Padrão para submissão de trabalhos XXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação: O Jornalismo Mágico de Garcia Marquez

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 20

Padrão (template) para submissão de trabalhos ao

XXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação:

O Jornalismo Mágico de Gabriel Garcia Marquez1

Heloiza Golbspan Herscovitz2


Professora-Adjunta , Departamento de Jornalismo,
Centro de Comunicação e Expressão, UFSC

Resumo

Este trabalho discute a relação entre a literatura e o jornalismo produzidos por


Gabriel Garcia Marquez, e examina a criação de um jornalismo literário latino-americano
salpicado de realismo mágico, estilo que o escritor consagrou. Para isso, este estudo
contrasta o livro “Crônica de uma Morte Anunciada”, de Garcia Marquez, à receita de
jornalismo literário prescrita pelo escritor norte-americano Tom Wolfe, um dos criadores
do new journalism. A análise do livro confirma a hipótese de que “Crônica” é um exemplo
de “jornalismo mágico”. O texto discute também o jornalismo produzido por Gabriel
Garcia Marquez quando jovem e as implicações éticas e profissionais que enfrentam os que
trabalham na fronteira entre a realidade e a imaginação, o mito e a história, o jornalismo e a
literatura.

Palavras-chave

Jornalismo literário; Garcia Marquez; jornalismo mágico; new journalism, Tom Wolfe.

Corpo do trabalho

O JORNALISMO MÁGICO DE GABRIEL GARCIA MARQUEZ

1
Trabalho apresentado ao NP 02 – Jornalismo, do IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom.
2
Jornalis ta e doutora em Comunicação de Massas pela University of Florida com pós-doutorado pela
University of Miami. Natural de Porto Alegre e ex-bolsista da Fulbright, foi também professora da Florida
International University, de Miami, onde coordenou o programa de mestrado em Jornalismo em espanhol para
jornalistas latino-americanos. [email protected]
“Lo malo es que en periodismo un solo dato
falso desvirtúa sin remedio a los otros datos
verídicos. En la ficción, en cambio, un solo
dato real bien usado puede volver verídicas a
las criaturas más fantásticas” (Gabriel Garcia
Marquez, 1981).

Este trabalho discute a relação simbiótica entre a literatura e o jornalismo


produzidos por Gabriel Garcia Marquez, e examina a criação de um jornalismo literário
latino-americano influenciado pelas correntes jornalísticas regionais, salpicado de realismo
mágico, estilo que o escritor consagrou. Para isso, este estudo contrasta o livro “Crônica de
uma Morte Anunciada”, de Garcia Marquez, à receita de jornalismo literário prescrita pelo
escritor norte-americano Tom Wolfe, que norteou o estilo de vários escritores-jornalistas
nos Estados Unidos.
Crônica de Uma Morte Anunciada” é apresentada aqui como um exemplar muito
peculiar de jornalismo litérario. A análise do livro confirma a hipótese de que “Crônica” é
um exemplo de “jornalismo mágico”, combinação entre jornalismo literário e literatura
jornalística ao estilo de Garcia Marquez. O texto discute também o jornalismo produzido
por Gabriel Garcia Marquez quando jovem e as implicações éticas e profissionais que
vivem os que trabalham na fronteira entre a realidade e a imaginação, o mito e a história, o
jornalismo e a literatura.
Geração Latino-Americana
Garcia Marquez pertence a uma geração de escritores latino-americanos surgida na
década de 1960, junto com Mario Vargas Llosa, Julio Cortazar, Carlos Fuentes, Augusto
Roa Bastos, Guillermo Cabrera Infante, Alejo Carpentier e José Donoso. Estes escritores
transformaram os anos 60 na década do boom latino-americano. Seus trabalhos ficaram
conhecidos internacvionalmente e se tornaram best sellers na América Latina, Estados
Unidos e Europa. O auge da explosão latino-americana ocorreu em 1967 com a publicação
de “Cem Anos de Solidão”, de Garcia Marquez.
É difícil traçar um perfil daquela geração de escritores. Eles não faziam parte de
uma escola literária específica, mas compartilhavam uma preocupação com a linguagem e a
forma bem como uma ênfase em elementos universais da experiência humana (McMurray,
1987, p. 9). Também compartilhavam uma visão marxista e a crença de que a literatura
tinha uma papel social na América Latina (Franco, 1994).Alguns deles começaram sua
carreira profissional como jornalistas, entre eles Garcia Marquez, Vargas Llosa, Carlos
Fuentes, Alejo Carpentier, Julio Cortazar e José Donoso (Gonzalez, 1993). Grande parte
desse grupo tinha formação intelectual influênciada pela avant-garde européia, a novela
francesa e modernismo norte-americano.
Realismo Mágico
No entanto, estes intelectuais refinados, que conheciam bem as tendências literárias
estrangeiras, não abraçaram o realismo puro e o naturalismo produzidos no chamado
primeiro mundo. Estes estilos aparentemente não se ajustavam ao contexto literário latino-
americano. Franco (1994) explica que enquanto os escritores europeus defrontavam-se com
uma realidade “normal”, sem surpresas, os escritores latino-americanos viam-se diante de
uma realidade extraordinária, singular. “A realidade é muito complexa e fantástica, a
sociedade é muito dispersa para que o estilo de Balzac tenha sucesso,” escreveu Franco
(1994, p. 311). Martin (1995) sugere que a realidade latino-americana não se enquadra np
modelo europeu baseado no capitalismo racional, no desenvolvimento progressivo e linear.
Os escritores latino-americanos daquela geração romperam com o realismo
tradicional e abraçaram um mundo no qual a fantasia e a realidade fundiram-se para formar
uma nova esfera chamada realismo mágico. No início dos anos 70, os escritores latino-
americanos discutiam se sua narrativa realista ou fantástica, como expressa o seguinte
diálogo entre Vargas Llosa e Garcia Marquez de 1972 (Marquez e Vargas Llosa, p. 27-29,
tradução livre):
V.L.: “Você se define como um escritor realista ou ficcionista ou não existe tal
distinção?
G.M.: Em “Cem Anos de Solidão” eu sou um escritor realista porque na América
Latina tudo é possível, tudo é real...Estamos cercados pelo extraordinário, por coisas
fantásticas...Temos que trabalhar a linguagem e a técnica literária para incorporar a
realidade fantástica latino-americana em nossos livros e fazer com que a literatura transmita
o estilo de vida latino-americano no qual coisas extraordinárias acontecem todo o dia como
coronéis que lutaram 34 guerras e perderam todas...Os escritores latino-americanos
precisam escrever sobre essa realidade ao invés de buscar explicações racionais que não
representam essa realidade. Temos que assumir essa realidade porque ela tem algo novo
para oferecer à literatura universal.”
Marquez falava do realismo mágico, termo mais identificado com seu próprio
trabalho do que com a obra de outros escritores latino-americanos. Mas o que é realismo
mágico? De acordo com Gerald Martin (em Fiddian, 1995), realismo mágico é uma
narrativa que não distingue o fantástico do real, o mito e a história. É considerado um estilo
derivado do movimento surrealista.
Quem conhece a vida na América Latina sabe que o cotidiano surpreende mais do
que a ficção. É difícil ver borboletas amarelas voando em torno de uma pessoa ou uma
linha de sangue percorrendo o caminho da mãe da vítima, como descreveu Garcia Marquez.
Mas a mídia registra situações que desafiam o bom senso. Governos autoritários
perpetuaram a injustiça social e a brutalidade herdadas do colonialismo. As forças
contraditórias de um subdesenvolvimento acelerado e uma modernização compulsiva
descritas por Barbero (1988) apanham os habitantes numa armadilha que os leva a
responder aos acontecimentos de maneira surpreendente. Quem conhece a América Latina
sabe que o realismo mágico não é mera distorção da realidade nem uma simples incursão
abstrata a um mundo irracional. Mas anda de braços dados com a crença no sobrenatural
herdada dos índios da região e dos escravos africanos, terminando por tornar-se quase uma
escolha natural dos povos latino-americanos.
Jornalismo na América Latina
Merrill (1989) argumenta que o jornalismo de um país reflete o sistema
político/econômico e o contexto cultural em que opera. “O jornalismo de uma nação não
fica atrás do desenvolvimento geral e dos valores de uma sociedade, nem excede os limites
permitidos por essa mesma sociedade” (Merrill, p.108). Assim, o jornalismo latino-
americano com suas variantes em cada país da região seria um reflexo do sistema político,
econômico e cultural de cada nação. O mesmo pensamento aplica-se ao jornalismo de
outros países.
Além disso, os alicerces filosóficos que informam a cultura e os valores de uma
nação também inspiram o estilo de jornalismo que adotam. A cultura norte-americana
absorveu dos racionalistas ingleses o pragmatismo, o individualismo e o empiricismo,
coroando-os com a ética protestante (Altschull, 1990). Já a América Latina absorveu da
Espanha e de Portugal os valores da filosofia grega e da tradição latina que valorizam a
retórica, a especulação e o conhecimento abstrato (Pierce, 1979). Na sequência histórica, os
latino-americanos herdaram do ideário francês a crença no papel da imprensa como
instrumento de reforma social, num estado forte e na vontade coletiva (Altschull, 1990).
Outras características da sociedades latino-americanas como catolicismo, o
patriarcalismo, o corporativismo e a imobilidade social contribuem para definir o tipo de
jornalismo produzido na região. Tradicionalmente, as autoridades não prestam contas à
população e a opinião pública não tem respeito pelas mesmas autoridades. Ao contrário da
sociedade norte-americana, que salienta o papel do indivíduo e da liberdade individual
enquanto o estado funciona numa espécie de “piloto automático” a serviço da população, as
sociedades latino-americanas destacam a unidade familiar e a rede de parentes e amigos nas
quais o indivíduo se apoia para defender seus direitos ante um estado ineficiente e pobre em
recursos (Freire, 1963; da Matta, 1990). Na sociedade norte-americana, auto-suficiência e
autonomia são considerados valores positivos, isto é, o indivíduo tem o direito de perseguir
seus sonhos e realizá-los e pode alcançá-los por seu próprio esforço. Nas sociedades latino-
americanas, auto-suficiência e autonomia são percebidos como sinais de egoísmo e
solidão; incentiva-se a interdependência entre as pessoas e o ato de compartir.
Conceito de Notícia
Robert N. Pierce (1979), professor norte-americano e estudioso da América Latina,
observa que a crítica política é uma função quase natural do jornalismo latino-americano,
particularmente nos períodos que antecederam as transições democráticas. Na opinião de
Pierce, o jornalista latino-americano usualmente rejeita o rigor do método científico que o
autor vê como pai filosófico do conceito de notícia. Já o conceito de notícia na América
Latina teria como pai filosófico as retóricas e as argumentações Grega e Latina.
O conceito de notícia na América Latina foi originalmente entendido como uma
corrente de opinião e o jornalista considerava-se um intérprete de eventos. Na maioria dos
países latino-americanos, a imprensa seguiu um modelo de jornalismo francês, mesclando
ativismo político e literatura. Não existia uma separação definida entre jornalismo e
literatura. A profissão era descrita como uma arte e/ou missão ((Danton Jobim, 1953; Reyes
Matta, 1979).
Atualmente, os grandes jornais seguem controlados por famílias tradicionais que
investem também em rádio, revistas, televisão aberta e fechada e telefonia. Muitas dessas
empresas estão se profissionalizando e operam com relativa independência dos governos,
mas ainda precisam dos anúncios de entidades públicas e em alguns países sobrevivem com
empréstimos do governo. Em vários momentos da história latino-americano, entretanto,
jornais enfrentaram suspensões, fechamentos, censura e suborno, além de conviverem com
a influência indireta de governos, partidos políticos e grupos econômicos. Isso explica em
parte o estilo politizado e combativo de muitos jornais, especialmente nos países que
enfrentaram períodos mais longos de ditaduras militares ou civis.
Ao longo da história, Colômbia, Costa Rica e Venezuela foram os únicos países a
experimentar uma vida política mais estável. Colômbia, no entanto, viveu por quatro anos
sob a ditadura do general Gustavo Rojas Pinilla (1053-1957), um dos períodos em que
Garcia Marquez atuou como jornalista. Na década de 1950, as sedes dos jornais liberais
como El Tiempo e El Espectador foram queimadas. Apesar de ter desfrutado certa
estabilidade política, a transição colombiana para a modernidade foi uma das mais
sangrentas no continente sul-americano devido às guerras entre liberais e conservadores de
1899 a 1902 e ao Bogotazo, uma revolta política violenta registrada em Abril de 1948 pelo
assassinato do liberal Jorge Gaitan que se espalhou pelo país causando a morte de centenas
de pessoas. Em outro episódio em 1979, a democracia colombiana mostrou um grande
poder de repressão ao decretar a prisão de centenas de artistas e intelectuais (BELL-
VILLADA, 1990).
O Jornalismo de Garcia Marquez
Na juventude, Garcia Marquez trabalhou como colunista a exemplo de outros
escritores como Jorge Luiz Borges e Alejo Carpentier, e também como repórter
investigativo para os jornais colombianos El Universal, El Heraldo e El Espectador.
Também escreveu para as revistas Momento e Venezuela Gráfica e para a agência cubana
de nóticias Prensa Latina (GONZALEZ, em ORTEGA, 1982). Alguns críticos alegam que
o jornalismo e a ficção de Garcia Marquez olhavam a realidade sob o mesmo ângulo
(OBERHELMAN, 1991). Outros acusam o escritor de fazer uma interpretação suspeita da
realidade com o propósito de oferecer aos leitores uma percepção irracional da realidade
(MCNERNEY, 1989).
Sua produção jornalísticade 1947 a 1960, reunida em cinco volumes entitulados
Obra Periodistica, publicados em 1982, aponta na direção de McNerney. Em muitos destes
textos jornalísticos, Garcia Marquez rejeita a razão e descreve uma realidade quase
sobrenatural, distanciando-se dos cânones jornalísticos que estabelecem a objetividade
como ideal da profissão. De acordo com Sims (1992), as reportagens investigativas de
Garcia Marquez na década de 1950 combinavam jornalismo e literatura, com um foco no
contexto humano. Marquez apresentava uma visão da realidade que simultaneamente
refletia os fatos e os transcendia, explica Sims.Um exemplo desse estilo é a série sobre o
Chocó, a região mais isolada e negligenciada da Colômbia. O Chocó está isolado da
floresta amazônica pela cordilheira andina e é o ponto mais úmido do planeta.
O seguinte trecho foi retirado de diferentes partes da reportagem “O Chocó
ignorado pela Colômbia,” escrito por Garcia Marquez e publicado em 1954 pelo jornal El
Espectador (MARQUEZ, 1985, pp. 104-108):
“Ainda hoje é difícil chegar a Quibdó como era há 200 anos. Encontrar Quibdó
requer tanto trabalho quanto há 200 anos. Há três maneiras de chegar lá. Apesar do tempo,
do progresso e da técnica, a maneira mais barata, viável, e segura ainda é o rio
Atrato...Quibdó não tem aeroporto: a pista de pouso é o rio Atrato e os aviões que descem
ali parecem aqueles aviões expedicionários que procuravam por Tarzan... Quando chove—
no Chocó chove 360 dias por ano--, a água penetra a fuselagem e voar a 800 pés de altura
faz a gente sentir-se num naufrágio...O mapa mostra uma estrada de 160 km que é pura
especulação cartográfica: Medellin-Quibdó. Viajar nesta estrada é sofrer 22 horas horas de
agonia e exaustão em carros cheos de mercadorias e animais...Por isso viajar ao Chocó tem
sido uma aventura fantástica por mais de um século. E ainda é uma aventura a ser
descoberta...Quibdó é um vilarejo de gente civilizada...mas parece um acampamento no
coração da floresta. Tem casas empoeiradas, feitas de compensado e teto de zinco, ruas
tortas e pessoas que se vestem de branco e carregam guarda-chuvas sob os braços. No
horário de trabalho, os habitantes cozinham a uma temperatura de 40 graus à sombra...Há
muitos anos, os chocoenses pedem uma estrada. Não interessa em que direção desde que
rompa o sufoco da floresta. Dezoito dias atrás, o locutor profissional que lê comerciais num
microfone na cidade disse aos habitantes de Quibdó que, ao invés da estrada que pediram
por tanto tempo, iria acontecer exatamente o oposto: o Chocó seria dividido por um
canetaço...Toda a população ouviu a notícia na rua principal e ficou lá por treze dias
cantando, escutando discursos, tremulando a bandeira colombiana...aqui as pessoas
aprendem a le r o código civil...Todos sabem ler e escrever e e explicam os problemas do
Chocó sem ser perguntados, simplesmente pelo hábito de repeti-los todos os dias...”
(tradução livre).
Em longa análise do trabalho de Garcia Marquez como jornalista, Sims (1992) nota
que Garcia Marquez converte eventos marginais registrados em regiões geográficas
remotas como o Chocó no foco central de uma grande reportagem. Na série sobre o Chocó,
o escritor mostrou o descaso e o abandono vivido pela população. Produziu uma história de
interesse humano enfocando a tragédia do Chocó.
Mais do que isso, Garcia Marquez recriou o evento inteiro. Ao receber um
telegrama do correspondente em Quibdó, capital do Chocó, descrevendo a mobilização
popular contra a proposta do governo de dividir a área, El Espectador mandou Garcia
Marquez à região para fazer uma reportagem sobre a mobilização popular. Depois de viajar
por dois dias, o escritor chegou a uma cidade deserta onde nada estava acontecendo.
Garcia Marquez conta:
“Como levei dois dias para chegar até lá e o fotógrafo se recusava a voltar sem
fotos, decidimos de mútuo acordo com Primo Guerrero (o correspondente local) organizar
uma demonstração popular que foi anunciada com tambores. No segundo dia, espalhamos a
informação e no quarto dia chegou um exército de repórteres e fotógrafos em busca da
multidão. Tive de explicar a eles que neste cidade miserável todo mundo dormia, mas que
tínhamos organizado um protesto popular enorme, e foi assim que o Chocó se salvou”
(SIMS, 1992, p. 133).
Ao fabricar a demonstração popular no Chocó, Garcia Marquez violou várias
normas jornalísticas. Sims explica: “O jornalismo de Marquez não contém dados oficiais
dos eventos. É uma crônica humana da história oficial” (p.147).
El Espectador endorsou a fabricação de Garcia Marquez sobre o Chocó. Em vários
editoriais e colunas, o jornal denunciou periodicamente a situação política da região. “O
escândalo provocado pela proposta de divisão do Chocó foi utilizado pelo jornal marcando
uma nova etapa em seu confronto com o governo,” explicou Jacques Gilard, segundo quem
Garcia Marquez não precisou inventar nada para descobrir o realismo mágico do Chocó
(SIMS, 1992).
Uma cidade isolada, sem estradas, ofereceu ao escritor as contradições e os
elementos surpreendentes que o autor utilizaria mais tarde na ficção. O Chocó é “um
paradoxo administrativo”, escreveu Garcia Marquez. Quibdó se parece a Macondo,
principalmente quando Garcia Marquez descreve seu passado glorioso e sua “economia
nostálgica que aprisionou gerações.” (Sims, 1992, p. 143).
Depois da série sobre o Chocó, e com o aval de El Espectador, que apoiava o estilo
jornalístico de Garcia Marquez, o escritor seguiu subvertendo normas jornalísticas e
confrontando versões oficiais do governo colombiano como no caso dos soldados
colombianos que retornaram da Guerra da Coréia. Na reportagem “Da Coréia à Realidade”,
publicada em dezembro de 1954, Garcia Marquez contestou a versão patriótica do governo
ao revelar o status de pária de muitos veteranos e sua inabilidade de se reintegrarem à
sociedade colombiana.
Escreveu também “Relato de um Náufrago”, uma reportagem em série considerada
uma peça clássica de seu trabalho como jornalista, que apareceu pela primeira vez em 1955
nas páginas de El Espectador. Publicada em livro em 1970, o relato conta o drama de um
marinheiro que sobreviveu a um acidente com um destróier colombiano por excesso de
peso. As primeiras notícias davam conta de um acidente com o destróier Arc Caldas devido
a uma tormenta que causou a morte de oito marinheiros. Luiz Alejandro Velasco, o único
sobrevivente, passou dez dias a deriva numa balsa salva-vidas até alcançar a costa
colombiana.
O governo do ditador Rojas Pinilla apresentou o marinheiro como herói e escondeu
as causas do acidente: excesso de peso por contrabando. A Marinha colombiana proibiu o
marinheiro de falar à imprensa, mas mais tarde Velasco foi à redação de El Espectador
contar sua versão do naufrágio. Ninguém na redação estava interessado em ouvi-lo, porque
o marinheiro aproveitara a oportunidade para ganhar uns trocados fazendo comerciais de
relógios e sapatos (MCNERNEY, 1989). Garcia Marquez decidiu entrevistá-lo em 20
sessões, cada uma com seis horas de duração, como explica em seu livro. Em 1979, o
escritor contou como montou a história e esclareceu sua visão do processo de entrevista.
“Ele me contava a história e eu o escutava como um psicanalista. Sabia que havia
furos na história do ponto de vista literário. Baseando-me em minhas anotações, reconstruí
a aventura. Nenhuma única frase de “Relato de Um Náufrago” pertence ao marinheiro
Velasco, mas toda a informação veio dele. Minha tarefa foi conferir um enquadramento
literário à história, dando-lhe estrutura, estilo e a atmosfera necessária para interessar ao
leitor” (SIMS, 1992, p.163).
Segundo Garcia Marquez, ele e o marinheiro concordaram que a história seria
narrada na primeira pessoa e assinada pelo escritor. O uso da primeira pessoa serviu à
estratégia da narrativa e elucidou a visão do escritor sobre a entrevista enquanto gênero
literário. Disse Garcia Marquez:
“A maioria dos jornalistas deixa o gravador fazer o trabalho e pensa que está
respeitando o desejo do entrevistado ao transcrever palavra por palavra do que ele diz. Não
se dão conta de que seu método de trabalho é desrespeitoso: quando alguém fala, hesita, sai
pela tangente, não termina a frase e faz comentários tolos. Para mim, o gravador deve ser
usado apenas para gravar o que jornalista poderá utilizar mais tarde, material que ele
interpretá e escolherá para apresentar ao seu modo. Nesse sentido, é possível entrevistar
alguém da maneira como se escreve uma novela ou poema”( SIMS, 1992, p. 163, tradução
livre).
Críticos alegam que o jornalismo de Garcia Marquez de 1948 a 1955 não apenas
estabeleceu as bases de seu trabalho literário, como também definiu seu estilo singular de
reportagem. Como muitos outros jornalistas latino-americanos que entraram para a
profissão entre 1940 e 1970, Garcia Marquez adotava o conceito de intérprete dos eventos e
defensor de causas sociais. Essa visão, herdada em parte do jornalismo europeu, opõe-se à
noção de objetividade do modelo norte-americano, inicialmente adotada como estratégia
comercial e, mais tarde, incorporada às normas profissionais e a ideologia de
responsabilidade profissional (CAREY, 1969).
O jornalismo de Garcia Marquez alia-se a uma visão independente e crítica do
repórter, assumindo um papel ativo no processo de comunicar uma cena ou evento ao
público. O escritor distancia-se da idéia de objetividade porque não está interessado na
sequência lógica da realidade. Sente-se livre para contar as emoções humanas e o impacto
de forças impessoais como a tecnologia ou a crise econômica na vida das pessoas. Estes
elementos, na opinião de Carey (1969), são os que realmente dão forma aos eventos. Essa é
uma tradição do jornalismo latino-americano, que contrasta com o jornalismo norte-
americano, mais interessado em encontrar explicações lógicas e racionais para desvendar o
caos, a realidade múltipla e fragmentada.
Apesar de independente e crítico, o jornalismo de Garcia Marquez em seus
primórdios falha ao não alinhar-se aos princípios de veracidade e exatidão. O escritor optou
por organizar ele mesmo a demonstração de Quibdó, no Chocó, transformando-o em um
evento com repercussão nacional. Também violou os princípios de veracidade e exatidão
em “Crônica de uma Morte Anunciada”, publicada em 1981, um antes antes de receber o
prêmio Nobel de Literatura. Este livro é o mais controvertido da carreira de Garcia
Marquez. É também considerado um trabalho menor se comparado a “Cem Anos de
Solidão”. “Crônica de Uma Morte Anunciada”, analisada neste trabalho, está a meio
caminho entre o jornalismo e a literatura. Críticos de jornalismo literário alegam que o livro
de Garcia Marquez não se enquadra na categoria de reportagem literária como o trabalho de
umTruman Capote em “A Sangue Frio”, que reconstrói um crime em detalhes depois de um
exaustivo processo de pesquisa. Garcia Marquez modificou os fatos que ocorreram 30 anos
antes com o intuito de recriar um crime com características de uma tragédia grega (Rabell,
1985).
Crônica de uma Morte Anunciada
“Crônica” narra os eventos que levaram ao assassinato de Santiago Nasar, acusado
de seduzir Angela Vicario que, em sua noite de núpcias, é devolvida aos pais pelo marido,
Bayardo San Román, depois de descobrir que a esposa não era virgem. Interrogada pela
mãe, Angela identifica Santiago Nasar como o homem que a desvirginou. Na manhã
seguinte, enquanto os moradores descansam de uma festa monumental que envolveu toda a
cidade, os irmãos gêmeos de Angela, Pedro e Paulo, matam Santiago Nasar na porta de sua
casa.
Embora não se saiba se Nasar realmente desvirginou Angela, ele não escapa de seu
destino e é sacrificado pelo código de honra dos habitantes da cidade. Depois de passar três
anos na prisão, os dois irmãos são libertados. Bayardo desaparece e por 17 anos Angela
escreve cartas de amor ao marido. Um dia, Bayardo aparece à porta da casa de Angela
carregando numa das malas as duas mil cartas de amor que nunca foram abertas, amarradas
em pacotes com fitas coloridas e diz: “Bem, aqui estou.”
O enredo é baseado num fato real ocorrido em Janeiro de 1951 na cidade
colombiana de Sucre, onde a família de Garcia Marquez viveu por dez anos. O escritor
estava em Cartagena na época do crime, estudando direito e ensinando espanhol. Conhecia
todas as partes envolvidas no crime. Era amigo do verdadeiro Santiago Nasar desde a
infância. Pensou em escrever um artigo ou uma novela sobre o assunto no seu terceiro ano
de experiência como jornalista, mas um amigo e editor de jornal sugeriu que esperasse o
incidente amadurecer em sua mente.
Além disso, a mãe de Garcia Marquez teria pedido ao filho que não escrevesse
sobre o crime porque não queria ver parentes e memórias pessoais publicadas em um livro.
A mãe de Santiago Nasar era madrinha de uma irmã de Garcia Marquez (DIAZ-MIGOYO,
1988; MCNERNEY, 1989; BELL-VILLADA, 1990).
O incidente verdadeiro foi resumido por Bell-Villada em 1990 da seguinte forma:
“Depois de um ano de romance, Miguel Reyes Palencia, 29, descendente de uma
família de proprietários de terras, casou-se com a professora Margarita Chica Salas, 22,
num sábado...Ela a amava, mas também fora pressionado a casar-se pelos irmãos de
Margarita (que não eram gêmeos), José Joaquin e Victor Manuel, pescadores que ouviram
boatos difamando a irmã. Na noite do casamento, Miguel Palencia ficou bêbado, dormiu o
dia inteiro e a noite seguinte. No domingo bem cedo acordou no quarto da casa de
Margarita,viu-a despida ao seu la do e descobriu que não era virgem. Espancou-a exigindo
que confessasse o nome do homem que a deflorara, mas Margarita recusou-se a falar.
Miguel devolveu-a à família, apesar dos pedidos de que esperasse algumas semanas para
evitar um escândalo. Victor, irmão de Margarita, perguntou à irmã quem a deflorara; ela
deu o nome de Cayetano Gentile e caiu no choro.”
De acordo com Bell-Villada, Cayetano, 24 anos, era alto, elegante e bonito, filho de
um bem-sucedido casal de imigrantes italianos. Fora noivo de Margarita no passado e
amigo pessoal e parceiro de bebedeiras de Miguel Palencia. Na manhã em que morreu,
Cayetano foi ao porto ver o casal partir em sua lua de mel, mas Margarita e Miguel não
apareceram. Ali mesmo no porto, Cayetano enviou uma carta ao pai de Garcia Marquez,
em Cartagena, e encontrou-se com os irmãos do escritor, Luis e Margot, que o convidaram
para tomar café. Depois disso visitou sua namorada Nydia Naser, sem saber que José e
Victor, irmãos de Margarita, estavam num armazém em frente à sua casa esperando-o para
matá-lo.
Ainda segundo Bell-Villada (1990, pp. 189-190), uma multidão estava em frente à
casa de Cayetano. Sua mãe, Julieta, fora avisada da ameaça de morte contra o filho. Vendo
um dos irmãos de Margarita caminhando em direção à casa, trancou as portas. Quando
Cayetano chegou, bateu com força na porta e gritou. Tentou correr mas foi alcançado por
Victor, que o esfaqueou 14 vezes. Cayetano disse que era inocente antes de morrer. Os
irmãos de Margarita se entregaram à polícia, passaram um ano na cadeia e foram libertados.
A família de Margarita deixou a cidade e a jovem não saiu de casa por dois anos. Miguel
Palencia casou-se com outra moça e tornou-se um agente de seguros; teve 12 filhos e não se
arrependeu de deixar a primeira mulher. Os habitantes da cidade acreditaram que Cayetano
desvirginara Margarita.
Garcia Marquez esperou trinta anos para retornar à cena do crime e recolher
depoimentos de testemunhas e dos principais envolvidos que sobreviveram à trama.
Examinou também o modesto boletim do crime, incluindo o comentário do juiz que
presidiu o caso e as sete páginas preparadas pela defesa. Por fim, conversou com o
advogado dos imãos de Margarita, mas ele já não lembrava quase nada do julgamento
(MCNERNEY, 1989, BELL-VILLADA, 1990).
De posse das informações, o escritor trocou um sem número de detalhes. Santiago
Nasar ganhou um sobrenome árabe ao invés de italiano, o que o tornou mais exótico e
remoto, na opinião de Bell-Villada. A mãe do escritor tornou-se madrinha da vítima.
Quase todos os personagens ganharam novos nomes: Miguel tornou-se Bayardo, os irmãos
José Joaquin e Victor Manuel se transformaram nos gêmeos Pedro e Pablo, Margarita
tornou-se Angela e Cayetano, Santiago.
A cena do crime mudou de Sucre, cidade do interior, para uma cidadezinha sem
nome no mar do Caribe. Garcia Marquez aumentou o número de documentos que realmente
examinou: 322 de um total de 500 páginas. Também alterou o final da história reunindo o
casal e apresentou-se como uma das testemunhas do caso, embora estivesse longe do lugar
no dia do crime (DIAZ-MIGOYA, 1988).
Nos cinco capítulos não-numerados, o autor conta e reconta a história de diferentes
pontos de vista e a cada capítulo introduz novos elementos. Faz disso um ritual de
sucessivas repetições criando uma estrutura narrativa que prende o leitor: mesmo já
sabendo do crime, a curiosidade leva-o a conhecer todos os eventos que precederam e
sucederam o assassinato. A população da cidade sabe que o crime vai acontecer e sua culpa
é o tema principal dessa trágica história. Segundo Bloom (1989), Garcia Marquez duvidava
da culpa de Cayetano Gentile/Santiago Nasar e do desejo dos irmãos de Margarita de matar
o amigo.
Desde o primeiro parágrafo sabe-se que Santiago Nasar será assassinado, mas é
preciso ler o livro para saber como e quando. O fato de os capítulos não serem numerados
permitem uma leitura alternada. Ao mesmo tempo, as informações são oferecidas de forma
lenta e inconsistente já que as testemunhas discordam de detalhes simples como, por
exemplo, se chovia ou não no dia da morte de Santiago Nasar.
Santiago aparece como alguém que não podia evitar seu destino, um homem
marcado, quase um fantasma que morrerá para salvar a honra da cidade. Diz o primeiro
parágrafo do livro:
“No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30m da manhã para
esperar o navio em que chegava o bispo. Tinha sonhado que atravessava um bosque de
grandes figueiras onde caía uma chuva branda, e por um instante foi feliz no sonho, mas ao
acordar sentiu-se completamente salpicado de cagada de pássaros. ‘Sempre sonhava com
árvores’, disse-me sua mãe 27 anos depois, evocando os pormenores daquela segunda-feira
ingrata”.
Em Abril de 1981, “Crônica de Uma Morte Anunciada” foi lançado
simultaneamente na Colômbia, México, Argentina e Espanha. No mesmo mês, a revista
colombiana El Dia publicou uma reportagem intitulada “Garcia Marquez o Viu Morrer”,
escrita pelos jornalistas Julio Roca e Camilo Calderon. O texto concluía que Garcia
Marquez enriquecera e dramatizara os fatos. “Esperamos que esta reportagem permita que
os leitores descubram por si mesmos as diferenças e os novos elementos que o autor
adicionou”, explicaram (DIAZ-MIGOYO, 1988, p.75). Dias depois, Garcia Marquez fez o
seguinte comentário sobre a reportagem de El Dia:
“Estou interessado...na comparação entre fatos e literatura. O trabalho deles (os
jornalistas) é excelente do ponto de vista jornalístico; mas é surpreendente que o drama
contado a eles por testemunhas seja completamente diferente da novela...O ponto de partida
é o mesmo, mas sua evolução é distinta. Me envaidece que o drama de meu livro seja
melhor, mais controlado, mais estruturado” (DIAZ-MIGOYO, 1988, p.75).
Em geral, os críticos latino-americanos prestam pouco atenção ao fato de que o
escritor modificou o incidente real para adaptá-lo ao seu estilo literário. Diaz-Migoyo
(1988) alega que “Crônica” não tem menos valor por ser um relato pouco fiel aos fatos nem
menos histórico por seu imaginário (p.75). Gonzalez (1993) disse que a novela é “menos
uma paródia de retórica jornalística do que um modelo de processo de investigação
jornalística. Através desse processo, Garcia Marquez desvenda o papel jogado pela
causalidade, pelo destino e a manipulação no jornalismo e na ficção” (p.14).
Na opinião de Gonzalez, Garcia Marquez, Vargas Llosa e a escritora mexicana
Elena Poniatowska (também jornalista) empregam o discurso jornalístico de duas maneiras
aparentemente opostas. “Uma como instrumento de indagação antropológica sobre as raízes
culturais, e outra como um retorno às origens da narrativa hispana “ (p.125). Nesse sentido,
o recurso jornalístico utilizado pelas narrativa hispana tem pouca coisa em comum com o
jornalismo literário norte-americano. Ao contrário, o que se poderia chamar de jornalismo
literário latino-americano exemplificado aqui pelo trabalho de Garcia Marquez, está mais
próximo da tradição que mescla jornalismo e literatura como instrumento de crítica social,
indagação ética e especulação filosófica sobre a natureza humana.
Esse é o caso de “Crônica”, com seu relato muito especial de um incidente real. O
escritor colombiano confiou mais em sua própria imaginação, em sua intuição e
sensibilidade para destacar suas preocupações éticas e sociais como a responsabilidade
coletiva dos habitantes da cidade pela morte de Santiago Nasar , combinando-as com a
vertente mágica sempre presente no seu trabalho. É possível que um maior rigor na
apuração dos acontecimentos ou um pouco mais de objetividade impedissem o escritor de
captar as nuances da dimensão humana.
Para Diaz-Migoyo (1988), o objetivo de Marquez não foi o de prender-se à verdade
dos acontecimentos, mas sim o de garantir a natureza simuladora de seu relato
considerando como irrelevante a confrontação de provas judiciais do fato (p. 76). Garcia
Marquez não se preocupou em resolver as inconsistências do caso, como investigar por que
Angela Vicario acusou Santiago Nasar de tê-la deflorado, ou por que Santiago não levou
em conta os avisos sobre seu destino, ou, ainda, por que os irmãos acreditaram em Angela
apesar das dúvidas que existiam sobre sua versão.
Segundo Alonso (1989), “o narrador não produz nenhum fato concreto novo que
explique a morte de Santiago Nasar. Na verdade, se considerado à luz da investigação
oficial, não há justificativa para recontar a história já que repete as falhas da primeira
versão” (p. 258). Mas se Garcia Marquez não se atém aos fatos reais nem encontra
explicações para o evento através de sua reconstrução, sua narrativa reproduz a visão
fatalística dos habitantes da cidade em relação ao crime. Santiago Nasar será morto não
importando se é culpado ou inocente, porque o destino transcende a culpa, explica Diaz-
Migoyo (1982). O escritor queria, acima de tudo, mostrar o aspecto fatalístico da tragédia
humana. Talvez fosse impossível recriar a história real do caso trinta anos depois. Garcia
Marquez preferiu criar uma espécie de memória coletiva para contar a tragédia eximindo-se
assim de responder a questões cruciais sobre o crime.
Jornalismo literário ou ficção?
Jornalismo literário ou romance-reportagem, mais conhecido na década de 1960
como “novo jornalismo”, quando tornou-se um gênero popular, é mais identificado com o
trabalho de alguns jornalistas norte-americanos, particularmente com Tom Wolfe. Vários
escritores produziram uma variedade de estilos de jornalismo literário. Portanto, não existe
uma receita exata de como fazê-lo nem uma definição clara do que realmente é.
Weber (1980) explicou o jornalismo literário como sendo um contraponto complexo
entre história e literatura. Nas décadas de 1960 e 1970 tal combinação resultou na produção
de longas reportagens que utilizavam elementos de ficção formando um gênero híbrido
conhecido então como new journalism. Weber observou também que o jornalismo literário
tinha duas vertentes de narrativa documentada. Em uma vertente, o escritor tratava o evento
factual simplesmente como evento e não tirava conclusões sobre a grande quantidade de
informação acumulada; em outra vertente, o escritor explorava os significados do evento
factual através da seleção, ordenação e interpretação, utilizando técnicas literárias.
Sims (1992) acredita que Garcia Marquez combina a reportagem factual e a técnica
literária em seu trabalho. Estaria, portanto, criando “um estilo híbrido que alterna
jornalismo literário e literatura jornalística” (p. 120). “Crônica de Uma Morte Anunciada”
explora os significados de um evento factual e ao mesmo tempo transcende o factual à
medida em que o escritor modifica um incidente real. Garcia Marquez não confina a
narrativa a uma mera transcrição de fatos; ele adiciona interpretação e imaginação à trama.
Pode-se argumentar também que o escritor colombiano emprega os quatro
mecanismos prescritos pelo escritor norte-americano Tom Wolfe para se fazer jornalismo
literário: a construção de cena por cena, a reprodução de diálogos, o ponto de vista de
terceira pessoa e o relato dos hábitos, costumes e comportamento dos pessoas (RABELL,
1985). Estas técnicas empregadas para reconstituir acontecimentos e o cotidiano real das
pessoas é, em parte, inspirada nos romancistas do realismo social como Balzac, Dickens e
Gogol (BIANCHIN, 1997).
No primeiro capítulo, Garcia Marquez recria os eventos que antecedem a morte de
Santiago Nasar. Os capítulos seguintes reconstroem cena por cena do que se passou
envolvendo os principais personagens e culminando com aquele que escreve a autópsia. O
escritor utiliza diálogos e o ponto de vista da terceira pessoa que, frequentemente, é o do
próprio autor que aparece como personagem da novela. Além disso, “Crônica” relata os
hábitos, costumes e comportamentos dos habitantes da pequena cidade onde ocorre a trama,
com suas divisões sociais e hierárquicas, a dominação masculina, a submissão feminina,
etc.
Conclusão
Garcia Marquez faz uma fusão muito peculiar entre jornalismo e literatura, sendo a
última o elemento predominante. Esta fusão resulta numa narrativa documentada colorida
pela imaginação e a interpretação do autor. A parte jornalística de “Crônica” aborda os
eventos como produtos de uma realidade fragmentada que desafia a lógica e a ordem. Mas
Garcia Marquez não olha essa mesma realidade com a suposta objetividade e o
distanciamento de um jornalista que reconstrói os eventos para cumprir seu compromisso
com a verdade. Ele prefere vê-la com o olhar subjetivo de um escritor que penetra a
realidade e retira dela a essência humana, tomando a liberdade de modificar personagens e
eventos em sua busca tenaz pela natureza transcendental do mero evento.
A parte literária de “Crônica” enfatiza o realismo mágico tão caro ao autor,
destacando os aspectos extraordinários de um crime ordinário. O escritor elimina as
distinções entre o fantástico e o real, entre mito e história. E por isso também modifica
personagens e eventos. Mas essa interpretação do livro apresentada aqui não é
compartilhada pelo escritor. Em entrevista à revista latino-americana Chasqui em 1981,
Garcia Marquez disse o seguinte:
“Pela primeira vez consegui um equilíbrio perfeito entre jornalismo e literatura e é
por isso que o livro chama-se ‘Crônica de Uma Morte Anunciada’....O jornalismo ajuda
você a se manter em contato com a realidade, o que é essencial para o trabalho literário. E
vice-versa, porque a literatura ensina-o a escrever, o que é essencial ao jornalismo.”
Em 1981, mesmo ano de publicação de “Crônica”, Garcia Marquez escreveu um
artigo intitulado “Quem Acredita em Janet Cooke?” sobre a repórter do jornal Washington
Post que devolveu o prêmio Pulizter horas depois de confessar que sua reportagem “O
Mundo de Jimmy” era inventada.
“...mais além da ética e da política, a audácia de Janet Cooke, mais uma vez,
coloca as perguntas de sempre sobre as diferenças entre jornalismo e literatura, que tanto
jornalistas como escritores levamos adormecidas, mas sempre a ponto de despertar o
coração. Devemos começar por perguntar-nos qual é a verdade essencial em seu relato (o
de Janet). Para um novelista o mais importante não é saber se o pequeno Jimmy existe ou
não, mas estabelecer se sua natureza de fábula corresponde a uma realidade humana e social
dentro da qual podia ter existido....Antes que se descobrira a farsa de Janet Cooke, vários
leitores escreveram ao jornal dizendo que conheciam o pequeno Jimmy e muitos conheciam
casos similares. Isso nos faz pensar....que o pequeno Jimmy não só existiu uma vez, mas
muitas vezes ainda que não seja o mesmo que inventou Janet Cooke”
( Garcia Marquez, 1999, p.127-128).
A reportagem de Janet Cooke contava a história de um menino de rua viciado em
heroína. Entre os tantos problemas que a reportagem apresentava estava a cena que em a
repórter descrevia como o menino injetava a droga na presença da mãe. Na época o caso
transformou-se num grande escândalo na imprensa norte-americana. Mais de vinte anos
depois a imprensa dos Estados Unidos enfrenta um escândalo ainda maior com as recentes
acusações de fraude e plágio registradas nas redações do New York Times e do USA Today.
Na época, impressionado com a crise de consciência da imprensa dos Estados
Unidos, Garcia Marquez alegava que o rigor puritano dos norte-americanos tinha produzido
o melhor jornalismo do mundo e, ao mesmo tempo, o mais perigoso. Queixou-se do
interrogatório a que foi submetido por um editor da revista Harper’s para checar os dados
e fontes de um artigo que o escritor produzira sobre o assassinato de Salvador Allende.
Ainda no artigo sobre Janet Cooke, o escritor alegava que a norma que regula o
jornalismo e a literatura tem injustiças de ambos os lados: “ No jornalismo é preciso
apegar-se à verdade, ainda que ninguém acredite nela, enquanto na literatura se pode
inventar tudo, desde que o autor seja capaz de fazer com que o leitor acredite que seja
verdade” (Garcia Marquez, 1999, p. 128). Lembrou o caso do novelista John Hersey que
escreveu uma reportagem sobre Hiroshima devastada pela bomba atômica “tão apaixonante
que parecia uma novela”, e o do jornalista e escritor Daniel Defoe que escreveu uma novela
sobre Londres devastada pela peste “tão impressionante que parecia uma reportagem”.
Para Gabo, como é conhecido o escritor, há uma linha de demarcação invisível entre
jornalismo e literatura. É nessa fronteira que se situa “Crônica de Uma Morte Anunciada”.
Para alguns, um exemplo de ficção com um pé no jornalismo. Para mim, um exemplo de
jornalismo mágico que talvez só Gabriel Garcia Marquez tenha autoridade e talento para
criar. Nós, meros jornalistas, devemos ser mais cautelosos ao cruzar a fronteira entre a
realidade e a imaginação, o mito e a história, o jornalismo e a literatura.

_________________

Referências bibliográficas

ALONSO, Carlos. J. Writing and Ritual in Chronicle of a Death Foretold. In Harold Bloom
(Ed.), Modern Critical Views, Gabriel Garcia Marquez. New York: Chelsea, 1989, p.257-270.

ALTSCHULL, J. Herbert. From Milton to McLuhan, The Ideas Behind American Journalism. New
York: Longman, 1990.

BARBERO, José Maria. Communication from culture: the crisis of the national and the emergence
of the popular. Media, Culture and Society, 10, p. 447-465, 1988.

BELL-VILLADA, Gene. Gabriel Garcia Marquez, The Man and His Work. Chapel Hill,
NC:University of North Carolina Press, 1990.

BIANCHIN, Neila. Romance Reportagem, onde a semelhança não é mera coincidência.


Florianópolis: Editora da UFSC, 1997.

CAREY, James. The communications revolution and the professional communicator. In Paul
Halmos (Ed.), The Sociology of Mass Media Communicators. Keele, Great Britain:
University of Keele, 1969.

DAMATTA, Roberto. For an anthropology of the Brazilian Tradition. Trabalho escrito para o
Programa Latino-Americano do Woodrow Wilson International Center, 1990.

DÍAZ-MIGOYO, Gonzalo. Truth Disguised: Chronicle of a Death (ambiguously) Foretold. In J.


Ortega (Ed.), Gabriel Garcia Marquez and the Powers of Fiction. Austin, TX: University
of Texas Press, 1988.

FRANCO, Jean. An Introduction to Spanish-American Literature. Cambridge, Grã-Bretanha:


Cambridge University Press, 1994.

FREIRE, Gilberto. The Mansions and the Shanties. New York: Alfred Knopf. 1963.

GARCIA MARQUEZ, Gabriel e VARGAS LLOSA, Mario. Dialogo, La Novela en America


Latina. Buenos Aires: Ediciones Latinoamericanas, 1972.

GARCIA MARQUEZ,Gabriel. Chronicle of a Death Foretold. New York: Alfred A. Knopf, 1983.
GARCIA MARQUEZ, Gabriel. Cronicas y Reportages. Bogotá: La Oveja Negra, 1985.

GARCIA MARQUEZ, Gabriel. Notas de Prensa, Obra periodística 5, 1961-1984. Barcelona:


Mandadori, 1999.

GONZALEZ, Anibal. The Ends of the text: journalism in the fiction of Gabriel Garcia Marquez. In
Julio Ortega (Ed.), Gabriel Garcia Marquez and the Powers of Fiction. Austin, TX:
University of Texas Press, 1988.

GONZALEZ, Anibal. Journalism and the Development of Spanish American Narrative.


Cambridge, Great Britain: Cambridge University Press, 1993.

JOBIM, Danton. French and U.S. influences upon the Latin American Press. Journalism Quarterly,
31, p. 61-66, 1954.

KUTZINSKI, Vera. M. The logic of wings: Gabriel Garcia Marquez and Afro-American literature.
In Robin Fiddian (Ed.), Gabriel Garcia Marquez. London: Longman,1995.

MARTIN, G. On 'magical' and social realism in Garcia Marquez. In Robin. Fiddian (Ed.), Gabriel
Garcia Marquez. London: Longman, 1995.

MCNERNEY, Kathleen. Understanding Gabriel Garcia Marquez. Columbia, SC: University of


South Carolina, 1989.

MCMURRAY, Gail. R. Critical Essays on Gabriel Garcia Marquez. Boston: G.K. Hall & Co,
1987.

MERRILL, John. C. The Dialectic in Journalism, Towards a Responsible Use of the Press
Freedom. Baton Rouge, La: Louisiana University Press, 1989.

OBERHELMAN, H. D. Gabriel Garcia Marquez, a Study of the Short Fiction. Boston: Twayne
Publishers, 1991.

PIERCE, Robert N. Keeping the Flame, Media and Government in Latin America. New York:
Hastings House, 1979.

RABELL, Carmen. Periodismo y Ficcion en Cronica de Una Muerte Anunciada. Santiago, Chile:
Instituto Profesional del Pacifico, 1985.

REYES MATTA, Fernando . The Latin American concept of news. Journal of Communication, 29,
p. 164- 171, 1979.

SIMS, Robert. L. (1992). The First Garcia Marquez, a Study of His Journalistic Writing from 1948
to 1955. New York: University Press of America, 1992.

WEBER, Ronald. The Literature of Fact: Literary Nonfiction in American Writing. Athens, OH:
Ohio University Press, 1985.

Você também pode gostar