CR49_ManuelRibeirov3

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 41

O REGIME DOS AUXÍLIOS DE ESTADO – REFLEXÕES

A PROPÓSITO DO QUADRO TEMPORÁRIO COVID‑19


E DA NECESSIDADE DE FLEXIBILIZAÇÃO DAS
REGRAS GERAIS 1
Manuel Queiroz Ribeiro2

Abstract With the COVID-19 pandemic and its significant economic impact the
European Commission adopted a Temporary Framework which tends to bend the general state
aid rules, thus incentivizing Member-States to come to aid their undertakings in a moment of
need. Coming from the concept and general framework of state aid rules, this article analyses
the Temporary Framework in detail, raising the questions relevant to the main objectives of the
general rules, and proposing a more permanent relaxation of said rules.

Sumário Introdução. 1. Fontes do direito. 2. Conceito de auxílios de Estado. 2.1.


Vantagem. 2.2. Origem estatal. 2.3. Noção de empresa. 2.4. Seletividade. 2.5. Distorção
da concorrência entre os Estados-Membros. 3. Auxílios compatíveis com o TFUE. 3.1.
Compatibilidade ao abrigo do n.º 2 do artigo 107.º TFU. 3.2. Isenções categoriais ao
abrigo dos regulamentos europeus. 3.3. Isenções individuais ao abrigo do artigo 106.º
e do n.º 3 do artigo 107.º. 4. O regime do Quadro Temporário. 5. Da necessidade de
flexibilização das regras gerais. Conclusões. Bibliografia.

Key-Words auxílios estatais; auxílios de Estado; Covid-19; Quadro Temporário


relativo a medidas de auxílio estatal; State aid; Temporary Framework. JEL Code K210.

1 Este Artigo consiste numa adaptação do Relatório da disciplina de Direito Económico e Monetário
Europeu apresentado no âmbito do Mestrado em Direito e Ciência Jurídica de 2020/2021, sob regência dos
Profs. Doutores José Renato Gonçalves e Nuno Cunha Rodrigues, na Faculdade de Direito da Universidade
de Lisboa.
2 Jurista. Mestrando em Direito e Ciência Jurídico-Política, com especialidade em Direito Económico e
Monetário. Trabalha atualmente no Banco Português de Fomento, S. A., com foco em serviços jurídicos,
gestão estratégica e relações institucionais. Salienta-se que o presente Artigo reflete meramente a opinião
do autor.
30 | MANUEL QUEIROZ RIBEIRO

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CDFUE - Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia


CP - Código Penal
CRP - Constituição da República Portuguesa
CEDH - Convenção Europeia dos Direitos do Homem
CECA – Comunidade Europeia do Carvão e do Aço
DUDH - Declaração Universal dos Direitos Humanos
IRS - Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares
IRC - Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas
I&D – Investigação e Desenvolvimento
PME – Pequenas e Médias Empresas
TEDH – Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
TFUE – Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia
TJUE – Tribunal de Justiça da União Europeia
TPI – Tribunal Penal Internacional
TUE – Tratado da União Europeia

INTRODUÇÃO
O regime dos Auxílios de Estado é um ramo do Direito da Concorrência da
União Europeia. Estamos perante um ramo do Direito estritamente europeu,
dado que não existe direito nacional dos auxílios de Estado3, como existe nas
outras áreas do Direito da Concorrência. Por outro lado, é de salientar que o
regime dos auxílios de Estado se diferencia dos outros ramos do Direito da
Concorrência (e, de um modo geral, dos outros ramos do direito tout court)
ao ter uma componente política mais acentuada e implicar um maior grau de
insegurança jurídica4.

3 Na verdade, a Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, que aprova o novo regime jurídico da concorrência, prevê, no
seu artigo 65.º e seguintes, um regime de “auxílios públicos”. Sem prejuízo, a verdade é que a nível nacio-
nal a aplicação deste regime tem sido muito reduzida, pelo que o enfoque dado no presente Artigo incide
predominantemente sobre o regime europeu, onde os seus requisitos têm merecido uma análise criteriosa.
4 Com efeito, “tanto ao nível da determinação da existência de um auxílio de Estado, como ao nível do preen-
chimento dos requisitos para autorização de um auxílio, a Comissão Europeia tem uma margem de discricio-
nariedade significativamente mais ampla […]” cfr. Campos, 2017: 228 e ss. No mesmo sentido, como refere
Rodrigues, 2010: 889, “[p]ode ironizar-se, dizendo que regime de auxílios de Estado é o ‘patinho feio’ do direito
nacional e comunitário da concorrência. A escassa atenção que a doutrina e a jurisprudência têm dedicado
à problemática dos auxílios de Estado, comparativamente com a que têm concedido a outros temas, como
os relativos a práticas individuais e colectivas proibidas ou ao regime do controlo prévio de concentrações,
repousa em razões que, frequentemente, estão na base das políticas da Comunidade Europeia e dos Estados
membros relativamente a esta matéria”.
O REGIME DOS AUXÍLIOS DE ESTADO | 31

Logo na versão originária do Tratado de Roma, em 1956, os Estados-


-Membros fundadores previram um regime de proibição e controlo da inter-
venção do Estado na economia5. Com a criação de um mercado comum6 onde
as mercadorias deveriam circular livremente, os Estados-Membros tinham de
assegurar que os Estados e outras entidades públicas não dariam vantagens
às suas empresas nacionais, para lhes proporcionar uma vantagem na con-
corrência com outros Estados. Como refere Miguel Gorjão Henriques “[s]e
as normas sobre as liberdades de circulação visavam impedir os Estados membros
de estabelecerem, por via legal, regulamentar ou administrativa entraves à reali-
zação [do] mercado interno e as regras de concorrência visavam evitar que, por
via da liberdade contratual ou da iniciativa económica privada, fossem criados ou
mantidos entraves à chamada ‘interpenetração económica’ pretendida no quadro do
mercado interno, o regime dos auxílios públicos (também conhecido como ‘auxílios
de Estado’ ou ‘ajudas de Estado’) visava impedir a perversão do mercado interno
pela intervenção do Estado no funcionamento dos mercados, a qual tinha um efeito
de restrição ou distorção da concorrência que haveria também que evitar” 7.
Como constata por seu turno Miguel Sousa Ferro (2018: 286) “há uma
natural tendência dos países de [tentarem] favorecer as suas empresas na con-
corrência com as de outros Estados”, tal como o caso de uma empresa francesa
que coloca os seus produtos na Alemanha sem que lhe possam ser impostos

5 Nos anos subsequentes ao fim da IIª Guerra Mundial surgiram os dois grandes sistemas internacionais
de regulamentação da concessão de ajudas públicas às empresas: (i) o regime instituído no seio do Gene-
ral Agreement on Tariffs and Trade (GATT), substituído pelo Acordo de criação da Organização Mundial do
Comércio e (ii) o regime adotado no âmbito da CECA e subsequentemente transposto para a UE. Para mais
informações sobre o enquadramento histórico do regime sugere-se a consulta, inter alia, de Manuel Fontai-
ne Campos, Op. Cit.
6 Como refere Gonçalves, 2018: 126 “o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias sintetizaria mais tarde
a noção de Mercado Comum, designadamente, no acórdão Schul [Gaston Schul Douane Expediteur BV c. Ins-
pecteur des droits d’importation et des accises de Roosendal, de 5 de maio de 1982 (proc. 15/81), a partir ‘da
eliminação dos entraves às trocas intracomunitárias tendo em vista a fusão dos mercados nacionais num mer-
cado único que funcione como se fosse um mercado interno’, entendimento que contribuiu para a reformulação
e também redesignação do objetivo basilar do processo de integração económica europeia em torno da nova
expressão ‘Mercado Interno’ (em vez de ‘Mercado Comum’), a partir do Ato Único Europeu, de 1986 […]”.
7 Henriques, 2019: 708.
Como refere ainda Manuel Fontaine Campos (2017: 233-234), “[o] fundamento, claramente assumido, no
GATT, de regulamentação das subvenções como forma de evitar a fraude às concessões comerciais acordadas
não aparece no discurso da Alta Autoridade (depois Comissão Europeia) nem no do Tribunal de Justiça. O fun-
damento da proibição dos auxílios no TCECA e, depois, no TCEE, tal como assumido pelo Tribunal de Justiça, é
um objetivo supranacional: um mercado europeu comum mais racional e produtivo, sendo a concorrência não
falseada entre as empresas vista como instrumental relativamente àquele. Deste ponto de vista, o discurso da
ciência económica, quanto às condições em que um mercado é ‘mais racional e produtivo’ e quanto aos efeitos
das ajudas públicas no mercado, estava destinado a assumir um papel cada vez mais importante”.
32 | MANUEL QUEIROZ RIBEIRO

quaisquer obstáculos quantitativos, qualitativos ou custos adicionais (aten-


dendo à inexistência de barreiras alfandegárias como em outros países) e que
ainda recebe um auxílio do Estado Francês, o que é injusto para as empresas
alemãs que não obtêm auxílios idênticos.
Para tentar impedir um resultado de race to the bottom (em que os Estados-
-Membros se veriam forçados a replicar as vantagens financeiras atribuídas
pelos restantes), o TFUE e direito secundário que o regulamenta criaram um
sistema de controlo supranacional da atribuição de vantagens financeiras a
empresas por entidades públicas, colocando o poder de implementação nas
mãos da Comissão Europeia.
Este regime levanta, desde logo, diversas questões que, embora não consti-
tuam o objeto deste Artigo merecem ser analisadas em sede própria, designa-
damente as questões relativas à sua necessidade, motivo, ou ainda o facto de
este controlo da despesa pública e extensão do poder que se coloca na Comis-
são Europeia poder indiciar a perda de soberania dos Estados-Membros, ou a
sua articulação com a muito limitada dimensão dos poderes da União Euro-
peia em matéria de benefícios fiscais de âmbito geral (ou, se quisermos, da
política fiscal de cada Estado-Membro que lhe permita atrair empresas para
o seu território).
Por outro lado, na sequência da eclosão do surto de COVID-19, que repre-
sentou uma grave emergência no âmbito da saúde pública para os cidadãos e
sociedades europeus, a Comissão Europeia reconheceu que uma parte rele-
vante da resposta ao impacto social e económico da pandemia vem dos orça-
mentos dos Estados-Membros, o que conduziu à adoção da Comunicação
C(2020) 1863, de 19 de março de 2020, que aprova o Quadro Temporário
relativo a Medidas de Auxílio Estatal em Apoio da Economia no Atual Con-
texto do Surto de COVID-19, alterado pela C(2020) 2215, de 3 de abril de
2020, C(2020) 3156, de 8 de maio de 2020, C(2020) 4509, de 29 de junho
de 2020, C(2020) 7127, de 13 de outubro de 2020, C(2021) 564, de 28 de
janeiro de 2021 e C(2021) 8442 de 18 de novembro de 2021, todas publica-
das no Jornal Oficial da União Europeia (“Quadro Temporário”).
O Quadro Temporário constata a grave emergência de saúde pública para
os cidadãos e sociedades europeias, referindo o choque que afeta a economia
em várias frentes, salientando que nestas circunstâncias excecionais todos
os tipos de empresas podem deparar-se com graves faltas de liquidez e daí
vir a aprovar a possibilidade de concessão de diversos tipos de auxílios, que
representam inovações muito relevantes (seja em matéria de instrumentos
permitidos, montantes máximos por empresa, requisitos ou abrangência de
O REGIME DOS AUXÍLIOS DE ESTADO | 33

empresas em dificuldade financeira) e originam questões muito pertinentes


(como a sua adequação às necessidades das empresas destinatárias em face da
crise causada pela pandemia COVID-19 ou a desproporção dos auxílios con-
cedidos entre Estados-Membros e os seus efeitos na concorrência no médio
/ longo prazo).
Com o presente Artigo pretende-se, assim, partir do enquadramento geral
do conceito e regras relativas aos auxílios de Estado para analisar em detalhe
o regime aplicável na sequência da eclosão da crise pandémica, em particular
no que toca às suas inovações e às questões que o mesmo levanta tendo em
conta os objetivos previstos no regime geral, bem como a proposta de uma
flexibilização permanente das regras gerais aplicáveis

1. FONTES DO DIREITO
As normas que regulam e, como regra geral, proíbem os auxílios de Estado
existem, de forma geral e praticamente imutável, desde o Tratado de Roma,
em particular dos artigos 107.º a 109.º do TFUE, como fontes do direito
primário.
Todavia, relevam muito neste ramo do direito da concorrência as fontes
de direito secundário, que se dividem entre diplomas de direito substantivo
(que esclarecem os requisitos para a qualificação de medidas como auxílios de
Estado, definem condições para a sua legalidade, etc.) e diplomas de natureza
processual (que regulam o modo de notificação, avaliação e autorização de
auxílios, os formulários a serem utilizados, a intervenção de terceiros, etc.)8.
Acrescenta-se, na esteira de Miguel Sousa Ferro, que “[d]evido à supra refe-
rida grande margem de discricionariedade da Comissão Europeia, os documentos
de soft-law da Comissão ganham uma especial importância no âmbito dos auxílios
de Estado. Na prática, estes documentos acabam, muitas vezes, por definir parâ-
metros normativos que têm de ser respeitados pelos sujeitos de direito (no mínimo,
pela própria Comissão, por via do princípio da auto-vinculação administrativa),
na medida em que a sua definição não exceda aquela margem de discricionariedade
do executivo europeu”9. Essa discricionariedade é de natureza simultaneamente
técnica e administrativa10.

8 Lista atualizada: https://ec.europa.eu/competition/state_aid/legislation/legislation.html


9 Ferro, 2018: 288 e 289.
10 Santos, 2003: 238.
34 | MANUEL QUEIROZ RIBEIRO

Como refere Tânia Faria (2009b: 80), “[a] questão essencial dos auxílios de
Estado é que a racionalidade subjacente é uma mistura de motivações políticas e
económicas, com ascendência das primeiras sobre as segundas”, salientando-se, não
obstante e como refere Nuno Cunha Rodrigues (2010: 89), que “a Comissão
Europeia tem feito um significativo esforço no sentido de a avaliação do regime dos
auxílios de Estado ser, também ela, realizada a partir de elementos de natureza
económica – e não meramente política -, à semelhança do que sucede na avaliação
de outras práticas anti-concorrenciais”.
No que toca a esse ponto, adianta ainda Tânia Faria (2009b, pp. 20 e 21),
que “[n]o seu primeiro relatório relativo à política de concorrência, em 1971, a
Comissão referia-se à ausência de um enquadramento normativo para o exercício
do controlo dos auxílios de Estado. Perante a recusa do Conselho em desenvolver
legislação secundária com este objetivo, a Comissão lançou-se na criação de soft-
-law, limitando a sua exposição aos conflitos políticos relativos a medidas parti-
culares de auxílios de Estado. Só em 1998 é que a Comissão e Conselho lograram
transformar algumas destas disposições de soft-law em regulamentos de isenção por
categoria. A proliferação de instrumentos normativos e para-normativos adopta-
dos, fundamentalmente por iniciativa da Comissão, é um dos principais factores de
complexidade e opacidade do regime dos auxílios de Estado”.
Assim, a verdade é que em matéria de auxílios de Estado, para além do
disposto nos tratados, se considera essencial a consulta dos regulamentos,
comunicações e documentos de outra natureza jurídica emitidos pela Comis-
são Europeia, que regulem a questão concreta em apreço. Em primeiro lugar
a partir da noção de auxílio de Estado, conforme consta da Comunicação da
Comissão sobre a noção de auxílio estatal nos termos do artigo 107.º, n.º 1,
do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia11, e em seguida o
instrumento aplicável em razão do setor e dimensão da empresa destinatária,
caso aplicável12.

2. CONCEITO DE AUXÍLIOS DE ESTADO


Recorremos a Gil V. Maia (2019: 107) quando refere que: “[f ]undamental na
construção do mercado interno e na própria estrutura axiológica da união europeia,
o regime europeu da defesa da concorrência através da proibição dos auxílios de
estado (…) parte da constatação de que as ajudas do estado às empresas e produções

11 https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52016XC0719(05)&from=PT
12 Vide capítulo 4 (“Auxílios Compatíveis com o TFUE”).
O REGIME DOS AUXÍLIOS DE ESTADO | 35

nacionais são nocivas para a livre concorrência, uma vez que desincentivam as
empresas auxiliadas a investirem em novos processos e estruturas produtivas, com
o prejuízo daí decorrente em termos de eficiência; a sua permissão redundaria na
ideia de ‘nacionalismo económico’, isto é, caso o controlo dos auxílios fosse efetuado a
nível nacional, a tentação de privilegiar as empresas nacionais face às concorrentes
estrangeiras seria praticamente inevitável, o que fere os elementares princípios do
mercado aberto e da livre prestação de serviços; os auxílios de estado provocam uma
maior probabilidade das empresas auxiliadas correrem riscos excessivos (‘moral
hazard’) na sua atividade, dado que sabem que serão socorridas pelo Estado.”
Nos termos do artigo 107.º, n.º 1 do TFUE “são incompatíveis com o mer-
cado interno, na medida em que afetem as trocas comerciais entre os Estados-
-Membros, os auxílios concedidos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais,
independentemente da forma que assumam, que falseiem ou ameacem falsear a
concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções”. A Comunicação
sobre a noção de auxílio estatal esclarece os diferentes elementos que cons-
tituem a noção de auxílio estatal: a existência de uma empresa, a imputabili-
dade da medida ao Estado, o seu financiamento através de recursos estatais, a
concessão de uma vantagem, a seletividade da medida e os seus efeitos sobre
a concorrência e as trocas comerciais entre Estados-Membros.
Assim, para que uma medida pública seja considerada um auxílio de Estado
e para que este seja proibido pelo Tratado (sem prejuízo de eventuais exce-
ções aplicáveis nos termos referidos infra), devem estar reunidas as seguintes
condições cumulativas13:

a) Deve existir um auxílio, por qualquer forma, i.e., deve ser atribuída uma
vantagem;
b) Essa vantagem deve ter origem estatal;
c) Deve ser seletiva (por forma a distorcer a concorrência);
d) Deve ser atribuída a uma empresa (ou produções);
e) Deve falsear ou ameaçar distorcer a concorrência e afetar as trocas entre
Estados-Membros.

Vejamos detalhadamente cada uma destas condições.

13 “Em primeiro lugar, deve tratar-se de uma intervenção do Estado, ou por meio de recursos estatais. Em
segundo lugar, essa intervenção deve ser suscetível de afectar as trocas comerciais entre os Estados membros.
Em terceiro lugar, deve tratar-se de uma vantagem seletiva. Em quarto lugar, deve falsear ou ameaçar falsear
a concorrência” - cfr. Acórdão do TJUE de 24 de julho de 2003, Altmark, C-280/00, EU:C:2003:415.
36 | MANUEL QUEIROZ RIBEIRO

2.1 Vantagem
De acordo com o TJUE, “para apreciar se uma medida estadual constitui um
auxílio, na aceção do artigo [107.º] do Tratado, deve determinar-se se a empresa
beneficiária recebe uma vantagem económica que não teria obtido em condições
normais de mercado”14.
Não interessa assim a forma da vantagem, mas sim que haja uma utili-
dade económica que seja passada para a esfera patrimonial do beneficiário, ou
desutilidade que seja diminuída (como o fornecimento de bens ou serviços
em condições preferenciais). A intenção por detrás da medida é irrelevante,
importa apenas o seu efeito ou potencial efeito.
Em certas condições, um benefício atribuído a consumidores finais pode
constituir um mecanismo disfarçado de benefício à empresa cujos produtos
ou serviços estes consomem.
Frequentemente decisivo é o critério do “operador numa economia de
mercado”, com base no qual não há benefício se a interação entre o Estado
e a empresa (ex. a compra ou venda de imóvel, a compra e venda de ações, a
injeção de capital por acionista) ocorreu nos termos que se teriam verificado
num mercado livre, aferido em função da informação disponível no momento
da transação. Ainda de acordo com o TJUE “Para apreciar se uma medida esta-
tal constitui um auxílio, há (…) que determinar se a empresa beneficiária recebe
uma vantagem económica que não teria obtido em condições normais de mercado”,
sendo para tanto necessário “determinar a remuneração normal das prestações
em causa”, com base numa “análise económica que tenha em conta todos os fatores
que uma empresa, que atua em condições normais de mercado, deveria ter tido em
consideração ao fixar a remuneração”.
De um modo geral, se a troca tiver ocorrido na sequência de um con-
curso competitivo, transparente, não discriminatório e incondicional, ou se
intervierem nela entidades públicas e operadores privados pari passu, pode-
-se assumir que a transação ocorreu de acordo com a lógica de um opera-
dor numa economia de mercado. Se assim não tiver sido, terá de aferir-se o
respeito pelo critério com base numa avaliação comparativa (com operações
privadas comparáveis) ou por outros métodos adequados, baseados em dados
fiáveis, verificáveis e objetivos (análises contabilísticas, avaliações indepen-
dentes, etc).15

14 Acórdão do TJUE de 29 de abril de 2009, Espanha v. Comissão, C-342/96, ECLI:EU:1999:210.


15 Poderia questionar-se também o que sucede se o facto de o Estado ter de indemnizar uma determinada
entidade a quem impôs uma obrigação por a considerar necessária para garantir um interesse coletivo cons-
O REGIME DOS AUXÍLIOS DE ESTADO | 37

2.2 Origem estatal


Nos termos do artigo 107.º, n.º 1 do TFUE estamos perante “auxílios conce-
didos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais”.
No entanto, a jurisprudência16 transformou um critério alternativo (“ou”)
num critério cumulativo: “para que as vantagens possam ser qualificadas de auxí-
lios na aceção do artigo, devem, por um lado, ser concedidas direta ou indiretamente
através de recursos de Estado e, por outro, ser imputáveis ao Estado”17. É necessá-
rio que resulte da medida em causa um encargo (positivo ou negativo) para
o Estado.
Um auxílio é imputável ao Estado se for adotado por qualquer autoridade
pública, ainda que descentralizada ou desconcentrada, ainda que com auto-
nomia jurídica ou independência. Mas também pode ser imputado quando
se trata de empresa pública ou entidade privada (nesse caso tem de haver um
exercício de controlo no caso concreto por parte do Estado).

2.3 Noção de empresa


O regime dos auxílios de Estado assenta no conceito de empresa (“under-
taking”), apesar de os Tratados não apresentarem uma noção concreta. Na
verdade, o desenvolvimento do conceito tem vindo a ser feito pelo TJUE,
que entende por “empresa” qualquer entidade que desenvolva uma atividade
económica, independentemente do seu estatuto jurídico ou do modo como

titui um auxílio de Estado. A este propósito o TJUE decidiu, através do acórdão Altmark, que a compensação
por um serviço de interesse económico geral (SIEG) não é qualificada como auxílio quando:
1. A empresa beneficiária deve efetivamente ser incumbida do cumprimento de obrigações de serviço públi-
co e essas obrigações devem claramente ser definidas;
2. Os parâmetros com base nos quais será calculada a compensação devem ser previamente estabelecidos
de forma objetiva e transparente, a fim de evitar que aquela implique uma vantagem económica suscetí-
vel de favorecer a empresa beneficiária em relação a empresas concorrentes;
3. A compensação não pode ultrapassar o que é necessário para cobrir total ou parcialmente os custos oca-
sionados pelo cumprimento das obrigações de serviço público, tendo em conta as receitas obtidas, assim
como um lucro razoável pela execução destas obrigações; e
4. Quando a escolha da empresa a encarregar do cumprimento de obrigações de serviço público, não seja
efetuada através de um processo de concurso público que permita selecionar o candidato capaz de forne-
cer esses serviços ao menor custo, o nível da compensação deve ser determinado com base numa análise
de custos de empresa média, bem gerida e adequadamente equipada.
16 A título de exemplo, entende o TJUE que o artigo 107.º do TFUE se aplica às “decisões dos Estados mem-
bros pelas quais estes últimos, em vista da realização dos objetivos económicos e sociais que lhes são próprios,
colocam, por decisões unilaterais e autónomas à disposição das empresas ou outros sujeitos jurídicos, recur-
sos ou procuram assegurar-lhes vantagens destinadas a favorecer a realização dos objectivos económicos e
sociais pretendidos” - Cfr. Acórdão do TJUE de 27 de março de 1980, Amministrazione delle finanze dello Stato
contra Denkavit italiana Srl., 61/79, ECLI:EU:C:1980:100.
17 Acórdão do TJUE de 21 de março de 1991, Itália v. Comissão, C-303/88, ECLI:EU:C:1991:136.
38 | MANUEL QUEIROZ RIBEIRO

seja financiada18. O conceito abrange qualquer entidade que ofereça bens ou


serviços num determinado mercado19. Assim, podem ser qualificadas como
empresas para efeitos de auxílios de Estado associações sem fins lucrativos,
profissionais liberais, entidades da administração pública, etc.
Todavia, sempre que uma entidade atue ao abrigo de poderes de autori-
dade, não será considerada uma empresa (sem prejuízo da possibilidade de
autonomização de atividades económicas). Este caso exclui, designadamente,
forças de segurança, sistema nacional de saúde, etc.

2.4 Seletividade
Só são proibidos auxílios que favoreçam “certas empresas ou certas produções” (os
que sejam de âmbito geral não distorcem a concorrência).
Assim, veja-se o disposto no acórdão Adria-Wien Pipeline, no âmbito do
qual o TJUE declarou que “as medidas nacionais que prevêem um reembolso par-
cial dos impostos sobre a energia incidentes sobre o gás natural e a energia eléctrica
não constituem auxílios estatais na acepção do artigo [107.º do TFUE] quando
se apliquem a todas as empresas situadas no território nacional, independente-
mente do objecto da sua actividade”, podendo entender-se aqui um respaldo da
doutrina geral de acordo com a qual as medidas de política económica geral
(como sejam a alteração das taxas gerais de IRS ou IRC) não constituem
auxílios de Estado20.
Dito de outra forma, desde que se apliquem indistintamente a todas as
empresas e a todas as produções, as medidas são em princípio de caráter geral
e não seletivas, não sendo consequentemente consideradas auxílios.

2.5 Distorção da concorrência entre os Estados-Membros


O artigo 107.º, n.º 1 TFUE só proíbe auxílios de Estado “que afetem as trocas
comerciais entre os Estados-Membros” e “que falseiem ou ameacem falsear a con-
corrência”.

18 Cfr. entre outros, acórdão do TJUE, de 12 de setembro de 2000, Pavlov e outros, processos apensos
C180/98 a C-184/98, ECLI:EU:C:2000:428; acórdão do TJUE, de 10 de janeiro de 2006, Cassa di Risparmio di
Firenze SpA e outros, processo C-222/04, ECLI:EU:C:2006:8.
19 Cfr., entre outros, acórdão do TJUE, de 18 de junho de 1998, Comissão/Itália, C-35/96, ECLI:EU:C:1998:303;
acórdão do TJUE, de 12 de setembro de 2000, Pavlov e outros, processos apensos C-180/98 a C-184/98,
ECLI:EU:C:2000:428.
20 Cfr., a título de exemplo, o disposto na Comunicação sobre a aplicação das regras relativas aos auxílios
estatais às medidas que respeitam à fiscalidade direta das empresas, disponível em https://eur-lex.europa.
eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A31998Y1210%2801%29
O REGIME DOS AUXÍLIOS DE ESTADO | 39

Ora, é jurisprudência assente que “em matéria de auxílios de Estado, as duas


condições de aplicação do artigo [107.º], n.º 1, do Tratado, relativas à incidência
nas trocas comerciais entre Estados membros e à distorção da concorrência se encon-
tram, regra geral, indissociavelmente ligadas”21.
Há um efeito de distorção da concorrência quando um auxílio financeiro
concedido por um Estado ou através de receitas de Estado reforça a posi-
ção de uma empresa relativamente a outras empresas concorrentes nas tro-
cas comerciais intracomunitárias. Este elemento não existe, por exemplo, nos
auxílios de minimis22 (regra geral, correspondente a auxílios a empresas infe-
riores a 200.000 € em três anos).

3. AUXÍLIOS COMPATÍVEIS COM O TFUE


Mesmo que uma medida seja qualificada como auxílio de Estado e preen-
cha todos os requisitos do artigo 107.º, n.º 1 TFUE supra mencionados, pode
o auxílio ser compatível com o Direito da União Europeia por beneficiar:

(i) de uma isenção legal, ao abrigo do n.º 2 do artigo 107.º TFUE;


(ii) de uma isenção categorial, ao abrigo de regulamento europeu; e
(iii) de uma isenção individual, ao abrigo do n.º 3 do artigo do 107.º
TFUE.

Vejamos:

3.1 Compatibilidade ao abrigo do n.º 2 do artigo 107.º TFUE


São compatíveis com o n.º 2 do artigo 107.º do TFUE os seguintes auxílios
de Estado:

(i) auxílios de natureza social atribuídos diretamente a consumidores


individuais com a condição de serem concedidos sem qualquer dis-
criminação relacionada com a origem dos produtos;
(i) auxílios destinados a remediar danos causados por calamidades
naturais ou por outros acontecimentos extraordinários23;

21 Acórdão do TPI de 4 de abril de 2001 (T-288/97).


22 Regulamento (UE) n.º 1407/2013 da Comissão, de 18 de dezembro de 2013.
23 Embora haja múltiplos exemplos de auxílios autorizados em relação à reação a cheias, a Comissão tem
entendido que só se verifica uma calamidade natural quando os danos forem substanciais, entendendo
40 | MANUEL QUEIROZ RIBEIRO

(i) auxílios para apoiar a convergência económica dos Lander da Ale-


manha oriental.

Embora estas medidas sejam notificáveis, a Comissão Europeia apenas


pode verificar se estão preenchidos os requisitos previstos nestas alíneas.
Assim sendo, a Comissão Europeia está vinculada a uma decisão de isenção,
não tendo qualquer margem de discricionariedade (ao contrário das isenções
individuais, tratadas em 4.3).

3.2 Isenções categoriais ao abrigo dos regulamentos europeus


Nos termos do artigo 109.º e do n.º 4 do artigo 108.º do TFUE, a Comissão
Europeia pode adotar regulamentos de isenção categorial, que têm por efeito
declarar a compatibilidade com o mercado interno dos auxílios de Estado
que cumpram os requisitos neles definidos, dispensando-os do mecanismo de
notificação prévia à Comissão Europeia, sem prejuízo dos deveres de infor-
mação a que os Estados-Membros estão normalmente sujeitos nesta maté-
ria24.
Neste quadro, estão tipicamente isentos de notificação prévia à Comissão
Europeia e são considerados compatíveis com o mercado interno as cate-
gorias de auxílios previstas no Regulamento (UE) n.º 2015/1588 relativos
a auxílios públicos horizontais e nos vários regulamentos adotados em sua
aplicação, como o Regulamento Geral de Isenção por Categoria25 ou Regu-
lamento de minimis26.
Desta forma, ao abrigo do Regulamento (UE) n.º 2015/1588, as isenções
por categoria podem abranger as seguintes categorias de auxílio:

a) De finalidade regional (al. b) do artigo 1.º);


b) Os auxílios a favor:
(i) Das pequenas e médias empresas;

genericamente como tal a destruição de pelo menos 20% da produção em período norma (vide Ferro, 2018:
303).
24 É ainda de salientar que o próprio Conselho pode, nos termos previstos na al. e) do n.º 3 do artigo 107.º e
no artigo 109.º do TFUE, definir categorias de auxílios que sejam considerados compatíveis com o mercado
interno e, igualmente, dispensadas da obrigação de notificação prévia (ao abrigo do n.º 3 do artigo 108.º do
TFUE).
25 Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 17 de junho de 2014, que declara certas categorias de
auxílio compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.º e 108.º do TFUE.
26 Regulamento (UE) n.º 1407/2013 relativo aos auxílios de minimis.
O REGIME DOS AUXÍLIOS DE ESTADO | 41

(ii) De I&D e inovação;


(iii) Da proteção do ambiente;
(iv) Do emprego e formação;
(v) Da cultura e conservação do património;
(vi) Da reparação dos danos causados por catástrofes naturais;
(vii) Da reparação dos danos causados por certas condições climáticas
desfavoráveis no setor das pescas;
(viii) Da silvicultura;
(ix) Da promoção de produtos do setor alimentar não incluídos no
Anexo I do TFUE;
(x) Da conservação dos recursos biológicos do mar e de água doce;
(xi) Do desporto;
(xii) Dos habitantes de regiões periféricas no domínio dos transportes,
quando este auxílio tem finalidade social e é concedido sem qual-
quer discriminação em função da identidade da transportadora;
(xiii) Dos serviços básicos de infraestrutura de banda larga e medidas
individuais de reduzida importância respeitantes a redes de acesso
de próxima geração, obras de engenharia civil relacionadas com a
banda larga e infraestruturas passivas em regiões que não dispõem
dessas infraestruturas de banda larga e nas quais é pouco prová-
vel que sejam desenvolvidas infraestruturas desse tipo num futuro
próximo;
(xiv) Da infraestrutura em apoio dos objetivos enumerados em (i) a
(xiii) e al. a) supra, bem como outros objetivos de interesse comum,
em especial os objetivos Europa 2020;
c) Ex vi do artigo 2.º, os auxílios de minimis27.

Atualmente, a grande maioria das isenções categoriais (em particular, os


auxílios a que se referem as als. a) e b) do artigo 1.º do Regulamento (UE) n.º
2015/1588) está reunida no RGIC, que define requisitos gerais e específicos
para diferentes tipos de auxílios: designadamente com finalidade regional, a

27 Genericamente e conforme referido acima, tendo em conta os elementos do conceito de auxílio de Esta-
do e, designadamente, os conceitos de “afectação do comércio” e de “distorção da concorrência”, desde
cedo que, pelo seu montante muito reduzido, não têm um impacto sensível no comércio e na concorrên-
cia entre Estados-Membros. Os limiares de minimis implicam que o montante total dos auxílios de minimis
concedidos a uma única empresa não pode exceder os 200 000 € durante o período de três exercícios finan-
ceiros, sendo aplicáveis qualquer que seja a forma dos auxílios de minimis ou o seu objetivo e indepen-
dentemente de os auxílios concedidos pelo Estado-Membro serem financiados, no todo ou em parte, com
recursos da União Europeia (cfr. artigo 3.º do Regulamento de minimis).
42 | MANUEL QUEIROZ RIBEIRO

PME (em geral ou para facilitar o seu acesso a financiamento), para fomentar
investigação e desenvolvimento ou formação, para proteger o ambiente, para
defender a cultura ou o património.
Cada Estado-Membro deve avaliar se as medidas que pretende adotar
preenchem os requisitos do regulamento, todavia a Comissão Europeia pode
discordar e exigir notificação ou, até retirar, num caso concreto, o benefício da
isenção categorial se um Estado-Membro tiver alegado, incorretamente, que
um auxílio estava abrangido por ele (artigo 10.º).

3.3 Isenções individuais ao abrigo do artigo 106.º e do n.º 3 do artigo 107.º


Sempre que um auxílio caia na proibição do n.º 1 do artigo 107.º, não se
enquadre no n.º 2 do artigo 107.º e não goze da proteção de uma isenção
categorial como as referidas no ponto 4.2 supra, pode beneficiar de uma isen-
ção individual, ou seja, o caso concreto deve ser apreciado pela Comissão
Europeia ao abrigo do n.º 3 do artigo 107.º, se visar ou for provável que tenha
por efeito:

a) promover o desenvolvimento de regiões com nível de vida anormal-


mente baixo ou grave subemprego ou de regiões ultraperiféricas;
b) fomentar um projeto importante de interesse europeu comum ou sanar
perturbação grave na economia de um Estado-Membro;
c) facilitar desenvolvimento de certas atividades ou regiões económicas,
desde que o seu impacto nas trocas comerciais não contrarie o interesse
comum; ou
d) promover a cultura e conservar património, desde que o seu impacto nas
trocas comerciais não contrarie o interesse comum.

Podem ainda ser autorizadas outras categorias de auxílios determinadas


por decisão do Conselho, sob proposta da Comissão, nos termos da al e) do
n.º 3 do artigo 107.º.
Note-se que a Comissão pode autorizar auxílios individuais (ou auxílios ad
hoc) ou regimes de auxílios (que se consubstanciam, no fundo, em esquemas
gerais ao abrigo dos quais, desde que preenchidas todas as condições, poderão
ser concedidos auxílios individuais)28.

28 Os regimes de auxílios são medidas de auxílios que foram aprovadas pela Comissão Europeia e que per-
mitem ao Estado, sem dependência de qualquer notificação subsequente à Comissão Europeia e sem que
sejam necessárias outras medidas de execução, conceder auxílios individuais a empresas nele definidas de
forma geral e abstrata e qualquer diploma com base no qual pode ser concedido a uma ou mais empresas
O REGIME DOS AUXÍLIOS DE ESTADO | 43

Deste modo, conclui-se que a CE, colocada no centro do processo de ava-


liação da compatibilidade da medida de auxílio com o mercado interno, goza
de uma margem muito relevante de discricionariedade, ao abrigo deste artigo,
em particular na tomada de decisão referente à questão de saber se o auxílio
promove efetivamente um destes objetivos legítimos, bem como quão impor-
tante é a promoção desse objetivo por contraste com a proteção do funciona-
mento do mercado interno29.
Assim, uma medida pode ser declarada compatível desde que retifique
uma deficiência do mercado, satisfaça objetivos de interesse comum clara-
mente definidos e não falseie a concorrência e o comércio do território da
União numa medida contrária ao interesse comum.
A Comissão tem vindo a aperfeiçoar e a concretizar o seu entendimento
sobre as situações que podem beneficiar destas isenções em documentos de
soft-law horizontais ou setoriais, aplicáveis a todos ou apenas a alguns seto-
res da economia30 ou a certas situações ou certo tipo de auxílio31, devendo
salientar-se que estes documentos constituem apenas um guia para o enten-
dimento da Comissão e não uma isenção de notificação prévia.

4. O REGIME DO QUADRO TEMPORÁRIO


Na sequência da eclosão do surto de COVID-19, que representou uma grave
emergência de saúde pública para os cidadãos e que tem uma implicação
direta nas empresas europeias, a Comissão Europeia reconheceu que uma

um auxílio não ligado a um projeto específico, por um período de tempo indefinido e/ou com um montante
indefinido.
29 No mesmo sentido, vide Nuno C. Rodrigues (2010: 885- 915), quando afirma que “resulta dos pressupos-
tos enunciados pela Comissão a necessidade de averiguar se o auxílio afecta (ou não), de forma negativa as
trocas numa medida contrária ao interesse comum. Embora os critérios não sejam explícitos, deve evitar-se
que a concessão do auxílio provoque um desequilíbrio entre, por um lado, a necessidade de evitar distorções
da concorrência e de reforçar a unidade do mercado interno e, por outro lado, as necessidades da situação
económica e de adaptação estrutural, o reforço da competitividade das indústrias comunitárias, o combate ao
desemprego e o desenvolvimento regional equitativo”.
30 A título de exemplo, cfr. Comunicação da Comissão sobre orientações comunitárias sobre os auxílios
estatais às empresas de transporte ferroviário ou a Comunicação da Comissão sobre orientações comunitá-
rias sobre os auxílios estatais às empresas de transporte marítimo.
31 A título de exemplo, cfr. Comunicação da Comissão sobre orientações relativas aos auxílios estatais de
emergência e à reestruturação concedidos a empresas não financeiras em dificuldade, a Comunicação da
Comissão sobre orientações relativas aos auxílios estatais que visam promover os investimentos de finan-
ciamento de risco ou a Comunicação da Comissão sobre o enquadramento dos auxílios estatais à investiga-
ção, desenvolvimento e inovação.
44 | MANUEL QUEIROZ RIBEIRO

parte relevante da resposta ao impacto social e económico da pandemia vem


dos orçamentos dos Estados-Membros, tendo emitido diversas comunica-
ções “relembrando” as regras aplicáveis em matéria de auxílios de Estado, que
se mantinham em vigor32. Aliás, foi esclarecido que a regra geral de incom-
patibilidade com o mercado interno da União Europeia dos auxílios concedi-
dos pelos Estados-Membros provenientes de recursos estatais, que falseiem
ou ameacem falsear a concorrência, concedendo vantagens a certas empresas
(artigo 107.º, n.º 1 do TFUE), continua a aplicar-se.
A concessão de benefícios que se enquadrem na noção de auxílio de Estado
carece, assim, de notificação à Comissão Europeia (“CE”), assim como de
autorização prévia para avaliação da sua compatibilidade com o mercado
interno.
Contudo, conforme já referido, determinadas medidas de apoio poderão
ser concedidas pelos Estados-Membros por não configurarem um “auxílio
de Estado” nos termos do artigo 107.º do TFUE ou por se enquadrarem nas
exceções já previstas nos n.os 2 e 3 deste artigo.
Resultou também claro que o Estado pode, em regra, adotar medidas que
sejam aplicáveis a todas as empresas e a todos os setores e que, por isso, não
integram a noção de “auxílio de Estado”. Não caindo na definição de auxílio,
estas medidas não carecem de ser previamente notificadas à Comissão Euro-
peia e por esta aprovadas33.
São exemplos destas medidas, em determinadas condições, a atenuação de
encargos salariais, a suspensão dos pagamentos de impostos sobre as socie-
dades e do imposto do valor acrescentado ou das contribuições sociais, assim
como o apoio financeiro concedido diretamente aos consumidores (e.g., para
compensar o cancelamento de serviços ou o custo de bilhetes não reembolsa-
dos pelos operadores interessados).
Os Estados-Membros poderão continuar a adotar medidas ao abrigo do
Regulamento de minimis (Reg. (UE) 1407/2013, de 18.21.2013) ou do Regu-
lamento de Isenção por Categoria (Reg. (UE) 651/2014, de 16.06.2014), as
quais, como sabemos, não carecem de aprovação prévia pela CE.

32 Conforme se pode inferir do parágrafo seguinte do Quadro Temporário, abordado em maior profundida-
de infra: “Dada a dimensão limitada do orçamento da UE, a principal resposta provirá dos orçamentos nacio-
nais dos Estados-Membros. As regras da UE em matéria de auxílios estatais permitem aos Estados-Membros
tomar medidas rápidas e eficazes para apoiar os cidadãos e as empresas, em especial as PME, que enfrentam
dificuldades económicas em virtude do surto de COVID-19.”
33 Para este efeito, Junqueiro & Ruiz, 2020.
O REGIME DOS AUXÍLIOS DE ESTADO | 45

A Comissão Europeia clarificou a sua posição relativamente ao facto


de considerar que o enquadramento atual já permite aos Estados-Mem-
bros adotar medidas, sujeitas à aprovação prévia da Comissão, com base no
artigo 107.º, n.º 2, al. b), do TFUE, o qual prevê que podem ser compatíveis
com o mercado interno auxílios destinados a remediar os danos causados
por calamidades naturais ou por outros acontecimentos extraordinários. Ou
seja, “considera-se que o surto do COVID-19 se deve qualificar como uma ocorrên-
cia excepcional, extraordinária e imprevisível, com um impacto económico muito
significativo e, por consequência, devem considerar-se justificadas intervenções
excepcionais dos Estados-Membros para compensar os danos associados ao referido
surto”34.
A Comissão Europeia publicou no seu site uma lista das informações e
dados que devem ser tidos em conta nas notificações de auxílios concedidos
ao abrigo do artigo 107.º, n.º 2, al. b), do TFUE para fazer face ao surto de
COVID-19. Em relação a estas medidas, que carecem de aprovação prévia, a
Comissão Europeia indicou que está a implementar todos os procedimentos
necessários para garantir a avaliação e aprovação célere, em apenas alguns dias
após a notificação dos apoios em causa. As medidas notificadas são divulgadas
no sítio da internet da Comissão, dando visibilidade aos apoios concedidos
pelos diversos Estados-Membros (quais os setores e que tipo de auxílios), o
que permite uma melhor avaliação dos setores em crise, bem como das solu-
ções encontradas pelos diferentes Estados-Membros para os apoiar.
Adicionalmente, a Comissão Europeia adotou a Comunicação C(2020)
186335, de 19 de março de 2020, que aprova o Quadro Temporário relativo a
Medidas de Auxílio Estatal em Apoio da Economia no Atual Contexto do
Surto de COVID-19 (Quadro Temporário), alterado pela C(2020) 2215, de
3 de abril de 2020, C(2020) 3156, de 8 de maio de 2020, C(2020) 4509, de
29 de junho de 2020, C(2020) 7127, de 13 de outubro de 2020, C(2021) 564,
de 28 de janeiro de 2021 e C(2021) 8442 de 18 de novembro de 2021, todas
publicadas no Jornal Oficial da União Europeia (Quadro Temporário).
Como se pode constatar, o Quadro Temporário tem assim sido alvo de
sucessivas alterações provocadas pela evolução da situação pandémica. De
facto foi alterado seis vezes até à data.

34 Pedro, 2020: 15-16.


35 Quanto à natureza do instrumento jurídico em causa, alguns autores alertam para a insegurança que o
mesmo pode causar. Em particular, Agnolucci, Op. Cit, refere que “Concerns arise in particular with regard to
the specific instrument used by the Commission. Indeed, soft law instruments, such as Commission communica-
tions, might fail to ensure the same level of legal guarantees applicable to other areas of EU law”.
46 | MANUEL QUEIROZ RIBEIRO

O Quadro Temporário constata a grave emergência de saúde pública para


os cidadãos e sociedades europeias, referindo o choque que afeta a economia
em várias frentes36, salientando que nestas circunstâncias excecionais todos os
tipos de empresas podem deparar-se com graves faltas de liquidez. De resto,
salienta-se que o esforço de flexibilização temporária exercido pela Comissão
Europeia não é totalmente inovador em termos de princípio37, mas é-o ao
nível da sua extensão.
Na sua atual redação, o Quadro Temporário prevê a possibilidade de con-
cessão de diversos tipos de auxílios, que vão ser seguidamente elencados.

4.1 Natureza dos auxílios de Estado

4.1.1 Secção 3.1. do Quadro Temporário: Montantes limitados de auxílio


Os auxílios previstos na secção 3.1 do Quadro Temporário consubstan-
ciam subvenções diretas, adiantamentos reembolsáveis ou benefícios fiscais,
empréstimos a taxa zero, garantias sobre empréstimos que cobrem 100% do
risco, ou injeções de capital, os quais poderão ir até 2,3 milhões € por empresa
para fazer face a necessidades urgentes de liquidez. Aplicam-se regras distin-
tas, designadamente quanto aos montantes máximos de auxílio, por empresa,
para o setor da agricultura e pescas (máximo 345.000 € na produção primária
de produtos agrícolas e 290.000 € no setor das pescas e da aquicultura)38.

36 “Assiste-se a um choque do lado da oferta resultante da perturbação das cadeias de abastecimento, a um


choque do lado da procura motivado pela diminuição da procura por parte dos consumidores, e aos efeitos
negativos decorrentes da incerteza que paira sobre os planos de investimento, bem como das restrições de
liquidez para as empresas” (cfr. Quadro Temporário).
37 O modelo de adoção de regras especiais e temporárias para fazer face a crises económicas e financeiras
já tinha ocorrido a propósito da crise financeira de 2008, em que a Comissão Europeia também flexibilizou as
regras de auxílios de Estado dirigidos a entidades do setor financeiro, tendo adotado o Quadro temporário
relativo às medidas de auxílio estatal destinadas a apoiar o acesso ao financiamento durante a atual crise
financeira e económica, constante da Comunicação adotada pela Comissão em 26 de novembro de 2008 no
âmbito do Plano de Relançamento da Economia Europeia.
Com foco específico sobre este tema, Guincho, 2016: 231, conclui “In 2008, at the outset of the economic
and financial crisis, the Member States found themselves with the responsibility to rescue financial institutions.
Other measures were partly extended to the real economy to avoid a meltdown of the economy. The Com-
mission needed to find an instrument capable of coordinating the State efforts undertaken during the crisis
due to the absence of an EU Treasury”. Assim, à luz da gravidade da crise económica e financeira de 2008 e
do seu impacto no conjunto da economia dos EM, a Comissão considerou que podia justificar-se, durante
um período de tempo limitado, a concessão de certas categorias de auxílios estatais para ultrapassar estas
dificuldades, podendo tais auxílios ser declarados compatíveis com o mercado interno com base no artigo
107.º, n.º 3, al. b), do TFUE.
38 Pode ser estabelecido um paralelismo entre esta modalidade de auxílio e o Regulamento de minimis,
dado que para um auxílio até este montante não há praticamente quaisquer restrições a aplicar. É de notar,
O REGIME DOS AUXÍLIOS DE ESTADO | 47

4.1.2 Secção 3.2. do Quadro Temporário: Auxílios sob a forma de garantias a


empréstimos
Os auxílios previstos na secção 3.2 do Quadro Temporário consubstanciam
garantias subvencionadas sobre empréstimos bancários. Os Estados-Mem-
bros podem conceder garantias estatais ou criar regimes de garantia de
empréstimos bancários contraídos pelas empresas, estando previstos alguns
limites ao montante máximo do empréstimo garantido, com base nas despe-
sas operacionais das empresas, numa percentagem do seu volume de negócios
do ano precedente ou nas suas necessidades de liquidez.
Portugal, como muitos Estados-Membros da UE, recorreu substancial-
mente a esta modalidade de auxílio de Estado para garantir liquidez às
empresas que operam no seu território, sendo exemplo disso as decisões da
Comissão Europeia de 22 de março de 2020 (State Aid SA.56755 (2020/N)
– Portugal Guarantee schemes related to Covid-19), de 4 de abril de 2020
(State Aid SA.56873(2020/N) – Portugal COVID-19: Direct grant scheme
and loan guarantee scheme), de 22 de dezembro de 2020 (State Aid SA.59795
(2020/N) – Portugal COVID 19 Amendment of SA.56873(2020/N) – Por-
tugal COVID-19: Direct grant scheme and loan guarantee scheme) de 30 de
abril de 2021 (State Aid SA.62505 (2021/N) – Portugal COVID 19 Amend-
ment of SA.56873(2020/N): Direct grant and loan guarantee scheme), de 6
de agosto de 2021 (State Aid SA.63549 (2021/N) – Portugal COVID-19:
Direct grant scheme and loan guarantee scheme (amendments to SA.56873)
e de 16 de dezembro de 2021 (State Aid SA.100810 (2021/N) – Portugal
COVID-19: Prolongation of the schemes SA.56873, SA.56886, SA.57035,
SA.57494, SA.59450, SA.61209, SA.62647 and SA.64041, as already amen-
ded.

4.1.3 Secção 3.3. do Quadro Temporário: Auxílios sob a forma de taxas de juro
bonificadas para os empréstimos
Os auxílios previstos na secção 3.3 do Quadro Temporário consubstanciam
taxas de juro bonificadas e dívida subordinada. Os Estados-Membros podem
autorizar a concessão às empresas de empréstimos públicos e privados com
taxas de juro bonificadas e ainda empréstimos sob a forma de dívida subordi-
nada (relativamente aos credores preferenciais ordinários). Estes empréstimos

nesse caso e em jeito comparativo, que o montante máximo ao abrigo do de minimis é substancialmente
inferior ao limite máximo previsto na secção 3.1 do Quadro Temporário, o que denota um claro entendimen-
to por parte da Comissão Europeia da situação excecional em que a pandemia colocou os Estados-Membros
da UE.
48 | MANUEL QUEIROZ RIBEIRO

devem ser concedidos a uma taxa de juro pelo menos igual à taxa de base em
vigor em 1 de janeiro de 2020, acrescida de margem de risco de crédito cor-
respondente ao perfil de risco do beneficiário, com taxas diferentes para PME
e não-PME, acrescida ainda de uma majoração em caso de dívida subordi-
nada. Existem limites ao montante máximo de cada empréstimo, os quais
dependem das necessidades operacionais das empresas.

4.1.4 Secção 3.4. do Quadro Temporário: Auxílios sob a forma de garantias e


empréstimos canalizados através de instituições de crédito ou de outras instituições
financeiras
Os auxílios previstos na secção 3.4 do Quadro Temporário consubstanciam
a salvaguarda do setor bancário. O Quadro Temporário esclarece que se os
Estados-Membros decidirem canalizar auxílios para a economia real através
dos bancos, tais apoios serão considerados um auxílio direto aos clientes dos
bancos que deles beneficiem e não aos próprios bancos. Os bancos e inter-
mediários financeiros devem implementar medidas para a passagem efetiva
das vantagens aos beneficiários finais dos auxílios, nomeadamente através de
maior volume de financiamento, diminuição de taxas de juros e de garantias
exigidas e diminuição de comissões de garantia.

4.1.5 Secção 3.5. do Quadro Temporário: Seguro de crédito à exportação de operações


garantidas a curto prazo
Os auxílios previstos na secção 3.5 do Quadro Temporário consubstanciam
seguros de crédito à exportação de curto prazo. O Quadro Temporário vem
introduzir flexibilidade adicional na concessão pelos Estados-Membros de
seguros de crédito à exportação relativamente à cobertura de riscos negociá-
veis. A concessão está sujeita à demonstração de indisponibilidade de priva-
dos para tais coberturas39.

4.1.6 Secção 3.6. do Quadro Temporário: Auxílios para atividades de investigação e


desenvolvimento no contexto da COVID-19
Os auxílios previstos na secção 3.6 do Quadro Temporário consubstan-
ciam auxílios à I&D relacionada com o coronavírus. Para responder à crise
sanitária atual, os Estados-Membros poderão conceder subvenções diretas,

39 Salienta-se que a quinta alteração ao Quadro Temporário veio prorrogar até 31 de dezembro de 2021 a
retirada temporária de todos os países da lista de países com riscos negociáveis, no contexto da Comunica-
ção relativa ao seguro de crédito à exportação em operações garantidas a curto prazo.
O REGIME DOS AUXÍLIOS DE ESTADO | 49

adiantamentos reembolsáveis ou benefícios fiscais para atividades de I&D.


Nesse âmbito, poderá ainda ser concedido um bónus a projetos de cooperação
transfronteiras entre Estados-Membros.

4.1.7 Secção 3.7. do Quadro Temporário: Auxílios ao investimento em


infraestruturas de ensaio e otimização (upscaling)
Os auxílios previstos na secção 3.7 do Quadro Temporário consubstanciam
auxílios à construção e otimização de instalações de ensaio. Os Estados-
-Membros poderão conceder subvenções diretas, benefícios fiscais, adianta-
mentos reembolsáveis e garantias totais (no-loss) para apoiar investimentos
que permitam a construção ou a otimização (upscaling) das infraestruturas
necessárias para desenvolver e testar produtos úteis para combater o surto
de coronavírus, até à primeira utilização industrial. Aqui se incluem medi-
camentos e tratamentos (incluindo vacinas), dispositivos e equipamentos
médicos (designadamente ventiladores e vestuário de proteção, bem como
ferramentas de diagnóstico), desinfetantes, ferramentas de recolha e proces-
samento de dados para combater a propagação do vírus.

4.1.8 Secção 3.8. do Quadro Temporário: Auxílios ao investimento para a produção


de produtos relevantes para fazer face à COVID-19
Os auxílios previstos na secção 3.8 do Quadro Temporário consubstanciam
auxílios à produção de produtos relevantes para fazer face ao surto de coro-
navírus. A fim de incentivar a cooperação e favorecer uma ação rápida, as
empresas poderão beneficiar de um bónus quando o seu investimento for
apoiado por mais do que um Estado-Membro ou quando o projeto em causa
estiver concluído no prazo de dois meses após a concessão do auxílio.

4.1.9 Secção 3.9. do Quadro Temporário: Auxílios sob a forma de diferimentos de


impostos e/ou de contribuições para a segurança social
Os auxílios previstos na secção 3.9 do Quadro Temporário consubstanciam
auxílios específicos sob a forma de diferimento do pagamento de impostos e/
ou suspensões das contribuições para a segurança social. Os Estados-Mem-
bros poderão conceder diferimentos específicos do pagamento de impostos
e de contribuições para a segurança social nos setores, regiões ou tipos de
empresas mais afetados pelo surto.
50 | MANUEL QUEIROZ RIBEIRO

4.1.10 Secção 3.10. do Quadro Temporário: Auxílios sob a forma de subvenções


salariais para os trabalhadores a fim de evitar lay-offs durante o surto de COVID-19
Os auxílios previstos na secção 3.10 do Quadro Temporário consubstanciam
auxílios específicos sob a forma de subvenções salariais para os trabalhadores.
Os Estados-Membros poderão contribuir para os custos salariais das empre-
sas em setores ou regiões que mais sofreram com o surto coronavírus e que,
sem esse apoio, teriam de colocar os respetivos trabalhadores em lay-off.

4.1.11 Secção 3.11. do Quadro Temporário: Medidas de recapitalização


Os auxílios previstos na secção 3.11 do Quadro Temporário foram aprova-
dos pela C(2020) 3156, de 8 de maio de 2020, no âmbito da 2.ª alteração ao
Quadro Temporário, que veio ainda permitir aos Estados-Membros, como
medida de último recurso, em caso de inadequação dos restantes tipos de
auxílios acima elencados, a intervenção ao nível de medidas de recapitali-
zação das empresas. Estas medidas podem assumir a forma de injeções de
capital ou de instrumentos híbridos (dívida convertível em capital) estando,
contudo, sujeitas a uma demonstração mais aprofundada quanto à necessi-
dade, adequação e proporcionalidade desse auxílio.
Tendo em vista assegurar o caráter temporário da intervenção do Estado
e uma suficiente remuneração pelo risco assumido, são criados incentivos à
recompra das ações ou reembolso do auxílio por parte das empresas benefi-
ciárias (ou seus acionistas) através de condições específicas de remuneração,
incremento da participação, conversão, entrada e saída do Estado no capital.
Durante a participação do Estado ou até ao reembolso do auxílio, são ainda
impostas algumas proibições às empresas beneficiárias do auxílio, como a
proibição de pagamento de dividendos, aumentos de remunerações e paga-
mento de bónus de quadros dirigentes, bem como a proibição da aquisição de
participação superior a 10% em empresas concorrentes ou outros operadores
do mesmo ramo de atividade. Nas alterações subsequentes ao Quadro Tem-
porário a Comissão adaptou as regras relativas às medidas de recapitalização,
por forma a incentivar a participação de investidores privados a contribuir
para o aumento do capital das empresas, em conjunto e nas mesmas condi-
ções que o Estado. Nos casos em que a participação privada ascenda a pelo
menos 30% do capital novo, é diminuída a duração das proibições relativas
a aquisições, bem como os limites de remuneração de gestão, sendo ainda
permitida a distribuição de dividendos aos titulares das novas ações ou de
ações pré-existentes (desde que estes últimos representem menos de 10%
do capital). Por outro lado, a Comissão veio também flexibilizar a saída do
O REGIME DOS AUXÍLIOS DE ESTADO | 51

Estado da recapitalização das empresas em que este já fosse um acionista


antes da medida de recapitalização, a qual é efetivada mediante avaliação
independente, e que tem como efeito a reposição da sua participação anterior,
mantendo as salvaguardas para preservar uma concorrência efetiva no mer-
cado único.

4.1.12 Secção 3.12. do Quadro Temporário: Auxílio sob a forma de apoio para os
custos fixos não cobertos
Os auxílios previstos na secção 3.12 do Quadro Temporário consubstanciam
auxílios sob a forma de apoio para os custos fixos não cobertos. Os Esta-
dos-Membros poderão apoiar as empresas que enfrentam uma diminuição
do volume de negócios, durante o período elegível, de pelo menos 30% em
comparação com o mesmo período de 2019, devido ao surto de coronavírus.
O apoio incidirá sobre uma parte dos custos fixos dos beneficiários que não
são cobertos pelas suas receitas, até um montante máximo de 12 milhões €
por empresa.

4.1.13 Secção 3.13. do Quadro Temporário: Apoio ao investimento dirigido a uma


retoma sustentável
Os auxílios previstos na secção 3.13 do Quadro Temporário consubstanciam
auxílios sob a forma de apoios ao investimento dirigido a uma recuperação
ambientalmente sustentável da economia. Os Estados-Membros poderão
apoiar o investimento privado como um estímulo para ultrapassar a falta de
investimento na economia durante a crise pandémica. Esse estímulo pode
ser dirigido ao desenvolvimento de certas atividades económicas ou de certas
áreas económicas. O apoio incide sobre um máximo de 15% (25% se for uma
PME) do custo de investimentos em ativos tangíveis e intangíveis até um
montante máximo de 10 milhões € por empresa.

4.1.14 Secção 3.14. do Quadro Temporário: Apoio à solvência


Os auxílios previstos na secção 3.14 do Quadro Temporário consubstanciam
auxílios sob a forma de apoios à solvência das empresas. Os Estados-Mem-
bros poderão apoiar a solvência das empresas cujos níveis de endividamento
tenham subido devido à crise económica, prejudicando investimento adicio-
nal e crescimento a longo-prazo. Essas medidas deverão ser desenhadas de
forma a que incentivem investimento privado em empresas com potencial
de crescimento, através de um esquema de garantias públicas a fundos de
52 | MANUEL QUEIROZ RIBEIRO

investimento que invistam nos beneficiários finais através de instrumentos de


capital e quase-capital40.

3.4 Análise dos auxílios concedidos


Os apoios previstos no Quadro Temporário destinam-se, em regra, a empre-
sas que não se encontravam em situação de dificuldade a 31 de dezembro
de 2019, mas que estão ou irão enfrentar dificuldades na sequência da crise
pandémica. Contudo, a terceira alteração ao Quadro Temporário de 29 de
junho de 2020 veio permitir a elegibilidade de micro ou pequenas empresas
passíveis de serem qualificadas já como “empresa em dificuldade”41 a 31 de
dezembro de 2019, considerando a sua importância no mercado e a forma
como foram especialmente afetadas pela pandemia. Esta possibilidade é
limitada a empresas que não estejam em processo de insolvência coletivo, de
acordo com o direito nacional, nem tenham recebido auxílios de emergência
ou auxílios à reestruturação.
Com o objetivo de incentivar os Estados-Membros a optarem por instru-
mentos reembolsáveis como forma de auxílio, a Comissão veio permitir, com
a quinta alteração ao quadro temporário, que os Estados-Membros conver-
tam, até 31 de dezembro de 2022, instrumentos reembolsáveis (nomeada-
mente, garantias, empréstimos, adiantamentos reembolsáveis) noutras formas

40 Conforme definidos nas Guidelines on State aid to promote risk finance investments, “A type of financing
that ranks between equity and debt, having a higher risk than senior debt and a lower risk than common equity.
Quasi-equity investments can be structured as debt, typically unsecured and subordinated and in some cases
convertible into equity, or as preferred equity”.
41 O conceito de “empresa em dificuldade” não é definido nos Tratados, existindo mais do que uma definição
potencialmente aplicável, dependendo do instrumento concreto. Para efeitos das Orientações constantes
da Comunicação da Comissão – Orientações relativas aos auxílios estatais de emergência e à reestruturação
concedidos a empresas não financeiras em dificuldade (2014/C 249/01) JO C 249 de 31.7.2014, considera-se
que uma empresa está em dificuldade quando se verificar pelo menos uma das seguintes circunstâncias:
a) “Se se tratar de uma empresa de responsabilidade limitada, quando mais de metade do seu capital social
tiver desaparecido devido a perdas acumuladas;
b) Trata-se do caso em que a dedução das perdas acumuladas das reservas (e todos os outros elementos geral-
mente considerados como uma parte dos fundos próprios da empresa) conduz a um montante cumulado
negativo que excede metade do capital social subscrito;
c) Se se tratar de uma empresa em que pelo menos alguns sócios tenham responsabilidade ilimitada relativa-
mente às dívidas;
d) Quando a empresa for objeto de um processo colectivo de insolvência ou preencher, de acordo com o res-
pectivo direito nacional, os critérios para ser submetida a um processo colectivo de insolvência a pedido dos
seus credores;
e) Se se tratar de uma empresa que não é uma PME e onde, nos dois últimos anos: i) o rácio dívida contabilísti-
ca/fundos próprios da empresa foi superior a 7,5, e ii) o rácio de cobertura dos juros da empresa, calculado
com base em EBTIDA, foi inferior a 1,0”.
O REGIME DOS AUXÍLIOS DE ESTADO | 53

de auxílio, como subvenções diretas, desde que sejam respeitadas as condições


previstas no Quadro Temporário bem como os novos limites máximos para
montantes de auxílio (referidos acima).
O regime de auxílios de Estado aprovado pelo Quadro Temporário é de
enorme importância e inovação, atendendo, por um lado, à flexibilidade da
atuação da Comissão Europeia na criação de regras de auxílios de Estado
indiscutivelmente mais permissivas que as regras gerais supra enunciadas
e, por outro, à agilização dos procedimentos de notificação tendentes à sua
aprovação, com prazos de decisão significativamente mais curtos e com uma
maioria quase unânime de decisões de compatibilidade42.
Todavia, muitas questões se podem colocar a propósito do mesmo. Utili-
zando o estudo “Impact of state aid on competition and competitiveness during
the COVID-19 pandemic: an early assessment”, como exemplo, é possível elen-
car algumas realidades que são constatadas no que toca aos auxílios de Estado
em tempos de pandemia que podem colocar em risco os objetivos da União
Europeia em matéria de proteção da livre concorrência e de objetivos em
matéria de transição ecológica e digital.
Assim, o referido estudo43 conclui que:

1. O número e orçamento dos casos de auxílios de Estado aprovados no


âmbito da crise causada pelo COVID-19 não tem qualquer precedente
histórico (a 9 de outubro de 2020, 2 biliões €, a maioria dos quais apro-
vados no âmbito do Quadro Temporário – 85% do número total de
casos e 92,6% do respetivo orçamento).
2. Apesar de todos os Estados-Membros terem notificado auxílios de
Estado, o orçamento global de cada medida difere substancialmente
entre Estados-Membros. Para além disso, entende-se que não há pro-
vas suficientes de que o montante global dos auxílios seja proporcional
ao prejuízo económico efetivamente sofrido, salientando-se que a exis-
tência de um risco de auxílio de Estado excessivo por parte de alguns
Estados-Membros pode vir a prejudicar a livre concorrência no mercado
único europeu.

42 Hove, 2020.
43 Os dados reportados e detalhes numéricos são analisados até 9 de outubro de 2020. Assim, estes deve-
rão ser substancialmente ainda mais impactantes à data do presente Artigo. Números atuais poderão ser
calculados com base na lista atualizada e disponível em: https://ec.europa.eu/competition-policy/state-aid/
coronavirus/temporary-framework_en
54 | MANUEL QUEIROZ RIBEIRO

3. Existe uma enorme disparidade no valor do orçamento das medidas dos


diferentes EM, com alguns acima de 100 mil milhões €, representando
em conjunto mais de metade do orçamento global de auxílios de Estado.
Relativamente a este ponto, é de notar que as diferenças de orçamento
se prendem mais com o poder económico do Estado-Membro do que
com a respetiva densidade populacional, o que pode criar ainda maior
distorção na concorrência entre os EM. Esta circunstância é claramente
descrita pelo gráfico infra:

Fonte : Agnolucci, 2021: 4.

4. A maior parte dos auxílios autorizados são neutros quanto ao setor de


atividade em que operam os beneficiários, sendo dirigidos a regimes
(medidas gerais) e não tanto a auxílios individuais a empresas-alvo (à
exceção clara do setor do transporte aéreo). Em muitas medidas se nota
o objetivo de apoiar empresas orientadas para a exportação ou ativas
internacionalmente, contudo sabemos que a Comissão Europeia proíbe
que o apoio seja concedido diretamente a essas atividades de exportação.
5. Embora o auxílio possa ser concedido sob as mais diferentes formas, o
tipo de auxílio mais dominante é a subvenção direta (ao abrigo da secção
3.1 do Quadro Temporário), podendo ainda incluir uma conjugação
com outras modalidades, como garantias, e medidas de recapitalização.
O facto de a principal modalidade ser a título de subsídio, para além de
colocar em maior perigo as finanças públicas do Estado-Membro em
causa e, por arrasto, o da União Europeia como um todo, pode colocar
mais uma vez questões relevantes em matéria de concorrência, na medida
em que Estados-Membros com menos poder económico tenderão a
O REGIME DOS AUXÍLIOS DE ESTADO | 55

preferir outras modalidades que não sejam contabilizadas como dívida


pública ab initio. Esta abordagem também é seguida por Irene Agnoluc-
ci”44, concluindo esta autora que “the disproportionate distribution of State
aid might have increased disparities between Member States in the medium
and long-term”.
6. Finalmente, a abordagem da Comissão na avaliação de auxílios de Estado
é tipicamente defensiva, ou seja, tem por base questionar se o auxílio de
Estado em causa coloca em perigo ou prejudica a livre concorrência no
mercado único europeu. Ao invés, não parece existir nenhuma aborda-
gem propriamente defensiva na análise de auxílios de Estado no âmbito
do Quadro Temporário [i.e., se a medida em causa serve o propósito
de promover a competitividade internacional através de incentivos ao
comércio internacional para mercados não europeus (em respeito dos
tratados internacionais) ou se promove a inovação ou as transformações
verde e digital].

Em termos de recomendações em matéria de Quadro Temporário, o refe-


rido estudo de Irene Agnolucci conclui, nomeadamente, que:

1. Deve ser tornado mais transparente o processo de avaliação dos auxílios


de Estado. Por forma a evitar discussões relativas ao tratamento igual e
ao processo de monitorização ex-post, a motivação e condições da deci-
são devem ser claras. Seria desejável um reporting e monitorização mais
claros e sistémicos sobre que Estados-Membros e que atividades econó-
micas recebem que apoios.
2. A Comissão Europeia avalia os casos no concreto, um a um (caso a caso).
Recomenda-se que os casos sejam avaliados tendo em conta a natureza
dos casos anteriores do Estado-Membros em comparação com casos
semelhantes de outros EM.
3. Há uma enorme variedade em termos de Orçamento estimado das
medidas em cada EM. Um tratamento mais diferenciado entre casos
mais pequenos e maiores seria apropriado para evitar desafios adminis-
trativos excessivos, em particular para Estados-Membros mais peque-
nos. Adicionalmente, facilitaria o acesso ao processo de avaliação de
todos os Estados-Membros a atribuição de capacidade adicional em

44 Agnolucci, 2021: 2.
56 | MANUEL QUEIROZ RIBEIRO

Estados-Membros mais pequenos ou mais pobres (seguindo a mesma


lógica que subjaz às regras aplicáveis aos auxílios com finalidade regio-
nal45).
4. Casos-chapéu, que envolvem várias modalidades de auxílios diferentes
(umbrella), notificados em particular por Estados-Membros maiores,
apesar de positivos na medida em que permitem uma análise mais ampla
das iniciativas de apoio público, devem ser analisados com mais detalhe
e precisão.
5. Considerando os orçamentos e números de casos de auxílios de Estado
substanciais, deve ser garantido o reporte dos auxílios de Estado efetiva-
mente desembolsados.

Por outro lado, Irene Agnolucci46 sumariza no estudo citado que houve
uma distribuição desproporcional dos auxílios de Estado, com a Alemanha
e a França a representarem cerca de 66% do montante global de auxílios,
ultrapassando em muito todos os outros Estados-Membros e o Reino Unido.
Essa disparidade parece estar ligada com o Produto Interno Bruto (PIB) de
cada Estado-Membro, bem como com a respetiva capacidade orçamental, o
que pode levar a vantagens e benefícios injustos para algumas empresas em
detrimento das suas concorrentes e, consequentemente, a uma maior distor-
ção da concorrência.
Por outro lado, e no que respeita aos objetivos de política pública visa-
dos genericamente pelas medidas de auxílio de Estado concedidas, a análise
demonstra que a maior parte do montante global de auxílios foi dirigido a
empresas em dificuldades financeiras (conforme demonstrado na tabela aci-
ma)47, ao passo que os objetivos de política pública para os auxílios de Estado
mais comuns nos últimos anos (conforme referido acima: auxílios com

45 Cfr. Capítulo 4.
46 Agnolucci, 2021: 7-8.
47 De resto, deve notar-se que os auxílios dirigidos a empresas que estão em situação de dificuldade, desig-
nadamente os auxílios de emergência e reestruturação, são um dos tipos de auxílios que maiores distorções
provocam no mercado interno. Como bem refere Pedro, 2020: 7-18, “[à] luz do regime em apreciação, por
um lado, as empresas em dificuldade podem beneficiar de um instrumento de concessão de auxílio, por outro,
tendo em conta a elevada taxa de insucesso de reabilitação das empresas em dificuldade, pode ter-se criado
um instrumento de má aplicação de dinheiros públicos, desde logo, à luz do risco moral [ou moral hazard]
criado pelo auxílio – as empresas que previrem que irão provavelmente ser auxiliadas quando se encontrarem
em dificuldade podem tender a adoptar estratégias empresariais excessivamente arriscadas e insustentáveis.
Além disso, a perspectiva de um auxílio de emergência e à reestruturação a uma dada empresa pode reduzir
artificialmente o seu custo do capital, conferindo-lhe uma vantagem concorrencial indevida no mercado.”.
O REGIME DOS AUXÍLIOS DE ESTADO | 57

Fonte: Agnolucci, 2021: 8.

políticas ambientais, investigação e desenvolvimento e finalidade regional),


foram postos de lado no âmbito do Quadro Temporário. Tendo em conta que
os Estados-Membros têm tomado a liberdade de decidir qual o montante
dos auxílios a conceder, que empresas podem beneficiar, que setores devem
ser apoiados, Irene Agnolucci48 conclui que um Quadro Temporário pro-
longado poderia produzir efeitos perniciosos no longo-prazo nas economias
nacionais e europeia, propondo que o Quadro Temporário se mantenha em
vigor apenas e na estrita medida do necessário, para se dirigir exclusivamente
ao impacto direto da crise pandémica, e que se evolua para um regime “nor-
malizado”.
Outras questões podem ser colocadas a propósito do Quadro Temporário
como, por exemplo, a transparência do processo de decisão da CE49, e embora
não se acompanhe inteiramente as suas conclusões, considera-se que Irene

48 Agnolucci, 2021: 14.


49 Alguns autores colocam em causa a transparência do processo de decisão da Comissão Europeia ao
abrigo do Quadro Temporário, dado a pouca visibilidade pública da adoção das regras dele constantes.
Assim, Agnolucci (2021:14) refere que “As regards the decision-making process, the TF—while streamlining the
procedures and speeding the notification process—might have encroached upon the principles of transparency
and democracy. Indeed, only few consultations among the Member States were carried out before adopting the
TF’s amendments. In addition, the outputs coming from such consultations are still undisclosed”.
58 | MANUEL QUEIROZ RIBEIRO

Agnolucci faz uma interessante síntese da correlação entre as diferentes res-


postas das instituições europeias no contexto da crise pandémica50.
Sem prejuízo das considerações apresentadas, atendendo à indiscutível fle-
xibilização das regras gerais no âmbito do Quadro Temporário, a proposta
desta Autora e os seus fundamentos parecem intuir que da sua perspetiva esta
flexibilização não deve ser permanente, alegando para isso potenciais distor-
ções à concorrência e efeitos negativos no comércio entre Estados-Membros,
bem como o elevado montante já despendido em auxílios de Estado.
É certo que a flexibilização apontada não é isenta de críticas, como se pode
inferir da conclusão que Irene Agnolucci expressa ao afirmar que “[m]uch can
be learnt by the implementation of pandemic aid. On the one side, the distortions
provoked by the TF remind us of the rationale behind EU State aid control which
is to ensure the smooth working of the internal market and maintain competition
between the EU undertakings. On the other side, however, the Commission should
take stock of the lessons learnt during the pandemic and translate them into a better
new State aid regime. […]. Since many instruments of State aid control will be
revised in the upcoming months, it would be beneficial to acknowledge pandemic
aid by addressing its distortive effects. For instance, the new instruments could
limit aid or set thresholds and limits for undertakings which have benefitted from
aid under the TF once or more than once, where deemed appropriate”, defendendo
em consequência alguma limitação da flexibilização conseguida em tempos
de crise (por natureza, conjunturais) para voltar a uma maior rigidez em ter-
mos estruturais.
Já Jonatan Echebarria Fernández conclui a este propósito que “State aid has
also provided an alleviation and kickstarted the economy by investing and provid-
ing rescue aid to companies and businesses. However, State aid is controversial and
complex. Member States must abide by EU rules when granting aid to companies.
The Commission must be notified and grant approval before the Member State can

50 Ibidem, p. 14. “Finally, one can wonder whether EU State aid control is an adequate tool to counteract the
crisis and whether the national efforts will be sufficient to respond to it. Despite the initial reluctance, the Com-
mission eventually allocated common funds, through for instance Sure, Next Generation, including the Recov-
ery Fund and the emission of Eurobonds. These might be effective and appropriate instruments to enact an EU
industrial strategy and start recovering together. Indeed, it would have been better if the amount granted by
the States through public resources had been provided by an EU-wide fund based on the principle of solidarity.
Notwithstanding the necessity for a Treaty amendment, especially as far as Article 125 TFEU is concerned, many
commentators highlight that if the recovery was funded by the UE, there would be less distortions in the internal
market and more common goals achieved. In conclusion, Europe will properly tackle the crisis when it even-
tually finds a common route. Archimedes once said, ‘give me a place to stand and with a lever I will move the
whole world’. Although still in the search of a working lever, the European Union has been using EU State aid as
a substitute tool. Only when it eventually finds the proper lever to lift economic growth, the EU will say: Eureka!”.
O REGIME DOS AUXÍLIOS DE ESTADO | 59

grant the aid because it alters the competition of the internal market. Despite its
flaws, State aid provides valuable solutions for companies on the brink of liquidity
and solvency due to the COVID-19 crisis”51, o que permite concluir um enten-
dimento tendente à existência de defeitos relativos a estas regras, apesar de
genericamente positivas.
Como se verá em seguida, o presente Artigo propõe, pelo contrário, uma
flexibilização permanente (ainda que eventualmente agnóstica quanto ao
modelo) dessas regras.

5. DA NECESSIDADE DE FLEXIBILIZAÇÃO DAS REGRAS GERAIS


Recorde-se que nos termos do ponto 4. do Quadro Temporário “Nas circuns-
tâncias excecionais motivadas pelo surto de COVID-19, todos os tipos de empresas
podem deparar-se com graves faltas de liquidez. Tanto as empresas financeiramente
sólidas como as menos viáveis podem chegar a uma situação de escassez súbita ou
mesmo de indisponibilidade de liquidez. As PME estão particularmente expostas.
Assim, a situação económica de muitas empresas estáveis e dos respetivos trabalha-
dores poderá vir a ser gravemente afetada a curto e médio prazo, com repercussões
mais duradouras que poderão pôr em perigo a sua sobrevivência”. Como se pode
observar pelo articulado, a Comissão parece ser particularmente prudente na
forma como refere a excecionalidade do impacto em causa, em particular
no que se refere à flexibilização permanente das regras aplicáveis a grandes
empresas52, a apoios com montantes mais alargados e dirigidos a setores espe-
cíficos, apoios tendentes à aquisição de controlo de uma empresa (buy-out)
e incentivos a ganhos de escala ou incentivos mais substanciais às transições
energética e digital.
A esta contingência acresce o facto de os grandes blocos económicos con-
correntes com a UE, maxime China e Estados Unidos da América, não terem
regimes de apoios públicos com semelhantes restrições (pelo contrário, como
é sabido, há muitos países que subsidiam fortemente as suas empresas, o que

51 Fernandez, 2021.
52 Salienta-se, neste ponto, que o apoio público a grandes empresas europeias (com sede num EM da UE) é
muito limitado no âmbito das regras de auxílios de Estado, como decorre dos vários regulamentos e orien-
tações supra citados, quase todos apenas aplicáveis a PME e (alguns) a empresas de média capitalização
(Mid Cap).
60 | MANUEL QUEIROZ RIBEIRO

facilita a inexistência de um level playing field regulatório global nos auxílios


públicos)53.
Assim, alguns Estados-Membros no âmbito da respetiva política indus-
trial colocam a questão da necessidade de flexibilização (permanente) dos
vários ramos do Direito da Concorrência dos quais o regime jurídico dos
auxílios de Estado não constitui exceção.
Tanto assim é que a França e a Alemanha apresentaram, no início de 2020,
o “Franco-German Manifesto for a European industrial policy fit for the 21st
Century”54, onde, desde logo, identificam o objetivo de investimento massivo
em inovação (com base no repto “we will only succeed if we are the ones creating,
developing and producing new technologies”), através:

a. Da criação de uma estratégia europeia de financiamento da tecnologia;


b. De um forte compromisso ao nível da União Europeia tendente à ino-
vação disruptiva;
c. Da sua transformação em líderes mundiais em Inteligência Artificial;
d. De capacidade instalada para produção de tecnologias totalmente ino-
vadoras (cutting-edge);
e. D a garantia que os mercados financeiros apoiam a inovação industrial.

Os Estados-Membros referidos defendem que “[w]e [depreende-se, pois,


a União Europeia] will only succeed if European companies are capable of com-
peting on the global stage”, indicando em seguida que “[c]ompetition rules are
essential but existing rules need to be revised to be able to adequately take into
account industrial policy considerations in order to enable European companies to
successfully compete on the world stage. Today, amongst the top 40 biggest com-
panies in the world, only 5 are European”, de onde sobressaia uma imagem de
uma Europa estagnada na sua competitividade global e que urge “acordar”.
Sublinham ainda, na sequência do que já foi dito, a evidência de uma enorme
desvantagem das empresas europeias face a empresas que operam em paí-
ses que as subsidiam fortemente: “When some countries heavily subsidize their
own companies, how can companies operating mainly in Europe compete fairly?
Of course, we must continue to argue for a fairer and more effective global level

53 A título de exemplo, Faria, 2009a: 75 refere, a propósito dos referidos dois sistemas, que “partilham
alguns objectivos e similitudes. Todavia, o regime comunitário é bem mais ambicioso no controlo que exerce
(…)”.
54 Disponível em https://www.bmwi.de/Redaktion/DE/Downloads/F/franco-german-manifesto-for-a-euro-
pean-industrial-policy.pdf?__blob=publicationFile&v=2
O REGIME DOS AUXÍLIOS DE ESTADO | 61

playing field, but in the meantime, we need to ensure our companies can actually
grow and compete”.
Especificamente a propósito do regime de auxílios de Estado e de medidas
direcionadas para realizar os objetivos supra identificados, os referidos países:

a. sugerem uma adaptação genérica das regras europeias de concorrên-


cia “[t]aking into greater consideration the state-control of and subsidies for
undertakings within the framework of merger control”;
b. salientam que as novidades em matéria das regras aplicáveis aos proje-
tos IPCEI55 constituem um desenvolvimento positivo, mas que “[m]ore
generally, state-aid guidelines must provide a clear framework, taking into
account the aim to develop innovative industrial capacity in Europe”;
c. outras ideias a explorar, tais como o eventual envolvimento temporário
de entidades públicas em setores específicos e em determinadas ocasiões
para garantir o seu desenvolvimento com êxito no longo prazo.

Esta matéria (dos “campeões europeus” e da eventual necessidade de apoio


por parte dos Estados-Membros da União Europeia às suas grandes empre-
sas para que possam ganhar escala e competir de forma justa com as suas
concorrentes sediadas em países terceiros) tem também tratamento doutri-
nário nacional, designadamente por parte de António Goucha Soares56, que
começa pelos campeões nacionais e pela política industrial para analisar a
situação dos campeões europeus, fazendo referência a um cruzamento do
regime das concentrações com o regime dos auxílios de Estado.
Assim, para definir o conceito de “campeões nacionais”, o Autor refere
que “no contexto do controlo das concentrações de empresas o apoio que possa ser
dado por um Governo a uma fusão ou aquisição entre duas empresas nacionais,
visando alcançar um ganho de escala e, por este modo, o aumento de competitivi-
dade nos mercados nacionais, tem sido referido como exemplo de criação de campeões

55 Important Projects of Common European Interest. Na altura em que foi apresentado o Manifesto Franco-
-Alemão, este novo regulamento constituía uma mera proposta da Comissão, mas hoje já está em vigor e
disponível em https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/IP_21_6245.
A Vice-Presidente Executiva da CE Margrethe Vestager salienta que “[f]ollowing an extensive consultation pro-
cess, we have made targeted changes to our rules to further enhance the openness of IPCEIs and facilitate the
participation of small and medium-sized enterprises”.
56 Soares, 2010: 30.
62 | MANUEL QUEIROZ RIBEIRO

nacionais, em áreas importantes para a economia dos respectivos Estados-mem-


bros”57, considerando estarmos perante “intervenções políticas nos processos de
reestruturação empresarial, determinadas por motivos que transcendem ganhos de
eficiência das empresas envolvidas nas operações de concentração, ou vantagens eco-
nómicas que tais operações poderão proporcionar no bem-estar dos consumidores
finais”58.
O citado Autor António Goucha Soares sustenta ainda que a criação de
campeões nacionais é tipicamente justificada por razões de política industrial,
visto que em termos económicos “o fundamento clássico da política industrial
era reconduzível à ideia de que a intervenção do Estado se justificava nas situações
em que o mercado não poderia actuar. Nesses casos, as autoridades públicas pode-
riam remediar as falhas decorrentes do comportamento das empresas privadas. De
entre os instrumentos paradigmáticos da actuação do Estado no âmbito da política
industrial poderia referir-se, a par do fomento dos campeões nacionais, a conces-
são de auxílios de Estado”59, demonstrando aqui um possível alinhamento dos
objetivos nas duas iniciativas públicas, para depois exacerbar a existência de
críticas a esta abordagem, salientando designadamente que “a ideia de que a
aquisição de escala no mercado nacional favorece a competitividade externa das
empresas (…) é discutível no plano económico”.
No mesmo sentido veja-se, por exemplo, o que aponta Nuno Rocha de
Carvalho a propósito do manifesto franco-alemão e da estratégia industrial
alemã60, no sentido de defender que é o bem-estar do consumidor decorrente
de um processo concorrencial que está no cerne do Direito da Concorrência
(e não as empresas), “[m]easuring these gains and losses is admittedly a tricky
proposition and one best left to economists but if one were to admit, for the sake of

57 Ibidem, “Do mesmo modo, é reportável à ideia de promoção de campeões nacionais a actuação de um
Governo que pretenda impedir a aquisição de uma empresa nacional por uma concorrente estrangeira, ou
vise dificultar a entrada de uma empresa estrangeira numa área considerada estratégica para a economia
nacional”.
58 A este propósito, o Autor dá uma série de exemplos de operações de concentração que poderiam classi-
ficar-se como uma tentativa por parte do Estado de criar campeões nacionais em Portugal.
59 Soares, 2010: 35.
60 Carvalho, 2019: 87-88, refere-se que “[i]n early February, the German government published a new indus-
trial plan called ‘Industrial Strategy 2030’ and, some weeks later, a joint ‘Franco-German Manifesto for a Euro-
pean industrial policy fit for the 21st Century’ was unveiled. Although they ostensibly manifest adherence to the
principles of open and free markets as well as investment in innovation, these initiatives ultimately call for the
review and reform of existing European state-aid and competition law, the message being that competition
law and its application should be relaxed to make way for the creation of European companies with a global
dimension”.
O REGIME DOS AUXÍLIOS DE ESTADO | 63

argument, that they evened each other out, it would still be extremely difficult to
see how the alleged benefits to Europe would be spread homogenously within the
Union and how they would not be detrimental to the European Single Market”61.
Não ignorando que o tema específico dos campeões europeus não consti-
tui o objeto do presente Artigo, a verdade é que, tal como no que à eventual
flexibilização (permanente) do regime dos auxílios de Estado diz respeito, a
União Europeia parece estar mais centrada na concorrência interna (intra-
comunitária) do que externa. Por tudo quanto se disse, parece evidente que
a União Europeia (enquanto bloco político e económico) precisa de apoiar
o desenvolvimento de tecnologias emergentes que exigem recursos que as
empresas europeias, de per si, não conseguem assegurar. Assim, mesmo que
os Estados-Membros com maior disponibilidade orçamental (como é o caso
da França e da Alemanha supra citadas) tenham uma maior capacidade para
apoiar financeiramente as suas empresas do que os Estados-Membros com
menor disponibilidade (como Portugal), a verdade é que facilmente se pode
argumentar que mesmo as empresas sediadas em Estados-Membros com
menor capacidade teriam vantagens na existência de empresas europeias com
maior escala, ao beneficiarem do facto de poderem ser inseridas em cadeias de
valor europeias, com uma economia europeia mais próspera, exigindo obvia-
mente empresas europeias mais competitivas62.
Tal como sublinhámos, o Estado Chinês ou Norte-Americano63 apoiam
de forma distinta as suas empresas, e tudo indica que as vão apoiar, mais
ainda, no contexto das transições verde e digital. Assim, julga-se defensá-
vel que o maior problema da economia europeia não reside na concorrência
dentro do mercado interno, mas na concorrência que as empresas europeias
enfrentam nos mercados globais.
Finalmente, considerando a (muito positiva) alocação de fundos europeus
a serem distribuídos nos próximos tempos, de que são exemplo os fundos
provenientes do Mecanismo de Recuperação e Resiliência e aprovados como

61 Ibidem.
62 A este propósito, ver a entrevista a vários governantes de relevo, disponível no site: https://www.eubulle-
tin.com/10949-building-european-champions-eu-to-review-state-aid-rules-to-help-its-firms-compete-wi-
th-us-china.html
63 Poder-se-ia ainda dar o exemplo do fenómeno dos sovereign wealth funds, que são entidades financeiras
detidas por Estados como os Emirados Arabes Unidos, Singapura, Rússia ou China, que têm investido na
aquisição de capital de empresas que operam em setores estratégicos. Para mais informações consultar, por
exemplo, P. Whyte, L. Barysh, “What should Europe do about sovereign wealth funds?” Centre for European
Reform bulletin, 2007.
64 | MANUEL QUEIROZ RIBEIRO

Planos de Recuperação e Resiliência de cada Estado-Membro, a verdade


é que os seus maiores destinatários em termos de percentagem são, de um
modo geral, justamente os Estados-Membros com menos capacidades orça-
mentais. Nesse sentido, por forma a poder executar esses fundos, poder-se-á,
igualmente, considerar também do interesse destes Estados que as regras de
auxílios de Estado sejam flexibilizadas, para que as empresas destinatárias que
operam nesses Estados, cujos níveis de capitalização médios são tipicamente
mais reduzidos que nos Estados com mais capacidade orçamental, possam
efetivamente beneficiar dos apoios públicos a conceder e para que o investi-
mento estrangeiro nesses Estados seja incrementado.
Pelo exposto, defende-se que uma nova perspectiva deve ser adotada pelas
instituições europeias, de acordo com o proposto pelos Estados-Membros
indicados no referido Manifesto, no sentido de se estudar a melhor maneira
de rever, de forma ponderada, estruturada e permanente, as regras de auxílios
de Estado, tendo em vista os objetivos comuns à União Europeia e respetivas
prioridades, numa abordagem que contemple não só a proteção do mercado
único e a defesa do consumidor, mas igualmente a necessidade de incentivar
fortemente o investimento privado e público dirigido às transições verde e
digital e à concorrência com outros blocos económicos que operam no mer-
cado global com menos restrições do que as que presentemente (salvo algu-
mas alternativas previstas em certos regimes, maxime o Quadro Temporário)
adstringem as empresas que nela operam.
O que não deve acontecer é que, para garantir uma concorrência saudá-
vel no seio do mercado interno, se venha a comprometer o crescimento das
empresas europeias no contexto global.

CONCLUSÃO
Com o presente Artigo pretendeu-se abordar o regime geral dos auxílios de
Estado, o regime especial do Quadro Temporário para fazer face à crise eco-
nómica provocada pela pandemia COVID-19, bem como a necessidade de
flexibilização das regras gerais aplicáveis nesse contexto.
A proibição genérica dos auxílios de Estado surge para prevenir a tentação
dos Estados de privilegiar as empresas nacionais face às suas concorrentes
estrangeiras, o que de acordo com a doutrina e jurisprudência relevante fere
os elementares princípios do mercado aberto e da livre prestação de servi-
ços. Podem, todavia, ser considerados compatíveis com o mercado interno,
designadamente por poderem preencher determinada isenção prevista no
O REGIME DOS AUXÍLIOS DE ESTADO | 65

TFUE, caso em que serão permitidos. Na avaliação da compatibilidade de


certo auxílio de Estado, a Comissão Europeia goza de uma margem ampla
de discricionariedade.
Na sequência de uma crise, de que é exemplo a crise económica e social
provocada pela pandemia de COVID-19, a Comissão Europeia, embora
mantendo as regras aplicáveis em matéria de auxílios de Estado em vigor,
adotou o Quadro Temporário que visa flexibilizá-las, constatando a grave
emergência de saúde pública para os cidadãos e sociedades europeias, refe-
rindo o choque que esta provocou e provoca na economia em várias frentes64
e salientando que nestas circunstâncias excecionais todos os tipos de empre-
sas podem deparar-se com graves faltas de liquidez.
No que se refere ao seu impacto, resulta do exposto que é inegável que
o Quadro Temporário operou uma flexibilização (temporária) das regras de
auxílios de Estado, o que originou um número e montante de auxílios de
Estado sem precedentes históricos em (relativamente) pouco tempo, embora
esta não seja isenta de críticas, havendo quem defenda alguma limitação da
flexibilização conseguida em tempos de crise (conjunturais) para voltar a uma
maior rigidez em termos estruturais.
Assim, sob o repto da adoção de um Quadro Temporário que flexibilizou
(temporariamente) as regras de auxílio de Estado face à nova realidade com
que a Europa se confronta, e sem prejuízo do exposto, coloca-se a questão de
saber se estamos, ou não, perante um caminho de flexibilização permanente
destas regras ou, como questiona António Carlos Santos65, “será que o regime
dos auxílios tal como decorre do TFUE e que se mantém inalterado há mais de 50
anos está verdadeiramente adequado aos dias de hoje?”
Salienta-se relativamente a este ponto que o regime europeu dos auxílios
de estado já não era isento de críticas antes da crise provocada pela pandemia.
Com efeito, trata-se de uma matéria delicada e ainda em construção, com
muitos potenciais focos de conflito, seja entre Estado e agentes de mercado,
ou entre Estados-Membros e a Comissão Europeia (numa lógica de disputa
de soberania), seja até numa perspetiva de influência dos Estados-Membros
a orientar as suas políticas públicas num determinado sentido.

64 “Assiste-se a um choque do lado da oferta resultante da perturbação das cadeias de abastecimento, a um


choque do lado da procura motivado pela diminuição da procura por parte dos consumidores, e aos efeitos
negativos decorrentes da incerteza que paira sobre os planos de investimento, bem como das restrições de
liquidez para as empresas” in Quadro Temporário.
65 Santos, 2010: 230.
66 | MANUEL QUEIROZ RIBEIRO

Ora, como vimos, o regime de auxílios de Estado pode relacionar-se tam-


bém, ainda que indiretamente, com os chamados “campeões europeus”, tema
que merece uma análise e desenvolvimento muito mais aprofundados do que
se pôde fazer no presente Artigo, remetendo-o, pois, para investigação futura.
Sem prejuízo, algumas considerações devem ser tecidas a propósito da sua
articulação com a eventual necessidade de flexibilização das regras de auxí-
lios de Estado, em linha com aquilo que alguns Estados-Membros (maxime,
França e Alemanha) defendem, no âmbito da respetiva política industrial, ao
colocar a questão da necessidade de flexibilização (permanente) dos vários
ramos do Direito da Concorrência dos quais este não constitui exceção.
Pelo exposto,

• Considerando a concorrência que outros blocos económicos, designada-


mente a China e os Estados Unidos da América, fazem à União Euro-
peia;
• Considerando a ausência de semelhantes restrições aos apoios públicos
de que as empresas que neles operam são alvo por comparação com as
empresas europeias;
• Considerando as vantagens que a existência de mais cadeias de valor
europeias poderia trazer às empresas que operem noutros Estados-
-Membros, mesmo nos que tenham menor capacidade orçamental;
• Considerando os desafios que as transições verde e digital representam
para a economia europeia e o desejável alinhamento entre investimento
europeu público e privado para os ultrapassar, defende-se que deve ser
adotada uma nova visão relativa à revisão e flexibilização das regras de
auxílios de Estado por parte das instituições europeias, tendo em vista
os objetivos comuns à União Europeia e respetivas prioridades. Esta
visão deve contemplar não só a proteção do mercado único e a defesa
do consumidor, mas igualmente a necessidade de incentivar fortemente
o investimento privado e público dirigido às transições verde e digital e
à concorrência com outros blocos económicos que operam no mercado
global com menos restrições do que as que presentemente (salvo algu-
mas alternativas previstas em certos regimes, maxime o Quadro Tempo-
rário) oneram as empresas que nela operam.
O REGIME DOS AUXÍLIOS DE ESTADO | 67

BIBLIOGRAFIA

AGNOLUCCI, Irene
2021  Will COVID-19 Make or Break EU State Aid Control? An Analysis of
Commission Decisions Authorising Pandemic State Aid Measures, in Jour-
nal of European Competition Law and Practice, 2021, disponível em
https://academic.oup.com/jeclap/advance-article/doi/10.1093/jeclap/
lpab060/6360345 [consultado em 30.01.2022]
CAMPOS, Manuel Fontaine
2014 “Fundamentos Económicos da Concessão de Ajudas Públicas no Mer-
cado Nacional” in Boletim de Ciências Económicas. Vol. LVII-I, pp. 943-974
2017 “A evolução do enquadramento normativo dos auxílios de Estado na
União Europeia e os fundamentos históricos do seu controlo”, in H. Mota,
J.F. Coutinho, M.R. Guimarães, M. P. Vasconcelos, P.T. Domingues, R.T.
Pedro (orgs.), Estudos Comemorativos dos 20 anos da FDUP. (Vol. II, pp.
205-234). Coimbra: Almedina
CARVALHO, Nuno Rocha de
2019  “European Champions vs. Real Champions: What will it cost you”
in Revista de Concorrência e Regulação, Ano X, n.º 39, julho / setembro,
pp. 87‑93
FARIA, Tânia Farinha
2009a  Regulação das subvenções no âmbito da OMC e auxílios de Estado no direito
comunitário. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
2009b  O regime comunitário dos auxílios de Estado – Implicações da nova abordagem
económica aprofundada. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
FERNANDEZ, Jonatan Echebarria
2021  A Critical Analysis on the European Union’s Measures to Overcome the Eco-
nomic Impact of the COVID-19 Pandemic, European Papers Vol. 5, 2020,
No. 3, pp. 1399-1423 (European Forum, 16 de janeiro de 2021), dispo-
nível em https://www.europeanpapers.eu/en/system/files/pdf_version/
EP_EF_2020_I_046_Jonatan_Echebarria_Fernandez_00437.pdf [con-
sultado em 30.01.2022]
FERRO, Miguel Sousa
2018 “Auxílios de Estado”, in Eduardo Paz Ferreira (coord.) Integração e direito
económico europeu, Lisboa: AAFDL Editora, pp. 285-318
GONÇALVES, José Renato
2018 “As Quatro Liberdades” in Eduardo Paz Ferreira (coord.) Integração e
direito económico europeu, Lisboa: AAFDL Editora, pp. 123-197
68 | MANUEL QUEIROZ RIBEIRO

GUINCHO, Luís Seifert


2016 “State Aid and Systemic Crises: Appropriateness of the European State
Aid Regime In Managing and Preventing Crises” in Revista de Concorrên-
cia e Regulação, Ano VII, Número 27-28, julho a dezembro, pp. 199‑238
HENRIQUES, Miguel Gorjão de
2019  Direito da União – História, Direito, Cidadania, Mercado Interno e Concor-
rência, 9.ª edição. Coimbra: Almedina
HOVE, Jan Van
2020  Impact of State Aid on Competition and Competitiveness during COVID-19
Pandemic: An early Assessment, disponível em: https://www.europarl.europa.
eu/thinktank/en/document.html?reference=IPOL_STU(2020)658214
[consultado em 30 de janeiro de 2022]
JUNQUEIRO, Ricardo Bordalo & RUIZ, Nuno
2020 “Coronavírus | Portugal: Impacto em matéria de concessão pelo Estado
de Auxílios a empresas”, disponível em https://www.vda.pt/pt/publica-
coes/insights/impacto-em-materia-de-concessao-pelo-estado-de-auxi-
lios-a-empresas/21890/ [consultado em 30 de janeiro de 2022]
MAIA, Gil Vicente
2019 “O Regime Europeu dos Auxílios de Estado – Algumas Reflexões” in
Revista da Ordem dos Advogados, Vol. 79, No. 1, pp. 105-140
MASCATE, Ana Luísa
2004 “O sistema europeu de controlo de auxílios de estado no contexto da cons-
tituição económica europeia” in Auxílios de Estado e Constituição Económica
Europeia, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
PEDRO, Ricardo
2020  Notas introdutórias sobre o quadro jurídico europeu de auxílios públicos enqua-
drador de possíveis medidas de incentivos financeiros às empresas no contexto
dos impactos económico-financeiros causados pelo surto de COVID-19, CEDIS
Working Papers, disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.
cfm?abstract_id=3556449 [consultado em 30 de janeiro de 2022]
RODRIGUES, Nuno Cunha
2010 “Auxílios de Estado com Finalidade Regional”, in Estudos em Homenagem
ao Prof. Pitta e Cunha, vol. I, Almedina, Coimbra, pp. 885-915
SANTOS, António Carlos dos
2003  Auxílios de Estado e Fiscalidade. Coimbra: Almedina
2010  “Crise Financeira e Auxílios de Estado – Risco Sistémico ou Risco
Moral?” in Revista de Concorrência e Regulação, Ano I, n.º 3, julho a setem-
bro, pp. 209-234
O REGIME DOS AUXÍLIOS DE ESTADO | 69

SOARES, António Goucha,


2010 “A Questão dos Chamados Campeões Nacionais no Direito Comunitário
da Concorrência”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Pitta e Cunha, vol. I,
Almedina, Coimbra, pp. 21-42

Você também pode gostar