a conhecida fragmentação pós-moderna da identidade
humana do que com a sua reconfiguração por meio da pluralização e confusão de
formas corporais (Hurley, 1995, p. 205).13

10 No original: “[...] bodily affections are legitimated as ‘movements of passion’ and not as objects in need of decoding”;
“intensity [...] is characterised by its non-linear rupture of the linear progress of life: it disturbs the present state of the body
[...] Affect is intensive and involuntary, and therefore response is always prior to the moment of conscious decision.”
11 Vale indicar que Linda Badley, assim como Williams, irá comparar o horror com a pornografia e com o melodrama
para enfatizar o momento cinemático do choque ou do obsceno, vistos como “the spectacle of effects [that]
momentarily arrested the plot” (Badley, 1995, p. 8). Insiste também no horror como “somático” e “fisiológico”, que
atinge o corpo diretamente sem o anteparo da linguagem (p. 10-11).
12No original: “or somatic responses [...] produced by the startle effect return us to our lived body and to a form of
self-awareness that is embodied and organic.”
13No original: “The narrative told by body horror again and again is of a human subject dismantled and demolished:
a human body whose integrity is violated, a human identity whose boundaries are breached from all sides [...] Here

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PERA | Morto-vivo: breve glossário crítico 7

Para Hurley, o filme de horror e, em particular, o body horror, possibilita “produzir uma
encenação espetacular da ambiguidade corporal [...] uma narrativa especulativa que
estabelece novas economias de identificação e desejo” (p. 205).14 Consiste, então, no

[...] espetáculo do corpo humano desfamiliarizado, tornado outro. Body horror busca
inspirar repulsa – e a seu modo, prazer – por meio de representações de figuras quase-
humanas cujo efeito/afeto é produzido por sua abjeção, ambiguidade; por corporeida-
des impossíveis que são entes limiares e ocupam ambos os termos da oposição
humano/não humano (ou melhor, existem na fissura entre eles) (Hurley, p. 203).15

Este corpo impensado, ambivalente, coloca-se além das definições produzidas pelas
“ideologias dominantes” e das “formações baseadas na diferença sexual e na identidade”, em
favor de uma economia corporal e do desejo que privilegia a “indeterminação”, a flutuação dos
sentidos (p. 208, 211, 213). Temos, assim, por meio do horror corporal acesso ao potencial do
horror em produzir no espectador reações reflexas, com o abjeto servindo de mediação a um
universo inominável pré-simbólico e avesso aos limites categóricos. Temos, também, a pele e o
caráter polimorfo do corpo “tornado outro”, a lembrar-nos que o corpo também é uma máquina de
produzir significações, um envelope provisório, superfície das representações por onde circulam
signos e onde se dão as distorções, instabilidades e trocas de lugar (Halberstam, 1995, p. 163).16

Close-up

Há uma certa obscenidade no recurso ao close-up. Tal como olhar através do buraco
da fechadura, pelo telescópio ou microscópio, o close-up implica um desejo de ver além do
que o olho e a distância permitem. Denota um prazer escópico, uma penetração nas
superfícies. Podemos tomar o close-up como o agigantamento de um detalhe que confere
maior realismo, veracidade, à cena. Este recurso descritivo, documental, por assim dizer,

I am concerned less with the reputed postmodern fragmentation of human identity than with its reconfiguration
through the pluralization and confusion of bodily forms.”
14No original: “to effect a spectacular visual staging of bodily ambiguation [...] a speculative narrative that sets out
new economies of identification and desire.”
15 No original: “spectacle of the human body defamiliarized, rendered other. Body horror seeks to inspire revulsion –
and in its own way, pleasure – through representations of quasi-human figures whose effect/affect is produced by their
abjection, their ambiguation, their impossible embodiments are liminal entities, occupying both terms (or rather,
existing in the slash between them) of the opposition human/non-human.” Em outra parte, Linda Badley, pesquisadora
também interessada na literatura gótica e na relação com o filme de horror, nos diz: “In my view, horror has become
a fantastic "body language" for our culture in which a person's self-concept has been increasingly constituted in images
of the body. In the ongoing crisis of identity in which the gendered, binary subject of Eurocentric bourgeois patriarchy
(in particular, the Freudian psychoanalytical model of the self) is undergoing deconstruction, horror joined with other
discourses of the body to provide a language for imagining the self in transformation, re-gendered, ungendered, and
regenerated, or even as an absence or a lack” (Badley, 1995, p. 3; ver também p. 25-31).
16 Diz Halberstam: “Skin is at once the most fragile of boundaries and the most stable of signifiers; it is the site of
entry for the vampire, the signifier of race for the nineteenth-century monster. Skin is precisely what does not fit;
Frankenstein sutures his monster's ugly flesh together by binding it in a yellow skin, too tight and too thick. When,
in the modern horror movie, terror rises to the surface, the surface itself becomes a complex web of pleasure and
danger; the surface rises to the surface, the surface becomes Leatherface, becomes Demme's Buffalo Bill, and
everything that rises must converge” (Halberstam, 1995, p. 163).

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PERA | Morto-vivo: breve glossário crítico 8

permite um acesso supostamente mais objetivo a um dado visível. O seu caráter pornográfico
relaciona-se com o autoritarismo da imagem do espetáculo (Debord, 1997), ou com a
ideologia da visibilidade total apontada por Baudrillard (Baudrillard, 1983, p. 130-131),17 ou,
ainda, com o “frenzy of the visible” conceituado por Linda Williams (1989), que procura
descrever uma excitação escopofílica, ato de ver sem reservas. Aliás, de Williams, vale
ressaltar a relação que faz entre fetiche e o “money shot” da indústria pornográfica
estadunidense dos anos 1970. Money shot é o termo que define o close-up do pênis
ejaculando, tomado como evidência visual-material da satisfação sexual (a partir de uma
perspectiva patriarcal, bem entendido). O caráter todo poderoso do close-up associado ao
pênis impõe um corte, uma imagem clichê (portanto, reificada), a alienação do membro de
seu contexto e dos corpos que produzem este contexto, inclusive o próprio corpo do qual o
pênis, agora agigantado, foi parte. As obras analisadas a seguir se relacionam com a
onipotência do close-up patriarcal, ora endossando-a, ora contrapondo-se a ela.
A figuração do cadáver ou do corpo machucado por meio do close-up, tão comuns em
filmes de mortos vivos, juntamente com as cenas de canibalismo, peles e corpos em
decomposição, vísceras aparentes, certamente ofendem a onipotência da legibilidade sem
ruídos do pênis ereto ejaculador. Mas, e quando esses elementos aparecem justapostos,
como em L.A. Zombie (2010), de Bruce LaBruce? Os close-ups da primeira cena de sexo
explícito enfatizam as expressões de prazer da personagem caracterizada como morto-vivo
e o vaivém de seu pênis ereto. As expressões faciais de prazer são simultâneas à maquiagem
aterrorizante, dentes pontiagudos agressivos e sangue escorrendo pela boca (baba-sangue).
O pênis ereto, signo da virilidade do corpo masculino, é, por sua vez, agigantado e deformado,
e penetra a cavidade de uma ferida localizada no tórax do cadáver de um homem, vítima de
um acidente de carro. A penetração restitui ao cadáver os seus batimentos cardíacos, num
coração exposto, de tamanho anormal, dotado de pêlos, localizado fora do corpo. O coração
é visto pulsar (novamente, irrigando e contraindo) junto ao vaivém do membro sexual. Nesta
sequência, há um curto-circuito na relação entre imagem, som e narrativa, pois parecem
contrariar-se mutuamente. Dois registros de imagem ocorrem ao mesmo tempo: o corpo
morto/machucado e o sexo. A incongruência da trilha sonora new age corporativo-
motivacional impõe ainda um terceiro registro que amortece tanto o choque da necrofilia
quanto a excitação sexual. O money shot, finalmente, vai ostentar uma morbidez irônica: o
membro ereto e deformado do monstro ejacula um líquido vermelho escuro assemelhado ao
sangue no rosto satisfeito do cadáver ressuscitado.

17 Baudrillard diz: ”Obscenity begins precisely when there is no more spectacle, no more scene, when all becomes
transparence and immediate visibility, when everything is exposed to the harsh and inexorable light of information
and communication [...] It is no longer […] the traditional obscenity of what is hidden, repressed, forbidden or
obscure; on the contrary, it is the obscenity of the visible […] of what no longer has any secret, of what dissolves
completely in information and communication” (Baudrillard, 1983, p. 130-131).

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Já em Boca-seca (2021), de Felipe Abdala, vemos o recurso ao close-up de um modo


bastante original, na estruturação de sua performance. Ainda que não seja um trabalho que se
situe nitidamente no gênero do horror ou que explicitamente trate de mortos vivos, alguns
elementos como a relação corpo-imagem, alienação, devoração e uma afetação física, reflexa,
do espectador interessam a esta reflexão. A ação é realizada fisicamente em um espaço todo
pintado de verde, usado como chroma-key, para ser mixada e transmitida ao vivo pelo
Youtube.18 Chroma-key é um recurso audiovisual usado para produzir uma superfície
transparente sobre a qual será sobreposta uma outra imagem fixa ou em movimento. A
ferramenta visa produzir o desaparecimento de uma ou mais superfícies. No contexto do espaço
de exposição no qual a ação de Abdala ocorre, podemos falar em uma fetichização do espaço.
Trata-se de uma camuflagem, um disfarce. No vídeo transmitido ao vivo, vemos um plano
geral/aberto que se mantém fixo durante toda a ação e que se prolonga por cerca de vinte
minutos. O corpo de Abdala não apresenta partes afetadas pelo efeito do chroma-key, isto é,
podemos afirmar que seu corpo resiste à fetichização, ao desaparecimento imposto ao espaço
ao redor. Deste modo, vemos um plano geral que enfatiza a diferença entre a escala do corpo
e o amplo espaço da sala, e um plano fechado que agiganta os detalhes da ação, uma boca
que ameaça devorar a arquitetura, a imagem e o próprio corpo de Abdala. A ação que vemos
Felipe Abdala realizar consiste em morder duas quinas das laterais dos painéis que se
apresentam ao vídeo de modo frontal, plano. Abdala apoia as mãos sobre a superfície que vai
sendo roída e suas unhas ostentam uma cor laranja saturada. Na relação entre o plano aberto
e o close-up, temos imagens que vão se comendo mutuamente. A aspereza do contato entre o
dente e o reboco da parede, a velocidade da ação, as mãos que apalpam, as unhas laranjas,
as mordidas, cusparadas, dentes, lábios, baba etc., indicam a presença escatológica de um
organismo vivo, que nos afeta de modo reflexo. Contribui, ainda, o som captado pelo microfone
de lapela, que registra os ruídos da ação e o atrito com o corpo e com a roupa. As mordidas
vão progressivamente desgastando as quinas, rasgando, na imagem, linhas verticais com
espessuras irregulares na cor branca (a cor do painel dry wall que está debaixo da cobertura da
tinta verde). Estas linhas funcionam como uma espécie de falha, glitch, na imagem transmitida;
falha de reversão impossível, pois somente pode ampliar-se. O close-up, em Boca Seca,
trabalha a capacidade de intensificação da experiência fenomenológica do corpo. Ao mesmo
tempo, parece comentar a fantasmagoria das imagens em economia correlata ao capitalismo e
seu poder devorador. Um jogo irresolvível entre fetichização (alienação) e afirmação do corpo
vivo é encenado neste trabalho, na medida em que, durante toda a performance, somos
expostos a um corpo integral que ameaça ser devorado pela imagem agigantada de seu

18
Ver links para a obra: https://www.youtube.com/watch?v=dSVMZjl7i9Q; e para a exposição: http://www.habito-
habitante.com.br/. Acesso em: 2 maio 2023.

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fragmento. Por fim, cabe indicar que em sua dissertação de mestrado ainda inédita (2023),
Felipe Abdala relaciona alguns de seus trabalhos com a “linha orgânica” da artista Lygia Clark.
De fato, observamos os cortes nas quinas da parede como resultantes de gestos vitalistas –
abocanhar, morder, mastigar e cuspir. Observamos, ainda, que os cortes produzem danos
irrecuperáveis na superfície da imagem, uma penetração que, parafraseando Suely Rolnik
(1999, n.p), ‘extrai tridimensionalidade do plano bidimensional’. Sentimos, como ondas de
sensações reflexas, a aspereza das mordidas e a irregularidade das linhas brancas e somos
pedagogicamente convocados a roer a parede juntos. Mas, no lugar do caráter otimista redentor
prometido pela vitalidade da experiência corporal – e da participação –, a vitalidade que vemos
em Boca Seca decorre da constante ameaça de seu esquartejamento. A vontade de construção
é, aqui, atualizada pela vontade de destruição.

Ferida

Num breve ensaio de David Lapoujade (2002), O corpo que não aguenta mais, o filósofo
procura caracterizar gestos “rebaixados” – entre eles, rastejar, mutilar-se, torcer-se, deixar-se
estar, tomado pelo cansaço – como gestos de internalização das forças externas que pressio-
nam o corpo. Lá onde dói, onde o corpo é mais vulnerável, doente e apresenta feridas expostas,
é que conhece a sua maior resistência. É o ponto no qual o corpo, num misto de terror e riso
irônico, apresenta-se irredutível: dali não se pode ultrapassar. É carne crua, matéria bruta que
já não pode mais ser subjugada pela disciplina e pela cura. É a vingança do corpo: seu ponto,
portanto, de maior resistência. A postura ereta é declinada pela gravidade, seja ela um fenô-
meno físico ou coerções políticas, econômicas e sociais. As partes deformadas, esquartejadas,
ainda animadas e quentes, derramando sangue, pus e excrementos, evidenciam a sua própria
materialidade irredutível. Antissujeito sem qualquer concessão à identidade/personalidade.
Fingir-se de morto não é o mesmo que estar morto.
A ferida interrompe a continuidade da superfície da pele (do mesmo modo, a imagem
“pobre” interrompe a circulação ilimitada, obscena, da imagem lisa neoliberal). Se, como
vimos, a pele é a superfície por onde circulam os signos e as ambiguações, situada, porém
em confronto com o regime da visibilidade total, a ferida é o monstruoso, aquilo que rasga a
superfície. A ferida é o ponto de contato entre o corpo fragmentado, violentado, e o corpo do
espectador, numa espécie de fenomenologia do limite físico, de cumplicidade somática. Em
sua face não utópica, a ferida ostenta os signos do regime necropolítico da atualidade,
conforme descrito por Achille Mbembe:

Em outros casos, em que a amputação física substitui a morte imediata, cortar os


membros abre caminho para a implantação das técnicas de incisão, ablação e
excisão que também têm os ossos como seu alvo. Os vestígios dessa cirurgia
demiúrgica persistem por um longo tempo, sob a forma de configurações humanas

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PERA | Morto-vivo: breve glossário crítico 11

vivas, mas cuja integridade física foi substituída por pedaços, fragmentos, dobras,
até mesmo imensas feridas difíceis de fechar. Sua função é manter diante dos olhos
da vítima – e das pessoas a seu redor – o espetáculo mórbido do seccionamento
(Mbembe, 2016, p. 142).

Gore

A gratificação do Horror contemporâneo baseia-se na tensão, medo, ansiedade,


sadismo e masoquismo – uma disposição que é, em geral, ofensiva [tasteless] e
mórbida. O prazer vem do fato de apavorar você [get the shit out of you] – e desfrutar
disto; uma troca mediada por adrenalina (Brophy, 1986, p. 5).19

Uma definição genérica do termo gore colocaria ênfase no caráter explícito da


representação da realidade material do corpo machucado, um rebaixamento aos fluidos,
feridas, vísceras e todo o tipo de violência extrema contra o corpo (Hutchings, 2008, p. 147-
148).20 Contudo, devemos atentar para o excesso na descritividade, para aquilo que
ultrapassa, em sua hiper-definição e exagero, a mera função descritiva da linguagem, pois se
abre para um campo sinestésico e contraditório, em que, no caso do filme de horror,
elementos nauseantes são justapostos a um erotismo mórbido. “Perceber mais do que o que
se dá a ver” (Huang, 2007, p. 100);21 ultrapassar a representação, por meio de uma
fenomenologia da ameaça e da hiperintensidade. A narrativa de horror está em uma relação
simétrica com a excitação mórbida inerente ao próprio capitalismo, em seu desejo
desenfreado de satisfação, domínio e consumo de tudo o que existe.22 A fragmentação, o
desmembramento de corpos, o monstruoso, a violência sensacionalista, são elementos
indissociáveis da experiência contemporânea, baseada, no Sul Global, naquilo que Sayak
Valencia brilhantemente nomeou de “capitalismo gore”. Para a filósofa mexicana, o termo gore
qualifica um tipo violento de capitalismo praticado em países subalternizados como forma de

19No original: “The gratification of the contemporary Horror film is based upon tension, fear, anxiety, sadism and
masochism – a disposition that is overall both tasteless and morbid. The pleasure of the text is, in fact, getting the
shit scared out of you – and loving it; an exchange mediated by adrenalin.”
20 Nos diz Hutchings: “For some, the graphic display of bodily fluids, mutilation and evisceration involves an appeal
to degraded and base elements in the human character. For horror theorists and critics, however, the genre’s gore
effects relate more to a fascination with the body and its workings, a fascination that is marginalized or suppressed
in other, more decorous areas of our culture. In addition, horror fans often seem more interested in appreciating the
makeup techniques that produce the gore effects than they are in just witnessing moments of nastiness; for these
fans at least there is an aesthetic of gore at work in horror cinema.” (Hutchings, 2008, p. 147-148).
21As aspas modificam ligeiramente o que é dito no seguinte trecho: “Through their disruption of the everyday world,
the explosion of our previous assumptions about normality, reality and unreality, violence against the body and the
social or moral order, etc., postmodern horror films offer the audience the impossible satisfaction of the death drive,
the enjoyment of always seeing more than meets the eye, seeing beyond the cinematic images and yet repeating
them from the beginning all over again” (itálico nosso).
22Em outra parte, afirmou-se: “Tem-se, aqui, na esteira de David Harvey (2008), que o espaço do capitalismo, a partir
de meados dos anos 1970, produz imensa comunicabilidade e fluxo de mercados e capitais em nível global, com
rápido tempo de giro. A homogeneização e a universalização aí pressupostas são “perversas” – no dizer de Milton
Santos (2006), geógrafo crítico da globalização – porque são apenas efeitos discursivos de um processo totalitário
que produz, a todo tempo, fraturas subjetivas, territoriais, culturais, afetivas, trabalhistas etc.” (Pera, 2022, p. 474).

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legitimação econômica e social de grupos ligados ao crime organizado – daí o termo


“necroempoderamento” usado pela autora. Consiste em efeito e em resposta à falácia da
globalização, numa luta por autonomia e autoafirmação (masculinista, principalmente) que
passa pelo tráfico de pessoas, assassinato e demonstrações ostensivas de violência contra
os corpos de adversários. Capitalismo gore é a

[...] dimensão sistematicamente descontrolada e contraditória do projeto neoliberal.


Produto de polarizações econômicas, do bombardeio informativo/publicitário que
cria e afiança a identidade hiperconsumista e a sua contraparte: uma população
cada vez mais escassa com poder aquisitivo capaz de satisfazer o desejo de
consumo (Valencia, 2010, p. 19).23

Como se vê, a autora nota a dimensão totalitária e contraditória do fenômeno, e


também o seu caráter espetacular, “por conservar el elemento paródico y grotesco del
derramamiento de sangre y vísceras que, de tan absurdo e injustificado, parece irreal,
efectista, artificial” (Valencia, 2010, p. 23).24 Podemos afirmar que o capitalismo fornece uma
espécie de “superego perverso” que, “sabendo do gozo [jouissance] do sujeito, comanda-o
a excitar-se [to enjoy]” (Huang, 2007, p. 94). A angústia, aqui, “não é produzida por uma
falta, perda ou incerteza, não é a angústia de perder algo [...] Pelo contrário, é a angústia
de ganhar algo em demasia, de uma presença muito próxima ao objeto” (Dolar, 2018, p.
183). O filme de horror sabe como internalizar isto em sua forma, ao produzir e manipular a
angústia contra uma ameaça difusa ou direta, ao dispor de objetos fóbicos, ao conferir forma
para a violência. Aquilo que ameaça aniquilar o sujeito – sua autonomia, seus limites –
irrompe como o sintoma deste conteúdo de violência e morte, de desejo desmedido e de
excitação, que é próprio ao consumismo, ao sadismo dos regimes necropolíticos de
exceção, aos discursos armamentistas e golpistas, à estigmatização e perseguição de
setores sociais marginalizados, para citar apenas alguns exemplos. Aparece na forma de
um excesso na descrição que, como afirmado, faz perceber mais do que a própria imagem
parece mostrar (Dunker, 2002).25 Esta descrição, no entanto, também situa um referente

23 No original: “dimensión sistemáticamente descontrolada y contradictoria del proyecto neoliberal. Producto de


polarizaciones económicas, el bombardeo informativo/publicitario que crea y afianza la identidad hiperconsumista
y su contraparte: la cada vez más escasa población con poder adquisitivo que satisfaga el deseo de consumo.”
24 Mark Steven é taxativo ao comparar o capitalismo ao gênero gore, ressaltando a sua capacidade crítica, o seu
caráter erótico e a sua vocação ideológica revolucionária: “One of the well-grounded clichés about modern liberalism
pertains to its stance of nonviolence; that it endorses a toothless progressivism and shuns any sort of armed struggle;
that, from its standpoint, to resist oppression through violent means makes you an oppressor too. Splatter promotes
the opposite worldview. It reminds us that capitalism is already violent, that under capitalism violence is ambient and
systematic, and that capitalism will only yield through greater and different violence” (Steven, 2017, p. 18). E continua:
“Splatter is about the joy of the kill. As a very basic rule of distinction, if a film relishes gore more than tension it is likely
splatter” (p. 19). Por fim: “Splatter is neither conservative nor apolitical. It is politically committed and its commitment
tends toward the anti-capitalist left” (p. 23). “Gore” e “splatter” aparecem de forma permutável no texto do autor.
25 Numa perspectiva psicanalítica, eis a noção de “gozo” produzida por Christian Dunker: “O gozo se caracteriza pela
intensidade excessiva (além da satisfação), de duração repetitiva, com uma certeza antecipada (imaginariamente
eternizável). O gozo corresponde ainda a uma experiência de proximidade absoluta, com tendência a se prolongar
inercialmente (fecundidade) e a ser impuro por natureza, ao combinar afetos indiscerníveis (prazer e horror, por

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que resiste abstrair-se no sistema de circulação capitalista (comunicação, mercado


financeiro). Ou, como nos diz um pesquisador:

[...] o gore [...] responde às vicissitudes do valor, a invariável condição da


acumulação capitalista. O gore enfatiza a materialidade de corpos e cérebros; da
substância humana no interior de uma economia que aparenta ser abstrata, pois
tornou-se financeira, mas que, apesar disto, depende do trabalho [labour] como a
sua única fonte de valor (Steven, 2017, p. 34).26

Horror27

À pergunta sobre como internalizar na forma artística elementos do horror


cinematográfico sem cair na mera ilustração, cabe exigir que se tome, em primeiro lugar, o
horror não como um gênero estável. Isto é, deve ser explorado em sua contingência, situado
espacial e temporalmente em relação aos seus campos disciplinares e obras de referência,
ainda que difusas. Trata-se de verificar se os processos constitutivos das obras provocam
momentos de ambiguidade e desobediência capazes de desafiar as ilusões de totalidade
ostentadas por meios ensimesmados e clichês narrativos, para abrir-se em cadeias de
significação amplas; trata-se de verificar se há violência (tensão, pressão, choque, fratura etc.)
em suas articulações – ou desarticulações – mais primárias, em todo o processo de produção.
Ainda que elementos como escatologia, excesso, monstruosidade, asco, dor, suspense,
velocidade, tortura, assassinato, deformações corporais, amputações, exposição das
vísceras, cadáveres e todo o tipo de dejetos e impurezas, possam ser vistos como
aterrorizantes (pressuposição essencialista), caberia verificar se de fato produzem
movimentos complexos nos arranjos formais e contextuais, ou são meros fenômenos na
superfície dos signos; se almejam um esfacelamento da estrutura da realidade – e da própria
forma – a fim de torná-la irreconhecível. Ou, se apenas apresentam uma face aterrorizante
para o voyeur que não deseja ver a realidade ruir abaixo de seus pés, mas ao contrário, deseja

exemplo). Além disso ele está a meio caminho entre uma grandeza positiva (prazer) e negativa (dor)” (Dunker, 2002,
p. 49-50). Mais adiante (p. 55), Dunker nos lembrará da relação entre o gozo psíquico e a mais-valia econômica, um
valor que é posto para a troca e não para o uso, que sempre excede e aliena o sujeito, atualizando os termos que
temos nos utilizado para pensar a engrenagem do gore frente ao capitalismo.
26No original: “gore [...] responds to the vicissitudes of value, the invariable condition for capitalist accumulation.
Gore emphasizes the materiality of bodies and brains, of the human substance within an economy made
seemingly abstract because it has become financial but which is nevertheless dependent upon labour as the
sole source of value.”
27 Muitas vezes nos deparamos com a expectativa de diferenciar os termos "horror" e "terror". Na bibliografia
consultada esta diferenciação mais rigorosa ocorre somente em Nöel Carroll, que relaciona o termo "terror" às
ficções “que alcançam seus efeitos assustadores ao explorar fenômenos psicológicos, que são, afinal,
demasiadamente humanos” (Carroll, 1990, p. 15). Enquanto o conceito de “horror” estaria ligado ao monstro, tanto
ao seu caráter sobrenatural, quanto à sua natureza híbrida e ao sentimento de repulsa que produz (p. 12-41).
Robin Wood (Wood; Grant, 2018) varia entre os termos terror e horror, e Mark Jancovich (2002), apesar de insinuar
uma diferenciação, não a realiza com rigor.

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sofrer simbolicamente apenas para ter tal realidade assegurada em seguida, numa lógica
compensatória muito próxima ao sublime.28
Ao produzir-se como imagem fotográfica em movimento, o filme de horror usaria a
relação de verossimilhança tanto para espelhar a “realidade” – estabelecendo um espaço-
tempo realista, por assim dizer –, quanto para introduzir nela elementos dissonantes,
heterogêneos. Em outras palavras, produzida a ilusão, a “realidade” seria revirada, fissurada,
tornada inverossímil, horripilante (Jancovich, 2002; Benshoff, 1997, p. 6). Como vimos, a
imagem gore, em seu excesso de descritividade, levaria esta verossimilhança ao seu limite.
Mas, nota-se, principalmente, que muitos críticos privilegiam, cada um a seu modo, o
protagonismo da figura do monstro para esta tarefa de desestabilização. Um autor influente
destaca uma “fórmula básica, simples e óbvia, para o filme de horror: a normalidade é
ameaçada pelo monstro” (Wood; Grant, 2018, p. 83). O monstro é o outro da “normalidade”,
um substituto para o conteúdo reprimido no interior da sociedade patriarcal.29 Outro autor
bastante citado toma a figura do monstro como um contrassenso que confunde categorias e
instila ambivalências (dentro-fora, morto-vivo, humano-não humano etc.), o que lhe confere
um caráter “impuro” – “transgressão”, “violação”, “contradição”, “intersticial”, “ambiguidade”
são outros termos usados pelo autor. Esta impureza, associada a elementos como podridão,
o corpo morto, doenças, vermes e seres rastejantes, acionaria emoções de horror e repulsa
(Carroll, 1990).30 A referência prototípica aqui é certamente a criatura de Frankenstein,

28 Por exemplo, Rosalind Krauss chama atenção para operações de desagregação formal realizadas no nível dos
significantes (os materiais e processos mesmos de formalização das obras artísticas), de modo a romper com
hierarquias e convenções formais, estruturas organizacionais, expectativas de verticalidade, monumentalidade,
totalidade, em suma, modos estáveis de produzir representações, em favor de operações de dispersão, queda e falta,
operações em que a própria noção de forma é coloca em xeque (Krauss; Bois, 2000). O crítico de cinema Robin
Wood também oferece uma ilustração do que se quer aqui caracterizar como uma “internalização” do horror à forma
artística. Em sua análise de The Texas Chainsaw Massacre (Tobe Hoopper, 1974), Wood percebe com muita sutileza
que o “sentido fundamental do horror”, aquilo que pulsa no interior do filme, “está intimamente aliado ao sentido de
absurdo” (Wood; Grant, 2018, p. 101). Aqui, o absurdo da narrativa só pode intensificar-se, jamais retroceder e, por
sua vez, se associa intimamente a um sentido de desespero niilista. Tais sensações certamente resultam do
encadeamento narrativo, mas são também produzidas por significantes mais elementares como a luz laranja
asfixiante do por do sol, a própria incidência, nas imagens, de lens flares cortantes, a lembrar-nos que o horror ocorre
a céu aberto, o silêncio e a vastidão vazia do território, interrompidos pelo som da serra elétrica e por indivíduos
isolados, sem qualquer esperança de resgate, fugindo para sobreviver. Wood oferece, ainda, uma interpretação
sociológica em seu texto ao procurar relacionar o capitalismo ao canibalismo praticado pela família de Leatherface,
naquilo que trata seres humanos como meros objetos de uma satisfação erótica letal não reprimida. Ressalte-se que
se trata de uma família de açougueiros. Quanto ao sublime, ver Gothic, de Fred Botting (2005, p. 25-28).
29 O crítico aqui referido, Robin Wood, afirmaria ainda: “I use “normality” here in a strictly non evaluative sense to
mean simply “conformity to the dominant social norms”: one must firmly resist the common tendency to treat the
word as if it were more or less synonymous with ‘health’” (Wood; Grant, 2018, p. 83). Neste texto de 1978,
encontramos uma lista bastante objetiva do que Wood identifica como este conteúdo reprimido: outras pessoas
(pressupõe que uma sociedade capitalista é formada essencialmente por competidores e pela noção de
propriedade privada), a mulher, o proletariado, outras culturas, grupos étnicos dentro de uma cultura, ideologias e
sistemas políticos alternativos, desvios das normas sexuais (frente ao: regime patriarcal, heterossexual, sexo com
fins reprodutivos, família nuclear, libido com função finalista dirigida ao trabalho), crianças.
30Nos diz Nöel Carroll: ”Within the context of the horror narrative, the monsters are identified as impure and unclean.
They are putrid or moldering things, or they hail from oozing places, or they are made of dead or rotting flesh, or
chemical waste, or are associated with vermin, disease, or crawling things. They are not only quite dangerous but
they also make one’s skin creep. Characters [in a movie] regard them not only with fear but with loathing, with a
combination of terror and disgust“ (Carroll, 1990, p. 23). Quanto à impureza, Carroll a caracteriza como um “[...]

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PERA | Morto-vivo: breve glossário crítico 15

resultado da montagem de elementos corporais heterogêneos. O autor não se exime em


esboçar uma interpretação histórica do fenômeno da ficção de horror, como se, a partir da
literatura gótica, fosse produzida uma crítica interna ao racionalismo iluminista. Em outra
parte, o caráter abjeto do monstro e o estatuto da impureza é também relacionado ao
feminino, ao “monstrous-feminine” (Creed, 1986; 1993).31 Abjeto que, como vimos, aparece
na forma de uma espécie de ritual contínuo de exclusão que “garante ao sujeito afirmar o seu
lugar em relação à ordem simbólica” (Creed, 1993, p. 9). Isto é, na “separação do humano e
do não humano; do sujeito plenamente constituído e do parcialmente formado” (Creed, 1993,
p. 8).32 Momento este que é ”horrível demais para olhar [...] coloca o observador em contato
direto com ‘o lugar da morte’ e o colapso de todos os sistemas de significação” (Aldana Reyes,
2012, p. 37).33 Lembremos, ainda, que o termo ”queer” também foi objeto de identificação com
o monstruoso e o horror, investigado por alguns autores:

[...] o queer [queerness] perturba o equilíbrio narrativo e coloca em movimento um


questionamento do status quo [...] a própria natureza da realidade [...] O queer
sugere a morte ao invés da vida, ao focalizar hábitos sexuais não reprodutivos,
especialmente adequado a um gênero que tem o sexo e a morte como suas
temáticas centrais (Benshoff, 1997, p. 5).34

conflict between two or more standing cultural categories. Thus, it should come as no surprise that many of the
most basic structures for representing horrific creatures are combinatory in nature [...] On the simplest physical
level, this often entails the construction of creatures that transgress categorical distinctions such as inside/outside,
living/dead, insect/human, flesh/machine, and so on“ (p. 43).
31 Num resumo grosseiro, pode-se dizer que, por um lado, a autora vai revisar a teoria psicanalítica da castração
e propor uma inversão da noção de que a mulher ameaça por ser o outro castrado. Em sua perspectiva, a ameaça
advém da mulher como potencialmente castradora do sujeito patriarcal. Há uma imagem de maternidade (salvo
engano, não essencialista, porquanto não marcada pela diferença de gênero que caracteriza a teoria da castração)
examinada pela autora que representaria uma “mãe totalizante e oceânica […] que invoca no sujeito a ansiedade
[a ameaça] da fusão e da dissolução” (Creed, 1993, p. 20). Creed conclui que “[a]s this desire to return to merge
occurs after differentiation, that is after the subject has developed as separate, autonomous self, it is experienced
as a form of psychic death” (p. 28). E acrescenta: “In contrast with the conventional viewing structures working
within other variants of the classic text, the horror film does not work to encourage the spectator to identify
continually with the narrative action. Instead, images on the screen challenge the viewer to run the risk of continuing
to look […] Strategies of identification are temporarily broken and pleasure in looking is transformed into pain as
the spectator is punished for his/her voyeruristic desires” (p. 28).
32 Creed baseia-se nas definições de Kristeva sobre o abjeto. O caráter ritual também é enfatizado por Benshoff:
“For spectators of all types, the experience of watching a horror film or monster movie might be understood as
similar to that of the Carnival as it has been theorized by Bakhtin, wherein the conventions of normality are
ritualistically overturned within a prescribed period of time in order to celebrate the lure of the deviant. Halloween
functions similarly, allowing otherwise "normal" people the pleasures of drag, or monstrosity, for a brief but
exhilarating experience.” (Benshoff, 1997, p. 13).
33 No original: “too horrible to watch [and] puts the viewer in direct contact with ‘the place of death’ and the collapse
of all systems of meaning”. Barbara Creed nos diz ainda: “the concept of a border is central to the construction of
the monstrous in the horror film; that which crosses or threatens to cross the ‘border’ is abject. Although the specific
nature of the border changes from film to film, the function of the monstrous remains the same – to being about an
encounter between the symbolic order and that which threatens its stability” (Creed, 1993, p. 10-11).
34No original: “[…] queerness disrupts narrative equilibrium and sets in motion a questioning of the status quo [...]
the nature of reality itself […] Queer suggests death over life by focusing on non-procreative sexual behaviors,
making it especially suited to a genre which takes sex and death as central thematic concerns”. O autor prossegue:
“By "queer," I mean to use the word both in its everyday connotations ("questionable . . . suspicious . . . strange .")
and also as how it has been theorized in recent years within academia and social politics. This latter "queer" is not
only what differs "in some odd way from what is usual or normal," but ultimately is what opposes the binary

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PERA | Morto-vivo: breve glossário crítico 16

Morto-vivo

Morto vivo (2022) consistiu em uma ação, com duração aproximada de três horas,
com alguns breves intervalos, na qual um performer caracterizado como morto-vivo realizou
algumas sequências de movimentos, todos retirados de filmes, games, videoclipe, entre
outras referências audiovisuais do gênero. Os movimentos foram marcados por sua
aleatoriedade combinatória e aparente descontinuidade: caminhar, ficar em pé (parado ou
balançando o corpo levemente), ficar deitado (simulando as torções corporais do rigor
mortis, ou apresentando espasmos repentinos), “agarrar” (com os braços estendidos em
frente ao corpo), morder, dançar (em referência ao Thriller, 1984, de Michael Jackson),
balbuciar sons sem sentido, rir, gritar, gemer de prazer e de dor, entre outros. Ao performer
foi solicitado que não realizasse contato visual com o público presente e foi dada total
autonomia para improvisos, em especial, para produzir relações com alguns elementos
espaciais, como o mobiliário, vãos arquitetônicos, portas, degraus etc. Todas as decisões
deveriam parecer reflexas, isto é, mais ou menos como respostas contingentes, sem,
contudo, serem diretamente reativas. Para tanto, os ritmos das ações deveriam privilegiar a
autoabsorção do personagem. Produziu-se, portanto, uma imagem ambivalente entre
alhear-se quase completamente, mas, também, responder, eventualmente, ao campo
social. O ensimesmamento garantiu ao performer a constante presença como coisa/corpo
em movimento. A ação ocorreu numa tarde de sábado ensolarada, no centro da cidade de
São Paulo, num espaço que funciona tanto como ateliê de artistas, como galeria de arte. O
morto-vivo era emoldurado por um espaço que funcionava como vitrine para obras artísticas
e pessoas. As próteses e a maquiagem caracterizam um corpo machucado, com feridas nos
braços, tronco, pescoço e cabeça. Foram feitas em colaboração com profissionais que
atuam como drag queen e cosplay, dotadas de uma teatralidade exagerada, porém
convincente para despertar um misto de interesse e repulsa. Ressalte-se que o tratamento
dos olhos – um completamente vedado pela prótese e outro parcialmente obstruído pela
lente de contato branca, forçaram o performer a um relativo alheamento de fato, que
interferia fisiologicamente na sua velocidade, na autovigilância dos movimentos e do corpo,
na nitidez do espaço e das pessoas ao redor.

definitions and proscriptions of a patriarchal heterosexism. Queer can be a narrative moment, or a performance or
stance which negates the oppressive binarisms of the dominant hegemony” (Benshoff, 1997, p. 4).

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Renato Pera, Morto vivo, 2022, performance. Performer: Manuel Fabrício.


Make: Kira e Taline Bonazzi. Figurino: Taline Bonazzi. Foto: Paulo Pereira/Teia Documenta.

Renato Pera, Morto vivo, 2022, performance. Performer: Manuel Fabrício.


Make: Kira e Taline Bonazzi. Figurino: Taline Bonazzi. Foto: Paulo Pereira/Teia Documenta.

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PERA | Morto-vivo: breve glossário crítico 18

Certamente, a teatralização da violência é assunto de interesse do trabalho, um dos


muitos textos possíveis. Mas, a ação produz diversas significações, sem se fixar em nenhuma,
de modo a espelhar a fragmentação da própria performance e a ambivalência do
comportamento da personagem. Circulam, simultaneamente, significantes relacionados às
feridas, dor, afazia, comicidade, erotismo, morbidez, espetacularização, precariedade etc. No
sentido que se buscou para a temporalidade da ação, insistiu-se no seu caráter dissociativo
– participar e alienar-se. Se a imagem da “vida nua”35 podia ser ativada, também havia espaço
para a paródia sobre a indiferença do meio artístico (ponta de lança da capitalização
econômica e simbólica das narrativas e das contranarrativas) e a mistura entre erotismo
(corpo atlético seminu, gemidos, sussurros) e morbidez (machucados, sangramento, rigidez
cadavérica etc.). Como uma performance que não deixa rastros, Morto vivo aposta na
combinação provisória e precária de objetos prostéticos, cuja eficácia se dá tanto no presente
da ação, quanto na latência/angústia do vazio deixado ao final, por sua vez, uma tensão
bastante típica tanto da narrativa de horror quanto de estados de exceção.

Necropolítica

A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em que vivemos é
na verdade a regra geral (Benjamin, 1993, p. 226).

Campo (pense-se nos grupos paramilitares com organização patriarcal comuns aos
filmes de mortos vivos, em particular estadunidenses, mas também nos manifestantes civis
brasileiros de extrema direita):

[...] o colapso das instituições políticas formais sob a pressão da violência tende a
conduzir à formação de economias de milícia. Máquinas de guerra (nesse caso,
milícias ou movimentos rebeldes) tornam-se rapidamente mecanismos predadores
altamente organizados, que taxam os territórios e as populações que os ocupam e
se baseiam numa variedade de redes transnacionais e diásporas que os provêm
com apoio material e financeiro [e humano] (Mbembe, 2016, p. 141).

Contracampo (pense-se nas hordas de zumbis):

35Wesley da Silva Costa, ao considerar o conceito de “vida nua” em sua tese de doutorado nos fala que “os direitos
humanos, que tinham como ideal o “homem enquanto tal”, ruíram ao se deparar com homens reais que haviam
perdido todas as características relacionais de cidadania, mostrando-se como pura existência humana. Isto ocorreu
devido à contiguidade existente entre os direitos do homem e aqueles referentes à cidadania e à nacionalidade.
Somente os nacionais poderiam ser cidadãos. Aqueles que não fossem nacionais não gozavam plenamente das
garantias e proteções das instituições, sendo “regulamentados” por “alguma lei de exceção até que, ou a não ser
que, estivessem completamente assimilados e divorciados de sua origem” (Costa, 2021, p. 89). O que se apreende
é uma contradição entre a captura da “vida nua” – ou seja, esta figura que procura descrever algo como o corpo
natural do humano, a mera existência como humano –, pelo biopoder – já este, identificado com a cidadania, figura
político-jurídica produzida pela ideia de Estado-Nação. A universalidade pressuposta pela noção de cidadania
exclui a vida nua, agora identificada a outros fatores extrajurídicos/nacionais, como a raça, por exemplo, e fica
sujeita, então, ao campo da exceção. Tem-se, aqui, a produção da diferença (sujeito x não sujeito) como a
engrenagem própria à exceção.

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PERA | Morto-vivo: breve glossário crítico 19

[...] Enquanto categoria política, as populações são então decompostas entre rebel-
des, crianças-soldados, vítimas ou refugiados, civis incapacitados por mutilação ou
simplesmente massacrados ao modo dos sacrifícios antigos; enquanto os “sobre-
viventes”, depois de um êxodo terrível, são confinados a campos e zonas de exceção
(Mbembe, 2016, 141).

O regime necropolítico – termo cunhado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe –


baseia-se num movimento de extrapolação da biopolítica proposta por Michel Foucault e
inversão aguda desta. Na biopolítica, a disciplina classifica corpos e populações segundo
marcadores biofísicos e culturais (racistas) para o seu controle por meio do confinamento,
ocultação, extermínio ou reabilitação pedagógica para a reinserção no corpo social “normal”,
“são”, ou “dócil”, como quis Foucault. Na biopolítica, a disciplina visa arraigar-se
universalmente a partir das instituições historicamente ligadas às formas homogeneizantes
do estado-nação, políticas higienistas e racistas, e urbanismo, entre outras instituições – ou,
conforme argumentação de Mbembe, a “soberania” do Estado (o uso auto-outorgado da
guerra, da força e da lei) visa produzir uma autonomia baseada no reforço da fantasia de uma
identidade homogênea. Já no regime necropolítico, o controle da morte visa a violência total
contra o “inimigo”, o seu extermínio completo, como medida de racionalidade econômica. É
anti-institucional, já que obedece a demandas de grupos que podem ou não se associar ao
Estado. Isto é, empreendimentos paramilitares privados beneficiados pelo elevado fluxo de
capital. A forma deste tipo de terror é nômade, altamente tecnológica, veloz, silenciosa,
simultânea, vertical (do satélite ao subterrâneo ou submarino), anônima e remota. Vai de
mãos dadas com a globalização. Tal regime consiste na generalização do estado de exceção
(onde a universalidade da lei é desmentida) e do estado sítio. Produz indivíduos e populações
sem nenhum status de sujeito político ou de cidadania, reunidos ou dispersados conforme os
interesses dos grupos no poder. Conclui Mbembe:

[...] propus a noção de necropolítica e necropoder para explicar as várias maneiras


pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, armas de fogo são implantadas no
interesse da destruição máxima de pessoas e da criação de “mundos de morte”,
formas novas e únicas da existência social, nas quais vastas populações são
submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de “mortos-vivos”
(Mbembe, 2016, p. 146).

Terrir

Já dissemos de passagem que as respostas somáticas provocadas pelo filme de horror


têm semelhança com a comédia. Mas, vale enfatizar também que a impureza – o abjeto – é
elemento comum ao horror e ao humor (Carroll, 1999). Impulsos contraditórios como o riso e
o medo guardam semelhanças com o chiste e com o insólito, formas de retorno (repetição) e
de disfarce (sintoma). Noël Carroll nos lembra que o humor baseia-se na “incongruência”, isto

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PERA | Morto-vivo: breve glossário crítico 20

é, na convergência de “ideias e conceitos disparatados ou contrastantes”, visando à


“transgressão de conceitos aceitos, categorias, normas e expectativas do senso comum”
(Carroll, 1999, p. 153-154). Trata-se aqui das figuras do trocadilho, do duplo (bonecos,
marionetes, sósias, caricaturas, por exemplo), da alegoria e do palhaço, que o autor compara
diretamente ao monstro. Examinando uma possível etimologia da palavra “clown” (palhaço),
Carroll a relaciona com outros termos como “clod”, “clot” e “lump” (pedaço de terra ou de
sujeira, coágulo e substância sólida informe) para designar materiais amorfos, sem limites
claros, e conotar impureza (p. 155).
“Terrir”, este conceito singularmente brasileiro, procura nomear a comédia pastelão cheia
de sangue, tripas, sexo, humilhação, precariedade e humor, exposta sob a luz tropical
inclemente. O conceito aparece no debate cultural tropicalista.36 Mas para nós, adquire valor
analítico que permite abordar a produção experimental do chamado cinema marginal, como por
exemplo, os filmes e as ações extrafílmicas de José Mojica Marins. Não se trata de um
neologismo que pretende aclimatar o gênero comedy-horror, pois não há um balanço
compensatório entre a angústia do horror e a descompressão do riso. Não há descompressão
possível: “terrir” faz colidir escárnio, hedonismo e horror. Ou, como ouvimos a uma certa altura
de O bandido da luz vermelha (Rogério Sganzerla, 1968): “quando a gente não pode fazer nada,
a gente avacalha e se esculhamba”.37

Zumbi

O zumbi, dizem, é um corpo humano sem alma, ainda morto, mas retirado do túmulo e
dotado, por magia, de uma semelhança mecânica com a vida – um corpo morto que
anda, age e move-se como se estivesse vivo (Seabrook, 1929 apud Kee, 2011, p. 13).38

Ao longo deste glossário crítico, produziu-se um método fragmentário, adequado ao


objeto de análise, operando por estudos de caso e pela formação de constelações de sentido
não totalizantes. Enfatizou-se a atualidade da figura dos mortos vivos, emoldurada pelo choque

36 Foi provavelmente apropriado dos gibis pelo crítico de cinema Nelson Motta, em artigo publicado no jornal O
Globo, após o lançamento do filme O segredo da múmia (1982), de Ivan Cardoso. Cardoso procurou sucessivas
vezes identificar o conceito ao seu próprio trabalho. O termo aparece em cartazes de publicidade de filmes,
autobiografias e em A marca do terrir (2005), obra audiovisual do cineasta que compila esquetes realizadas em
super-8 nos anos 1970. Ver Motta, 1982, p. 32. Outro exemplo vem de Décio Pignatari, ao situar o cinema de Ivan
Cardoso frente à ditadura militar (1964-1985): “amoralidade ideológica que afrontava uma ética autoritária a rolar
na superfície da vida social do país... Sinistro Ivan [Cardoso]: enquanto curte a película do seu terrir, entrega-nos
à sanha do terror do tempo que nos tira a pele” (Pignatari; Cardoso, 2008, p. 16).
37 Ao tratar do cinema marginal, o historiador e crítico de cinema Fernão Ramos nos diz: “O deboche e o avacalho
atingem aí a tessitura da imagem e a própria película é atingida: negativos riscados, fotografia suja... pontas de
montagem aparecendo, erros de continuidade, descuido na produção, etc.” (Ramos, 1987, p. 43). Fernão Ramos
também associa o abjeto diretamente às estratégias do cinema marginal brasileiro.
38No original: “The zombie, they say, is a soulless human corpse, still dead, but taken from the grave and
endowed by sorcery with a mechanical semblance of life – it is a dead body which is made to walk and act and
move as if it were alive.’’

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PERA | Morto-vivo: breve glossário crítico 21

produzido pelo espetáculo e pelo regime de exceção descrito pela necropolítica e sintetizado
pelo capitalismo gore. Destacou-se a exortação de Walter Benjamin para que o sujeito vitimado
da modernidade “confessasse” a sua pobreza. Buscou-se associar esta “confissão” à ideia de
abjeto, como um estado no qual o sujeito é a própria expressão desta pobreza: dessubjetivado,
fora da história, tornado resto, morto-vivo. Insistiu-se, portanto, em estratégias ligadas ao gênero
do horror, principalmente cinematográfico – body horror, close up, o monstruoso, o gore e o
“terrir” – para pensar possibilidades de agressão a uma certa figuração da realidade “normal”,
ao corpo, e a instabilidade da própria noção de forma.
À guisa de conclusão, vale insistir que a atualidade dos mortos vivos é atestada pelo
intenso cruzamento entre diferentes universos culturais e midiáticos – filmes, séries,
videogames, quadrinhos, literatura, teatro, artes visuais e universidades (Bishop, 2015). No
cinema, o gênero passa de um período inicial que associava zumbis ao trabalho escravizado
ou semiescravizado, em referências diretas ao transe ritual das religiões afro-caribenhas, com
destaque para o Haiti. Mortos-vivos foram descritos como seres abjetos, sem a posse de sua
própria vontade motora e psíquica, em resposta às ansiedades de supremacistas brancos
escravocratas, ciosos de seu domínio e amedrontados com a possibilidade da revolta e da
falência econômica, num arco temporal que vai da Revolução do Haiti à primeira metade do
século XX, tanto nos EUA quanto na Europa (Moreman et al, 2011).39 Contudo, os ecos
colonialistas alcançariam os anos 1980 e além, com filmes como Zombi Holocaust (Marimo
Girolami, 1980) e Zombie 2 (Lucio Fulci, 1979), entre tantos outros que se valem de ilhas
tropicais isoladas, mortos vivos não brancos, ou mortos vivos como terroristas (World War Z,
Marc Forster, 2013). À contrapelo, destacamos Sugar Hill (Paul Maslansky, 1974), um filme
que revisa estereótipos raciais, e mais recentemente no contexto latino-americano, filmes com
apelo político-paródico como Juan de los Muertos (Alejandro Brugués, 2011), Halley
(Sebastian Hoffman, 2013) e o brilhante Sinfonia da Necrópole (Juliana Rojas, 2008). Neste
último, para além da tematização sociológica e alegórica do subdesenvolvimento, o filme
produz uma instabilidade na noção de gênero cinematográfico, misturando musical, horror,
comédia, romance e cultura pop, num cinema quase artesanal e “pobre”, à la José Mojica
Marins. Quanto à acomodação da figura dos mortos vivos ao ambiente classe média
estadunidense – indivíduos anônimos, genéricos e massificados – e ao consumismo, a crítica
parece concordar que o marco são os filmes de George A. Romero, Night of the living dead
(1968) e Dawn of the dead (1978). A tensão racial, como sabemos, é preservada pelos

39 Entre os textos literários abordados nos capítulos deste livro, destacamos “The Unknown Painter” (publicado no
jornal The Alton Telegraph, em 1838) e “Last of the Caribs: A Romance of Martinique” (The Decatur, Illinois, 1879),
para citar apenas dois exemplos, ou The Magic Island (William Seabrook, 1929), e filmes como White Zombie, Revolt
of the Zombies (Victor Halperin, 1932 e 1936), Ouanga (George Terwilliger, 1936) e I Walked with a Zombie (Jacques
Tourneur, 1943). Vale mencionar também o estudo etnográfico Tell my Horse: Voodoo and Life in Haiti and Jamaica
(Zora Neale Hurston, 1938), este último realizado por uma escritora de ascendência afro-estadunidense.

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PERA | Morto-vivo: breve glossário crítico 22

protagonistas negros em ambos os filmes, mas os mortos vivos passam a ser caracterizados
como canibais dessubjetivados, a repetir hábitos mecânicos que, vale dizer, já tinham antes
do estado zumbificado. Em Dawn, habitam um shopping center. Atente para o fato que George
A. Romero também lança as bases para pensar as organizações de paramilitares
(supremacistas brancas) – em Night of the living dead – e, mais adiante – a partir de Dawn of
the dead –, decididamente militarizadas, elementos que serão repetidos infinitas vezes em
filmes e séries posteriores. Isto não é pouco, pois são tão importantes para uma certa
estabilização do gênero quanto os próprios mortos vivos. Estes, são tornados coadjuvantes
no drama existencial dessas milícias com estrutura quase sempre patriarcal, na disputa pelo
controle territorial, dos recursos humanos e naturais, armamentos e narcóticos, e pelo direito
ao justiçamento. Mas voltando aos personagens consumistas zumbificados que habitam um
shopping center, podemos dizer que tal tensão alcança, por sua vez, o nosso presente
neoliberal de pessoas endividadas e precarizadas. Como afirma-se: “Zumbis também são,
agora, um descritor importante de um certo tipo de agentes econômicos, como aqueles não
lucrativos [unprofitable] que continuam a funcionar economicamente com base em
empréstimos perpétuos e inventivos arranjos de financiamento e refinanciamento” (Datta;
MacDonald, 2011, p. 80).40 Nesta economia, tem-se uma instrumentalização generalizada da
vida – coisificação –, uma fenomenologia baseada no “meio para atingir uma finalidade” [living
within your means-to-an-end] (p. 82). Os sinais vitais são expropriados dos indivíduos e
convertidos em mercadorias simbólicas, signos e efeitos – libido, sexualidade, sucesso,
amizades, alma, liberdade, autonomia, cidadania, identidade etc. –, para serem vendidos de
volta aos indivíduos (p. 86).41 Se tomarmos o videogame como paradigma da participação –
na arte, mas também na participação social –, temos, por um lado, a condição somática a que
nos referimos anteriormente por meio de um bombardeio de estímulos sensoriais (imagens e
sons “realistas”, narrativa focada nos conflitos pessoais e interpessoais das personagens,
corpos abjetos, velocidade, fracassos e violências repetitivos, ação em tempo real, pontos de
vista subjetivos, controles vibratórios etc.) (Bishop, 2015, p. 136)42 e, por outro lado, vemos a

40 No original: “Zombies too are now a major descriptor of a certain class of economic agents, like unprofitable ones
who continue to function economically on the basis of perpetual borrowing and ever inventive financing and re-
financing arrangements.”
41 Tomando, ainda, o conceito de “signo-mercadoria” de Baudrillard, os autores dirão: “[...] the stuff of the souls we
have (collective representations) are already “for sale” and hence when we consume commodity-signs the
production of our social life is subsumed to capital. Hence, no return to a “live” outside of capital is possible. What
we lose in work is got through the consumption of commodified collective representations, allowing us to get “a
life”.” Mais adiante, falarão em uma “soberania reflexa” (reflexive sovereignty), uma aparência falaciosa de
soberania e sucesso irrestrito, frente a uma economia que impõe fraturas e precarizações generalizadas. Esta
ilusão, por sua vez, gera ativos econômicos, uma vez que apresenta sujeitos como atrativos para futuros
investimentos sociais, profissionais etc. (Datta; MacDonald, 2011, p. 87).
42Resta por dizer que na estrutura de jogabilidade há uma dissociação entre o controle do “olhar” subjetivo das
personagens e o controle da “câmera” que revela o ambiente. A angústia – o horror – é certamente um efeito da
narrativa e dos abusos sensoriais, tanto quanto é o resultado desta dissociação vertiginosa que se acentua com a
velocidade e a saturação.

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PERA | Morto-vivo: breve glossário crítico 23

noção de agenciamento individual transformada em mero retorno (feedback) no interior de um


sistema fechado e sobredeterminado (O’Brien, 2020).
Mas, ainda que este seja o pano de fundo crítico no qual buscamos situar a figura do
morto-vivo, o problema da definição irrefutável do que é um morto-vivo – em contraste, por
exemplo, com outros monstros – é, aqui, irrelevante. Defini-lo em termos essencialistas não
permitiria lidar com sua ambivalência e com algo do seu caráter messiânico (lembremos da
exortação benjaminiana). No ambiente luminoso e high definition das telas e da circulação
imaterial do capital financeiro, a carne putrefata, suas texturas, a viscosidade dos fluidos
corporais e a coloração sanguínea das tripas à mostra, nos faz pensar no limite da condição
material da vida nua fora da história, na falência da linguagem vista como metonímia do
sistema racional-funcionalista, na reprodução não sexuada, na pretensa autonomia da
subjetividade e da identidade, e no corpo visto para além de sua conformação anatômica
“normal”. Todos esses, enfim, atributos que conferem ambivalência, atualidade e vigor à figura
dos mortos vivos.

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ARJ | v. 11, n. 2 | jul./dez. 2024 | ISSN 2357-9978

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