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UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL

CAMPUS DE CHAPECÓ
CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA

DIEGO NEIVOR PERONDI MEOTTI

KINGDOM COME:
REPRESENTAÇÕES HISTÓRICAS NOS JOGOS ELETRÔNICOS

CHAPECÓ
2019
DIEGO NEIVOR PERONDI MEOTTI

KINGDOM COME:
REPRESENTAÇÕES HISTÓRICAS NOS JOGOS ELETRÔNICOS

Trabalho de Conclusão do Curso de graduação


apresentado como requisito para obtenção do
grau de Licenciatura em História da Universidade
Federal da Fronteira Sul.

Orientador: Prof. Dr. Renato Viana Boy

CHAPECÓ
2019
Diego Neivor Perondi Meotti

KINGDOM COME:
REPRESENTAÇÕES HISTÓRICAS NOS JOGOS ELETRÔNICOS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de História da Universidade Federal da


Fronteira Sul, como requisito parcial para obtenção do título de licenciado em História.

Orientador: Prof. Dr. Renato Viana Boy

Este trabalho de conclusão de curso foi defendido e aprovado em: ____ /____/________

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________
Dr. Renato Viana Boy

_______________________________________________
Dra. Melina Kleinert Perussatto

_______________________________________________
Dr. Ricardo Machado
AGRADECIMENTOS

Acredito que, da mesma forma que os relatórios dos estágios, o TCC não é um trabalho
que tem início na sétima fase, mas é algo que possui um caminho que tem início já no primeiro
semestre, se não antes mesmo de entrarmos na Universidade. Sou grato pela possibilidade de
ingressar em uma Universidade pública. A UFFS abriu possibilidades que muitos estudantes
poderiam não ter, devido as mensalidades das universidades privadas. As pessoas que conheci
desde 2015 contribuíram para uma transformação pessoal que nunca imaginaria, posso olhar
para o meu eu de 2015 e ver uma grande melhora no meu crescimento enquanto pessoa.
Das pessoas que foram fundamentais para esse trabalho, e minha formação, devo muito
a minha família. Minha mãe, Neiva Perondi, foi fundamental. Ela nunca nos pressionou, a mim
e a meu irmão, nem nos repreendeu pelo caminho que havíamos escolhido trilhar. Minha mãe
foi alguém com quem me abria em momentos complicados da graduação e dos acontecimentos
em volta da minha formação, auxiliando-me a manter um controle emocional. Além disso, ela
possibilitou que me dedicasse exclusivamente aos estudos, desejando uma formação qualificada
para nós, onde poderíamos aproveitar ao máximo do espaço proporcionado pela Universidade
Federal da Fronteira Sul. Sou extremamente grato a ela, pois sem sua ajuda, financeira e
emocional, não estaria completando a graduação em nove semestres. Outro membro da minha
família, não menos importante, foi meu irmão, Derócio F. P. Meotti. Que não só abriu espaço
em Chapecó para mim quando iniciei a graduação, encontrando um lugar para morarmos, como
foi alguém que possibilitou que conhecesse pessoas incríveis e repensasse constantemente
minhas condutas morais e sociais. Meu irmão sempre foi alguém que me auxiliou na correção
de trabalhos, apontando os meus problemas e mostrando soluções. Um rival nos jogos FIFA e
implicante com a limpeza do apartamento. Foi uma figura que não poderia deixar de agradecer
aqui. Outros seres que tenho que agradecer são nossos animais de estimação, sendo uma fonte
de carinho e de alegria, sempre estando comigo, com minha mãe e irmão, obrigado: Polly,
Princesa, Neguinha, Sininho e miminha.
Além da minha família, há também as amizades que foram criadas durante estes quatro
anos e meio. Aos meus veteranos, Kauê Neckel, Andrei Magrin, Guilherme de Lima e Letícia
Venson. Vocês me ajudaram em vários momentos de diferentes formas, em conversas sobre
temas aleatórios, rolês, indicações de livros e na leitura dos meus trabalhos. Aos meus colegas
de turma, tanto aqueles que estão se formando como aqueles que ainda irão se formar, todos
vocês foram essenciais para mim, amigos e colegas que me respeitaram e que consolidamos
amizades para além da UFFS e de Chapecó. Obrigado mesmo a vocês: Abiel Kochenborger,
Bruna M. Schuh, Carlos Eduardo C; Isabel Engler, Letícia Solivo, Saionara Frantz, Cainã
Paulino, João Vitor R; Hilário C. Ramos, Thais Gandolfi, Gustavo Pedroso, Gabriel Hallvass,
Matheus Acosta, Rafael Hunttmann, Vinicius Macali e Gabriela Voigt. Especialmente para
você Gabriela, minha melhor amiga desde o início da graduação, amiga e confidente, valeu
mesmo por me aguentar por todo esse tempo, tanto quanto meu irmão. Aos meus colegas que
esqueci, desculpem por isso. Também preciso citar meus calouros, considerando todos os
estudantes que vieram depois de mim no curso, em especial: Marília Amorim, Taynara da Silva
e Samara de Souza. Há tantos outros calouros, mas se fosse citar todos seria um agradecimento,
mas sim uma grande lista. Há também os colegas que vieram no decorrer da graduação: Fábio
Araujo, Rafael Albani, Janaí Trindade, André Paz, e Vanessa Guimarães Pereira. Fiz amigos
também de outros cursos: em Filosofia, Letras, Geografia, Ciências Sociais, Matemática,
Enfermagem e Ciência da Computação, amigos de eventos, manifestações, ocupações e do ping
pong, bem como duas historiadoras extremamente importantes de outras Universidades, Marina
Sanchez (USP), Beatriz Faria Santos (UNIFESP), colegas representantes do Laboratório de
Estudos Medievais (LEME). Por falar no LEME, estes quatro anos foram valorosos, agradeço
a todos que participaram das discussões e dos contatos estabelecidos com pesquisadores de
outros núcleos LEME.
Resta ainda agradecer aos professores. Vocês nos proporcionaram reflexões ao
estudarmos o passado e o mundo em volta. Refletindo sobre a educação e os desafios de nossa
formação e profissão. Muito obrigado a vocês: Jaisson Lino, Francimar Petroli, Antonio L.
Miranda, Fernando Vojniak, Claiton Márcio, Samira Moretto, Vicente Ribeiro, André
Lorenzoni, Délcio Marquetti, Melina K. Perussatto, Letícia Lyra e Maurício Siewerdt. Há
outros quatro professores que considero muito importantes. Primeiramente, a professora
Renilda Vicenzi, alguém que só cheguei a conhecer após a metade da graduação, mas que tive
inúmeras conversas durante as caronas que me dava no final das aulas. Ao professor Everton
Bandeira Martins, já na segunda fase lançando para a turma questionamentos e provocações
sobre nosso futuro ambiente de trabalho: sobre o que é ser professor, sobre o que nossa
formação significa para a Educação, e além disso, foi na sua disciplina onde comecei a pensar
na possibilidade de pensar os jogos eletrônicos enquanto objeto de pesquisa na História.
Continuando minha trajetória no curso, o professor Ricardo Machado na quinta fase me
possibilitou pensar mais a fundo a relação entre jogos e História, sendo um professor que ajudou
a pensar nos primeiros passos do que, posteriormente, se tornaria esta pesquisa. Por fim, meu
orientador, o professor Renato V. Boy. Um professor que esteve com a minha turma desde a
primeira fase, membro do laboratório que faço parte desde 2016. Você aceitou orientar um
trabalho que estava muito distante das suas pesquisas e, sem você, esse trabalho não teria sido
metade do que é. Suas orientações foram além deste trabalho. Ao me colocar como
representante do LEME da UFFS, me proporcionou conhecer pesquisadores de todo o Brasil,
além de estimular para que apresentasse trabalhos em outras Universidades e compreendesse
as relações em volta do ambiente acadêmico. Obrigado a todos vocês: familiares, colegas,
calouros, estudantes da UFFS e de outras Universidades, colegas do apartamento 104, ao casal
mais legal de São José do Cedro (Ângela P. Alba e Diogo J. Dettenborn) e as vocês, professores
do curso de História da UFFS.
RESUMO

Kingdom Come Deliverance foi um jogo lançado em fevereiro de 2018 pela desenvolvedora de
jogos tcheca, Warhorse Studios. Ambientado no Reino da Bohemia no início do século XV,
pretendeu-se criar uma experiência histórica a partir da narrativa, do espaço e das regras que o
compunham. Seus desenvolvedores apontaram Kingdom Come como o jogo que melhor
representou o passado nos últimos vinte anos. Esta pesquisa foi iniciada a partir desta afirmação.
Tendo o jogo como fonte principal da monografia, buscou-se, como objetivo principal, pensar
nas possibilidades de pesquisa histórica a partir dos jogos digitais. Tendo a narrativa principal
do documento em foco, indagou-se sobre as representações políticas de poder construídas a
partir da figura do Rei Wenceslas IV e da nobreza bohemia nos séculos XIV e XV. Os
questionamentos giraram em torno da problemática: se esse foi o jogo que melhor retratou o
passado em décadas, até onde pode-se comparar essa representação com pesquisas de
historiadores? Procurou-se trabalhar as representações da fonte a partir do conceito de
“representação” do historiador Roger Chartier, dialogando com o trabalho de estudiosos de
outras ciências que haviam se debruçado sobre tal tipo de objeto. No primeiro capítulo houve a
apresentação do tipo documental: o que é um jogo eletrônico? Quais são as correntes de
pesquisa com foco no objeto além de apresentar as concepções da narrativa e do espaço em
torno dos jogos? No capítulo dois, trabalhou-se nas representações e na comparação destas com
os trabalhos de historiadores. O capítulo foi subdivido em três partes: na primeira buscou-se
refletir em temas pontuais da trama principal; no segundo, optou-se por analisar a representação
do Rei Wenceslas IV, sua construção na fonte e nas pesquisas historiográficas; na terceira houve
a análise de trechos que possibilitaram discutir sobre elementos sociais de uma nobreza cercada
por valores cavaleirescos. A hipótese que deu partida a pesquisa foi a de que os
desenvolvedores, embora procurassem recriar o passado no mundo virtual, representaram o
desenvolvimento deste mundo a partir de preceitos distintos dos das pesquisas dos
historiadores, logo, apresentando esse passado a um público consumidor através de uma
linguagem própria dos jogos, voltada para suas preferências, gerando assim lucro para a
empresa. Por fim, percebeu-se que, embora os desenvolvedores utilizassem documentos do
período para criar o espaço e a narrativa principal, esta não explicava as relações ali
apresentadas, deixando aberto para inúmeras interpretações sobre as relações entre membros de
diferentes camadas da nobreza da Baixa Idade Média.

Palavras-chave: Representação. Kingdom Come. Nobreza. Jogos Digitais.


ABSTRACT

Kingdom Come Deliverance was a game released in February of 2018 by the Czech games
developer Warhorse Studios. Set in the Kingdom of Bohemia at the beginning of fifteen
century, it aims to create a historical experience from the narrative, space and from the rules
that made it up. Its developers pointed to Kingdom Come as the game that best represented the
past in the last twenty years. This research start from this statement. Having the game as the
principal source of this monograph, the main objective was think the possibilities of historical
research from the digital games. By having the main narrative of the document in focus, we
question about the political representations of power constructed from the figure of the King
Wenceslas IV and the bohemian nobility in the fourteen and fifteen centuries. The question
revolved around the problem: if this was the game that best portrayed the past in decades, how
far can this representation be compared with researches made by historians? We tried to work
the representations in the source from the concept of “representation” of the historian Roger
Chartier, dialoging with the work of the scholars from other sciences that had focused on such
type of object. In the first chapter there was a presentation of the documental type: what is an
eletronic game? What are the research currents with focus on the object besides presenting the
conceptions from narrative and space around the games? In chapter two we worked on the
representations and their comparasion of these with the works of historians. The chapter was
subdivided into three: the first sought to reflect on specific themes of the main plot; in the
second we opted to analyze of the representation of the King Wenceslas IV, your construction
in the source and in the historiographical researchs; in the third there was the analysis of the
passages that made it possible to discuss about social elements of a nobility surrounded by
chivalry values. The hypothesis that started the research was that the developers, while trying
to recreate the past in the virtual world, had represented the development of this world from
distinct precepts of those of historians research, therefore, presenting this past to a consuming
public through a game’s own language, focusing on their preferences, thus generating profit for
the company. Finally, it was realized that although the developers used documents of the period
to create the space and the main narrative, it didn’t explain the relationships presented there,
leaving open for countless interpretations about the relationships between members of different
layers of the nobility of the Low Middle Age.

Keywords: Representation. Kingdom Come. Nobility. Digital Games.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 8
2 JOGOS ELETRÔNICOS: ESPECIFICANDO E DELIMITANDO ............. 14
2.1 CONTEXTUALIZAÇÃO E CONCEITUALIZAÇÃO ....................................... 14

2.2 NARRATIVA E/OU LÚDICO ............................................................................ 20

2.3 METODOLOGIA E FONTE ............................................................................... 28

2.3.1 Constituindo narrativas ...................................................................................... 30


2.3.2 Percepções e espaços ............................................................................................ 32
2.4 JOGOS HISTÓRICOS .......................................................................................... 37

3 KINGDOM COME ............................................................................................. 42


3.1 NARRATIVA E PROBLEMÁTICAS ................................................................. 42

3.1.1 A construção da narrativa, do espaço e da ludicidade ..................................... 45


3.2 WENCESLAS IV: O REINO DA BOHEMIA E O SACRO IMPÉRIO, RELAÇÕES
POLÍTICAS NA HISTÓRIA E NO JOGO ........................................................ 52

3.3 UMA NOBREZA CAVALEIRESCA REPRESENTADA? ................................ 60

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 69


FONTE .......................................................................................................................... 72
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 72
ANEXOS ....................................................................................................................... 76
8

1 INTRODUÇÃO

Os jogos eletrônicos – também conhecidos como videogames1 – são produtos


criados a partir da segunda metade do século XX. São produtos cujo desenvolvimento é
voltado principalmente para o entretenimento, expandindo cada vez mais o seu público
consumidor por suas características técnicas e narrativas capazes de proporcionar
variadas experiências. Seus atributos lúdicos e narrativos atraem milhões de
consumidores por todo o globo e, embora grande parte destes joguem por diversão,
existem jogadores que praticam enquanto possibilidade esportiva dentro da modalidade
dos e-sports.2 Além da prática esportiva/competitiva dos jogos eletrônicos, estes são a
fonte de pesquisadores que os estudam em áreas como Jornalismo, Psicologia e Educação,
buscando refletir sobre seus impactos nas sociedades contemporâneas.
Esta pesquisa tem como principal objetivo refletir sobre o espaço de pesquisa
historiográfico nos jogos eletrônicos. Para tal, usamos como fonte o jogo Kingdom Come
Deliverance,3 elaborado pela desenvolvedora Warhorse Studios,4 da República Tcheca,
para as plataformas de Playstation 4, XBOX ONE e computador e lançando em 13 de
fevereiro de 2018. Sua narrativa é ambientada em uma região da Boemia no ano de 1403,
tendo como pano de fundo a morte do Imperador do Sacro Império Romano Germânico,
Charles IV, e a disputa pelo Reino entre o Rei Wenceslas IV, e seu meio-irmão
Sigismund, Rei da Hungria, durante uma guerra civil no Reino da Bohemia. No jogo, o
jogador assume o controle de Henry, filho de um ferreiro, que tem sua vida transformada
drasticamente logo no início da narrativa após um ataque inesperado à sua vila pelas
forças de Sigismund. A história do protagonista transcorre na busca deste em recuperar a
espada forjada por seu pai para Sir Racek Kobyla de Dvojitz, passando a trabalhar
enquanto membro das forças do nobre para vingar a morte de sua família.

1
A palavra videogame é uma palavra utilizada tanto para os jogos eletrônicos em si, quanto para os
aparelhos no qual os dados são representados por meio de uma tela.
2
E-sports são torneios organizados de jogos eletrônicos onde times, ou jogadores individuais, se enfrentam
a partir de um jogo específico Alguns dos torneios mais famosos envolvem os jogos DOTA II, League
of Legends, Counter-Strike e Overwatch.
3
A partir de agora usaremos a sigla KC para podermos nos referir ao jogo.
4
A recepção do público foi um divisor de águas. Muitos dos jogadores adoraram a experiência cavaleiresca
medieval apresentada em KC. Porém, o fato de se apresentar enquanto jogo com maior proximidade
histórica trouxe críticas e reações inesperadas tanto por parte do público como do principal
desenvolvedor chefe de KC. As polêmicas giram em torno de aspectos raciais, de gênero e
nacionalistas/identitários em que grupos criticaram o jogo pela forma como representava as mulheres e
outras etnias em prol de uma Bohemia coesa, unida e branca (GRAYSON, 2018).
9

Além de sua narrativa estar ambientada num recorte histórico preciso, os gêneros
no qual foi desenvolvido (simulador e RPG5) possibilitam refletir sobre algumas
intenções presentes no objeto digital. Jogos do gênero simulador procuram apresentar
uma experiência mais próxima possível da realidade, tendo a sobrevivência como o
grande desafio. A partir das regras que caracterizam o gênero simulador, o jogador
precisará realizar atividades para conseguir recursos e sobreviver. Em KC os jogadores
vagam por uma extensa região em uma perspectiva visual em primeira pessoa, tornando
o seu combate outro desafio na experiência. Em muitos jogos de outros gêneros é comum
um personagem conseguir enfrentar vários inimigos ao mesmo tempo sem muitas
dificuldades. Porém, em KC, ao buscar tornar a experiência o mais real possível o
combate varia a partir dos armamentos que possuí, do estado de conservação das armas e
do tempo destinado a prática com os diferentes tipos de armamentos apresentados, como:
espadas longas, espadas curtas, arcos, machados e escudos –havendo espaços onde o
protagonista passa horas treinando de forma segura. A luta contra inimigos sem treino
muitas vezes acarreta na morte de Henry.
Se tais elementos permitem identificar o gênero simulador, há também
características do gênero de RPG, como curva de progressão das habilidades do
protagonista, liberdade de exploração e desenvolvimento de subtramas narrativas. Em
jogos deste gênero, o jogador adquire uma nova habilidade no momento em que possui
os pontos de experiência necessários para desbloqueá-la. Em KC, tal forma de progressão
existe também, porém, com suas peculiaridades. Pode-se aumentar uma habilidade
somente a partir da prática desta: para ser um espadachim, por exemplo, são necessárias
muitas horas de prática em um espaço de treinamento somente com espadas, longas ou
curtas, para se aprender sequências e dominá-las de forma segura; para poder produzir
medicamentos mais complexos, é necessário que já se tenha praticado antes, ou pagado
uma certa quantia para alguém ensinar a Henry. Ou seja, as habilidades que o protagonista
adquire se desenvolvem unicamente a partir da forma como cada jogador controla o
protagonista no espaço virtual apresentado, proporcionando assim variadas experiências
por meio das habilidades aprimoradas durante o jogo. Outra característica do jogo
relacionada a tal gênero aparece na liberdade de agir no mundo virtual sem que tenha uma
relação direta com a narrativa principal, permitindo aos jogadores viajar por diferentes
vilas e nelas sendo possível pernoitar, comprar alimentos, roupas, armaduras, roubar,

5
Rolling-play Game.
10

assassinar além de realizar missões secundárias. Ou seja, a partir da forma como o jogador
age em uma localidade, o protagonista é tratado como uma pessoa virtuosa ou como um
criminoso, assim, ganhando ou perdendo prestígio por meio das escolhas e ações.
Para esta análise, nortearemos nossa pesquisa numa perspectiva conceitual de
Roger Chartier, que busca pensar como os diferentes grupos procuram construir uma
visão que os identifique e os distingue dos demais não somente a partir de características
socioprofissionais, mas também por meio de conjuntos mais diversificados, como
religiosos, tradições educativas ou sexuais por exemplo (CHARTIER, 2002, p. 69). Tais
conjuntos identitários (ou relações comuns partilhadas por seus membros) são
compartilhados com outros grupos de uma sociedade estando sujeitas a serem
reinterpretadas. As diferentes construções sociais são inseridas em contexto de lutas de
representações cujo objetivo é a ordenação da própria estrutura social. Assim,

(...) a história cultural afasta-se sem dúvida de uma dependência demasiado


estrita em relação a uma história cultural social fadada apenas ao estudo das
lutas econômicas, mas também faz retorno útil sobre o social, já que dedica
atenção às estratégias simbólicas que determinam posições e relações e que
constroem, para cada classe, grupo ou meio, um “ser-percebido” constitutivo
de sua identidade. (CHARTIER, 2002, p. 73)

Os jogos em geral, nesse contexto, são produções, i.e., circulam por um espaço
cultural amplo pelo fato de não restringirem sua produção a um país, grupo social ou
econômico específico, mas visam alcançar o lucrativo mercado do entretenimento.6
Assim, possibilitam a aparição de discursos ideológicos distintos, seja de cunho religioso,
político, econômico, social e histórico sem que haja um amplo debate, pois são tratados
primeiro como mercadorias e não como objetos de representações e discursos pelo
público em geral.
A partir da percepção dos jogos enquanto fontes de representações históricas,
indagamos: como a narrativa e as estruturas de regras do jogo contribuem para uma
percepção mais “realista” do período histórico retratado em Kingdom Come? Como são
representadas as relações políticas a partir da figura do imperador Wenceslas IV? Como
são construídas as figuras da nobreza no jogo? E, por fim, em que medida podemos
perceber semelhanças entre as representações e as análises historiográficas sobre o recorte
que possam embasar a noção de simulador da Bohemia (ou, em uma perspectiva mais
ampla, do Sacro Império Romano Germânico) nos séculos XIV-XV?

6
Com algumas exceções, como os jogos denominados por Bogost como Serious Games, jogos produzidos
a partir de políticas de governo ou de uma empresa, que busque a partir do jogo apontar uma crítica a
um aspecto (ou aspectos) das sociedades (BOGOST, 2007, p, 54-59)
11

Os jogos eletrônicos são o objeto de estudo de pesquisadores desde a década de


1980 em áreas como: Mídia e Comunicação, Literatura Comparada, Educação e
Psicologia7, além dos próprios desenvolvedores de jogos.8 Os historiadores têm-se
utilizado dos trabalhos desses pensadores para problematizar os jogos enquanto
produções inseridas em um espaço de disputas de representações em nível global, estando
os jogos dialogando com as demais mídias que dominaram o cenário mundial no século
XXI (BELLO, 2016, P.49-56). Dentro da História, a pesquisa sobre jogos no Brasil tem
se destacado por suas análises voltadas para o Ensino e para o conceito de “gamificação”
das relações de educação e uso de novas tecnologias para o aprendizado.9
Refletir sobre as representações históricas inseridas nesse produto cultural
possibilita a inserção do trabalho historiográfico com um objeto do presente que se
apropria do passado. Kingdom Come é um jogo histórico10 que é apresentado enquanto
simulador medieval em que o jogador teria uma imersão em parte de um reino do século
XIV. A maneira como os desenvolvedores apresentam o jogo e a maneira pelo qual ele é
jogado possibilitam uma base, problemática, que sustente esse argumento de
autenticidade histórica parcial que embasa nosso trabalho com tal fonte.
Uma vez apresentado nosso objeto de pesquisa, faz-se necessário uma clara
organização dos nossos objetivos, tendo como objetivo geral o de refletir sobre o espaço
de pesquisa historiográfico nos jogos eletrônicos, uma vez que tal área é extremamente
recente na historiografia mundial e ainda incipiente na brasileira. Dentro de nossos
objetivos específicos procuramos: A) Apresentar definições sobre o que seria um jogo
eletrônico, apresentando teorias e metodologias de pesquisa para com o tipo documental;
B) realizar a descrição da fonte, seus aspectos narrativos e espaciais; e C) analisar
especificamente representações históricas de trechos contidas em Kingdom Come a partir
de pesquisas de medievalistas que se debruçam sobre semelhante recorte.

7
Tais áreas citadas acima são de áreas com pesquisas no Brasil.
8
Algumas das pesquisas nestas áreas realizadas por brasileiros são a Tese em Educação de Lynn R. G.
Alves, Game Over: Jogos Eletrônicos e Violência; Sérgio N. Gallo com sua Tese de Comunicação e
Semiótica Jogo como elemento da cultura: aspectos contemporâneos e as modificações na experiência
do jogar e a Dissertação em Linguagem e tecnologia de Luís Henrique Magnani, Virando o jogo: uma
análise de videogames através de um olhar discursivo crítico. As obras em questão não serão utilizadas
nesta pesquisa, mas são exemplos de outras ciências que buscam refletir a partir dos jogos eletrônicos.
9
Alguns textos para leitura: A Gamificação no Ensino de História: o jogo ‘Legend of Zelda’ na abordagem
sobre Medievalismo (2016), Gameficação na Educação (2014), Ensino de História e Games: dimensões
práticas em sala de aula (2017) e Gameficação, aprendizado e ensino de História (2016). Embora o
conceito apareça de formas distintas, “gameficação” e “gamificação”, estas se referem ao mesmo
processo.
10
Jogos que se apropriam de recortes históricos para construírem suas narrativas e espaços de jogabilidade.
12

Nossa hipótese parte do pressuposto que KC é uma produção voltada para o


entretenimento que atraiu uma parcela deste público consumidor parte por ser um jogo
do gênero simulação e parte pelo contexto no qual o jogador é inserido: seu aspecto
histórico. A partir desta concepção pode ser identificado enquanto um produto que busca
apresentar uma realidade histórica problemática para a historiografia pelo fato de ser um
objeto que, tendo um cenário historicamente reconstruído, não tem o compromisso com
um método nem com um rigor historiográfico uma vez que a jogabilidade e o
entretenimento oferecido vêm em primeiro lugar, sempre possibilitando uma saída
argumentativa, em certos pontos, para críticas sobre a adoção e representação deste
passado autêntico. Se diferenciando do fazer historiográfico, que além de ter como objeto
documentos do passado, se utiliza de teorias e metodologias científicas para pensar no(s)
recorte(s) utilizado(s) no trabalho. Jogos que se apropriam de uma representação do
passado já são conhecidos, seja pela presença em sua narrativa, em seu espaço e em sua
estrutura de regras.11 Kingdom Come, enquanto um jogo que se apropria de um passado
específico, procura representá-lo no seu espaço, destacado pela arquitetura das
construções e pelas relações políticas e cotidianas escolhidas pelos desenvolvedores para
se integrarem à jogabilidade e à narrativa. São essas relações políticas que pretendemos
problematizar a luz do trabalho de medievalistas na segunda parte desta monografia.
Para a sua construção dividimos a estrutura desta monografia em dois capítulos:
no primeiro, procuramos falar sobre o tipo documental com o qual trabalharemos,
apresentando sua contextualização e definição sobre o que seria um jogo eletrônico, além
trazer estudiosos que procuraram refletir teoricamente e metodologicamente sobre o
documento. Também procuramos delimitar Kingdom Come enquanto um jogo que possui
características específicas enquanto ambientado num cenário histórico. No segundo
capítulo, realizamos uma descrição e análise de trechos do contexto histórico presente
tanto na narrativa quando no espaço da fonte que possibilitem a análise das representações
de poder em conflitos entres nobres neste espaço.12

11
Alguns exemplos são os jogos das franquias Assassin’s Creed, Civilization e Call of Duty.
12
Temos noção de que há outros elementos que também norteiam pesquisas com jogos eletrônicos.
Kingdom Come pode ser analisado na perspectiva da relação entre jogadores e o jogo e jogadores e
desenvolvedores, relações estas que possibilitam reflexões de gênero, política e identidade nas
sociedades contemporâneas. Focaremos, neste Trabalho de Conclusão de Curso, em analisar as
representações históricas no jogo, havendo a possibilidade de nos aprofundar nestas questões em outra
pesquisa onde tal problemática esteja em foco desde o início, dando tempo hábil para a realização de
uma análise historiográfica suficientemente fundamentada.
13

Dentro das possibilidades teóricos-metodológico, é importante citar as


medievalista e neomedievalista13, teorias historiográficas que buscam pensar nas
reconstruções do passado medieval em recortes posteriores ao século XV. O foco destas
teorias não é pensar só no que é representado, mas em quem e qual sociedade que está
representado o medievo. A primeira tem como objetos da cultura escrita, como livros e
jornais, e as segunda é focada em documentos e produções tecnologicamente recentes
como séries, filmes e jogos eletrônicos. Embora tenhamos todas essas possibilidades, para
esta pesquisa optamos por analisar não quem representa, mas apenas o representado14.
Para tal, buscamos analisar as representações das relações sociais e políticas
criadas a partir deste grupo identitário (jogadores e desenvolvedores), pensando esta
análise a partir do conceito de “representação” trabalhado por Chartier e comparado as
representações presentes no jogo eletrônico com as reflexões trazidas pelos historiadores.
Os jogos eletrônicos, portanto, embora ainda pouco estudados no Brasil, ganham um
espaço cultural cada vez maior nas sociedades mundiais, tornando relevante a realização
de pesquisas com tal documento.

13
Obras que tratam sobre medievalismo e neomedievalismo: The Cambridge Companion to Medievalism
(2016), Digital Gaming Re-imagines the Middle Ages (2014), The Middle Ages in Popular Imagination
(2018) e Studies in Medievalism XIX (2010).
14
Em trechos da pesquisa discutimos brevemente em algumas partes sobre quem representa. Porém, tal
perspectiva de análise não é aprofundada no trabalho da mesma forma que a questão do que é
representado.
14

2 JOGOS ELETRÔNICOS: ESPECIFICANDO E DELIMITANDO

2.1 CONTEXTUALIZAÇÃO E CONCEITUALIZAÇÃO

Os jogos eletrônicos são produtos que foram desenvolvidos no decorrer dos


séculos XX e XXI em um cenário de ampliação do entretenimento e de desenvolvimento
tecnológico. Antes de discutirmos sobre metodologias para a pesquisa dos jogos, é
necessária uma breve contextualização de um produto que possui origem num contexto
de desenvolvimento de tecnologias para o entretenimento e numa mais antiga, associada
as brincadeiras lúdicas.
Uma das bases dos jogos eletrônicos, a esfera lúdica, é relacionada aos jogos e
brincadeiras praticadas em diferentes culturas. O historiador Johan Huizinga, em Homo
Ludens (1938), apresenta o jogo enquanto uma atividade na qual os seus participantes se
integram a um espaço e a um conjunto de regras diferentes das que compõe o seu dia a
dia durante um limitado tempo. Ou seja, para Huizinga, uma das características dos jogos
é a capacidade de isolamento, ou limitação, podendo chegar ao fim em qualquer
momento, sendo assim, absorvido enquanto uma atividade particular do grupo social que
poderá repeti-la novamente quando bem desejar (HUIZINGA, 2000, p. 11).
Outra particularidade dos jogos para o historiador está relacionada ao fato de que,
dentro de um espaço-tempo delimitado, as regras dos jogos são seguidas e tratadas com
seriedade por aqueles que participam (HUIZINGA, 2000, p. 8). Por exemplo: em uma
brincadeira de esconde-esconde, quem deverá procurar contará até um determinado
número e não poderá, enquanto isso, espiar para tentar descobrir onde os outros estão.
São regras que fora desses espaços perdem o sentido, mas são seguidas pelos jogadores
durante a atividade.
Um segundo nome importante para o estudo dos jogos15 é Chris Crawford e seu
trabalho no livro The Art of Computer Game Desing (1997). Crawford é um game
designer, foi o primeiro pesquisador que analisou os jogos inseridos em um contexto onde
os jogos eletrônicos, ou jogos digitais, já haviam ganhado seu espaço na cultura europeia,
norte-americana e asiática (SALEN; ZIMMERMAN, 2004, p. 90). Suas reflexões não
procuraram definir um conceito de jogo, mas Crawford buscou apresentar um conjunto

15
Houve outros pesquisadores que tiveram os jogos como base de seus estudos, mas que não são
trabalhados aqui devido ao tempo destinado a pesquisa. Dentre estes autores estão: David Parlett (1999),
Clark C. Abt (1970), Roger Caillois (1962) e Bernard Suits (1990).
15

de elementos que compõe a sua estrutura por meio dos conceitos de representação,
interação, conflito e segurança (CRAWFORD, 1997, p. 6-14).
A representação seria parte de um sistema formal fechado, com representações
subjetivas da realidade a partir de um conjunto. Para Crawford um jogo pode ser fechado
no sentido de ser internamente completo, sem que sejam necessário referências externas
(1997, p. 8). A interatividade é uma forma dessa representação. O autor traz uma
diferenciação entre representações estáticas e dinâmicas, apontando a segunda como a
mais rica não pelo fato de não ser estática ou de mudar, mas sim pelo modo como essas
representações mudam. Nos jogos, a interatividade ocorre a partir da exploração de
espaços, proporcionando aos jogadores gerarem causas e observarem o seu efeito no meio
(1997, p. 10).
O conflito também é descrito pelo autor como um elemento fundamental para os
jogos, uma vez que é entendido como obstáculos encontrados pelos jogadores para a
conclusão de um objetivo (1997, p. 12-3). Para o autor não há jogos sem conflitos. Houve
tentativas do desenvolvimento de jogos que retirassem tal elemento focando em uma
cooperação. Entretanto, para Crawford, o conflito somente poderia ser evitado se
retirassem a interação dos jogadores, sua participação na resolução de quebra cabeças, no
enfrentamento de inimigos ou em outros problemas que poderiam surgir.
Por fim, a noção de segurança se baseia na percepção que os jogos possibilitam a
realização de diferentes atividades com variados resultados sem que haja grandes
consequências para os jogadores, permitindo um acúmulo de experiência em certas
atividades. Um jogador pode ficar horas matando monstros ou cavaleiros em guerras
medievais sem se ferir, ou podem utilizar grandes recursos sem que gaste um centavo do
dinheiro que guardam. Entretanto, existem penalidades para os jogadores dentro do jogo,
como morrer em uma batalha e, ao reiniciar a partir de um ponto narrativo anterior, perder
importantes recursos adquiridos no jogo. O fato de não finalizar um jogo ao morrer faz
com que jogadores repitam o processo diversas vezes, buscando finalizar o jogo e ganhar
um prêmio no final, seja a própria finalização deste, seja uma conquista ou novo objeto
que demonstre o seu sucesso para com os demais jogadores.
Outra perspectiva sobre o conceito de jogo é trazida por Katie Salen e Eric
Zimmerman em Rules of Play – Game Design Fundamentals (2004). Os game designers
apresentam a conceitualização de jogo, durante o século XX, a partir dos estudos de vários
pesquisadores, sintetizando uma visão a partir disso (2004, p. 86-96). Para Salen e
Zimmerman, “um jogo é um sistema no qual jogadores se envolvem em um conflito
16

artificial, definido por regras, que resultam em um resultado quantificável” (SALEN;


ZIMMERMAN, 2004, p. 11).16 No interior dessa reflexão sobre o que é um jogo, os
autores apresentam também os elementos que o compõe a partir das noções de: sistema,
jogadores, artificial, conflito, regras e resultados quantificáveis (SALEN;
ZIMMERMAN, 2004, p. 11).
A segunda esfera, importante para a compreensão dos jogos eletrônicos, ocorre a
partir do desenvolvimento tecnológico no século XX. Nicolas Sevcenko, em A corrida
para o século XXI (2001), apresenta esse acelerado desenvolvimento que ocorreu no XX
comparando os momentos de prosperidade, avanço e crise nas sociedades com subidas e
decidas de uma montanha russa. Para Sevcenko:

A aceleração das inovações tecnológicas se dá agora numa escala


multiplicativa, uma autêntica reação em cadeia, de modo que em curtos
intervalos de tempo o conjunto do aparato tecnológico vigente passa por saltos
qualitativos em que a ampliação, a condensação e a miniaturização de seus
potenciais reconfiguram completamente o universo de possibilidades e
expectativas, tornando-o cada vez mais imprevisível, irresistível e
incompreensível. (2001, p. 16-17)

Tal avanço tecnológico acelerado possibilitou a criação de versões cada vez


melhores com prazos de validade menores. Se antes um produto poderia durar décadas,
passou a durar alguns anos no final do século XX. Após a Segunda Grande Guerra
Mundial (1939-1945) houve a criação de diversas tecnologias pensadas para fins
militares. Para Harold Goldberg, segundo a interpretação de Bello, os jogos eletrônicos
nascem nesse contexto:

(...) as primeiras experiências na criação de jogos eletrônicos estão


intimamente conectadas com a corrida tecnológica e o universo militar
estadunidense durante a Guerra Fria. Notadamente, os primeiros esforços
tiveram vínculo muito próximo: a primeira experiência conhecida foi um
simulador de mísseis criado para um Cathode Ray Tube (CRT), criado em 1947
por Thomas T. Goldsmith Jr. e Estle Ray Mann. William Higinbotham que em
1958 criou o primeiro jogo de fato Tennis for Two foi um dos cientistas
membros do Manhattan Project e Ralph Baer, judeu refugiado que fora
engenheiro no exército e combatera na Segunda Guerra Mundial, alavancou as
primeiras iniciativas fecundas de capitalização destes jogos eletrônicos através
de seu trabalho de gerência na Sanders Associate, uma companhia cujo
objetivo era desenvolver equipamento eletrônico militar (GOLDBERG, 2011,
apud. BELLO, 2013, p. 9-10, destaques do autor).

O desenvolvimento dos jogos foi concomitante a ascensão do que Sevcenko


chama de Indústria do Entretenimento, um mercado que viu no acúmulo monetário das

16
“A game is a system in which players engage in an artificial conflict, defined by rules, that results in a
quantifiable outcome”. Todas as demais traduções presentes nesse texto são traduções livres realizadas
pelo autor.
17

camadas populares uma forma de lucro através do divertimento (SEVCENKO, 2001, p.


73-4). Num período de expansão das tecnologias de imagem a partir da fotografia e,
posteriormente, do cinema e da televisão, os jogos são inseridos enquanto o passo
seguinte deste desenvolvimento tecnológico onde antes imagens eram captadas a partir
de efeitos de iluminação, passando para imagens em movimento e, depois, permitindo
que os espectadores participassem e agissem diretamente nas ações apresentadas pelas
telas.
Para esse breve relato sobre a História dos jogos digitais, dividimos ela em dois
avanços interligados: o do desenvolvimento de tecnologias relacionado as disputas de
mercado entre empresas do ramo e, concomitante a essa História, abordamos sobre o
consumo por parte do público nesses quase 50 anos de mercado.
Para os historiadores, a década de 1970 é o marco inicial para a entrada dos jogos
no mercado de consumo e de entretenimento (ALVAREZ SILVA, 1990, p. 1; BELLO,
2013, p. 9; BELLO & VASCONCELOS, 2017, p. 219). Tanto Alex Alvarez Silva quanto
Robson Bello utilizam a análise feita por Steven Kent para compreender como os jogos
passaram a ocupar um espaço cultural nas sociedades. Segundo Kent, a primeira
manifestação dos jogos eletrônicos enquanto produto de entretenimento ocorre na década
de setenta com os jogos em Arcade. Os jogos logo se tornaram um sucesso, se
popularizando. Para Kent, o sucesso do produto possibilitou que novas empresas dos
EUA e do Japão se inserissem nesse mercado, desenvolvendo novas tecnologias, sendo o
de equipamentos para o uso doméstico um dos mais relevantes (ALVAREZ SILVA,
2017, p.1).
O primeiro videogame doméstico a ser produzido foi criado pela empresa Atari
em 1970. O videogame Atari se tornou um grande sucesso, criando dois espaços possíveis
para se jogar além de fortalecer uma “cultura do vídeo game”, um público nos fliperamas
e um privado domiciliar, nas residências domésticas. A concretização do espaço
doméstico enquanto hegemônico na produção de videogames ocorreu em 1985, quando
as empresas japonesas, Nintendo e Sega, passaram a desenvolver seus hardwares,
produzindo suportes portáteis que interagiam com aparelhos já existentes nos domicílios,
como os televisores. Tais características foram levando o público cada vez mais para o
ambiente doméstico (BELLO. 2013. p. 10).
Tais inovações tecnológicas permitem refletir sobre os espaços de recepção e as
formas como os indivíduos interagem e se apropriam dessa mercadoria cultural nestes
dois espaços (público e privado). Os arcades ficavam postos em lojas, locadoras, nos
18

fliperamas17, além de outros espaços comerciais. Pode-se pensar que nestes locais havia
a apropriação coletiva das representações, uma vez que as características dos jogos, sejam
elas com relação a mecânica ou narrativa, seja essa concreta ou abstrata, poderiam ser
discutidas pelas pessoas que compartilhavam o interesse por um jogo enquanto
aguardavam para jogá-lo.
Já os videogames criados para o domicílio possibilitaram leituras particulares (ou
de um grupo mais reduzido) dos jogos, tanto pela questão da forma como os jogadores
iriam “ler” o jogo quanto pelo número de pessoas que tinham condições de ter acesso a
estes produtos nas décadas de 1980 e 1990. Em suas residências, o espaço de discussão
sobre um jogo se limitava a um grupo de conhecidos, familiares ou amigos, uma vez que
não havia internet para possibilitar uma experiência de jogadores conectados a distância,
nem seu desdobramento posterior, com debates sobre jogos em fóruns virtuais. Muitas
das informações eram compartilhadas por revistas que traziam curiosidades e dicas sobre
como avançar dentro dos jogos, servindo tanto como meio de divulgação de novos jogos
como espaço de compartilhamento de ideias.
A separação entre os espaços da prática de jogar se tornou mais complexa com o
advento da Internet. Nesse período surgem games do tipo multiplayer, tendo como a
principal característica a possibilidade de que pessoas poderiam jogar juntas estando em
computadores separados. Com isso surgem as lan-houses, espaços onde os jogadores
poderiam utilizar computadores por um determinado período de tempo. A relação dos
espaços público e privado se complexifica, pois os jogadores, então, podiam jogar com
outras pessoas mesmo estando em diferentes lugares do mundo, permitindo observar
discussões no espaço virtual. Os fóruns também, nesse sentido, possibilitaram que estes
indivíduos estivessem em constante comunicação acerca dos jogos que jogavam.
No século XXI, com a miniaturização das tecnologias, o desenvolvimento dos
celulares e posteriormente dos smartphotes e tablets, tornou possível que um único objeto
contenha produtos que anteriormente eram separados, servindo de televisão, rádio,
videogame e máquina fotográfica. Com esta unificação de diferentes tecnologias em
produtos culturais e destas com a internet, houve o que Henry Jenkins chamou de Cultura
da Convergência (JENKINS, 2009. p. 27-51).
Os jogos eletrônicos são produtos em constante desenvolvimento. Nestas cinco
décadas, os jogos passaram de grandes caixas em que rodavam apenas um jogo (arcades)

17
Fliperamas são estabelecimentos comerciais onde havia vários arcades onde as pessoas compram moedas
para poderem jogar.
19

a consoles e computadores menores, permitindo o consumo de mais de jogo. Além do


avanço nos hardwares, houve também o avanço de tecnologias que suportavam cada vez
mais dados (cartuchos, CDs, DVDs, Blu-Ray e, por fim, a mídia digital), permitindo que
jogos cada vez mais detalhados pudessem ser jogados nos consoles e computadores que,
por sua vez, se tornavam cada vez melhores (BELLO, 2016, p. 42-8). Os jogos, neste
trajeto, passaram por desenvolvimentos em suas características gráficas e técnicas. A
constante necessidade de trazer algo novo ao mercado exigia dos desenvolvedores uma
constante busca por tecnologias que permitissem o desenvolvimento dos gráficos e de
possibilidades de jogabilidade, atraindo assim o público e gerando lucro.
Definir um objeto composto por diferentes características provenientes de
variados produtos torna a atividade de conceitualização de jogo uma ação complexa.
Salen e Zimmerman estudam os jogos a partir dos elementos que compõe um sistema18,
sendo estes os objetos, os atributos e as relações em um espaço. Tais elementos aparecem,
com maior ou menor destaque, dependendo do foco dado pelos desenvolvedores nos
sistemas formal, experiencial e cultural (2004, p. 98). Salen e Zimmerman procuram
lançar em seu livro não uma definição, mas elencar aspectos dos jogos digitais que se
destacam nesse e não em outros tipos de jogos.
A primeira característica da qual podemos falar é a interatividade e o imediatismo.
Todos os jogos possuem em si elementos de interação, sendo mais livres ou restritivos a
partir das regras propostas e das punições caso sejam quebradas. Essa característica, nos
jogos eletrônicos, se apresenta como limitadora, uma vez que o jogo é restrito pelas
possibilidades programadas pelos desenvolvedores. O imediatismo se manifesta durante
o jogo, respondendo as ações dos jogadores de maneira rápida sem que exista a
necessidade dos jogadores conhecerem todas regras previamente para que possam jogar.
Por exemplo, em jogos de tabuleiro RPGs, ao menos uma pessoa, o mestre, precisa
obrigatoriamente conhecer o máximo de informações possíveis sobre as características
do jogo e da narrativa. Porém, para que o enredo corra de forma fluida sem interrupções
e questionamentos é necessário que os jogadores conheçam as regras e possibilidades

18
Um sistema, segundo os autores, é entendido enquanto um grupo de elementos (de objetos, seres) inter-
relacionados que formam um todo complexo, sendo possível pensar em três sistemas que compõe os
jogos digitais: um sistema formal, baseado nas regras; um sistema experiencial, que se baseia nas
experiências dos jogadores com o jogo, e um terceiro sistema, associado à cultura e à forma como
elementos trazidos pelos jogadores e desenvolvedores a partir de uma reflexão sobre representações em
que as peças de um jogo se relacionam com uma estrutura de uma sociedade. Todos esses sistemas estão
ligados e servem de possibilidade para o direcionamento de estudos referentes aos jogos (SALEN;
ZIMMERMAN, 2004, p.63-8).
20

destas. Em jogos eletrônicos, conhecer as regras pode ser uma forma de tirar vantagem,
mas não é uma necessidade imposta que inviabiliza a experiência.
Outro aspecto é a manipulação de informação. Em jogos de tabuleiros temos
acesso a grande conjunto de informações, desde uma visão completa do espaço de jogo
até as possibilidades de ações a serem efetuados pelos jogadores. Já nos jogos eletrônicos,
há uma manipulação do que, quando e como são mostradas as informações. Tais
informações variam desde aspectos narrativos, como segredos envolvendo personagens
que, caso o jogador soubesse, poderia mudar completamente a narrativa.19 Outra forma
de manipular as informações seria, por exemplo, em jogos de combate em que os
jogadores enfrentam inimigos que podem ser ou outros jogadores ou personagens
controlados pela inteligência artificial do jogo. O fato dos jogadores não saberem onde
seus inimigos estão pode ser considerada como uma forma de manter a tenção prévia
antes de uma batalha, tornando a experiência do jogo mais emocionante e inesperada.
O terceiro aspecto se refere às ações automáticas dos jogos que não precisam que
os jogares façam algo para a narrativa continuar, nem que estes necessitem um
conhecimento geral do jogo para a sua continuidade. Por fim, a quarta e última
característica dos jogos eletrônicos são as possibilidades de se comunicar com outros
jogadores a distância. A comunicação se faz presente em outros tipos de jogos, é
fundamental e ocorre independente do jogo ser ou não eletrônico. Porém, os avanços
tecnológicos na área de comunicação tornaram possível a conversação de pessoas
espacialmente distantes (SALEN; ZIMMERMAN, 2004, p. 99-101).
Como podemos ver, os jogos digitais, embora possuam elementos narrativos e
organizacionais de outros objetos culturais, não devem ser estudados a partir de um ou
dois destes traços, mas sim a partir de seu conjunto que dá a sua especificidade enquanto
objeto cultural de representações, havendo pesquisadores e correntes teóricas que
debateram – e ainda debatem – intensamente a sua natureza, ora destacando seu aspecto
narrativo, ora seu aspecto lúdico.

2.2 NARRATIVA E/OU LÚDICO

19
Como no caso do jogo de Playstation 3 Heavy Rain (2010), um jogo onde os jogadores controlam quatro
personagens diferentes com narrativas interligadas que buscam encontrar pistas sobre o assassino do
origami. Ora, se os jogadores soubessem que um dos protagonistas era o assassino, a narrativa seria
percorrida de uma maneira bem diferente do que quando não há tal informação.
21

Como apontamos anteriormente, os jogos eletrônicos surgiram enquanto um


produto de entretenimento em meados da década de 1970. Estudos sobre jogos digitais
começaram a serem realizados na década de 1990. Atualmente, existem três linhas
teóricas e metodológicas que têm os jogos enquanto objeto de estudo, onde focam em
refletir sobre seu aspecto narrativo ou sobre o lúdico.
A primeira corrente surge a partir da obra Hamlet no Holodeck: o futuro da
narrativa no ciberespaço (1997) de Janet H. Murray. Murray discute, em seu livro, sobre
as novas maneiras pelo qual seria possível elaborar narrativas no futuro, ou seja, nos
novos espaços proporcionados pelo desenvolvimento tecnológico como: narrativas
criadas em blogs, que poderiam usar a capacidade de criar links entre páginas para tornar
as narrativas mais dinâmicas ou variadas de acordo com os links que os leitores acessam.
Murray inicia o seu trabalho refletindo através do Holodeck, uma tecnologia futurista
presente na série Jornada nas Estrelas (Star Trek). O Holodeck, na série, é apresentado
como um ambiente virtual de imersão e interação cujos limites narrativos se encontravam
unicamente na mente de quem adentrava naquele espaço. Para a autora, tais narrativas
ocorrem em ambientes virtuais que possuem, como elementos essenciais, o fato de serem
procedimentais, participativos, espaciais e enciclopédicos (MURRAY, 2001, p. 78).20 O
Holodeck¸ nesse caso, não se trata de um jogo, mas sim de um espaço de realidade virtual
aumentada. Entretanto, ele possui fortes traços comuns com os jogos. Além de ter como
característica o espaço computacional, as narrativas encontradas nestes meios seriam
autorias procedimentais, ou seja, enredos pré-programados que oferecem desdobramentos
e aprofundamentos que podem levar um leitor21, ou jogador, a percorrer uma narrativa.
Para autora, tais autorias são produzidas pelos programadores, mas só se completam a
partir do ponto em que haja um “interator” que passe a agir em um espaço que não é mais
o seu do dia-a-dia, representando as suas escolhas por meio de personagens ou avatares.
Tal incorporação ou atuação nesse espaço ocorre a partir de três eixos (o da
imersão, da agência e da transformação) que tornam as narrativas prazerosas para Murray,
uma vez que o leitor adentra em um espaço ficcional a partir de seus variados elementos

20
Uma reflexão mais aprofundada sobre essas quatro características será apresentada mais à frente neste
capítulo.
21
Murray não foca apenas em narrativas de jogos eletrônicos, mas em narrativas possíveis a partir dos
computadores e de novas tecnologias. Um exemplo seriam as narrativas ou informações que
encontramos no site Wikipedia: algumas informações estão no texto, outras estão ligadas por meio de
links que, ao se clicar em uma palavra destacada (em azul, normalmente), leva o leitor para uma outra
página com outras informações. Tal possibilidade seria usando não somente para fins informativos, mas
também para a construção de novas narrativas no espaço virtual.
22

(imersão), onde tem a possibilidade de agir diretamente na história, podendo escolher


caminhos pela qual ela percorrerá (agência) e permitindo também, ao jogador,
transformar-se em um vaqueiro, em um soldado na Segunda Guerra Mundial ou em um
camponês filho de ferreiro que almeja ser algo mais que perpetuar a profissão de seu pai
(transformação).
Outra pesquisadora, cujo foco nos jogos é a narrativa, é Marie-Laure Ryan em
From Narrative Games to Playable Stories: Toward a Poetics of Interactive Narrative
(2009). Em seu trabalho, Ryan vai discutir sobre a combinação entre narrativa e
interatividade

A combinação entre narratividade e interatividade oscila entre duas formas: o


jogo narrativo, em que as ações do jogador estão subordinadas ao significado
narrativo, e a história jogável, em que o significado narrativo está subordinado
as ações do jogador. (2009, p.45)22

As duas formas de contar uma história, para autora, se diferem pelo fato de uma
trazer uma autonomia aos jogadores, permitindo que estes criem suas próprias narrativas
a partir do elementos dispostos no próprio jogo (como ocorre na franquia de jogos The
Sims), enquanto a outra, embora possibilite uma certa liberdade de ação pelo espaço, é a
experimentação de uma história pré-programada em que os jogadores têm pouca ou
nenhuma possibilidade de alteração.

Enquanto a aproximação de baixo para cima é preferida por histórias jogáveis,


a aproximação de cima para baixo é típica dos jogos narrativos, como jogos de
tiro e de aventura. Nesta aproximação não há criação de eventos no decorrer
do percurso. A progressão do jogador é uma jornada por um caminho que já
está traçado e que conduz para um destino já fixado, ou por vários destinos
quando o sistema oferece pontos de ramificação. Há duas formas de criar uma
narrativa interativa de cima para baixo. A mais comum é começar com um
conjunto de problemas para se resolver, ações para se tomar, armas para usar,
efeitos para criar – em resumo, começar a partir de um design de jogabilidade
– e envolver esta jogabilidade dentro de uma história. (...) O outro método
consiste em iniciar de um mundo narrativo específico e inserir possibilidades
de ação pelo usuário para fazê-lo interativo. (RYAN, 2009, p. 52)23

22
“The combination of narrativity and interactivity oscillates between two forms: the narrative game, in
which narrative meaning is subodinated to the player’s actions, and the playable story, in which the
player’s actions are subordinated to narrative meaning” (RYAN, 2009, p. 45) Na tradução, realizamos
a inversão dos significados pelo fato de encontramos, ao longo do texto da autora, justamente essa
inversão, o que nos fornece um indício de que, talvez, a autora tenha, sem querer, se equivocado neste
trecho. Enquanto narrativas jogáveis tendem a serem construídas pelos jogadores no decorrer da
experiência, conhecidas como bottom-up (da base para cima), os jogos narrativos aparecem enquanto
obras que já possuem um enredo pré-existente no qual o jogador apenas vivencia as ações sem a
elaboração de uma história durante o ato de jogar.
23
“While the bottom-up approach is favored by playable stories, the top-down approach is typical of
narrative games, such as shooters and adventure games. In this approach there is no event generation
on the fly. The player’s progression is a journey along a path that is already traced and that leads to a
fixed destination, or to several destinations when the system offers branching points. There are two
23

A partir dos exemplos abordados pela autora, podemos entender que os jogos
narrativos, como os jogos de tiro e aventura, se utilizam de outros meios além do “jogar
para contar uma história”. Em muitos jogos, como Assassin’s Creed, Red Dead
Redempion e os jogos da saga Call of Duty, existem cortes na jogabilidade onde a
narrativa se desenvolve de forma semelhante à presente no cinema. Entretanto, embora
tal elemento fílmico tenha sido incorporado nos jogos na década de noventa, os jogos já
existiam anteriormente sem que para o estudo desses fosse necessária uma análise
narrativa.
Tal corrente foi denominada, posteriormente, como narratológica ou narrativista,
uma vez que os estudos eram focados principalmente nos enredos presentes nos jogos.
Também no final da década de noventa e no início dos anos 2000, surge uma outra
corrente de estudiosos, que focam suas análises nos aspectos lúdicos que compõem os
jogos digitais, sendo esta denominada de ludologista, tendo nomes como Espen Aarseth
e Markku Eskelinen.
Aarseth, além problematizar o aspecto lúdicos nos jogos, também é o fundador da
revista digital Games Studies.24 Na introdução de sua obra Cybertext: Perspectives on
Ergodic Literature (1997), Aarseth procura problematizar o conceito de literatura
ergótica (ou cibertexto) e lançar uma crítica aos estudos literários em jogos eletrônicos
pelo fato destes não se preocuparem com características fundamentais que compõe os
jogos e os elementos narrativos destes. É curioso pensar que tanto Murray como Aarseth
lançaram críticas as análises literárias sobre os jogos existentes até então. As duas obras
foram lançadas no mesmo ano, e delas surgiram as duas primeiras correntes de estudo
com foco nos jogos digitais.
Uma das críticas lançadas pelo autor aos literatos é voltada à noção de que todas
as narrativas literárias possuem apenas um curso (unicursal), uma linha de compreensão
que, caso houvessem outras linhas, tornariam os enredos ambíguos. Na leitura de Aarseth,
em um cibertexto, entretanto...

(...) a distinção é crucial – e bem diferente; quando você lê por um cibertexto,


você está constantemente lembrando estratégias inacessíveis e caminhos não
tomados, vozes não ouvidas. Cada decisão irá fazer alguma parte do texto mais
acessível, outras menos, e você pode nunca saber os resultados exatos das suas

ways to create top-down interactive narrativity. The most common is to start from a set of problems to
solve, actions to take, weapons to use, effects to create – in short, starting from the design of gameplay
- and to wrap this gameplay into a story. (...) The other method consists of starting from a specific
storyworld and inserting possibilities of user action to make it interactive”.
24
Acessada em 03/05/2019. Disponível em: <http://gamestudies.org/1803>.
24

escolhas; isto é, o que exatamente você perdeu. Esta é uma diferença


importante das ambiguidades de um texto linear. A inacessibilidade, devemos
notar, não implica em ambiguidade, mas sim numa ausência de possibilidade
– uma aporia. (AARSETH, 1997, p.3)25

Muitos dos jogos eletrônicos possuem, durante seu jogo, eventos (ou missões) em
que o jogador pode tomar decisões que implicam em uma específica tomada de rumo
dentro de uma narrativa, inviabilizando outras possibilidades. Aarseth procura comparar
a construção destas literaturas a uma percepção de tipos de labirinto. Um deles seria o
linear, em que haveria um único caminho que levaria ao centro deste, e outro tipo seria
multilinear, cheio que caminhos que dependem das escolhas dos jogadores (AARSETH,
1997, p. 5-6). O papel do leitor/jogador é fundamental para a análise da literatura ergótica
para Aarseth, já que,

Contudo, isso também atenta ao consumidor, ou usuário, do texto, como uma


figura mais integrada, inclusive, do que os teóricos do leitor-resposta
admitiriam. A performance do seu leitor tem lugar apenas em sua cabeça,
enquanto o usuário do cibertexto também atua em um sentido extranoemático.
Durante o processo cibertextual, o usuário irá efetuar uma sequência semiótica,
e este movimento seletivo é um trabalho de construção física que os vários
conceitos de “ler” não dão conta de explicar. (AARSETH, 1997, p.1)26

Na visão de Aarseth, a ação do leitor (ou jogador, em nosso caso) é fundamental,


uma vez que depende de ações físicas além das normalmente utilizadas em uma leitura
convencional, como mexer os olhos durante o processo. Ações que são colocadas além
destas envolvem, no caso de um jogo, o aperto de tecla de um mouse e teclado ou controle
que, em resposta, realizam ações no espaço virtual. Outro aspecto fundamental na
perspectiva de Aarseth são os mecanismos (textuais e eletrônicos) que servem de
intermediário nesta relação entre texto ergótico e o usuário.

Como o prefixo ciber indica, o texto é visto como uma máquina – não
metaforicamente, mas como um dispositivo mecânico para a produção e
consumo de sinais verbais. Apenas como um filme é inútil sem um projetor e
uma tela, então um texto deve possuir um meio material como também uma
coleção de palavras. A máquina, é claro, não está completa sem uma terceira

25
“(…) the distinction is crucial-and rather different; when you read from a cybertext, you are constantly
reminded of inaccessible strategies and paths not taken, voices not heard. Each decision will make some
parts of the text more, and others less, accessible, and you may never know the exact results of your
choices; that is, exactly what you missed. This is very different from the ambiguities of a linear text.
And inaccessibility, it must be noted, does not imply ambiguity but, rather, an absence of possibility -
an aporia”.
26
“However, it also centers attention on the consumer, or user, of the text, as a more integrated figure than
even reader-response theorists would claim. The performance of their reader takes place all in his head,
while the user of cybertext also performs in an extranoematic sense. During the cybertextual process,
the user will have effectuated a semiotic sequence, and this selective movement is a work of physical
construction that the various concepts of "reading" do not account for”.
25

parte, o operador (humano), e é dentro desta tríade que o texto toma lugar.
(AARSETH, 1997, p. 21)27

Nesta tríplice relação apontada pelo autor, quando nos referimos aos jogos
eletrônicos, tal relação se dá por meio de simulações de uma dada realidade representada
tanto pelas ações do jogador como pelo comportamento dos objetos presentes no espaço
virtual. Bello aponta que tal característica é fundamental para que possamos diferenciar
o assistir do participar em uma cena (BELLO, 2016, p. 30).
Eskelinen é outro estudioso dos jogos que busca contribuir com uma reflexão dos
jogos enquanto objetos lúdicos, destacando tal ponto ao invés do narrativo. Baseando-se
nas percepções de outros autores ludologistas, Eskelinen problematiza a construção
ergótica dos jogos:

Em literatura, teatro ou filme tudo importa ou está convencionalmente suposto


para importar igualmente – se você vê 90% da apresentação isso não é o
bastante, você tem que ver ou ler tudo (ou o máximo que você puder). Esta é a
prática dominante de interpretação em geral. Em contraste, em um jogo de
computador, você ou não pode ou não precisa encontrar toda combinação
possível de eventos e existências que um jogo contém, já que estes diferem na
sua importância ergótica. (ESKELINEN, 2001)28

O autor aponta que, para os estudos narrativos, é fundamental haver uma


combinação entre eventos (conjunto de ações e acontecimentos baseados na agência dos
jogadores dentro de uma seção baseada em suas relativas importâncias) e existência
(dividida entre personagens e conjuntos baseados em sua significância para o enredo).
Mas, segundo Eskelinen, há jogos que possuem conjuntos que contêm eventos ou
existências, mas que não possuem enredos:

Os componentes fundamentais de uma história são usualmente divididos


dentro de eventos e existências. Já deveria ser óbvio que é possível combinar
de maneiras que não formam ou tornam-se histórias. Em jogos abstratos como
Tetris há conjuntos, objetos e eventos, mas definitivamente não personagens.
Em adição, há eventos em jogos que mudam situações, mas não transmitem ou
conduzem ou comunicam histórias. Um gol, em um jogo de futebol, é um

27
“As the cyber prefix indicates, the text is seen as a machine - not metaphorically but as a mechanical
device for the production and consumption of verbal signs. Just as a film is useless without a projector
and a screen, so a text must consist of a material medium as well as a collection of words. The machine,
of course, is not complete without a third party, the (human) operator, and it is within this triad that the
text takes place”.
28
“In literature, theatre and film everything matters or is conventionally supposed to matter equally - if
you've seen 90% of the presentation that's not enough, you have to see or read it all (or everything you
can). This is characteristic of dominantly interpretative practices in general. In contrast, in computer
games you either can't or don't have to encounter every possible combinatory event and existent the
game contains, as these differ in their ergodic importance”. As citações de Eskelinen não possuem
paginação, pois seu trabalho está postado na revista digital Game Studies e o texto se encontra corrido
sem separação por páginas.
26

evento que muda a situação, não a história: um gol é um gol. (ESKELINEN,


2001)29

As reflexões do autor são importantes, pois apontam que nem todo jogo tem uma
narrativa. Muitos jogos de esportes, por exemplo, não possuem enredos, mas não é por
isso que deixam de serem jogos eletrônicos. Outro exemplo atual é o jogo Super Hot
(2016), cujo atrativo do jogo surgiu a partir dos desafios propostos relacionados a derrotar
um número x de inimigos em um espaço limitado em que o tempo passaria somente
quando o jogador apertasse as teclas de movimento, podendo assim desviar de balas e
realizar sequências impressionantes em câmera lenta. Tetris e Super Hot são jogos que
não possuem narrativas e, no caso do primeiro jogo, Janet Murray buscou analisar, em
seu livro, um enredo abstrato que haveria nele. Tal insistência de que todos os jogos
possuam narrativas é problemática já que, como nesses dois casos os jogos não permitem
que os jogadores criem narrativas próprias a partir dos elementos do jogo, como Ryan
aponta com as playable storys, favorece o posicionamento dos ludologistas frente aos
narratologistas neste quesito.
Além destas duas correntes de estudo existe uma terceira, que se propõe a pensar
tanto o aspecto narrativo quanto o lúdico nos jogos digitais quando estes se apresentam
no produto. Tal linha de análise é trabalhada pelo filósofo e designer de jogos Ian Bogost
no livro Persuasive Games: the expressive power of videogames (2007), através do
conceito de retórica procedimental. Para Bogost:

Retórica procedimental, então, é uma prática dos usos de processos de


persuasão. Mais especificamente, retórica procedimental é a prática de
persuasão através de processos em geral e processos computacionais em
particular. Assim como a retórica verbal é útil para ambos, o orador e a
audiência, e assim como a retórica escrita é útil para ambos, escritor e o leitor,
a retórica procedimental também é útil para ambos, o programador e o usuário,
o designer de jogos e para o jogador. A retórica procedimental é uma técnica
para fazer argumentos com sistemas computacionais e para analisar
argumentos computacionais que outros criaram. (BOGOST, 2007, p. 3)30

29
“The fundamental constituents of the story are usually divided into events and existents. It should already
be obvious that it is possible to combine existents and events in ways that do not form or become stories.
In abstract games like Tetris there are settings, objects and events but definitely no characters. In
addition there are events in games that change situations but do not convey or carry or communicate
stories. A goal in a soccer game is an event that changes the situation, but there's no story in it; a goal
is a goal is a goal” (sic).
30
“Procedural rhetoric, then, is a practice of using processes persuasively. More specifically, procedural
rhetoric is the practice of persuading through processes in general and computational processes in
particular. Just as verbal rhetoric is useful for both the orator and the audience, and just as written
rhetoric is useful for both the writer and the reader, so procedural rhetoric is useful for both the
programmer and the user, the game designer and the player. Procedural rhetoric is a technique for
making arguments with computational systems and for unpacking computational arguments others have
created”.
27

O conceito de retórica procedimental procura apresentar os jogos enquanto objetos


construídos a partir das intenções dos desenvolvedores, sejam de cunho mercadológico
ou ideologias (religiosas, políticas, étnicas, sociais) (BELLO, 2017, p. 39-42) e, no caso
dos jogos, através da programação.
Neste aspecto podemos relacionar o conceito de Bogost com o de representação
de Roger Chartier. Chartier busca pensar como os diferentes grupos procuram construir
uma visão que os identifique e os distingue dos demais não somente a partir de
características socioprofissionais, mas de um conjunto mais diversificado como opiniões
políticas, étnicas e/ou sociais (CHARTIER, 2002, p. 69). Sua perspectiva colabora para
este estudo, pois jogos históricos, como veremos a seguir de forma mais sistemática,
procuram construir um sistema a partir de um conjunto de representações subjetivas.
Mesmo com o auxílio de historiadores, são os desenvolvedores que escolhem o que
colocar e o que aprofundar em um jogo, sendo muitas de suas escolhas com vistas ao
mercado, um mercado cada vez mais diversificado e plural que busca construir seus
produtos para alcançar um maior número de pessoas. Entretanto, não é somente as
concepções mercadológicas que ditam a produção de um jogo. As ideologias dos
desenvolvedores também marcam seus produtos.
Os jogos, nesse sentido, se enquadram enquanto produções culturais que
possibilitam a manifestação de discursos apresentados por meio de suas especificidades
programadas pelos desenvolvedores e pela relação que os jogadores desenvolvem em
suas experiências. Tais experiências são procedurais31 e, para Bogost, envolvem a
manipulação de símbolos, de construções e interpretações em um sistema simbólico que
governe o pensamento ou a ação humana (BOGOST, 2007, p. 5).32 Tais manipulações,
quando utilizadas em contextos históricos, são problemáticas, pois podem envolver a
exclusão de características importantes no presente que, se não são frutos de percepções
de mercado, podem ser de aspectos ideológicos conflitantes com as ideias dos
desenvolvedores. Mas como de fato podemos analisar metodologicamente um jogo
eletrônico?

31
Bogost utiliza o conceito de “procedimento” para caracterizar formas estabelecidas e arraigadas de fazer
alguma coisa. Invocando uma de autoridade e/ou burocracia, o autor pensa nos computadores de forma
procedimental, pois, para este, “como nas cortes e burocracias, os softwares de computador estabelecem
regras de execução, tarefas e ações que podem ou não podem ser realizadas” (BOGOST, 2007, p. 4).
32
“For my purposes, procedural expression must entail symbol manipulation, the construction and
interpretation of a symbolic system that governs human thought or action”.
28

2.3 METODOLOGIA E FONTE

Sevchenko (2001) menciona, em sua obra, a importância dos parques de diversão


enquanto parte da ascensão de uma indústria voltada para o entretenimento. Muitos
parques possuem espaços imersivos com temáticas de terror por onde os expectadores
percorrem corredores escuros e apertados, possibilitando uma experiência assustadora.
Outros parques possuem atrações focadas em uma obra cinematográfica, como nos filmes
da série Jurassic Park ou da trilogia De volta para o Futuro. Estas atrações proporcionam
ao público uma experiência controlada em que o espectador faz parte daquele universo
por alguns minutos. Os jogos eletrônicos se assemelham com tais atrações por
proporcionarem semelhante sensação, mas se diferenciam na interatividade que a
experiência proporciona. Nos parques as pessoas só podem olhar e interagir dentro de
espaços estritamente delimitados. Já nos jogos se espera que interajam, que explorem
todos os espaços. Além disso,

Outra diferença entre passeios e jogos surge destas questões reais de segurança
pela vida e bem-estar: passeios em parques temáticos restringem a exploração
e interação para controlar o equilíbrio das sensações. Enquanto jogadores de
jogos em 3D podem explorar uma vasta paisagem virtual e aprender como
controlar os movimentos no 3D, passeios em parques temáticos são grandes
experiências lineares sem ou com pouco acesso interativo. O jogador controla
as mãos e braços de um personagem de jogo e “chega” ao mundo do jogo. Em
oposição, visitantes de parques temáticos têm, nos passeios, uma pequena
chance de interferência no sensual e otimizado espetáculo que eles estão
“montando”. (NITSCHE, 2008, p.13-4)33

Para analisarmos metodologicamente Kingdom Come, nos aprofundamos no


trabalho de Michael Nitsche, desenvolvido na obra Videogame Spaces: image, play and
structure in 3D worlds (2008). Em sua obra, Nitsche procura estudar os espaços virtuais
tridimensionais dos jogos eletrônicos. Locais que se tornaram cada vez maiores e mais
acessíveis com o desenvolvimento de técnicas e tecnologias (NITCHE, 2008, p. 2). O
autor procura focar seu estudo nos ambientes virtuais enquanto lugares evocativo-
narrativos, apontando que o espaço virtual, além de proporcionar a interação e

33
“Another difference between rides and games grows out of these very real security issues for life and
safety: theme park rides restrict exploration and interaction in order to control the balance of sensations.
While players of 3D video games can explore vast virtual landscapes and learn how to master movement
in 3D, theme park rides are by and large linear experiences with no or little interactive access. The
player controls the hands and arms of the game character and “reaches” into the game world. In contrast,
visitors to theme park rides have little chance of interference with the optimized sensual spectacle they
are ‘riding’”.
29

jogabilidade, também complementa a narrativa de um jogo, sendo um importante


elemento de interpretação.
Para tal, Nitsche trata os desenvolvedores não enquanto contadores de histórias,
mas enquanto arquitetos narrativos, pois constroem no mundo virtual elementos que
dialogam com um enredo. Nitsche não foi o único autor a dar destaque para o ambiente
virtual. Henry Jenkins (2008) tratou sobre a criação de locais que estariam à serviço da
narrativa:

A narrativa ambientada cria as pré-condições para uma experiência imersiva


narrativa em ao menos uma destas quatro formas: histórias espaciais podem
evocar associações narrativas pré-existentes; elas podem prover um local de
encenação onde eventos narrativos são montados; elas podem incorporar
informações narrativas dentro de uma encenação; ou podem fornecer recursos
para narrativas emergentes. (JENKINS, 2004, p. 123)34

Jenkins, em seu texto, traz quatro modelos de espaços enquanto contadores de


narrativas: evocativos, encenado, emergente e embutida (2004, p. 123-8). O mais
importante para pensarmos nos ambientes enquanto partes de narrativas é o fato dos
jogadores terem suas experiências nessa camada vista como um espaço mediador. Jogos
eletrônicos possuem também outra camada que consiste em cálculos e programação de
códigos onde os jogos são primeiramente construídos. Tal camada normalmente não
aparece durante um jogo, surgindo somente em momentos em que um jogo “quebra” ou
ocorre algum problema (NITSCHE, 2008, p. 25). Essa camada seria o meio termo que
Aarseth aponta nos textos ergóticos, pois existe o jogador que interage com os controles
ligados a uma máquina e a máquina propriamente dita, que “interpreta” as ações do
jogador por meio dos cibertexos disponíveis no banco de dados do jogo e, por fim, as
representa na tela na forma imagens em movimento, podendo, assim, contar uma história.
A narrativa, então, seria um processo de construção dos elementos narrativos e espaciais
percebidos pelos jogadores. Deste modo, estes

Elementos narrativos evocativos encorajam os jogadores a projetar


significados dentro dos eventos, objetos e espaço no mundo do jogo. Eles
ajudam a infundir significados. Os valores não são realizados no nível do
elemento em si, mas na forma como os jogadores leem e os conectam. Criando
estas conexões, os jogadores podem formar narrativas que se referem ao
mundo do jogo. Se este significado atribuído se torna muito forte, os próprios

34
“Environmental storytelling creates the preconditions for an immersive narrative experience it at least
one of four ways: spatial stories can evoque pré-existing narrative associations; they can provide a
staging ground where narrative events are enacted; they may embed narrative information within their
mise-enscene; or they provide resources for emergent narratives.”
30

itens podem sair do espaço baseado em regras, espaço fictício, espaço social e
até mesmo o espaço do jogo. (NITSCHE, 2008, p. 44)35

A relação do jogador é fundamental para a percepção destes elementos, ou para


perceber ausências dentro da própria construção do espaço, como por exemplo vemos em
Kingdom Come, que é focado em uma realidade militar que demonstra alguns aspectos
da vida cotidiana dos aldeões. A construção de uma narrativa, ou de uma Bohemia do
século XV, é realizada de diferentes formas na medida em que os jogadores exploram
esse universo criado pelos desenvolvedores. Dentro destes elementos, Nitsche aborda
tanto sobre as construções narrativas dos jogos como sobre diferentes estruturas em 3D
que proporcionam a elaboração de diferentes formas de narrativa.

2.3.1 Constituindo narrativas

Um importante elemento, já discutido neste capítulo, que diferencia os jogos


eletrônicos de outras mídias, é a capacidade de agência e interação dos jogadores com a
narrativa apresentada ou criada por estes a partir dos elementos presentes no jogo (RYAN,
2009, p. 45). Uma problemática que Nitsche traz sobre as narrativas nos jogos é o seu
caráter obrigatório na agência, ou seja, é uma demanda exigida pelo uso do produto:

Em contraste com o leitor, que segue os eventos em um livro, o jogador em um


vídeo game é obrigado a agir para manter a máquina textual trabalhando.
Agência não é apenas uma opção, mas também uma demanda. Pode, inclusive,
se tornar uma maldição, por exemplo, em qualquer dilema moral que um jogo
possa apresentar para o interator e que demande uma decisão duvidosa.
(NITSCHE, 2008, p. 50)36

Nesse caso, são construídas linhas narrativas a partir das demandas dispostas em
uma narrativa principal e por elementos espalhados pelo mundo do jogo, elementos estes
que somente surgem e possuem sentido por meio dos jogadores quando estes têm acesso
a tais elementos (NITSCHE, 2008, p. 53).37 Um exemplo curioso aparece durante uma

35
“Evocative narrative elements encourage players to project meaning into events, objects, and spaces in
game worlds. They help to infuse significance. Their value is not realized on the level of the element
itself but in the way players read and connect them. Creating these connections, players can form
narratives that refer to the game world. If this meaning assignment becomes very strong, the virtual
items themselves can leave the rule-based space, fictional space, social space, and even the play space”.
36
“In contrast to the reader, who follows the events in a book, the player in a video game is obliged to act
in order to keep the textual machine working. Agency is not only an option but also a demand. It can
even turn into a curse, for example, in any moral dilemma that a video game might pose to the interactor
and that demands a dubious decision”.
37
“In a game, functions might be provided by the designer but are player dependent in their execution.
They do not arrange themselves into a given formula but are arranged by the player through their
execution in the game world”.
31

das missões principais em KC, no qual o protagonista investiga a circulação de moedas


falsas usadas para pagamento do exército inimigo. Durante a investigação em uma vila,
o jogador se depara com parte da população em frente a uma casa onde um homem havia
sido morto. Após conversar com o responsável pela investigação, Henry entra na casa e
vê a cena: um homem morto com algo escrito com seu sangue na parede. O protagonista,
no início do jogo, é analfabeto, não sabe ler nem escreve, Mas, a partir do momento que
entra em contato com homens de poder, um escrivão é indicado para ensiná-lo a ler. Se
Henry aprendesse a ler, identificaria a escrita em sangue como sendo “Judas”, dando uma
compreensão maior das razões que levaram tal personagem a ser morto.
As sequências de eventos que formam uma narrativa em um jogo ocorrem em
núcleos chamados de quest (missão), em um enredo principal, e sidequests (missões
secundárias) para tramas secundárias que podem ou não ter relação com a principal. Tais
elementos narrativos vêm na perspectiva que Ryan chamou de jogos narrativos (narrative
games), em que as narrativas vêm de cima para baixo, ou seja, são pré-produzidas dentro
de estruturas de eventos. Uma tática apontada por Ryan para tornar a interação atrativa
para os jogadores nesses jogos ocorrem de duas formas: o primeiro seria começar com
um conjunto de problemas a serem resolvidos, ações a serem tomadas, armas a serem
usadas, efeitos a serem criados, ou seja, o design da jogabilidade para então envolver tais
características em uma história. A segunda possibilidade consiste em, a partir de um
contexto histórico específico, inserir possibilidades de ação do jogador para torná-la
interativa (RYAN, 2009, p. 52). No caso de Kingdom Come, podemos pressupor que
ocorreu, a partir dos jogos narrativos, uma vez que se apropria de um recorte do passado
e insere elementos de jogabilidade e meios de ação em um contexto pré-existente e que
atraem o público mais pelo espaço apresentado do que pela narrativa focada em um
período de conflitos.
Outra característica narrativa apontada por Ryan e Nitsche na construção dos
enredos seria o uso de padrões utilizados pelos desenvolvedores. Um padrão muito
utilizado é o de monomito, discutido por Josehp Campbell em O Herói de Mil Faces
(1949). Campbell argumenta em sua obra sobre a existência de padrões narrativos nos
contos e nos mitos de todos os povos humanos. Sua abordagem buscou apresentar como
narrativas indígenas teriam elementos estruturais iguais na Grécia ou em qualquer outro
lugar do mundo. As narrativas compõem elementos universais divididos em três grandes
32

atos que possuem suas subdivisões. Alguns desses elementos comuns seriam: a existência
de acontecimentos que mudam drasticamente a vida comum que o herói possuía, mestres
que o orientam no enredo, testes, provocações e o caminho de volta.
Nitsche destaca que a maioria dos jogos, entretanto, não utiliza de tal método para
produzir suas histórias. Porém, a importância da obra de Campbell está no fato de poder
ser aplicada para a compreensão dos processos de desenvolvimento de um personagem
dentro de uma narrativa através da ação dos jogadores, portanto, mesmo que a narrativa
não siga os elementos apontados por Campbell, podem ser usados para compreender o
desenvolvimento do protagonista na narrativa (NITSCHE, 2008, p. 59). O
desenvolvimento dos personagens principais são o centro das narrativas e, em um espaço
3D, os jogadores têm a possibilidade de circularem com certa liberdade dentro do espaço
delimitado. Os eventos narrativos (quests), segundo Nitsche, só vêm à tona com a
participação do jogador (NITSCHE, 2008, p. 64).
A narrativa, desse modo, se apresenta enquanto fundamental dentro da estrutura
de um jogo que se propõe a ser histórico, uma vez que os elementos presentes na relação
do protagonista com os demais personagens darão a tônica de verossimilhança das
relações no século XIV. Contudo, o espaço em que o enredo se passa também é
fundamental para a imersão dos jogadores em uma Bohemia do século XIV.

2.3.2 Percepções e espaços

Para compreender a estrutura dos espaços virtuais, Nitsche realizou estudos


interdisciplinares, com reflexões e estudos de arquitetos, buscando primeiro compreender
a estruturas dos espaços reais para então se aprofundar nas características particulares dos
virtuais (NITSCHE, 2008, p. 14). O autor dividiu seu estudo dos espaços em duas partes
por meio dos conceitos de apresentação e funcionalidade:

Apresentação é compreendida como um elemento expressivo dos videogames.


Surge da necessária interpretação das regras e dados dentro de uma forma que
o jogador possa ler. A apresentação, nos atuais jogos comerciais, usa
predominantemente elementos audiovisuais. (...) Funcionalidade se refere ao
acesso interativo e às regras subjacentes que determinam o que o jogador pode
fazer no espaço de jogo e o que espaço pode fazer para se ajustar a isso.
(NITSCHE, 2008, p. 7)38

38
“Presentation is understood as the expressive element of video games. It grows from the necessary
interpretation of the processed rules and data into some form the player can read. Presentation in current
commercial video games uses predominantly audiovisual components. (...) Functionality refers to the
33

A apresentação, nesse caso, é a forma como os bancos de dados dos jogos é


interpretado pelas plataformas/hardwares (XBOX ONE, PC e Playstation 4 por exemplo)
e como às transmitem pelos monitores através de imagens em movimento e interativas.
A câmera virtual é um dos principais elementos de transmissão e dramatização de eventos
e ações que se desenrolam em uma narrativa (NITSCHE, 2008, p. 83).39 As câmeras são
as lentes que permitiram com que os jogadores experimentem um mundo virtual. As
escolhas de ângulos, assim como no cinema, podem apontar as intenções dos autores, pois
os ângulos em que os eventos são demonstrados procuram trazer diferentes sensações na
experiência de assistir e de jogar.
Uma característica que diferencia as câmeras de cinema das utilizadas na
produção de jogos é sua natureza matemática. Câmeras virtuais são entidades
matemáticas, elas não gravam uma luz refletida em um evento, mas sim criam uma
projeção de um ponto de vista imaginado (NITSCHE, 2008, p. 90)40, sendo assim, uma
força criativa geradora de experiências espaciais. É tradicional que um jogo possua um
tipo de câmera principal durante o jogo e sejam usadas outras durante diálogos ou
cinemáticas para assim ampliar a compreensão da história.
Porém, o uso de câmeras limitadas é propositalmente utilizado nos jogos para
suportarem sua funcionalidade, ou seja, a forma como as regras são apresentadas, pois,
diferente de câmeras de filmes, nos jogos a interação dos jogadores proporcionam
constantes alterações na movimentação, necessitando que a câmera apresente a ação de
uma forma compreensível para o jogador, tornando-a assim preparada para um conjunto
de ações possíveis dentro do jogo (NITSCHE, 2008, p. 93).41
Nitsche apresenta em seu livro vários estilos de câmeras e suas diferentes funções
nos jogos. Nos concentramos, aqui, em apresentar o modelo que se refere à câmera
utilizada na fonte, o estilo de câmera em primeira pessoa (first-person point of view). Esse

interactive access and underlying rules determining what the player can do in the game space and what
the space can do to adjust that”.
39
“dynamic movements of the camera are used to dramatize the events and the spaces in which the actions
unfold”.
40
“A virtual camera is a mathematical entity, not a physical one; it does not record the light emitted or
reflected by a certain event, but rather creates a projection of an imagined viewpoint on the monitor. It
modifies a light source instead of recording an existing one”.
41
“A fundamental reason cameras in games are limited in their performance is that the forms of presentation
of video game spaces have to support their functionality. Unlike traditional film, which tells a predefined
story without interactive access to the content, cameras in video games deliver the cinematic mediation
of events as they are instantiated by the interactor in the virtual world. Film cameras do not have to cater
to any possible changes of the unfolding events — virtual cameras do”.
34

modelo de câmera virtual é focado em apresentar um jogo a partir da perspectiva de uma


pessoa. Tal apresentação de mundo limitada é adotada como uma estratégia para o
jogador visualizar aquele mundo a partir dos olhos do personagem assumido (NITSCHE,
2008, p. 102).42
O uso da câmera em primeira pessoa, nesse sentido, tem a função de dramatizar
um enredo a partir do ponto de vista do personagem controlado pelos jogadores.

Resumindo, o desenvolvimento da visão em primeira pessoa permanece


centrada no personagem, mas elabora possibilidades de encenar esse
personagem em momentos mais precisos e dramáticos no mundo do jogo. O
mundo do jogo é em si mesmo conscientemente usado como uma forma de
estrutura visual para a apresentação e alguns indicadores apontam para um
controle direto da imagem. As combinações de todas estas características
introduzem uma mais estruturada e dramatizada versão aparentemente fixa do
jogador no ponto de vista em primeira pessoa. (NITSCHE, 2008, p. 108)43

Essa possibilidade de realizar uma narrativa interativa que seja atrativa e


instigante com tal perspectiva de câmera é uma característica que, embora funcione em
alguns filmes, principalmente do gênero terror, não é tão amplamente usada pelos
diretores. Em jogos, porém, há diferentes gêneros que se utilizam de tal câmera para
atribuir ao jogador a experiência de que ele faz parte da narrativa do jogo ao apresentar o
mundo através dos olhos de uma pessoa. Em jogos de conflitos armados, por exemplo, a
câmera em primeira pessoa é muito utilizada pois proporciona a visão dos personagens
no mundo, mas principalmente no porte deste de uma arma, podendo mirar e atirar com
ela de uma maneira realista, sendo essa, inclusive, a principal forma de propaganda destes
jogos: o realismo e diferenciação de cada arma. Já em jogos de terror a câmera possibilita
uma experiência de medo constante pelo fato da visão se limitar a uma direção, pois,
quando a câmera fica atrás do personagem controlado, muitas vezes os jogadores têm a
liberdade de movimentá-la em um ângulo cego do protagonista, diminuído os sustos e o
clima de tensão na experiência.
A câmera, em Kingdom Come, nos momentos de jogabilidade, tem a função de
apresentar a dificuldade de sobrevivência naquele contexto. No jogo pode-se perceber
que a câmera em primeira pessoa possui duas funções: uma primeira seria a contemplação

42
“The first-person point of view is usually tied to the view of one fictional character (or object) that
operates inside the video game space and under the control of an interactor. Again, technical limitations
were part of the development of the visualization strategy”.
43
“To summarize, the developments of the first-person point of view remain character-centric but elaborate
on the possibilities of staging this character in more precise and dramatic moments in the game world.
The game world itself is consciously used as a form of visual frame for the presentation and some
indicators point back to a direct control of the image. Combinations of all of these features introduce a
more structured and dramatized version of the seemingly player-fixated first-person point of view”.
35

do jogo, pois, uma vez que este é apresentado enquanto o mais realista historicamente,
apresenta-lo em um câmera em que tudo o que o jogador observa faz parte do espaço
representado da Bohemia do século XIV auxilia na percepção de autenticidade do recorte
representado. A segunda função seria a de possibilitar uma experiência realista de como
eram as lutas no período, pois, além de haver uma mecânica de jogo difícil, a câmera
limita a visão dos jogadores44 em uma direção, forçando-os a enfrentarem um número
reduzido de inimigos, além de que, para o sucesso no embate, o jogador seja forçado a tê-
los todos no seu campo de visão.

Imagem 1 – Visão em primeira pessoa (a esquerda com um capacete sem visor e a direita com visor).
Fonte: jogo Kingdom Come Deliverance. Imagem produzida pelo autor.

Já o segundo aspecto espacial discutido por Nitsche, a funcionalidade, é o que

(...)descreve o que um jogador pode e como pode fazer em um jogo. É um


produto das bases de regras procedimentais das mídias digitais, que permitem
usos dinâmicos e mudanças dos dados do jogo. Muitos sistemas aplicam
técnicas procedimentais, incluindo inteligência artificial, sistemas ficcionais
interativos e simulações. (NITSCHE, 2008, p. 157)45

Trata-se, portanto, do espaço e dos elementos que compõe a representação virtual


em que os jogadores interagem durante a experiência e que respondem às ações realizadas
durante a atividade. Desse modo, para Nitsche, os objetos disponíveis para observação e
interação, bem como os personagens controlados pela inteligência artificial do jogo e seu

44
O estilo de câmera em primeira pessoa já é um modelo de câmera que visa limitar visão dos jogadores.
Em KC, quando o jogador utiliza um capacete que protege toda a cabeça a visão fica ainda mais limitada
A proteção de rosto é colocada somente em momentos de confronto, pois os jogadores passam a ver
somente a partir deste visor.
45
“(...) describes what a player can do in a game and how. It is a product of the rule-based procedurality
of digital media, which allows for the dynamic use and change of game data. A lot of systems apply
procedural techniques, including artificial intelligence, interactive fiction systems, and simulations.”
36

conjunto de ações e reações, são elementos evocativos narrativos no espaço virtual que
só ocorrem a partir da interação do jogador, permitindo, desse modo, compreensões
subjetivas sobre o que é apresentado (NITSCHE, 2008, p. 159).46
Nitsche, em seu livro, busca usar exemplos de espaços reais como metáforas para
compreender a construção do mundo virtual, sendo estes: playground, sand box e garden.
O parquinho (playground) seria um espaço onde as crianças e jogadores poderiam
interagir em um amplo espaço com relativa liberdade de circulação, porém, sem a
possibilidade de realizar qualquer alteração na estrutura apresentada. A caixa de areia
(sand box) seria um espaço em que as crianças ou jogadores construiriam suas estruturas
a partir dos elementos disponíveis no espaço, podendo, inclusive, destruir e construir
novas estruturas. Já o jardim (gardem) seria um espaço pensando enquanto ambiente
interligado, como um ecossistema, aponta Bello, onde cada ação poderia alterar parte do
espaço representado (2016, p. 162).
Além destas metáforas já existentes, Nistche discute outras três: os trilhos, os
labirintos e as arenas. Os trilhos são definidos como trajetos entre dois pontos. Jogos com
tal formato possuem uma exploração muito limitada enquanto parte da experiência que
os desenvolvedores quiseram apresentar, favorecendo assim a dramaticidade do enredo,
uma vez que faz com que os jogadores percorram um caminho para chegar a um ponto
onde há eventos e encontros marcantes, possibilitando um maior engajamento emocional
para os jogadores nessas ocasiões (NITSCHE, 2008, p.172-6).
Quanto ao labirinto, Nitsche aponta quatro tipos: os não lineares, com múltiplos
cursos, o linear, de um único curso47, o labirinto de rizoma, onde cada parte pode ser
conectada com qualquer outra e, por fim, o labirinto lógico, que depende das condições
de acesso. Um exemplo de labirinto lógico é o jogo Resident Evil II (2019),48 onde o
espaço é uma delegacia com vários caminhos fechados ou bloqueados, sendo todos
interligados, porém com o acesso sendo liberado somente conforme o jogador o explora.
O foco, nesse tipo de estrutura espacial, é o da movimentação por um local restrito que
molda a experiência nas missões.

46
“A designer of 3D video games uses evocative narrative elements in the virtual space and the interactive
access to stimulate the player’s participation and comprehension of the game world”.
47
Esses dois primeiros tipos de labirinto também são apontados na introdução da obra de Aarseth por nós
utilizada.
48
Esse jogo é uma versão atualizada de um jogo com o mesmo nome, lançado em 1998. A versão de 2019
mantém a narrativa do original, mas trouxe novas mecânicas, gráficos e uma jogabilidade diferente.
37

As arenas, por sua vez, são grandes espaços que permitem uma movimentação
livre, além de proporcionar uma alta visibilidade do local (NITSCHE, 2008, p. 183). São
espaços fechados, com barreiras ou cercas com pouca exploração, sendo mais usada em
jogos para fins de combates. Bello, em sua dissertação, analisa essas seis estruturas
enquanto partes que dialogam dentro de um jogo (2016, p. 162-163). Um videogame que
se caracteriza enquanto playground e também pode conter missões em trilhos em que o
jogador deve ir de um ponto a outro, correndo o risco do cancelamento ou falha desta se
mudar de percurso no meio do caminho.
Kingdom Come se enquadra enquanto um jogo cujo espaço é o playground, onde
o jogador assume o personagem Henry numa região da Bohemia no século XIV-XV com
seus castelos feitos com tijolos, muros de pedra e madeira, casas, vilas e florestas prontas
sem que seja permitido ao jogador modificar o espaço de forma livre. As missões
principais possuem o elemento dos mapas de trilhos, porém, a maioria das missões,
primárias e secundárias, são mais livres, podendo ser iniciadas em um momento e
completadas semanas depois do início, havendo poucas exceções à regra no decorrer no
jogo.

2.4 JOGOS HISTÓRICOS

Ao longo deste capítulo, procuramos realizar um afunilamento da pesquisa,


iniciando com uma discussão sobre o que seria um jogo, para então pensarmos sobre os
jogos digitais, compreendendo-os a luz de três chaves teórico-metodológicas, bem como
uma reflexão sobre a narrativa e o espaço. Tais apresentações são importantes quando
analisamos os jogos de “gênero histórico”, pois, a argumentação dos ludologistas é válida
uma vez que coloca como fundamental o papel dos jogadores na relação com uma
máquina, que realiza simulações a partir dos comandos dos jogadores, dentro daquilo que
é construído no sistema de regras do jogos, além do fato de que nem todos os jogos
necessariamente possuem narrativas em sua construção ou proporcionarem elementos
claros para a criação independente pelos jogadores.
Por outro lado, as contribuições dos narratologistas são essenciais, pois o
elemento narrativo, dentro dos jogos, cresceu muito com o passar das décadas. Seja
através de narrativas concretas ou abstratas, um enredo existe, seja estando ele já presente
no jogo ou sendo produzido por aquele que joga (RYAN, 2009, p. 52). Daí vem a
importância da terceira teoria, fundamentada por Bogost, que procura pensar ambos os
38

aspectos, lúdicos e narrativos, dentro de uma noção de retórica, de persuasão a partir de


um sistema complexo de regras, fruto de escolhas dos desenvolvedores.
Pensar nessa relação lúdico narrativa é fundamental quando nos lançamos para
analisar os jogos históricos, pois é construída uma imagem sobre um passado tanto nos
elementos narrativos, como espaciais e estéticos (roupas e arquitetura por exemplo). A
representação histórica, deste modo, perpassa essas diversas camadas que compõe um
jogo (URICCHIO, 2005, p. 327).
Uricchio procura pensar os jogos históricos não enquanto um gênero de jogos,
mas enquanto um espectro para implicações e possibilidades de representações e
simulações históricas. Ou seja, para Uricchio o apelo histórico em um jogo varia, havendo
jogos que procuram restringir os jogadores a um cenário específico com uma ideia de
máxima aproximação com o fato ocorrido, enquanto outros jogos procuram
representar/simular por meio de processos históricos abstratos ou estruturais. Ambos os
espectros possuem um caráter especulativo, a ideia do “e se”, não somente se aplicando
um aspecto narrativo, mas à agência atribuída aos jogadores dentro do espaço histórico
criado (2005, p. 328).
Outro importante aspecto trabalhado pelo autor é referente às representações e
simulações. Para Uricchio, os jogos são máquinas que simulam e, assim, produzem
representações hipotéticas:

Diferente de uma representação, que tende a ser de natureza fixa, uma


simulação é um processo guiado por certos princípios. Simulações são capazes
de gerar incontáveis encontros que podem, subsequentemente, serem fixados
como representações, isto é, como narrativas ou imagens ou soma de conjuntos
de dados de um particular encontro simulado; enquanto a representação não
necessariamente gera ou incluí dentro de sua simulação. (URICCHIO, 2005,
p. 333)49

Ou seja, as representações históricas são construídas pelos jogadores. A percepção


sobre o contexto desenvolvido no recorte do jogo, através dos elementos encontrados na
simulação, elementos já presentes nos dados, mas não no campo de visão dos jogadores,
possibilita diferentes representações históricas a partir das ações de cada jogador no seu
envolvimento com o jogo. No caso deste trabalho, no decorrer do capítulo II, para
analisarmos as representações de poder em KC focamos nas análises das representações

49
“Unlike a representation, which tends to be fixed in nature, a simulation is a process guided by certain
principles. Simulation is capable of generating countless encounters that may subsequently be fixed as
representations, fixed, that is, as narrative or image or data set summations of a particular simulated
encounter; whereas representation does not necessarily generate or include within it simulation”.
39

presentes na narrativa principal por meio de diálogos e cutscenes com algumas


possibilidades dentro da apresentação do espaço virtual. Tal análise dialoga com o
conceito de texto ergótico, de Aarseth, apresentado anteriormente, em que temos, em cada
experiência, acesso apenas partes do todo, bem como também dialoga com o conceito de
espaço de Nitsche, onde este contribui efetivamente para uma compreensão da narrativa
abordada nos jogos, seja por meio da construção do ambiente, seja pelos elementos e
missões presentes nestes locais.
Em termos historiográficos, após a década de 193050 a ideia de alcançar uma
verdade universal deixou de ser um objetivo para os historiadores não só por não se ter
acesso a todas as fontes de um recorte, mas também i) pelo fato de que a própria escrita
ocorre a partir de seleções de problemáticas, fontes e bibliografias, possibilitando pensar
na escrita dos historiadores enquanto processos narrativos por meio de procedimentos
metodológicos, e ii) pelo fato do próprio passado não ser de uso exclusivo da História,
nem somente das ciências.51 Tais problemáticas, como a não-hegemonia do passado da
História, bem como a impossibilidade de se alcançar uma verdade, são trazidos pelos
historiadores e designers que pensam nos jogos históricos.
Outro importante conceito trabalhado nessa relação entre História e jogos
históricos é o conceito de “autenticidade histórica”. Segundo Salvati e Bullinger:

Esta negociação entre detalhe histórico e elementos fictícios de uma história


são o coração da autenticidade seletiva, que está mais preocupada com criar
uma “sensação” e “experiência” do que uma fidelidade factual precisa. Não é
fato vs. ficção por si, mas sim quais elementos figuram em primeiro plano
como estabelecendo autenticidade, e quais desses estão ausentes. (2013, p. 157,
In: KAPPELL; ELLIOT)52

Tal percepção é associada não somente aos fatos históricos, mas à forma como
são apresentados no jogo, possibilitando uma experiência que se pareça autêntica. Essa
atmosfera de autenticidade, para Salvati e Bullinger, pode ser atribuída de diferentes
formas, como: fetichismo tecnológico, convenções cinemáticas e autoridade derivadas na

50
Nos referimos aqui ao grupo de historiadores sociais, franceses e britânicos, da revista do Annales.
Destacamos alguns dos historiadores que fizeram parte da revista: Marc Bloch, Lucien Febvre, Fernand
Braudel, Lucie Varga, Jacques Le Goff e Marc Ferro.
51
Sugestões de leituras: para se pensar na História enquanto um processo narrativo, Hayden White (2001).
Para pensar nessa apropriação do passado, Keith Jenkins (2006).
52
“This negotiation between historical detail and the fictive elements of storytelling are at the heart of
selective authenticity, which is concerned more with creating a “feel” and “experience” than with strict
factual fidelity. It is not fact vs. fiction per se, but rather which elements are foregrounded as establishing
authenticity, and which of those are absent”.
40

forma de documentário (2013, p. 157, In: KAPPELL; ELLIOT).53 Em KC pode-se pensar


em algumas das formas criadas pelos desenvolvedores: 1) na jogabilidade, seu estilo de
jogo simulador busca trazer um maior realismo durante o jogo, nos combates, na
movimentação e na sobrevivência do protagonista no recorte e no desenvolvimento de
habilidades durante o jogo. O jogador, deste modo, aprimora o conhecimento sobre o jogo
e sobre o contexto do século XIV, tanto na jogabilidade como na quantidade de
informações presentes no códice do jogo; 2) assim, ao trazer toda uma construção artística
do recorte, introduz os jogadores com uma cinemática que explica o recorte com a
manifestação artística do contexto; e, por fim, 3) o uso de fontes para a criação do período
e personagens reais em sua narrativa segundo os desenvolvedores.54
A construção desse passado autêntico ocorre não só ao buscar legitimidade no
passado, mas com o conjunto de percepções contemporâneos que existem sobre esse
passado em nossa sociedade.55Pensando essas características, alegadas pelos
desenvolvedores como presentes no jogo, poderíamos recorrer a Bello, que afirma que

As representações, sejam narrativas-discursivas, sejam de espaços ou de


personagens ou unidades sempre remetem a um conhecimento e a uma
representação mais ampla sobre a História que ultrapassa as fronteiras do
próprio jogo e recorre ao imaginário histórico construído tanto
educacionalmente, como por filmes, livros e outros produtos da Indústria
Cultural. (2016, p. 58)

Há uma extensa lista de filmes, livros ou séries que têm um contexto medieval em
seu enredo, utilizando como recorte elementos das cruzadas, da cavalaria, do poder da
Igreja e da figura dos reis daquele período. Tais representações, segundo Clemens
Reisner, por sua vez, também atribuem autenticidade ao produto, uma vez que compõem
um imaginário amplamente consumido.56 Kingdom Come, assim, está inserido em um

53
Nesse caso, os autores elencam tais pontos para refletirem sobre os elementos de autenticidade presentes
em um jogo específico. Acreditamos que estes três pontos não se aplicam a todos os jogos históricos,
nem que sejam os únicos elementos possíveis de se elencar.
54
Durante uma apresentação, no evento Digital Dragons, de 2018, o desenvolvedor chefe, Daniel Vávra
aborda sobre KC ser um jogo Histórico. Nela constrói sua argumentação do porquê seu jogo é histórico
e fidedigno pelo fato de usarem fontes que abordam diversos aspectos da realidade daquele período,
sendo inseridos em alguns momentos da narrativa e em missões secundárias, por exemplo. A
apresentação está disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=puXwyIDCQCg>. Acessado
em: 13/06/2019.
55
Menções a filmes poloneses sobre a Idade Média, bem como obras cinematográficas que destacam o
período na Grã-Bretanha e na França, por exemplo. Entre os minutos 7:00 e 13, aproximadamente.
56
“The idea of what constitutes an authentic representation, however, is subject to the culture of history
in a certain period, i.e. a set of conventions that have been socially agreed upon as being historically
accurate. This set of conventions leads back to the concept of a “cultural archive”introduced above and,
as the focal point is on sociocultural potency, is not limited to conventions from the historic sciences
but includes products of popular culture as well” (2013, p. 249, In: KAPPELL; ELLIOT). No caso de
41

contexto onde cada vez mais as fontes se tornam acessíveis, sendo utilizadas para além
de artigos, dissertações e teses. No capítulo a seguir buscamos problematizar as
representações desse passado apresentado no documento.

Reisner, o autor aborda sobre o jogo Call of Duty: Black Ops (2010), mas também serve para pensarmos
em KC.
42

3 KINGDOM COME

3.1 NARRATIVA E PROBLEMÁTICAS

Após a apresentação dos elementos e discussões que constituem os jogos em geral,


resta, antes de dirigir-se para as análises de representações mais pontuais, apresentar
algumas problemáticas pontuais que constituem tanto a narrativa principal quanto o
espaço virtual e suas características de jogabilidade que compõe o documento.
A história do jogo se inicia no prólogo com o protagonista contextualizando os
jogadores sobre o recorte em que narrativa ocorre. Ele apresenta, brevemente, o bem
sucedido governo do Imperador do Sacro Império e Rei da Bohemia, Charles IV, e o
governo lamentável de seu herdeiro, Wenceslas IV, bem como a disputa que passou a
ocorrer entre Wencelas IV e seu irmão, Sigismund, pela coroa do Reino da Bohemia.
A trama principal em KC percorre a jornada de Henry, filho e aprendiz do ferreiro
de Skalitz, no ano de 1403, em meio a uma intensa disputa pela coroa do Reino da
Bohemia entre as forças dos irmãos Wenceslas IV e Sigismund. A narrativa percorre a
inserção do protagonista em meio aos conflitos entre as forças destes dois Reis. Após
perder sua família em um assalto das forças de Sigismund sobre Skaliz, Henry procura
retornar a vila e enterrar seus pais assassinados. Porém, é atacado por bandidos e tem a
espada, feita por seu pai para o governante de Skalitz (Sir Radzid), roubada neste
momento.
A partir daí se inicia a jornada de Henry enquanto membro das forças de Sir
Radzid, numa forma de reconquistar sua honra, recuperando a espada roubada, e vingar-
se do assassino de seus pais. O protagonista passa a interagir com nobres importantes da
região como: Sir Hanush de Leipa (Hanus of Lipá), Sir Hans Capon (Jan Ptácek); que
são, respectivamente, o tutor e o nobre de menoridade, herdeiro por direito a região de
Rattay e Sasau, bem como Sir Divish, Lorde de Talmberg. A narrativa de KC percorre,
por diversas missões de caráter investigativo, chegando inicialmente ao grupo de
bandidos que roubaram a espada de Sir Radzid e auxiliaram no saque a Skalitz. No
momento seguinte da história, há a necessidade do protagonista se infiltrar no exército de
mercenários inimigos. Para isso, os jogares precisam conquistar a confiança dos
mercenários infiltrando-se no monastério, localizado na cidade de Sasau e matando um
antigo companheiro que os traiu e que buscou proteção tornando-se noviço.
43

Após provar que havia matado o traidor, Henry descobre a segunda localização
do exército inimigo, composto por mercenários liderados por um nobre apresentado no
início da narrativa, Sir. Istvan, que estava ao lado de Sir Radzid momentos antes do saque
à vila de Henry. Capturado, os jogadores descobrem, por Sir Istvan, que Henry, na
verdade, era filho bastardo de Sir Radzid. Em seguida, o protagonista consegue escapar
da fortaleza dos inimigos, avisa Sir. Radzid, bem como os nobres aliados que organizam
um ataque final à fortaleza.
O ataque acaba sendo um sucesso. As forças inimigas são derrotadas, mas seu
número, porém, era menor. Os nobres descobrem que Sir Istvan, junto com grande parte
de suas forças, marcharam rumo a Talmberg, onde acabam por capturar Lady Stephanie
e Sir Radzid. Daí em diante, a narrativa é marcada pela realização de um cerco ao castelo
da vila. Em seguida, ocorre o conflito e a vitória das forças aliadas do protagonista. O
trecho se encera com a negociação da libertação dos cativos em troca de salvo conduto
para Sir Istavan e seus homens. Em seu epílogo, ocorre a reunião dos nobres com Jobst
da Moravia, nobre poderoso e primo de Wencelas IV e de Sigismund. Os eventos políticos
entre os irmãos são aprofundados, apresentando o conflito da história enquanto uma
pequena parte de algo maior. A narrativa tem fim com a cavalgada do grupo de Sir Capon,
junto com Henry, para investigar as opiniões de nobres bohêmios aliados de Sigismund.57
Kingdom Come possui 30 missões principais, destas, 29 sendo necessárias para se
“completar” a narrativa central do jogo. A missão que não é completada é denominada
vingança. Ela se inicia após a tentativa do protagonista de enterrar seus falecidos pais e
percorre todas as missões que seguem a trama principal. Henry busca encontrar e se
vingar dos homens que mataram seus pais e roubaram a espada forjada para Sir Radzid.
No documento, mais precisamente no prólogo, é apresentada a morte de Charles
IV e a deposição de Wenceslas IV, bem como eventos sem uma separação cronológica
definida, dando a impressão que esses acontecimentos ocorrem em um curto intervalo de
tempo. Porém, Charles IV morreu em 1378 e Wenceslas IV foi destituído somente em
1400. Mas qual a razão dessa separação temporal não ser apresentada? Em primeiro lugar,
tal construção apresentada sobre os dois personagens criam duas imagens opostas. A
imagem daquele que seria o rei ideal e daquele que não seria. Porém, ao não realizar uma
separação devida, pois vinte anos de reinado não é algo a ser ignorado, pode-se supor que
tal apresentação é trazida pelos desenvolvedores numa forma de engrandecer sua própria

57
A narrativa principal de Kingdom Come Deliverance é descrita de forma mais detalhada nos anexos
desta monografia.
44

história nacional, uma vez que Charles IV é reconhecido, também por historiadores, como
um dos maiores monarcas do seu tempo.58
Já em meio à trama, na missão Uma visita inesperada, se observa um primeiro
choque narrativo: um conflito de identidades. O protagonista, junto com seus amigos,
observa uma conversa entre o Bailiff59de Skalitz e mais dois homens. A discussão gira
em torno de um assunto político: sobre quem era, ou deveria ser, o rei da Bohêmia. Um
destes homens, vestido claramente com roupas mais elegantes, era germânico. Em
seguida, o protagonista e seus amigos têm a possibilidade de vingar-se deste indivíduo
por seus comentários contra Wenceslas IV, jogando fezes em sua casa. O ato ocorrerá
independente de Henry e os jogadores aceitarem ou não realizar. Porém, este é o primeiro
de alguns outros problemas sociais que se encontram no jogo com respaldo
historiográfico encontrado durante a pesquisa.60 Como aponta Claude Michaud, o
problema interétnico já é existente na primeira metade do século XIV. Na Bohemia, havia

(...) uma elite urbana burguesa alemã, ávida por reconhecimento,


simultaneamente oposta à burguesia tcheca em desenvolvimento e, sobretudo,
da nobreza tcheca rural, defensora das maneiras e costumes bohêmios; o clero
mendicante alemão contra os seculares tchecos – em resumo, tensões
economicas, políticas, religioss e etno-linguisticas alimentavam as demandas
de um sobre o outro. (MICHAUD, 2008, p. 763)61

Inimizades entre alemães e bohêmios são apresentadas, pelo historiador, por meio
de duas obras do período que abarcam uma noção de identidade própria do povo do Reino
da Bohemia através de seus símbolos (o Reino da Bohemia, o fato deste mesmo reino
possuir um bispado em Praga, e principalmente, pela língua). No jogo, tensões como essa
aparecem apenas em momentos pontuais. Tal desavença étnica entre esses dois povos só
aparece nesses momentos da narrativa, não aprofundando a questão, possibilitando tanto
pensar que era um aspecto comum daquele período, no sentido histórico, ou como apenas

58
“With the death of Charles, Europe lost not only cits most cultured medieval monarch (the list of his
own writings is impressive, cand includes educational and theological as well as historical works), but
also a monarch who created a great political and ideological conception, to whose realisation he was
completely dedicated” (HLAVÁCEK, 2008, p. 556).
59
Oficial de justiça das vilas. Agiam como administradores de pequenas vilas em nome dos senhores
(FREEDMAN, 2008, p. 88).
60
Alguns pontos, que não serão tão aprofundados nos próximos tópicos, terão um pequeno espaço de
discussão no 3.1.1.
61
“(...) an elite urban German bourgeoisie eager for recognition, simultaneously opposed to the developing
Czech bourgeoisie and, above all, the rural Czech nobility, defender of Bohemian manners and customs;
German mendicant clergy against Czech seculars – in short, economic, political, religious and ethno-
linguistic tensions fed the demands of one upon the other.”
45

um elemento pontual colocado pelos desenvolvedores numa forma de legitimar


historicamente o jogo, apresentando relações existentes no período.
Na missão De volta ao lar, o protagonista, proibido por Sir Radzid de sair de
Talmberg, busca ajuda de Lady Stephanie, esposa do lorde Divish, para escapar dos
muros do castelo, numa missão de enterrar seus pais, dando a eles um enterro digno e
cristão, garantindo, assim, a salvação da alma destes. Este é um dos poucos momentos
em que se observa uma preocupação do protagonista na esfera religiosa. Não temos aqui
elementos bibliográficos para aprofundarmos a questão, porém, a cristandade permeava
boa parte do continente europeu neste período. Uma das possibilidades para se pensar
essa ausência da fé religiosa no jogo pode advir da própria natureza do produto. Kingdom
Come se trata de um jogo que retrata principalmente um conflito da nobreza na Europa
Central. A centralização da narrativa na temática militar pode ter sido uma opção dos
desenvolvedores para focar-se naquilo que atrai o público quando se pensa em Idade
Média: guerras e cavaleiros.
Outras duas missões em KC, A presa e A caçada começa, trazem interessantes
assuntos. Ao iniciar A caçada começa, Henry é chamado por Sir Hanush e Sir Radzid
para relatar o ocorrido durante a caçada na floresta. Após o relato, o protagonista é
presenteado com um cavalo, magro e meio moribundo. É marcada a reação do capitão da
guarda ao saber que o jovem, recém adentrado na guarda, já conseguira tamanho benefício
dos nobres. Ao observar os demais equinos do jogo, é perceptível que o cavalo dado ao
protagonista é inferior (desnutrido, fraco e medroso).62 Na missão A presa, quando Sir
Capon e Henry vão caçar, enquanto o nobre vai a cavalo, o protagonista vai correndo
atrás junto com dois cachorros. A posse de equinos é apresentada no jogo enquanto um
bem de distinção social. O cavalo que o protagonista ganha, no entanto, é fraco e magro
se comparar até com os equinos usados pelos soldados da guarda de Rattay. Pode-se
pensar em Phoebe, o nome da égua, enquanto um bem que dá prestígio ao protagonista,
se compará-lo com as demais pessoas que não possuem, mas ao mesmo tempo, inferior
aos que também possuem um ou mais cavalos.

3.1.1 A construção da narrativa, do espaço e da ludicidade

62
Os jogadores, ao chegarem perto de outro cavalo, que não o seu, podem comparar características entre
os animais como: quanto peso consegue levar, a velocidade que pode alcançar e a coragem do animal
no caso de encontrar inimigo. Ao se assustar, o cavalo derruba o protagonista.
46

Vingança, batalhas, honra e negociações aparecem na história de Kingdom Come¸


perpassando a trama e sendo acentuada em ações e diálogos. Para realizar uma análise, é
necessário que, de início, separemos os aspectos lúdico-narrativo do aspecto histórico.63
Retomando discussões realizadas no capítulo anterior, Nitsche discute sobre a
construção de algumas narrativas em jogos eletrônicos, bem como filmes e seriados de
televisão que utilizam a premissa da “Jornada do Herói” da obra de Campbell (NITSCHE,
2008, p. 59). À primeira vista, mesmo que tal concepção não seja explícita no jogo, os
jogadores podem “desenvolver” o herói/protagonista, elemento comum nas jornadas de
heróis.
Para além da construção da narrativa de jogos, alguns elementos desta podem ser
vistos na análise de Dominique Barthélemy em A Cavalaria: da Germânia antiga à
França do século XII64 (2010), quando o autor trata das narrativas do século XII:

Os heróis das canções de gesta têm pelos monges, clérigos, e mesmo bispos,
uma condescendência que muito frequentemente se torna em desprezo franco
e trivial. Quanto aos camponeses, eles não têm lugar nesse mundo de
guerreiros a não ser pela frequência de insultos que os nobres trocam entre si,
tratando-se por ‘servo’ e ‘colliverto’. A servidão se revela decididamente como
o melhor meio de promoção da Cavalaria. De mulheres, enfim, as canções de
gesta não falam mal demais, mas elas as deixam, em geral, em segundo plano,
provavelmente aquém de seu papel real na sociedade feudal.
(BARTHÉLEMY, 2010, p. 463)

No caso da citação, o autor discute sobre o que denomina como a “primeira fase
das canções de gesta”: canções que utilizavam figuras dos tempos de Carlos Magno, dos
séculos VIII e IX, na Francia. Tais narrativas possuem diferenças extremamente
demarcadas com a narrativa presente no jogo. Por exemplo, na Canção de Rolando, uma
das mais famosas trabalhadas pelos historiadores, que têm como inimigos os sarracenos,
eixstem reviravoltas no mundo cristão quando um personagem se alia a um não-cristão
para buscar vingança contra injustiças sofridas. O autor defende que essa construção,
embora retratasse personagens de séculos anteriores, seria mais uma manifestação dos
autores do século retratado (BARTHÉLEMY, 2010, p. 464).

63
No sentido de separarmos devido a diferentes características que compõem as duas áreas.
64
Está nota servira para deixar claro o porquê do uso desta obra. Temos a noção das distâncias tanto
temporais como cronológicas das fontes de Barthélemy daquelas utilizadas para a criação da
representação em nossa documentação. Porém, há concepções que, embora tenham sofrido alterações
com o passar dos séculos, ainda possam existir no século XIV-XV com modificações que permitam,
em alguma escala, uma comparação. A ideia dos cavaleiros sofreu mutações, mas ainda é viável a
análise ao se respeitar as diferenças e pontuá-las. Outra razão é o fato do Sacro Império Romano
Germânico, bem com seus reinos internos, estarem em contato constante com os demais reinos e
principados da crinstandade, bem como de outros povos do período.
47

Dentro dos elementos comuns, entre a narrativa do jogo e as canções de gesta,


temos a própria ausência das mulheres enquanto personagens com forte presença na
trama. As únicas mulheres que possuem alguma participação são Thereza e Lady
Stephanie. Seus momentos, porém, embora significativos, ficam às sombras das ações
dos homens, nobres, na trama. A importância das figuras femininas na História vem
crescendo com pesquisas sobre as mulheres feitas por historiadores e historiadoras desde
o século XX. Na atualidade, personagens femininas fortes são cada vez mais comuns no
mundo do entretenimento.65 E não apenas como protagonistas, mas como parceiras com
forte personalidade que não fazem apenas o papel de “par romântico” do protagonista.
Como em KC o papel feminino é minimizado, isso possibilita pensar justamente
que esse jogo foi criado visando uma imagem medieval onde os grandes fatos são
realizados somente por figuras masculinas. Tal construção também se apresenta nas
canções dos séculos XII e XIII, que influenciaram a formação de um ideal de cavaleiro
nos séculos XIV e XV. Porém, da nossa perspectiva atual, podemos ver tal apagamento
das personagens, no qual a postura referente as figuras femininas não vêm do contexto
representado, mas da ideologia dos desenvolvedores. Trabalhar tal problemática é
importante, mas fugiria do objetivo proposto na pesquisa e, por isso, deixaremos esta
temática em aberto para pesquisas futuras.
Outro elemento narrativo que traz semelhanças é o insulto nobre ao se utilizar de
figuras camponesas para atingir outro nobre, ou o fato de tratarem camponeses como
inferiores. Em determinado momento, próximo do final da narrativa, Sir Capon, durante
um diálogo com Henry, se expressa: “é muito melhor para mim, um nobre, ser amigo de
um nobre bastardo do que de um aprendiz de ferreiro”66 (KINGDOM COME, 2018).
Deixamos em aberto para interpretações se amizades de nobres com camponeses não seria
algo bem visto pelos demais membros da nobreza. Outra possibilidade pode ser
estabelecida ao se considerar a narrativa do jogo com uma história de um herói que luta
contra injustiças e possui um importante papel na trama. Embora Kingdom Come seja um
jogo, a morte ou derrota durante uma batalha, em raros momentos, é considerada
enquanto uma opção para a narrativa. Se os jogadores morrem, podem reiniciar o jogo
para o último momento salvo e tentar novamente. A morte, no jogo, somente é definitiva
no nível de maior dificuldade. Logo, a narrativa principal é desvinculada da experiência

65
Como os novos jogos da série, Tomb Raider lançados em 2013, 2015 e 2018, protagonizados por Lara
Croft.
66
“It’s much better for me, a Nobleman, to be friend of a Noble Bastard rather than a blacksmith’s”.
48

lúdica em si, tornando possível realizar essa comparação onde os heróis vencem – seja na
batalha física, na moral e/ou na ideológica.
Ao retomarmos a trama e a jornada do herói, percebemos que possuem traços que
se assemelham ao trabalho de Campbell. Pode-se notar os passos da jornada do autor na
narrativa do jogo.67 Por exemplo, o primeiro momento do choque de realidade na trama
ocorre durante o assalto das forças de Sigimund à Scalitz. Outro elemento seria o de
encontrar um mentor, que no caso é Sir Radzid Kobyla, que coloca o protagonista,
inicialmente, enquanto seu escudeiro, servindo aos interesses do nobre e sendo enviado a
diversas missões cuja confiança e a capacidade do protagonista em si seriam mais
contestáveis se Henry não fosse o protagonista. Em toda a narrativa, o protagonista e os
jogadores são colocados diante de inimigos, onde devem cada vez mais superá-los,
conquistando maior prestígio entre os nobres. A ascensão, antes da descoberta sobre o
verdadeiro pai de Henry, abria a possibilidade de discutir a ascensão social fora de um
padrão considerado hierarquizado do período medieval. Embora a bastardia seja
problemática, canções que colocavam um bastardo em melhor posição que um camponês
eram comuns já no século XII.
O ponto mais importante da história principal é o seu “final”. Após a grande
batalha no cerco, não há de fato um encerramento, uma vez que a narrativa deixa bem
claro que os acontecimentos ali são uma pequena parte de uma disputa maior, deixando
a percepção de um final narrativamente não finalizada ou em aberto. Henry, por sua vez,
não vinga seus pais, pois não mata o responsável nem restaura sua honra por ter perdido
a espada que continua com Sir Istvan. A missão vingança é justamente a única missão
principal que não pode ser completada. Embora se possa entender grande parte das demais
missões enquanto uma história de vingança, não há resolução nesta, sendo este um dos
maiores diferenciais da narrativa: ao contrário do que ocorre na jornada de um herói, o
problema no final não é resolvido.
Com relação ao espaço virtual da fonte, o mapa do jogo fora projetado ao
equivalente à uma área de dezesseis quilômetros quadrados, baseados em evidências
arqueológicas, segundo Martin Bostal (2018, p. 387). Na perspectiva de Nitsche, o espaço

67
A construção da jornada do herói de Henry não segue à risca a criada por Campbell. Campbell, em sua
obra, cita possibilidades existentes na etapa final das jornadas, como: o herói como imperador ou tirano;
como redentor e como amante. O encerramento de KC coloca a trama enquanto um pequeno evento de
um conflito muito maior. Um conflito que continuará e do qual os personagens, bem como o
protagonista, continuarão fazendo parte. Tal construção de narrativa é corroborada pela análise de
Nitsche, onde o autor aponta que mesmo sendo inspiradas pela jornada do herói de Campbell, as
narrativas escritas podem fugir dos padrões estabelecidas pelo autor (NITSCHE, 2008, p. 59).
49

na qual os jogadores jogarão é um fator de extrema importância para a imersão na


realidade representada. Os avanços tecnológicos de mapeamento possibilitam que os
jogos eletrônicos foi busquem recriar espaços geográficos cada vez mais próximos do
real. Tal técnica também utilizada pelos desenvolvedores para a criação do território de
KC.

Imagem 2 – região de Rattay e Sassau, região central da Bohêmia e a representação em Kingdom Come
(BOSTAL, 2018, p. 385).

Podemos observar que houve um esforço, por parte dos desenvolvedores, de


buscar representar as características geográficas da região, intensificando a experiência
de imersão uma vez que os jogadores estão, de fato, circulando pelo território “real”.
Outro fator espacial seria a própria arquitetura que deveria ocupar as cidades, vilas, igrejas
e castelos da região. Alterações foram feitas, segundo Bostal, na perspectiva de tornar a
experiência mais jogável:

Por exemplo, partes do rio Sázava foram encurtadas, provavelmente para


aproximar a cidade de Sasau (Sásava). Além do mais, a área à noroeste do
mapa, que contem a vila de Skalitz (Stříbrná Skalice) é, na verdade, situada
mais a oeste. (BOSTAL, 2018, p. 386)68

68
“For example, meanders of the Sázava river have been shortened, probably in order to get the town of
Sasau (Sásava) closer. Furthermore, the northwest area of the map which contains the village of Skalitz
(Stříbrná Skalice) is actually situated farther to the west”.
50

Assim, criando uma narrativa que ampare toda uma região e para que os jogadores
consigam apreciar a experiência sem passar tanto tempo apenas caminhando ou
cavalgando, além da extensão territorial, os desenvolvedores buscaram também recriar
certas estruturas buscando uma maior fidelidade histórica. As casas encontradas nas vilas,
em geral, são extremamente parecidas, tendo muitas características semelhantes se não
idênticas.69 Tal prática é comum no desenvolvimento de objetos e animações no espaço
virtual. No entanto, certas estruturas foram reconstruídas buscando-se ao máximo
dialogar com reminiscências do período. Uma dessas estruturas é o monastério
Beneditino de Sasau que, segundo Bostal, nos séculos XIV e XV passou por uma
transformação de uma arquitetura romanesca para uma gótica, pretendendo-se construir
uma estrutura com três naves.

Imagem 3 – À esquerda, torre do monastério de Sasau atualmente e, à direita, sua representação na fonte
(BOSTAL, 2018, p. 386)

Além do monastério, outras estruturas arquitetônicas também foram


reconstruídas, como as duas torres da cidade de Rattay. Tal reconstrução histórica serve
também como fonte de representações ou de criações de representações segundo
Uricchio, sendo também usado como um elemento na busca por uma autenticidade
histórica.
Ao tratarmos das mecânicas e conjuntos de regras do jogo, vemos aqui um dos
principais elementos que distanciam a percepção de autenticidade histórica no jogo. No
quesito de combates e reconstituição de armas e armaduras, os desenvolvedores buscaram
criar mecânicas que realmente passam a impressão de realidade, ligada ao gênero de
simulador. Porém, representar a sociedade medieval e, mais especificamente, a Bohemia,
encontra percalços. O jogo, dentro de suas dinâmicas de RPG, possibilita que os jogadores

69
Segundo Bostal, tais estruturas foram criadas com base em reminiscências arqueológicas e com base no
que seriam estruturas a partir de um “sentimento medieval” (BOSTAL, 2018, p. 388).
51

façam perguntas e comentários de diferentes formas (por exemplo: tomando uma postura
mais agressiva, mais argumentativa ou cortês, através de subornos ou, inclusive, por
habilidades desbloqueadas, como a de primeiros socorros), cabendo ao jogador
compreender como deve agir em cada situação para obter mais benefícios.
Se, por um lado, isso torna o jogo mais dinâmico e, inicialmente, imprevisível,
ocorre aí um distanciamento de uma possível realidade com relação a certos aspectos
sociais que ou são pouco presentes, ou praticamente não existem no jogo. Um destes
elementos é o cristianismo. Para o contexto histórico do período, poucas vezes aparecem,
na população em geral, atitudes cristãs. Uma característica praticamente inexistente no
jogo é a participação de crianças, diminuindo a gama de ações sociais possíveis de serem
pensadas na fonte. Uma razão possível para se pensar na ausência de crianças se apresenta
pela liberdade a ações imorais que podem ser realizadas pelos jogadores. O protagonista
pode matar quase todos os personagens do jogo, com exceção apenas dos relevantes para
as missões principais e secundárias. Colocar crianças em um jogo em que matá-las seria
possível poderia gerar uma repercussão negativa, sendo assim uma escolha não em
virtude do período histórico, mas em função da natureza do produto e seu público
consumidor.
Outra mecânica que merece ser mencionada é referente às trocas comerciais. É
interessante pelo fato de buscar uma lógica pouco vista em jogos, no sentido de que os
jogadores só podem vender e comprar objetos de comerciantes que condizem com sua
profissão. Outro elemento que funciona, não-verossimilhança com a realidade, seria em
relação ao cavalo de Henry. Ora, trabalhos historiográficos de medievalista apontam o
cavalo como um dos grandes símbolos de status social, daí o sentimento condizente do
capitão da guarda quando Sir Hanush dá a Henry um cavalo. Porém, no jogo, os jogadores
não terão nenhum grande esforço para criar e mantê-lo vivo pelo fato de não se precisar
alimentá-lo, algo que certamente exigiria muitas moedas, se não propriedades e servos
para plantar o alimento do animal. A partir destas duas mecânicas pode-se caracterizar
KC como um jogo com elementos de simulação, distinguindo-o de um real jogo de
simulação. Como vimos, as especificidades das trocas comerciais tornam a experiência
histórica mais autêntica, uma vez que os comerciantes negociam somente com produtos
que manuseiam. Porém, ao não construir as relações sociais e tornar presentes as
dificuldades de se ter um cavalo no período, estes elementos do jogo demonstra, o limite
da realidade tal qual construída pelos desenvolvedores, podendo ser pensado até que
ponto o jogo buscou criar um ambiente histórico simulado.
52

3.2 WENCESLAS IV: O REINO DA BOHEMIA E O SACRO IMPÉRIO,


RELAÇÕES POLÍTICAS NA HISTÓRIA E NO JOGO
Como foi apresentado no tópico anterior, as disputas políticas e militares entre os
nobres marcam, numa perspectiva macro, a trama principal de Kingdom Come
Deliverance, encaixando sua narrativa micro em meio a interações políticas maiores que
utrapassam as fronteiras do Reino da Bohemia. Os imperadores da família Luxemburgo,
Charles IV, Wenceslas IV e Sigismund, são apresentados no prólogo e retornam nas
missões finais do jogo. É interessante adentrarmos neste contexto, afinal, qual era o grau
de poder atribuído ao cargo de imperador e até onde a imagem construída na fonte tem
respaldo no campo historiográfico?
Albert Rigaudière (2008), ao tratar sobre teoria e prática em governos da Europa
Ocidental no século XIV, discute sobre a relação de Estados com a Igreja a partir da noção
de uma dependência que altos cargos tinham com legitimação advindo da Igreja Romana.
O historiador buscou contextualizar uma ação, tomada pelos membros do colégio eleitoral
e pelo Imperador do Sacro Império, de fortalecer o seu poder no Império frente à Igreja
já em 1338. Para Rigaudière,

Este desejo de escapar de toda a sujeição da Santa Sé encontrou sua expressão


institucional em duas constituições de Lewis da Bavaria e numa declaração dos
príncipes eleitores reunidos em Rhens em 1338. Eles proclamaram que o rei
dos Romanos, eleito por unanimidade ou por votos majoritários, não
precisariam, para seu poder ser efetivo, recorrer à qualquer confirmação pela
Santa Sé. Isto significa, graças ao suporte dos príncipes, o final da dependência
do poder papal, mas também significava, ao mesmo tempo, colocar o poder
imperial mais seguro sobre o controle deles, para fazer do Império um Estado
dualista para quem controlava dali por diante, dividido entre o colégio eleitoral
dos príncipes e pelo Imperador. Este acontecimento foi consagrado no código
imperial (Kaiserliches Rechtsbuch) em 1358, chamado de “Bula Dourada” no
início do século quinze. Este famoso texto fixou a ordem na qual os príncipes-
eleitores (Kurfürsten) lançavam seus votos em estipularam que a eleição
deveria ser estabelecida pelo voto da maioria. (2008, p. 22)70

70
“This desire to escape from all subjection to the Holy See found its institutional expression in two
constitutions of Lewis of Bavaria and one declaration of the prince-electors assembled at Rhens in 1338.
They proclaimed that the king of the Romans, elected unanimously or by majority vote, had no need,
for his power to be effective, to have recourse to any confirmation by the Holy See. This meant, thanks
to the support of the princes, the end of dependence on papal power, but it also meant, at the same time,
placing imperial power more securely under their control, to make the empire a dualist state whose
mastery was henceforth shared between the electoral college of the princes and the emperor. This
development was enshrined in the imperial code (Kaiserliches Rechtsbuch) of 1358, called the ‘Golden
Bull’ from the beginning of the fifteenth century. This famous text fixed the order in which the prince-
electors (Kurfürsten) cast their vote and stipulated that the election must be established by majority
vote”.
53

Como aponta o autor, nesta época houve o fortalecimento do Imperador e, por


outro lado, os príncipes, membros do colégio, ganharam maior autonomia em relação a
própria figura imperial.

Logo, essa ação institucionalizou a fraqueza do imperador e do seu governo,


que não era nem remotamente dotado das instituições que ele mesmo precisava
para se fazer obediente. Sem - ou quase sem – um domínio, um sistema fiscal
e, consequentemente, sem recursos financeiros, o imperador não poderia
equipar-se com um exército profissional. (RIGAUDIÈRE, 2008, p. 23)71

Na perspectiva do historiador, a vitória na eleição era apenas parte do processo


para o reconhecimento do Imperador enquanto figura de poder. Se o candidato em questão
não possuísse recursos e aliados, poderia perder cargo através da destituição, caso o
colégio não o reconhecesse mais, ou seria um governo com grande liberdade para os
príncipes. Ou seja, era uma relação de constantes negociações entre indivíduos de
camadas sociais elevadas, discutindo privilégios, títulos, posses e apoio a hereditariedade
de cargos.
A hereditariedade também é um caso explorado por medievalistas. Segundo Peter
Herde, não havia, até 1292, uma forma de tornar a sucessão ao trono hereditário. O cargo
só podia ser assegurado ao herdeiro se fosse passado a ele enquanto o Imperador ainda
estivesse vivo (2008, p. 515).72, podendo ser, depois, destituído tanto por movimentos
internos da nobreza quanto pela pressão do colégio eleitoral. Tratam-se de diferentes
níveis de negociação, tanto com figuras internas, reinos que o compõem, subintendas e
nobrezas dos reinos que constituíram o Sacro Império.
Para Ivan Hilavácek, os candidatos ao Império, além de precisarem possuir
alianças com príncipes e membros do colégio eleitoral, necessitavam da lealdade de
cidades para disputar o trono, para mantê-lo e para defendê-lo em caso de guerras civis
(2008, p. 552). A casa de Luxemburgo surge enquanto uma nobreza poderosa na Bohemia
somente no século XIV. Segundo Michaud, o século em questão foi marcado por
mudanças e crises em que dinastias terminavam e surgiam. Estas novas famílias
ascendiam à realeza a partir de uma política de casamentos que, segundo o historiador,

71
“This act therefore institutionalised the weakness of the emperor and his government who was not
remotely endowed with the institutions which he needed to make himself obeyed. Without – or virtually
without – a domain, a fiscal system and, consequently, without financial resources, the emperor could
not equip himself with a professional army”.
72
“Rudolf could only follow the old practice of having one of his sons crowned king in his own lifetime
and thereby secure his succession”.
54

seria, no futuro, uma política de meio termo entre o direito de conquista e uma soberania
popular (MICHAUD, 2018, p. 735).
Entre as figuras políticas que são representadas no jogo, temos o Imperador
Charles IV. Sua participação na fonte aparece em raros momentos, como no prólogo
inicial e em conversas do protagonista com alguns dos personagens principais. Sua
imagem era associada a um período de paz e prosperidade, sendo considerado um sábio
governante que impulsionou inúmeros desenvolvimentos no Império e, principalmente,
no Reino da Bohemia.
Mais informações sobre a figura do Imperador estão disponíveis se o jogador
acessar o códice73 do jogo:

Renomado por suas habilidades diplomáticas e erudição, ele energicamente se


esforçou para consolidar sua posição e garantir a sobrevivência de sua
linhagem na Europa, especialmente na Bohemia, Moravia e na Germânia.
Versado em várias línguas na corte francesa, foi instruído por ninguém menos
que o futuro Papa, Clemente VI.
Durante o seu reinado, Praga e as terras da coroa Bohemia submeteram-
se à grandes transformações, se tornando um poderoso centro político,
econômico e cultural. Por essa razão, este período do seu reinado foi conhecido
como a Era Dourada. Ele iniciou a construção de muitos edifícios soberbos que
levavam seu nome, incluindo a Universidade de Charles, a ponte de Charles e
o Castelo Karlstein. Ávido por enfatizar a função da fé religiosa na sociedade,
ele renovou os cultos aos santos Wenceslas, Sigismund e Vitus, consagrando
várias igrejas a eles, entree elas a catedral de Praga. (KINGDOM COME,
2018)74

A figura do monarca, aqui, é tratada com grande enaltecimento. Seu governo fora
longo e próspero, além de Charles IV ter sido sábio em suas viagens diplomáticas. Ou
seja, seu governo é representado no jogo dentro de um contexto de ascensão na História
das monarquias europeias, não somente pela sua atuação na política, mas também no
desenvolvimento cultural do Reino da Bohemia.

73
Seria como um arquivo onde temos assuntos catalogados a partir de diferentes tópicos como sociedade,
missões principais e personagens históricos. Ou seja, uma minibiblioteca sobre as informações
históricas e elementos de jogabilidade da fonte.
74
“Renowned for his diplomatic skills and erudition, he actively endeavoured to consolidate his position
and ensure the survival of his line in Europa, especially in Bohemia, Moravia and Germany. He was
well-versed in several languages and at the French court he was tutored by none other than the future
pope, Clement VI.
During his reign, Prague and the lands of Bohemian Crown underwent a major transformation,
becoming a powerful political, economic and cultural centre. For this reason, this period of his reign is
known as the Golden Age. He initiated the construction of many superb edifices, which thus bear his
name, including Charles University, Charles Bridge and Karlstein Castle. He was keen to emphasise
the role of religious faith in society. He renewed the cults of St. Wenceslas, St. Sigismund and St. Vitus,
consecrating various Church buildings to them, among others Prague Cathedral.”
55

Ao nos lançarmos para trabalhos de medievalistas, a exaltação da vida de Charles


IV não parece mudar de tom.75 Para o historiador Ivan Hilavácek, o governo de Charles
IV foi marcado por duas ações interconectadas: a primeira, o fortalecimento do Reino do
Bohemia economicamente, politicamente e militarmente, para depois expandir seu
domínio pelo Império. Suas ações

(...) estavam orientadas em direção à consolidação da sua posição dentro do


Império. A expressão externa disso seria sua jornada de coroação à Roma. É
claro, a política italiana de Charles não era mais guiada pelas ambições
imperiais dos seus predecessores. Sempre um político pragmático, ele estava
especialmente relutante em ser influenciado por esses italianos que defendiam
a renovação do velho Império Romano, embora ele mantivesse grande
admiração e respeito por Petrarca (2008, p. 553).76

Dentro das iniciativas políticas de Charles IV, uma das mais importantes, se não
a mais, foi a Bula Dourada. A Bula teve como tema central a eleição do Imperador do
Sacro Império e a consolidação da hereditariedade dos eleitores leigos do colégio
eleitoral, atribuindo a estes um poder de jure (de direito) e concedendo direitos soberanos
a estes (HLAVÁCEK, 2008, p. 554). A perspectiva de Hilavácek, nesse caso, dialoga
com a de Rigaudière ao apontar que, para se lançar e se manter enquanto Imperador, o
candidato deveria possuir um Estado forte que garantisse sua soberania sobre os demais
reinos do Sacro Império.
Tal característica pode ser vislumbrada parcialmente na relação entre os nobres
durante a narrativa de KC. O Rei da Bohemia, por meio de Wenceslas IV, perdeu grande
prestígio entre os nobres do seu próprio reino ao ponto de o raptarem para destituí-lo,
sendo esta a imagem que perdura na história do jogo até o seu final. Nesse sentido, na
última missão da trama é revelado ao protagonista, por Sir Jobst, que Sigismund tomou
as rédeas da Bohemia a pedido de Wenceslas IV para reestabelecer a ordem no reino.
Ao nos direcionarmos para o filho de Charles IV, Imperador do Sacro Império e
Rei da Bohemia, Wenceslas IV, ele é trazido para os jogadores como uma figura contrária
à do seu predecessor. Se Charles IV era um grande negociador, legislador, apreciador e
impulsionador da cultura, enquanto seu filho é apresentado como um homem

75
“With the death of Charles, Europe lost not only its most cultured medieval monarch (the list of his own
writings is impressive, and includes educational and theological as well as historical works), but also a
monarch who created a great political and ideological conception, to whose realisation he was
completely dedicated” (HLAVÁCEK, 2008, p. 556).
76
“(...) soon orientated towards consolidating his position within the empire. The outward expression of
this was to be his coronation journey to Rome. Of course, Charles’s Italian policy was no longer
prompted by the imperial ambitions of his predecessors. Ever the political pragmatist, he was especially
reluctant to be influenced by those Italians who advocated the renewal of the old Roman empire,
although he retained great admiration and respect for Petrarch.”
56

desconectado das funções que seu cargo lhe exigia. Praticante de caça, adorador de
comemorações e empolgado por mulheres para saciá-lo, Wenceslas IV, em um plano
geral, aparece enquanto um personagem que nada ou pouco fez durante seu governo. No
códice sobre o personagem aparecem mais informações sobre seus passos durante o
período retratado:

Wenceslas IV, de Luxemburgo, foi filho do bem-sucedido monarca Charles


IV. Ele herdou o trono bohêmio e alcançou a coroa alemã por eleição. Porém,
ele não herdou a predisposição do seu pai por governar. Durante sua vida ele
foi conhecido por ser um fraco, ocioso e um instável governador afligido por
muitas doenças, bem como dificuldades para cumprir suas obrigações reais,
apesar do fato de estar sendo preparado para governar desde sua infância (ele
foi coroado rei da Bohemia com apenas dois anos). Ele estava mais interessado
em caça, álcool, cortesãs e prazeres da corte. Durante seu tempo como rei, as
terras da coroa Bohemia submeteram-se a vários conflitos envolvendo seus
parentes – seu próprio irmão Sigismund e seus primos, os Margraves da
Moravia.
O evento que provocou as Guerras Margravitas se deu quando
Wenceslas ocupou as propriedades desocupadas da Arquidiocese de Olomouc,
que por lei pertencia aos nobres. Sobre a liderança de Jobst, os lordes da
Moravia se juntaram a Sigismund em uma revolta aberta contra o Rei, que
tinham menos haver com as propriedades Olomouc do que com a legitimidade
de governar de Wenceslas, que nesse meio tempo foi destituído da Coroa
Imperial pelos eleitores imperiais por sua incompetência e sua má vontade para
governar. Posteriormente ele também perdeu a Coroa Bohemia, quando fez
numerosas concessões e concedeu aos nobres muitos privilégios, transferindo
o poder de governar para eles. Sua má vontade de lidar com suas obrigações
resultou duas vezes em seu sequestro (removendo-o, assim, do trono): primeiro
em 1394, por meio nobres tchecos, e depois em 1402, por seu irmão
Sigismund. (KINGDOM COME, 2018)77

Observa-se então a construção de uma representação quase que totalmente


negativada sobre o Rei Wenceslas IV. Ora, mas se foi um Rei tão ruim assim, por que
houveram nobres que o defenderem nesses dois momentos de destituição? E como se
manteve por 20 anos com a coroa imperial germânica? Para essas perguntas, de início, no

77
“Wenceslas IV of Luxembourg was the son of the highly successful monarch Charles IV. He inherited
the Bohemian throne and attained the German crown by election. However, he did not inherit his father’s
predisposition for ruling. Already during his lifetime he was known for being a weak, idle and moody
ruler who was afflicted with many ailments, as well as difficulties meeting his royal obligations, despite
the fact that he had been groomed for rule since eraly childhood (he was crowned Bohemian King at
the age of only two years). He was more interested in hunting, alcohol, courtesans and pleasures of the
court. During his time as king, the lands of the Bohemian Crown underwent several wars and conflicts
involvind his relatives - his own brother Sigismund and his cousins, the Moravian Margraves.
The event that triggered the Margraviate Wars was that Wenceslas occupied the vacated estates of the
Olomouc Archdiocese, which by law belonged to the nobles. Under the leadership of Jobost, the
Moravian lords joined with Sigismund in open revolt against the King, which had less to do with the
Olomouc estates than with the legitimacy of the rule of Wenceslas, who in the meantime hab been
stripped of the Imperial Crown by the imperial electors for his incompetence and unwillingness to rule.
Later he also lost the power of the Bohemian Crown, when he made numerous concessions and awarded
the nobles many privileges, de facto transferring the ruling power to them. His unwilligness to meet
obligations resulted in his abduction twice (thereby removing him from the throne) – first in 1394 by
the Czech nobles and then in 1402 by his brother Sigismund.”
57

jogo, encontramos uma perspectiva semelhante à da historiografia. Entretanto, o jogo


apresenta diferenças fundamentais com relação à tradição historiográfica.
Coroado Rei aos dois anos de idade e Imperador aos dezoito, a imagem analisada
pelos historiadores, à primeira vista, não se distancia da representada na fonte. No
trabalho realizado por Hilavácek, o reinando de Wenceslas IV se mostrou mal
aconselhado, instável (2008, p. 556-7).78 Entretanto, se no jogo vemos uma figura ausente
politicamente, historiograficamente, Wenceslas IV e seus conselheiros tiverem momentos
de tomada de decisões importantes no que diz respeito a ações imperiais.
Durante seus primeiros anos de reinado, Wenceslas IV se envolveu
profundamente na vida política. Porém, Hilavácek tem um posicionamento de incerteza
se o envolvimento e as medidas realizadas no início de seu reinado foram de fato suas e
não de seus conselheiros (HLAVÁCEK, 2008, p. 556).79 Suas medidas políticas imperiais
foram extremamente importantes para diminuir os conflitos envolvendo cidades, nobres
e príncipes. Como já comentamos neste mesmo tópico, as cidades eram forças essenciais
para a manutenção do poder real e imperial. Segundo Hilavácek, as cidades passaram a
se unir na forma de ligas urbanas em determinadas áreas para sobreviverem às pressões
das ofensivas da nobreza (2008, p. 557).80 Wenceslas IV instaurou a política de Landfrien,
em 1389, diminuindo o poder das ligas para manter uma união permanente, diminuindo
assim o número de conflitos no Império e demonstrando uma atenção do Imperador às
necessidades para com as camadas mais elevadas da sociedade Sacro Germânica.
Embora tivesse tido uma participação nas relações imperiais, Wenceslas IV se
afastou gradualmente desse círculo de poder, ascendendo a rivalidade e o desprestígio de
casas da alta nobreza contra o monarca. O monarca buscou, por meio da política externa,
através de uma jornada de coroação para Roma, retomar seus privilégios através da figura
do Papa e da cristandade. Todavia, encontrou tanto barreiras externas quanto internas,
dentre estas, seu rapto por nobres bohêmios em meados de 1400 (HLAVÁCEK, 2008, p.
558).81

78
“If understandable on the grounds of political expediency, the effects of this ill-advised policy were to
leave their mark on the entire reign of Charles’s son, who for various reasons proved to be unequal to
the role assigned to him”.
79
“The early years of his reign were marked by two important if short-lived successes in imperial politics,
though it is not certain whether the credit for these should go to the young king or to his advisers”.
80
“(...) it was difficult for individual towns to with stand the combined offensive pressure of the nobility,
it was in the interests of their own survival for the towns of a given area to join together in na urban
league”.
81
“Wenceslas’s attempts to realise his ambition were obstructed not only by the unequivocally negative
attitude of France, which set up all kinds of obstacles, but also by chaotic conditions in Italy itself, not
to mention unstable conditions in the king’s own domain. These led to increasingly strained relations
58

Tanto nos trabalhos dos historiadores quanto no jogo é abordada a jornada para
Roma, já que ambos afirmam que o propósito de Wenceslas IV seria o de conseguir
prestígio para se manter como Rei. Na missão Epílogo, durante a reunião entre os nobres,
Sir Capon questiona aos outros sobre o porquê de Wenceslas IV, se não possuía interesse
pelo poder, não tê-lo entregado ao seu irmão:

Sir Capon – Então por que ele apenas não deu a coroa para o seu irmão?
Sir Radzid – Jovem senhor, a coroa pesa quando há deveres a se desempenhar,
mas render-se significa desistir de muitos privilégios também.
Sir Jobst – Mas ele entregou o poder para o seu irmão! Quando as coisas
começaram as sair das suas mãos, Wenceslas pediu para Sigismund para ajudá-
lo a restaurar a ordem. (KINGDOM COME, 2018)82

Na continuação deste diálogo, parte dos planos para restaurar a ordem e a imagem
da casa dos Luxemburgo era restaurar a imagem de Wenceslas IV com uma viagem para
Roma. Porém, não há menções, nas pesquisas historiográficas utilizadas, sobre
envolvimento de Sigismund nesse segundo rapto de Wenceslas IV durante sua tentativa
de viajem para a sede do poder da cristandade.
Um dos motivos pelo qual a coisa começou a desandar, mencionado por
Hilavácek, foi a perda de interesse de Wenceslas IV nas décadas de 1380 e 1390 nos
assuntos imperiais e reais, permitindo que crescessem, assim, as rivalidades com as casas
nobres do Império (2008, p. 558).83 Se a imagem do Imperador foi se tornando negativa
com esse distanciamento, por que ainda havia quem o apoiasse?
O afastamento das responsabilidades imperiais e reais significou a exclusão,
proposital ou não, de importantes famílias do Sacro Império. Não estar no círculo da corte
imperial significava perder influência nas decisões e relações políticas imperiais. Se
haviam nobres fora do espaço de interação direta com Wenceslas IV, havia outros nobres

between Wenceslas and the upper ranks of the Bohemian hierarchy, culminating in the king’s two
periods of imprisonment at the hands of the chief Bohemian nobles and their allies. Both these events
have a bearing on the problem of the empire itself, although the second belongs to the period after
Wenceslas’s deposition in 1400”.
82
“Sir Capon -Then why didn’t he just let his brother have the crown? Sir Radzid – Young Sir, the crown
weighs heavy when there are dutiers to be performed, but to surrender it means giving up great privileges
too. Sir Jobst – But he did surrender power to his brother! When things started getting out of hand,
Wenceslas appealed to Sigismund for help in restoring order”.
83
“But the common people suffered most, for they had to bear the brunt of a scorched earth policy and
pay dues to both sides. Nevertheless, the Landfriede of Cheb at least placed limits on this type of
confrontation and induced the king to rethink his policies, i.e. to pay more attention to the upper levels
of imperial feudal society. However, his gradually declining interest in imperial (and also in Bohemian)
affairs, as well as a growing rivalry with the Palatinate of the Rhine, meant that the seeds of future
conflict were sown”.
59

que passam a ocupar a corte e importantes cargos, mesmo não sendo todos membros da
alta nobreza.
Hilavácek, retomando os anos finais do reinado de Wenceslas IV, investigando se
havia razões e se tais razões justificavam a deposição do Rei. Segundo o historiador,
durante a segunda metade de 1390, o Rei estava em constante atividade administrativa,
mandando cartas para todos os príncipes do Império:

A lista de assuntos abordados também reflete uma gama excepcionalmente


ampla de interesses - algo bastante sem precedentes, com a possível exceção
dos primeiros anos de Wenceslas como rei dos romanos. Essa correspondência
não consistia apenas no transporte passivo de pedidos de confirmação ou na
concessão de vários privilégios, mas também continha muitos dos decretos
administrativos de Wenceslas (que constituem a maior parte da
correspondência total) relacionados à passagem segura ou liberdade de
movimento ou revisar a prosperidade econômica dos órgãos centrais do
império. Por outro lado, é claro que é verdade - e isso evidentemente foi
especialmente prejudicial para o funcionamento do império como um todo -
que todo esse negócio fosse conduzido quase inteiramente através do aparato
administrativo da Bohemia, cujo ponto principal era o “especialista imperial”
de Wenceslas, o cavaleiro bohêmio Bořivoj de Svinaře. Dois outros homens
são frequentemente mencionados como associados de Wenceslas: o landgrave
de Leuchtenberg, considerado estreitamente ligado ao estado boêmio, e o bispo
Lamprecht de Bamberg, amigo e assistente de Charles IV e Günther de
Schwarzburg. Todos os outros representantes do império (incluindo os
eleitores) foram excluídos da corte de Wenceslas, sem esperança de obter
acesso a ela ou de exercer qualquer tipo de influência ali. (HLAVÁCEK, 2008,
p. 559)84

Os elementos trazidos da leitura dos historiadores e da representação na nobreza


em Kingdom Come Deliverance nos permitem lançar algumas ideias. Ideias que não
visam serem definitivas, mas apenas a reflexão. No aspecto historiográfico, a partir da
pesquisa de Hilavácek, observamos que sim, Wenceslas IV possuía uma imagem negativa
com relação ao cumprimento de suas funções enquanto monarca. Entretanto, o historiador
também afirma que tais funções ocorriam em uma esfera social distante dos demais

84
“The list of subjects covered also reflects an exceptionally wide range of interests – something that was
quite unprecedented, with the possible exception of Wenceslas’s first years as king of the Romans. This
correspondence did not consist merely of the passive conveying of requests for confirmation or the
conferring of various privileges, but also contained many of Wenceslas’s own administrative decrees
(these make up the largest part of the total correspondence) concerned with safe passage or freedom of
movement, or reviewing the economic prosperity of the central organs of the empire. On the other hand,
it is of course true – and this evidently was especially detrimental to the functioning of the empire as a
whole – that all this business was conducted almost entirely through the Bohemian administrative
apparatus, whose linchpin was Wenceslas’s ‘imperial expert’, the Bohemian knight Bořivoj of Svinaře.
Two other men are frequently mentioned as associates of Wenceslas: the landgrave of Leuchtenberg,
who was considered to be closely connected to the Bohemian state, and Bishop Lamprecht of Bamberg,
who had been a friend of and assistant to Charles IV and Günther of Schwarzburg. All other
representatives of the empire (including the electors) found themselves excluded from Wenceslas’s
court, with no hope of gaining access to it or of exerting any kind of influence there”.
60

membros do colégio eleitoral, ou seja, os nobres que compunham sua corte não eram do
Sacro Império Romano Germânico, em maioria, mas sim do Reino da Bohemia. Contudo,
nem todos os nobres do reino tiveram o privilégio de manter uma relação direta com o
rei, dificultando o controle de Wenceslas IV tanto do Sacro Império quanto do Reino da
Bohemia.
Percebemos, assim, que tanto a representação de Charles IV, como a de Wenceslas
IV, em Kingdom Come, não se distância tanto da perspectiva historiográfica ao
observarmos em uma perspectiva ampla. Porém, ao especificarmos a imagem
representada, faltam elementos, no jogo, que permitam aos jogadores compreender as
relações políticas da corte imperial do Sacro Império.

3.3 UMA NOBREZA CAVALEIRESCA REPRESENTADA?


Dentro da gama de possibilidades de análises de representações a partir de KC,
centraremos agora na análise dos diferentes aspectos da nobreza retratada na trama
principal. Se, por um lado, as relações políticas macro nos permitem realizar uma
discussão direta das figuras da família real do Reino da Bohemia, entre historiografia e
fonte, ao se adentrar na narrativa do jogo observam-se outras relações que suscitam
reflexões e comparações entre o que é representado e o que é discutido na historiografia
sobre esta camada social.
Neste tópico, duas perguntas são importantes. A primeira é: por que pensar em
uma nobreza cavaleiresca e não de fato em uma cavalaria? No século XIV, segundo o
historiador Maurice Keen, as sociedades europeias observam o crescimento do
surgimento de novas ordens/instituições/irmandades principescas seculares que tinham
como principal característica um ideal da cavalaria (2008, p. 209). O que o autor sugere
não é que não houvessem ordens cavaleirescas no período anterior além dos cruzados,
mas sim que diversas novas ordens surgiram nesse período em diferentes partes da
cristandade, da Inglaterra ao Sacro Império.
Em Kingdom Come não é, em nenhum momento, mencionada a presença de
algumas dessas novas ordens, embora os nobres do jogo possuam títulos cavaleirescos,
suas relações em uma possível associação não são mencionadas nem no códice do jogo.
Para Keen, algumas dessas ordens surgiram em momentos de guerras civis, onde esses
aristocratas se uniram para a defesa do rei, conquistando honra além de sedimentarem
uma relação de benefícios com a figura monárquica (KEEN, 2008, p. 210). Muitas das
ligações estabelecidas entre os membros das ordens com um Rei ou com um Imperador
61

tinham como características a proteção jurada da ordem bem como a glamourização dos
nobres membros da irmandade para com os outros da mesma camada. Porém, Keen
também aponta o crescimento de uma orientação principesca da ideologia cavaleiresca
do período.

Desta forma, uma comparação pode ser feita entre a fundação de ordens de
cavalaria e outros meios pelo qual príncipes procuram vincular homens para
seu serviço, concedendo pensões, alimento, abrigo ou cargos militares,
frequentemente acompanhados por presentes como roupões com suas cores ou
emblemas (geralmente descritas em termos muito similares às insígnias das
ordens de cavalaria), e pelo qual eles esperam reforçar, ou substituir, laços de
vassalagem e aliança territorial. (KEEN, 2008, p. 211,)85

Pode-se pensar em expandir tais relações para além das figuras dos príncipes, nos
dirigindo para os próprios contratos estabelecidos de nobres com pessoas de camadas
sociais inferiores. Aqui trazemos o diálogo da integração do protagonista ao se tornar
escudeiro de Sir Radzid numa das primeiras missões, a Despertar:

Sir Radzid – Ele não é um tolo, Henry, você tem coragem, mas você precisa
de treinamento, armas, um cavalo... Ou você acha que vai ganhar isso roubando
no dado?
Henry – Não, Sir. Por favor, me coloque a seu serviço e me dê a chance de
aprender essas coisas.
Sir Capon – Que audácia a dele! Fugir do inimigo, desobedecer a suas ordens,
enganar o Sir Divish, perder a sua espada, colocar Sir Robard em perigo com
suas ações e agora ele quer uma promoção?
Capitão Bernard - Sir Capon está certo.
Sir Radzid – O que você diz é certamente verdade, exceto fugir do inimigo.
Você também correria, acredite em mim. Henry merece alguma punição, mas
como você pune alguém que já perdeu tudo, hm? Coragem e obediência cega
são boas qualidades de um soldado, mas um homem sábio também aprecia
lealdade, perseverança e determinação. Além disso, a espada que o pai dele fez
é realmente excelente. Se ele acha que consegue pegá-la de volta, não irei me
recusar.
Padre – Meu Lorde – ele é um camponês! Você não pode fazer de escudeiro
um camponês!
Sir Hanush – Por que não? Alguém fez um padre de um porco!
Sir Radzid – Ele não é um camponês, Padre – ele é um ferreiro, e os eventos
recentes me deixaram na necessidade das suas habilidades. (KINGDOM
COME, 2018)86

85
“In this way a comparison is invited between the founding of orders of knighthood and other means by
which princes sought to bind men to their service, by grants of pensions, fees, household or military
office, often accompanied by gifts of robes and livery collars or badges (often described in terms very
similar to the insignia of chivalric orders), and through which they hoped to reinforce, or substitute for,
ties of territorial vassallage and allegiance”.
86
“Sir Radzid – He’s no fool, Henry, you have courage, but you need training, arms, a horse... Or do you
mean to beat this thief at disse? Henry – No, Sir. Please, take me into your servisse and give me the
chance to learn these things. Sir Capon – The gall of him! Fled from the enemy, disobeyed your orders,
duped Sir Divish, lost your sword, put Sir Robard in danger with his actions and now he wants a
promotion? Captain Bernard - Sir Capon’s right. Sir Radzid – What you say is certainly true, except
for fleeing the enemy. You would have run as well, believe me. Henry’s earned some punishment, but
how do you punish someone who’s already lost everything, hm? Courage and bling obedience are good
qualities for a soldier, but a wise man also appreciates loyalty, perseverance and determination. Besides,
62

Esse trecho seria extremamente interessante para refletirmos sobre as


possibilidades a estratificação social durante o período da Baixa Idade Média e sobre as
possibilidades de ascensão social. Porém, como já apontamos na narrativa, Henry
posteriormente descobre ser filho bastardo de Sir Radzid, tornando tal discussão mais
complicada, uma vez que nunca se tratou de um camponês de fato. Sendo contratado para
trabalhar pelo seu próprio pai biológico no decorrer da trama principal pode-se discutir
sobre os valores empregados na justificativa do nobre para acolher o protagonista. Suas
ações, até então, são colocadas como irresponsáveis, mas, é enaltecido o compromisso
estabelecido com seu falecido pai de criação, pensando na perspectiva de honra, de um
compromisso jurado e de lealdade. Tais valores, aponta Keen, foram parte da formação
das ordens cavaleirescas, se expandindo para além destes espaços, sendo expressados por
senhores e servos ao firmarem um contrato.

(...) o cumprimento de obrigações religiosas muito específicas ninguém


esperaria encontrar em contratos seculares de servidão. Há uma ligação entre
um lorde e um servo contratado para, de um lado, o serviço pela promessa de
proteção e, por outro, a boa senhoria, e esta relação poderia ser expressa em
linguagem com insinuações cavaleirescas. (KEEN, 2008, p. 212)87

Além disso, o historiador aponta, como fundamental para a consolidação destes


ideais cavaleirescos no século XIV, as narrativas romanescas e arthurianas dos séculos
XII e XIII (KEEN, 2008, p. 212). Na história, Sir Radzid é construído como um homem
letrado. Ora, poderia ser possível que este tivesse contato com as literaturas cavaleirescas,
idealizando tais valores em seu filho bastardo. Tais relações, a partir de um ideal de honra,
de cumprimento da palavra, ligada há um acordo e uma concepção geral da nobreza, são
apresentadas em outra missão, já no final da narrativa, em Um juramento é um juramento:

Henry – Parece que tudo acabou.


Sir Radzid – Não vai terminar por um bom tempo. Não vai terminar até que
essa bagunça seja arrumada.
Henry – E pegarmos aquele bastardo... Como nós deixamos ele ir?
Sir Radzid – Você iria preferir que nós tivéssemos matado ele, mesmo que
isso significasse que Lady Stephanie e eu morrêssemos também?
Henry – Não, é claro que não, mas o que nos impediu de matá-lo após a troca?

that was a fine sword that his father made. If he thinks he can get it back, I won’t turn it down. Padre –
My Lord – he’s a pesant! You can’t make a squire of a peasant! Sir Hanush – Why not? Someone made
a priest of a pig! Sir Radzid – He isn’t a peasant, Father – he’s a blacksmith, and recent events have
left me in need of his skills.”
87
“(...) very specific obligations of religious observance such as one would never expect to find in a secular
contract of retainer. A bond between a lord and a retainer contracted for service from the one party in
return for the promise of protection and good lordship from the other, and this relationship might be
expressed in language with chivalrous overtones”.
63

Sir Radzid – Honra?


Henry – Honra?
Sir Radzid – Se a palavra de honra de um nobre não poder ser confiada, então
ele nunca haveria concordado com a troca. (KINGDOM COME, 2018)88

Em várias partes do continente europeu já se observava a existência de regras de


sociabilidade compartilhadas entre indivíduos desde o século VI até o XII, segundo
Barthélemy, em sua obra focada na Francia e no território dos povos germânicos. Em
muitos jogos históricos, focados principalmente na criação de exércitos e na dominação
de territórios, há pouco espaço para a complexificação de tais relações sobre a existência
deste modo social de agir entre nobres durante conflitos, onde a noção de código de honra
nas negociações era reconhecida pelos membros que moviam os conflitos. O historiador
Philippe Constantine aponta que, nos séculos XIII até o XV, já era presente tal consenso
em relação a resgates e negociações quando nobres se encontram em lados opostos em
uma guerra. Ou seja, para o autor, em todos as sociedades europeias, os princípios da
cavalaria e das cortes eram aplicados sem distinção sobre todos os nobres de todas as
nações a partir de um código de honra (CONSTANTINE, 2008, p. 94).
Além desta contribuição, Constantine oferece outras análises que nos possibilitam
refletir sobre outras representações na fonte. Em seu artigo, Constantine realiza uma
análise comparativa social e cultural sobre a nobreza europeia entre os séculos XIII e XV.
Dentre as reflexões utilizadas, uma que chamou atenção para esta pesquisa foi a de pensar
na nobreza enquanto uma camada social que possuía dentro de si níveis, pensando não
apenas na noção de alta e baixa nobreza, mas também em outras nações um conjunto
muito maior de nobrezas (2008, p. 90).89
Em KC, tal classificação da nobreza é apresentada em diálogos sutis entre
personagens nas missões principais, como em um dos diálogos finais, na missão Epilogo:

Henry – (Opção de diálogo “E sobre a Liga dos Lordes?”) E sobre a Liga dos
Lordes?
Sir Capon - Ricos, Pomposos. O rei parece não gostar muito deles – ele
escolheu deixar os nobres mais baixos em seu círculo, homens como o seu pai.

88
“Henry - It looks like it all over. Sir Radzid – Not by a long shot. It won’t be over until we get this
mess cleared up. Henry – And catch that bastard... How coud we let him go? Sir Radzid – Would you
rather we killed him, even if t meant Lady Stephanie and I died too? Henry – No, of course not, but
what was to stop us from killing him after the exchange? Sir Radzid – Honour? Henry – Honour? Sir
Radzid – If the word of honour of a nobleman could not be trusted, then he would never have agreed
to the exchange”.
89
“Conforming to a practice widely shared by contemporaries, historians are accustomed, at the very least,
to differentiating between the higher and lower nobility, and to comparing the two. Yet even this
division is too cursory. A more precise picture would doubtless be painted if not simply two, but three
or four levels could be envisaged.”
64

Eu admito que não o culpo nem um pouco. Mas os Lordes não estavam felizes
por perderem sua influência, então eles pisaram nele. Se eu fosse Wenceslas,
eu os teria enforcado depois deles me raptarem na primeira vez, mas ele deu-
lhes bancos no Conselho Provincial! Não é de admirar que eles voltaram com
seus velhos truques. (KINGDOM COME, 2018)90

Tal diálogo faz referência às relações de prestígio dentro da corte do Sacro Império
e da Bohemia durante o reinado de Wenceslas IV. Como vimos no tópico 3.2, Wenceslas
IV se afastou desta hierarquia mais elevada da nobreza do Sacro Império, possibilitando
pensar em Sir Radzid enquanto um destes membros de uma baixa nobreza que fazia parte
do círculo político pessoal do Rei. Skalitz, segundo as informações presentes no próprio
códice do jogo, foi uma vila localizada em território real, sendo enviados administradores
pelo próprio Rei. Sir Radzid teria assumido o cargo de governante da cidade e
administrador da mina de prata a partir de 1403, no mesmo ano em que sofreu o assalto
de Sigismund. O cargo ocupado pelo pai biológico de Henry é apresentado no documento
com Hetman, apresentado no códice como: “originalmente o comandante em alguma
força armada, com a patente equivalente à de Capitão. Posteriormente tornou-se a função
de um governador civil, escolhido entre a nobreza local, que representava o monarca em
um dado território” (KINGDOM COME, 2018).91 Não encontramos, em nossa
bibliografia, tal conceito que estabeleça tais relações, mas o significado atribuído ao
termo condiz com o representado no jogo, uma vez que Sir Radzid, no início, realiza o
papel de governante local, vivendo no castelo da vila, e depois assume a liderança em
momentos de conflito. Além de ser uma voz de prestígio igual aos demais nobres da
região, coisa que se percebe ao se observar os diálogos do protagonista quando diz ser
um enviado de Sir Radzid para outros personagens de camadas mais baixas.
Em outro momento, é apresentado que Sir Radzid teria uma boa relação com os
demais nobres da região, além de liderar as forças unidas destes em algumas batalhas,
como na missão O batismo de fogo. Michaud faz menções do uso da prata pelos membros
da família Luxemburgo já no início do século XIV com John de Luxemburgo, o primeiro

90
“Henry – (Opção de diálogo” What is this League of lords?”) And what about the League of Lords?
Capon – Wealthy, pompous. The king doesn’t seem to like them much – he’s chosen to let the lesser
ranks of the nobility into his circle, men like your father. I admit I don’t blame him one bit. But the
Lords weren’t happy about their lost influence, so they put their foot down. If I were Wenceslas, I’d
have had them hanged after they abducted me the first time, but he gave them seats at the Provincial
Council! Little wonder they’re up to their old tricks again”.
91
“Originally the commander in some armed forces, with a rank equivalente to Captain. Later on the role
became that of a civic Governor, selected amongst the local nobility, who represented the monarch in a
given territory”.
65

Rei da Bohêmia desta família (2008, p. 758).92 Embora a construção de Sir Radzid, suas
características físicas e personalidade, seja ficcional, a construção do cargo que ocupa,
bem como da relação estabelecida com os demais nobres, demonstra uma relação de
respeito e de incredulidade, por parte de Sir Capon pelo fato de Sir Radzid ocupar um
cargo importante mesmo sendo de uma nobreza inferior, pois as diferenciações sociais
entre nobres, presentes nos diálogos, realmente existiram entre representantes desta
camada social. O cargo ocupado por Sir Radzid na administração do Reino o coloca em
patamares de respeito, e os nobres da região obedecem às suas decisões durante as
batalhas.
Além desta possibilidade de análise a partir do cargo e do grau de nobreza de Sir
Radzid, há outro elemento apontado por Constantine que nos permite lançar reflexões.
Para o autor, utilizando o livro de um nobre espanhol que escreveu sobre a nobreza
europeia no século XV, Diego de Valera, o historiador indica um elemento que seria
presente em quase todas as nobrezas no continente: “ele começa enfatizando que ‘cabe
aos cavaleiros e nobres usar suar armas e carregar flâmulas pelo qual eles e seus similares
possam se identificar’” (CONSTANTINE, 2008, p. 91).93 A posse de espadas e outras
armas seria um elemento que diferenciaria membros da nobreza de outras camadas
inferiores Os nobres teriam direito a utilizá-las a todo momento, em todos os espaços,
além de ser um item de reconhecimento, daí que chegamos a um ponto interessante no
final da missão Um juramento é um juramento:

Henry – Eu perdi a única coisa que ele havia deixado dele. Sua espada.
Sir Radzid – Ah! A espada. Não é minha espada... é sua... Por um momento
esteve tão perto, ainda assim tão longe. Bem, não pude ajudar.
Henry – Esteve quase no meu alcance, mas... naquele momento eu tinha outra
coisa em mente.
Sir Radzid – Bem, eu acho que nós poderemos ter uma chance para pegá-la
de volta. Este negócio com Toth ainda não acabou, infelizmente.
Henry – É uma chance que será bem-vinda. Não apenas para pegar a espada,
mas aquele bastardo do Istvan também. E então, eu irei encontrar aquele
alemão patife que queimou Skalitz e irei matar ele por isso. Eu nunca
esquecerei o seu rosto – ou o seu nome: Markvart von Aulitz.
Sir Radzid – Essas são intenções nobres filho... (KINGDOM COME, 2018).94

92
“As for John, he concentrated on his ambitions outside the kingdom and spent virtually no time in
Bohemia, other than to furnish himself with good silver”.
93
“He begins by stressing that ‘it behoves knights and nobles to wear their arms and carry pennants by
which they and their kin may be identified’”.
94
“Henry – I lost the only thing I had left from him, Your Sword. Sir Radzid – Ah! The sword. It’s not
my sword... It’s yours. For a moment there it was so near, yet so far. Oh well, I can’t be helped. Henry
– It was almost within my grasp, but... just then I had something else on my mind. Sir Radzid – Well,
I think we may yet have a chance to get it back. This business with Toth is not yet over, unfortunately.
Henry – It’s a chance I’d welcome. Not just to get the sword, but that bastard Istvan too. And them I’ll
66

A arma produzida por Henry e por seu pai de criação era uma espada digna de um
nobre portar, sendo isso mencionado em alguns momentos da narrativa. O fato de Sir
Radzid dizer que a espada não seria sua, mas sim do protagonista, abre a possibilidade de
pensar no reconhecimento de Henry que, enquanto filho bastardo de Sir Radzid, passa a
fazer parte de uma baixa nobreza na sociedade bohêmia.
Há ainda uma outra perspectiva, que podemos explorar a partir do conceito de
“adubamento”, discutido por Barthélemy.95 Segundo o autor, este era um ritual presente
nas sociedades francas desde o século VII e tradição dos povos germânicos. Em suma, o
adubamento seria um ritual de maioridade para um jovem receber armas, passando a ser
considerado não apenas um homem adulto, mas também um guerreiro e, posteriormente,
fazendo parte do ritual de tornar-se cavaleiro. Além da passagem da maioridade, o
adubamento também indicava a possibilidade do adubado poder reivindicar o direito à
herança (BARTHÉLEMY, 2010, p. 210), além de também criar uma relação de dívida de
quem é adubado com que aduba (BARTHÉLEMY, 2010, p. 217). Ora, podemos pensar
que, nesse caso, existia o interesse de Sir Radzid em tornar, de fato, Henry em seu herdeiro
reconhecido.
Em outra missão na fonte, A presa, há um diálogo interessante entre Henry e Sir
Capon:

Sir Capon – Então, você está aproveitando a caçada?


Henry – Estou, apesar de que nós na verdade não caçamos nada ainda.
Sir Capon – Isso não importa. Caçar é uma diversão. A coisa mais importante
é estar longe de Rattay por um tempo. Ouvir os sermões de Hanush todo o dia
deixam qualquer um irritado.
Henry – (pergunta selecionada pelos jogadores “Sobre o seus pais?”) Afinal,
como é que Hanush cuida de você?
Sir Capon – Para começar, ele não “cuida de mim”. Eu não sou uma
criancinha, menino ferreiro! Hanush está apenas administrando minha
propriedade até eu ser um adulto.
Henry – Quando isso vai acontecer?
Sir Capon – O que você está insinuando?
Henry – Nada! Eu não quis dizer isso, eu quis dizer é que você já parece um
adulto para mim, senhor.

find that German whoreson who torched Skalitz and I’ll slay him with it. I’ll never forget his face – or
his name: Markvart von Aulitz. Sir Radzid – Those are noble intentions, son (...)”.
95
Embora o conceito esteja distante do recorte, temos duas razões para pensar na sua utilização nesta
pesquisa: primeiro, o fato de ser parte de uma tradição de séculos naquela região, pensando na Bohemia
enquanto parte deste conjunto de povos que compunham o território da Germânia no século VII e que
pode ser pensando enquanto uma tradição que ali também manteve-se com algumas semelhanças com
o que ocorreu na Francia. Segundo, pelo fato das cortes do século XIV estarem fortemente influenciadas
pelos ideais e códigos cavaleirescos vigentes em grande parte da Europa, podemos pensar no
adubamento enquanto um ritual que ultrapassou as fronteiras do território francês.
67

Sir Capon – Bem, é difícil de explicar. Antes de morrer, meu pai designou um
conselho de nobres para decidir a questão. Só que eles não estão dispostos a
atravessar o país apenas para avaliar a reivindicação de um jovem. Sob
circunstâncias normais, não seria necessário. O rei poderia decidir pela minha
maioridade, só que...
Henry – O rei se foi.
Sir Capon – Exatamente. (KINGDOM COME, 2018)96

Tal questão, portanto, permite pensar no adubamento enquanto um ritual presente.


Sir Hans Capon, independentemente da idade, não seria reconhecido enquanto adulto,
precisando de uma aprovação de um nobre para ser considerado enquanto tal e para ter o
direito aos bens de sua família. Porém, tal interpretação encontra dificuldades, uma vez
que no códice do personagem, entre as informações, há a menção de que Sir Capon
somente conseguiu adquirir o direito À sua herança em 1412, nove anos após os
acontecimentos do jogo, tornando complicado pensar se seria o mesmo ritual ou se sofrera
alterações próprias nos contextos bohêmio e imperial.
Pensar numa cavalaria em KC é uma atividade complexa, já que não existe, no
jogo, um entendimento do que tornaria um homem um cavaleiro. Na narrativa principal,
somente personagens da nobreza possuem o título cavaleiresco. Entretanto, se os
jogadores forem em estabelecimentos comerciais trajando uma armadura, serão
chamados de cavaleiros pelos comerciantes, independente do personagem ter ou não a
nobreza reconhecida no jogo. Portanto, refletir sobre a nobreza cavaleiresca apresentada
na trama através dos valores e ideais que permearam tanto as ordens e como as cortes do
século XIV se tornou um terreno fértil para a análise das práticas nobres e,
concomitantemente, cavaleirescas.
As relações referentes à herança e adubamento aparecem em momentos pontuais
e sem muitas explicações. As informações que perpassam esses trechos são pontos de
interesse que não são explicados, apenas apresentados. Os desenvolvedores, ao
representarem um cenário histórico de maneira subjetiva, individualizada na perspectiva
do protagonista, tiveram, então, a oportunidade de apresentar algumas destas concepções

96
“Sir Capon – So, are you enjoying being on the hunt? Henry – I am, although we haven’t actually
hunted anything yet. Sir Capon – That doesn’t matter. Hunting is a diversion. The main thing is to get
out of Rattay for a while. Listening to Hanush’s lectures all day long woud drive anyone mad. Henry –
(pergunta selecionada pelos jogadores: “What about your parents?”) How come Hanush looks after you
anyway? Sir Capon – For a start, he doesn’t “look after me”. I’m not an infant, blacksmith’s boy!
Hanush is just managing my property, until I’m an adult. Henry – When will that happen? Sir Capon
– What are you implying? Henry – Nothing! I didn’t mean it like that, I meant that you seem quite adult
to me already, Sir. Sir Capon – Well, it’s hard to say. Before he died, my father appointed a council of
nobles to decide the matter. Only they can’t bothered travelling halfway across the country just to assess
the claim of some stripling. Under normal circumstances, it wouldn’t be necessary. The King would
decide on my adulthhood, only... Henry – The king is gone Sir Capon – Just so”.
68

do período para os jogadores através da inserção do protagonista em algumas destas


práticas. Usar de seu desconhecimento de Henry para aprofundar sobre esses temas, da
mesma forma que ocorre na missão Um juramento é um juramento, onde a existência de
um código de honra comum entre os nobres é brevemente contextualizado, era uma
possibilidade que faria sentido dentro da trama, sem deixa-la com uma percepção de
extrema explicação. Embora essa noção do código de honra seja bem conhecida por
historiadores, tais relações fogem do conhecimento e da representação desse período da
Baixa Idade Média por parte do público que não tem nenhuma obrigação de conhecê-las,
nem antes, nem depois da experiência narrativa no jogo.
Portanto, grande parte das características sociais representadas no jogo são amplas
e abertas à várias interpretações. Interpretações estas que, inclusive, ocuparam diversas
discussões nos fóruns do jogo na internet por parte dos jogadores.97 Tais aberturas podem
favorecer a historiografia pelo fato de deixar abertos espaços que poderiam ser ocupados
por trabalhos de historiadores, pensando na inserção da História nas discussões do público
sobre os eventos presentes no jogo. Conforme já apontado a partir dos trechos citados
nesta seção, permanece a impressão de que as relações indicadas nos diálogos têm uma
origem de fontes do passado. No entanto, a ausência de explicação para estas relações
possibilita pensarmos no modo como o uso de documentos ocorre, muitas vezes, sem uma
reflexão, permitindo assim, aos historiadores, assinalar, em certas relações representadas,
uma descrição metódica dos fatos ocorridos e associar isso a representações autênticas do
passado.

97
Disponível em: <https://forum.kingdomcomerpg.com/t/henry-is-a-nobleman-and-heres-why/60714/7>.
Acessado em 19/11/2019.
69

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Kingdom Com Deliverance é um jogo eletrônico que possibilita representar o


passado de uma forma distinta da construída pelos historiadores. Sua ambientação,
narrativa e jogabilidade buscam levar os jogadores para o século XIV e proporcionar uma
experiência diferente daquelas que as pessoas teriam ao assistir um filme ou interpretar
personagens em uma reencenação de um período ou de um conflito. Como Uricchio
aponta, os jogos seriam simuladores que criam representações limitadas pelo que foi
desenvolvido por seus criadores (URICCHIO, 2005, p. 333). Por isso, ao nos centrarmos
em sua narrativa principal, embora ela seja apenas uma pequena parcela do universo
apresentado, pudemos perceber que ela é um espaço comum a todos que pretendem
completar a experiência lúdico-narrativa da fonte.
Das questões trazidas na introdução, há duas que sintetizam de forma clara aos
questionamentos aqui feitos. A primeira questão nos leva a pensar se o passado
representado em Kingdom Come colabora para pensar uma perspectiva de passado
autêntica. A segunda, por sua vez, consiste em pensar em que medida podemos
estabelecer uma aproximação do passado representado na fonte com as análises realizadas
nas pesquisas historiográficas.
A partir de buscas por informações em fóruns na página online do jogo,
encontramos discussões que giram em torno do uso de fontes e, de fato, houve o uso de
documentos para justificar eventos que ocorrem na narrativa (como o assalto das forças
de Sigismund no início da trama)98 Conforme apresentado no decorrer desta pesquisa,
embora os desenvolvedores utilizassem documentos históricos e, presumivelmente,
discussões de historiadores, algumas relações do contexto eram apresentadas, porém, de
forma breve e sem apresentar um real questionamento de algumas das cenas que
apareciam na história, dando a impressão de terem sido colocadas apenas como uma
forma de mostrar que são elementos descritos em documentos sobre o período. Isso, por
si só, levanta a outro questionamento: utilizar documentos do passado nas representações
torna esse passado mais autêntico? Ou, pelo menos, menos questionável? A historiografia

98
No link a seguir há uma discussão nos fóruns online da desenvolvedora tcheca sobre algumas das fontes
utilizadas. Disponível em: https://forum.kingdomcomerpg.com/t/historical-sources/14981 e
https://forum.kingdomcomerpg.com/t/history-sources/33174. Acessado em: 31/10/2019.
70

há décadas coloca os historiadores como seres humanos subjetivos99, e isso quer dizer
que em todas as pesquisas existem intenções particulares em cada pesquisador. Embora
usar fontes do recorte seja algo positivo, assinalá-la como a representação mais fiel do
passado já feito esbarra na problemática de qual passado está sendo representado. E, além
disso, mais fiel para quem?
Deste modo, buscou-se nessa pesquisa tratar apenas das representações políticas
do enredo principal, pois pensar em uma autenticidade completa está muito além daquilo
que nossas condições permitiram desenvolver. Jogos, assim como qualquer criação
humana, são fruto da percepção e das crenças daqueles que as produzem. Seus
desenvolvedores colocaram seu trabalho como o melhor jogo que representa o passado
nos últimos 20 anos, e isso não é pouca coisa no mercado. Tal afirmação gerou várias
polêmicas e discussões sobre essa autenticidade em vários aspectos da vida social
demonstrada em Kingdom Come. Assim, procuramos delimitar nossos estudos em uma
narrativa social e política do período representada no documento, pois esta pareceu ser o
foco trazido na trama da fonte, possibilitando identificar essas relações presentes no jogo,
indicando possibilidades de reflexões também encontradas na historiografia medievalista.
Por fim, Kingdom Come possui elementos e discussões que são trabalhadas por
historiadores, mas existem diferenças claras. Enquanto os historiadores100 buscam
problematizar os documentos e refletir sobre os acontecimentos destacados, os
desenvolvedores pouco fazem isso. Acreditamos que isso se deva ao fato de serem duas
formas distintas de se usar o passado. Enquanto os historiadores lançam questionamentos
e problemáticas ao passado para pensar no próprio contexto atual a preocupação principal
dos desenvolvedores é criar um produto atrativo em um passado militar de guerras
medievais que ainda é um grande atrativo para o público contemporâneo, possibilitando
que estes criem e destaquem pontos não por sua relevância social, mas pelo
entretenimento e lucro que podem conquistar com sua criação.
Embora o documento traga uma representação que apresenta pontos do contexto
histórico retratado, dificilmente vistos em outros produtos, o próprio epílogo
complexifica a narrativa tornando os acontecimentos retratados na narrativa principal um
pequeno conflito, parte de outro muito maior e mais problemático. Seu enredo não deixa

99
Para pensar a construção da História enquanto construções narrativas subjetivas: Depois de ‘Depois de
aprender com a história’, o que fazer com o passado agora? (2011), de Hans Ulrich Gumbrecht, e O
texto histórico como artefato literário (2001), de Hayden White.
100
Partido das concepções teórico-metodológicas da historiografia francesa impulsionada pelas pesquisas
da revista dos Annales no século XX.
71

de ser produzido para o entretenimento, e isso se observa nas inúmeras convenções


narrativas que colocam Henry no meio deste conflito, bem como sua ascenção social
numa clara alusão às narrativas de heróis que surgem do nada.
72

FONTE
Vídeo Games

KINGDOM COME DELIVERANCE. Direção: Daniel Vávra. Produção: Martin


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76

ANEXOS

A trama principal em Kingdom Come Deliverance

Buscou-se aqui, neste anexo, apresentar e dividir, o prologo e as 30 missões da


trama principal do documento, em sete trechos a partir dos objetivos em torno das missões
e cinemáticas do jogo.

1) O prólogo

A história inicia com o protagonista narrando o começo de sua jornada e


contextualizando o período político em que se passa o jogo. As principais figuras
históricas que se apresentam neste momento são três membros da família real
Luxemburgo: o Imperador Charles IV e seus dois filhos, de mães diferentes, Wenceslas
IV (Imperador do Sacro Império e Rei da Bohemia) e Sigismund (Rei da Hungria). As
imagens construídas de Charles IV e Wenceslas IV são essenciais, conectando a narrativa
macro, décadas de relações políticas, à micro, apresentando-a em um delimitado recorte
temporal e espacial. Ao se dirigir a essas duas figuras, o protagonista relata a imagem que
havia sobre os dois Imperadores. O narrador coloca Charles IV como um grande
Imperador, tendo seu período de reinado como próspero e pacífico. Já o governo de
Wenceslas IV é apresentado como o oposto, um rei sem habilidades para governar
distante das obrigações que seu cargo lhe exige.

2) Introdução à história: pilhagem, identidade, cristandade, honra e vingança

Nas quatros missões iniciais: Uma visita inesperada, Corra, De volta ao lar e
Despertar,101 a história serve como uma grande introdução ao jogo e sua narrativa. Na
primeira missão, os jogadores são apresentados a Henry, um jovem entre 17 e 25 anos,
filho de um ferreiro e de uma camponesa e que sonha em viajar pelo mundo ao invés de

101
As missões em KC possuem diferentes subníveis, tendo o jogador que completar um conjunto de tarefas,
obrigatórias e/ou opcionais para de fato completá-las. Essa construção de missões possibilita que os
jogares possam realizar uma mesma missão de formas distintas. Na missão Todo esse brilho, o
protagonista precisa saber onde os bandidos estão alistando mercenários em Sassau. Os jogadores
podem obter a informação para chegar a eles de diferentes formas. Podem salvar a namorada do
assistente do joalheiro, podem lutar em nome de um ferreiro contra outro ferreiro que tem informações
ou pode lutar contra cinco homens, que lutam nos arredores da cidade à noite.
77

trabalhar como ferreiro pelo resto da vida. Nesse primeiro momento Henry precisa se
dirigir a diferentes locais de Skalitz para conseguir os materiais necessários para a
finalização de uma espada.
Ao obterem todos os itens pedidos por seu pai, estes logo começam a juntar as
partes da arma na forja. A espada foi forjada a pedido do nobre e governador local Sir
Radzid (Radek) Kobyla. Sir Radzid tem o primeiro vislumbre da qualidade daquela
espada junto com outro nobre que o acompanhava. Após todo esse processo, pai e filho
estranham o fato de um mensageiro cavalgar apressado para o castelo e o fato de verem
fumaça ao longe. Então ouve-se uma trombeta e surge nos morros próximos à vila um
exército que a invade, destruindo tudo e matando a todos.
Após presenciar a morte de seus pais, Henry rouba um cavalo e consegue fugir da
cidade enquanto é perseguido pelos atacantes, conseguindo chegar a uma vila murada
chamada Talmberg. Henry, neste momento, ferido por uma flecha na perna, avisa o nobre
local sobre o assalto em Skalitz. Na noite chuvosa do mesmo dia, o jogador descobre que
parte do povo, bem como Sir Radzid, conseguiu fugir dos inimigos que não perceberam
que eles deixaram o castelo durante a tempestade.
No dia seguinte, o exército de Sigismund aparece no horizonte de Talmberg.
Entretanto, diferente do que ocorreu em Skalitz¸ há apenas um diálogo de um dos nobres
aliados de Sigismund, Sir Markvart von Aulitz, com Sir Divish, Lorde de Talmberg. Em
meio a uma possível batalha os jogadores presenciam um diálogo entre dois nobres.
Sigismund procura o nobre que administrava Skatitz, acusado de usar a prata das minas
para financiar uma rebelião contra Wenceslas IV. A conversa termina com o exército
inimigo indo embora sem haver qualquer batalha.
Na tentativa de dar um funeral digno aos seus familiares, Henry foge de Talmberg
rumo à Skalitz. Na chegada de Henry à vila, o protagonista é atacado por mercenários,
tem a espada de Sir Radzid roubada e é salvo no último minuto por uma mulher, chamada
Thereza, e pelas forças de cavaleiros de Talmberg.
Esta primeira parte história tem fim na cidade de Rattay. O protagonista é levado
por Theresa, camponesa de Skatitz que havia sobrevivido a incursão, para a casa de seu
tio, um moleiro. Henry, já recuperado, após semanas de cama, vai até o menor castelo de
Rattay, composto praticamente por uma única torre, onde encontra Sir Radzid
conversando com Sir Hanush de Leipa (Hanus of Lipá), com Sir Hans Capon (Jan
Ptácek), respectivamente, o administrador (tutor) e o nobre herdeiro das terras da região
e um padre. Após uma longa e controversa conversa, Henry é aceito como homem das
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forças de Sir Radzid, começando a trabalhar como guarda em Rattay e a ser treinado em
armas.

3) Servindo à guarda e ao nobre

A segunda parte busca introduzir o protagonista nas relações militares e senhorias,


com foco nas missões Treine duro, lute fácil, Mantendo a paz e A presa. Após o
protagonista ser admitido nas forças de Sir Radzid, é-lhe incumbido a função de guarda
da cidade de Rattay, pensada na narrativa como uma forma de amenizar e controlar o
clima de tenção na cidade. Não apenas nobres de Skalitz haviam buscado refúgio Rattay,
mas toda uma gama de sobreviventes que ficaram em uma situação de mendicância.
Antes de começar a se aventurar enquanto guarda da cidade, Henry passa por um
treinamento básico com o capitão da guarda e tem uma pequena disputa, em tiro ao alvo
e luta com espadas, com Sir Capon. Em seguida, Henry faz uma ronda com um guarda
local. Nesta, Henry conhece a cidade e precisa resolver desavenças entre habitantes de
Rattay e os refugiados de Skalitz. As discussões entre os habitantes locais e refugiados
giram em torno do local onde refugiados poderiam ficar e pedir esmolas. Já no anoitecer,
o protagonista é encarregado de fechar a taverna da cidade devido ao toque de recolher.
Porém, encontra novamente Sir Capon, que desafia seu poder enquanto guarda, gerando
um conflito verbal acalorado, finalizado apenas com a intervenção de Sir Hanush, que
repreende ambos: Henry por ousar erguer a voz contra um nobre, independente do motivo,
e Sir Capon pelo fato de mesmo sendo um nobre, ter tomado atitudes que pouco
condiziam com seu status.
Por fim, a última missão do arco se trata de uma caçada na qual Henry é
encarregado de ser o guarda-costas do nobre. Durante a caçada ambos os personagens
falam sobre suas vidas, sobre como é viver como um nobre pelo lado de Sir Capon e como
foi o saque em Skalitz. Durante a caçada, o protagonista perde o nobre de vista, e após
explorar os arredores da região encontra-o capturado por dois guerreiros Cummans. Nesse
momento os jogadores podem escolher como querem salvar o nobre, se enfrentando os
inimigos de frente, matando-os durante a noite ou apenas libertando o nobre e fugindo do
local. Em qualquer um dos cursos de ação, as linhas de diálogo pouco se alteram, mas o
resgate marca um avanço na relação de confiança dos nobres com o protagonista.

4) Investigando um massacre e a vingança contra um inimigo


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A terceira etapa da narrativa perpassa um conjunto maior de missões, sendo essas:


A caçada começa, Ginger em apuros, Maneira misteriosas, No rastro, Meu amigo
Timmy, Ninho de víboras e Batismo de fogo. Esta seção da história tem como principal
ação a de investigar um ataque em uma pequena vila nobre próxima a Rattay, onde a
população foi atacada na calada da noite.
Henry é chamado por Sir Hanush, que lhe dá um cavalo por salvar a vida de Sir
Capon na missão A presa, onde este, durante uma caçada, é capturado por Cummans
inimigos. Na missão A caçada começa, é relatado aos presentes no espaço sobre o
massacre ocorrido em Neuhof, uma vila que possui relação direta com a nobreza de
Rattay. Sir Hanush manda, de imediato, um grupo de guardas para investigar o massacre,
e entre estes guardas estava o protagonista.
Deste ponto em diante se inicia um trabalho de investigação na trama, pois em
Neuhof, uma pequena vila onde os camponeses sobreviviam principalmente da criação
de cavalos, o assalto não teve como objetivo roubá-los, mas sim matá-los. A partir de
então, Henry parte em busca de informações, enquanto homem a serviço direto de Sir
Radzid.
No final d o processo de busca, o protagonista chega a uma base de parte das
forças que pilharam Skalitz junto com Sigismund, em uma antiga fortificação
abandonada, localizada ao norte da região. Esse é o primeiro momento em que há uma
batalha entre grupos no jogo: de um lado, as forças militares comandadas por Sir Radzid,
e de outro, um grupo de mercenários aliados com os Cummans.
Durante essa luta, o protagonista encontra um dos antagonistas da trama: o líder
do bando de mercenários que o havia atacado e roubado a espada quando tentou enterrar
seus pais. Após a derrota do inimigo, o protagonista questiona-o sobre o paradeiro da
espada, e então ocorre um ato considerado nada nobre, quando Henry agride o inimigo
batendo sua cabeça contra o chão até a morte.

5) Moedas e Monastério

Após as brilhantes realizações do protagonista como investigador, é lhe dada a


missão de viajar para uma vila e investigar a circulação de moedas falsas que estavam
sendo distribuídas e usadas pelo povo para pagar os impostos aos nobres. Este quarto ato
é marcado pelas missões: Todo esse brilho, Se você não pode vencê-los, Pobreza,
80

castidade e obediência, Uma agulha no palheiro, O dado está lançado, Retorno, Fora da
frigideira e o Assalto noturno.
Em suma, este ato é dividido em dois momentos. Num primeiro, o jogador precisa
ter acesso ao cativo feito pelos camponeses. O prisioneiro era mercenário que havia
tentado saquear a vila junto com seu grupo, mas foram pegos de surpresa pela resistência
camponesa, sendo este capturado pelos habitantes locais. Mesmo sendo um enviado em
nome dos governantes da região, os jogadores podem escolher por ajudar a população,
que sofria de uma doença, ou pegar o mercenário a força. Após ter acesso às informações,
Henry descobre que a fabricação de moedas tinha envolvimento com um grupo de
mercenários localizado em Sasau. Para obter mais informações, os jogadores devem se
infiltrar no grupo e, para isso, precisam entrar no monastério da cidade e matar um antigo
membro do grupo que havia buscado refúgio no convento, passando a viver como noviço.
Ao entrar no monastério, seja invadindo ou entrando disfarçado, Henry pode
matar o noviço ou ajudá-lo a fugir, ganhando em troca informações, dentre as quais uma
diz respeito ao fato de que o noviço era vítima, uma vez que fez o que fez para conseguir
a confiança dos inimigos, descobrindo assim, sua base de operações. Os jogadores têm
que descobrir o local dos inimigos, estando ao sul da Sasau, em uma antiga fortificação
chamada Vranik. Henry adentra no perímetro buscando o máximo de informações
possíveis, assim como havia feito em Pribslavitz. Porém, é surpreendido por uma figura
que o reconhece, um homem chamado Sir Istvan, nobre que havia estado com Sir Radzid
momentos antes do assalto das forças de Sigismund em Skalitz, e não somente isso: o
nobre também tinha em sua posse a espada forjada pelo pai de Henry.
Descoberto e em menor número, Henry é capturado e mantido vivo. A explicação
para o seu cativeiro é trazida na cena seguinte, quando Sir Istvan faz a grande revelação
de toda a narrativa, a de que Henry não era filho de Martin, o ferreiro, mas sim filho
bastardo de Sir Radzid. O nobre então busca manter Henry como uma possível fonte de
resgate, sendo deixado acorrentado pelos mercenários.
Horas depois, o protagonista é libertado por um antigo morador de Skalitz, que
havia se juntado aos mercenários após o assalto e que se encontrava arrependido, vendo
na libertação de Henry uma forma de conquistar o perdão dos nobres, bem como uma
soma de moedas. Livre de suas correntes, resta ao protagonista conseguir escapar da
fortaleza e retornar a Rattay para relatar suas descobertas.
As ações, neste trecho, são dinâmicas, não havendo grande separação temporal
entre elas. Em questão de dias, os nobres da região juntam um exército e marcham para
81

Vranik antes que as forças de Sigismund possam retornar e auxiliar o exército de


mercenários. O ataque ocorre durante a noite, sendo uma batalha sangrenta com a vitória
esmagadora das forças aliadas, mas sem nenhum nobre inimigo morto ou capturado. Ao
vasculharem as redondezas, o protagonista e os seus descobrem uma carta deixada por
Sir Istvan, que deixa por escrito seu plano: deixar uma pequena força ali em Vranik e,
como grande objetivo, tomar o castelo de Talmberg.

6) O cerco

O exército mercenário, com o auxílio de Sir Istvan, consegue enganar Lady


Stephanie e seus guardas ao entrarem no castelo pedindo ajuda após um ataque. As
missões que marcam esta parte são: Cerco, Aço frio, sangue quente, Valores familiares e
Um juramento é um juramento. Ao voltar para retomar Talmberg, Sir Radzid é capturado
pelas forças inimigas. A partir de então a narrativa se centra nos arredores da vila onde as
forças dos lordes aliados organizam um sítio aos inimigos instalados em Talmberg.
Entre o período de negociações, há tentativas de ambos os lados para enfraquecer
seus oponentes. Em um primeiro momento é dada a oportunidade de salvar os reféns,
onde os jogadores, junto com Sir Capon, devem escalar as muralhas durante a noite com
um pequeno grupo e tentar salvar os cativos. A missão, porém, é extremamente difícil de
ser completada com sucesso, tornando a sua falha possível na narrativa, fazendo com que
o protagonista possa ser salvo por Sir Capon. Do lado do exército mercenário, suas forças
aliadas se dirigem para a vila. Ocorre uma intensa batalha entre os dois grupos,
possibilitando a Sir Divish e Sir Hanush capturarem o líder desse ataque, tomando-o como
prisioneiro.
Os dias passam e os lados não chegam a um consenso, embora os reféns de ambos
os lados aparentem estarem sendo bem tratados. Porém, parte dos aliados do protagonista
temem o retorno das forças do Rei húngaro, o que poderia mudar totalmente o rumo do
cerco. A partir daí são tomadas diversas medidas, realizadas pelo protagonista, por meio
de missões secundárias, para garantir o sucesso do assalto a Talmberg. Henry irá procurar
recursos, comidas e bebidas, um médico, um padre, poções e um engenheiro militar que
irá construir um trabuco para destruir o portão de ferro da fortificação.
Após alguns dias, o ataque ao castelo de Talmberg ocorre na história. O avanço é
realizado por duas frentes, uma pelo portão destruído e outra pelas muralhas com o auxílio
de grandes escadas. Com a vitória sobre as forças inimigas, restam apenas alguns
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mercenários juntos de Sir Istvan com os dois principais reféns. Ao invés de arriscaram
um ataque, os nobres negociam a liberdade de Lady Stephanie e Sir Radzid, concedendo
um salvo-conduto ao nobre inimigo, caso liberte os cativos sem maiores danos.
Lady Stephanie é libertada em Talmberg. Porém, Sir Istvan mantém o pai de
Henry ainda como refém até estarem seguros das forças vitoriosas. Ao se encontrarem
distantes, Henry e Sir Capon seguem o caminho que os inimigos percorreram e acabam
por encontrar Sir Radzid sozinho perto das ruinas de Skalitz. A história caminha para seus
últimos momentos no jogo. Há uma conversa entre pai e filho, na qual Henry ainda se
sente culpado pelos seus pais mortos, jurando manter a vingança e recuperar a espada de
seu novo pai. A missão termina com um exército se deslocando para a região.

7) Encerramento?

Por fim, resta tratar das duas últimas missões: Epílogo e Vingança. A força militar
que se locomovia pela região era de uma importante figura nobre do Sacro Império, um
dos primos de Wenceslas IV e Sigismund, Jobst da Moravia. A missão final tem início
com Henry vivendo de forma muito diferente. Se antes dormia em camas desconfortáveis
e vestia roupas rasgadas, acorda agora com uma vestimenta nobre, dormindo na torre
disponibilizada para Sir Radzid em Rattay.
O protagonista é convocado pelo seu pai a comparecer a uma importante reunião.
Nela estão somente figuras nobres: Sir Radzid, Sir Capon, Sir Hanush, Sir Divish, Sir
Jobst, entre outros. O principal tema da discussão era a crise em que a Bohemia se
encontrava e a necessidade de que tivesse um rei, no caso, o retorno de Wenceslas IV. A
discussão atinge patamares inimagináveis para a narrativa, uma vez que Sir Jobst discute
sobre o que de fato havia ocorrido. Wenceslas IV havia entrado em contato com o irmão
e lhe pedido ajuda para restaurar a ordem no Reino, Iniciamente, Sigismund o auxilia, na
perspectiva de Sir Jobst, como uma forma de assim garantir uma possível coroação do
Reino e do Império futuramente. O nobre continua a conversa destacando que mesmo os
nobres bohêmios que apoiaram Sigismund começaram a perder a fé após os assaltos
realizados pelo Rei da Hungria.
O resultado desta reunião é Sir Capon disposto a visitar um dos nobres bohêmios,
apoiadores de Sigismund, buscando informações sobre como estaria o clima entre estes e
o rei atacante. Henry é solicitado para ir junto, como guarda-costas, devido às suas
habilidades de combate, de investigação e observação que demonstrou no desenrolar da
83

narrativa. A trama tem final com a cavalgada do grupo em direção ao castelo do nobre,
deixando em aberto a vingança de Henry e, por sua vez, a missão Vingança para uma
continuação.

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