Cruzamento de rotas audiovisuais

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CRUZAMENTO

DE ROTAS
AUDIOVISUAIS
Cinema, Televisão e

Mariana Mól Gonçalves


Reinaldo Maximiano Pereira
CRUZAMENTO
DE ROTAS
AUDIOVISUAIS
Cinema, Televisão e

Mariana Mól Gonçalves


Reinaldo Maximiano Pereira
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Reitora: Sandra Regina Goulart Almeida
Vice-Reitor: Alessandro Fernandes Moreira

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


Diretor: Bruno Pinheiro Wanderley Reis
Vice-Diretora: Thais Porlan de Oliveira

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO


Coordenador: Bruno Souza Leal
Sub-Coordenador: Carlos Frederico de Brito D’Andréa

SELO EDITORIAL PPGCOM


Carlos Magno Camargos Mendonça
Juarez Guimarães Dias

CONSELHO CIENTÍFICO
Ana Carolina Escosteguy (PUC-RS) Kati Caetano (UTP)
Benjamim Picado (UFF) Luis Mauro Sá Martino (Casper Líbero)
Cezar Migliorin (UFF) Marcel Vieira (UFPB)
Elizabeth Duarte (UFSM) Mariana Baltar (UFF)
Eneus Trindade (USP) Mônica Ferrari Nunes (ESPM)
Fátima Regis (UERJ) Mozahir Salomão (PUC-MG)
Fernando Gonçalves (UERJ) Nilda Jacks (UFRGS)
Frederico Tavares (UFOP) Renato Pucci (UAM)
Iluska Coutinho (UFJF) Rosana Soares (USP)
Itania Gomes (UFBA) Rudimar Baldissera (UFRGS)
Jorge Cardoso (UFRB | UFBA)

www.seloppgcom.fafich.ufmg.br
Avenida Presidente Antônio Carlos, 6627, sala 4234, 4º andar
Pampulha, Belo Horizonte - MG. CEP: 31270-901
Telefone: (31) 3409-5072
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
Cruzamentos de Rotas Audiovisuais: cinema, televisão e
streaming / Organizadores: Mariana Mól Gonçalves, Reinaldo
C957
Maximiano Pereira. - Belo Horizonte, MG: PPGCOM/UFMG,
2022. - (Olhares Transversais; v.1 )
260p.

Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-86963-49-6

1. Audiovisual. 2. Cinema. 3. Televisão. 4. Streaming. I.


Gonçalves, Mariana Mól. II. Pereira, Reinaldo Maximiano.
CDD 791.43

Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422

CRÉDITOS DO E-BOOK © PPGCOM/UFMG, 2021.

CAPA E PROJETO GRÁFICO


Atelier de Publicidade UFMG
Bruno Guimarães Martins

COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO
Bruno Guimarães Martins
Daniel Melo Ribeiro

DIAGRAMAÇÃO
Rafael Mello

O acesso e a leitura deste livro estão condicionados ao aceite dos


termos de uso do Selo do PPGCOM/UFMG, disponíveis em:
https://seloppgcom.fafich.ufmg.br/novo/termos-de-uso/
Sumário

Apresentação 11
Mariana Mól Gonçalves
Reinaldo Maximiano Pereira

I. #cinema
Capítulo 1
Diário de uma produtora independente no Brasil 17
Luana Melgaço

Capítulo 2
Cinema político no Brasil: reações e reflexões
sobre filmes brasileiros contemporâneos 31
Daniel de Lima Veloso

Capítulo 3
Temporada: espaços periféricos
no cinema brasileiro contemporâneo 51
Breno Henrique
Capítulo 4 | Bússola #1
A metodologia da série histórica: o operário
e o trabalho no cinema documental brasileiro 63
Mariana Souto

II. #televisão
Capítulo 5
Miguel e a travessia da caatinga: a crise entre o arcaico
e o moderno a partir da experiência visual
e do figurino em Velho Chico 85
Mariana Mól Gonçalves
Reinaldo Maximiano Pereira

Capítulo 6
Superamigos e as três dimensões
do espetáculo de caridade 111
Marcelo Travassos da Silva

Capítulo 7
Chuck Jones e Tex Avery: dois subversivos
pioneiros na criação de personagens animados 131
Sávio Leite
Maria de Fátima Augusto

Capítulo 8
Da TV aberta ao streaming:
permanências e transformações 141
Piedra Magnani da Cunha

Capítulo 9 | Bússola #2
Pesquisa metapórica como nova rota investigativa:
a comunicação como afecção 157
Vanessa Matos dos Santos
III. #streaming
Capítulo 10
“Seriemania” no país da “novelomania”?
Um mapeamento do circuito cultural
da teleficção brasileira contemporânea 177
Lucas Martins Néia

Capítulo 11
Guerra simbólica: pânico moral e a retórica
do Daesh em Flames of war 199
Lilian Sanches

Capítulo 12
Narrativa audiovisual e performances femininas:
o gênero como figura de historicidade
em Coisa mais linda 217
Nicoli Tassis

Capítulo 13 | Bússola #3
Imagem e Materialidade 237
José Ricardo da C. M. Junior
Sobre as autoras e os autores 253
Apresentação
Mariana Mól Gonçalves
Reinaldo Maximiano Pereira

Pensar o audiovisual realizado no Brasil e no mundo foi o ponto de


partida quando decidimos organizar esta publicação. Quais questiona-
mentos, cruzamentos, pontos de contato e tendências estão na ordem
do dia no cinema, na televisão e no streaming? Um cenário vertiginoso
de mudanças em aparatos tecnológicos, em estratégias de comunicabili-
dade com as audiências e as formas de consumo de informação e entre-
tenimento animam pesquisas e reflexões de profissionais em diferentes
estágios de maturação. O que nos move é oferecer uma reunião de parte
desses pensamentos como forma de partilhar experiências e dar a nossa
contribuição para o pensamento acadêmico e de mercado profissional.
O momento nos parece oportuno. Entre 2020 e 2021, as atividades
culturais presenciais foram as primeiras ações a serem interrompidas,
em decorrência da pandemia do Covid-19. As necessárias medidas
de isolamento social acabaram por evidenciar um movimento que já
vinha crescendo, principalmente, no Brasil: o consumo de conteúdo
audiovisual doméstico. Estas linhas foram escritas na primavera de
2021, quando as atividades parcialmente são retomadas, porém, o setor
ainda luta para manter e continuar seu desenvolvimento - reforçamos,
12 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

luta pré-pandêmica - frente à insensibilidade e a paralisia das políticas


públicas para o audiovisual, principalmente em nível federal.
Olhamos com preocupação o estado atual da Ancine e das outras
políticas para a cultura que enfrentam uma letargia na sua efetivação,
como ocorre com a PL Complementar nº 73/2021, que recebeu o nome
de Lei Paulo Gustavo. A regulamentação desta lei resguardaria a conti-
nuidade de ações culturais por todo país e, principalmente, investindo
no audiovisual brasileiro, criando empregos, mantendo o mercado aceso
e abrindo a perspectiva de o setor cultural seguir vivo e em desenvolvi-
mento.
Entendemos, então, que é nosso papel, como professores e estudiosos
da área, não somente reconhecer as dificuldades e peculiaridades do
momento, mas tentar atuar e contribuir para o desenvolvimento do livre
pensar e, ao mesmo tempo, dar visibilidade a trabalhos de diferentes
autoras e autores. Queremos que os textos aqui publicados: ensaios
livres, artigos, estudos de caso e experiências metodológicas, escritos
por profissionais, mestrandos, doutorandos e pesquisadores do audio-
visual se cruzem nas temáticas, nos formatos e, principalmente, que
animem novas perspectivas de pensamento do audiovisual nas três áreas
investigadas: cinema, televisão e streaming.
Organizamos os textos em um caminho didático e, ao mesmo tempo,
orgânico a partir da divisão em três seções: #cinema, #televisão e #strea-
ming. Na passagem de uma rota para outra, selecionamos 3 artigos,
nomeados de Bússolas, por se tratarem de escritos que propõem meto-
dologias de análise e estudo do audiovisual. Além da organização por
secções, identificamos cada texto com #hashtags que podem ser outra
forma orientadora e identitária de cada capítulo no trajeto da leitura.
Começamos em #cinema com o texto de Luana Melgaço, Diário de
uma produtora independente no Brasil. A partir do questionamento
“Existe audiovisual no Brasil sem Ancine?”, provocado pelos organiza-
dores deste E-book, Luana compartilha sua experiência num diário de
bordo que revela o atual panorama do audiovisual no país. As relações
entre a arte e a política, segundo as ideias do filósofo Jacques Rancière,
e a produção cinematográfica brasileira contemporânea abrem o espaço
de cena para as reflexões de Daniel Veloso no Capítulo 2 Cinema político
APRESENTAÇÃO 13

no Brasil: reações e reflexões sobre filmes brasileiros contemporâneos. O


Capítulo 3 Temporada: espaços periféricos no cinema brasileiro contem-
porâneo, de Breno Henrique, investiga as formas de aparição e produção
do espaço da periferia no cinema brasileiro contemporâneo, a partir do
filme de ficção Temporada (André Novais, 2018).
Na Bússola #1 A metodologia da série histórica: o operário e o trabalho
no cinema documental brasileiro, Mariana Souto descreve como a
imagem do operário e do trabalho fabril brasileiro são construídas a
partir de quatro documentários emblemáticos: Viramundo (Geraldo
Sarno, 1965), ABC da greve (Leon Hirszman, 1979-90), Peões (Eduardo
Coutinho, 2004) e Estou me guardando para quando o carnaval chegar
(Marcelo Gomes, 2019). Sob a metodologia da série histórica, o texto
aponta traços de relações e alteridades existentes entre os filmes e cria
uma linha de tempo documentada pelo cinema documental em cerca de
50 anos de história.
A segunda seção #televisão abre com o Capítulo 5, escrito por nós
organizadores, Miguel e a travessia da caatinga: a crise entre o arcaico e
o moderno a partir da experiência visual e do figurino em Velho Chico.
Investigamos as televisualidades, isto é, a experiência visual oferecida
pela televisão, a partir das matrizes culturais brasileiras e latino-ameri-
canas que subjazem essas materialidades, no campo da telenovela. No
Capítulo 6, Superamigos e as três dimensões do espetáculo de caridade,
Marcelo Travassos da Silva avalia o modelo tridimensional de análise
crítica do discurso, do linguista Norman Fairclough, na narrativa de
Superamigos (DC Comics). O artigo ainda discute como os persona-
gens transitam entre as mídias HQ e a televisão. No Capítulo 7 Chuck
Jones e Tex Avery: dois subversivos pioneiros na criação de personagens
animados, Sávio Leite e Maria de Fátima Augusto defendem a impor-
tância e a subversão das animações realizadas pela dupla Jones e Avery.
Em Da TV aberta ao streaming: permanências e transformações, Piedra
Magnani da Cunha compara as duas formas de consumo da TV: aberta
e sob demanda. O texto problematiza a partir da cultura de massa a dita
“nova liberdade” advinda do consumo de conteúdo sob demanda.
Na Bússola #2 Pesquisa metapórica como nova rota investigativa: a
comunicação como afecção, Vanessa Matos dos Santos aponta para esse
14 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

modelo metodológico de pesquisa como forma de entender os audiovi-


suais e seu fenômeno comunicacional na contemporaneidade. Dentro
do escopo da Nova Teoria da Comunicação, a autora discute o afeto
como uma rota possível no estudo audiovisual.
Na terceira e última seção #streaming, no Capítulo 10 “Seriemania”
no país da “novelomania”? - Um mapeamento do circuito cultural da tele-
ficção brasileira contemporânea, Lucas Martins Néia investiga o diálogo
entre os modelos de teledramaturgia do Brasil e dos EUA e prospecta
algumas tendências para os próximos anos. No Capítulo 11, Guerra
simbólica: pânico moral e a retórica do Daesh em Flames of war, Lilian
Sanches analisa a relação entre a propaganda do Daesh (grupo terrorista
autointitulado Estado Islâmico) e as narrativas da “ameaça terrorista” no
Ocidente. Em Narrativa audiovisual e performances femininas: o gênero
como figura de historicidade em Coisa mais linda, Nicoli Tassis parte da
discussão das teorias de gênero e identidade, a partir dos Estudos Cultu-
rais, para analisar as representações dos femininos na série brasileira
produzida pelo Netflix.
No texto de encerramento, a Bússola #3 Imagem e materialidade, José
Ricardo parte da metáfora do embalsamento do corpo físico, humano,
para mostrar como se dão as relações e os processos de conservação
da imagem/corpo analógica e a digital audiovisual. O ensaio lança luz
sobre como lidar com a memória, a perda e a necessidade de cuidado no
arquivamento de dados e imagens do audiovisual em tempos digitais.
Bom percurso!

Belo Horizonte e Uberlândia, Minas Gerais (Brasil),


Novembro de 2021, ano 2º da pandemia do Covid-19.
I
#cinema
Capítulo 1

Diário de uma produtora independente


no Brasil
Luana Melgaço
#cinema #produçãoindependente #Ancine

A semana1 começa com a gravação de uma entrevista com Kevin. Ela


tem 43 anos, ugandesa/alemã, e é a personagem que dá nome ao nosso
filme, dirigido por Joana Oliveira e produzido por mim, lançado em
janeiro de 2021 na Mostra de Cinema de Tiradentes. No mês de junho,
Kevin é um dos 81 filmes brasileiros exibidos na Mostra Embaúba, uma
mostra online, formato que se popularizou especialmente com o fecha-
mento das salas de cinema durante a pandemia. Por meio da plataforma
Zoom, conectamos três cidades, em dois países: Belo Horizonte, Rio de
Janeiro e Jinja. O sentimento é de alegria por esse reencontro virtual
com Kevin. A entrevista é realizada por Flávia Cândida, curadora e
produtora cultural, a nosso convite. Eu estou ali só para dar um suporte
técnico e garantir que vai dar tudo certo. Enquanto as duas conversam,
eu aproveito para trabalhar nos textos do BH nas Telas, um edital de
produção audiovisual promovido pela Prefeitura de Belo Horizonte. A
Anavilhana, empresa produtora da qual sou sócia, vai apresentar um
projeto de documentário experimental, dirigido pela Clarissa Campo-
lina, chamado Um convite para dançar. Revejo o orçamento. Está muito

1. Esse diário foi escrito no dia 21 de julho de 2021.


18 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

apertado para os valores praticados no mercado, com cachês muito


baixos para o patamar da equipe experiente com a qual trabalhamos.
O edital permite que os filmes custem até 75 mil reais. O nosso orça-
mento, remunerando corretamente a equipe e investindo na estrutura
de filmagem, deveria ser de ao menos 120 mil reais. Para equilibrar o
desejo e a realidade, baixamos os custos dos equipamentos, diminu-
ímos a equipe e oferecemos, como contrapartida, os serviços da equipe
da Anavilhana como parte do “pacote”. Me divido entre a planilha e a
conversa que acontece naturalmente pelo Zoom. Quando o encontro
enfim se encerra, deixo o edital de lado e vou checar se tudo correu
bem, combinar a edição dos melhores trechos e enviar o arquivo para
que a tradutora legende para o português. Volto ao edital, encaminho os
textos à Larissa, estagiária da Anavilhana, que vai finalizar a inscrição.
Começo outra tarefa: escrever uma justificativa para o pedido de prorro-
gação do projeto Canção ao Longe, que deverá ser enviado à Ancine. O
prazo de entrega venceu em junho de 2020 e, com o início da pandemia
em março desse mesmo ano, ficamos impossibilitadas de terminar o
filme. A respeito da tentativa de prorrogação desse prazo, a Ancine nos
responde, há quase um ano, a mesma ladainha: solicitação em análise.
Ofício escrito, faço uma pausa para o almoço. Hoje vou almoçar a sobra
do fim de semana, então consigo voltar rapidamente ao trabalho. À
tarde retomo o edital, agora com o time da Anavilhana em conjunto,
fazendo a conferência dos textos e dos anexos, planilhas e declarações.
O prazo vence às 17h e pretendo finalizar antes para evitar a decepção de
não conseguir anexar os documentos, pois o sistema sempre fica lento
na última hora da inscrição. Consigo fazer o envio às 15h, vou lá ao
grupo de WhatsApp da Anavilhana, aviso às colegas, que respondem
com vibrações positivas para que o projeto seja habilitado e aprovado. A
gente sempre comemora cada projeto finalizado e entregue! É o segundo
ano que apresentamos a proposta e esperamos que desta vez ela seja
contemplada. A pausa me permite um giro pelas redes sociais e me
deparo com uma reportagem do portal UOL noticiando que possivel-
mente 1 mil filmes da Cinemateca Brasileira podem ter sido perdidos
desde que a instituição foi abandonada pela Secretaria de Cultura há
quase um ano e meio, um dos maiores acervos de filmes do mundo
DIÁRIO DE UMA PRODUTORA INDEPENDENTE NO BRASIL 19

se encontra em perigo.2 Não tenho muito tempo para aprofundar na


leitura, pois em poucos minutos vai começar um debate gravado sobre
a produção mineira na pandemia. Somos cinco mulheres debatedoras,
entre produtoras, diretoras de festivais e realizadoras. Enquanto parti-
cipo do debate, as mensagens no meu WhatsApp se multiplicam. No fim
de semana, um edital polêmico foi lançado pelo governo do estado, e
grande parte do setor não concorda com os termos. Uma reunião com
colegas foi marcada às pressas, e minha presença é demandada para arti-
cularmos uma resposta à secretaria estadual. Não vou conseguir estar
presente, pois o debate online ainda demora e tenho que organizar as
demandas de trabalho do dia seguinte que, como hoje, também vai ser
cheio. Essa foi a descrição de uma segunda-feira comum na minha rotina
de trabalho, uma gincana de atividades, reuniões e prazos a cumprir.
Sou formada em Comunicação Social pela UFMG e foi na faculdade
que comecei a traçar meus primeiros passos como produtora. Me formei
nos anos 2000; e em 2005 me tornei produtora freelancer, trabalhando
em projetos que me contratavam para demandas logísticas, execução
financeira e assistência. Em 2008, conciliando os trabalhos para os quais
eu era contratada, comecei a vislumbrar produzir os meus próprios
projetos, o que envolvia uma dedicação de tempo mais expandido e a
colaboração com o desenvolvimento das ideias, argumentos e roteiros
desde a concepção, além de captar o dinheiro em editais públicos e
privados. Me associei a duas diretoras, Clarissa Campolina e Marilia
Rocha, para fundar a Anavilhana. Assumir a direção de uma empresa fez
nascer em mim outro perfil profissional: além de me dedicar aos filmes,
era preciso me aproximar das discussões políticas em torno do fazer
cinematográfico, dialogar com os poderes públicos municipal, estadual
e federal, me posicionar, entender historicamente os formatos de finan-
ciamento e acompanhar a aplicação dos recursos nos diversos meca-
nismos existentes. Com o passar dos anos, fui me associando a grupos
de discussão locais e nacionais, me envolvendo em atividades de estudo,

2. O presente texto foi escrito alguns dias antes do trágico incêndio que atingiu o galpão da
Cinemateca Brasileira, na Vila Leopoldina em São Paulo, no dia 29 de julho de 2021. Boa
parte do patrimônio material brasileiro foi queimada junto a 4 toneladas de documentos
históricos, cópias de filmes e objetos (Nota da organização).
20 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

e em 2018 colaborei decisivamente para a aprovação da Lei do Audio-


visual do estado de Minas Gerais. Assumi, ao longo desses dez últimos
anos, que debater política era parte fundamental do meu trabalho.
Como produtora, tenho experimentado outros novos desafios desde
março de 2020, quando o trabalho passou a acontecer em home office. O
lado “gestora” foi obrigado a se aprimorar e a encontrar estratégias para
manter o funcionamento da produtora à distância: lidar com os altos
e baixos da equipe, com os sentimentos de perda, com as incertezas;
cobrar alguma produtividade; buscar empréstimos e organizar o fluxo
de caixa da empresa enquanto parte dos projetos estão parados; pensar
em novas atuações, abrir espaços, pensar em outras formas de produzir,
investir na comunicação por meio das redes sociais; realizar o antigo
desejo de um site novo da empresa, que guarde a memória dos trabalhos
realizados; enfrentar riscos desconhecidos; incluir nos orçamentos um
sem-número de protocolos e etapas de produção que antes da pandemia
não existiam. E mais que tudo, gastar horas e horas resolvendo diligên-
cias e demandas burocráticas que chegam da Ancine, a nossa agência
reguladora. São inúmeras as reuniões, lives, webinários com associações
de classe, escritórios de advogados, GTs para estudos de caso e propostas
para questões comuns recorrentes em nosso cotidiano de trabalho. Um
dos grupos, formado por realizadores/as e produtoras, tinha como obje-
tivo estudar uma linha do tempo desde que a Ancine parou de atuar
em sua função primordial, que é o fomento ao setor. Em outro grupo,
uma mobilização para salvar do descaso a Cinemateca Brasileira. Um
terceiro grupo se reuniu durante todo o segundo semestre de 2020 para
estudar a Lei Aldir Blanc3, desde o início da sua criação até a aplicação
nos estados e municípios. Outro grupo, formado por representantes de
instituições mineiras, também se organizou para dialogar com o poder
público local a aplicação da mesma lei em âmbitos municipal e estadual.
E mais outro grupo, formado por 34 produtores de diversos estados
brasileiros, com o propósito de estudar a prorrogação dos prazos de
realização dos projetos aprovados na Ancine no contexto da pandemia.

3. Lei emergencial de apoio aos profissionais da cultura que sofreram com o impacto da
pandemia de Covid19. Elaborada pelo Congresso, com forte apoio do setor cultural.
DIÁRIO DE UMA PRODUTORA INDEPENDENTE NO BRASIL 21

Outro dia de trabalho começa. A primeira reunião é com a equipe


de estudo que discute a prorrogação dos prazos dos projetos vigentes
na Ancine. Estão presentes ao encontro, que acontece pelo Google Meet,
vinte pessoas. Estamos em pandemia e, para a maioria de nós, é impos-
sível filmar no Brasil. Em abril de 2021, um ano após a declaração da
crise sanitária pela OMS, atingimos o recorde no número de mortes. Por
dia, são mais de quatro mil vidas perdidas. As organizações de classe,
sindicatos e associações, que até então se dedicaram a produzir proto-
colos de forma que a atividade tivesse continuidade, dessa vez emitiram
notas determinando a suspensão imediata das produções presenciais.
Nenhum protocolo seria suficiente diante da transmissão da doença no
país.
Na reunião estão presentes representantes de empresas produtoras
de norte a sul do Brasil e em comum fazemos parte da API, Asso-
ciação de Produtoras Independentes, atualmente com 200 associadas. O
assunto em pauta nesse encontro será levado à Assembleia Ordinária da
Associação para ser discutido com o grupo maior. Dividimos o trabalho
entre nós, de forma que pudéssemos conversar com escritórios de advo-
gados e entender como abordar a questão: administrativamente ou judi-
cialmente. Produtores desesperados com um entendimento restrito,
por parte da Ancine, sobre a prorrogação dos prazos da execução dos
projetos, tentavam encontrar caminhos para fugir da inadimplência
perante a agência.
Enquanto a reunião acontece, e depois de horas de conversas em
plataformas online, minha cabeça se perde em devaneios e surge uma
pergunta que a tem martelado constantemente. Quando foi que meu
tempo, antes destinado a conversas criativas com diretores/as e rotei-
ristas, planilhas orçamentárias, discussões de desenhos de produção e
escrita de projetos futuros foi tomado majoritariamente por conversas
com advogados sobre estratégias judiciais desnecessárias?
Faço uma viagem no tempo. Lembro-me do golpe que destituiu uma
presidenta democraticamente eleita por meio de manobras jurídicas
para comprovar um crime inexistente. Em nível nacional, testemu-
nhamos uma instabilidade jurídica generalizada e a fragilidade das insti-
tuições. Era o ano de 2016. A Ancine, por ser uma autarquia especial,
22 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

tem a mudança de diretoria desvinculada à troca do governo federal,


mas isso acontece em maio de 2017, após o término do mandato de
Manoel Rangel como presidente da instituição. Inicia-se, a partir disso,
um período de turbulência na agência.
Testemunhamos a mudança brusca de uma política, antes fundada na
regionalização e na diversidade de projetos e produtoras contempladas,
por uma visão que valoriza os privilégios, que traz para o centro das
decisões as empresas estrangeiras e grandes estúdios, e que substituiu
os critérios de avaliação de qualidade dos projetos e a pluralidade de
propostas por um ranking de números, notas de performances e sucessos
de bilheterias por meio de uma “corrida virtual” de preenchimento de
plataforma online. Assim nasceu o “Audiovisual Gera Futuro” (2018),
com muita publicidade envolvida e quantias exorbitantes de dinheiro,
algo em torno de 1,125 bilhões de reais. Parte do setor, principalmente
as pequenas e médias empresas que previram a descontinuidade de suas
atividades a médio/longo prazo, se manifestou prontamente contra. E
os debates envolvendo os rumos das novas políticas tomou conta dos
encontros de mercado, dos festivais de cinema e das rodas de conversa.
O país, às vésperas de uma nova eleição presidencial, e ainda trau-
matizado com o rompimento de um governo em curso, vivia uma crise
econômica, desemprego, a perda de direitos, além de uma reforma
trabalhista estranguladora. Mas o setor audiovisual, ainda reverberando
uma política pública que criou, especialmente pela Lei da TV Paga4 e
fez crescer o fomento em sua incipiente indústria, presenciava um exce-
lente momento da produção, alcançando números que superavam os
da indústria farmacêutica e do turismo. Internacionalmente, os filmes
brasileiros alcançavam resultados e passavam a ocupar espaços de pres-
tígio no cinema mundial. A programação dos canais de TV foi ocupada
por produções nacionais diversas: filmes, séries, ficções, documentá-
rios, animações produzidas em todos os cantos do país. O volume de
recursos desse setor parecia incoerente com o momento econômico pelo
qual passávamos.

4. A Lei nº 12.845/2011 determina que os canais da TV paga exibam uma cota de produção
brasileira independente na programação, o que ampliou a capacidade de investimento do
FSA.
DIÁRIO DE UMA PRODUTORA INDEPENDENTE NO BRASIL 23

Foi nesse cenário complexo e turbulento que apareceu uma figura


que até então era pouco presente em nossas atividades. O Tribunal de
Contas da União (TCU), responsável por auditar as contas da Ancine,
acusou a instituição de, em anos anteriores, ter aplicado os recursos sem
nenhum controle. A partir daí, foi iniciado um procedimento adminis-
trativo para analisar se a agência teria condições de controlar o inves-
timento de 2018, ameaçando, também, suspender e paralisar as verbas
do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA)5 – o que de fato aconteceu
já em 2019. Com isso, o ano de 2018 marcou o início da tragédia do
cinema brasileiro e foi nesse momento que se montou o cenário para
que o bolsonarismo encontrasse o terreno perfeito para o desmonte da
agência e da força plural do audiovisual brasileiro. Aquela foi, e ainda é,
uma tentativa de desmoronar um setor pungente e sólido, independente
da sua força econômica, da geração de empregos e do papel primordial
que desempenha na construção da soberania das identidades culturais
do país, jogando para a opinião pública a ideia de que o audiovisual não
se constitui como um trabalho sério e qualificado e fortalecendo a visão
oportunista de que os artistas vivem “mamando no governo”.
Foi nesse cenário que o TCU passou a inquirir o funcionamento da
agência e da contratação dos projetos por meio de um acórdão6 que
promoveu uma devastação no setor produtivo audiovisual e que, na
prática, instalou uma inércia nas atividades da agência, deixando servi-
dores amedrontados e empresas produtoras perdidas em como lidar
com a execução dos projetos em curso. A possibilidade de que as regras
fossem aplicadas retroativamente a partir de critérios ainda indefinidos
foi tema de inúmeras discussões jurídicas entre os agentes do setor. O
diálogo com a agência, antes constante e próximo, foi substituído pelo
distanciamento e pela burocracia, pela falta de transparência e por alte-
rações nas instruções normativas, sem clareza e sem qualquer estudo
aprofundado sobre a viabilidade da execução dos projetos, paralisando
as ações cotidianas da produção. O Ancine + Simples, um modelo de

5. O que é o FSA. Disponível em <https://www.brde.com.br/oque-e-fsa/>. Acesso em: 21


jun. 2021.
6. Acórdão 721/2019. Disponível em <https://drive.google.com/file/d/1hoqZodjYiCoVq
59UAbyt0G7uEDUwKNa8/view>. Acesso em: 21 jun. 2021.
24 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

gestão criado na agência em 2015 e que trazia qualidade, transparência


e simplicidade na execução, foi questionado. Empresas produtoras
tiveram suas prestações de contas anteriores desenterradas e questio-
nadas, o que trouxe pânico sobre os processos instituídos até então.
Em 2019, quando o documento foi publicado, eu estava iniciando
a pré-produção do longa-metragem Canção ao Longe. O filme, que
começou a ser desenvolvido em 2011, finalmente tinha conseguido
passar por todas as etapas de roteiro, consultorias criativas e financia-
mento. Eu e Clarissa, animadas com a proximidade das filmagens, nos
empenhávamos em pensar o desenho de produção do filme, cada detalhe
do cenário, da equipe, dos equipamentos. O primeiro semestre daquele
ano havia sido bastante movimentado. Começamos com o lançamento
de outro filme – Enquanto Estamos Aqui (direção da Clarissa Campolina
em parceria com Luiz Pretti) – no prestigiado Festival Internacional de
Cinema de Roterdã, na Holanda. Eu e os dois diretores apresentamos
o filme, e sua exibição foi seguida de debates com o público. Bolsonaro
tinha acabado de tomar posse, o que tornava nossa apresentação, além
das conversas sobre linguagem cinematográfica, uma oportunidade
para que o público internacional se antecipasse com o futuro que estaria
por vir no Brasil. Poucos dias depois de Roterdã, eu estaria em Berlim,
na Berlinale, um dos festivais de cinema mais importantes do mundo.
Seria a vez da apresentação de Breve História do Planeta Verde, longa-
-metragem dirigido pelo argentino Santiago Loza e realizado graças a
uma coprodução internacional entre Argentina, Brasil e Alemanha. O
financiamento brasileiro aconteceu com o auxílio de um edital do FSA,
o Prodecine 06, que permitia que recursos brasileiros fossem investidos
em filmes latino-americanos. Breve História foi apresentado na compe-
tição Panorama, que reuniu 40 filmes de cinema autoral do mundo.
Saímos de lá premiados pelo valioso Teddy Award, troféu concedido a
produções com temática LGBTQIA+, e o filme foi vendido para mais de
50 países. Voltei à Anavilhana, feliz pelo lançamento internacional dos
dois filmes, e ainda com outro desafio antes de iniciar a filmagem de
Canção ao Longe: realizar a segunda etapa de filmagem de Kevin, uma
vez que depois de dois anos os recursos do edital Prodecine 05, com os
quais fomos contempladas, finalmente haviam sido liberados. Em março
DIÁRIO DE UMA PRODUTORA INDEPENDENTE NO BRASIL 25

de 2019, uma equipe de oito pessoas partiu de Belo Horizonte com


destino a Jinja, na Uganda, para contar a história de uma amizade entre
duas mulheres. Em abril, eu iniciava a jornada de outro filme, esse em
parceria com o diretor Marcos Pimentel, com quem trabalho há treze
anos: Os Ossos da Saudade, um documentário sobre a ausência, narrado
a partir das vivências de pessoas que experimentam sentimentos de falta
e distância no Brasil, em Portugal, em Angola, em Moçambique e em
Cabo Verde.
Mas toda a alegria do movimento de lançamento e filmagem de nossos
filmes foi atravessada pela dureza do que se anunciava com a paralisia
da Ancine e pelas dúvidas a respeito da execução dos projetos. Uma
onda de judicializações tomou conta das produtoras, que não tiveram
alternativa a não ser apelar à justiça para a liberação de editais apro-
vados, cujas contratações não evoluíam. Nossos planejamentos futuros
desmoronaram com a incerteza de quando teríamos acesso aos recursos
dos projetos aprovados. Muitas empresas foram obrigadas a diminuir
equipe, devolver salas alugadas, cancelar a execução de projetos em
curso. Desde 2019 a agência não lança novos editais, projetos foram
censurados por suas temáticas contrárias às posições do atual governo e,
além disso, o programa internacional foi descontinuado. Muitas outras
batalhas foram travadas nesse período. A agência operou por quase dois
anos com uma diretoria interina e a Secretaria de Cultura passou por
trocas constantes de dirigentes. As empresas produtoras, com o apoio
de entidades – associações e sindicatos – foram à luta contra a crimi-
nalização de suas atividades, a fim de estabelecer marcos jurídicos
adequados para a continuidade do setor.
Um dos grandes desafios foi buscar o diálogo com o TCU e apresentar
aos juízes o funcionamento do mercado audiovisual, demonstrando que
os questionamentos do acórdão não eram compatíveis com nossa ativi-
dade. Também foi preciso renovar a comunicação com o novo congresso
eleito em 2018 e, por meio da comissão de cultura e da frente parla-
mentar do audiovisual, trabalhar para que a Ancine trouxesse respostas
ao setor e pressionar para que fôssemos atendidos em nossas reivindica-
ções, muitas delas ainda sem resposta até hoje. O movimento de judicia-
lização – tanto para a contratação dos projetos, quanto para as prestações
26 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

de contas questionadas – acendeu um questionamento do Ministério


Público Federal referente à lentidão das atividades da Ancine, exigindo
que seus dirigentes respondessem sobre os recursos não aplicados do
FSA e sobre novos prazos e metas para funcionamento da agência. Para-
lelamente, tenta-se, a todo custo, caminhar com o projeto de regula-
mentação do streaming, que tramita de forma capenga, rendendo-se ao
lobby bilionário de empresas de tecnologia que, até o presente momento,
não pagam Condecine7, não contribuem para a produção independente
e não têm obrigações de cota de títulos nacionais em sua programação.
Tudo isso revela um verdadeiro desapreço à institucionalidade e uma
total falta de compromisso com o setor.

1. Existe cinema sem a Ancine?


Comecei a escrita deste texto a partir da seguinte provocação da
coordenação editorial desta publicação: Existe cinema sem a Ancine?
Perguntei aos meus colegas produtores qual o impacto da paralisação
da Ancine em suas vidas profissionais. Relembrei a fala contundente do
colega diretor e produtor Douglas Duarte, do Rio de Janeiro, ao parti-
cipar de uma audiência pública na comissão de cultura da Câmara dos
Deputados: “A gente tá tendo que guardar nossos sonhos porque em
2018 o Brasil elegeu um presidente que decidiu que o país não teria
uma imagem soberana de si”8. Tracei o meu trajeto, até os dias de hoje,
me formando como profissional ao mesmo tempo em que as políticas
públicas foram fundadas e aprofundadas. Percebo cotidianamente a
frustração de uma nova geração de profissionais, formados em cinema
nos anos de aquecimento do setor, que, desanimados quanto ao rumo de
suas carreiras, encontram no cinema feito sem dinheiro, e com amigos,
uma oportunidade de trazerem à tona seus desejos de expressão artís-
tica.

7. Condecine: Contribuição para Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica, paga


por agentes diversos do setor. O produto da arrecadação da Condecine compõe o Fundo
Setorial do Audiovisual (FSA), sendo revertido diretamente para o fomento do setor.
8. DUARTE, Douglas. Comissão de Cultura: Frente em defesa do Cinema e do Audiovisual
Brasileiros. 4 mai. 2021 Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=c3Xyx0cPe6c>.
Acesso em: 21 jun. 2021.
DIÁRIO DE UMA PRODUTORA INDEPENDENTE NO BRASIL 27

Qual é o modelo de produção que se estabelece quando nossa


agência de fomento se encontra paralisada e pouco dialoga com o setor?
O cinema vai continuar a existir? Ou mais precisamente: o que uma
agência potente poderia fazer pela nossa produção no futuro?
Nas trocas corriqueiras com colegas do audiovisual, sempre defendo
a importância de nossa atividade como ação de expressão, liber-
dade, identidade e subjetividade, que se desdobra em entretenimento,
reflexão, produção de conhecimento, experimentação, criação. O audio-
visual, como parte da cultura de um país, é também um registro do
nosso tempo, das questões que nos movem, daquilo que nos atravessa
nas esferas política, econômica e social. É uma atividade economica-
mente potente, que não polui e gera empregos. Temos uma indústria
em formação que aciona e produz troca econômica com vários outros
setores culturais (música, teatro, moda, design), e setores produtivos
(transporte, turismo, alimentação, construção, tecnologia). O Brasil
possui um dos maiores mercados consumidores de audiovisual, e a
prova disso é que grandes estúdios e plataformas de streaming disputam
esse território tão importante.
A presença da Ancine como agência reguladora e de fomento, que
promove políticas públicas que gerem oportunidades de negócios, a
valorização da propriedade intelectual, a regionalização e atenção a
toda a cadeia de produção - do desenvolvimento à distribuição - é a
garantia de um cinema diverso e inclusivo. Em um país com dimen-
sões continentais e uma cultura vasta, o público consumidor de cinema
tem o direito de acessar conteúdos comerciais, de entretenimento e
industriais, mas também as produções autorais, experimentais e arte-
sanais. A inoperância da Ancine diminui as possibilidades de atuação
do setor, e abre as portas para um audiovisual servil aos interesses de
grandes conglomerados e big techs, entregando os direitos patrimoniais
das obras e a participação de suas receitas comerciais, além da pasteu-
rização estética e das narrativas. É importante defender os interesses
nacionais e a dinâmica saudável das operações de mercado, tornando a
indústria economicamente viável, provendo condições para operadores
de diversos tamanhos e estilos a fim de oferecer o máximo de diversi-
dade possível aos cidadãos brasileiros. Precisamos partir de princípios
28 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

democráticos como inegociáveis: a política pública precisa garantir


acesso a todos, tanto para quem produz, tanto para quem consome. É
determinante reduzir desigualdades e injustiças históricas cometidas
contra mulheres, negros, pessoas LGBTQIA+ e outros grupos.
Termino a escrita deste texto em 21 de julho de 2021. Estou partici-
pando, há duas semanas, de um laboratório para desenvolvimento de
projetos, o vitória.av.lab. Sou tutora de seis projetos de Minas Gerais
e Espírito Santo e discutimos, ao longo desse tempo, as alternativas de
financiamento para cada um deles. Antes de cada encontro, respiro
fundo para trazer aos participantes uma esperança de que esses projetos
serão realizados em um futuro breve. São histórias de viagens, de amor e
vida, sobre luto, desejos e lutas. Merecem sair dos papéis e povoar nosso
cotidiano.
Produzir é também promover diálogos e este texto não teria sido
escrito sem conversas diretas e indiretas com:
Daniel Van Hoogstraten, Jacson Dias, Mannuela Costa e Tatiana Leite,
pelos áudios e textos enviados na tentativa de me ajudar a responder a
esta difícil pergunta: Existe cinema sem Ancine?
API (Associação de Produtoras Independentes) – criada em 2018 no
palco do Festival de Brasília, representa pequenas e médias produtoras
de todos os estados brasileiros. Um espaço de diálogo e mobilização
entre realizadores/produtores de todo o país.
ATCIMG (Associação de Trabalhadores do Cinema Independente de
Minas Gerais).
Support Group – grupo de WhatsApp formado por mim, Ana Alice
de Morais, Diana Almeida, Leonardo Mecchi, Mannuela Costa, Paula
Pripas e Thiago Macedo Correia, todos produtores e amigos nessa
jornada tão instável e desafiadora que é produzir cinema.
Producers Care – grupo de WhatsApp formado por produtores para
trocas e ajuda mútua.
Equipe da Anavilhana: Analu Bambirra, Carolina Mariano, Clarissa
Campolina, Daniela Cambraia e Larissa Barbosa.
Conversas por e-mail e reuniões online com João Dumans, Marcella
Jacques, Laura Godoy, Affonso Uchoa, Júnia Torres, Dacia Idalpina,
Beth Formaggini, Marcelo Lordelo e Marcelo Pedroso. Essas trocas
DIÁRIO DE UMA PRODUTORA INDEPENDENTE NO BRASIL 29

resultaram na escrita de um texto, ainda não publicado, sobre o histó-


rico dos problemas da Ancine e a prestação de contas dos projetos.
Algumas partes desse texto foram aqui reproduzidas. Esse grupo
também promoveu uma reunião de estudo com o Alfredo Manevi e
com a equipe do gabinete da deputada federal Áurea Carolina, entre
setembro e dezembro de 2020.
Capítulo 2

Cinema político no Brasil:


reações e reflexões sobre filmes
brasileiros contemporâneos
Daniel de Lima Veloso
#cinema #cinemapolítico #cinemabrasileiro

Se há uma consciência de mundo a ser conquistada, o cinema, a seu


modo, deve contribuir para essa construção. Estudar a construção do
discurso no cinema pode ser de grande valia para o amadurecimento
da discussão a respeito das formas narrativas que vêm sendo articuladas
por filmes nacionais na atualidade. Este é o tema deste capítulo, um
recorte da pesquisa de mestrado em Comunicação Social: Interações
Midiáticas, na PUC Minas.
Ao longo da história da humanidade, arte e política têm estreita
relação. A arte é um espelho da sociedade desde a antiguidade e registra
as inquietações do nosso dia a dia com o objetivo de causar reflexões por
meio de diferentes formas de expressão. O cinema tem a capacidade de
evidenciar dúvidas e questões sociais muitas vezes esquecidas ou disfar-
çadas. Os filmes podem colocar em foco questões e sugerir caminhos
para novas reflexões sobre temas que às vezes não imaginávamos existir.
A sétima arte não existe para substituir a política, nem mesmo fomentar
uma revolução, mas é capaz de catalisar anseios e sonhos de uma socie-
dade.
32 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

O cinema nacional contemporâneo reage a essas questões políticas


e, como ressonância de movimentos históricos volta as lentes para as
mazelas da sociedade brasileira. Primeiramente, é necessário falar de
um cinema do passado, uma vez que o contexto contemporâneo tem
uma história com a qual dialoga. Estamos nos referindo ao Cinema
Novo e ao Cinema Marginal. Temas como o neocolonialismo, o subde-
senvolvimento, o regionalismo e a busca por uma estética nacional são
recorrentes na cinematografia brasileira. Foram vários os cineastas que
buscaram, por meio de sua arte, levantar importantes questões relacio-
nadas ao pertencimento nacional, nossa identidade e nosso povo.
Entendemos o cinema político como algo que vai além da temática
dos filmes. Identificamos como cinema político as obras abertas, ligadas
à diversidade e à liberdade de pensamento. A política que queremos
discutir não é exercício de poder ou luta pelo poder, tampouco, é defi-
nida por leis ou instituições. Buscamos a política como uma atividade
que se reconfigura nos âmbitos sensíveis.

A política é a prática que rompe a ordem da polícia que antevê as


relações de poder na própria evidência dos dados sensíveis. Ela o faz
por meio da invenção de uma instância de enunciação coletiva que
redesenha o espaço das coisas comuns. (RANCIÈRE, 2012, p. 60).

Dentro dos vários sentidos possíveis de política, gostaríamos


de destacar um deles, que, para nossa perspectiva, talvez seja o mais
importante, o sentido estético de política: a política contida nas formas.
À medida que a obra nos mostra perspectivas diversas e que nos oferece
possibilidades de reflexão, podemos percebê-la com potencial de criar
fissuras capazes de tocar o espectador.

É o trabalho que realiza dissensos, que muda os modos de apresen-


tação sensível e a s formas de enunciação, mudando quadros, escalas
ou ritmos, construindo relações novas entre aparência e realidade, o
singular e o comum, o visível e sua significação. Esse trabalho muda
as coordenadas do representável; muda nossa percepção dos acon-
tecimentos sensíveis, nossa maneira de relacionar com os sujeitos, o
modo como nosso mundo é povoado de acontecimentos e figuras.
(RANCIÈRE, 2012, p. 64).
CINEMA POLÍTICO NO BRASIL 33

As diferentes maneiras de exposição do visível e como a obra é


construída determinam capacidades novas, em ruptura com as formas
antigas do visível. É assim que podemos identificar na forma dos filmes
a potencialidade de deslocamento que desejamos. “Ela consiste, sobre-
tudo, em disposições de corpos, em recortes de espaços e tempos singu-
lares que definem maneiras de ser, juntos ou separados, na frente ou no
meio, dentro ou fora, longe ou perto”. (RANCIÈRE, 2012, p. 55).
O cinema político, portanto, pode ser aquele criado pelo artista que
busca mudar os referenciais do que é visível, mostrar o que não era visto
e, principalmente, mostrar de outro jeito, objetivando a construção
de rupturas no tecido sensível das percepções e consequentemente na
forma em que percebemos os filmes.

Filme político hoje em dia talvez também queira dizer filme que se
faz em lugar de outro, filme que mostra sua distância com o modo de
circulação de palavras, sons, imagens, gestos e afetos, em cujo âmago
ele pensa o efeito de suas formas. (RANCIÈRE, 2012, p. 81).

Identificamos a década de 1960 como o ápice do cinema político no


país, justamente pela consolidação do Cinema Novo, reconhecido em
todo o mundo como um dos mais importantes movimentos artísticos
e cinematográficos brasileiros. Para Glauber Rocha, “o autor no cinema
brasileiro se define em Nelson Pereira dos Santos” (ROCHA, 2003, p.
104). Rio, 40 Graus (1955) é um dos pilares sobre os quais se alicerçou
o cinema brasileiro como arte de expressão da identidade nacional.
O filme é um retrato social do Rio de Janeiro e apresenta a complexa
relação social existente entre o morro e o asfalto. As repúblicas paralelas
impostas por milícias e traficantes sob os olhares coniventes dos polí-
ticos, a beleza exuberante das praias e da natureza em contraposição ao
amontoado de casas nos morros da cidade, crianças nas ruas lutando
pela sobrevivência, o discrepante abismo social existente entre os pobres
e os ricos. “Rio, 40 Graus era um filme popular, mas não populista; não
denunciava o povo às classes dirigentes, mas revelava o povo ao povo;
sua intenção, vinda de baixo e para cima, era revolucionária e não refor-
mista” (ROCHA, 2003, p. 105).
34 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

Nelson Pereira dos Santos realizou, em Rio, 40 Graus, o primeiro


filme brasileiro verdadeiramente engajado e mostrou aos jovens cine-
astas uma nova perspectiva para o cinema brasileiro. A obra subverteu
o modelo de produção vigente no país, o dos filmes da Vera Cruz.1 Foi
realizado com baixo orçamento e levou às ruas a câmera de filmar,
mostrando de forma explícita uma cidade com seus problemas e suas
questões sociais. Rio, 40 Graus incentivou diversos diretores a começar a
sonhar com um cinema genuinamente brasileiro.

Era possível, longe dos estúdios babilônicos, fazerem-se filmes no


Brasil. E no momento que muitos jovens se libertaram do complexo
de inferioridade e resolveram que seriam diretores de cinema bra-
sileiro com dignidade, descobriram também, naquele exemplo, que
podiam fazer cinema com ‘uma câmera e uma ideia’. (ROCHA, 2003,
p. 106).

Santos utilizou os recursos disponíveis, de modo que as limitações


da época apareceram impressas na estética dos seus filmes. Juventude
(1950), documentário de 45 minutos, foi filmado nas ruas e favelas, algo
nunca antes visto nas telas. Posteriormente a Nelson Pereira dos Santos,
o cinema brasileiro iniciou seu momento de descolonização. Os cine-
astas conseguiam criar outras formas de articulação da linguagem cine-
matográfica, ao mesmo tempo em que mantinham grande fidelidade às
suas origens culturais.
O documentário Arraial do Cabo (1960), de Paulo César Saraceni
e Mário Carneiro, foi um marco para a geração do Cinema Novo. O
filme se afirma como alternativa ao quadro das produções brasileiras
de então. Ele narra o cotidiano e a vida simples dos pescadores do vila-
rejo de Arraial do Cabo, no litoral do Estado do Rio de Janeiro. Após

1. A Companhia Cinematográfica Vera Cruz foi um importante estúdio cinematográfico


brasileiro que, patrocinado pela burguesia paulistana, buscou replicar os moldes
hollywoodianos de produção cinematográfica à realidade brasileira. A companhia
produziu mais de 40 filmes de longa-metragem e conseguiu reconhecimento da crítica e
alcançou grande público, como o filme O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto, que recebeu
o prêmio de Melhor Filme de Ação no Festival de Cannes e foi distribuído em mais de
80 países. A companhia entrou em colapso por não conseguir mais bancar as pomposas
produções e declarou falência em 1954.
CINEMA POLÍTICO NO BRASIL 35

a instalação da Fábrica Nacional de Álcalis, os pescadores veem a vida


modificada e partem em busca de novas perspectivas.
Do ponto de vista formal, a montagem de Arraial do Cabo traz
inovações que seriam adotadas posteriormente pelo Cinema Novo. As
imagens da indústria têm cortes brutos, movimentos de câmera na mão
bem marcados, e a fotografia bem contrastada. Por outro lado, a trilha
sonora se contrapõe às imagens longas, claras e calmas do cotidiano dos
pescadores. O conflito entre os modos tradicionais de produção e os
problemas da industrialização são demonstrados pela maneira de filmar
e de montar o filme. A forma se explicita para acentuar a contradição
entre o avanço industrial e a vida cotidiana dos moradores da vila de
pescadores. A estética do Cinema Novo começa a aparecer de modo
discreto no curta de Saraceni e Carneiro. O curta suscita o pensamento
de uma nova estética voltada para a diversidade cultural e social brasi-
leira. Aruanda (1960), de Linduarte Noronha, conta a história de um
quilombo formado em meados do século XIX por escravos libertos,
no sertão da Paraíba. Sem perspectivas, a população do povoado se vê
isolada das instituições, presa em um ciclo econômico trágico, variando
do plantio do algodão à cerâmica. Do ponto de vista formal, percebemos
que a montagem do filme faz uso de cortes que mostram vários ângulos
da mesma ação, de cortes com falso-raccord. O filme foge do academi-
cismo e das montagens clássicas comumente vistas à época.
Filmes como Aruanda e Arraial do Cabo destacaram-se por romper
com a tradição do cinema brasileiro dominante até então. Glauber
Rocha foi um grande entusiasta desses filmes, principalmente pelo fato
de fugirem do padrão de documentários realizados no país, sempre
ligados a um discurso “oficial”, cuja temática nunca era diferente da
exaltação da natureza exuberante ou de personalidades importantes da
história nacional.

Esses novos filmes e seus diretores teriam estabelecido uma descon-


tinuidade ético-estética com os padrões e as convenções da tradição
anterior, tanto por concentrarem-se na ‘realidade social brasileira,
quanto por se livrarem da rigidez formal e do academicismo, inician-
do, do ponto de vista da época, uma ‘revolução realista’ na história do
cinema brasileiro. (RESENDE, 2007, p. 32).
36 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

Assim como Nelson Pereira dos Santos, que construiu um “realismo


carioca”, essas produções conseguiram se destacar por mostrar uma
realidade brasileira, conceito tão caro aos cineastas que desenvolveram o
Cinema Novo. O Cinema Novo se relacionou às propostas modernistas
dos anos vinte e trinta e ganhou força a partir da premissa da cons-
trução de uma identidade própria. Esses novos realizadores propuseram
retratar a realidade brasileira desenvolvendo artifícios de linguagem
adequados às condições de produção da época.
Glauber Rocha foi um dos formuladores de uma ideia que tinha como
ponto central a necessidade de pensar uma estética própria, diversa dos
padrões da matriz industrial do cinema, principalmente o norte-ameri-
cano. O próprio Glauber define bem o sentimento naquele momento:

Nós não queremos Eisenstein, Rosselini, Bergman, Fellini, John Ford,


ninguém. Nosso cinema é novo não por causa da nossa idade. O nos-
so cinema é novo como pode ser o de Alex Viany e o de Humberto
Mauro, que nos deu em Ganga Bruta nossa raiz mais forte. Nosso
cinema é novo porque o homem brasileiro é novo e a problemática
do Brasil é nova e nossa luz é nova e por isso nossos filmes nascem
diferentes dos filmes da Europa. (ROCHA, 2004, p.52).

O centro das atenções das produções seria, portanto, a apresentação


da cultura nacional por meio de uma visão original, sensível, oriunda de
um cinema produzido no subdesenvolvimento.

É bastante conhecido que os escritos de Glauber Rocha sobre o con-


ceito de revolução transitavam basicamente entre o sentido político
e estético. O cineasta procurava implementar uma nova linguagem
cinematográfica que causasse no espectador o estranhamento e o des-
conforto, essa estratégia levaria o público a reconhecer a situação de
subdesenvolvimento e miserabilidade que estava sendo mostrada nas
telas fazia parte da sua realidade. O objetivo dessas imagens era o de
promover o transe, uma categoria criada por ele e que consistia em
provocar, através do ‘choque’, a ‘instabilidade das consciências’. Esse
procedimento seria o caminho necessário para se chegar à consciên-
cia sobre o subdesenvolvimento. (MORENO, 2011, p. 138).

Estavam então desenhadas as bases do Cinema Novo. Segundo a


premissa de construção de um cinema genuinamente nacional, novos
CINEMA POLÍTICO NO BRASIL 37

diretores se voltam para o interior do Brasil, principalmente o sertão,


símbolo das mazelas geradas pelo imperialismo cultural e econômico.
Em 1961, Glauber Rocha lança Barravento. O filme apresenta uma
comunidade chamada Buraquinho, cujos pescadores locais trabalham
com uma rede de pesca alugada a duras penas. Em certo momento, o
proprietário da rede, insatisfeito com a baixa produtividade da pesca,
decide retirar a rede dos pescadores, que voltam a pescar com suas
jangadas e tarrafas. No centro da história se encontra Firmino (Antônio
Pitanga), antigo morador local que, recém-chegado da cidade, altera
o panorama do lugar ao tentar conscientizar seus conterrâneos de
sua condição social e a necessária luta por libertação. Por outro lado,
vemos Aruã (Aldo Teixeira), protegido de Iemanjá, que decide pedir
intervenção aos deuses em nome dos pescadores. A narrativa é apre-
sentada sob os preceitos das religiões de origem afro-brasileiras, que
contrapõem seus conflitos entre a resolução dos deuses e a resolução dos
homens. “Em Barravento, a questão política (da transformação social)
e a questão cultural (da identidade) emergem como núcleo da atenção,
dos problemas e das propostas de discurso” (XAVIER, 2007, p. 55).
O enredo principal de Barravento é político. Encontra-se entre a
alienação religiosa e a transformação social, entre os mitos religiosos
e a consciência política. O conflito entre Firmino e Aruã representa o
papel do “Estado Protetor, que, prevenindo as reivindicações populares,
as impede de tomar uma forma organizada e política, evitando que o
povo se torne centro de decisão”. (BERNARDET, 2007, p. 79). O conflito
de classes está presente na representação social brasileira, o povo se vê
preso aos operadores do capital, e seu destino, por sua vez, nas mãos de
sua religiosidade.
Do ponto de vista formal, o filme se estrutura em três momentos:
equilíbrio – da comunidade, antes da chegada de Firmino; desequilíbrio
– causado pela presença de Firmino; novo equilíbrio ao final – quando
a comunidade volta a sua normalidade, tendo a presença de Firmino
modificado a vida de Aruã, que vai para a cidade, como ele o fizera.
Dentro dessa perspectiva, fica clara a posição de Firmino como elemento
motor das transformações da comunidade e de Aruã. Para demonstrar
38 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

tal centralidade, Glauber faz uso de elementos formais, tal como ressalta
Xavier:

Ao longo do filme, os discursos de Firmino assumem uma imposta-


ção teatral-didática na mise-en-scène e o enquadramento o isola dos
pescadores. Discursa praticamente para a câmera e encontra seus
ouvintes numa suposta plateia fora do mundo de Buraquinho. (XA-
VIER, 2007, p. 31).

É possível acompanhar o comportamento de Firmino durante o filme


em sintonia com a forma narrativa escolhida por Glauber. Sua persona-
lidade é marcada por saltos bruscos, pontos obscuros e por um evidente
desequilíbrio, o que pode ser observado pelos enquadramentos e pelos
cortes propostos pelo diretor.

Exibindo uma descontinuidade flagrante e reiterando uma forma


oblíqua de passar certas informações até elementares, a narração do
filme cria um arranjo que não facilita a apreensão. Às vezes as coisas
andam muito depressa, às vezes algo fundamental é dito na periferia
de um diálogo e, quase sempre, as coisas não estão arranjadinhas nos
seus lugares como o retrospecto talvez faça supor. (XAVIER, 2007, p.
33).

É por meio da forma que Glauber monta seu personagem. Nessas


rupturas são identificados os traços para a construção dos filmes de
Glauber. “As características de imagem e som se põem como respostas a
demandas que vêm da esfera do político e do social, e como elementos
de outra natureza entram no jogo que constitui a obra” (XAVIER, 2007,
p. 15).
O longa Cinco Vezes Favela (1962), experiência cinematográfica que
reuniu filmes de curta duração, foi produzido pelo Centro Popular de
Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes e dirigido por dife-
rentes realizadores. A importância do filme ultrapassa a temática apre-
sentada, a começar pelo seu processo de produção. Por ter sido reali-
zado por uma instituição que não representa a cultura oficial, o filme
teve liberdade de expressar a realidade popular, sem assumir posições
que fossem de interesse de detentores de poder. Para Glauber, “um fato
básico que por si só já caracteriza uma nova tendência: a produção inde-
CINEMA POLÍTICO NO BRASIL 39

pendente, entregue pelos produtores a jovens cineastas com intenções


de autoria” (ROCHA, 2003, p. 131).
O filme tece sua narrativa valendo-se de uma perspectiva popular,
dando força ao trabalhador que se revolta contra o patrão, ao ladrão da
favela que rouba por não ter o que comer. Essa obra, por sua condição de
produção, teve o mérito de levar às telas informações sobre a condição
social da população, salientando a estrutura social dominada pela
burguesia. Bernardet define a importância do filme para o movimento
que se instaurava no país: “Tal radicalismo, característico da época,
ajudou imensamente a evolução das ideias cinematográficas no Brasil.
Esse também foi o principal papel de Cinco Vezes Favela” (BERNARDET,
2007, p. 41).
Um dos cineastas que dirigiu Cinco Vezes Favela foi Leon Hirszman.
Filiado ao pensamento marxista, Hirszman seria considerado como
um dos principais cineastas do Cinema Novo. Seu pensamento cine-
matográfico sempre foi ligado à luta de classes. Ainda influenciado pela
possibilidade de uma revolução de viés comunista no país, o cineasta
construiu suas primeiras obras pensando fundamentalmente em um
cinema de mobilização e de conscientização política.
Leon dirigiu o curta Pedreira de São Diogo, que integrou Cinco Vezes
Favela. Em Pedreira de São Diego (1962), Leon apresenta a luta de classes
mediante a representação de populares se revoltando contra o patrão de
uma pedreira que desejava ampliar seu negócio, colocando em risco a
população de um morro. O filme tem grande referência do cinema polí-
tico de Sergei Eisenstein.
Hirszman recorre à montagem para intensificar a caracterização do
conflito entre patrão, operários e comunidade. O gerente da pedreira,
de terno, sapato branco e sempre filmado em contra-plongée, ordena
que seja ampliada a carga de dinamite para realizar novas explosões que
poderiam comprometer a estrutura do barranco que abriga a comuni-
dade. Desolados, os trabalhadores chegam a uma conclusão: “Os barraco
vão cair”. O diretor utiliza imagens da maquinaria esmagando as pedras,
representando as condições precárias em que a classe trabalhadora é
submetida. Pela montagem, é possível perceber a construção de uma
metáfora em que a máquina representa a classe burguesa, opressora,
40 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

tentando destruir o proletariado, as pedras. A partir desse momento,


um dos trabalhadores mobiliza a comunidade a se colocar à beira do
barranco que seria afetado para sensibilizar o patrão sobre o risco de
morte que acometeria os moradores. Vemos, então, uma sucessão de
planos entre o patrão, a comunidade, os trabalhadores e a máquina, até
que esta finalmente para de funcionar, representando o fim da opressão
do proletariado pela burguesia. Nesse momento, o patrão volta atrás e
não detona a carga de dinamite. A respeito de Pedreira, Glauber Rocha
escreve:

Leon Hirszman realizou em Pedreira de São Diogo um exemplar tra-


balho de compreensão eisenteiniana: é o melhor ensaio aplicado de
uma sólida formação teórica. A reação da crítica pelo caráter eisens-
teiniano de Pedreira de São Diogo foi injusta: o filme vale especial-
mente por este rigor, este pensamento político condensado na mise-
-en-scène. (ROCHA, 2003, p. 140).

Nelson Pereira dos Santos se encontrava naquele momento não mais


como inspiração, mas como um cineasta consciente de sua posição como
baluarte do Cinema Novo. Vidas Secas (1963) é um retrato explícito das
ideias comungadas pelos cineastas cinemanovistas. Em 1965, Glauber
apresenta na Resenha do Cinema Latino-Americano em Gênova, Itália,
o manifesto Uma Estética da Fome, que propõe o aprofundamento da
postura estética e política característica dos primeiros anos de Cinema
Novo. Glauber é enfático ao criticar o cinema até então produzido no
Brasil. “Estes são os filmes que se opõem à fome, como se, na estufa e nos
apartamentos de luxo, os cineastas pudessem esconder a fome que está
enraizada na própria incivilização”. (ROCHA, 2004, p. 65).
Nesse manifesto, Glauber explicita a relação eurocentrista e a forma
como a colônia enxerga o colonizado. Por uma estética da fome, já que
a fome é sentida pelo povo brasileiro, mas é vista como um “estranho
surrealismo tropical” pelo europeu. Para Glauber, sobre a fome...

Sabemos nós – que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gri-
tados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto – que a
fome não será curada pelo planejamento de gabinete e que os remen-
dos do tecnicolor não escondem mais tumores. Assim, somente uma
cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se
CINEMA POLÍTICO NO BRASIL 41

qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a


violência. (ROCHA, 2004, p. 66).

O Cinema Novo se impõe como uma antítese do sistema colonialista


e é fruto de uma tomada de consciência da importância do cinema polí-
tico e social brasileiro. É um projeto de cultura, um projeto de política,
que materializa o tensionamento entre sua forma e construção imagé-
tica, um país desconhecido dos brasileiros.

O que fez do Cinema Novo um fenômeno de importância interna-


cional foi justamente seu alto nível de compromisso com a verdade;
foi seu próprio miserabilismo, que, antes escrito pela literatura de 30,
foi agora fotografado pelo cinema de 60; e, se antes era escrito como
denúncia social, hoje passou a ser discutido como problema político.
(ROCHA, 2004, p. 65).

No manifesto, Glauber propõe a construção de um novo pensamento,


que é originário da relação entre a obra e o espectador. Mas, agora, não
uma obra criada e voltada à burguesia, mas um cinema produzido e
voltado ao popular. A resposta ética proposta para se encontrar um
cinema verdadeiramente genuíno e nacional.

Glauber dá uma resposta política, ética e estética, possível no mo-


mento: através de uma estética da violência. Onde seria necessário
violentar a percepção, os sentidos e o pensamento do espectador, para
destruir os clichês sobre a miséria: clichês sociológicos, políticos,
comportamentais. Glauber propõe uma Estética da Violência, capaz
de criar um intolerável e um insuportável diante dessas imagens. Não
se trata da violência estetizada ou explícita do cinema de ação. Mas
uma carga de violência simbólica, que instaura o transe e a crise em
todos os níveis. (BENTES, 2007, p. 244).

No final da década de 1960, com o esgotamento das propostas do


Cinema Novo, um grupo de cineastas inicia um processo de renovação
da produção nacional que seria conhecido como Cinema Marginal. O
nome foi cunhado pela crítica para caracterizar o cinema oriundo da
Boca do Lixo, zona de prostituição em São Paulo, onde se localizavam
as produtoras de pornochanchadas. Estava ali criado um contraponto
dentro do próprio cinema nacional, por um lado o conjunto estético e
42 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

comprometido com os ideais políticos do Cinema Novo e outra vertente,


“voltada para os ideais libertários da vanguarda e para a tradição de
deboche e ironia da arte brasileira, iniciada principalmente com Oswald
de Andrade” (CANUTO, 2006, p. 15).
A caracterização do Cinema Marginal como um movimento é proble-
mática. Mais correto seria talvez dizer que existiu, em certo momento da
história do cinema brasileiro, uma série de filmes que possuíam traços
narrativos similares. Muito se diz que os jovens cineastas marginais se
posicionavam contra o Cinema Novo.

Muitas das propostas contidas no discurso destes ‘jovens’ e, principal-


mente, as relativas a uma produção distante dos circuitos industriais,
de cinema barato, câmera na mão, etc., consistem apenas, como fri-
sa Glauber, numa reciclagem de propostas antigas do Cinema Novo.
(RAMOS, 1987, p. 28).

A marginalidade referida se encontra na reativação de algumas


propostas antigas, mas que, em razão das condições ideológicas da
época (1968-70), foram postas em prática de maneira mais contun-
dente e radical. A questão da marginalidade sempre esteve presente na
história do cinema nacional no que se refere ao experimentalismo ou à
produção independente, porém adquire nessa época e nessa produção
uma proporção específica e de grande significação.
Outra característica desse grupo de filmes foi a mudança de foco,
uma ruptura com a visão primordial de um país essencialmente rural,
guardião de tradições culturais e um interesse em mostrar um Brasil
urbano e moderno, caracterizado especialmente pela expansão da
indústria cultural.
Naquele momento já se observava uma pulverização da produção
cinematográfica no Brasil. Os filmes passaram a buscar a própria esté-
tica, caminhando, cada um a sua maneira, para um lado diferente. Já
não víamos como no Cinema Novo um bloco unificado, um estilo e uma
forma de interpretar a sociedade brasileira, mas sim olhares diversos. O
cinema marginal buscava discutir até mesmo a estética idealizada pelo
Cinema Novo.
CINEMA POLÍTICO NO BRASIL 43

Como destaca Ângela José, Terra em Transe (1967), de Glauber


Rocha, em conjunto com Manhã Cinzenta (1969), de Olney São Paulo,
“deslocaram seu enfoque para o mundo pequeno-burguês, diagnosti-
cando as consequências do golpe militar, a derrota das esquerdas e a
consciência política do povo” (JOSÉ, 2007, p. 2). Esses filmes tornam- se
ponto de partida para a discussão de um cinema marginal no país.
Em Manhã Cinzenta o interrogador da censura é um robô, que repre-
senta uma quebra com a representação imediata do real, mas lida com
certa construção alegórica da realidade. “No limite desta postura se
rompe a tessitura existente entre a representação e seu referente: almeja-
-se a significação de estados dramáticos em si mesmos, em sua concre-
tude material”. (RAMOS, 1987, p. 136).
A narrativa marginal, de forma geral, costuma sacrificar o desenvol-
vimento linear da história para se fixar em algum elemento ou perso-
nagem. Essa quebra normalmente representa um momento de ruptura
em que é chamada a atenção do espectador. Manhã Cinzenta ainda
utiliza material documental de manifestações e confrontos entre estu-
dantes e polícia, escancarando a tensa relação de poder presente durante
a ditadura militar no Brasil. Ao confrontar em sua construção imagens
documentais e alegóricas, o diretor busca causar certo estranhamento no
espectador, o que acaba caracterizando a estética do cinema marginal.
Um nome essencial nessa fase é Rogério Sganzerla, com O Bandido
da Luz Vermelha (1968). Sganzerla define a sua relação com o Cinema
Novo e a responsabilidade dos novos cineastas na desconstrução da
estética cinemanovista.

Os filmes têm que ser políticos, mas podem sê-lo de outras manei-
ras, não somente como Rocha ou Saraceni. Não se pode nem tentar
imitá-los. É preciso que a turminha de hoje, mais nova, abra os olhos
e enverede por outras saídas. O cinema evolui em meses e mesmo
assim está atrasado em relação às outras atividades artísticas. (SGAN-
ZERLA, 2007, p. 27).

O que identificou os filmes marginais como um grupo foi suas


características formais e estéticas. Podemos observar nos filmes margi-
nais o uso recorrente de metáforas que remetem à própria condição de
produção do cinema nacional. A estética está imbuída de elementos que
44 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

denotam a sua condição precária da produção. As produções do cinema


marginal não procuravam reproduzir a estética naturalista e pura do
cinema industrial. Pelo contrário, ressaltam o corte brusco, o microfone
que aparece, a sujeira, o filme quebrado.
A postura dos cineastas com relação à produção dos próprios filmes
permitiu uma atitude irônica e descompromissada que acaba por se
tornar característica dos filmes. Essa “curtição” tem um pouco do antro-
pofagismo característico do tropicalismo na medida em que absorve sem
restrições as referências estéticas da época e as devolve como linguagem
em seus filmes. Toda essa sujeira, ironia e avacalhação acabam por se
tornar justamente o que o Cinema Marginal tem de melhor, de mais
original e representa a posição de marginalidade ocupada por esses
filmes em relação à sociedade.
Ao longo de sua história, o cinema brasileiro se concentrou no eixo
Rio-São Paulo. Com raríssimas exceções, as duas cidades centralizaram
a produção cinematográfica, os investimentos e o pensamento sobre o
cinema no país. Nos últimos anos, porém, a luta pela regionalização
das produções ganha força e incentivo para efetivamente acontecer.
Um dos motivos que vem garantindo o crescimento significativo da
produção descentralizada é o cumprimento da lei que destina a apli-
cação de 30% dos recursos do Fundo Setorial do Audiovisual2 para fora
do eixo Rio-São Paulo. Outro fator é que os demais estados se orga-
nizaram, a partir de manifestações coletivas e regionalizadas, e come-
çaram a produzir filmes. O reflexo dessa organização é a diversidade
da produção e teve como resultado maior participação dos filmes em
festivais e salas de cinema pelo país.
Esse poderia então ser um dos traços que marca a recente produção
cinematográfica nacional. É o caso do coletivo mineiro Teia. Criado
em 2002, o coletivo abriga artistas como Pablo Lobato, Marilia Rocha,
Clarissa Campolina, a produtora Luana Melgaço, dentre outros. Para
André Brasil, a Teia compartilha um traço predominante da produção

2. O Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) é um fundo destinado ao desenvolvimento


articulado de toda a cadeia produtiva da atividade audiovisual no Brasil. O FSA é uma
categoria de programação específica do Fundo Nacional de Cultura (FNC). Os recursos
que compõem o Fundo Setorial do Audiovisual são oriundos do Orçamento da União.
CINEMA POLÍTICO NO BRASIL 45

recente do cinema brasileiro (especialmente o documentário): “Eles


se voltam para a superfície do cotidiano, suas insignificâncias e seus
pequenos acidentes que serão, leve ou intensamente, sublinhados por
esta ou aquela operação poética, por esta ou aquela opção formal”.
(BRASIL, 2012, p. 25).
Os filmes do coletivo têm forte presença nos festivais nacionais e
internacionais e propõem um olhar singular sobre a sociedade e seus
indivíduos. Seus filmes têm grande apelo visual o que, em diversas vezes,
é mais forte do que o verbal. Um dos primeiros filmes creditados ao
coletivo, Cerrar a Porta (2000), de Pablo Lobato, dialoga com a tradição
da videoarte mineira ao mesmo tempo em que se distancia dela. Cerrar
a Porta busca insinuar algo novo, característico dessa nova geração,
voltado para uma autorreflexão. Pablo visita seu avô no leito de morte,
no interior de Minas Gerais. O encontro com o avô suscita grande
emoção em Pablo, que, em certo momento do encontro, foge correndo
para o quintal da casa. A partir daí, o cineasta assume, em primeira
pessoa, a narrativa do filme. O quintal é repleto de jabuticabeiras e resta
a ele provar um fruto em um ato poético de conforto diante da situação.
O filme representa essa virada para temas pessoais, no qual o protago-
nismo do cineasta, a questão do autor aparece com intensa força.
Assim como Pablo Lobato, Marilia Rocha construiu sua carreira de
forma muito singular e pessoal. Sua filmografia se encontra nos espaços
íntimos, familiares, e busca responder às urgências do mundo por meio
de um olhar sensível e responsável. A carreira da cineasta foi marcada
pela originalidade de seus documentários. Em seu primeiro filme, Aboio
(2005), Marilia mergulha no universo da caatinga árida, mostrando,
ora em cores, ora em preto e branco, os sons e as imagens das boiadas.
A forma em que nos são apresentados esses ambientes nos conecta a
esse universo, colocando-nos no meio de uma relação íntima entre esses
homens e seus animais. O olhar autoral de Marilia pode ser observado
no filme A cidade onde envelheço (2017). Em sua primeira incursão na
ficção, a escolha foi examinar a relação do imigrante que se integra em
um novo país.
A questão, tão importante dentro da recente organização geopolí-
tica mundial, é mostrada mais uma vez pela singularidade e pelo afeto.
46 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

O filme, a respeito de duas amigas portuguesas que se reencontram


e se redescobrem no Brasil, trata não apenas da relação íntima entre
ambas, mas também de sua relação com a cidade, no caso, Belo Hori-
zonte. O filme busca mostrar tal relação com a cidade, fugindo do óbvio:
as amigas ocupam espaços da cidade pouco filmados ou conhecidos,
embora muito frequentados pelos mineiros. Distante dos estereótipos,
o filme trata com sensibilidade o olhar estrangeiro sobre coisas que nos
são demasiadamente familiares.
Em muitos trabalhos assinados pela Teia, reconhecemos um ponto
em comum, um cinema “do silêncio e da prosa miúda”.

Mais até do que silenciosos e contemplativos, quero acreditar que al-


guns desses filmes exprimem a falta de palavras, traduzem as dificul-
dades do diálogo com o outro e optam pelo laconismo como resposta
aos dilemas da significação. (BRASIL, 2012, p. 28).

A produção mineira também ganhou destaque recente pelas reali-


zações da produtora Filmes de Plástico, criada em 2009, em Contagem,
cidade da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Também organizada
como um coletivo de diretores, os filmes feitos pela produtora, em espe-
cial os de André Novais Oliveira, têm em sua essência a união do humor
ao cinema de gênero, sempre interligando a vida cotidiana dos persona-
gens com seus discursos pessoais e o posicionamento político.
A descentralização da produção do cinema nacional fica aparente
quando observamos a informação que, nos últimos anos, mais de cem
filmes de longa-metragem foram produzidos no Norte, no Nordeste e
Centro-Oeste brasileiros.3 Podemos citar no Nordeste, os Estados do
Ceará, de Pernambuco e da Bahia; no Centro- Oeste, o Estado de Goiás
vem se destacando – o longa Vermelha (2019), de Getúlio Ribeiro, foi
vencedor da Mostra Tiradentes de 2019. O Distrito Federal também
merece destaque, principalmente pela produção de Adirley Queirós.
Seus filmes são produzidos com baixíssimo orçamento e se aproveitam

3. Revista de Cinema, 100 Novos filmes realizados fora do eixo, 19 de fevereiro de 2019,
Disponível em:
<http://revistadecinema.com.br/2019/02/100-novos-filmes-realizados-fora-do-eixo/>.
Acesso em: 20 fev. 2019.
CINEMA POLÍTICO NO BRASIL 47

do ambiente para criar experiências de denúncia à violência e à repressão


do Estado sobre a sociedade.
O filme Branco Sai, Preto Fica (2014) fala da violência policial em
um baile de black music dos anos 1980 e as sequelas eternas para duas
vítimas. Em Era Uma Vez Brasília (2017), o cineasta conta a história de
um agente intergaláctico que recebe a missão de vir à Terra matar o presi-
dente Juscelino Kubitschek; porém, a nave aterrissa por engano no ano
de 2016, em plena Ceilândia. A cidade-satélite mais populosa do Distrito
Federal é o cenário que Adirley utiliza como analogia à situação social
nacional. O espaço físico e simbólico da Ceilândia, seus sons, ruídos,
buzinas, acabam se tornando elementos reinventados em mundos cine-
matográficos incríveis. Os filmes de Adirley também são produzidos por
meio de uma iniciativa chamada CeiCine, coletivo sediado na Ceilândia,
do qual também fazem parte o cantor de rap Marquim do Tropa (ator
dos filmes) e o cineasta Cássio Oliveira. Seus filmes se enquadram no
perfil de filmes políticos atuais pela própria condição de produção e
principalmente por analisar questões sociais que tensionam ao limite a
temática com a estética adotada.
O estado de Pernambuco se destaca pela quantidade, variedade e
qualidade de suas produções. Kleber Mendonça, com Bacurau (2019),
Aquarius (2016) e O Som ao Redor (2012), e Cláudio Assis, com Amarelo
Manga (2003), provam que o cinema engajado e autoral dos pernambu-
canos encontra seu espaço em festivais nacionais e internacionais e vem
conseguindo diálogo significativo com seu público nas salas de cinema.
Muito do sucesso da geração de filmes pernambucanos se deve à orga-
nização da produção capitaneada pelo produtor executivo João Vieira
Júnior, responsável por filmes como O Rap do Pequeno Príncipe contra
as Almas Sebosas (2000), de Paulo Caldas e Marcelo Luna; Tatuagem
(2013), de Hilton Lacerda; Baixio das Bestas (2007), de Cláudio Assis;
O Céu de Suely (2006), do cearense Karim Ainouz; Cinema, Aspirinas e
Urubus (2005) e Joaquim (2017), de Marcelo Gomes. O grande mérito
de João Vieira foi reunir esses novos cineastas pernambucanos e dar a
eles liberdade de criação e condições de realização. Tatuagem, de Hilton
Lacerda, trata de relação homossexual de Paulete, estrela de um ousado
grupo de teatro local, e o jovem Fininha, recém-alistado ao Exército. O
filme discute assuntos importantes, como a repressão e o preconceito
48 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

em plena ditadura militar. O conjunto de filmes de Lacerda sempre lida


com questões de gênero e a sexualidade de seus personagens. Seus filmes
chamam a atenção para essas temáticas e especialmente empoderam
minorias como protagonistas dos filmes. Um dos pontos de destaque
do longa é a humanização da figura do soldado, muitas vezes treinado
para executar ordens sem contestá-las, mas que, por baixo da farda, é
também um ser provido de desejos e anseios. O embate se encontra na
proposta do filme, que trata do assunto na contramão de um cinema
majoritariamente machista e sexista. As questões não são apresentadas
como tabus ou com moralismo, mesmo ao abordar temas densos, o
filme tem o mérito de valorizar seus personagens, independentemente
se gays, héteros, homens ou mulheres, com a naturalidade e o afeto que
devem ser encarados.
Verificamos que, junto a esse processo de “regionalização”, é notável
na produção brasileira contemporânea um caráter mais próximo a uma
política de cotidiano, de discussão de questões de minoria, de tensio-
namentos entre os grandes temas e as individualidades. Os cineastas se
juntam aos seus grupos, às suas cores, aos seus gêneros para questionar
as representações, empoderar as minorias e inferir sobre temas histó-
ricos, conjunturais e existenciais, a partir de uma percepção do parti-
cular, do singular. É um ser, no meio da multidão, falando de sua reali-
dade e de suas angústias e representando o que poderíamos entender
como um retrato social brasileiro.
O cinema contemporâneo brasileiro é caracterizado pela reação.
Reação dos cineastas às questões sociais e políticas, reação a uma
reflexão sobre algo da existência, deles ou de outros, reação ao estado
natural de inércia das coisas.
O ato político nos filmes brasileiros se encontra justamente quando
eles criam possibilidades de tocar o sensível, quando a obra é capaz
de formar agitações suficientes para tirar o espectador de sua posição
passiva e fazer do filme um agente de transformação social. Os filmes
aqui tratados, cada um a seu modo, dão origem a uma relação com essa
perspectiva, evitando um olhar condescendente e o consequente anes-
tesiamento político, mas enfrentando questões importantes de nosso
cotidiano social.
CINEMA POLÍTICO NO BRASIL 49

Referências
BENTES, Ivana. Sertões e favelas no cinema brasileiro contemporâneo:
estética e cosmética da fome. Revista ALCEU, vol. 8, nº 15, PUC-RIO,
2007.
BERNARDET, Jean Claude. Brasil em tempo de cinema. Ensaio sobre
o cinema brasileiro de 1958 a 1966. São Paulo: Companhia das Letras,
2007.
BRASIL, André. Apresentação. Teia 2002-2012. Belo Horizonte: Teia,
2012.
CANUTO, Roberta Ellen. O Bandido da Luz Vermelha: por um cinema
sem limite. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Minas
Gerais, Faculdade de Letras. Belo Horizonte, 2006.
JOSÉ, Angela. Cinema marginal, a estética do grotesco e a globalização
da miséria. Revista Alceu, nº 15, Rio de Janeiro, 2007.
MORENO, Patrícia F. América em transe: Cinema e revolução na
América Latina (1965-1972). Tese (Doutorado) Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2011.
RAMOS, Fernão. Cinema Marginal (1968 – 1973) A representação em
seu limite. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Tradução Ivone C.
Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.
RESENDE, Luiz Augusto. Ruptura e continuidade no documentário
brasileiro: 1959-1962. Revista Alceu, vol 7, nº 14, Rio de Janeiro, 2007.
ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac
e Naify, 2003.
______________. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac e Naify,
2004.
SGANZERLA, Rogério. Encontros. Roberta Canuto (Org.). Rio de
Janeiro: Beco do Azougue, 2007.
XAVIER, Ismael. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome.
Posfácio: Leonardo Saraiva. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
Capítulo 3

Temporada: Espaços periféricos


no cinema brasileiro contemporâneo
Breno Henrique
#cinema #cinemabrasileiro #espaçoperiferia

Este artigo procura analisar as formas de aparição e produção do


espaço da periferia no cinema brasileiro contemporâneo. Tomando
como objeto de análise fílmica o longa-metragem Temporada (2018),
de André Novais, buscaremos compreender de que forma o espaço se
inscreve nas imagens, remodelando narrativas e olhares, abrigando
também povos e comunidades que, a partir de espacialidades outras,
tecem relações emancipatórias com seus respectivos territórios de vida.
Temporada teve a sua estreia mundial no Festival Internacional de
Cinema de Locarno, na Suíça, em 2018, circulando em seguida por
outros importantes festivais e mostras de cinema no Brasil e ao redor do
mundo. O longa-metragem foi selecionado para a 42° Mostra Interna-
cional de Cinema em São Paulo, exibido na XI Janela Internacional de
Cinema do Recife e atingiu outros circuitos internacionais de exibição
como o 36° Torino Film Festival, na Itália, e o 40° Festival des Conti-
nents, na França.1

1. Para conferir toda a circulação de Temporada em festivais e mostras de cinema, verificar


o site da Produtora Filmes de Plástico. Disponível em https://www.filmesdeplastico.com.
br/temporada/. Acesso em 19/07/2021.
52 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

Atualmente o filme está disponível para visualização em plataformas


de streaming como Netflix, Youtube e Google Play Filmes. Em julho de
2021 foi lançado pela editora Javali o livro roteiro e diário de produção
de Temporada. A produção literária compreende em uma perspectiva
comparatista os processos de tratamento submetidos ao roteiro do filme,
além de um diário de produção, que apreende os processos criativos do
diretor e as obstruções que atravessam e constituem a realização cine-
matográfica independente e de baixo orçamento no Brasil, sobretudo no
contexto político de 2017 até o presente.
Temporada é o segundo longa-metragem do realizador André Novais,
o filme se desdobra em certa medida em algumas questões e atravessa-
mentos presentes em outras obras do diretor. A aparição da vida ordi-
nária na periferia articulada e produzida por sujeitos comuns é a prin-
cipal preposição do longa-metragem que pode também ser vislumbrada
em outros filmes de sua filmografia.
Nascido em Contagem em 1984, André Novais é formado em
História pela PUC Minas e em Cinema pela Escola Livre de Cinema de
Belo Horizonte. Desde 2009 é um dos sócios fundadores da produtora
Filmes de Plástico. O diretor mineiro é um dos poucos homens negros
de origem econômica ligada às classes baixas a ocupar de forma expres-
siva, significante e latente a cadeia de realização cinematográfica que
configura o panorama do cinema brasileiro contemporâneo.
Ainda que em uma perspectiva e dinâmica ficcional, é importante
sublinhar que Novais trabalha e desenvolve em seus filmes espaços
internos e externos onde majoritariamente existem relações prévias com
os ambientes e territórios explorados. A casa dos pais, o bairro onde
cresceu, as vizinhanças, os familiares e amigos que constantemente são
colocados em cena diluindo as experiências de fruição que estabele-
cemos com as imagens.2 A respeito das relações de aproximação com os
espaços filmados, o diretor comenta:

2. Pouco mais de um mês, Quintal e Ela Volta na Quinta são exemplos de alguns filmes
em que os espaços internos são perscrutados em sua intimidade e postulados em cena
com agenciamentos afetivos e familiares na mise en scène que compõe a materialidade dos
filmes.
TEMPORADA 53

Uma das principais características do cinema brasileiro periférico de


hoje é seu olhar. Um olhar que, na maioria das vezes, vem agora de
dentro, com profundidade e propriedade. Diferente de muitos favela
movies de alguns anos atrás que possuíam uma mirada externa que
tentava entender toda aquela complexidade que é a periferia, mas se
esbarrava na visão do preconceito e só via as mazelas com um olhar
superior e antropológico. O simples fato de movimentar a câmera
para bairros de periferia e não necessariamente uma favela já é uma
mudança no olhar que pode mostrar uma gama de complexidades
ainda não discutidas no cinema brasileiro. (NOVAIS, 2020, p. 203).

Assim como Juliana (protagonista de Temporada, interpretada por


Grace Passô), André Novais também trabalhou como agente sanitário
em Contagem. Trata-se de experiências reais de vida, que alimentam
e potencializam em alguma medida as linhas de força que o cinema
engendra.
Acreditamos que as imagens elaboradas no cinema de André Novais
criam a partir de si mesmas nascimentos de novos mundos, visto que
os espaços são produzidos e ressignificados à medida que corpos dissi-
dentes se apropriam dos mesmos, reivindicando politicamente, cada um
ao seu modo a possibilidade de outras narrativas de vida. Conforme
aponta Renato Silveira em texto crítico sobre Temporada:

André tem feito filmes incrivelmente humanistas — e políticos. Não


no sentido político panfletário, mas da ação política de contar his-
tórias sobre pessoas comuns e, por isso mesmo, excluídas ou ridi-
cularizadas pelo entretenimento hegemônico, seja pelas profissões
que exercem, seja por seus atributos físicos. A mensagem de “Tem-
porada” contra o racismo e a gordofobia, problemas estruturais da
nossa sociedade, não vem em gritos (muitas vezes, sim, necessários),
mas na força das imagens. Está nos planos contemplativos em que
“nada acontece”. Está na cena em que, numa impressionante atuação
de Grace Passô, Juliana revela à prima um episódio que mudou em
definitivo os rumos do seu casamento e que desde então a assom-
bra. Está na cena de amor sem diálogos, mas que diz muito sobre re-
presentatividade e diversidade. A isso se soma o personagem Russão
(interpretado pelo rapper Russo APR), que facilmente poderia cair
no clichê do coadjuvante engraçado de tantas produções (hollywoo-
dianas e brasileiras), mas que aqui tem camadas tem uma trajetória,
uma história própria e que se torna um espelho em quem Juliana se
identifica. (SILVEIRA, 2019, sem página).
54 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

Nomeada Diversidade de gênero e raça nos lançamentos brasileiros


de 2016, o primeiro estudo que apresenta recortes raciais e de gênero
realizado pela ANCINE, aponta que em 2016 apenas 2,1% dos longas-
-metragens foram dirigidos por homens negros e nenhum filme foi diri-
gido e roteirizado por uma mulher negra.
Outra importante pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos Multi-
disciplinares de Ação Afirmativa (GEEMA) do Instituto de Estudos
Sociais e Políticos da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro)
aponta que entre os filmes de maior bilheteria do cinema nacional reali-
zados entre 2002 e 2012, apenas 2% foram dirigidos por homens negros.
Segundo a pesquisa, nenhum filme foi dirigido por uma mulher negra
no mesmo período.3
Na esteira do pensamento de Verônica Toste e Márcia Rangel (2020),
o preenchimento absoluto de homens brancos em múltiplas áreas de
realização cinematográfica e audiovisual:

1) faz com que o cinema seja mais uma instância de difusão da visão
de mundo desse grupo hegemônico, que estereotipa e representa os
demais sob lentes negativas; (2) exclui as perspectivas e vivências al-
ternativas das minorias; (3) promove a internalização de valores de
um pequeno grupo dominante pela audiência; (4) impede que as mi-
norias desenvolvam uma auto-imagem positiva a partir de exemplos
(role-models). (TOSTE; RANGEL, 2020).

Atravessada pelo racismo estrutural e institucionalizado que agencia


e organiza a nossa sociedade, a figuração dos negros no cinema brasi-
leiro foi, desde o início, permeada por múltiplas instâncias de violência.
A branquitude como padrão estético (ARAÚJO, 2002) promoveu siste-
maticamente o apagamento deste grupo, além de naturalizar e reforçar a
construção de estereótipos desdobrados a partir de convenções racistas.
Tais representações construídas a partir de um imaginário branco
(KILOMBA, 2017) se fazem ainda presentes e perceptíveis em diversas
camadas que agenciam a produção de cinema no Brasil.

3. Segundo a pesquisa, as disparidades e violências se perpetuam também no roteiro:


70% dos roteiros foram criados por homens brancos, 26% dos roteiros foram elaborados
por mulheres brancas e somente 4% dos roteiros foram assinados por homens negros.
Nenhum roteiro foi assinado por uma mulher negra.
TEMPORADA 55

As estruturas que manuseiam o racismo e a desigualdade racial se


expressam fortemente amparadas por outros vetores e instituições que
compõem a vida social, afetando assim a “constituição de subjetivi-
dades, de indivíduos cuja consciência e os afetos, estão de algum modo
conectado as práticas sociais” (ALMEIDA, 2018).
Acreditamos que no cinema engendrado por André Novais as expe-
riências e os processos criativos e/ou de subjetividades do realizador,
construídos e articulados em configurações sociais, raciais e econômicas
distintas das que configuram majoritariamente os espaços cinematográ-
ficos, tensionam e deslocam modos previamente concebidos de se olhar
e filmar o espaço, sobretudo, aquele da periferia.
Ao recusar estéticas imediatistas, reducionistas e que possam enclau-
surar os sujeitos que habitam, povoam e produzem espaços e territórios
marginalizados, muitas vezes abandonados por políticas públicas e pela
atenção do Estado, o cinema de André Novais engaja-se na produção de
espaços pretos nos quais as mobilizações afetivas em suas infinitas infle-
xões coordenam em alguma medida a construção fílmica. Assim como
bell hooks nos ajuda a compreender:

Existem espaços de agência para pessoas negras, onde podemos ao


mesmo tempo interrogar o olhar do Outro e também olhar de volta,
um para o outro, dando o nome ao que vemos. O “olhar” tem sido e
permanece, globalmente, um lugar de resistência para o povo negro
colonizado. (HOOKS, 2019, p. 217).

Ainda na esteira do pensamento de bell hooks a respeito do amor à


negritude como gesto político de resistência e a construção da subjetivi-
dade negra para além da dimensão do racismo, contemplando também
formas de se relacionar afetiva e positivamente com a negritude, em
processos de potência criativa, resistência e construção de novas formas
de existir a partir desse lugar negro, Temporada nos auxilia a apreender
o modo no qual as imagens, desdobradas a partir de um corpo atra-
vessado por outra experiência social, poderiam responder ao tempo no
qual se encontram inscritas.
Perscrutando a periferia de Contagem em seu cotidiano trivial, ques-
tionando no âmbito das imagens signos e significantes que estereotipam
56 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

as espacialidades periféricas, Temporada constrói narrativas dissidentes


ao dar a ver na materialidade das imagens discursos que interpelam a
história oficial, sobretudo a partir de corporeidades e experiências de
vida historicamente subalternizadas.

1. Temporada: disputa e produção do espaço


Assim como o nome da obra instiga e também indica, Temporada é
um filme sobre fases, estados transitórios e movimentos. Trata-se de uma
incursão em períodos e tempos (pessoais e subjetivos) que não se fazem
mais fixos. Postulando protagonismos agenciados por corpos, vidas e
subjetividades que são sistematicamente invisibilizadas, o filme forja
novas formas de produção para as espacialidades periféricas, sobretudo
quando ocupadas majoritariamente por corpos negros.
Em um estado de espera constante, pela suposta vinda de seu compa-
nheiro (cuja chegada nunca ocorre, como no desenrolar do filme desco-
brimos), Juliana se depara com a aparição, produção e a possibilidade
de viver e experienciar um novo espaço e, consequentemente, uma nova
vida.
Ao tecer relações e construir formas de habitar o presente, o filme
dá a ver os encontros, partilhas, desafios, descobertas e obstruções que
estão materializados no cotidiano que atravessa a vida de Juliana na
periferia. Dessa forma, novas aparições, modulações, corpos, e sujeitos
tangenciam e afetam a produção espacial que o filme elabora.
Andar pelas ruas é a gestualidade inicial apresentada nos primeiros
planos de Temporada e que será recorrente no desenrolar do filme. Andar
só, andar junto com o outro, articulados com a aparente trivialidade de
um cotidiano que se faz lá onde a vida é prisioneira4, com as aberturas,
confluências e porosidades produzidas pelo espaço, em que uma espécie
de precariedade é presentificada, seja pelo trabalho realizado por aqueles
que efetivamente caminham pelas ruas, seja pelos métodos e abordagens
de filmagem que recusam códigos visuais solidificados e reiterados ao

4. Tomamos aqui como referência o artigo “Na Vizinhança do Tigre: Lá onde a vida é
prisioneira” de César Guimarães, no qual o autor se valerá do modo como a cena fílmica se
impregna sensivelmente pelas formas de vida da juventude periférica no longa-metragem
A vizinhança do Tigre (Affonso Uchoa, 2014).
TEMPORADA 57

longo da história. Sublinhar a aparição do trabalho e do trabalhador,


das relações afetivas traçadas nos encontros e nos caminhos, das vizi-
nhanças (em seu sentido literal) e das formas de partilha postas em cena,
se dá como um esforço de perceber e investigar com maior densidade os
modos pelos quais o cinema se vale dos seus procedimentos para dar a
ver a produção do espaço tanto fílmico quanto social, também em suas
dimensões políticas, históricas e afetivas.
Entre a aspereza e a dificuldade da vida postulada pela fragilidade
e labor decorrentes do trabalho repetitivo, alguns afetos são politica-
mente traçados de forma orgânica na vida de Juliana. São encontros,
sujeitos e vidas que em suas prismáticas e multissituadas relações com
a periferia, tensionam os modos de se olhar para o espaço, deslocando
assim as funcionalidades e atribuições estigmatizantes que recaem sobre
eles. Tomemos como exemplo a cena em que Juliana e Hélio, em um
ato de compartilhamento e presença, contemplam a paisagem do bairro,
desdobrando-se no seguinte diálogo:

- Tou aqui curtindo a paisagem.


- Paisagem? Vai lá pra lagoa da Pampulha. Ficar aqui no meio desse
esgoto.
- Já até pesquei aqui.
- Já pescou?
- Sério.
- Só se for aqueles panga que come lixo, né?
- Cada um tem o que merece Ju. Cê acha que eu vou sair daqui pra ir
lá praquela puta que pariu daquela Pampulha, aquela lagoa que tem
cheirão de feijoada. Aquilo lá é esgoto também, véi.

Em Temporada, os espaços da periferia são constantemente


ampliados, potencializados e questionados quanto à historiografia que
os antecede, seja na relação de espectatoriedade que estabelecemos com
o filme, seja no modo como os personagens em suas falas e testemunhos
rompem com as expectativas coloniais que se projetam como a univer-
salidade do centro. Na esteira do pensamento de Caroline Almeida:

Hélio não precisa ir ao centro para dar o status de Belo aos horizontes
que já possui, esses que ele preenche com memórias e outras coisas
58 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

que vão além da materialidade da imagem. O sorriso sem gato. O


vôo sem pássaro. Juliana senta ao lado dele e diante disso que, para
ela, agora, também é paisagem, confessa em algum momento: “é que
eu nunca fui de ter amigo, Hélio”. E então está dado. A contemplação
como um exercício disparado pela presença, pelo compartilhamento,
pelo contar das histórias dos peixes que haviam antes do esgoto che-
gar, pelos laços que se criam quando essas histórias são contadas, por
deixar baixar a guarda. (ALMEIDA, 2019).

Temporada constrói, a partir dos seus recursos fílmicos, um lugar


poético e singular para a representação dos espaços da periferia. Ense-
jando a vida ordinária e todas as pulsões que as espacialidades perifé-
ricas abrigam, o longa-metragem cria dimensões discursivas e políticas
pelas quais os próprios habitantes e transeuntes produzem e alimentam
o espaço vivido. Assim como Lefebvre nos ajuda a compreender:

Este conhecimento [da produção do espaço] tem um alcance retros-


pectivo e um alcance prospectivo. Se a hipótese se confirma, ele reage
sobre a história, por exemplo, e sobre o conhecimento do tempo. Ele
permitirá melhor compreender como as sociedades engendraram seu
espaço e seu tempo (sociais), quer dizer seus espaços de representa-
ção e suas representações do espaço. Igualmente, ele deverá permitir
não prever o futuro, mas fornecer elementos a serem colocados em
perspectiva no futuro: ao projeto de um outro espaço e de um outro
tempo numa sociedade outra, possível ou impossível. (LEFEBVRE,
2008, p. 136).

Sabemos que o cinema brasileiro, em seus muitos espaços e tempos,


criou e promoveu imaginários cristalizados sobre favelas, periferias e
territórios marginalizados. Em oposição à narrativa oficial que estra-
tifica e enclausura as experiências negras e dissidentes em contextos
unívocos, Temporada alimenta a configuração de outras possibilidades
de mundo.
Somado ao testemunho dos personagens do filme, vislumbrar as
casas, ruas, barracões e todas as extensões e adjacências da periferia nos
planos fílmicos que Temporada oferece, nos permite acessar e compre-
ender em alguma medida processos de ocupação territorial que resultam
da ausência de políticas públicas, do abandono do estado e do racismo
estrutural que organiza, sustenta e agencia a sociedade brasileira. “Essa
TEMPORADA 59

área aqui é de boa”, nos diz Russão já em um dos momentos iniciais


do filme, enquanto caminha pelas ruas se apropriando politicamente e
coletivamente do lugar junto aos seus colegas de trabalho.
Apesar de todas as obstruções, complexidades e questões que recaem
de forma explícita nesses espaços, o filme produz ao seu modo linhas de
fuga que embaraçam a visão e a leitura colonialista das espacialidades
periféricas produzidas por circuitos hegemônicos. Em Temporada, afetos
são traçados, a vida em seus aspectos e atributos banais é celebrada, e a
possibilidade de mudança externa e subjetiva é ofertada. A respeito das
formas de produção do espaço Lefebvre nos ajuda a compreender:

Se o espaço (social) é produzido pelo modo de produção e pelas re-


lações sociais, então, ele transforma-se na medida em que ocorrem
mudanças nessas duas categorias da realidade. Contudo, as alterações
no espaço não são definidas de antemão, isto é, não acontecem de
modo direto e imediato às modificações da sociedade e de seu modo
de produção, pois essa relação é mediada por ideologias, ilusões, sa-
beres, códigos etc. (LEFEBVRE, 2008, p. 9).

Ao oferecer visões endógenas de mundos postulados à margem pela


história, Temporada se afirma, se insere em lugar singular e necessário
dentro das realizações contemporâneas que atravessam o cinema brasi-
leiro. Não obstante, o filme é marcado por um circuito interessante e
potente de circulação e exibição. Anunciando discursos e narrativas
calcados em experiências próximas à realidade do cotidiano na peri-
feria, o filme ocupa no presente espaços importantes como as plata-
formas de streaming citadas no início deste artigo, além de se desdobrar
e reverberar em outras linguagens artísticas como o livro sobre o diário
de processo do filme escrito pelo diretor.
Observam-se cada vez mais em diversos espaços de poder e insti-
tuições da vida social, reivindicações majoritariamente uníssonas por
novas formas de figuração e aparição da população negra nos espaços de
representatividade e de representação. Alimentando linhas de força que
questionam apagamentos históricos e sistemáticos, as imagens presentes
em Temporada se utilizam do cinema para dar a ver modos de criação
de espaços nos quais a inscrição e a constituição dos dissensos que agen-
ciam as relações sociais e raciais se fazem por outro interlocutor.
60 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

Juliana se permite afetar de infinitos modos, por meio das múltiplas


relações políticas, afetivas e subjetivas estabelecidas em sua nova relação
com as espacialidades que circunscrevem sua experiência na periferia
de Contagem. A personagem, que inicia o filme de modo introspectivo,
tímido, recolhido e silencioso, desenvolve ao longo da trama, como
iremos perceber, prismáticas mudanças que se dão desde os encontros
e o abandono de antigas práticas e relações como até mesmo mudanças
pragmáticas e estéticas percebidas, por exemplo, no seu cabelo, sendo
esta uma questão cara à vida de mulheres negras.
Temporada convoca para a materialidade fílmica a ressignificação de
experiências ordinárias inexoravelmente atravessadas por marcadores
de raça, gênero e classe, mas sem estratificar e enclausurar as experi-
ências e perspectivas de vida dos sujeitos filmados em tais marcadores.
Desmistificando e criando uma espécie de memória afetiva (urgente
e necessária), o filme promove formas de autonomia perante uma socie-
dade excludente. Temporada apresenta a vida na periferia existindo
também em suas pulsões emancipatórias e transformadoras, apesar das
obstruções e insuficiências que também a constitui.
TEMPORADA 61

Referências
ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte:
Letramento, 2018. Coleção Feminismos Plurais.

ARAÚJO, Joel Zito. A força de um desejo: a persistência da branquitude


como padrão estético audiovisual. Revista USP, nº 69, p. 72-79, mar./
mai. de 2006.

D’ANDREA, Tiaraju Pablo. A formação dos sujeitos periféricos: cultura


e política na periferia de São Paulo. São Paulo: Tese [doutorado em
Sociologia] FFLCHH -USP. Universidade de São Paulo: 2013.

HOOKS, bell. O olhar opositor: mulheres negras espectadoras. Olhares


negros: raça e representação. São Paulo: Elefane, 2019, p. 214-240.

KILOMBA, Grada. A máscara. Piseagrama, nº 11, 2017, p. 27.

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução de Rubens Eduardo


Frias. São Paulo: Centauro, 2008.

OLIVEIRA, ANDRÉ NOVAIS. Entre nós e o mundo. Catálogo do


Fórumdoc.bh.2020, Belo Horizonte, p. 203-204, 2020.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento,


2017.

SILVEIRA, Renato. “Temporada”: humanista e político. Cinematório, 25


jul. 2019. Disponível em: <https://www.cinematorio.com.br/2019/07/
critica-temporada -andre-novais-oliveira-grace-passo-filmes-de-
plastico/#>. Acesso em: 12 jul. 2020.
Capítulo 4 | Bússola #1

A metodologia da série histórica:


o operário e o trabalho no cinema
documental brasileiro 1

Mariana Souto
#cinema #metodologia #cinemadocumental

1. Uma metodologia comparatista: a série histórica


Este ensaio busca investigar as figuras do operário e do trabalho no
cinema documentário brasileiro a partir de uma metodologia compara-
tista que se pretende desenvolver e exercitar: a série histórica. Os filmes
Viramundo (Geraldo Sarno, 1965), ABC da greve (Leon Hirszman, 1979-
90), Peões (Eduardo Coutinho, 2004) e Estou me guardando para quando
o carnaval chegar (Marcelo Gomes, 2019) são analisados a partir de uma
perspectiva que leva em conta a historicidade observando, em especial,
como as formas documentais e as relações entre sujeitos que filmam e
sujeitos filmados têm se transformado no tempo.
Os métodos comparatistas visam a colocar filmes em relação, esti-
mulando relações de alteridade entre as obras. Dentre diversos possí-
veis métodos comparatistas que vimos desenvolvendo (2019), estão o

1.Parte desta pesquisa foi desenvolvida ao longo do doutorado da autora, publicado em 2019
e depois apresentada ao Grupo de Trabalho Estudos de cinema, fotografia e audiovisual
do XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, em
junho de 2020, registrada em Anais eletrônicos. O presente texto é um desdobramento e
uma adaptação daqueles.
64 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

inventário, a coleção, a constelação e a série histórica. Esta última, foco


deste texto, constitui-se a partir de um conjunto com filmes de distintos
períodos e autores. A aposta é de que a montagem de uma série propicia
a visão de determinados traços que emergem quando da reunião parti-
cular de um subconjunto de filmes. Assim, este artigo busca tanto inves-
tigar a questão do trabalho quanto exercitar e amadurecer a metodo-
logia comparatista da série histórica, verificando seu potencial analítico.
Em relação às outras possíveis metodologias de aproximação de
filmes, a série tem como característica a intenção de captar algo da
historicidade de um problema e de sua abordagem pelo cinema. Em
uma análise plural de filmes, que lida, portanto, com uma certa quan-
tidade de objetos, ela propõe a organização do corpus a partir de uma
importante variável temporal. Diferente da constelação fílmica (2020),
por exemplo, que aproxima objetos de maneira mais livre, sem respeitar
necessariamente encadeamentos e ordenações temporais, a série tem
uma proposta linear, em relação íntima com a cronologia do mundo.
Antes de adentrar a série específica montada para este trabalho,
ilustramos brevemente suas possibilidades no contexto das relações de
classe. Por exemplo, uma dupla poderia ser composta por A Opinião
pública (Arnaldo Jabor, 1967) e sua saga em busca da classe média
em diversos ambientes e locações de Copacabana, muitos desses ao ar
livre, e Edifício Master (Eduardo Coutinho, 2000) e o isolamento dos
moradores num único prédio de apartamentos, no mesmo bairro. Uma
análise comparatista dessa dupla poderia estender teias entre os filmes,
cada um deles muito significativo em sua época: é como imaginar as
pessoas que antes estavam nas praias, boates e ruas de Copacabana
agora, mais envelhecidas, solitárias e num contexto de maior individua-
lismo, se escondessem nos conjugados do Ed. Master – um filme como
o futuro hipotético do outro.
A série histórica oferece, portanto, a possibilidade de criação de uma
narrativa entre os filmes, ainda que o diálogo entre eles não seja inten-
cional ou consciente por parte de seus realizadores. “Narrar significa
buscar e estabelecer um encadeamento e uma direção” (LEAL, 2006, p.
20). É o “olhar narrativizante” que estabelece articulações entre frag-
mentos, buscando organizá-los e conectá-los. Embora lidemos aqui com
A METODOLOGIA DA SÉRIE HISTÓRICA 65

o cinema documental, num movimento fabulativo é possível imaginar


essa narrativa ficcional que se cria entre os filmes, fortalecendo os laços
entre eles, tornando-os mais próximos.
A partir do encadeamento das obras, é possível ver, de maneira
literal, a formação de um desenho (FIG. 1). A linha que une os pontos
dessa série não é natural, mas traçada pelos pesquisadores em um gesto
que articula determinados filmes, dentre tantos outros possíveis. A
linha começa antes e se estende após os filmes, evidenciando a ideia de
um recorte e de uma subjetividade. Trata-se de caminho que envolve a
escolha precisa de certas obras, uma composição de corpus que remete
a um trabalho fino de curadoria.

FIGURA 1: Série histórica.


FONTE: Autoria própria.

Na lida com a série histórica, visitamos as contribuições de Ismail


Xavier, autor que aposta metodologicamente na “escolha de uma cate-
goria central a partir da qual é possível montar um eixo onde dife-
renças e semelhanças se cristalizam e permitem tornar visível a história”
(XAVIER, 2003, p. 16). Xavier pontua que o trabalho de escolha de uma
categoria inclui uma dimensão fundamental de intuição crítica. A série
histórica, cuja matriz pode ser, por exemplo, um autor (como Glauber
Rocha em Sertão mar) ou um conceito (como alegoria em Alegorias do
subdesenvolvimento), permite que se veja um dinamismo, “uma trans-
formação, que insere os problemas que estão sendo vividos no presente
como parte de uma lógica que ultrapassa o presente e está, enfim, proje-
tada historicamente” (XAVIER, 2003, p. 3).
66 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

2. O operário, o trabalho e o cinema


Apostando nas potências de um retrospecto, montamos uma série
histórica que nos auxilia na compreensão da problemática das relações
de trabalho fabril no Brasil. Assim, para entender o percurso do docu-
mentário brasileiro nas últimas décadas e observar as transformações
da figura do operário e do trabalhador de uma maneira mais concreta e
materializada, unimos alguns pontos, destacando obras representativas
de certos períodos. Lidando com essa temática no documentário, seria
importante, por exemplo, contemplar marcos significativos, como o
dito “modelo sociológico” e o cinema militante ligado às grandes greves.
Além dos parâmetros do que é considerado como representativo e, de
certa forma, mais próximo de um entendimento consensual a respeito
de momentos importantes da história, também participa da escolha das
obras a subjetividade do/a pesquisador/a. Um gesto intuitivo que não
se dá no vazio, mas é possibilitado por certo conhecimento histórico,
fomentado pela cinefilia e pela pesquisa prévia.
Um recorte preliminar delimita o terreno (em nosso caso, o cinema
documental brasileiro que aborda a classe operária). Daí, busca-se
enxergar, em meio a uma multidão de filmes produzidos, pontos de
relevo a partir dos quais se possa desenhar um traçado. Em outras pala-
vras, em meio a um mar de pontos possíveis, o intuito é unir aqueles que
formam uma linha coerente, ainda que ela não seja exatamente reta ou
exata. Nesse processo, o levantamento de alguns títulos mais prováveis
pode ser útil para que se testem combinações, com encaixes mais ou
menos harmoniosos, até que se encontre uma série histórica satisfatória,
capaz de mobilizar uma narrativa de interesse.
A série não é definitiva ou inequívoca; pesquisadores diferentes
montariam conjuntos distintos. A substituição de um elemento altera
fortemente o todo, pois modifica o desenho, os encadeamentos, as rela-
ções tecidas entre os pontos. O objetivo é que a série, ao transitar de um
objeto a outro, permita uma visão mais acurada de um fenômeno, de
uma tendência, de um trajeto – o que certamente deve ser construído no
texto, ancorado em argumentos e na análise atenta dos filmes. Afinal, ela
é uma ferramenta metodológica, um modo de organizar a pesquisa, uma
forma de elaborar uma hipótese – que será ou não comprovada ao longo
A METODOLOGIA DA SÉRIE HISTÓRICA 67

do trabalho de investigação e cujo sucesso não está dado de antemão.


Para evitar o risco da arbitrariedade, uma série produtiva depende da
escolha de filmes que estejam em compasso com a história e que sejam,
de alguma forma, expressivos de determinado período.
Em nossa série, começamos com Viramundo (Geraldo Sarno, 1965),
passando por ABC da greve (Leon Hirszman, 1979/90), Peões (Eduardo
Coutinho, 2004), para enfim chegar ao recente Estou me guardando para
quando o carnaval chegar (Marcelo Gomes, 2019). O objetivo da série
não é analisar detidamente cada um, mas sim ressaltar alguns pontos de
destaque, auferir algumas variações e fincar alguns marcos. Sustentamos
que, na comparação, os filmes se iluminam mutuamente.
Partimos de Viramundo, filme em que, como ocorre às produ-
ções do Cinema Novo analisadas na chave do “modelo sociológico”
(BERNARDET, 2003), mostrou-se significativa a ênfase nas generali-
zações e nas compreensões globais sobre a sociedade. Viramundo nos
ajuda a entender a formação do operariado urbano com a afluência das
migrações do Nordeste, de pessoas que enfrentavam as dificuldades
do trabalho no campo e buscavam melhores condições de sustento na
cidade grande. A locução em voz over diz:

Diariamente chega a São Paulo, a maior cidade industrial do Brasil, o


denominado trem do norte. Ele traz algumas centenas de migrantes
que vêm em busca de trabalho. (...)

Em média, 70% deles se dirigem para o interior e constituem a mão


de obra de uma agricultura de mercado. O restante localiza-se na in-
dústria e se concentra na construção civil.

Geraldo Sarno posiciona seus personagens recém-chegados à cidade,


com malas e bagagem, frontalmente à câmera – reproduzindo a compo-
sição de Os Retirantes, de Cândido Portinari (1944). O olhar que inter-
pela a câmera (e o espectador) está presente ao longo de todo o filme, ora
em momentos posados como esses, ora de maneira acidental, quando os
figurantes estranham o objeto que os enquadra.
Trata-se de um documentário expositivo, com uma locução impo-
nente, grave, masculina, que profere diagnósticos sociais e nos informa
com dados estatísticos e números (quantidade de imigrantes que chegam
68 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

por dia, valor dos salários, preço de alimentos) – o cineasta não se


coloca pessoalmente. Gravada em estúdio, a voz é homogênea, de corpo
sempre ausente; nunca fala de si, mas dos outros. Referente a essa “voz
do saber”, Bernardet pontua que se trata de “um saber generalizante que
não encontra sua origem na experiência, mas no estudo de tipo socioló-
gico; ele dissolve o indivíduo na estatística e diz dos entrevistados coisas
que eles não sabem a seu próprio respeito” (BERNARDET, 2003, p. 17).
Os migrantes são objeto da fala, enquanto o locutor é o sujeito detentor
do saber. O saber, aliás, fundamenta-se na exterioridade – o saber de
dentro (do migrante) é tido como individual, fragmentado, não tendo o
mesmo valor e o poder de generalização de uma visão externa, distan-
ciada. No filme de Sarno, não conhecemos os retirantes para além desta
sua condição: o documentário exclui aquilo que não cabe neste tema,
a subjetividade dos personagens, suas visões de mundo, sua biografia
pessoal e familiar, suas idiossincrasias: para que se faça a passagem do
individual à classe e ao fenômeno, os casos apresentados contêm apenas
os elementos necessários para a generalização.
É importante notar que, apesar da construção de tipos e do aciona-
mento de um mecanismo “particular-geral”, o filme é um dos pioneiros
no uso do som direto no Brasil, incorpora as vozes dos migrantes na
estação e os observa atentamente. O sociológico do modelo nem sempre
se refere à afinidade com uma metodologia específica da sociologia, mas
ao interesse do filme pela dinâmica social mais ampla e à construção
retórica via tipos. Ao final de Viramundo, temos a chegada de um novo
trem, com novos migrantes, enfatizando a repetição desse processo. O
filme, assim, desenha o percurso do rural ao urbano, do camponês ao
operário da fábrica e da construção.
Já focado no operariado urbano está ABC da greve, que registra as
grandes greves de 1979 realizadas pelos operários metalúrgicos do ABC
paulista. Difícil associar ABC da greve plenamente a um tempo, posto
que foi filmado em 1979, no calor do momento, mas finalizado apenas
em 1990. É, portanto, um filme de temporalidade híbrida. Poderia ser
visto como integrante do chamado “novo documentarismo militante”
(CARDENUTO, 2014), uma tendência que questionou o modelo do
Cinema Novo e sua imposição de uma análise ideológica preconcebida
A METODOLOGIA DA SÉRIE HISTÓRICA 69

por intelectuais de esquerda – muitas vezes relativa a uma realidade que


eles pouco haviam experimentado. Braços cruzados, máquinas paradas
(Roberto Gervitz, Sérgio Segall, 1979) e Linha de montagem (Renato
Tapajós, 1982) são exemplos de projetos que buscavam uma relação
mais horizontal com os operários, incluindo-os no processo criativo e
tentando um recuo do cineasta e de seu lugar de saber.
Leon Hirszman vinha de um contexto ligado ao “modelo socioló-
gico”, com seu Maioria absoluta (1964), contemporâneo de Viramundo.
Nos anos 1960 e 1970, afastou-se desse modo de fazer, produzindo
filmes que se relacionavam com os sujeitos filmados numa chave mais
observacional (CARDENUTO, 2014). ABC da greve revê o lugar da
voz do saber, mas não chega à permeabilidade e à tentativa de neutrali-
zação do cineasta oriundas das propostas de Gervitz, Segall e Tapajós.
Hirszman não abre mão da centralidade do papel do documentarista
em tecer interpretações e organizar o material proveniente dos registros
fílmicos, mas, aqui, o faz de maneira menos determinista, elaborando
leituras menos totalizantes.
Em ABC da greve, Hirszman não tenta conscientizar o povo de sua
alienação, porque o povo já é mais do que consciente. Não há relação de
superioridade intelectual ou de autoridade do cineasta em relação aos
sujeitos filmados. Não se transmitem informações aos operários como
se eles fossem carentes de um saber sobre sua própria condição – pelo
contrário, busca-se o operário para conhecer essa condição a partir dele
mesmo. Como percebe Bernardet, sua preocupação não é a de tecer uma
análise sociológica ou política do fenômeno da greve, mas de se inserir
na ação (BERNARDET, 2003). Há um esforço por acompanhar a greve
em seu transcorrer, postura que, por si, dificulta os enunciados sintéticos
de filmes como Maioria absoluta. Embora também haja uma locução
grave, masculina, esta é menos impostada e solene que a de Viramundo
– a voz do poeta Ferreira Gullar, militante do PCB, intervém para nos
apresentar o encadeamento dos acontecimentos, informar-nos as datas,
a quantidade de metalúrgicos em determinados eventos e tecer alguns
comentários que não chegam a guiar por completo nossa interpretação
dos fatos, muito menos elaborar diagnósticos sociais fechados.
70 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

ABC da greve acompanha as paralisações dos operários da região


paulista entre março e maio de 1979, mostrando a movimentação dos
trabalhadores, as assembleias, os discursos. Hirszman opõe os planos
aéreos das fábricas ou dos automóveis dispostos nas garagens, imagens
recorrentes no discurso de propaganda oficial que comemora a grande
modernização brasileira (encontradas nos filmes de Jean Manzon, por
exemplo), às imagens de opressão e violência no interior da fábrica.
“Inexistentes no cinema ‘oficial’, a exploração enfrentada diariamente
pelos operários – ‘o inferno dos metalúrgicos’ – provoca uma fissura nas
imagens conservadoras” (CARDENUTO, 2014, p. 212-213).
Hirszman filma o interior da fábrica: as imagens, potentes, têm
algo de pesadelo (BERNARDET, 2003), são mesmo portais do inferno:
escuras, com operários suados, sujos de fuligem, em meio a enormes
labaredas e faíscas, exercendo movimentos rápidos em grandes engrena-
gens ou peças de carro. As condições se revelam altamente insalubres – e
com isso, o filme ajuda a legitimar a greve, posicionando-se a favor dos
trabalhadores.
Em alguns momentos, vemos também o interior da casa de alguns
personagens – que, no entanto, nunca são nomeados ou individualizados
pelo filme. Para além de Lula, figura personalizada, em ascensão como
líder sindical, o que o filme registra é uma coletividade, um conjunto
de operários unidos em estado de insurgência, protestando juntos por
melhores condições de trabalho. Os planos de ABC são preenchidos por
multidões, e mesmo nos enquadramentos fechados, vemos múltiplas
faces. Planos panorâmicos, travellings, tomadas aéreas buscam apre-
ender a quantidade de pessoas nas assembleias, reuniões, missas. As
entrevistas são realizadas em meio a acontecimentos; pergunta-se a um,
os demais circulam ao fundo e lançam olhares para a câmera.
Depois de anos inacabado, Adrian Cooper, diretor de fotografia, fina-
lizou a montagem de ABC da greve em 1990, retomando o projeto após
a morte de Hirszman em 1987, a pedido de Carlos Augusto Calil, da
Embrafilme. O tempo mudou a perspectiva do filme: não era mais uma
obra lançada no calor do momento, mas dez anos depois, com distan-
ciamento para reflexão. Cooper conta que, junto a Calil, optaram por
reduzir o “didatismo” do filme: “Depois de todos esses anos e da reflexão
A METODOLOGIA DA SÉRIE HISTÓRICA 71

sobre o papel do narrador no cinema, com uma maior confiança nas


imagens, decidimos tirar parte da narração” (COOPER apud SILVA,
2008).
Nossa próxima parada é Peões (Eduardo Coutinho, 2004). Às
vésperas da eleição de Lula para presidente da república (no segundo
turno do pleito de 2002, depois de três derrotas nas eleições de 1989,
1994 e 1998), Coutinho mobiliza uma busca em torno dos operários
anônimos que militaram nas grandes greves do fim dos anos 1970 no
ABC paulista. A partir de fotos e filmes da época (ABC da greve incluso),
os personagens se reconhecem e indicam uns aos outros. Nas entrevistas,
Coutinho pergunta sobre o passado de sindicalismo, o significado de
suas lembranças, mas também sobre o presente, a situação atual de cada
um, suas atividades, seus afetos. A maioria deles já não trabalha como
peão, tendo se aposentado ou mudado de ramo devido às dificuldades
do ofício. Em uma sociedade pós-industrial, de produção altamente
automatizada (sobretudo no campo da indústria automobilística, caso
dos metalúrgicos do ABC), o número de empregos caiu drasticamente –
como na chegada de uma tão alardeada distopia futurista, grande parte
da mão de obra foi mesmo substituída por robôs.
Assim, a fala dos ex-operários acaba por revelar a dispersão, a
desmobilização e certa melancolia dos tempos atuais, em oposição a
um tempo de união, preocupações coletivas e efervescência que se veem
nas imagens de arquivo daquele movimento, em especial em ABC da
greve. Peões cria um dispositivo para internalizar um processo histórico;
elabora a passagem, que é ao mesmo tempo social e cinematográfica,
entre tempos: da experiência de participação em um movimento cole-
tivo à solidão em cena, do corpo na rua e na massa ao fechamento na
casa, do tempo de lutar ao tempo de lembrar (MESQUITA, 2016).
O filme de Coutinho produz, no interior da montagem, um contraste
entre os planos gerais de multidões, reunidas em assembleias na Vila
Euclides, e os primeiros planos individuais (com ocasional presença de
um cônjuge ou um filho) captados no interior das casas dos ex-grevistas,
já envelhecidos, no presente. Ao contrário dos operários que surgem
em massa e diluídos em multidões em Viramundo e ABC, temos aqui a
individualização dos personagens, filmados em sua própria residência,
72 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

a indagação por sua trajetória pessoal, por suas opiniões, desejos, senti-
mentos. Nesse painel composto pelo diretor, 35 entrevistados testemu-
nham.
Como boa parte da obra de Coutinho, Peões tem a entrevista –
encontro e testemunho – como forma dramática predominante. É um
filme que se volta para o imaginário do operário: não se filma o trabalho.
O trabalho está nas questões, no discurso, na memória, mas não nas
imagens. Não pertence ao presente, afinal. Os corpos estão em repouso,
em enquadramentos quase sempre focados no rosto, que fita a câmera
e olha diretamente para o cineasta que o interpela – tão diferente dos
planos médios e gerais de Viramundo e ABC da greve, cujos olhares se
dão de esguelha ou movidos pelo estranhamento. Coutinho se mostra
no filme, apresenta seu projeto aos ex-operários reunidos, faz perguntas
audíveis, interage. Chegamos, portanto, ao documentário de tipo refle-
xivo – não apenas por pensar sua própria forma e expor seu processo,
como por seu caráter metalinguístico ao dialogar com o cinema brasi-
leiro (as imagens de ABC da greve, Greve! e de Linha de montagem são
fontes de pesquisa para a busca dos personagens, material de arquivo
exposto intra e extradiegeticamente).
Dos entrevistados, apenas três seguem operários: Geraldo, que vive
de contratos temporários e incertos, e a dupla formada por Antônio
(talvez já aposentado) e seu filho George, que menciona um robô, a
permanência da insalubridade e as novas exigências de estudo técnico e
superior para que os peões mantenham o emprego. Isso indica a male-
abilidade da categoria para Coutinho, que não entende o operário num
sentido estrito e se mostra mais interessado em trajetórias do que na
sondagem de uma condição de trabalho no presente.
Peões começa com entrevistas em Várzea Alegre, no Ceará, uma
pequena cidade que concentrou muitos migrantes metalúrgicos e depois
se desenrola inteiramente na região de São Bernardo do Campo. Peões
faz o caminho do retirante de Viramundo: começa no Nordeste e desce
ao Sudeste. No entanto, no Nordeste, os entrevistados são “retornados”
– o que traz para a narrativa e para a abordagem do tema a tônica de
uma rememoração, de um retorno apenas em lembrança ao que já foi, e
não de um verdadeiro movimento de ida. Assim, os temas da migração e
A METODOLOGIA DA SÉRIE HISTÓRICA 73

da diáspora nordestinas, tão fortes no documentário de Geraldo Sarno,


aparecem aqui incorporados ao movimento do próprio filme.
Coutinho desenvolve o seguinte diálogo com Joaquim, um dos perso-
nagens de Várzea Alegre, no Ceará:

Joaquim: - Não, eu não moro aqui, Eu tô passando uns dias aqui. Por-
que é como eu lhe disse, eu nasci e me criei aqui, mas eu não posso
deixar São Bernardo, onde tudo que passou de importante em minha
vida foi em São Bernardo, então eu não troco São Bernardo por nada.
(...)

Coutinho: - Chegou quando?

Joaquim: - Faz quatro anos.

Joaquim está há quatro anos no Ceará, mas considera que mora


em São Bernardo. Assim como a identidade nordestina não se descola
de alguns personagens migrantes, a identidade operária não se apaga,
mesmo que eles ocupem hoje outras funções. João Chapéu, outro entre-
vistado, era taxista há mais tempo do que havia sido metalúrgico, mas
ainda assim, considera: “não sou um verdadeiro taxista”.
Como se pode notar, esta é a primeira vez, neste artigo, que nos refe-
rimos a personagens específicos. Em Viramundo e ABC da greve (com a
exceção de Lula, que aparece em ABC na condição de líder), não conhe-
cemos os nomes dos personagens. Os operários são uma massa quase
indistinta, todos unidos pela mesma condição. O trabalho de Peões
é, justamente, o de identificar e nomear aquelas faces nas imagens de
multidão, posteriormente buscando com elas contato individual. No
filme de Coutinho, os nomes estão mais do que mencionados, estam-
pados em letras sobre a tela.
A regra que guia o dispositivo de Eduardo Coutinho é a busca pelos
anônimos. Seu interesse era por quem não fosse famoso nem figura
pública, pois esses talvez tivessem seu testemunho comprometido por
zelo com sua imagem e reputação (LINS, 2004). Com isso, poderíamos
pensar que, em parte, a melancolia advinda do filme é engendrada por
sua proposta de recorte – vários grevistas se tornaram vereadores, depu-
tados, ou obtiveram algum tipo de destaque na carreira pública, mas
74 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

Peões não se interessa por eles. O filme busca os que não vingaram na
militância e se dispersaram. Talvez seja o caso da maioria, mas, ainda
assim, é preciso tornar claro que esse não foi o destino “natural” dos
operários do ABC e sim uma das consequências do recorte do docu-
mentário. Ao mesmo tempo em que revela certa predileção pelos operá-
rios dispersos, o próprio filme atua como sua junção, reconstituindo, em
seu interior, fragmentos de uma comunidade. É como se funcionasse,
ele mesmo, como o “local de reunião possível (de uma categoria colap-
sada)” (MESQUITA, 2016, p. 63), um réquiem para a classe operária.
Quem sabe o cinema brasileiro estivesse ali empenhado em promover
uma última reunião antes de se despedir dessa figura mítica.
A Geraldo, último entrevistado, Coutinho pergunta “o que é um
peão?”. O documentarista não parte de saberes prévios, de diagnósticos,
não toma nem a palavra e nem a classe como dadas. Diferente dos filmes
do modelo sociológico, que geralmente partem de teses preconcebidas
a serem comprovadas e ilustradas pela realidade, Coutinho investiga o
sentido daquele termo, de uso tão corrente, para aquele personagem
específico. Depois de um longo silêncio, Geraldo devolve uma pergunta
a Coutinho: “você já foi peão?”. “Não”, ele responde, tornando evidente
e incontornável a diferença entre esses dois homens, de classes sociais
distintas. Um corte seco e o filme se encerra. O final de Peões deixa em
aberto a problematização do lugar do diretor perante seus entrevistados.
Peões já apontava a falência da categoria que lhe batizava, quase
extinta no cinema contemporâneo. Segundo Consuelo Lins, esta rare-
fação não se deu apenas no cinema. “A condição operária foi sendo
gradualmente apagada do imaginário político, cultural e midiático em
vários países do mundo ocidental” (LINS, 2004, p. 426). Para o soci-
ólogo Adalberto Cardoso, em entrevista para Um sonho intenso (José
Mariani, 2014), a indústria automobilística ainda é muito simbólica da
organização do trabalho, no entanto hoje se produz um automóvel com
5% da presença humana do que se empregou há três ou quatro décadas
atrás.
Depois de 2004, data de Peões, dificilmente se encontram docu-
mentários que tratem do operário de maneira central. Na verdade, essa
ausência é anterior – Peões já é um filho temporão e nostálgico dessa
A METODOLOGIA DA SÉRIE HISTÓRICA 75

produção. Depois de uma grande quantidade de filmes motivados pelas


greves do fim dos anos 1970 e dos anos 1980, o personagem do operário
foi desaparecendo paulatinamente das imagens documentais, dando
lugar a temáticas como as manifestações religiosas, culturais e questões
ligadas a minorias e outras formas de exclusão social (LINS, 2004). Peões
é, pois, um filho temporão e nostálgico daquela produção. Ele não é,
contudo, o último ponto na série histórica que desejamos construir.
Em Estou me guardando para o carnaval chegar (2019), o diretor
Marcelo Gomes viaja a Toritama, pequena cidade do agreste de Pernam-
buco conhecida como um polo de produção de jeans. Gomes havia
conhecido a cidade quando criança, acompanhando seu pai, funcio-
nário do governo que fazia inspeção fiscal na região, fato exposto na
locução em primeira pessoa. Se Coutinho já aparecia em Peões e não
ocultava sua participação naquele universo, aqui isso se intensifica: o
cineasta é personagem do filme. Reflete sobre suas memórias, compara
a Toritama que seus olhos viram no passado à dos dias atuais, contrasta
os motivos que levaram seu pai à cidade e os que agora o levam a ela.
Se antes a localidade era predominantemente rural e silenciosa, hoje é
fabril e barulhenta. “Na minha memória, Toritama era uma cidade que
tinha outra velocidade”, diz. “A paisagem mudou”.
Grande parte das casas de Toritama se transformou em pequenas
fábricas – facções. Quase toda a cidade orbita em torno da produção de
jeans, a ponto de restaurantes e outros tipos de comércio serem escassos.
Marcelo Gomes entrevista trabalhadores que relatam uma rotina de
trabalho a qual muitas vezes se estende de domingo a domingo, das 7h
às 22h, com pequenos intervalos para as refeições. São donos de seu
próprio negócio e não há limite para a jornada voraz: “Eu sei que quanto
mais eu estou trabalhando, mais eu estou ganhando”. Não trabalham
com carteira assinada, nem são regidos por contratos – como ganham
por peça, se veem estimulados a trabalhar ininterruptamente em busca
de maior remuneração. Não param nem para a entrevista – dão depoi-
mentos enquanto cortam, costuram, amarram, arrumam. Aqui, de
volta, a ação do trabalho testemunhada pela câmera. É significativo
que o espaço da casa seja o mesmo da fábrica – uma concretização da
completa falta de separação entre lar e labor.
76 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

Os personagens de Estou me guardando revelam um certo orgulho


por supostamente ter a liberdade para definir seus horários e por não
trabalhar para outrem. Estão imersos em um contexto econômico e
social de terceirização e precarização do trabalho, sem direitos traba-
lhistas, às bordas de uma reforma da previdência que deixou os brasi-
leiros ainda menos amparados em seus direitos. Talvez o filme mate-
rialize um retorno do trabalho fabril, mas em conjuntura inteiramente
distinta, de trabalho informal e retrocesso nas regulamentações.
A única folga que esses “empreendedores” se permitem é a do
carnaval. Talvez pela condição de exceção extrema, eles se dedicam à
festa com a mesma intensidade com que trabalham. Toda a cidade se
dirige para o mar, e os que não têm recursos para a viagem vendem
de tudo, da geladeira às próprias máquinas de costura. Para o feriado,
o diretor oferece uma câmera a uma família para que ela registre os
momentos de lazer na praia. Como em Pacific (Marcelo Pedroso, 2009) e
Doméstica (Gabriel Mascaro, 2012), filmes-dispositivo contemporâneos,
trata-se de uma apropriação da imagem de amadores e da abertura da
possibilidade para que os próprios sujeitos, antes apenas observados,
agora também filmem.
O documentário observa o trabalho com minúcia, atentando para os
ruídos, a cadência das máquinas e a destreza dos operários. Explicita sua
dinâmica e revela seu caráter reflexivo quando, por exemplo, uma moça
diz que não quer falar por estar “vergonhosa”, ou ainda quando um
“figurante” – o genro da senhora que de fato estava sendo entrevistada –
inadvertidamente assume as rédeas do depoimento e se vê repreendido
por ter “roubado a cena”. Ao contrário do modelo sociológico, o filme
abraça os personagens em suas singularidades e idiossincrasias, ainda
que construa uma observação que se pode generalizar, já que os perso-
nagens compartilham fortemente uma rotina de trabalho e uma visão de
mundo bastante semelhantes, criando os contornos de uma classe (que
talvez não se reconheça assim).
No entanto, ainda que o diretor participe da cena, revele suas
perguntas e fale em primeira pessoa em off, o filme se exime de julga-
mentos. Pontos importantes de um contexto capitalista específico, como
a falta de consciência de classe, o perverso discurso empreendedor e a
A METODOLOGIA DA SÉRIE HISTÓRICA 77

precarização do trabalho praticamente não são abordados pela narração


do filme. Estou me guardando parece mais mobilizado pela observação
(talvez um tanto consternada) do que pela tessitura de uma análise
sociológica ou de um comentário a partir de um ponto de vista superior
àquela realidade – mas acaba também se furtando a um posicionamento
mais crítico.

3. Considerações finais
Observando a série formada por esses quatro filmes, é revelador
pensar no estatuto dos diretores e da equipe: com um tema mais ou
menos comum, diferentes cinemas em diferentes momentos produzem
relações muito distintas entre sujeitos que filmam e sujeitos filmados.
A relação de exterioridade da equipe se traduzia nos olhares para a
câmera vistos em Viramundo e ABC da greve. Há momentos em que o
olhar pode ser entendido como hostil, desafiador ou provocador (“quem
é você, o que faz aqui, por que me filma?”), outros como disparador
da má consciência do espectador o que, por sua vez, deveria levar à
mobilização. Comentando o olhar para a câmera em Maioria absoluta,
Bernardet pontua:

Assim, o filme toca numa tecla particularmente sensível num setor da


classe média e dos intelectuais: a culpabilidade. Eis os homens cujo
trabalho você usurpa e que não têm nada, eles olham você nos olhos,
você vai aguentar esse olhar, aí sentado na sua poltrona? A culpabili-
dade deverá nos levar a agir. (BERNARDET, 2003, p. 42).

Se nos primeiros filmes da série o olhar partia do figurante não diri-


gido (ora simpático, ora curioso, mas no mais das vezes desconfiado),
nos filmes mais recentes esse olhar é demandado, respondendo a uma
conexão direta entre personagem e diretor/câmera. Num modelo de
entrevistas individuais, Peões e Estou me guardando para quando o
carnaval chegar mostram personagens que olham frontalmente para a
câmera – ou para o diretor logo atrás ou ao lado dela. Desenvolve-se
entre os dois lados da câmera uma relação de empatia.
A perspectiva do cinema comparado nos proporciona a tessitura de
uma narrativa, quase uma história ficcional que o cinema documentário
78 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

conta a partir da montagem desses filmes numa sequência. Relata-nos


o panorama da migração do trabalhador do campo e a formação do
operariado urbano em Viramundo, leva-nos ao auge da organização de
classe do operariado no cinema que documentou as grandes greves (em
ABC da greve), passa por sua decadência e nostalgia em Peões, confir-
mando o abismo que separa o cineasta dessas classes, e chega à obser-
vação pessoal e subjetiva de um cineasta diante dos trabalhadores preca-
rizados e incansáveis de Estou me guardando para quando o carnaval
chegar.
Mesmo que composta por peças do passado, esse conjunto ou série,
se pensada benjaminianamente, depende de um reconhecimento pelo
presente. Assim, ela se endereça ao presente e só é formada a partir desse
olhar ordenador e significador do agora que faz buscar, no passado, as
peças integrantes de uma mesma linhagem dos objetos contemporâneos.
O olhar retraça uma origem possível e nos ajuda a entender a histori-
cidade das formas cinematográficas. A ponte entre tempos não confi-
gura uma ligação de causalidade nem de progresso. Michael Löwy, ao
comentar Benjamin, diz que “a relação entre hoje e ontem não é unila-
teral: em um processo eminentemente dialético, o presente ilumina o
passado, e o passado iluminado torna-se uma força no presente” (LÖWY,
2005, p. 61).
Viramundo, ABC da greve, Peões, Estou me guardando para quando o
carnaval chegar. Essa coleção envolve um aspecto memorial e arquivís-
tico, a preservação de algo do passado que já não permanece integral-
mente. É interessante pensar nesse conjunto de filmes como um inven-
tário de gestos perdidos, de olhares que já se esvaneceram, de relações
com o aparato fílmico que se transformaram, de ofícios que pareciam
em desaparição e que depois ressurgiram modificados.
Nesses cerca de 50 anos de história, mudanças significativas se
fizeram notar. Assistimos à transformação de uma sociedade indus-
trial para uma que caminha para a produção imaterial e abstrata, da
linha de montagem para os serviços, de um capitalismo clássico para
uma “economia compartilhada” neoliberal. É curioso que grande parte
do cinema brasileiro, ao invés de sair da fábrica e se deslocar para as
grandes corporações ou para locais em que pudesse investigar as formas
A METODOLOGIA DA SÉRIE HISTÓRICA 79

de opressão no capitalismo contemporâneo, permaneça na fábrica,


ainda que se despedindo dela.
As comparações tecidas não possibilitam conclusões generalizantes
a respeito de todos os períodos históricos, mas fornecem pistas impor-
tantes. A série histórica não apenas reforça o conhecimento das dife-
renças entre o cinema moderno e o contemporâneo, como também
torna visível a história (como dizia Xavier) a partir de um eixo concreto,
erguido por filmes escolhidos como representativos de questões temá-
ticas e estéticas de cada época. Ao abordar um pequeno conjunto de
filmes que tratam do trabalho e do trabalhador, contamos um pouco da
história do cinema brasileiro, entrelaçados que são.
80 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

Referências
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, vol. 1. Magia e técnica, arte e
política. São Paulo: Brasiliense, 1985.

BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo:


Companhia das Letras, 2003.

CARDENUTO, Reinaldo. O cinema político de Leon Hirszman (1976-


1981): engajamento e resistência durante o regime militar brasileiro.
Tese (doutorado). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2014.

COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder. A inocência perdida: cinema,


televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

IMANISHI, Raquel; SARAIVA, Leandro. Transcrição de entrevista com


Ismail Xavier realizada em 2003. Não publicada.

LEAL, Bruno. Saber das narrativas: narrar. GUIMARÃES, Cesar,


FRANÇA, Vera (Org.). Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo
Horizonte: Autêntica; 2006; p.19-27.

LINS, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho: televisão,


cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das


teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.

MESQUITA, Cláudia. Entre agora e outrora: a escrita da história no


cinema de Eduardo Coutinho. Galaxia, São Paulo, Online nº 31, p.
54-65, abr. 2016.

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. 2. ed. Campinas: Papirus,


2007.

SILVA, Maria Carolina Granato. O cinema na greve e a greve no cinema:


memórias dos metalúrgicos do ABC (1979-1991). Tese (doutorado),
Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2008.

SOUTO, Mariana. Constelações fílmicas: um método comparatista no


cinema. Galáxia. N. 45, p. 153-165, set./dez. 2020.
A METODOLOGIA DA SÉRIE HISTÓRICA 81

SOUTO, Mariana. Infiltrados e invasores: uma perspectiva comparada


sobre relações de classe no cinema brasileiro. Salvador: Edufba, 2019.

XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo: Editora


Brasiliense, 1993, p. 139-160.

XAVIER, Ismail. Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São


Paulo: Cosac & Naify, 2007.
II
#televisão
Capítulo 5

Miguel e a travessia da caatinga:


a crise entre o arcaico e o moderno
a partir da experiência visual
e do figurino em Velho Chico
Mariana Mól Gonçalves
Reinaldo Maximiano Pereira
#televisão #televisualidade #figurino

1. Travessias teórico-metodológicas
Neste capítulo, o esforço se concentra na investigação da experi-
ência visual oferecida pela televisão e das matrizes culturais brasileiras
e latino-americanas que subjazem essas materialidades, no campo da
telenovela. Os dados foram colhidos de Velho Chico1, de Benedito Ruy
Barbosa. A obra integra o grupo que nomeamos como A saga dos Coro-
néis2.
De partida, observamos a telenovela pelo prisma da sobrevivência da
cultura popular no meio massivo a partir do melodrama. Observamos,
ainda de saída, que Velho Chico é caracterizada por uma experiência
visual cuja estética é antropofágica e combina diferentes temporalidades
e espacialidades, nos enquadramentos, planos e figurinos. A nossa
atenção aqui recai, também, sobre o aspecto simbólico dos figurinos.

1. Trigésima obra de autoria de Barbosa, exibida entre 14/03 e 30/09/2016. Direção


artística: Luiz F. Carvalho.
2. Compreende tramas cujo enredo enfatiza a questão da terra a partir de um protagonista
latifundiário. Para Reinaldo Maximiano Pereira (2018), a terra é tema transversal na obra
de Barbosa (entre as décadas de 1960 e 2010). A nomeação do grupo não tem caráter
normativo.
86 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

Nesta telenovela, os trajes investem na tradução, não só, dos “tipos


sociais”, mas também e sobremaneira dos “estados da alma” (MARTIN,
1985, p. 61).

FIGURA 1: A saga dos coronéis


FONTE: Pereira, 2018

Por essa visada, empreendemos, nas páginas que seguem, a análise


dos elementos da forma textual televisiva e, portanto, partícipes da cons-
trução da experiência visual e o modo como dão a figurar a crise entre
o arcaico e o moderno que entendemos modelados em três personagens
de um mesmo núcleo familiar: Afrânio de Sá Ribeiro, o atual Coronel
Saruê (Antônio Fagundes), a filha Maria Tereza (Camila Pitanga) e o
neto Miguel (Gabriel Leone).
Constatamos que esse núcleo familiar traz as raízes ou as matrizes
culturais relacionadas à terra no Brasil e na América Latina, por
extensão. Isto é, um certo número de determinações históricas, políticas
e culturais que subjazem à temática da terra e estão personificadas na
figura do Coronel Saruê, como expressão contemporânea do arcaico e
das matrizes do mandonismo e do patriarcalismo brasileiros. Já Maria
Tereza, em sua conformação dramática, performa, pois, a mediação/
negociação e/ou as mesclas sinuosas que reúnem descontinuidades e
destempos latino-americanos. Por sua vez, o projeto moderno logo-
cêntrico de inspiração europeia estaria figurado em Miguel, o agente
MIGUEL E A TRAVESSIA DA CAATINGA 87

externo portador de pretensas soluções para o uso sustentável da terra


da caatinga, porém alheio às dinâmicas que se processam em Grotas de
São Francisco e na fazenda Nossa Senhora das Grotas, de propriedade
do avô, no interior da Bahia, às margens do Rio São Francisco.
Para esse estudo acompanhamos o evento narrativo que nomeamos
Miguel e a travessia da caatinga, momento em que, na economia do
enredo, o Coronel Saruê aguarda a chegada do neto, com a expectativa
de forjar nele um sucessor3 – à moda do mandato divino dos monarcas
do Antigo Regime: “Le roi est mort! Vive le roi!” (“O rei está morto! Viva
o rei!”). Por essa perspectiva patriarcal, a filha não é, pois, identificada
pelo coronel como herdeira, mas como a mãe do herdeiro. Tereza parti-
cipa da vida e da lida da fazenda produtora de frutas para exportação,
mas não tem poder decisório, conforme descrito na sinopse – mas, ainda
assim, negociou inovações para sanar a insolvência da fazenda.
Miguel concluiu o doutorado na França e, ao voltar, recebe o chamado
do avô para cuidar da fazenda. O evento corresponde, então, ao momento
em que Miguel, conduzido por Tereza, sai de Salvador com destino a
Grotas. Na travessia, mãe e filho debatem sobre as formas sustentá-
veis de manejo da terra, técnicas que Miguel anseia por implantar na
fazenda. O avô, por sua vez, anseia apenas por uma continuidade e não
por uma ruptura do modo de lidar com a terra e com a gente do lugar.
De acordo com Simone Rocha e Renato Pucci Jr. (2016, p. 11), o
evento narrativo viabiliza algo que é um desafio metodológico para a
pesquisa científica a partir de telenovelas: como adentrar um “produto
de dimensões colossais”? Geralmente, os pesquisadores se concentram
na análise de cenas, sequências ou capítulos, unidades nem sempre
precisas, em termos da visão de conjunto – uma história, dentro do
enredo, com início, meio e fim – ou que projetam o arco das persona-
gens. Por outra visada, que entendemos complementar, Robert McKee
(2006) compreende o evento como mudança na situação de vida. Assim,
acompanhar um evento é acompanhar o que ocorre com uma perso-
nagem.

3. O “herdeiro natural” seria o segundo filho, Martim de Sá Ribeiro (Lee Taylor), que
renegou o pai e o poder econômico. Nesta altura do enredo, o paradeiro de Martim é
desconhecido.
88 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

Dessa forma, seria possível observar o desenvolvimento das compli-


cações progressivas que movimentam a história de uma personagem em
dado evento. Neste caso, verificaríamos as dinâmicas que desarranjam
“o equilíbrio de forças na vida da protagonista4” (MCKEE, 2006, p.
183). Por via de consequência, a eclosão dos conflitos e a mudança de
comportamento da personagem que ocorre por ação e reação moldando
os pontos de virada, o chamado beat.
Para a progressão de um tema no interior do enredo, é necessário
que os roteiristas criem eventos narrativos, ou seja, ações, reações e
situações que garantam o desenvolvimento de uma história temporal-
mente. Segundo Rocha (2017), apesar da dificuldade (pois os eventos,
também, são materiais extensos), a visão do conjunto que eles propor-
cionam seria a mais produtiva em termos da investigação, pois permite
ao analista “visualizar o entrelaçamento das tramas, o uso de indica-
dores temporais claros, e a inserção de causas pendentes para a devida
articulação de sequências separadas temporalmente” (ROCHA, 2017,
p. 304). Conforme esclarece Pucci Jr. (2013), não é necessário que o
analista se debruce sobre o evento por completo, bastaria identificar e se
concentrar nos “pontos nodais, aqueles que podem conter os elementos
necessários para que se atinja o objetivo da investigação” (2013, p. 6-7).
Assim, acompanhamos o evento que se desenvolve num conjunto de
quatro sequências, entre os capítulos 039, 040 e 041, exibidos entre os
dias 27 e 29 de abril de 2016, na terceira fase da telenovela Velho Chico5.
Diante do exposto, o nosso raciocínio intersecciona, ao menos,
três campos de estudos: a Teoria Social Crítica Latino-Americana (as
matrizes culturais), os Estudos de Televisão (a forma textual televisiva –
o composto palavra/imagem/som) e os Estudos Visuais (o tema das visu-
alidades). Investimos num trajeto analítico-reflexivo que parte do meio,

4. McKee se refere à protagonista de uma história, mas podemos compreender, por


extensão do raciocínio, a protagonista do evento, Miguel, no nosso caso.
5. A trama é dividida em três fases (1960, 1980 e 2016), a história se passa na cidade fictícia
Grotas de São Francisco e a trama mostra a disputa por terras e poder entre as famílias
De Sá Ribeiro e Dos Anjos e o amor proibido entre Maria Tereza (Camila Pitanga) e Santo
(Domingos Montagner). A rivalidade entre as famílias e os embates com as novas gerações
se entrelaçam à luta pela sobrevivência do rio São Francisco, o Velho Chico. A telenovela
pode ser acessada em https://globoplay.globo.com/velho-chico/t/5WQY6RYS6h/
MIGUEL E A TRAVESSIA DA CAATINGA 89

da compreensão dos produtos televisivos como prática cultural, para daí


se concentrar nas matrizes culturais presentes na obra em apreço. No
primeiro campo, para dar corpo às reflexões, compartilhamos dos argu-
mentos de Martín-Barbero (2009) acerca da importância da televisão (e
seus produtos) e sua pertinência no âmbito cultural na América Latina.
Segundo o autor, a televisão apresenta relatos de nação e de história
para a maioria de cultura iletrada. Martín-Barbero elege a cultura como
o lócus para situar os estudos dos meios de comunicação de massa e
propõe pensar o processo comunicativo a partir das demandas e dos
usos sociais. Em outros termos, compreender as mediações que arti-
culam as práticas de comunicação e as dinâmicas culturais.
O edifício teórico de Martín-Barbero se assenta, em grande parte,
como tentativa de compreender uma experiência de modernidade confi-
gurada na América Latina, enquanto uma realidade em que o projeto
racional-iluminista ganhou contornos próprios. Outros pesquisadores
(HERLINGHAUS e WALTER, 1994; BUNNER, 1988) também se dedi-
caram à matéria e erigiram uma teoria social crítica, desde a região,
propondo conceitos e análises que inauguram uma epistemologia local
que escapa dos dualismos (centro-periferia, por exemplo) e investem
nos processos de hibridações culturais e das mesclas que explicam o
fenômeno social que se tornou a modernidade na América Latina.
Essas relações, descritas por Martín-Barbero como mediações, estru-
turam a vida social, a construção de sentido e a percepção de mundo dos
sujeitos e conectam as várias matrizes culturais. Essas matrizes culturais
conformam os relevos e as reentrâncias do espejo trizado6 (BRUNNER,
1988) que é a cultura latino-americana e revelam as complexas articu-
lações entre tradição e modernidade, entre continuidades e desconti-
nuidades. Em outros termos, as culturas latino-americanas articulam
em sua condição histórica múltiplos destempos, pois, nelas coexistem

6. Metáfora de Brunner (1988) para o complexo jogo da cultura latino-americana em sua


formação multiétnica. Para o autor, ao nos defrontarmos com a cultura, ela nos devolve um
espejo trizado que desnuda nossa heterogeneidade e pluralidade (Ibid.: 15). Preservamos
a grafia em espanhol, pois, compreendemos que o sentido expande o que está descrito
nos dicionários – fragmentar e/ou destruir. Brunner parece investir numa circunstância/
superfície/condição em que o sentido se associa à construção e/ou formação. Isto é, a
superfície pode estar com trizas, mas não se rompe, não cai.
90 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

as conjunturas de períodos pré-colombiano, colonial, pós-colonial e


modernidade. É neste contexto que, cremos, a televisão e suas produ-
ções nos permitem entender a cultura e sociedade de que são expressão.
No campo dos Estudos de Televisão, nós compreendemos esse meio
a partir do Circuito da televisão, proposto por Jason Mittell (2010, p. 9).
Nele podemos observar a existência de seis dimensões/funções da TV
circunscritas na cultura: indústria comercial, meio tecnológico, insti-
tuição democrática, prática cotidiana, representação cultural e forma
textual. Mittell esclarece que essas dimensões/funções são coexistentes
e interagentes, porém, na pesquisa científica, os analistas se concentram
em uma ou outra dimensão.
Nos Estudos de Televisão, a dimensão da forma textual concentra o
menor investimento de pesquisa (BUTLER, 2010; ROCHA e PUCCI JR,
2016; PEREIRA, 2018). Quando voltamos o olhar para as representações
visuais televisivas, constatamos que, não raro, o meio “chega” antes e
já trazendo uma série de resoluções: são medíocres e insuficientes7; de
baixa qualidade, em relação ao cinema; incapazes de gerar introspecção
etc.
Outro aspecto é o da prevalência dos estudos de sociologia e da etno-
grafia que não resultaram, necessariamente, em métodos que promo-
vessem uma análise audiovisual da televisão, devido ao ato e ao efeito
de o meio chegar antes da materialidade. Em suma, a tradição desses
estudos, não raro, valoriza a dimensão palavra (texto) em detrimento da
imagem. Nesse sentido, os pesquisadores apontam para a importância
de examinar a relação entre imagens e discursos substituindo uma teoria
binária, pela compreensão dialética, expressa no composto imagem/
texto (MITCHELL, 2009; PEREIRA, 2018).
É de consenso entre esses autores que a televisão alia a capacidade
de hibridação ao aprimoramento técnico e artístico, expresso no meca-
nismo de conservação/inovação. A televisão tem modos operatórios
próprios e uma estética potencializada pelo trânsito com outras narra-
tivas audiovisuais. Nesse contexto, Omar Rincón (2006) destaca a tele-
novela pela capacidade de absorver outros formatos, gêneros e ideias

7. Em 1953, André Bazin (1997, p. 80) previu que “a imagem da televisão sempre conservará
sua legibilidade medíocre” e restrita ao consumo doméstico.
MIGUEL E A TRAVESSIA DA CAATINGA 91

provenientes do próprio meio e/ou de outros meios e linguagens audio-


visuais e formas de expressão artística. Sob o signo da antropofagia, a
telenovela “come todos os outros formatos e tons da televisão latino-
-americana e o faz à vontade” (2006, p. 50).
Se considerarmos que esse meio passa por intensas modificações
em sua dimensão material, dado o avanço das tecnologias digitais, a
demanda por iniciativas de metodologia analítica se torna, não só opor-
tuna, como urgente. Por essa razão, tentamos, pois, nos filiar às propo-
sições de Mitchell (2009), no campo dos Estudos Visuais. Conforme
Mitchell orienta, em seu gesto metodológico (dar imagem à teoria),
não devemos nos antecipar com significados a priori – ou permitir que
o meio venha antes com uma série de resoluções. O desafio está em:
“desadestrar” o olhar, permitir perder o treino de leitura das imagens
que tenta “controlar o campo das representações visuais com o discurso
verbal” (MITCHELL, 2009, p. 18). Do contrário teríamos a imagem
como mero exemplo de uma teoria dada de antemão.
Mitchell (2009) nos estimula a compreender os elementos consti-
tuintes da representação visual em termos de suas funções (o que eles
dão a figurar?), pois na materialidade mesma da representação, no
composto imagem/texto, nas relações entre o verbal e o não-verbal, está
o lócus de um conflito e desse encontro/fissura escorregam as matrizes
culturais, sociais e históricas (2009, p. 96). O autor nos inspira num
gesto metodológico, mas não nos municia no aspecto procedimental
que nos demanda por ferramentas de descrição e de interpretação. A
constatação do autor de que os meios não são, puramente, visuais, eles
são mistos, nos conecta às proposições de Butler (2010) ao observar que
a televisão deriva seu estilo a partir da relação imagem-palavra-som. A
análise estilística de Butler interroga sobre a função dos elementos na
materialidade da forma textual televisiva, o espaço onde conflitam as
questões da cultura.
O nosso esforço de análise, então, se debruça sobre a forma textual
televisiva para: a) reconhecer o potencial audiovisual e estético dos
produtos da televisão; b) eleger a forma textual desses produtos como
objetos/guias para as reflexões culturais que ensejam; c) compreender
que os produtos televisivos são constituídos por estilos, modelos,
92 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

comunicabilidade com as audiências e por matrizes culturais diversas.


Tentamos, assim, a articulação entre a análise estilística e análise cultural
das materialidades televisivas, assinalando a nossa contribuição meto-
dológica.

2. “A natureza não é hostil”


Para efeito das análises que seguem, colhemos do evento uma série
de elementos que nos auxiliam no gesto interpretativo. Para o quadro a
inspiração foram as técnicas de análise de cena de McKee (2006, p. 244),
nós dividimos o evento narrativo em cinco etapas, a partir de espaços
físicos definidos: o solar dos Sá Ribeiro, em Salvador; o Raso da Cata-
rina; a travessia de balsa no rio São Francisco; o canal da transposição e a
Fazenda N.S. das Grotas. Em cada um desses espaços há situações espe-
cíficas que desencadeiam mudanças de comportamento, na progressão
do evento narrativo (Figura 2).
O evento posto escrutínio envolve a viagem de carro que mãe e
filho empreendem partindo do Solar dos Sá Ribeiro à Fazenda N.S. das
Grotas. Durante a travessia, à moda dos filmes de estrada (road movies),
eles cruzam uma extensa área do bioma Caatinga. Tomado em sua
extensão, que varre três capítulos, trata-se de um evento circular, isto é,
ele começa em uma propriedade da família Sá Ribeiro para se encerrar
em outra. Mesmo no momento da travessia, em si, a estrada que singra
a caatinga está no início e no encerramento da jornada. Esse movimento
é por carro, na estrada, e balsa, na travessia do rio.
A partir da Física, compreendemos o movimento como a mudança
na posição espacial de um objeto no decorrer do tempo. Assim, há
um importante cadenciamento dos tempos das personagens (passado,
presente e futuro), das estruturas e espaços socioculturais que elas veem
a representar e o conflito geracional que elas encenam frente ao tema
da terra. Mais adiante, veremos como o figurino funciona na expressão
dessas temporalidades e espacialidades. Por essa visada que contempla o
movimento, a menção aos filmes de estrada se justifica, pois, conforme
Susan Hayward (2000) esclarece, esses filmes são sobre uma espécie de
fronteira objetiva e subjetiva que as personagens cruzam no decurso de
uma jornada.
MIGUEL E A TRAVESSIA DA CAATINGA 93

FIGURA 2: Miguel e a travessia da caatinga


FONTE: Autoria própria

De modo complementar, Mariana Gonçalves (2014) explica que o


filme de estrada apresenta um tipo de história em que a personagem
se transforma, se desenvolve ou se aprimora no curso da viagem. As
narrativas desse gênero no cinema raramente são guiadas por conflitos
externos. São os conflitos internos que consomem as personagens e que
as motivam a pegar a estrada. E, assim, muitas vezes, a crise de iden-
tidade do protagonista acaba refletindo a crise de identidade de uma
cultura, de um país (GONÇALVES, 2014, p. 24).
As personagens do evento extraído da telenovela Velho Chico parecem
não exceder esse código. Reunir mãe e filho na estrada é reunir, não
só, o eventual conflito de gerações, mas, também, os conflitos internos,
pessoais e extra-pessoais dessas personagens. Em cada uma das cinco
etapas do trajeto, observamos aquilo que McKee (2006) denomina como
beats, ou seja, mudanças de comportamento.
De um lado, Maria Tereza e seu ímpeto conciliador que evita embates
com pai, nesta altura do enredo. O tema da terra em Velho Chico passa
pelo tema da consanguinidade que, sob acepção jurídica diz da condição
de parentesco por linhagem paterna, notadamente. Em termos das
matrizes culturais, a consanguinidade está no esteio do patriarcalismo -
aqui representado pelo Coronel Saruê.
No início do evento, o Coronel Saruê, com ansiedade, reclama a
presença do neto para forjar nele um herdeiro. É neste ponto que o
conflito interno de Maria Tereza começa a tensionar os conflitos pessoais
94 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

(família) e extra-pessoais (sociedade), e isso passa pela consanguinidade


patriarcalista. No retorno à Grotas, Tereza está dividida entre revelar a
verdadeira paternidade de Miguel, o único neto de Afrânio, ou manter
as convenções – ação que ela empreendeu, quando adolescente, e que a
separou de Santo, o amor impossível8. Tereza é pressionada pelo marido
Carlos Eduardo (Marcelo Serrado) e pelo pai, no sentido da preservação
da família e da instituição que ela vem a representar para economia
municipal e para a política estadual.
Como intermediária e mensageira, Tereza, mesmo contra sua
vontade, esconde o seu passado do filho e obedece ao pai, conduzindo
Miguel de Salvador até Grotas. No trajeto, a mãe dá pistas ao filho de que
o destino final da viagem pode ser transformador para todos – assim
se efetiva o melodrama. Constatamos isso nos momentos em que ela
confronta as ideias do filho com frases como: “como eu me arrependo de
algumas escolhas que eu fiz” (no capítulo 39, ainda em Salvador) e “me
convencer disso é fácil, quero ver convencer seu avô” (no capítulo 40, em
plena caatinga). O presente de Tereza é repleto de passado e o dilema da
personagem se desenha no gesto de levar o filho-matéria-prima para o
coronel-matriz que forjará o coronel-cópia e, assim, a hereditariedade e
longevidade do mandonismo.
Os conflitos extra-pessoais de Tereza, esses que levam ao antago-
nismo com as instituições sociais (que o pai e o marido representam)
e com o ambiente (físico, social e político) estão tamponados, neste
momento da história, por conflitos internos (corpo, mente e emoções).
Na economia deste momento da narrativa, o antagonismo de Tereza é
com ela mesma – a se vencer essa etapa, a próxima parada será a dos
conflitos pessoais e dali para os extra-pessoais – conforme a descrição
de McKee para os Três níveis de conflito (2006, p. 176). Por essa razão,
o comportamento de Tereza, no Solar dos Sá Ribeiro, é de melancolia
e avança para estranhamento (com as ideias do filho), para esperança
(quando na balsa, ela vislumbra uma possibilidade de mudança), para
terminar em agonia (ao chegar à fazenda).

8. A rivalidade entre os Sá Ribeiro e os Dos Anjos atravessou décadas, gerou mortes e


inviabilizou a união de Tereza e Santo.
MIGUEL E A TRAVESSIA DA CAATINGA 95

Já Miguel alimenta-se de um entusiasmo que se projeta contra o


processo de deterioração ambiental provocado pelo uso insusten-
tável dos recursos naturais da caatinga. Ele não tem consciência, neste
momento, que está em antagonismo com o próprio avô, o Coronel
Saruê. A travessia pelo tropical semiárido da caatinga faz a temperatura
emocional de mãe e filho se elevar progressivamente a partir da chegada
na região do Raso da Catarina9, trilha de dois personagens históricos
controversos: Antônio Conselheiro (final do século XIX) e Lampião
(entre 1890 e 1940).
Na travessia do Raso da Catarina ocorre a primeira mudança no
comportamento das personagens. Ao lembrar que Lampião e seu bando
despistaram a volante, por anos, exatamente por conhecerem bem a
região, Tereza profere a seguinte sentença:

TEREZA - A natureza aqui no Raso da Catarina é hostil, né? Por isso


que ele escolheu como esconderijo. (T) Pra Lampião, aqui era quase
como um santuário.

MIGUEL - Mãe, a senhora vai me desculpar, mas a natureza não é


hostil. Hostil é a maneira do homem de olhar para ela.

(Tereza franze o cenho e afaga a cabeça do filho num gesto afirmativo)

Aqui está o primeiro beat de Tereza, ela atravessa o limiar da melan-


colia para o estranhamento quando Miguel descreve o modo de cultivo
tradicional (da colonização) na caatinga como uma prática hostil, isto
é, agressiva com o bioma. Dessa forma, ele faz Tereza se confrontar com
a estrutura personalizada de poder corporificada no Coronel. Desse
confronto, a estrutura do saber tácito está em xeque.

MIGUEL - O fruto do mandacaru, por exemplo, minha mãe, em mui-


tos lugares é uma iguaria. Enquanto o povo daqui, quando vão plan-
tar roça, derrubam tudo!

TEREZA - Mas, meu filho, é o único jeito de se produzir nessa terra...

9. Localizado entre os municípios de Paulo Afonso, Jeremoabo, Canudos e Macururé, na


Bahia.
96 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

MIGUEL - Oxe, não é não, mainha!... Não é o único jeito e nem é o


melhor de produzir!

TEREZA - Miguel, me convencer é fácil. Agora, eu quero ver você


convencer seu avô. (T) Coronel Saruê não tá preocupado em preser-
var nada, muito menos a caatinga. Sabe o que ele diz? Que essa terra
não presta pra nada, nem pra encher os olhos! É assim que ele fala.

Ao sentenciar que hostil não é a natureza, mas a maneira como o


homem lida com a terra, Miguel sinaliza uma tomada de consciência
que o distancia da mãe. Quando ambos saem do carro, Miguel está
descalço, em proximidade com a terra; já a mãe está vestida da experi-
ência desde a caatinga assinalando para o elemento ausente/presente: o
avô. É sugestivo o momento em que ela assevera: “Coronel Saruê não tá
preocupado em preservar nada”. Tereza sabe que as ideias do filho vão
contrastar com as concepções tradicionais do avô.
Aqui temos em cena o embate de três perspectivas: a moderna (euro-
peia) que vem instaurar um projeto, sem necessariamente, observar a
realidade desde o local; a conciliadora que antevê o conflito e age numa
negociação sinuosa, pois esse conflito pode desestruturar a unidade,
mesmo familiar; e a tradicional/arcaica que rechaça quaisquer altera-
ções no estado das coisas. Respectivamente, Miguel, Maria Tereza e o
Coronel.
O encontro marcado por essas três perspectivas faz as matrizes cultu-
rais ascenderem, pois, é possível a associação ao curso da modernidade
latino-americana, definida como inconclusa, irregular e absurda. Como
lembra Nelly Richard (1996, p. 277), como o resultado de um amálgama
de signos históricos e culturais que realiza a liga de tradição e moderni-
dade entre si, “atraso e avanço, oralidade e telecomunicações, folclore e
indústria, mitos e ideologia, ritos e simulacro”.
Com isso, nos termos de Canclini (1997, p. 83), a “sinuosa moder-
nidade latino-americana” e o processo de modernização tecnológica
– redes e meios de comunicação, instituições políticas e econômicas
etc. – envolvem as “tentativas de intervir no cruzamento de uma ordem
dominante semi-oligárquica, uma economia capitalista semi-industria-
lizada e movimentos sociais semi transformadores”. Na América Latina,
MIGUEL E A TRAVESSIA DA CAATINGA 97

segundo Canclini (1997, p. 17), “as tradições ainda não se foram e a


modernidade não terminou de chegar”. Quando Tereza admite que as
ideias do filho a deixam confusa, o olhar dela para o filho é um misto de
melancolia e preocupação, pois o tensionamento é iminente.
Nesse ínterim, o Coronel Saruê está na expectativa da chegada do
seu herdeiro. Durante a travessia de Tereza e Miguel, Saruê pouco altera
o comportamento, a ponto de ir da alegria para a tristeza, por exemplo.
Ele é mais estável, nesse sentido. Na progressão do evento, ele avança
da ansiedade (pré início da travessia, quando ordena que Tereza leve
o neto até ele), para a felicidade (quando a travessia começa), para a
vaidade (durante a travessia de balsa e demonstrada entre a gente de
Grotas) até o êxtase (na festa de recepção na fazenda). No capítulo 41,
uma sequência merece especial atenção para compreendermos o valor
da chegada de Miguel para o Coronel Saruê e como isso funciona para
a expressão do mandonismo que essa personagem vem a representar.
Enquanto Miguel e Tereza cruzam o Raso da Catarina, Saruê decide ir
ao bar de Chico Criatura (Gésio Amadeu), no centro de Grotas.
O Coronel chega numa range rover e apresenta-se de modo imponente
e velhaca. O aspecto mais visível disso é o figurino dessa personagem,
mistura anacrônica de elementos contemporâneos e outros unfashiona-
bles – o carro funciona quase com uma extensão dessa composição: ele
denota o contemporâneo em conjunto com a indumentária que forja o
arcaico. Trataremos dos pormenores do figurino, mais adiante.
Em plano sequência e em contra-plongée, ele chega lançando
moedas no ar para as crianças e ri do alarido que elas fazem para pegá-
-las. Depois, ainda no mesmo plano e enquadramento, na porta do bar,
ele se aproxima de um conjunto de cantadores que tocam uma sanfona,
um pandeiro e um reco-reco. O coronel saca do casaco uma bolada e
tira uma nota de cem reais e deposita no pandeiro e o músico agra-
dece. Dentro do bar, estão Chico Criatura com Santo no balcão e, mais à
frente no quadro, numa mesa, duas duplas num carteado. O Saruê entra
pisando duro, acompanhado do jagunço Cícero (Marcos Palmeira),
que fica na porta. Diante do silêncio de todos, o Coronel saúda: “Salve,
salve, meu povo!”. O Coronel aqui assume duas performances mali-
ciosas e passivo-agressivas: uma quando tenta provocar Santo para um
98 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

confronto (o desafeto sai do bar para evitar isso); e outra quando tenta
se impor a ponto de sentir uma deferência das pessoas no lugar. Ambas
têm um só objetivo: demonstrar seu poder.
O jogo de cartas nos parece sugestivo. Ainda com Santo em cena,
de costas para a mesa de jogo, e com o Coronel de frente a ela. Há a
figuração desse momento de blefe do Coronel, afinal, ele está ali para
reafirmar o seu poder como quem tem a maior cartada da mesa: o
herdeiro. É quando Santo sai de cena – o jogador que aguarda o melhor
momento para jogar. Já o Saruê lembra aquele jogador que não recua,
apenas faz dobrar a aposta. Essa provável associação de Miguel como o
trunfo, o naipe que prevalece sobre os demais fica mais evidente quando
o Coronel assegura a Chico Criatura: “Ele veio com tanto diploma, mais
tanto diploma, que vai faltá parede lá em casa pra pendurá! (ri alto)”.
Em cena, o poder e a continuidade. O Coronel garante a todos
da fazenda e cidade como o seu único neto dará continuidade à sua
linhagem e riqueza ao aceitar tomar conta da fazenda. Não é à toa que ao
ser questionado por Chico Criatura: “E o amigo tá pensando em amarrá
seu jegue num rego de água fresca quando o Saruezinho chegá?” - ao
que o coronel responde: “Quando ele tivé pronto, Chico... Quando tivé
pronto!”. Aqui se confirma o medo de Maria Tereza, a despeito de quais-
quer qualificações que credenciam Miguel para a administração das
terras da fazenda, ele vai ter que assumir a armadura do Coronel Saruê,
assim como Afrânio o fez nos anos 1960. A matriz cultural como forja,
o molde que gera cópias.
O Coronel Saruê apesar da alcunha que ostenta não é uma expressão
do coronelismo, mas do mandonismo e aqui precisamos recorrer ao
conceito. De acordo com José Murilo de Carvalho (1997), o mandonismo
se refere às estruturas oligárquicas e personalizadas de poder arbitrário.
Geralmente, o mandão é o indivíduo que tem a posse de algum recurso
estratégico para o ciclo econômico. Há várias designações: mandão,
potentado, chefe, caudilho, capo e coronel10. Assim, o coronelismo seria

10. No caso brasileiro, o termo coronel deriva dos títulos da Guarda Nacional, criada no
Império. De acordo com Carvalho (1997), essa instituição patrimonial foi um mecanismo
de cooptação dos proprietários rurais que compravam suas patentes e tinham o controle
da população local.
MIGUEL E A TRAVESSIA DA CAATINGA 99

um momento datado do mandonismo que teria começado nos anos


finais do Império e terminado nos anos 1930, no Estado Novo.
No caso de Velho Chico, bem como as demais tramas listadas no
quadro da Figura 1, esse recurso estratégico é a terra. É em torno dela
que gravita um conjunto de relações que Lilia Schwarcz (2019) localiza
como raízes do autoritarismo brasileiro: escravidão e racismo, mando-
nismo, patrimonialismo, corrupção, desigualdade social, violência, raça
e gênero e intolerância. Essas raízes conformam uma narrativa histórica
e de projeção simbólica do “mundo de antes” estritamente hierarqui-
zado que enaltece uma pretensa harmonia social “capaz de assegurar
a continuidade desse mundo que na verdade nunca existiu” (2019, p.
225) – um mundo glorioso passado, a lenda, expressa, por exemplo, nas
insígnias de poder que o Coronel Saruê ostenta, quer seja no figurino ou
até mesmo nos diplomas do neto.
Mas essa telenovela vem a destacar não só a terra, mas também,
um recurso (algo miraculoso) fundamental: a água. Tema central no
momento em que Maria Tereza e Miguel alcançam a travessia de balsa
pelo rio São Francisco. Este é o momento em que ambos se transfiguram:
Miguel passa da empolgação para a tristeza; Tereza do estranhamento
para a esperança. Diante de um rio que está secando, Miguel tece uma
série de considerações sobre o progresso que destrói o meio ambiente
e o ser humano, por via de consequência: “Não tenho pena do rio, não,
mãe. Eu tenho pena é do homem! (...) No dia que o Velho Chico se for,
mãe, ele vai deixar a sede no seu lugar! A fome!”.
Diante da tristeza do filho, Tereza surpreende com o comportamento
de esperança frente à crescente seca do São Francisco. Ela consola o
filho postando a mão sobre o ombro dele e dizendo: “Esse dia ainda
não chegou, meu filho. Talvez a gente consiga se redimir. Velho Chico
não desistiu de nós!”. Neste momento, a matriz do realismo maravi-
lhoso11 (CHIAMPI, 1980) ganha o espaço de cena, pois observamos

11. Na crítica literária, o realismo maravilhoso designa a não disjunção entre o natural e o
sobrenatural e expressa uma tomada de posição de romancistas (Alejo Carpentier, Gabriel
García Márquez, entre outros) e demais artistas latino-americanos (entre 1940 e 1970)
ante a narrativa realista de matriz europeia, ao transgredir o real sem romper com ele, e
a afirmação de uma América Latina de origem mestiça, um continente complexo onde
convivem o moderno e o arcaico; a razão e os mitos.
100 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

a não disjunção entre o histórico e o miraculoso, entre o racional e o


imaginário. Essa é, pois, outra característica do estilo de Benedito Ruy
Barbosa ao criar histórias para a televisão. Em Velho Chico, como ocorre
em obras anteriores como Renascer (1993), em que a existência do
maravilhoso é observável, é classificável, mas não é questionada. Assim,
diversas estruturas sincréticas da cultura popular – o Velho Chico, o rio
– estão inseridas no enredo e convivem com estruturas do pensamento
científico - aqui representado por Miguel.
O evento se encerra com a chegada do herdeiro à fazenda. Há uma
festa ocorrendo com fartura de comida, bebida, música, dança e aberta
para a elite e povo do lugar. Diante dos olhares maliciosos de Carlos
Eduardo e angustiados de Maria Tereza, Miguel é recepcionado pelo
avô: “Meu neto!”. O jovem é enlaçado pelo braço do Coronel Saruê e
conduzido à presença dos convidados ilustres da festa - a corte real. Na
cena seguinte, avô e neto dançam e o coronel assenta o seu chapéu sobre
a cabeça do neto, num gesto de coroação, de passagem simbólica do
poder.
Aqui é necessário pontuar a potência que o figurino assume na cons-
trução da experiência visual, em Velho Chico, sob a direção artística de
Luiz Fernando Carvalho e o figurino de Thanara Schönardie.

3. Notas sobre o figurino: espacialidades e temporalidades


No site do diretor Luiz Fernando Carvalho12, podemos visualizar os
cadernos de anotações que descrevem o processo criativo em desenhos
a partir das personagens, seus trajes e caracterizações. São páginas ilus-
tradas e com apontamentos tanto sobre a narrativa quanto da visuali-
dade pretendida (Figura 3).

12. Disponível em https://luizfernandocarvalho.com/projeto/velho-


chico/#processocriativo
MIGUEL E A TRAVESSIA DA CAATINGA 101

FIGURA 3: Sketchbook do diretor artístico


FONTE: site Luiz Fernando Carvalho

Neles verificamos como o diretor artístico interpreta a sinopse da


telenovela e elabora sua representação a partir do conceito “Fábula da
terra - fábula subterrânea”. A partir da análise do evento e da leitura dos
cadernos, constatamos que já em sua concepção inicial o figurino da
telenovela não demarca espaços e tempos da narrativa. Entendemos o
figurino como mais um elemento de antropofagia nesta obra. Em Velho
Chico o figurino funciona, não só, para traduzir os “tipos sociais”, mas
sobretudo a tradução dos estados da alma que alcançam uma dimensão
simbólica. De forma complementar a esse raciocínio, constatamos que o
figurino adianta os conflitos das personagens.
Podemos, por meio do figurino e da caracterização das três persona-
gens envolvidas nesse evento, ter informações privilegiadas de suas dife-
renças, antes mesmo do próprio embate entre elas – conforme podemos
visualizar na Figura 413. Até mesmo antes do texto da novela nos dizer,
podemos ver que cada uma das personagens habita um universo muito

13. A TV Globo detém o Direito Autoral das imagens usadas neste artigo. Conforme
orientações da Globo Universidade, há, nas imagens, a marca d’água da emissora.
102 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

particular e distinto. Se partirmos das dimensões do figurino, propostas


por Fausto Viana (2010), observamos que os figurinos de Miguel, Maria
Tereza e Coronel Saruê excedem localização, período histórico, época
do ano, hora do dia e ocasião, sexo, gênero e fatores psicológicos.
Miguel e Maria Tereza usam o mesmo figurino durante toda a
travessia. Miguel está de calça preta, camisa de algodão de botões, cor
berinjela, com gola ampla e desconstruída, de comprimento assimétrico
e ajustada ao corpo, e tênis preto. Sua caracterização apresenta cabelo
cacheado, corte médio e assimétrico, barba e bigode, levemente deslei-
xado. Seu figurino traz vários elementos da moda agênero, sobreposições
e ainda adiciona peças no estilo upcycling14 - que condiz com sua defesa
de melhor aproveitamento dos recursos naturais e respeito à natureza.
O figurino e caracterização de Miguel trazem elementos de quem a sua
personagem é no mundo: um jovem de seu tempo, descolado, aberto às
novas ideias e atento aos processos mais orgânicos e naturais - desde o
manejo da terra até seu guarda-roupa. No caderno de anotações, há um
desenho do rosto de Miguel, sem descrição.
Também a partir do figurino de Maria Tereza, principalmente pelos
detalhes, economia de acessórios, delicadeza dos tecidos e caimentos de
suas roupas, conseguimos conhecer mais sobre a personagem. Nas cenas
analisadas, ela usa uma calça pantalona de seda, cor champagne, uma
camisa acetinada, com listras verticais, sem mangas e uma gola de efeito
assimétrico que contorna suas costas e volta à frente como um laço
lateral, marcando a cintura. O destaque desta peça é o recorte que deixa
a metade de suas costas à mostra num desenho assimétrico. Seus cabelos
estão levemente presos e a personagem usa somente brincos pingentes
delicados de pedras como acessório. A maquiagem é simples, delicada,
em tons mais terrosos na sombra e no batom. O que destaca em seu
figurino é a leveza dos tecidos unida à ousadia dos cortes, mostrando
que Tereza une delicadeza e força, sofisticação e simplicidade em seu
espírito. A personagem veste peças clássicas, mas sempre numa versão
menos convencional. Como intermediária nesse embate moderno

14. Upcycling é um segmento da moda, muito praticado na Europa, de reutilização e


modificação de roupas já existentes em peças novas, totalmente diferentes do original.
Tem por objetivo incentivar o consumo consciente da moda.
MIGUEL E A TRAVESSIA DA CAATINGA 103

versus arcaico, ela une o estilo clássico, feminino à cortes modernos e até
mesmo algumas peças ditas masculinas, como suspensórios e coletes.
No caderno de anotações, há uma página e uma ilustração dedicadas à
Tereza com a seguinte descrição: “Belle Époque - personagem atemporal
- romanticamente trágica”.
Por sua vez, o Coronel Saruê em seu figurino e caracterização para
a festa, não se distingue muito dos trajes utilizados pela personagem
em outras ocasiões da trama: peruca na cor acaju, camisa de linho rosa,
gravata azul estampada, bombacha de linho amarelo e sobretudo verde
musgo. Os detalhes do excesso dos acessórios também são importantes e
imponentes na construção da imagem de Coronel: prendedor de gravata
e abotoaduras de ouro, relógio de bolso com corrente de ouro, botas
de couro de cano alto (estilo campeira), anel de ouro, cinto de couro,
chapéu de palha - único item deste figurino condizente com o clima da
região - e charuto.
Quantas temporalidades há nesse figurino? O tempo do poder, talvez.
Toda a pompa, as camadas de roupas e o excesso de elementos em seu
visual (com destaque para a peruca que esconde os cabelos brancos)
evidenciam a personagem como uma figura de poder, impositiva, mas
decadente, caricata que tenta um verniz de jovialidade. No caderno
do diretor, a descrição que acompanha o desenho do Coronel Saruê é:
“peruca - elemento palaciano - decadente - figura do patético”.
O universo plástico de uma obra audiovisual, seja ela filme ou tele-
novela, é construído pela Direção de arte em trabalho articulado com
figurinista, cenógrafo, maquiador e cabeleireiro etc. O figurinista
elabora, planeja e executa a criação de toda a vestimenta das persona-
gens e “colabora na composição visual das figuras em cena”, como define
Vera Hamburger (2014, p. 27). Ao mesmo tempo que reforça a narração
mediante a criação de personagens críveis, o figurino também propor-
ciona um equilíbrio dentro da composição do quadro (fotograma) com
o uso da cor, da textura, da silhueta, dentre outros. Como bem define
Hamburger, o figurino é “um ponto ativo do quadro” (2014, p. 47).
Destarte, o figurino vai além do que a personagem veste. Ele também
se configura como uma porção do espaço do campo, uma superfície na
qual se pode desenhar, criar, incluir informação visual, cor, estampa,
104 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

grafismos, linhas, etc. Além de ajudar na construção de personagens


autênticas, o figurino contribui em cada fotograma, com coesão e um
atrativo visual a cada cena. O figurino pode dar o tom da cena - princi-
palmente quando se tem planos mais aproximados em que se mostram
somente a personagem no espaço, tornando o figurino o meio de
expressão da obra.
Em Velho Chico, não é diferente. Juntos às paisagens naturais e os
cenários criados em estúdio, o figurino elaborado por Thanara Schö-
nardie investe em efeitos, camadas e volumes que expressam grandi-
loquência visual presente na telenovela. E isso independente da época
retratada em cada fase do enredo. Durante a travessia do herdeiro, temos
as três personagens com caracterizações identitárias de suas posturas na
trama e com trajes que reforçam e amplificam seus sentidos da narrativa.
Marcel Martin (1985) apresenta o vestuário como um dos elementos
que participam da criação da imagem e do universo fílmico como
aparecem na tela. Ao conjunto desses elementos, ele nomeia como “não
específicos”, exatamente para destacar que alguns são utilizados não
exclusivamente pelo cinema.

Num filme, o vestuário não é jamais um elemento artístico isolado.


Deve-se considerá-lo em relação a um certo estilo de direção, cujo
efeito pode aumentar ou diminuir. Ele se destacará dos diferentes
cenários para pôr em evidência gestos e atitudes dos personagens,
conforme sua postura e expressão. Por harmonia ou por contraste,
deixará sua marca no grupamento dos atores e no conjunto de um
plano. (EISNER apud MARTIN, 1985: pp. 60-61)

Martin distingue e define três tipos possíveis de figurino. O realista


segue a realidade histórica e o “figurinista se reporta a documentos de
época e demonstra a preocupação de exatidão ante as exigências indu-
mentárias dos artistas”. O para-realista se inspira na moda da época,
mas com uma estilização e “a preocupação com o estilo e a beleza preva-
lece sobre a exatidão pura e simples: as indumentárias possuem então
uma elegância atemporal”. O simbólico não se importa com a exatidão
histórica e “o vestuário tem antes de tudo a missão de traduzir simbo-
licamente caracteres, tipos sociais e estados de alma” (MARTIN, 1985,
p. 61).
MIGUEL E A TRAVESSIA DA CAATINGA 105

A partir da análise dos figurinos das três personagens, entendemos


o figurino da novela como simbólico e, por vezes, para-realista. Pois,
os trajes de cenas de Miguel, de Tereza e do Coronel Saruê revelam e
refletem dados importantes de suas personalidades e de seus conflitos
internos, pessoais e extra-pessoais.

FIGURA 4: Detalhes de figurino de Miguel, Tereza e Saruê


FONTE: TV Globo

4. Considerações finais
O trajeto metodológico aqui exercitado partiu da observação da
presença de elementos textuais e visuais que apontavam para o embate
entre o arcaico e o moderno, na telenovela Velho Chico. Assim, o passo
seguinte foi um esforço analítico que partiu das imagens num evento
narrativo específico extraído desta telenovela. A partir do cruzamento
de aportes dos Estudos Visuais e da Teoria Crítica Latino-americana
106 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

tentamos ter as imagens como guias que nos apontassem as matrizes


culturais.
Ao nos depararmos com a experiência visual, os elementos que
compõem o figurino das três personagens aqui analisadas nos apontaram
para decisões estéticas que investiram no simbólico e no para-realista.
A caracterização dos trajes excede as representações de tipos sociais,
de gênero e de geração para a expressão da alma dessas personagens
(seus conflitos). Assim, esse figurino aponta para a crise do arcaico e do
moderno, brasileiro e latino-americano, reunindo em sua composição
diferentes temporalidades e espacialidades. Velho Chico integra uma
geração de telenovelas cuja direção artística é creditada. O diretor Luiz
Fernando Carvalho assina uma concepção estética e um estilo próprio
na caracterização da história e das personagens e transita pela criação
do figurino, entre outras funções como a cenografia, por exemplo. Isso é
feito a partir de determinados conceitos para a obra (“Fábula da terra -
Fábula subterrânea”), como podemos constatar em seu sketchbook.
O Coronel Saruê tem em sua caracterização o amálgama de
elementos palacianos, decadentes e remanescentes do autoritarismo e
do mandonismo à brasileira, pois, se ajusta em diferentes momentos da
economia e da política, caso as estruturas de concentração fundiária não
se alterem (CARVALHO, 1997). O figurino de Saruê engessa, assim a
personagem representa o passado no presente. Já Maria Tereza, por sua
vez, funciona como uma agente intermediária que habita num entre-
-lugar do passado-presente, principalmente, em relação à paternidade
do herdeiro - bem ao gosto dos melodramas televisivos. O figurino de
Tereza é fluído, acompanha os seus movimentos enquanto a personagem
realiza um equilíbrio de forças do arcaico e do moderno - esse Brasil na
corda bamba. Ou seja, a posição dela não é confortável, esse entre-lugar
é prenúncio do conflito iminente que exigirá um posicionamento.
Por fim, Miguel, o proclamado herdeiro, traz os ares de moderni-
dade que tensionam as estruturas de poder e questionam a tradição quer
seja na lida da terra, do papel do masculino e do afeto que o integra à
caatinga (ao andar descalço pelo solo) e às demais personagens que estão
em antagonismo com o avô. O figurino upcycling e suas peças agêneras
moldam uma outra expressão masculina. Num evento seguinte, quando
MIGUEL E A TRAVESSIA DA CAATINGA 107

eclode um desentendimento entre ele e o avô, a postura de Miguel ainda


é pelas vias de um acolhimento e não pelas vias da violência e da hosti-
lidade que forjam um Coronel Saruê. Ele quer romper estruturas do
passado sem negar ou esquecer que elas existiram. O objetivo da perso-
nagem é edificar um futuro com mais água, mais terra, mais sensibili-
dade e diversidade.
108 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

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VIANA, Fausto. Figurino teatral e as renovações do século XX. São Paulo:


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Capítulo 6

Superamigos e as três dimensões


do espetáculo de caridade
Marcelo Travassos da Silva
#televisão #HQ #personagenstransmídia

1. Introdução
Entre os acadêmicos em geral nem sempre elementos da cultura de
massa, como as narrativas com linguagem de quadrinhos são devida-
mente reconhecidas como gênero textual e discursivo capaz de trans-
mitir mensagens relevantes ao cidadão comum. Muitos deles relacionam
esse tipo de leitura apenas com momentos de lazer e entretenimento,
sem considerar os temas abordados nas páginas de jornais e revistas.
Segundo Goidanich (2014), as histórias em quadrinhos (HQs),
como se conhecem hoje, são frutos do jornalismo moderno. Na última
década do século XIX, Joseph Pulitzer e William Randolph Hearst, os
mais poderosos proprietários de cadeia de jornais dos Estados Unidos,
brigavam pela conquista de um maior público. Para atrair um público
consumidor de massa semialfabetizada e também os imigrantes, que
tinham dificuldade com o inglês, os empresários criaram os suplementos
dominicais. A grande parte do material destes Sundays era formada por
narrativas figuradas, bem ao estilo europeu. Foi destes suplementos que
surgiu, em 1895, o personagem de Richard Outcault, The Yellow Kid (o
garoto amarelo). No princípio, a figura fazia parte de um painel maior.
112 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

O sucesso levou Outcault a produzir algum material semanal com The


Yellow Kid, existiam a partir de pequenas histórias distribuídas em
quatro ou mais imagens. Em certos momentos, o garoto amarelo falava
em balões, ou seja, uma linguagem gráfica dos HQs na qual existe uma
narrativa verbal dos personagens. Estava lançada a nova moda. Não
havia mais textos ao pé das imagens.
Ainda segundo Goidanich (2014), no começo do século XX, as
imagens em quadrinhos já existiam tanto diariamente como em páginas
dominicais. Todas eram narrativas alegres, com situações cômicas,
daí o nome como são chamados até hoje os quadrinhos nos Estados
Unidos, comics. Esses comics essencialmente de jornais passaram a ser
publicados em duas modalidades: Daily strips (tiras diárias em preto
e branco) e Sunday pages (suplementos dominicais a cores). Uma das
histórias mais antigas do gênero, The Katzenjammer Kids (Os Sobrinhos
do Capitão), criação original de Rudolph Dirks, resistiu por mais de
oitenta anos.
Continuando em Goidanich (2014), para melhor organizar uma
distribuição das histórias em quadrinhos, Hearst e Pulitzer criaram
os syndicates. A mesma história era enviada para vários jornais e seus
criadores (em geral um roteirista e um desenhista) ganhavam percen-
tagem sobre as vendas. Isto deu enorme força à “nona arte”, atraindo
artistas plásticos e ilustradores para os comics. E se desenvolveram os
gêneros, todos cômicos: Kids strips (tiras de garotos), animal strips (tiras
de animais), family strips (tiras da família), girl strips (tiras de garotas) e
algumas misturas como boy-family-dog-strips (tiras de garotos, família,
cachorro e garotas).
Até a década de 1920, os quadrinhos lidavam essencialmente com
um humor conclusivo em poucas imagens. Com o passar dos anos,
inovadores foram criando uma narrativa que “continuava” no próximo
dia, aumentando a atração pela leitura. Bem no final da década, a aven-
tura introduziu-se nos comics, em personagens como Wash Tubbs
(Tubinho), de Roy Crane; Tarzan, de Harold Foster; Tim Tyler Luck
(Tim e Tom), de Lyman Young e, principalmente, Buck Roger, de Phil
Nowlan e Dick Calkins. Essa última foi a primeira história de ficção
científica em quadrinhos. Estava ganho o espaço e popularizada essa
SUPERAMIGOS E AS TRÊS DIMENSÕES DO ESPETÁCULO DE CARIDADE 113

nova forma de literatura em imagens, uma nova forma de linguagem


para diversos públicos (GOIDANICH, 2014, p. 9).
Em se tratando das Histórias em Quadrinhos, não apenas a arte
verbal está presente, mas também a arte pictórica, haja vista que estas
podem ser lidas através de dois importantes dispositivos de comuni-
cação: palavras e imagens (EISNER, 2001).
Essa mistura especial de duas formas distintas não é nova. A inclusão
de inscrições, empregadas como enunciados das pessoas retratadas
em pinturas medievais, foi abandonada, de modo geral, após o século
XVI. Desde então, os esforços dos artistas para expressar enunciados,
que fossem além da decoração ou da produção de retratos, limitaram-se
a expressões faciais, posturas e cenários simbólicos. O uso de inscri-
ções reapareceu em panfletos e publicações populares do século XVIII.
Então, os artistas que lidavam com a arte de contar histórias, desti-
nada ao público de massa, procuraram criar uma linguagem coesa que
servisse como veículo para a expressão de uma complexidade de pensa-
mentos, sons, ações e ideias numa disposição em sequência, separadas
por quadros. Isso ampliou as possibilidades da imagem simples. No
processo, desenvolveu-se a moderna forma artística chamada de histó-
rias em quadrinhos (EISNER, 2001, p. 13).
A nova forma de expressão artística se popularizou pelo mundo,
como cultura de massa, principalmente através da imprensa, sendo
consumida em momentos que não envolvem trabalho, mas o lazer. O
lazer moderno não é apenas o acesso democrático a um tempo livre que
era privilégio das classes dominantes. Ele saiu da própria organização do
trabalho burocrático e industrial. O tempo de trabalho enquadrado em
horários fixos, permanentes, independente das estações, se retraiu sob
o impulso do movimento sindical e segundo a lógica de uma economia
que, englobando lentamente os trabalhadores em seu mercado encontra-
-se obrigada a lhes fornecer não mais apenas um tempo de repouso, mas
um tempo de consumo (MORIN, 1969, p. 71).
Mesmo sendo lidas em momentos que não envolvem trabalho, as
histórias em quadrinhos abordam temas que se relacionam com a reali-
dade social dos trabalhadores que as consomem e dos produtores desse
114 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

tipo textual, abrindo a possibilidade para análise e interpretação crítica,


de acordo com a teoria proposta por Fairclough.

2. Modelo tridimensional de análise crítica do discurso


O linguista britânico Norman Fairclough defende em seu livro
Discurso e mudança social a ideia de que a mudança social acontece a
partir do discurso. Na sua concepção, as relações de poder influenciam
a produção dos textos. A partir desse argumento, o autor criou o modelo
de análise que se estrutura em três dimensões, tendo início no texto,
depois prática discursiva e por fim, prática social. Tal modelo pode ser
representado graficamente pelo seguinte diagrama:

FIGURA 1: Concepção tridimensional do discurso


FONTE: FAIRCLOUGH, 2016, p. 101

Na análise deste artigo, o texto está presente na linguagem dos quadri-


nhos dos personagens da Liga da Justiça, combinando texto e imagem,
como foi dito anteriormente.
A prática discursiva é constitutiva tanto de maneira convencional
como criativa: contribui para reproduzir a sociedade (identidades
sociais, relações sociais, sistema de conhecimento e crença) como é, mas
também contribui para transformá-la. Por exemplo, as identidades de
professores e alunos e as relações entre elas, que estão no centro de um
sistema de educação, dependem da consistência e da durabilidade de
padrões de fala no interior e no exterior dessas relações para sua repro-
SUPERAMIGOS E AS TRÊS DIMENSÕES DO ESPETÁCULO DE CARIDADE 115

dução. Porém elas estão abertas à transformação que podem originar-


-se parcialmente no discurso: na fala da sala de aula, do parquinho, da
sala dos professores, do debate educacional e assim por diante (FAIR-
CLOUGH, 2016, p. 96).
É importante que a relação entre discurso e estrutura social seja
considerada como dialética para evitar os erros de ênfase indevida; de
um lado, na determinação social do discurso e, do outro, na construção
social do discurso. No primeiro caso, o discurso é mero reflexo de uma
realidade social mais profunda; no último, o discurso é representado
idealizadamente como fonte do social. O último talvez seja o erro mais
imediatamente perigoso, dada a ênfase nas propriedades constitutivas
do discurso em debates contemporâneos (FAIRCLOUGH, 2016, p.
96-97).
A prática social tem várias orientações – econômica, política,
cultural, ideológica – e o discurso pode estar simplificado em todas elas,
sem que se possa reduzir qualquer uma dessas orientações do discurso.
Por exemplo, há várias maneiras em que se pode dizer que o discurso é
um modo de prática econômica: o discurso figura em proporções vari-
áveis como um constituinte da prática econômica de natureza basica-
mente não discursiva, como a construção de pontes ou a produção de
máquinas de lavar roupa; há formas de práticas econômicas que são de
natureza basicamente discursiva, como a bolsa de valores, o jornalismo
ou a produção de novelas para televisão. Além disso, a ordem socio-
linguística de uma sociedade pode ser estruturada pelo menos parcial-
mente como um mercado onde os textos são produzidos, distribuídos e
consumidos como “mercadorias” (FAIRCLOUGH, 2016, p. 98).
Considerando o exposto sobre o modelo tridimensional proposto
por Fairclough, já se pode relacionar essa teoria com o texto visual e
ficcional dos personagens da Liga da Justiça, destacando as três dimen-
sões da narrativa selecionada para análise, chamada: “Da tevê para você!
Superamigos”.
A metodologia utilizada nesta análise é a de seleção e recortes de
trechos da narrativa com linguagem de quadrinhos. Neste artigo, eles se
dividem em sequências e quadros estáticos.
116 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

2.1 Análise da dimensão textual na narrativa dos Superamigos


Antes de tudo, é importante ressaltar que o texto presente em qual-
quer narrativa com linguagem de quadrinhos se caracteriza como texto
visual. Isso se deve ao fato de não possuir apenas palavras, mas também
imagens. Nem sempre a construção de sentido se baseia apenas no
léxico. Dessa forma, o gibi é considerado suporte de um gênero textual
específico.
Além da análise textual, as imagens também podem ser analisadas
criticamente, revelando mensagens nem sempre evidentes. A comu-
nicação visual pode expressar significado, por exemplo, “através do
uso de cores ou diferentes estruturas de composição” (KRESS; VAN
LEEUWEN, 2000, p. 2).
De acordo com a gramática do design visual, uma imagem representa
não só o mundo, de forma abstrata ou concreta, como também interage
com esse mundo, independentemente de apresentar um texto escrito ou
não. Essa imagem constitui um tipo de texto, podendo ser uma pintura,
uma propaganda na revista, por exemplo, que pode ser reconhecido pela
sociedade (Cf. SEIXAS, 2014).
A respeito da gramática das imagens, Kress e Van Leeuwen afirmam:

A gramática da imagem ou gramática visual (Kress; Van Leeuwen,


1990, 1996, 2006), como é amplamente reconhecida, parte do pressu-
posto de que imagens produzem significados e podem ser entendidas
enquanto textos visuais, que se organizam segundo alguns princípios
e regularidades, conforme os usos que fazemos delas em diferentes
situações. A denominação “gramática” indica as bases linguísticas
da proposta, que pode ser considerada uma extensão da gramática
sistêmico-funcional de Michael Halliday (1994; 2004). Tomando a
linguagem verbal como ponto de referência, portanto, a gramática
visual extrapola as noções de léxico e estrutura gramátical, tradicio-
nalmente associada a linguagem verbal, e sugere que as imagens têm
um equivalente a um léxico e uma estrutura gramátical. O léxico das
imagens estaria em seu potencial de representar participantes – pes-
soas, objetos, fenômenos – visualmente. Enquanto que, na lingua-
gem verbal, o léxico se realiza por meio de palavras, nas imagens, ele
equivale aos diferentes volumes e formas que podemos distinguir na
imagem. A gramática se materializa no modo como esses volumes e
SUPERAMIGOS E AS TRÊS DIMENSÕES DO ESPETÁCULO DE CARIDADE 117

formas retratados se combinam em orações visuais de maior ou me-


nor complexidade e extensão. (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006, p.1).

O reconhecimento do texto na imagem é importante para a signi-


ficação e decodificação da mensagem, entendendo a imagem como
elemento portador de sentido, mas que se fundamenta no texto.
Sabendo disso, o primeiro quadro estático selecionado para análise
é a capa da publicação que, além da imagem colorida, também possui
texto do narrador da história e dos próprios personagens:

FIGURA 2: Capa
FONTE: DC COMICS, 1978
118 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

O primeiro quadro estático traz a representação em forma de


desenho colorido dos personagens principais da narrativa. Nela, é
possível observar Superman e Mulher Maravilha na tela da televisão ao
fundo, enquanto um personagem com roupa azul e verde atira moedas
contra Batman e Aquaman, com uma mulher deitada no chão (Wendy)
e um homem sendo atingido também por moedas (Marvin). Cada um
dos super-heróis é representado com sua roupa característica, nas cores
azul, vermelho, cinza, verde, laranja e amarelo, por exemplo. Como
fundo da imagem, a cor amarela, que transmite a ideia de energia na
situação de conflito representada.
Além da imagem, textos estão presentes na capa. O primeiro deles se
encontra no canto esquerdo superior, a respeito do número de edição,
editora e valor da revista: Nº1, EBAL e Cr$ 6,00. Em seguida: Da tevê
para você! SUPERAMIGOS.
Também na capa, existem textos atribuídos aos personagens,
escritos dentro de balões característicos da linguagem das histórias em
quadrinhos. O primeiro desses textos representa a fala de Superman,
numa transmissão televisiva: Remetam os seus dólares de caridade para
os SUPERAMIGOS... A segunda fala, em forma de texto, é do perso-
nagem azul que atira, complementando o discurso do Homem de Aço:
...enquanto metralho os superamigos com estas moedas para matá-los!
No canto inferior esquerdo, o último texto presente na capa, traz
a voz do narrador esclarecendo a situação apresentada: “O Dr. Cifrão
ataca no show de caridade!”.
Após a capa, a primeira página da revista traz o segundo quadro está-
tico selecionado para análise, apresentando e representando o início da
narrativa com texto visual:
SUPERAMIGOS E AS TRÊS DIMENSÕES DO ESPETÁCULO DE CARIDADE 119

FIGURA 3: Segundo quadro estático selecionado


FONTE: DC COMICS, 1978
Nessa imagem, a situação representada traz um grupo de super-
-heróis aparecendo e falando numa transmissão midiática, de televisão,
enquanto é assistido pelo vilão da história, o Dr. Cifrão. Todos colo-
ridos, com as cores se destacando devido ao contraste com o fundo
preto da imagem. Os Superamigos são representados de forma alegre,
todos sorridentes, enquanto o antagonista demonstra raiva com o que
assiste. Para melhor compreender o início da narrativa, o texto escrito
é fundamental. No fundo amarelo, o texto é o seguinte: “Super-Homem!
Batman! Mulher Maravilha! Aquaman! Robin! No Salão da Justiça. Em
Gothan City, esses cinco poderosos heróis treinam dois adolescentes –
Wendy Harris e Marvin White – para combaterem o crime. Eles são os
SUPERAMIGOS”.
Abaixo desse primeiro texto, outros seguem, representando as falas
de personagens fictícios que participam do Superespetáculo de caridade
120 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

da LJA (Liga da Justiça da América). Cada um dos personagens tem sua


fala representada em forma de texto. O primeiro deles, num balão acima
dos outros, apresenta a fala de Superman: “Bem-vindos à reunião anual
da Liga da Justiça para fins de caridade”! O segundo balão traz o texto
atribuído a Aquaman: “Nós, os Superamigos, vamos abrir o espetáculo...”
Em seguida Batman: “Mais tarde os outros membros da Liga da Justiça
estarão aqui”! Mais abaixo, do lado esquerdo, Robin: “Vocês vão ter 25
horas de diversões”! O último texto atribuído aos super-heróis é a fala
da Mulher Maravilha: “E nós recebemos os telefonemas de vocês e suas
contribuições para o Fundo Geral de Caridade”!
Ao mesmo tempo em que assiste à televisão, o balão de texto rela-
cionado ao Dr. Cifrão diz o seguinte: “E eu ficarei com todo o dinheiro”!
Abaixo de tudo que foi exposto, o título da narrativa, em letras
grandes e avermelhadas, no fundo preto: “Dr. Cifrão ataca no show de
caridade”.
A primeira sequência selecionada para análise foi retirada da segunda
página da narrativa. Ela é formada por dois quadros estáticos, com dois
personagens: Superman e Dr. Cifrão. A situação apresentada é a de que
o Homem de Aço atende telefonema sobre doação, enquanto o vilão
assiste pela televisão e responde as falas do herói.

FIGURA 4: Primeira sequência selecionada


FONTE: DC COMICS, 1978
SUPERAMIGOS E AS TRÊS DIMENSÕES DO ESPETÁCULO DE CARIDADE 121

No primeiro quadrinho, Superman diz: Eis a nossa primeira doação...


Olhando para a tela, Dr. Cifrão fala: “Ah! E pode ser também nosso
primeiro “convidado”.
No segundo quadro estático, Superman continua falando ao telefone,
com o texto: “A senhora Diamond Curtis doou 50.000 dólares”! Ao ouvir
isso, Dr. Cifrão responde, com texto dividido em dois balões: “Raios! Ela
mora em Nova Iorque! Ela será uma das últimas pessoas que raptaremos”!
A próxima sequência selecionada também é formada por dois
quadros estáticos, mas dessa vez enquadram Batman. A situação apre-
sentada mostra o Homem Morcego atendendo telefonemas no espetá-
culo de caridade.

FIGURA 5: Segunda sequência selecionada


FONTE: DC COMICS, 1978

No primeiro quadro estático, o super-herói está sentado entre muitas


pessoas falando ao telefone. Além do texto da fala de Batman, também
faz parte do quadro um espaço para o texto do narrador, onde está
escrito: “Enquanto isso, os outros superamigos estão entre as celebridades
que recebem telefonemas”. Depois disso, as palavras escritas para o super-
-herói, que na situação atende ao telefone: “Batman, do show de cari-
dade”!
No segundo quadrinho, o personagem continua falando ao telefone.
Ele diz o seguinte: “Sim, senhor Stark. Podemos mandar sua contribuição
para o Fundo de Socorro aos Cardíacos! 75.000 dólares? Ótimo”!
122 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

O próximo recorte selecionado para análise é uma sequência


composta por seis quadrinhos, de uma página inteira da revista. Dela,
participam cinco personagens: Narrador, Superman, Dr. Cifrão, Batman
e Wendy, representados com cores fortes, como vermelho, azul, laranja,
preto e verde, por exemplo.

FIGURA 6: Terceira sequência selecionada


FONTE: DC COMICS, 1978

No primeiro quadro, a fala do narrador se destaca, escrita no fundo


amarelo e na área superior: “Minutos depois, no esconderijo de Green-
back...” (Dr. Cifrão). O vilão assiste Superman falar na televisão: “... e
Anthony Stark doou 75.000 doláres”! Nisso, o antagonista responde com
SUPERAMIGOS E AS TRÊS DIMENSÕES DO ESPETÁCULO DE CARIDADE 123

texto dividido em dois balões: “Outro nova-iorquino! Tomara que os


milionários de Gotham City e Metrópolis não demorem muito a telefonar”!
No segundo quadro estático, mais uma vez a primeira fala é do
narrador, com texto no espaço superior escrito em fundo amarelo: “Eles
vão telefonar em breve, Greenback (Dr. Cifrão)”. Dessa vez, o super-herói
focado é Batman, que é desenhado em pé, por trás de uma mulher
sentada à mesa junto a telefones que tocam. Ele diz o seguinte: “Atenda
por mim, Wendy. Tenho de cuidar de um assunto urgente”. Em seguida,
Wendy responde: “Pode deixar, Batman”!
O terceiro e maior quadro também traz o texto do narrador em
destaque, escrito no espaço superior em fundo amarelo, dizendo: “Já
no terraço do Edifício Galáxia, Batman parte no seu batcóptero, que ali
deixara ligado para emergências...”.
O desenho mostra o herói voando em seu meio de transporte, saindo
do alto do prédio. Ao mesmo tempo, a representação dos balões indica
que o Homem Morcego está pensando. O texto é o seguinte: “Sim,
Wendy compreende... mas muita gente no estúdio não sabe que Batman
e Bruce Wayne são uma só pessoa...” No quarto quadro o herói se apro-
xima de uma grande casa e continua pensando: “... e como dois dos meus
maiores rivais comerciais fizeram doações de vulto... não posso deixar
que eles me superem no meu trabalho!” No quinto quadro, a imagem
mostra Batman chegando por cima da casa, enquanto pensa: “Cheguei à
minha cobertura, no terraço do edifício da Fundação Wayne”! No último
quadro, destaque para o texto do narrador na área superior, com fundo
amarelo: “Batman volta rápido à identidade de Bruce Wayne e corre a
um telefone...” Abaixo, o desenho do herói sem a máscara falando ao
telefone, com o texto: “Mulher Maravilha? É Bruce Wayne! Quero doar
100.000 dólares”! Depois disso, o maior milionário de Gotham City é
sequestrado pelo Dr. Cifrão e seus capangas, que conseguiram entrar na
mansão Wayne para sequestrá-lo e roubar dinheiro. O mordomo Alfred,
melhor amigo de Bruce Wayne, não foi levado pelos sequestradores e
fez uma ligação telefônica para o show de caridade, avisando os outros
heróis do ocorrido. Nisso, os superamigos se organizam para resgatar o
Homem Morcego, prender o vilão e recuperar o dinheiro roubado, além
de continuar o show que estava sendo exibido na televisão. No final da
124 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

narrativa todos os objetivos são alcançados e os super-heróis amigos


salvam o dia.

2.2 Análise da prática discursiva na narrativa dos Superamigos


A segunda dimensão de análise ressalta os discursos presentes no
texto. Também se preocupa com o contexto de produção e consumo
desse mesmo texto. Entre outras coisas, pode-se identificar diferentes
tipos de discursos, como políticos, econômicos e religiosos, por exemplo.
A publicação em questão foi lançada pela editora EBAL em 1978,
sendo vendida pelo valor de Cr$ 6,00 no Brasil. Trata-se de uma adap-
tação para a linguagem dos quadrinhos de aventuras da equipe formada
por super-heróis norte-americanos, chamada Superamigos, original-
mente criados e publicados pela editora DC Comics. Superman, Batman,
Mulher Maravilha, Aquaman e Robin são alguns deles. Todos são perso-
nagens ficcionais que em suas narrativas fantásticas representam o bem
no confronto contra o mal.
Os Superamigos já existiam no programa de televisão, conforme o
Guia dos Quadrinhos:

Grupo de super-heróis criado em 1973 para o desenho animado da


TV de mesmo nome. Baseado no gibi da “Liga da Justiça”, o desenho
reunia os maiores heróis da editora DC da época: Superman (“Super-
-Homem”, na dublagem brasileira), Batman (e Robin), Mulher-Mara-
vilha e Aquaman. Mais tarde, a DC incumbiu o roteirista E. Nelson
Bridwell de introduzir o desenho animado na continuidade dos seus
gibis. Foi explicado então que os Superamigos são uma divisão da
Liga criada para combater desastres ao redor do mundo e treinar jo-
vens heróis. Sua sede é a Sala de Justiça. (GUIA DOS QUADRINHOS,
2020, p. 1).

Esses personagens foram originalmente criados para publicação em


narrativas com linguagens de quadrinhos pela editora americana DC
Comics. Superman (1938), Batman (1939) e Mulher Maravilha (1941),
por exemplo. Depois foram adaptados para programas de rádio, tele-
visão, cinema e, também, internet. O grupo dos Superamigos foi uma
adaptação para televisão, como desenho animado destinado ao público-
-alvo infantil em 1973 e que, em 1978, retornou ao formato de história
SUPERAMIGOS E AS TRÊS DIMENSÕES DO ESPETÁCULO DE CARIDADE 125

em quadrinhos, com a revista publicada no Brasil pela editora Ebal, inti-


tulada Da tevê para você! Superamigos nº 1, com roteiro de E. Nelson
Bridwell e desenhos dos artistas Ramona Fradon e Bob Smith.
Assim sendo, pode-se afirmar que são personagens multimídia e
são representativos na cultura pop. Por meio dos discursos propagados
por esses super-heróis, diversos temas podem ser tratados com os mais
variados públicos, não apenas o infantil. Além disso, possuem grande
penetração social.
A narrativa selecionada para esta análise traz os super-heróis apre-
sentando e apoiando um espetáculo televisivo, que Superman denomina
como “A reunião anual da Liga da Justiça para fins de caridade” em que,
em meio a celebridades, eles atendem telefonemas de pessoas que doam
dinheiro para os necessitados.
No dicionário pode se encontrar alguns sentidos atribuídos ao
léxico “caridade”, entre eles: 1. Sentimento de benevolência, compreensão,
compaixão pelo próximo. 2. Benemerência. 3. Esmola. 4. Uma das três
virtudes teologais. Ainda no dicionário, a definição de caridoso: adj. Que
faz caridade; caritativo.
Essa mesma palavra pode ser encontrada em vários discursos como,
por exemplo, o da igreja católica, como afirma a pesquisadora Claudia
Neves da Silva (2006) em um dos seus artigos, no qual se encontra a
seguinte definição:

A caridade cristã a todos se estende sem distinção de raça, de con-


dição social ou de religião. Ela não espera vantagem alguma nem
gratidão. Foi com amor gratuito que Deus nos amou. Assim também
os fiéis por sua caridade mostram-se solícitos por todos os homens,
amando-os naquele mesmo afeto que levou Deus a procurar o ho-
mem. À imitação de Cristo que percorria todas as cidades e aldeias,
curando toda doença e enfermidade em sinal da vinda do Reino de
Deus (cf. 9, 35 ss; At 10, 38), a Igreja por seus filhos se liga aos homens
de qualquer condição e particularmente aos pobres e aflitos, dedican-
do-se a eles prazerosamente (Cf. 2 Cor 12, 15). (SILVA, 2006, n.p.).

Esse discurso faz parte da narrativa dos Superamigos, mesmo sem


fazer referência alguma à religião. Essa é a interpretação que o programa
de televisão busca no público que assiste. Despertar nas pessoas o senti-
126 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

mento de empatia e construir um discurso de mobilização coletiva é


intenção do programa de televisão nessa narrativa ficcional, se relacio-
nando também com práticas sociais reais.

2.3 Análise da prática social na narrativa dos Superamigos


A terceira e última dimensão proposta no modelo de Fairclough
destaca aspectos relacionados à ideologia presente no texto. Nem sempre
são fáceis de identificar, mas por meio de uma leitura mais profunda é
possível reconhecer uma nova camada de interpretação, que por sua vez
permite a construção de novos sentidos, a partir da linguagem utilizada.
No texto visual dos Superamigos, escrito e produzido nos Estados
Unidos durante a década de 1970, as condições técnicas vão de acordo
com a época e com a linha editorial da DC Comics. Para que se compre-
enda da melhor forma, é preciso considerar também o contexto desse
período, o público que assistia ao programa de televisão desses perso-
nagens e também a própria mídia televisão, presente em tantos lares
americanos.
Ao apresentar os super-heróis como participantes de um programa
de televisão representado na história com linguagem de quadrinhos,
percebe-se que o texto apresenta personagens transmidiáticos. Em
outras palavras, são adaptados para diferentes mídias, propagando
discursos. Mas que tipo de discurso?
Nessa narrativa selecionada, o discurso dos heróis é a favor da solida-
riedade, em contraste ao do vilão Dr. Cifrão, que pretende roubar todo o
dinheiro arrecadado. Essa disputa entre os personagens irá determinar
a melhora ou piora de vida de pessoas carentes, que precisam desse tipo
de ajuda solidária. Nesse ponto a ficção se conecta com a realidade, uma
vez que transporta para o gibi problemas sociais presentes em diversas
sociedades. No universo de Superman, Batman e seus superamigos
também existe sociedade com problemas de desigualdade que precisam
ser amenizados com doações.
Esse tipo de cenário, pano de fundo para os super-heróis, não existe
apenas nos Estados Unidos, onde a narrativa em quadrinhos foi escrita
e desenhada, mas também em outros países que enfrentam dificul-
dades econômicas e sociais. No Brasil, por exemplo, que não é um país
SUPERAMIGOS E AS TRÊS DIMENSÕES DO ESPETÁCULO DE CARIDADE 127

com economia de primeiro mundo como os Estados Unidos, também


existe uma campanha anual de solidariedade transmitida pela televisão
e internet, com participação de celebridades. Trata-se do programa
Criança Esperança.

FIGURA 7: Logo Criança Esperança 2019


FONTE: NAÇÕES UNIDAS, 2019

Essa campanha é famosa no Brasil e, por meio dela, vários projetos


são contemplados com patrocínio e recursos visando benfeitorias
sociais. O texto a seguir, escrito pelos produtores do Criança Esperança,
esclarece o trabalho realizado ao longo do tempo:

Este ano está sendo muito difícil para todo mundo. Mas é justamente
nesse momento que precisamos relembrar que existe esperança. Em
2020, o Criança Esperança completa 35 anos, graças a sua parceria. E
olha quanta história: mais de quatro milhões de crianças e jovens be-
neficiados em mais de seis mil projetos apoiados. Este ano foram 111
projetos selecionados pela UNESCO, em todas as regiões do Brasil.
Tem projeto de todo tipo: educação, arte, cultura, cidadania, inclusão.
E durante todo o mês de setembro vocês vão conhecer um pouco mais
da história de alguns deles na nossa programação. (GLOBO, 2020,
n.p).

Considerando o exposto, as conexões entre ficção e realidade podem


ser percebidas e, da mesma forma, a dimensão que destaca a ideologia.
Nesse caso, a principal ideia de solidariedade coletiva.
128 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

3. Considerações finais
Diante do exposto, a relação entre linguística e o gênero textual das
histórias em quadrinhos se torna evidente, uma vez que a teoria do
modelo tridimensional de Norman Fairclough possibilitou a construção
desta análise, trazendo um ponto de vista crítico sobre a narrativa dos
Superamigos, destacando dimensões referentes à linguagem desses
personagens.
Por meio de análise novas camadas de interpretação foram reveladas,
o texto visual é a primeira delas, seguida pela prática discursiva e depois
a prática social. Nelas foi possível reconhecer discursos e ideologias, que
nem sempre são percebidos e, também, interpretados.
Além disso, as conexões com a comunicação. São muitos super-
-heróis transmídiasque representam vozes. Os superamigos apresentam
um programa de televisão na ficção que visa arrecadar dinheiro para a
caridade e um dos principais colaboradores é o bilionário Bruce Wayne,
que é sequestrado e resgatado pelos personagens fantásticos.
Importante ressaltar que as vozes de Superman, Batman, Mulher
Maravilha, Aquaman, Robin, Marvin e Wendy são fundamentais para
a construção do discurso a respeito de solidariedade nesta narrativa. A
intenção subjacente ao texto é colaborar para a resolução de problemas
sociais reais, por meio de doações. Por isso, o terceiro setor também faz
parte desse gibi lançado na década de 1970.
Considerando o contexto de produção de gibis americanos, também
é possível perceber que nenhum dos super-heróis é produtor do próprio
discurso. Na verdade, eles reproduzem o discurso do outro. Nesse caso,
os roteiristas da DC Comics. Uma ficção não existe concretamente e
não possui voz própria. Dessa forma, não pode criar seu próprio texto,
apenas reproduzir vozes. Isso não impede que se relacione com a reali-
dade social do lugar em que foi criada.
A revista em quadrinhos, com sua linguagem própria, faz parte da
cultura de massa. A produção e a circulação do texto visual nela presente
vão de acordo com interesses políticos e econômicos de cidades e países,
principalmente desses personagens mais antigos. Um texto, muitos
super-heróis, várias vozes, discursos e também ideologia – todos numa
narrativa ficcional que se relaciona com a realidade social não apenas
dos Estados Unidos, mas de vários países que realizam trabalhos soli-
dários.
SUPERAMIGOS E AS TRÊS DIMENSÕES DO ESPETÁCULO DE CARIDADE 129

Referências
DC COMICS. Da tevê para você! Superamigos, Revista Estados Unidos
da América: EBAL, dez. 1978.
EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: Martins Fontes,
1999.
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globo.com/criancaesperanca/noticia/assista-aqui-ao-tutorial-e-aprenda-
-como-enviar-para-a-gente-a-sua-esperanca.ghtml>. Acesso em: 10 set.
2020.
GOIDANICH, Hiron Cardoso. Enciclopédia dos quadrinhos. Porto Ale-
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ROCHA, Ruth. Minidicionário. São Paulo: Scipione, 1996.
SEIXAS, Lia. Gêneros: um diálogo entre Comunicação e Linguística. Flo-
rianópolis: Editora Insular, 2014.
SILVA, Claudia Neves da. Igreja Católica, assistência social e caridade:
aproximações e divergências. Sociologias, nº 15, Porto Alegre, jan./jun.
2006. Disponível em: <http://hdl.handle.net/11449/68723>. Acesso em:
15 set. 2020.
Capítulo 7

Chuck Jones e Tex Avery:


dois subversivos pioneiros
na criação de personagens animados
Sávio Leite
Maria de Fátima Augusto
#televisão #animação #desenhoanimado

O diretor Chuck Jones disse:


A animação, como eu vejo, é arte do impossível
Richard Williams (2016)

O Brasil carece de artigos e livros que analisem a influência dos dese-


nhos animados estrangeiros nas crianças brasileiras. Refletimos que
essa lacuna acontece há décadas. Fazemos parte de uma geração que
foi educada assistindo não só aos filmes do Walt Disney, mas também
às animações e personagens frutos da brilhante carreira dos anima-
dores que trabalharam na Warner, notadamente os filmes realizados por
Chuck Jones (1912-2012) e Tex Avery (1908-1980). Estes desenhos de
animação começaram a ser exibidos na televisão brasileira a partir de
1970. Com uma filmografia de mais de sessenta anos dedicada à arte da
animação, esses diretores realizaram mais de trezentos filmes. Traba-
lharam nos Estúdios Warner (1930 a 1963) e nos Estúdios da MGM
(1962 a 1966), onde permaneceram realizando vários episódios de Tom
e Jerry. Em seguida, Chuck Jones realizou adaptações literárias de livros
como The Dot and the Line, pelo qual ganhou um Oscar em 1965. Neste
livre ensaio, fazemos alguns destaques na filmografia e carreira desses
dois subversivos pioneiros na criação de personagens animados.
Jones e Avery criaram personagens de grande apelo popular que
moldaram o imaginário coletivo do século XX como Pernalonga (Bugs
132 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

Bunny, que comemorou oitenta anos em 2020), Patolino (Daffy Duck)


e Hortelino Troca Letras (Elmer Fudd). Assim como personagens
marcantes, os desenhos animados criados pelos dois diretores apre-
sentam um caráter subversivo e muitas vezes inovador para a linguagem
das animações infantis do período.
Uma criação clássica de Jones é Patolino brigando com seus próprios
animadores em Duck Amuck (1953). Um filme que explode as convenções
cinematográficas e expõe um mundo de metalinguagem num enredo
que só poderia ser feito em animação, pois quebra as regras conven-
cionais da narrativa ao colocar o personagem em diferentes situações
absurdas típicas do mundo animado. Outra marca de Patolino acon-
tece na paródia de ficção científica Duck Dodgers in the 24 ½ Century
(1953), em que o diretor faz o uso de teletransporte, permitindo que o
personagem contracene com armas desintegradoras e com Martin, um
marciano pela posse de um planeta de nome X.
Entre os personagens marcantes está Michigan J. Frog, da fábula
moral One Froggy evening (1955), direção de Chuck Jones. O curta-
-metragem de 7 minutos é parcialmente inspirado no personagem de
Cary Grant no filme Once upon a time (Alexander Hall, 1944). Neste
popular filme, estão canções famosas como “Hello! Ma Baby” e “I’m Just
Wild About Harry”, dois clássicos do Tin Pan Alley, e até mesmo parte
da famosa “Largo al Factotum”, uma ária da ópera O barbeiro de Sevilha.
Um trabalhador da construção civil de meados da década de 1950
envolvido na demolição do Edifício J. C. Wilber ergue o topo da pedra
fundamental e encontra uma caixa de metal dentro. O homem abre a
caixa e encontra, junto com um documento comemorativo de 16 de abril
de 1892, um sapo que pode cantar e dançar, trajando cartola e bengala.
Depois que o sapo subitamente executa um número musical no local, o
homem vê uma oportunidade de lucrar com os talentos antropomór-
ficos do bicho e foge do local de demolição com o sapo e a caixa debaixo
do braço. Todas as tentativas do homem de explorar o sapo fracassam,
pois ele nunca consegue revelar o sapo ao público. O sapo atua apenas
para seu dono e mais ninguém. Pior ainda, quando qualquer outro indi-
víduo está presente, o sapo para imediatamente e se transforma em um
sapo comum. O homem leva o sapo a um agente de talentos. Quando
CHUCK JONES E TEX AVERY 133

isso falha, ele usa todas as economias de sua vida para alugar um teatro
abandonado a fim de apresentar o sapo (ele só consegue uma audiência
com a promessa de “Cerveja Grátis”). O sapo se apresenta em cima de
um arame alto atrás da cortina fechada, mas quando a cortina começa a
subir, ele encerra a música e, no momento em que é totalmente revelado
à multidão, ele novamente volta a ser um sapo comum. Como resultado
dessas falhas, o homem agora está sem-teto e morando em um banco de
parque, onde o sapo ainda atua, mas apenas para ele. Um policial ouve
o canto e se aproxima do homem, que aponta o sapo como cantor. Mas
quando o sapo novamente se apresenta como comum, o policial prende
o homem por perturbar a paz. Em seguida, ele está internado em um
hospital psiquiátrico junto com o sapo, que continua fazendo serenatas
para o paciente infeliz. Após sua libertação, carregando a caixa com o
sapo dentro, percebe o canteiro de obras onde ele originalmente encon-
trou a caixa e, felizmente, a despeja na nova pedra fundamental para o
futuro Edifício Tregoweth Brown antes de fugir, muito feliz por se livrar
do que se tornou seu fardo. A história salta para 2056. Os prédios já são
futuristas e as naves trafegam no espaço. A caixa com o sapo é desco-
berta novamente por um demolidor que também imagina uma fortuna
em dinheiro, foge com o sapo, e a história começa novamente.
Os dois diretores tinham como referência o cinema amalucado do
princípio do século XX, em que perseguições e muita violência apimen-
tavam o cardápio da época de ouro das comédias e seus respectivos
autores. Juntos, Jones e Avery realizaram outros curtas-metragens
que se tornaram clássicos através dos tempos. Um deles é a comédia
burlesca wagneriana What’s the opera, Doc? (1957), dirigido por Chuck
Jones. Nesta, está o coelho antropomórfico inspirado na persistência de
Groucho Marx e na doçura de Harpo, como se fossem os dois juntos,
como revelado por Chuck Jones anos depois: Pernalonga.
Analisando este curta específico What’s the opera, Doc? (1957), o
cenário remete às obras modernistas e geométricas da arte modernista
e sua narrativa transita entre o gênero musical e a dos filmes épicos.
Neste filme, Pernalonga se transveste como uma sensualizada donzela
que aparece num cavalo branco muito além do seu peso, com crinas
e rabo cor-de-rosa e uma guirlanda de flores, e o diretor enfatiza seus
134 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

seios usando a cor. Pernalonga também usa uma espécie de capacete que
remete à mitologia greco-romana. Posa de bailarina e sobe numa torre
que nos dá a impressão de ser um altar supremo. O ápice do sucesso
neste curta é quando Hortelino está claramente apaixonado, para logo
depois o encanto ser quebrado quando o capacete cai e percebemos que
a donzela é Pernalonga. Hortelino incorpora o ódio e se transforma
numa espécie de Deus que controla as forças da natureza. No final vence
a compaixão. E o diretor Chuck Jones parece antecipar temas dos anos
vindouros.
O personagem Pernalonga surge em 1940, em um curta-metragem
chamado The Wild Hare (A Lebre Selvagem), dirigido por Tex Avery.
Ao longo dos anos, o personagem estrelou mais de 160 curtas e foi
premiado com um Oscar de melhor curta-metragem de animação pelo
filme Cavaleiro Pernalonga (1958), dirigido por Friz Freleng. Com uma
estrela na Calçada da Fama de Hollywood, Pernalonga foi eleito como
melhor personagem de desenhos animados de todos os tempos pela
revista estadunidense TV Guide, em 2003. O coelho foi criado por várias
mãos mas, segundo Chuck Jones, quem deu a centelha ou a segurança
absoluta ao Pernalonga foi mesmo Tex Avery. O estilo de Tex Avery
quebrou o padrão de realismo estabelecido por Walt Disney e encorajou
os animadores a ampliar os limites da animação, permitindo fazer coisas
em um desenho animado que não seriam possíveis no mundo de um
filme em live-action.
Uma frase de Tex Avery frequentemente citada é: “num desenho
animado você pode fazer tudo”, sendo justamente isso o que seus dese-
nhos faziam. E, graças a Tex Avery e principalmente sua série Red hot
Riding Hood (1943), ainda na Metro-Goldwyn-Mayer, é que foi reali-
zada a transgressão da velha história de Chapeuzinho Vermelho. Essa
subversão vai ser levada em conta ao se criar todas as aventuras vividas
por Pernalonga. Nessa série há uma triangulação entre o lobo e a vovo-
zinha ninfomaníaca, que são mostrados de forma corriqueira, assim
como o suicídio.

Nunca fui um grande artista. Percebi lá no estúdio Lantz que quase


todos aqueles camaradas estavam séculos à minha gente. Eu pensei:
“Cara, por que brigar contra isso? Eu nunca vou conseguir o mesmo!
CHUCK JONES E TEX AVERY 135

Tome uma outra via”. E ainda bem que eu tomei. Nossa, eu curti mui-
to mais do que teria curtido se ficasse animando cenas a vida toda.
(WILLIAMS, 2016).

Pernalonga estreou no Brasil, na Rede Globo de televisão, no início


dos anos 1970, sendo exibido na faixa matutina da emissora. Naquela
época, os curtas da Warner eram dublados nos estúdios da Cinecastro,
com sedes no Rio de Janeiro e São Paulo. Foi nessa época que passamos
nossa infância, como toda criança brasileira, vendo os filmes da Warner
na televisão. Mas na infância não absorvíamos o quanto estas produções
podiam ser subversivas. Mais tarde, na fase adulta, reencontramos com
o cinema de Tex Avery, dessa vez na universidade e quando já nos encan-
tava o cinema que rompia com o modelo narrativo clássico e impunha
mudanças radicais no discurso cinematográfico, como aquele realizado
pelos diretores da Nouvelle Vague e do Cinema Novo Brasileiro. Nessa
época começou nosso interesse pelo cinema de animação e a pesquisa
dessa linguagem transgressora, e foi este estudo que nos permitiu trilhar
o mundo mágico da animação underground.
Nos anos 1980 essas animações foram exibidas nos programas Balão
Mágico e Xou da Xuxa e, na década de 1990, na TV Colosso e Angel Mix.
A Rede Globo exibiu os desenhos até 1999, e depois os deixou fora do
ar durante algum tempo, só voltando a passá-los novamente em 2004.
Eles voltaram a ser exibidos na programação da TV Globinho, e algumas
vezes de madrugada no bloco Festival de desenhos, como um “tapa
buraco” da programação, antes da exibição do Telecurso 2000. E conti-
nuaram na grade da programação até 2005, quando a emissora deixou
de apresentá-los.
Muitos historiadores de animação nos EUA acreditam que o Perna-
longa pode ter tido sua personalidade influenciada por um personagem
anterior de Walt Disney, a lebre Max Hare, desenhada por Charlie
Thorson. Esse personagem apareceu pela primeira vez em um desenho
da série Silly Symphonies chamado A Tartaruga e a Lebre (Wilfred
Jackson, 1935). Tex Avery admitia ter se inspirado um pouco na perso-
nalidade de Max Hare na criação de Pernalonga, embora o design de
Avery no personagem tenha uma aparência inocente, que acabou se
encaixando melhor com o comportamento sarcástico do coelho.
136 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

As maneiras e os trejeitos que Pernalonga adquire ao morder sua


cenoura, com o canto da boca, também se parecem muito com a maneira
como o comediante Groucho Marx fumava seu charuto. Assim como
um dos bordões mais populares do Pernalonga, também inspirado em
Marx: “Of course, you know, this means war! (Claro, você sabe, isso signi-
fica guerra!).
Em 1935, Avery foi trabalhar na Warner, ao lado de Bob Clampett e
Chuck Jones. Na Warner, Avery dirigiu seu primeiro desenho para essa
companhia, o Gaguinho (Porky Pig), que era uma criação de Bob Clam-
pett. Em 1937, Avery apresentou ao mundo da animação um dos mais
famosos personagens de todos os tempos: Patolino.
Além da inesquecível personalidade malandra e esperta do Perna-
longa, Tex Avery também criou o personagem Hortelino Troca-Letra e
ficou na Warner de 1935 a 1941. Seus curtas eram um festival de panca-
darias, perseguições, insinuações sexuais e psicológicas. Muito dessa
subversão foi aprendida por Chuck Jones desde a sua infância, quando
sua família mudou para Los Angeles e ele teve a sorte de ser vizinho
dos Estúdios de Buster Keaton. Chuck Jones diz ter sido influenciado
pelo cinema de Keaton. Quando criança participou como figurante de
inúmeros filmes do comediante e tentou transportar para a animação
várias cenas de perseguição dos seus filmes. Ele dizia que o ofício de
se fazer animação era equiparado ao da medicina, ou seja, seis anos de
trabalho duro.
Talvez essa convivência tenha feito surgir personagens como o Coiote
e o Papa Léguas. O Papa Léguas é um pássaro bem inferior em nível de
rapidez que o Coiote. Suas características foram tiradas de um pássaro
pequeno e atrapalhado conhecido como roadrunner (Geococcyx califor-
nianus), que habita o México e os Estados Unidos e atinge 30 km/h. Mas
no desenho é uma ave muito mais rápida (69 km/h) e que faz o Coiote
receber todo tipo de surras e maldades. A inversão de papéis é propor-
cional para colocar a superioridade da animação sobre as forças da natu-
reza. Por mais que ainda exista a convenção do vencedor e do perdedor,
os dois personagens estão sempre na marginalidade. Tudo consiste em
amedrontar, coagir, reprimir e celebrar suas estúpidas ideias, sua degra-
dação e alienação.
CHUCK JONES E TEX AVERY 137

O curta-metragem Beep Beep (1952), dirigido por Chuck Jones,


mostra genialmente o movimento através desses dois personagens. Com
diversas traquitanas, o Coiote não consegue apanhar o Papa Léguas.
Coiote faz uso de aspirinas, fósforos, patins, objetos que pertencem
a ACME. A perseguição dos dois dentro de uma caverna escura vai
lembrar muito dos primeiros videogames que só apareceram mais de
uma década mais tarde.
O termo “Eat at Joe’s” é destacado. O termo vem do Joe’s Diner, que
costumava ser usado no início do século XX como uma descrição geral
de um lugar onde pessoas simples da classe trabalhadora faziam suas
refeições. A expressão era uma piada frequentemente usada nos dese-
nhos da Warner Bros. e da MGM na década de 1940, a imagem geral-
mente surgia quando o personagem simplesmente explodia no ar.
A primeira vez que essa piada apareceu foi em Jerky Turkey (1945),
um desenho animado da Metro-Goldwyn-Mayer dirigido por Tex
Avery. No cenário alguns cactos lembram formas de melancia. Em uma
cena os patins elevam o Coiote a uma altura absurda. Ele então prevê a
sua própria morte caindo e segurando uma placa escrita RIP e, logo em
seguida, é explodido por uma traquitana inventada por ele próprio.
Chuck Jones dirigiu outros clássicos como Pernalonga e Hortelino em
Rabbit of Seville (1950), em que parodia a ópera O Barbeiro de Sevilha.
Os dois caem em um teatro onde primeiro, Pernalonga, se traveste de
barbeiro e depois em uma mulher sensual e faz uma dança espanhola
com duas tesouras e depois um encantador de serpente que faz de uma
forma antropomórfica com a máquina de cortar cabelo. A disputa vai
num crescendo com demonstração de armas cada vez maiores até que
Pernalonga oferece a Hortelino um anel, o que o faz vestir-se de noiva
e casar com Pernalonga travestido de homem. Hortelino também veste
espartilho em outro episódio. Já em The Scarlet pumpernickel (1950),
Patolino encarna o papel do romancista Alexandre Dumas, onde repre-
senta um papel mais contemporâneo de um roteirista.
Chuck Jones ganhou também um Oscar pela estreia de Pepe LePew
em For scent-imental reasons (1949), que se juntou a outro conquis-
tado no mesmo ano com So much for so little. Todos na lista de um dos
melhores curtas de animação de todos os tempos.
138 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

Esses desenhos da época de ouro popularizaram o exagero, os olhos


esbugalhados e os táxis que saem sozinhos sem serem dirigidos por seus
motoristas. Estes filmes mesmo sonoros também faziam o uso de inter-
títulos em forma de placas que ajudavam na compreensão narrativa -
como utilizados nos filmes mudos.
A respeito de sua produção, uma vez Chuck Jones declarou: “Esses
cartuns nunca foram concebidos para crianças. Também não foram
feitos para adultos. Eram feitos para mim”. Diferentemente dos seres
humanos, seus personagens não têm idade e são indestrutíveis. Ou
como diz o Patolino: “É possível que eu seja um patinho preto e covarde,
mas sou um patinho preto vivo”. Em 1996, a Academia lhe deu um Oscar
especial pelo conjunto da obra.

Chuck Jones disse que os desenhos do Papa-Léguas tinham um an-


damento musical incorporado a eles. Ele definia os tempos do filme
inteiro, e fazia os impactos acontecerem sempre em um ritmo deter-
minado, para que tivessem uma integração rítmica, musical, já em-
butida. Depois os músicos poderiam seguir a batida, ignorá-las ou
construir a música sobre ela. (WILLIAMS, 2016).

Em 2000, Jones criou o Chuck Jones Foundation, projetado para


reconhecer, apoiar e inspirar excelência continuada na arte e na arte de
animação de personagens clássicos. Planos para a Fundação incluem
bolsas de estudo, recursos de biblioteca, exposições de turismo, uma
série de conferências e acesso ao filme, anotações e desenhos. Passados
mais de 80 anos, esses personagens se mostram cada vez mais adequados
ao mundo atual e seguem encantando as novas gerações.
CHUCK JONES E TEX AVERY 139

Referências
CHUCK JONES CENTER FOR CREATIVITY. Disponível em <http://
www.chuckjonescenter.org>. Acesso em: 1 set. 2021.

CHUCK JONES VIRTUAL EXPERIENCE. Disponível em <htttp://


www.chuckjones.com>. Acesso em: 1 set. 2021.

BOGDANOVICH, Peter. Afinal quem faz os filmes. São Paulo:


Companhia das Letras, 2000.

DENIS, Sebastian. O cinema de animação. Lisboa: Texto e Gráfia, 2010.

MATTEELART, Armand; DORFMAN, Ariel. Para ler o Pato Donald.


Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

PINTO, Cláudio. O desenho animado – olhar além da tela. Bauru: Práxis,


2017.

ORÁCULO. São Paulo: Abril, Superinteressante, 2015.

TAVARES, Mariana Ribeiro; GINO, Maurício Silva. Pesquisas em


Animação: Cinema & Poéticas Tecnológicas. 1ª Edição. Belo Horizonte:
Editora Ramalhete, 2019.

WILLIAMS, Richard. Manual de métodos, princípios e fórmulas para


animadores clássicos, de computador, de jogos, de stop motion e de
internet. São Paulo: Editora Senac, 2016.
Capítulo 8

Da TV aberta ao streaming:
permanências e transformações
Piedra Magnani da Cunha
#televisão #streaming #consumo

“Não sei o que é,


mas sei que existe um grão de salvação
escondido nas coisas deste mundo”
Adélia Prado

1. Introdução
A TV aberta brasileira vem passando por turbulências e incertezas
face à ascensão da TV sob demanda e do streaming nos últimos anos.
Isso tornou-se público e notório, e intensificou-se sobretudo neste
contexto de isolamento social trazido pela pandemia do Covid-19, no
qual as pessoas passaram a dedicar seu tempo livre cada vez mais para
sua interação virtual com as mídias. Além da Netflix, pioneira no esta-
belecimento desta outra forma de consumo audiovisual, plataformas
como Amazon Prime Video, Apple TV+, Directv Go, Globoplay, Now e
o próprio Youtube têm se estabelecido também como novas referências,
enquanto outras chegam aos poucos ao mercado brasileiro, referen-
dando a tendência de crescimento e diversificação do segmento, como
é o caso da Disney+, HBO Max, Telecine Play, Pluto TV, Vix, Mubi,
Argo, LGBTFlix, Afroflix e tantas outras novas iniciativas que venham
atender às demandas de um público cada vez mais habituado à livre
escolha de filmes, séries, noticiários e animações disponíveis nos catá-
logos desses serviços. Muitos interpretam este fenômeno como uma
evolução das formas de consumo televisivo pelo público, afinal ele sairia
142 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

de um modelo no qual estava submetido à “camisa de força” de uma


grade de programação predeterminada pelas redes de TV do broadcast
– na qual o máximo de autonomia é o zapping – para um novo contexto
de aparente autonomia e plena liberdade de escolha na TV on demand.
No entanto, nesse cenário, o que nos interessa, particularmente, é
revisitar e problematizar essa dicotomia que se estabeleceu no senso
comum entre, de um lado, uma TV aberta essencialmente “prejudicial” e
“limitante” para o telespectador; e de outro uma outra TV sob demanda
essencialmente “inofensiva” e “emancipadora”. Neste texto, vamos nos
dedicar a produzir uma reflexão sobre os impactos da aparente ascensão
do streaming e declínio da TV aberta na atualidade, voltando nosso foco
para os rearranjos nas formas de oferta e consumo dos conteúdos audio-
visuais.

2. Revisitando alguns pressupostos


Das telonas de LED em circuitos de home theater nas residências dos
setores de maior poder aquisitivo, às telinhas dos smartphones popula-
rizados em todos os segmentos sociais, a experiência de se assistir TV
tem se transformado, e se diversificado. A televisão, enquanto mídia
singular, veio ocupando, desde sua invenção em meados do século XX,
uma posição de centralidade na dinâmica cultural das sociedades, sendo
também objeto de inúmeras análises, seja no âmbito dos estudos cien-
tíficos da comunicação, da crítica especializada ou dos setores da socie-
dade organizada.
Das suas características intrínsecas de linguagem e modos de
produção, da sua relação com os telespectadores e a sociedade de forma
geral, o que mudou de lá para cá? Vamos passar a uma rápida recapitu-
lação de alguns pressupostos nos estudos e críticas que têm sido feitos
à televisão, a fim de avaliarmos as questões que se colocam como perti-
nentes para a compreensão deste fenômeno da atualidade, no qual se
rearticulam os modos de produção e recepção da TV.
DA TV ABERTA AO STREAMING 143

2.1 “Já vai tarde”: influência da TV e determinismo social


Numa leitura apressada da transição da TV broadcast à TV via strea-
ming (ou, em bom português, de uma TV analógica, de programação
pré-definida e gratuita para outra digital, de conteúdos sob demanda
e quase sempre paga), muitos entusiastas do novo modelo de televisão
que agora se configura têm comemorado o declínio de uma TV repleta
de conteúdos audiovisuais padronizados e de baixa qualidade, consti-
tuída por redes privadas “superpoderosas”, capazes de influenciar a vida
política e as consciências dos receptores. Mas será que essa perspectiva
dá conta das ambiguidades presentes nas relações TV x telespectadores
de ontem e de hoje?
Como se pode constatar, o imaginário social sobre a TV aberta
brasileira incorpora o arcabouço crítico que se desenvolveu nas princi-
pais pesquisas científicas sobre a cultura de massa / indústria cultural.
Dentre uma diversidade de preocupações que guiou os estudos de TV
ao longo dos anos, as tradições teóricas dos campos da política, de um
lado, e da estética, de outro, afirmam-se como as abordagens mais signi-
ficativas sobre a TV, circunscrevendo suas preocupações ora ao debate
a respeito de sua capacidade de influência ideológica sobre as pessoas,
ora às indagações relativas ao potencial de criação artística da televisão
e suas formas de fruição. O ponto de unificação entre estas vertentes
distintas seria o debate sobre o valor cultural, artístico ou social da tele-
visão, questão controversa que tem dividido há muito as opiniões acerca
deste veículo que, de modo acelerado e impactante, ganhou terreno nas
sociedades contemporâneas.
O caminho mais usual ao se fazer uma apresentação do “estado da
arte” dos estudos de televisão tem sido o de identificar nas posturas dos
mais diferentes autores a herança, ou os resquícios, de duas formas prin-
cipais de abordagem dos meios de comunicação de massa no âmbito das
Teorias da Comunicação, ambas de cunho determinista, influenciadas
pelas tradições teóricas da Escola Funcionalista Americana e da Escola
de Frankfurt. De um lado, a TV aparece como um dispositivo que é
acionado para fazer valer as intencionalidades de um emissor perante
seus receptores, intenções estas definidas a priori, anteriormente ao
ato comunicativo, e que deve ser então medido em termos dos efeitos
144 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

ou eficácia da transmissão de suas mensagens. E de outro, ela é vista


enquanto instância com grande poder de influência sobre a formação
das consciências, capaz de provocar a alienação da audiência e servir
como instrumento de manutenção das relações de dominação nas socie-
dades capitalistas.
Umberto Eco, em seu livro Apocalípticos e Integrados (1976), expli-
citou os limites dessas duas visões excludentes, mas interligadas, ao
afirmar que as chamadas correntes “integradas” (os estudos norte-
-americanos) estariam historicamente mais preocupadas com o desen-
volvimento de técnicas e práticas eficazes de comunicação, ao passo que
as “apocalípticas” (os estudos europeus) assumiriam uma posição mais
crítica, sugerindo um esvaziamento cultural provocado pela emergência
e consolidação dos meios de comunicação de massa como instâncias
privilegiadas de integração social. Estas duas correntes de estudos, que
tiveram início na década de 1930, tornaram-se marcos entre as prin-
cipais teorias da comunicação e, posteriormente, foram identificadas
como vertentes opostas de um mesmo modelo da comunicação, o
chamado paradigma informacional1. Desta forma, tanto as abordagens
funcionalistas quanto as frankfurtianas perderam de vista a complexi-
dade do fenômeno comunicativo, tornando-se teorias maniqueístas e
redutoras.
Arlindo Machado, em seu livro “A televisão levada a sério” (2003),
também identifica nos estudos de televisão duas maneiras principais
de tratamento às quais denominou modelo de Adorno e modelo de
McLuhan:

... para o grupo adorniano, a televisão é por natureza “má”, mesmo


que todos os trabalhos mostrados em suas telas fossem da melhor
qualidade, enquanto para o grupo mcluhiano a televisão é por nature-
za “boa”, mesmo se só existisse porcaria em suas telas. (MACHADO,
2003, p. 19).

1. O paradigma informacional toma o fenômeno comunicativo como um processo de


natureza transmissiva e linear, estabelecido por relações do tipo causa-efeito, dividido em
dois pólos separados: o primeiro do emissor, para o qual é reservado o poder de decisão
e ação, e o segundo do receptor, com direito a consumir as mensagens transmitidas e, por
isso, visto como incapaz de interferir verdadeiramente no processo, sendo delegada a ele
apenas a possibilidade do feed back.
DA TV ABERTA AO STREAMING 145

Para além da constatação, o autor identifica o principal problema


dessas visões mostrando que, em ambas, a cultura de massa aparece
como força poderosa e totalizadora que não reserva espaço para a auto-
nomia relativa de produtores e receptores das mensagens televisivas.

Isso quer dizer que os adornianos atacam a televisão pelas mesmas


razões que os mcluhianos a defendem: por sua estrutura tecnológica
e mercadológica ou por seu modelo abstrato genérico, coincidindo
ambos na defesa do postulado básico de que televisão não é lugar de
produtos “sérios”, que mereçam ser considerados em sua singularida-
de. (MACHADO, 2003, p. 19).

Seguindo seu raciocínio, Arlindo Machado destaca que ambos


partem de um modelo abstrato genérico de televisão que em nada
contribui para a melhor compreensão das nuances de sua prática efetiva.
Nesta mesma perspectiva, é possível identificar, hoje, uma forte corrente
disseminada entre os estudiosos da televisão que classifica como atraso
a manutenção de posições que ainda apresentam a televisão como enti-
dade genérica abstrata, por não reconhecerem que a compreensão da
multiplicidade de seus processos passa, antes de mais nada, pela análise
dos seus diferentes produtos, gêneros, formatos. Afinal, como salienta
José Luiz Braga (2002, p. 33), “quanto mais desenvolvido seja um sistema
crítico, mais provavelmente ele se volta para uma análise de produtos
específicos (e menos para análises do meio em sua generalidade)”. É
desta maneira que a crítica pode avançar e se tornar mais competente
para interpretar estruturas e processos – “em vez de simples e impressio-
nisticamente ‘julgar’ bom ou mau um produto”.
No debate público sobre os modelos de televisão que hoje coexistem,
é possível identificar tanto nas críticas proferidas à TV aberta quanto
nas análises relativas à TV sob demanda marcas dessas duas vertentes
teóricas, apresentando-se com visões predominantemente negativas
no primeiro caso e otimistas no segundo. É como se na TV aberta
(de ontem e de hoje) prevalecessem os mecanismos de manipulação e
controle das audiências, ao passo que na TV sob demanda os receptores
emergiriam livres de quaisquer influências, como sujeitos emancipados
a ditar as regras em sua interação com a mídia. Falácias que colocam
estes modelos de TV em posições antagônicas, quando na verdade faz-se
146 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

necessário reconhecer que, em ambas, toma-se o processo comunicativo


numa perspectiva determinista, no mais das vezes destituído de contra-
dições e ambiguidades.

2.2 “Metamorfose ambulante”: qualidade na TV e elitismo cultural


Além das limitações desse primeiro pressuposto na compreensão da
relação TV x telespectador a guiar o debate público, é preciso revisitar
também um segundo postulado por meio do qual avalia-se a televisão a
partir do conceito de qualidade de seus conteúdos. Aqui, o pressuposto
em análise diz respeito a uma visão elitista de arte e cultura, que está na
base da desqualificação da TV tradicional e, em alguma medida, valori-
zação do formato de TV via streaming.
O problema da desqualificação dos produtos televisivos e da conde-
nação do veículo tanto nas vertentes políticas que a estudam quanto
naquelas de cunho estético e valorativo, tem sua origem num mesmo
denominador comum: a ressonância dos ideais da modernidade no
processo de criação das disciplinas científicas e da instância de “arte
legítima”, movimento que é de cisão mas, principalmente, um processo
hierarquizante, na medida em que confere superioridade formal às ativi-
dades de produção de conhecimento e à arte em relação à banalidade
das demais práticas da vida cotidiana. Esta é a matriz que dá origem
às distinções entre alta cultura (ou cultura erudita) e baixa cultura
(ou cultura popular). A legitimidade tanto de uma como de outra está
condicionada à demarcação de um distanciamento e à identificação de
práticas e produtos muito diferentes entre elas.
Quando o próprio desenvolvimento do capitalismo e dos ideais
modernos, associado à descoberta de novas técnicas, fazem surgir na
cena os meios de comunicação de massa, as características que distin-
guiam obras de arte e manifestações da cultura folk já não puderam mais
ser claramente delimitadas. Afinal, se a separação entre os diversos domí-
nios da cultura já acontecia, o que a emergência dos meios de comuni-
cação - sobretudo da televisão - traz de novo é o incômodo gerado pela
aproximação entre eles, pela mistura, pela quebra de suas delimitações
DA TV ABERTA AO STREAMING 147

fazendo emergir, com isso, indefinições inclusive com relação à legitimi-


dade de seus produtos.
Na Teoria da Cultura de Massa, por exemplo, o “temor de uma vulga-
rização, perda de discernimento e, acima de tudo, a excentricidade que
surge quando cada homem sente que suas ideias têm o mesmo valor que
as de seu vizinho” (ARNOLD, 1932, p.180 apud STRINATI, 1999, p. 37),
reflete todo o preconceito com o qual a classe letrada vê a valorização do
grande público pela cultura de massa. Aproximando as diversas abor-
dagens que se dedicaram a discutir a presença da TV nas sociedades
(para além da percepção de um mesmo modelo transmissivo da comu-
nicação subjacente, já descrito anteriormente), estaria o cerne da maior
parte das angústias, receios e hostilidades expressos pelos intelectuais
em relação aos meios de comunicação de massa: uma visão elitista de
cultura, desqualificadora da produção cultural de massa, mas um tipo de
desqualificação diferente daquele assumido para a cultura folk, ou baixa.
Suas preocupações passam pela previsão de um certo nivelamento por
baixo a ser promovido pelos meios de comunicação, o que, para eles,
inclui a prevalência das “satisfações entediantes da cultura superficial e
a exploração de um público desarraigado e inculto que, por isso mesmo,
não reconhece os padrões da grande arte”. Ou, em outras palavras, há
a percepção de uma mudança cultural na qual a maioria inculta, auda-
ciosamente, estaria se rebelando contra sua própria natureza, a de ser
comandada pela minoria culta.
Na verdade, a representação de “grande público” que emerge conjun-
tamente com a proposta da TV aberta, por exemplo, torna-se ambiva-
lente, “ao mesmo tempo fascinante e desprezível, no qual confundem
o ‘burguês’, submetido às preocupações vulgares do negócio, e o ‘povo’,
deixado ao emburramento das atividades produtivas” (CHARTIER,
2003, p. 150). Portanto, todo o debate sobre qualidade da TV está
firmado sob o pressuposto de superioridade de uma forma cultural
erudita sobre as demais existentes, fazendo crer que a TV aberta, exata-
mente por voltar-se ao grande público, tornou-se um terreno de conte-
údos amorfos e sem valor cultural. Por outro lado, a TV sob demanda
parece emergir aos olhos desatentos como o lugar de salvaguarda de
148 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

produções de qualidade, apresentando-se ela própria como um espaço


de valor cultural.
Aqui, a questão que se descortina como pano de fundo da dico-
tomia TV aberta vs. TV sob demanda é a transição entre um mercado
de massa e um outro de nicho - cenário originariamente caracterizado
(e popularizado) por Chris Anderson em seu aclamado livro “A cauda
longa” (2015).

A economia da era do broadcast exigia programas de grande sucesso


– algo grandioso – para atrair audiências enormes. Hoje a realidade
é a oposta. Servir a mesma coisa para milhões de pessoas ao mesmo
tempo é demasiado dispendioso e oneroso para as redes de distribui-
ção destinadas à comunicação ponto a ponto (...) Os hits hoje com-
petem com inúmeros mercados de nicho, e os consumidores exigem
cada vez mais opções. (ANDERSON, 2015, p. 12).

Sem nos deter aos pormenores desta teoria, a aposta no consumo


televisivo nos moldes da cauda longa em contraposição à cultura dos
hits remete a uma espécie de retomada do projeto moderno de fragmen-
tação cartesiana do mundo. Numa perspectiva elitista de cultura que
desqualifica aquilo que se relaciona às massas, regressar ao contexto de
separação e distinção entre culturas e públicos parece suficientemente
reconfortante para a intelectualidade: novamente, cada coisa em seu
“devido lugar!”. Além disso, sair do domínio da cultura de massa para
chegar aos nichos parece resolver em grande medida o desconforto em
ter que se defrontar com valores e quadros de sentido outros que os
obrigavam a enxergar e lidar com as diferenças de toda ordem.
Em última instância, o que este embate entre uma maioria deten-
tora de uma lógica estranha àquela expressa por uma minoria que busca
manter sua hegemonia e legitimidade indica é que a televisão deve ser
compreendida exatamente a partir deste lugar contraditório que veio a
ocupar nas sociedades contemporâneas. E é deste contraditório da tele-
visão que vamos nos ocupar na sequência deste texto.
DA TV ABERTA AO STREAMING 149

2.3 “Nem tudo são flores”


Do ponto de vista da produção televisiva, as mudanças trazidas pela
ascensão da TV via streaming apontam para o declínio da TV comercial
tradicional e a necessidade de construção de um novo modelo de negó-
cios, no qual a viabilização financeira das empresas televisivas deixa de
ser atribuída à verba publicitária dos anunciantes e passa a pesar no
“bolso” do próprio consumidor. Neste sentido, o telespectador brasileiro
que, ao longo das últimas décadas, tinha conquistado acesso gratuito
à TV aberta – a despeito de todas as críticas quanto à sua qualidade
e multiplicidade – quando se dá conta já está pagando mensalmente
uma ou, às vezes, várias mensalidades para consumir os conteúdos do
streaming2. O telespectador está, portanto, pagando por sua liberdade de
escolha, e esta é uma perda importante que não tem sido alardeada nas
manifestações entusiastas de defesa deste novo modelo de TV.
É preciso, pois, problematizar também os aparentes benefícios recor-
rentemente anunciados a respeito da TV sob demanda. Afinal, aqui
mantém-se no processo de produção dos conteúdos audiovisuais prati-
camente os mesmos imperativos da TV convencional: interesses comer-
ciais em jogo, lógica industrial de produção, predomínio de conteúdos
das grandes holdings internacionais de comunicação em detrimento de
produções regionais/locais, consumo e fruição dos conteúdos subme-
tidos à lógica da vida cotidiana, e assim por diante. Então, o que há de
novo?
De imediato, a resposta tende a apontar para transformações na dinâ-
mica da recepção, ressaltando a autonomia e independência do público
neste novo modelo, sua plena liberdade de escolha – enfim, sua eman-
cipação. Sim, há que se reconhecer uma mudança no processo de escolha
dos produtos audiovisuais pelos receptores da TV sob demanda, mas
sem com isso considerar que apenas neste modelo o receptor é capaz
de se apropriar e ressignificar o que consome. Afinal, em qualquer das

2. Na verdade, desde a década de 1990 os brasileiros já iniciaram essa transição com o


início das operações no país das TVs a cabo e via satélite. De lá para cá, a reorganização
deste mercado da TV paga foi se firmando cada vez.
150 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

modalidades de televisão a audiência preserva uma capacidade latente


de “fazer diferente”, de variar seus usos e interpretações.
De outro lado, reconhecer esta possibilidade de variação das formas
de consumo televisivo pode levar ao equívoco de pensar que o público
pode usufruir de um espaço de autonomia absoluta na recepção. Para
tal armadilha de interpretação é prudente lembrar que não existe um
lugar da recepção dos produtos mediáticos totalmente íntegro e autên-
tico, como se estivesse situado fora do campo de forças das relações de
poder e dominação culturais. É na interseção entre linhas de força de
dominação e resistência que essa interação se estabelece, aqui e acolá.

2.4 “Melhor do que a encomenda”


Juntas, as visões deterministas de comunicação e elitistas de cultura
justificariam as defesas de que, nesta transição vislumbrada no mercado
televisivo da atualidade, a TV aberta “já vai tarde”, sobretudo por repre-
sentar esse lugar incômodo das hibridizações que promovem uma
espécie de metamorfose cultural. Entretanto, o que buscamos eviden-
ciar é que esta mesma TV aberta, em sua existência ambígua e complexa
no seio da sociedade, pode também apresentar vantagens potenciais e
impactos positivos, pouco reconhecidos pela maioria de seus críticos.
Neste sentido, o caminho mais adequado da análise da TV deve
seguir não interpretações simplistas ou expectativas de um grupo social
específico, mas a história dos usos que efetivamente se fez – e que ainda
hoje se faz – dela, frutos de um processo social complexo que mistura
modernização, massificação e mercantilização do mundo. Dominique
Wolton (1999) fala dessa vinculação do surgimento da TV com um
projeto moderno/iluminista/capitalista de sociedade. Ele argumenta
que na constituição das sociedades contemporâneas, a que denominou
“sociedade individualista de massas”, coabitam dois movimentos estru-
turais antagônicos, que acabam criando uma contradição interna ao
sistema: o primeiro ligado à valorização do indivíduo em nome da filo-
sofia liberal e moderna, e o segundo de valorização do grande número,
em favor da igualdade e dos ideais democráticos. E assim, entre as
massas e o indivíduo, entre o número e as pessoas, abre-se uma fratura
que nos obriga a buscar formas de elo social entre estas duas dimensões
DA TV ABERTA AO STREAMING 151

antinômicas. E este é o viés pelo qual a televisão deve ser pensada, para
além das abordagens estritamente tecnicistas, elitistas ou deterministas
a seu respeito. Afinal,

... a televisão é a única atividade partilhada por todas as classes so-


ciais e por todos os grupos etários, fazendo assim o elo entre todos
os meios. O que não impede, pelo contrário, uma crítica daquilo que
a televisão é. Mas é na medida dessa ambição e desse papel antropo-
lógico que é possível criticá-la. (WOLTON, 1999, p. 103 - grifos do
autor).

Ainda segundo Wolton, é esta função de elo social da TV que define


sua importância nos dias atuais, particularmente a TV aberta, identifi-
cada por ele como “generalista”, pois só ela está apta a oferecer, ao mesmo
tempo, uma igualdade de acesso – fundamento do modelo democrático
– e um leque de programas que pode refletir a heterogeneidade social e
cultural, “obrigando cada um de nós a reconhecer a existência do outro”
(WOLTON, 1999, p. 108), processo que também legitima e possibilita a
coabitação e integração das diferenças.
Nessa perspectiva, o declínio da TV aberta se apresenta como
restrição ao cumprimento do importante papel de mediadora das hete-
rogeneidades sociais e culturais e instância capaz de contribuir – num
momento de profundas rupturas – com o processo de desenvolvimento
da cultura, ao se transformar no principal elo social da contemporanei-
dade, capaz de eliminar a dinâmica da exclusão mesclando individua-
lismo, liberdade e igualdade.

3. Considerações Finais: preservando o contraditório


No debate a respeito do potencial televisivo de explicitação das
diferenças, outros autores expressam sua discordância com relação a
uma ação positiva desempenhada pela TV. Eugênio Bucci (1997), por
exemplo, argumenta que ela instaura um movimento inverso àquele
vislumbrado por Wolton: “o que acontece é que a televisão [aberta] se
apresenta com os mecanismos necessários para integrar expectativas
diversas e dispersas, os desejos e as insatisfações” mas, em sua dinâmica,
vai “ditando os contornos do grande conjunto, com um tratamento
152 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

universalizante das tensões” (BUCCI, 1997, p. 12). Isso significa que a


unificação que a TV promove só se dá de forma idealizada, o que seria
inclusive prejudicial à real demarcação das diferenças e tentativas de
resolução dos conflitos. A televisão, para Bucci, está ligada diretamente
à função de preservação das hierarquias e da ordem social, pois “onde
a sociedade de classes desiguala, no plano concreto, a comunicação de
massa indiferencia, no plano da ilusão, ou mais propriamente, da ideo-
logia” (BUCCI, 1993, p. 16).
Mas, apesar de promover uma unificação no plano do imaginário
por cima de um alicerce marcado por desencontros, rupturas e abismos
sociais, e fazer com que um “país desunido (real) se visse (se imaginasse)
unido”, o autor não deixa de enxergar fissuras nessa relação, que fazem
com que esse alicerce (o plano do real) – ainda que condenado à escu-
ridão – não cesse de existir e projetar suas dilacerações para o plano que
se vê na TV (BUCCI, 1993, p. 13).
Neste sentido, Bucci e Wolton se encontram em posições distintas
com relação ao papel desempenhado pela TV no processo de inclusão
social e incorporação da dinâmica democrática. Se Wolton defende uma
contribuição desta mídia na dissolução da exclusão pela visibilidade que
confere aos “outros” sociais e pela igualdade de acesso para todo o seu
público, Bucci faz o contraponto ao argumentar que “a televisão reproduz
a exclusão social e o preconceito de classe à medida que integra” (1997,
p. 32). Em outras palavras, para Bucci é a partir de uma banalização
da imagem das elites que a TV mostra uma realidade, falsificando-a
e, portanto, escondendo-a dos olhos do seu público. Nestes termos, é
possível perceber uma certa filiação de Bucci à tradição marxista, e uma
proximidade de sua argumentação com a teoria frankfurtiana, princi-
DA TV ABERTA AO STREAMING 153

palmente quando Adorno afirma que a TV “suscita a ilusão de que o


espírito do senhor seja o da época” (ADORNO, 1978a, p. 352)3.
De fato, não se deve sair em defesa da TV (seja aberta ou sob
demanda) pelo simples fato dela ser onipresente na vida social, como se,
ao buscar atender aos anseios do povo, pudéssemos eximi-la de qualquer
“culpa”, propagando seu caráter “inofensivo”. O entusiasmo não é, defi-
nitivamente, o melhor substituto do determinismo ou do preconceito
que se busca superar. Por outro lado, a limitação da Teoria Crítica é que,
para provar que a televisão é “culpada” pela manutenção das relações
de poder e dominação nas sociedades, lança-se mão de pressupostos
unilaterais e valorativos chegando-se a defender, nas entrelinhas, um
ideal de superioridade da alta cultura em relação aos demais domínios
da experiência.
Portanto, para compreender os desafios, práticas e produtos culturais
da contemporaneidade sem as amarras de uma visão elitista de cultura,
é preciso legitimar também os parâmetros de escolha e julgamento
advindos do senso comum e da vida ordinária. Uma nova e pertinente
forma de avaliação dos produtos da TV deve passar, necessariamente,
por esta busca de ruptura com os padrões generalistas, exteriores e
datados de uma cultura letrada. Assim, não se trata mais de

“ensinar o usuário a se defender da mídia”, ou dizer-lhe como deve


interpretar (com o risco consequente, acima referido, de levar ao usu-
ário em geral interpretações prontas, assumidas como verdadeiras,
elaboradas pelos setores intelectuais e políticos “críticos”), mas sim
estimular uma cultura de opções pessoais e de grupos que qualifique
os usuários a fazerem sua própria crítica, por sua conta e risco. (BRA-
GA, 2002, p. 36).

3. Para Adorno, o consumidor da TV não é o rei, como a indústria cultural gostaria


de fazer crer, ele não é o sujeito, mas o seu objeto; o que nos remete a um contraponto
aos argumentos de defesa da autonomia da TV sob demanda de hoje. Ainda segundo a
argumentação de Adorno, é justamente esta falsa crença do consumidor como rei que
tem sido alardeada aos quatro cantos com o objetivo de continuar legitimando a ideologia
da “indústria cultural” e mantendo sua dominação. Para o autor, defender uma outra
abordagem da TV, salientando os benefícios e o papel social que desempenha, é um grande
engodo ou prova de ingenuidade por parte dos intelectuais que querem se acomodar a esse
fenômeno. (Adorno, 1978a)
154 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

José Luiz Braga (2002) chama atenção ainda para o fato de que toda
nova mídia deve constituir seu próprio aparato conceitual e analítico
após seu surgimento, a partir do desenvolvimento do meio e da compre-
ensão que se é capaz de ter de suas especificidades. Para que se possa
expressar o estado das coisas referentes à produção de determinada
mídia é preciso, antes disso, desenvolver bases, vocabulário e critérios –
para julgar, selecionar, avaliar os objetos da crítica – que sejam inerentes
e intrínsecos à lógica daquela mídia. Só assim é possível perceber dife-
renças, especificidades, sutilezas dos produtos e processos mediáticos
postos em circulação e ultrapassar as perspectivas marcadas por “recusa
ou encantamento em bloco” (BRAGA, 2002, p. 27 e 34).
Em última análise, não nos é possível distinguir, entre o modelo de
TV aberta e o de TV sob demanda, hierarquias, regras fixas ou efeitos
homogêneos na vida dos telespectadores, ou mesmo na sociedade como
um todo. O que se pode reconhecer é, em primeiro lugar, a existência
de uma transformação em curso na interação TV versus. telespectador;
e, em segundo, que a TV, em qualquer de suas facetas, se apresenta
na contemporaneidade como este lugar das tensões e negociações, da
quebra de limites, e das misturas e hibridizações. Se, por um lado, a TV
ajuda a reforçar os sistemas de dominação e as relações de poder, por
outro também permite movimentos de resistência e apropriação de seus
produtos.
Portanto, ao invés de uma leitura apressada, rasteira, determinista,
maniqueísta, preconceituosa, redutora ou valorativa da televisão, apos-
tamos na relevância de uma outra perspectiva mais cuidadosa, apro-
fundada, destituída o mais possível de a priori e, portanto, aberta aos
movimentos quase imperceptíveis de escapes, ambiguidades, reconfigu-
rações, contradições, imprevisibilidades e atualizações que atravessam
os processos de produção e recepção televisivos.
DA TV ABERTA AO STREAMING 155

Referências
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Gabriel (Org). Comunicação e indústria cultural. 4 ed. São Paulo: Cia.
Ed.Nacional, 1978a.

_______________. A indústria cultural. COHN, Gabriel (Org).


Comunicação e indústria cultural . 4 ed. São Paulo: Cia. ed. Nacional,
1978b.

ANDERSON, Chris. A cauda longa: do mercado de massa para o


mercado de nicho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015.

BRAGA, José Luiz. O sistema social crítico interpretativo. PRADO, José


Luiz Aidar (Org). Crítica das práticas midiáticas: da sociedade de massas
às ciberculturas. São Paulo: Hackers Editores, 2002.

BUCCI, Eugênio. Brasil em tempo de TV. 3 ed. São Paulo: Boitempo Ed.,
1997.

_____________. Da pancadaria explícita à violência invisível. O peixe


morre pela boca. São Paulo, Scritta, 1993.

CHARTIER, Roger. Leituras populares. Formas e sentido. Cultura escrita:


entre distinção e apropriação. Campinas: Mercado de Letras, ALB, 2003.

ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1976.

MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo: Ed. Senac,


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MCLUHAN, Marshall. A televisão: o gigante tímido. Os meios de


comunicação como extensões do homem. São Paulo: Ed. Cultrix, 1969.

STRINATI, Dominic. Cultura de massa e cultura popular. Cultura


popular: uma introdução. 1 ed. São Paulo: Hedra, 1999.

WOLTON, Dominique. Pensar a comunicação. Miraflores: Difel, 1999.

__________________. Elogio do grande público: uma teoria crítica da


televisão. São Paulo: Ática, 1996.
Capítulo 9 | Bússola #2

Pesquisa metapórica como nova


rota investigativa: a comunicação
como afecção
Vanessa Matos dos Santos
#audiovisual #metodologia #afecção

1. Introdução
As imagens exercem verdadeiro fascínio sobre os homens desde os
primórdios da humanidade. Além de proporcionarem uma espécie de
registro dos fatos, possibilitam uma forma de expressão que extrapola
a linguagem discursiva, escrita. Não por acaso, as pinturas rupestres
permitem esta dupla leitura: por um lado, o registro dos fatos; por outro,
uma forma de expressão artística. Esse fascínio potencializou-se quando
as imagens deixaram de ser apenas estáticas e ganharam dinamicidade,
som, textura, volume, espessura; elas se tornaram moventes, vivas e
presentes. Os sentidos se aguçaram e o audiovisual tornou tais traços
mais evidentes. Nesse sentido, pode-se mesmo afirmar que o audiovi-
sual democratizou sensações (mais abstratas) que antes estavam restritas
apenas àqueles cujos espíritos eram mais permeáveis às tais sensações.
Com o passar do tempo, o audiovisual foi se espraiando por meio de
diversos dispositivos técnicos que, por sua vez, ensejaram novas lingua-
gens, sentidos, modelos de negócio. Do cinema até os atuais vídeos
produzidos e disseminados por meio de plataformas como Youtube
ou Vimeo, os estudos relacionados ao audiovisual proliferaram, mas,
158 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

quase sempre, ou pelo menos na maior parte das vezes, como manuais
que traziam receitas prontas sobre como um bom material poderia ser
produzido, com suas possibilidades de montagem (e aqui não foge ao
exemplo o clássico O homem com a câmera, de Vertov), planos, efeitos
etc.
O olhar só foi deslocado para a questão das sensações despertadas
pelo audiovisual quando a euforia técnica diminuiu. Aos poucos, o
cinema (uma das expressões do audiovisual) consagrou-se como arte e,
novamente, novos campos de estudo se abriram. O potencial dos filmes
foi logo percebido pela escola (como expressão da educação institu-
cionalizada e do consequente ensino-aprendizagem), não apenas pelo
fascínio da novidade, mas, sobretudo, porque esses materiais represen-
tavam uma nova tecnologia no cotidiano das salas de aula. Não tardou
para que o audiovisual começasse a ser utilizado em propostas voltadas
para a instrução massiva de grandes contingentes populacionais.
Babin e Kouloumdjian (1989) destacam, por exemplo, que o audiovi-
sual imprimia um novo modo de compreender a realidade por meio
de imagens em movimento e de sons e que, por sua vez, eram capazes
de representar uma nova realidade, inaugurando uma nova linguagem
que se caracterizava, segundo os autores, essencialmente por comunicar
ideias por meio de sensações e emoções. A escrita acabava ficando rele-
gada a um segundo plano, já que o audiovisual era capaz de cativar mais.
Já existem diversos manuais de leitura crítica de audiovisuais, metodolo-
gias para uso desses recursos em sala de aula oriundas de diversos países
(SANTOS, 2017). As tecnologias digitais potencializaram ainda mais o
debate acerca dos recursos midiáticos (dentre eles os audiovisuais) em
sala de aula. A evolução da didática mostrou que o simples uso não se
configura um processo efetivo e/ou eficiente. Os audiovisuais deixaram
de ser simples recursos imagéticos e sonoros para se tornarem, hoje,
mecanismos de potencialização do protagonismo. Ao invés de buscar
sempre algo pronto, torna-se mais enriquecedor construir algo de forma
colaborativa (SARTORI, 2001; SCOLARI, 2013).
Num cenário permeado por dispositivos móveis que capturam som
e imagens de forma simplificada e barateada, o contato das pessoas com
os audiovisuais (e sua produção e disseminação) tem se tornado cada
PESQUISA METAPÓRICA COMO NOVA ROTA INVESTIGATIVA 159

vez mais democrático. Se esses dispositivos favorecem a produção de


audiovisuais, o surgimento de redes sociais virtuais (como o Facebook,
Instagram etc) tem favorecido e ampliado o protagonismo de pessoas
comuns. Para se ter uma ideia de como a produção e a disseminação
de conteúdos audiovisuais têm se tornado intensas, a cada minuto,
400 horas de conteúdo audiovisual são disponibilizadas na plataforma
(YOUTUBE, 2019).
Esse contexto, que atropela a todos, fez com que os antigos manuais se
tornassem praticamente obsoletos. Distante de apresentarem complexos
processos de iluminação ou planos, uma vista prévia dos audiovisuais
que concentram os maiores índices de visualização na plataforma
citada anteriormente revela que o maior desafio está justamente em
“re-pensar” o fenômeno comunicativo despertado e proporcionado por
esses materiais. Afinal, diante desse cenário, como pensar o audiovisual
na contemporaneidade? Assumindo de antemão a multiplicidade de
respostas possíveis a este questionamento, o presente capítulo detém-se
a apresentar as contribuições do metáporo, desenvolvido no escopo da
Nova Teoria da Comunicação (NTC) como uma nova rota no estudo
dos audiovisuais.

2. Pensar em imagens
Para início de percurso, é importante que se destaque, no escopo
deste capítulo, o que se compreende por audiovisual na contemporanei-
dade para que seja possível, na sequência, apresentar a articulação entre
tal entendimento e o metáporo.
Para além da mera junção técnica entre som e imagem, assumimos
que o audiovisual no mundo atual tem se colocado com o que Dubois
(2014) designa vídeo. Aqui é importante ressaltar que a referência não é
o cinema clássico ou tradicional. Ao contrário, o vídeo é o lugar de todas
as flutuações e, justamente por isso, carrega consigo diversos problemas
concernentes à sua identidade, conceituação, filiação etc. O vídeo é,
para Dubois, um estado. Não se trata apenas de algo fixo. Pode sê-lo
também, mas não apenas. Vídeo não é um objeto; trata-se de um estado,
pois se apresenta de forma “[...] múltipla, variável, instável, complexa,
ocorrendo numa variedade infinita de manifestações” (DUBOIS, 2014,
160 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

p. 12-13). Isso significa que, em síntese, o vídeo é a expressão máxima


do presente; aquilo que interpela e simultaneamente constitui o sujeito
produtor e espectador.

Dito de outro modo, é o ato de olhar se exercendo, hic et nunc, por


um sujeito em ação. Isto implica ao mesmo tempo uma ação em curso
(um processo), um agente operando (um sujeito) e uma adequação
temporal ao presente histórico: “eu vejo” é algo que se faz “ao vivo”,
não é o “eu vi” da foto (passadista), nem o “eu creio ver” do cinema
(ilusionista) e tampouco o “eu poderia ver” da imagem virtual (uto-
pista). (DUBOIS, 2014, p. 72).

Vídeo, portanto, não é o devir e nem potência; ele é a vivência do


agora, uma forma de pensamento. Desta maneira, por mais que se tente
traduzir em linguagem verbal os sentidos de um vídeo, tal empreendi-
mento jamais vai alcançar a totalidade do que apenas a linguagem vide-
ográfica é capaz de expressar. O estado-vídeo1 é, em si, uma forma que
pensa, que expressa, que se insere no presente, expressando-o e incor-
porando-o. Desta forma, o vídeo é também o não-visível, aquilo que
não está exposto na tela, mas que se coloca ao espectador à medida que
algo o convoca; múltiplo, ambíguo, heterogêneo, suspenso, movente. A
assunção dos audiovisuais nesta perspectiva pressupõe pensar o movi-
mento e focalizá-lo como algo vivo e não como objeto fixo, congelado.

3. A Nova Teoria da Comunicação


Comunicação é um conceito característico do século XX. Com essa
afirmação, Peters (2012) identifica o que seria a ideia de comunicação
ao longo da história. De acordo com o autor, a concepção clássica que
invoca o termo como sinônimo de comunhão ou diálogo precisa ser
revista por se relacionar mais a um ideal do que algo que se coloca na

1. Dubois (2004) destaca e referencia uma série de vídeos em sua obra e indica as
características do vídeo em comparação ao cinema e à televisão. Dentre os vários pontos
destacados pelo autor, está, por exemplo, a mixagem de imagens em detrimento das
tradicionais edições de planos. Em função da limitação de espaço e, sobretudo, do objetivo
principal deste texto, optou-se aqui por apenas sintetizar (ainda que de forma bastante
incompleta) os pontos do pensamento do autor que dialogam com a Nova Teoria da
Comunicação.
PESQUISA METAPÓRICA COMO NOVA ROTA INVESTIGATIVA 161

atualidade. Em sua busca pelas bases modernas do que se convencionou


chamar de Comunicação, Peters (2012), assim como Marcondes Filho
(2010), parte do princípio de que “O termo evoca uma utopia onde nada
é mal compreendido, os corações estão abertos e a expressão é desini-
bida2”. Tal compreensão encontra-se enraizada no termo communicare,
do latim, que, de fato, significa dividir, tornar comum, fazer parte. O
termo é introduzido na língua inglesa nos séculos XIV e XV, e sua raiz
passa a ser mun (que dará origem ao termo “comunidade”, por exemplo).
Munus tem a ver, portanto, com eventos públicos ou exibições livres
para todos. Communicatio, do latim, não significa, por conseguinte,
uma partilha mútua, compartilhamento de ideias por símbolos ou qual-
quer outro sentido que invoque essa ideia.
Em sua origem, em realidade, na teoria retórica clássica, o termo
designava um aspecto técnico, ou seja, um dispositivo por meio do qual
um orador poderia assumir a voz hipotética do adversário ou público.
Nesse aspecto, a concepção de diálogo entre sujeitos distintos era menos
autêntica do que a simulação do diálogo por um único falante3. A ideia
de communicatio como fazer parte, tornar comum, ainda assim se disse-
minou, provavelmente porque implica o princípio de fazer parte de
um corpo social por meio da linguagem, por exemplo. Outras ideias
também se disseminaram e se relacionam notadamente aos momentos
históricos nos quais se desenvolveram. Não por acaso, a concepção de
comunicação como transferência de algo, conexão, sinais, fica evidente
a partir do invento do telégrafo, por exemplo. Enquanto os estudos se
concentravam no âmbito das ciências exatas, estava claro que a chegada
de um sinal tal como saiu da fonte representava sucesso comunica-
cional. Ocorre, no entanto, que não se pode falar em transferência ou
ainda em adaptação de princípios ou conceitos. Seres humanos não são
máquinas e, como tal, não respondem como elas. Compreender uma

2. Tradução livre do original: “The term evokes an utopia where nothing is misunderstood,
hearts are open and expression is uninhibited” (PETERS, 2012, Loc 84. p. 2, kindle edition).
3. Tradução livre do original: “In classical rhetorical theory communicatio was also a
technical term for a stylistic device in wich an orator assumes the hypothetical voice of the
adversary or audience; communicatio was less authentic dialogue than the simulation of
dialogue by a single speaker (PETERS, 2012, Loc. 177)
162 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

situação de troca entre seres humanos pressupõe abertura e, até certo


ponto, também um grau de intimidade.
Há uma fronteira que se coloca nesse ideal de compartilhamento
que equivale justamente à interioridade de cada um. Não é possível, por
exemplo, realizar uma fusão de consciências. Há um certo espaço de
individualidade que se constitui justamente naquilo que o Ser possui
de indecifrável. Não é possível, portanto, esquadrinhar, calcular nem
mesmo realizar o que seria essa fusão de consciências (algo muito
próximo do que Pierre Teilhard de Chardin denominou como noosfera).
Ainda assim, é possível encontrar estudos que buscam “prever”
comportamentos por meio de estímulos quando hoje já se sabe que o
homem é um Ser muito complexo, de modo que o que o estimula hoje
pode não exercer o mesmo fascínio amanhã (SANTOS, 2017). Os crité-
rios duros de pesquisa (principalmente no que se refere ao método)
praticamente soterraram aquilo que a Comunicação tinha (e tem) de
mais particular (o sentir, a percepção) em nome de um pseudocientifi-
cismo.
Bachelard (1996) desempenha vital importância nesse processo
porque apresenta outro ponto de vista no que se refere ao conhecimento
científico que parece libertar a Comunicação das amarras das ciências
duras. Em relação à discussão sobre o método, para Bachelard (1996,
p. 136), o “[...] espírito científico vive na estranha esperança de que o
próprio método venha a fracassar totalmente. Porque um fracasso é
facto novo, uma ideia nova”. A reprodução incessante do mesmo conduz
a uma clareza forçada que impede a visualização do que de fato é o novo,
o interessante, o surpreendente. Muitas vezes a pesquisa científica exibe
algo a que as lentes metodológicas não permitem dar relevo. O próprio
Goethe chegou a afirmar, durante um congresso de Filosofia, que “Quem
perseverar na sua pesquisa é levado, mais tarde ou mais cedo, a mudar
de método” (BACHELARD, 1996, p. 136).
A Nova Teoria da Comunicação (NTC) surge como algo radical-
mente novo, principalmente no que se refere aos procedimentos de
investigação ensejados por ela que negam, veementemente, a aplicação
de um método comunicacional. No escopo da NTC, comunicar não
deve se confundir com sinalizar ou informar. Tudo o que existe (pedras,
PESQUISA METAPÓRICA COMO NOVA ROTA INVESTIGATIVA 163

seres humanos, animais etc.) emite sinais, ou seja, sinais são emitidos
e recebidos cotidianamente, ainda que não se queira. Alguns sinais
podem ocorrer de forma deliberada, enquanto outros podem se dar de
forma não intencional. Entretanto, como bem destaca Marcondes Filho
(2008, p. 5-26), a emissão de um sinal não pressupõe, necessariamente,
a recepção. Uma ação não se liga à outra segundo uma relação de causa
e efeito. Cabe a cada um decidir a quais sinais dará atenção. Quando
ocorre o interesse por algo que está sendo dito, exibido, ouvido, então
esse sinal se converte em informação, cujo objetivo maior é possibilitar
ao ser mais e melhores condições de se adaptar, de agir e de estar no
mundo. Trata-se de uma ação deliberada que implica uma escolha, ou
seja, cada um vai em busca das informações de que necessita e as incor-
pora ao seu repertório numa ação de seleção consciente (MARCONDES
FILHO, 2010).
A Comunicação, por seu turno, pressupõe mudança qualitativa de
um estado para outro. Isso significa que algo precisa mudar no Ser para
que se possa afirmar que ocorreu a comunicação. Comunicar é um
fenômeno que, a despeito do que apregoa o senso comum, não acon-
tece com tanta frequência, e tampouco pode ser reproduzido em labora-
tório. Por resgatar a importância do Outro (praticamente negligenciado
nas teorias tradicionais e considerado mero receptor), a NTC parte do
ponto de vista de criar sentido, de gerar mudança, ruptura. O único ser
que é capaz de perceber isso é aquele que vivenciou o fenômeno comu-
nicacional (MARCONDES FILHO, 2018). Comunicação, por essa ótica,
é algo muito maior, livre de materialidade. Ela se estabelece, entre outros
aspectos, na relação com o outro, no princípio da alteridade, e é por essa
razão que o Outro recebe especial atenção por parte de Ciro Marcondes
Filho, (2004; 2010), o pai da NTC.
Também Buber faz uma importante reflexão (resgatada por
Marcondes Filho, 2010) a respeito do tu e do isso. A relação eu-tu é
distinta da relação eu-isso. Enquanto a primeira pressupõe o encontro
essencial do homem numa atitude de reciprocidade (posto que reco-
nheço o tu), a segunda é calcada na atitude objetivante (o isso deve servir
para ser investigado, transformado). Aqui não se fala necessariamente
de pessoas, posto que o isso pode se transformar em tu, a depender
164 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

da atitude que o ser tem diante dos fatos, das pessoas (MARCONDES
FILHO, 2010, p. 35).
A postura diz muito sobre o tipo de relação que se estabelece, visto
que “tratar uma pessoa como objeto de estudo é vê-la como ‘isso’”. Trans-
formar o isso em tu pressupõe uma nova atitude, um novo comporta-
mento, em que o eu se torna permeável ao outro (tu), pois, como destaca
Buber (2001, p. 56), “a alteridade essencial se instaura somente na relação
EU-TU; no relacionamento EU-ISSO o outro não é encontrado como
outro em sua alteridade”. Ao se basear na óptica de Lévinas, Marcondes
Filho defende que o Outro, no fenômeno comunicacional, é tal como é
em Lévinas: impenetrável, insondável, aquele que está fora de mim. Não
necessariamente se está falando de uma pessoa, mas sim daquilo que o
ser não é e, exatamente por isso, é aquilo que rompe o ego e possibilita
ver além de si mesmo. A comunicação pressupõe, dessa forma, o reco-
nhecimento do Outro, mas não apenas isso. É preciso romper a barreira
que há em mim para acolher, hospedar o Outro que me choca (por ser
tão diferente de mim) e que pode até mesmo me agredir dada a sua
estranheza. É preciso abrir-se. Essa abertura, no entanto, não acontece
sempre numa situação dialógica (como queria Buber); ela pode ocorrer
pelo atrito, pelo radicalmente oposto, pela formação de ranhuras e
fissuras na alma. Seguindo esta linha de raciocínio, Ciro Marcondes
Filho (2018; 2019) defende que a Comunicação só pode ser sentida,
observada. Não se trata de algo previsível e nem mesmo quantificável.
Trata-se de algo da ordem do sensível, da afecção.

3.1 Comunicação como afecção


É salutar destacar as contribuições de Spinoza, umas das bases da
epistemologia empreendida por Marcondes Filho, para compreender
o que vem a ser a concepção de comunicação como afecção. Spinoza
compreendia que, diferentemente do que postulava a tradição, não
existe superioridade da alma em relação ao corpo.
Para ele, ambos são parte (expressões) de uma mesma substância.
Lê-se, na proposição XXI de sua principal obra, Ética (p. 30): “a Mente
e o Corpo são um só Indivíduo, que é concebido ora pelo atributo
Pensamento, ora pelo atributo Extensão. Donde a ideia da Mente e a
PESQUISA METAPÓRICA COMO NOVA ROTA INVESTIGATIVA 165

própria Mente são uma só coisa que é concebida por um mesmo atri-
buto, o Pensamento”. Nessa perspectiva, Spinoza entende que o atributo
Pensamento está voltado para as questões da mente, enquanto o atributo
Extensão está ligado à materialidade física. No entanto, sublinhe-se, não
há uma real separação entre esses atributos. Spinoza os entende como
atributos ou instâncias de uma mesma coisa, mas não apregoa a sepa-
ração entre tais aspectos. A base de sua filosofia é o afeto, mas é prati-
camente inviável discutir esse vocábulo sem passar pela concepção de
ideia. Para ele, o sentido de ideia é simples: trata-se de um “[...] modo
de pensamento que representa alguma coisa. Um modo de pensamento
representativo” (DELEUZE, 2009, p. 20).
Affectus, por sua vez, refere-se a um modo de pensamento que não
representa nada, ou seja, “todo modo de pensamento não representa-
tivo será denominado afeto” (DELEUZE, 2009, p. 21). Como exemplo,
Deleuze cita o fato de uma pessoa querer algo; esse algo (objeto, coisa)
implica uma representação e, portanto, uma ideia. O fato de querer esse
algo, entretanto, não implica uma representação. Trata-se, por conse-
guinte, de um afeto. Tais definições são, contudo, apenas nominais. Do
ponto de vista de uma definição real, Spinoza entende que todos os seres
são autômatos espirituais e, como tal, as ideias perpassam os seres a todo
o momento (elas sucedem-nos, desdobram-se sobre eles). Dessa forma,
nessa “sucessão de ideias, nossa potência de agir ou nossa força de existir
é aumentada ou diminuída de uma maneira contínua (...) e isto é o que
nós chamamos afeto, o que nós chamamos existir” (DELEUZE, 2009, p.
28-29).
O affectus é, então, a variação (resultante das ideias) da força de existir
de alguém. Spinoza trabalha com a ideia de dois afetos fundamentais
(polos): a alegria e a tristeza. Quando a potência de agir aumenta, o
ser experimenta um affectus de alegria. O contrário faz com que o ser
experimente um affectus de tristeza. A afeçção (affectio), por sua vez, é
a situação ou estado de um corpo enquanto sofre uma ação proveniente
de outro corpo. Aqui, o importante é destacar a palavra “enquanto”. A
afecção se dá no durante, no atrito dos corpos, no contato.
A mistura entre os corpos é também denominada por Spinoza como
afecção. Normalmente, a afecção indicará a natureza do corpo afectado
166 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

muito mais que a natureza do corpo afectante. Nesse sentido, Marcondes


Filho (2019, p. 22) destaca que há, nas concepções de Spinoza, um ponto
crucial que precede a Nova Teoria da Comunicação, qual seja: “[...] essas
afecções, quando absorvidas, passam a fazer parte de nós”.
As afecções atuam no sentido de aumentar ou diminuir a potência
do corpo; o que provoca o aumento seria a ação, enquanto a diminuição
seria obra da paixão. Associada à ação, estaria a alegria, enquanto asso-
ciada à paixão estaria a tristeza. Mas há ainda um terceiro componente
das afecções: o desejo. Com as demais, ele compõe as três formas de
afecção. O que acontece com o desejo? Diz Espinosa que a alma realiza
um esforço quando busca algo e a esse esforço ele dá o nome de vontade.
Se essa vontade relacionar-se também com o corpo, ela se torna, então,
apetite. O desejo, no caso, se daria quando se tem consciência desse
mesmo apetite (MARCONDES FILHO, 2019, p. 23).
A Comunicação pode, então, ser uma afecção, e esta, por sua vez,
implica desejo. Se é assim, então a Comunicação deve também despertar
o desejo. Explica Spinoza, no terceiro livro da Ética, que “O desejo – cupi-
ditas – é a própria essência do homem enquanto concebida como deter-
minada a fazer algo por uma afecção nela encontrada [...] (SPINOZA,
Ética, III, p. 190). Ainda no terceiro livro, Spinoza destaca que não
existem causas finais. Ao contrário, somos passivos e ativos de corpo
e alma o tempo todo. Seria improfícuo buscar esse tema com base em
métodos pré-estabelecidos. Com base no Princípio da Razão Durante
que, diferentemente de uma visão polarizada entre objetividade e subje-
tividade, emissão e recepção, significação e sentido, valoriza o “entre”
(MARCONDES FILHO, 2008), essa nova visão de pesquisa implica em
assumir que a comunicação se processa no durante, no momento de
sua ocorrência, buscando atingir o sensível, o único, o irreprodutível de
cada experiência, um Acontecimento.

3.2 Metáporo ou o quase-método


No escopo da NTC, o metáporo – ou o quase-método – é o proce-
dimento investigativo que permite ao pesquisador observar o vivo no
auge de sua vivência, enquanto ocorre. O pesquisador não “congela” o
objeto para investigá-lo. Ao contrário, persegue o movimento vivo do
PESQUISA METAPÓRICA COMO NOVA ROTA INVESTIGATIVA 167

objeto e realiza observações desses acontecimentos, que são únicos e


irreproduzíveis.
Diferentemente da pesquisa clássica ou tradicional, a pesquisa que
assume a comunicação como um Acontecimento pressupõe a necessi-
dade de “re-escrever” os caminhos e de revisitar os temas em função do
novo contexto, mas, sobretudo, em função do momento. Assim, a ideia
de métodos pré-estabelecidos e constantemente aplicados, facilmente
reproduzíveis, não cabe na perspectiva da Nova Teoria da Comunicação.
O “vivo” está justamente na ausência de um método fixo, definitivo,
fechado, asséptico.
O método serviria para captar aquilo que os sentidos falseiam, ou seja,
aquilo que é captado pelo sentido deve ser constantemente submetido
à prova. De forma diametralmente oposta e assumindo a epistemologia
metapórica (posto que o metáporo opera pelos poros, um espaço, uma
passagem que permite visualizar o Acontecimento comunicacional que,
por sua vez, deixa-se ver), a Nova Teoria da Comunicação está assentada
na perspectiva de que o pesquisador se torna a rede. Ele deixa de ser o
sujeito que lança a rede e apenas observa para se tornar a própria rede.
É importante destacar que o pesquisador que assume a Nova Teoria
sente o que se passa ao seu redor e se coloca na cena do Acontecimento.
Existe, na Nova Teoria, a valorização do sentir e do percepcionado. Se,
por um lado, a acepção do metáporo possibilita pesquisas antes impos-
síveis sem essa visão, por outro, também impõe desafios a um objeto
que não é controlado. O metáporo impõe a necessidade de acompanhar
o movimento, o que nem sempre é confortável para pesquisadores que,
por mais que se esforcem, ainda carregam a herança de uma ciência
calcada em métodos rígidos. Trata-se, portanto, de uma rebeldia acadê-
mica necessária: libertar-se das amarras e perceber-se no mundo.
O pesquisador não visa apreender, capturar ou dissecar algo. Ele
busca vivenciar e sentir o fenômeno, buscando formas para transmitir o
clima, a pulsação, a vibração experimentados. E de que forma o pesqui-
sador consegue identificar que o fenômeno ocorreu ou está ocorrendo?
É preciso estar aberto para a apreensão instantânea do fenômeno. Essa
necessidade repõe a importância da intuição intelectual, ou seja, “fatos
que antecedem e que sucedem a intuição sensível” (MARCONDES
168 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

FILHO, 2010, p. 254). A intuição sensível é, portanto, o marco priori-


tário na identificação do Acontecimento, da ruptura.
A intuição intelectual, por sua vez, pode ocorrer antes ou após a
intuição sensível, de acordo com o objeto em questão. Esse movimento
vai depender da temporalidade metapórica, definida por Marcondes
Filho (2010, p. 254) como “uma temporalidade estendida marcada
pelos picos de êxtase”. Esses picos correspondem à intuição sensível e ao
momento da virada, da ocorrência do fenômeno que justifica a afirmação
de ocorrência da comunicação genuína, capaz de possibilitar a ruptura
e a marca de algo que atravessa o Sujeito, que rompe, que violenta, que
choca. Essa virada, a transformação que choca e violenta, pode acon-
tecer nos primeiros instantes da relação, como no caso de uma emoção
forte ou mesmo no cinema, e os efeitos serão sentidos em momentos
posteriores. Nesse caso, a intuição intelectual se processa no depois, de
modo que algo permanece ressoando no Sujeito, transformando-o após
a exibição de uma obra cinematográfica, por exemplo. Mas, em situações
educacionais, o sentido pode ser diferente: o pico intuitivo pode ocorrer
após uma longa explicação do professor, por exemplo. Os audiovisuais,
por exemplo, têm o potencial de possibilitar picos de êxtase tanto no
início (como obra cinematográfica) quanto no final (como processo
educativo) da relação.

4. Perscrutar o fenômeno, viver a experiência


Partindo da compreensão de que audiovisual (ou vídeo, para Dubois)
é uma forma que pensa, algo em processo e, portanto, inacabado e que
permanece em movimento, fica claro compreender que não é possível,
diante de sua própria natureza, “congelá-lo” ou ainda fragmentá-lo para
iniciar uma pesquisa. Mais que identificar aspectos quali ou quanti, é
interesse do metáporo captar o fenômeno comunicacional por meio dos
sentidos e identificar em que (ou quais) medidas isso afeta o ser que
se colocar diante de um audiovisual (quer seja para produzi-lo, quer
seja para apenas espectá-lo). Mas como operacionalizar o procedimento
metáporico? De acordo com Dantas (2012), é preciso considerar:
PESQUISA METAPÓRICA COMO NOVA ROTA INVESTIGATIVA 169

1. Condições de possibilidades, ou seja, a decisão de como o observa-


dor vai se portar diante da pesquisa, pois é necessária uma preparação
diante do objeto a ser observado, já que é algo que está em movimen-
to contínuo.

2. Observações para se definir como irá se trabalhar com o fenômeno,


ou seja, a maneira como o pesquisador irá operar com certos elemen-
tos durante o seu processo observacional.

3. Constatações necessárias à definição da própria pesquisa em torno


do fenômeno ou objeto observado. (DANTAS, 2012, p. 14-15).

Se por um lado o procedimento metáporico permita ao pesquisador


experienciar o fenômeno, por outro lado implica também em desafio e,
até certo ponto, também desconforto. A tradição de pesquisa científica
há muito nega apenas aquilo que é proveniente dos sentidos e que não se
coloca como algo que pode ser reproduzido. Grossman (2016) destaca
que o deslocamento de sentido – com vistas a valorizar aquilo que é
sentido, mas nem sempre passível de ser cartesianamente registrado – se
deu em direção a:

[...] expandir o campo das nossas percepções e afetos, de inventar um


espaço transindividual (artista e espectador, autor e leitor) que nos
abra a um outro corpo de sensação, nem o meu, nem o outro, a pro-
var, a viver, a pensar – um corpo onde nossas subjetividades – onde
um tempo – se desfaçam e se recomponham, diferentes. Os corpos de
escrita que eles experimentam dominam a força das pulsões segundo
uma outra lógica que não essa da abrupta oposição binária de mas-
culino e feminino. Eles reinventam corpos estranhos, decompostos e
fluidos, configurações relutantes ao nosso pensamento ordinário [...].
(GROSSMAN, 2016, p. 16).

A NTC busca valorizar justamente o irreproduzível e registrar – com


toda a força da potência alcançada pelo pesquisador – a experiência da
vivência. Se é assim, o próprio Marcondes Filho (2019, p. 67), recor-
rendo à Grossman, questiona: “como sensibilizar esse outro, como afetá-
-lo, como projetar nele sensações”?
Não há receitas prontas. Ao pesquisador, que rasga uma passagem,
busca um poro, uma passagem, para visualizar o Acontecimento comu-
nicacional, há apenas e tão somente a necessidade de buscar registrar
170 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

o fenômeno. A forma redacional é ainda a mais utilizada, mas não é a


única. É possível sim buscar formas outras para sublevar como se expe-
rienciou algo. Para isso, é preciso que o investigador realize, antes, a
suspensão de seus pré-julgamentos e preconceitos. Os audiovisuais
tocam os sujeitos e são capazes de despertar os desejos mais recônditos
de um ser porque nada lhes é impossível, descabido ou mesmo passivo
de julgamento: é um mundo em que tudo é possível e lícito. Isso significa
que os audiovisuais se colocam como locais de realização dos sonhos, do
devaneio, da liberdade.
Registrar o movimento metaporicamente pressupõe rasgar uma
passagem, expandir os poros sem medo, perscrutar o fenômeno e efeti-
vamente viver a experiência da pesquisa. O registro (redacional, artís-
tico etc) deve perseguir o objetivo de possibilitar ao Outro uma aproxi-
mação do objeto a ponto de desejar ele também viver algo parecido. A
pesquisa não deve, portanto, afastar o sujeito do fenômeno e sim buscar
abrir brechas que permitam novos e surpreendentes olhares. Isso quer
dizer que esta nova rota não pressupõe a necessidade de compartimen-
talização e sequer o seguimento de um método fixo. Aliás, o pesquisador
se baliza justamente pelo não seguir métodos fixos.
Alguns talvez levantem questionamentos acerca do rigor cientí-
fico. Aquilo que se faz sem seguir um método fixo deixa de ter rigor
científico? A busca pelo rigor – considerando as diversas áreas – pode
levar ao que Aristóteles classifica como Senso de Mal-Estar ou ainda
como “Síndrome da Náusea do Rigor Científico” (BOFF, 2015, p. 1567).
Vejamos:

(O mal-estar que alguns sentem em relação ao rigor provém) seja de


sua incapacidade de compreender os nexos do raciocínio, seja de sua
aversão pelas sutilezas. O rigor efetivamente tem algo que pode pare-
cer sutileza (micrología). Por isso, alguns o consideram qualquer coisa
de mesquinho (anelêutheron), e não só nos discursos, mas também
nos negócios. (Met. II, 3, 995, a 9-12, grifos nossos).

Assumir o sutil, a minúcia, pressupõe, por sua vez, uma outra


forma de pensar, de sentir e de se relacionar com a pesquisa. Perseguir
a minúcia não deve constranger o espírito. Ao contrário, deve buscar
dilatá-lo rumo a experiências nunca antes vivenciadas.
PESQUISA METAPÓRICA COMO NOVA ROTA INVESTIGATIVA 171

Recorrendo a Aristóteles, Boff (2015, p. 1565) assevera que o axioma


mais elementar da epistemologia diz respeito à importância de “antes
de adentrar um estudo ou um debate, examinar, o quanto possível, a
natureza da questão em pauta, para ver, em seguida, que tipo de rigor
argumentativo ele pode exigir em tal questão”. Importa, portanto, que
o discernimento epistemológico seja originado a partir das especifici-
dades do que se vai estudar.
Nas palavras de Aristóteles: “É próprio do homem educado (pepai-
deuménou) exigir em cada matéria (génos) tanto rigor (akribés) quanto
comporta a natureza daquela matéria” (Ét. Nic. I, 3, 1094 b 24-25).
Ignorar a premissa primeira de qualquer investigação científica cons-
titui-se, para Aristóteles, em apaideusia (Ét. a Eudemo I, 1, 1217 a 6-8).
O termo designa uma pessoa a quem falta educação de ordem episte-
mológica e, de certa forma, também formação intelectual básica (BOFF,
2015). É igualmente indicativo de apaideusia buscar conceber que uma
luva deve caber em toda e qualquer mão. Nem tudo pode ser demons-
trado. É preciso visualizar e, sobretudo, respeitar a natureza do estudo.
Isto posto, fica claro que as referências de rigor que norteiam as dife-
rentes áreas do saber são de naturezas distintas. Se não o fossem, esta-
riam, pois, na mesma área.
]Enxergar o óbvio é já um lugar comum que pouco ou nada contribui
para o progresso do conhecimento sobre o mundo e sobre nós mesmos.
Ainda que seja um clichê, destacamos a impossibilidade de alcançar o
novo se partimos sempre dos mesmos lugares e percorremos sempre os
mesmos caminhos. Esses últimos, para nós, podem ser expressos pelos
métodos rígidos.

5. Considerações Finais
No caso da Comunicação entendida como Acontecimento, pres-
supomos o movimento, o vivo, o fluxo. É impossível que as sutilezas
do Acontecimento Comunicacional sejam captadas por métodos que as
cristalizam. Interessa-nos aquilo que se passa enquanto se passa. Além
de oferecer estudo acerca da valorização dos audiovisuais, este tipo de
pesquisa nos liberta da visão há muito viciante de que só existe uma
172 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

forma “correta” de assisti-los (aquela apregoada pelos críticos e especia-


listas).
Este tipo de investigação tem como fundo a democratização do ver/
assistir/contemplar um audiovisual sem culpa por não ver aquilo que
todos achavam que deveria ser visto. É a derrubada do (bom) gosto.
Em Crítica muda e cega (conto constituinte da obra Mitologias), Roland
Barthes (2001, p. 28) afirma: “a cultura é permitida com a condição
de proclamar periodicamente a vaidade dos seus fins e os limites do
seu poder”. Não importa o que dizem os críticos ou manuais; importa
apenas aquilo que toca, aquilo move.
Ademais, o movimento de libertação não cessa aqui. Estudar os
audiovisuais por meio da Nova Teoria da Comunicação pressupõe a
valorização da Ciência que é feita no Brasil. Adotar a Nova Teoria da
Comunicação não significa esquecer tudo o que já foi construído até
aqui, mas vislumbrar novas possibilidades, abrir uma rota possível para
o estudo dos audiovisuais. Este é talvez o maior exercício de liberdade
proposto (e executado) aqui: a desvinculação do colonialismo acadê-
mico – aquele que aprisiona nos tradicionalismos e que não responde
às ansiedades e necessidades, mas que se consagrou em virtude de uma
autoridade arcaica há muito instituída nas Universidades.
Diante disso, a rebeldia é necessária para se encontrar no meio
disso tudo e ser feliz. O respeito a uma nova visão é também uma luta.
Existem espaços claramente definidos e delimitados, mas tenho espe-
ranças. Tenho esperanças de que, diferente de Núnez4, do conto de
Herbert George Wells, denominado Em terra de cegos, os adeptos de
novas formas de ver a Ciência não precisarão fugir para manter a visão.

4. Escrito em 1904, The country of the blinds (traduzido como: Em Terra de Cego) é um
conto que retrata a chegada de um homem vidente a um local habitado unicamente por
cegos há várias gerações. Sua habilidade (a visão) logo a passa a ser encarada pelos demais
como aquilo que dificulta sua vivência em grupo, resultando, ao final do conto, na fuga
do vidente para que pudesse manter sua faculdade de ver. Este conto contradiz o dito
popular de que “Em terra de cego, quem tem olho é rei”. Em verdade, Wells mostra o
quanto temos dificuldade de aceitar o diferente e conviver com ele. A intolerância chega
ao limite máximo quando, no conto, propõe-se que Núnez abra mão de sua visão para se
adaptar à vida naquela sociedade.
PESQUISA METAPÓRICA COMO NOVA ROTA INVESTIGATIVA 173

Referências
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compreender. Trad. Maria Cecília Marques. São Paulo: Paulinas, 1989.

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Janeiro: Contraponto, 1996.

BARTHES, Roland. Mitologias. Trad. Rita Buorgermino e Pedro de


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Acontecimento. Anais do XVII Congresso de Ciências da Comunicação na
Região Sudeste. Ouro Preto: Intercom-Sociedade Brasileira de Estudos
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de Teologia e Ciências da Religião, v. 13, nº 39, p. 1559-1579, 2015.

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1972). Lisboa: Círculo de Leitores, 1999.

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MARCONDES FILHO, Ciro. A comunicação do sensível: acolher,


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SCOLARI, Carlos. Narrativas transmedia: cuando todos los medios


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SPINOZA [ESPINOSA], Baruch de. Obra Completa IV: Ética e


Compêndio de gramática da língua hebraica. Org. J. Guinsburg, Newton
Cunha, Roberto Romano; tradução J. Guinsburg, Newton Cunha. São
Paulo: Perspectiva, 2014.
III
#streaming
Capítulo 10

“Seriemania” no país da “novelomania”?


Um mapeamento do circuito cultural da
teleficção brasileira contemporânea 1

Lucas Martins Néia


#streaming #teleficção #mapeamento

1. Introdução
O presente capítulo se lança a um estudo exploratório referente ao
circuito da cultura – consumo, produção, regulação, representação e
identidade (HALL, 2016) – da ficção televisiva brasileira contempo-
rânea. Aludimos, já no título, à ideia de mapeamento por duas razões:
pela perspectiva rizomática denotada por ela, ideal para o diagnóstico
de fenômenos multidimensionais em suas relações com os sujeitos e as
tramas sociais, culturais, políticas e econômicas; e porque nos valemos
de uma abordagem mais livre na investigação de um território marcado
pela dinamicidade e diversificação de seus atores e competências. Aqui,
portanto, aventuramo-nos na elaboração de um “primeiro mapa”, objeti-
vando melhorá-lo futuramente conforme avançarmos em nossas explo-
rações.

1. Uma versão preliminar deste trabalho se encontra publicada nos anais do GP Ficção
Seriada do 44º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Promovido pela
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), o evento
foi realizado de maneira remota entre 4 e 9 de outubro de 2021.
178 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

O vocabulário conceitual desta análise se baseia mormente na teoria


barberiana da comunicação. Segundo Lopes (2018), o pensamento de
Jesús Martín-Barbero não se limita a uma teoria da recepção ou a uma
teoria das mediações, mas constitui uma teoria da comunicação especí-
fica, detentora de uma epistemologia, metodologia e conceitos próprios.
Com um vigoroso aporte voltado à compreensão das inter-relações entre
as dinâmicas comunicacionais, o âmbito cultural e a esfera política, as
reflexões de Martín-Barbero nos fornecem chaves analíticas propícias
à identificação de agentes, operações e estratégias que despontam em
meio aos rearranjos tecno-sociais observados no atual panorama audio-
visual – sintomas e também disparadores do sensorium contemporâneo.
Interessa-nos compreender como a proliferação de telas e de plata-
formas digitais tem complexificado as imbricações entre matrizes cultu-
rais e formatos industriais, além dos trajetos entre as lógicas de produção
e as competências de recepção (MARTÍN-BARBERO, 2003) do ambiente
teleficcional brasileiro. Para isso, necessitamos recorrer a uma reflexão
acerca dos sentidos da técnica e das figuras do sensível (PEREIRA, 2020),
isto é, direcionada às conexões entre tecnicidades e sensorialidades.
Enquanto estas dizem respeito aos distintos regimes de sensibilidade
coexistentes em uma sociedade, aquelas são “menos assunto de aparatos
do que de operadores perceptivos e destrezas discursivas” (MARTÍN-
-BARBERO, 2003, p. 18). Sob tais aspectos, a TV emerge como uma
tecnologia que afeta e, ao mesmo tempo, é afetada pela estética e pela
ética social e que, nos termos de Jost (2019), atualmente estende seus
domínios à esfera digital.
Propomo-nos, então, a pensar nas correlações entre a “cultura das
séries” que Silva (2014) identifica na contemporaneidade – ou seja, a
formação de um repertório em torno dessas ficções que, por meio de
fatores como a sofisticação das formas dramáticas, o atual contexto
tecnológico e os novos modos de consumo, participação e crítica textual,
converge para uma espécie de telefilia transnacional – e a “cultura de
telenovela” (LOPES; LEMOS; CASTRO, 2018) característica de nosso
país. Partimos de uma contextualização mais ampla, observando longi-
tudinalmente o diálogo entre os modelos teledramatúrgicos paradigmá-
“SERIEMANIA” NO PAÍS DA “NOVELOMANIA”? 179

ticos do Brasil e dos Estados Unidos, para adentrarmos posteriormente


nos novos trajetos de produção e distribuição dos conteúdos televisivos.

2. Preâmbulo: caminhos da ficção seriada na última década


Nos últimos dez anos, a aceleração do desenvolvimento tecnológico
fez com que o ecossistema midiático brasileiro observasse sensíveis
reconfigurações entre seus atores e redes. A TV aberta, principal agente
da cena audiovisual nacional, passou a buscar com ainda mais intensi-
dade novas experiências de linguagem no universo digital e nas narra-
tivas de sucesso provenientes de outros meios (MENDES; AMARAL,
2016). No final da década de 2000 e início da década de 2010, as emis-
soras viam as plataformas de streaming e vídeo sob demanda (VoD,
na sigla em inglês) já existentes – e as mídias digitais como um todo
– com certa desconfiança, encarando-as muitas vezes como “concor-
rentes” diretas da televisão. Com o passar dos anos, porém, a adesão do
público a estratégias de transmidiação começou a chamar atenção dos
produtores televisivos, que então se dispuseram a investir de modo mais
contundente nesse diálogo com o propósito de engajar e atrair o público
da internet para a TV (LEMOS; NÉIA; SANTOS, 2019).
Essas questões se refletem nas transformações identificadas nos
gêneros e modos de produção audiovisuais. Observam-se, no interior de
formatos tradicionais da indústria do entretenimento, mudanças carac-
terizadas pela hibridização de formas e conteúdos (LOPES; OROZCO
GÓMEZ, 2016) e, não raro, pela ruptura de um estatuto pragmático, por
meio do qual os espectadores costumam reconhecer tanto os gêneros
fílmicos e televisivos de modo geral (SCOTT, 2021) como suas estraté-
gias discursivas (MUNGIOLI, 2012). Tais “inovações” têm sido objeto
de diversos estudiosos, como Mittell (2015), que se atenta tanto para
os progressos formais do modelo narrativo da televisão (pensando-os,
obviamente, a partir da cena audiovisual estadunidense) quanto para as
transformações de normas estabelecidas por meio de uma prática cria-
tiva.
Os pesquisadores costumam apontar consensualmente Família
Soprano (The Sopranos, HBO, 1999-2007) como marco inicial de uma
nova “era de ouro” (MARTIN, 2014) ou “onda” (NBCUNIVERSAL
180 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

BRASIL, 2021) das teleficções dos EUA. Desde então, as séries norte-
-americanas apostam cada vez mais em arcos dramáticos longos, que
chegam a perpassar a distensão narrativa da temporada, quando não
da série como um todo. Neste contexto, Mittell (2015) detecta a emer-
gência de uma televisão complexa, na qual há, inclusive, a operação de
um modo melodramático2 – isto é, o melodrama passa a ser entendido
como uma faceta comumente difundida nas narrativas televisivas, e
não exclusiva das soap operas ou de qualquer outra categoria. Assim,
este gênero, antes visto com ressalvas pelos produtores de TV do Norte
global, tem o seu sentido expandido, integrando de maneira ainda mais
evidente séries e outros formatos que trazem à tona possibilidades mais
fluidas de identificação e reconhecimento junto àquele público.
Paralelamente a esse processo de “telenovelização” das séries nos
Estados Unidos, o Brasil observará uma tendência de “serialização”
de suas telenovelas (LOPES et al., 2020), narrativas historicamente
marcadas pela mestiçagem (MARTÍN-BARBERO, 2003) entre o melo-
drama e noções de brasilidade (NÉIA, 2021) e que, por conta disso, se
converteram em um elemento central da cultura e da identidade do país
(HAMBURGER, 2005; LOPES, 2009). A partir dos anos 2000, com a
popularização de teleficções estadunidenses potencializada por meio do
consumo desses produtos em outros suportes (BUXTON, 2010) – a TV
a cabo e os DVDs e Blu-rays em um primeiro momento e as plataformas
de streaming posteriormente –, diversas telenovelas brasileiras inves-
tiram, de modo mais acentuado3, em plots e arcos mais curtos, propi-
ciando um fluxo dinâmico de histórias e personagens à ação (LOPES et
al., 2016). Podemos citar como exemplos Mulheres Apaixonadas (Globo,
2003), Kubanacan (Globo, 2003), Senhora do Destino (Globo, 2004),

2. Mittell (2015) dialoga aqui com as acepções de Gledhill (1987, 2000), que toma da
sociolinguística a noção de modalidade – a capacidade de se conferir estruturalidade a
determinados fenômenos culturais com o objetivo de compreender o conjunto de regras
que os envolvem – para investigar o melodrama como: (1) um tipo de ficção ou teatro;
(3) um gênero audiovisual específico; e (3) uma maneira de ver o mundo profundamente
arraigada à cultura popular.
3. Anteriormente à conjuntura aqui abarcada, afinal, tramas como Roque Santeiro (Globo,
1985), Vale Tudo (Globo, 1988) e Tieta (Globo, 1989) já haviam sido hábeis na mescla
entre a estrutura seriada folhetinesca e arcos mais concisos envolvendo suas personagens.
“SERIEMANIA” NO PAÍS DA “NOVELOMANIA”? 181

Paraíso Tropical (Globo, 2007), Caras e Bocas (Globo, 2009) e Poder


Paralelo (Record, 2009).
No início da década seguinte, observaríamos um curioso paradoxo.
Em 2010, a imprensa registrava certa “dificuldade” de determinada
parcela de telespectadores em acompanhar a “velocidade” da narrativa
de Passione, exibida pela Globo na faixa horária das 20h. O trecho a
seguir explicita – não sem uma dose de desdém relativa a essas fatias do
público – como a tensão entre o que Martín-Barbero (2003) chama de
tempo do progresso linear (o desenrolar das ações) e de tempo do ciclo
(a retomada de entrechos e personagens que apareceram ao longo da
trama) se dava em meio à arena de produção, circulação e recepção de
sentidos engendrada por aquela telenovela:

As novelas ficaram mais velozes e movimentadas ao longo das déca-


das. [...] Em Passione, Silvio de Abreu, o autor, apostou que se poderia
acelerar a ação ainda mais. Esbarrou, contudo, no que parece ser um
limite intransponível: infelizmente, é preciso um tanto de “encheção
de linguiça” para que certos estratos da audiência (aqueles menos es-
colarizados, ou que sintonizam a novela de forma errática) não fi-
quem boiando. (MARTHE, 2010, p. 134)

Dois anos depois, Avenida Brasil se converteria em fenômeno


midiático por alçar a chamada “nova classe C” à condição de prota-
gonista e se valer, justamente, de diversas reviravoltas, plots mais ágeis
– que duravam de uma semana a um mês – e fortes ganchos dramá-
ticos (LOPES et al., 2013). Além das questões narrativas, Hamburger
e Gozzi (2019) destacam que a telenovela de João Emanuel Carneiro
partilhava de características cinemáticas encontradas em séries estadu-
nidenses recentes – traços estruturantes daquilo que Butler (20104 apud
HAMBURGER; GOZZI, 2019) identifica como interpretações formais
da linguagem televisiva contemporânea. A trama extrapolou a arena
vislumbrada inicialmente pela Globo, inserindo-se em uma tendência
de “nação para uma audiência transnacional” e provocando até mesmo
o interesse de países do Norte global por títulos e formas audiovisuais
“coming from the South” (HAMBURGER; GOZZI, 2019).

4. BUTLER, Jeremy G. Television Style. New York; London: Routledge, 2010.


182 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

Em 2011, contudo, O Astro já apresentava de modo patente e siste-


matizado traços de serialidade que caracterizariam Avenida Brasil no
ano seguinte. Remake da trama homônima de Janete Clair apresentada
entre 1977 e 1978, a obra inaugurava o horário das 23h da Globo para
telenovelas, em uma espécie de retomada do antigo horário das 22h
(LIMA; NÉIA, 2015). Quando da implementação da nova faixa, porém,
ainda havia dúvidas por parte da esfera produtora quanto ao formato
das produções ali alocadas, que só passaram a ser chamadas de “novelas”
pela emissora a partir de Saramandaia (2013), numa prática que se
entendeu à segunda versão de O Rebu (2014) e às originais Verdades
Secretas (2015) e Liberdade, Liberdade (2016).
As últimas obras produzidas pela Globo para as 23h, Os Dias Eram
Assim (2017) e Onde Nascem os Fortes (2018), foram classificadas,
todavia, como superséries – ficções televisivas “maiores que uma série
e menores que uma telenovela”, caracterizadas pela mescla entre arcos
dramáticos de capítulos e episódios e pela abordagem de temas adultos
(ao contrário do estilo que, na América Latina hispânica, se conven-
cionou a chamar de “novelas rosas”), trabalhados com vistas à atração
das parcelas masculina e juvenil da audiência (LIMA; NÉIA, 2018).
Evidencia-se, desta forma, que a adoção de tal nomenclatura levou em
conta fatores mercadológicos verificados com maior incidência no pano-
rama midiático internacional, ainda mais se considerarmos que títulos
como Beto Rockfeller (Tupi, 1968) e Irmãos Coragem (Globo, 1970) já
mobilizavam os segmentos de público almejados pelas superséries –
justamente aqueles que, na atualidade, tendem a preterir a televisão pelo
ambiente digital com maior facilidade.
Vale a pena iluminarmos, ainda, o contexto de produção e exibição da
trama de João Emanuel Carneiro subsequente a Avenida Brasil na faixa
horária das 21h da Globo: em A Regra do Jogo (2015), o autor optou por
radicalizar algumas das experiências vistas em sua ficção anterior. “A
Regra do Jogo [...] trouxe uma tensão explícita entre capítulo e episódio:
cada capítulo foi numerado e recebeu um título que aludia aos aconte-
cimentos do dia, ligados ao núcleo central” (LOPES et al., 2016, p. 173).
Desta vez, no entanto, o sucesso tardou a chegar: a ficção, assim como
diversas edições do Jornal Nacional (Globo, 1969-presente), sofreu
sucessivas derrotas para Os Dez Mandamentos (2015), dramatização da
saga bíblica de Moisés escrita por Vivian de Oliveira e produzida pela
“SERIEMANIA” NO PAÍS DA “NOVELOMANIA”? 183

Record5. Assim, a telenovela “seriada” da Globo, repleta de elementos que


procuravam revigorar o formato para além de equações narrativas mais
tradicionais, teve sua primeira metade obliterada pelo épico religioso
da emissora concorrente, só recuperando parte da audiência perdida no
horário em sua reta final.

3. Diversificação narrativa e novas rotas de oferta no cenário


teleficcional brasileiro
Conforme monitoramento anual realizado pelo Observatório Ibero-
-Americano da Ficção Televisiva (Obitel) no Brasil, o número de séries
nacionais e inéditas exibidas pela TV aberta vem ultrapassando o de tele-
novelas desde 2017. Os canais pagos, por sua vez, viram a produção e
exibição de conteúdo brasileiro (majoritariamente séries) crescer consi-
deravelmente desde a implementação, em 2011, da Lei nº 12.485 – a
chamada Lei do Serviço de Acesso Condicionado (SeAC), ou simples-
mente Lei da TV Paga. Deve-se a essa lei a consolidação de um modelo
de negócios no qual se destaca a atuação de produtoras independentes
(LEMOS, 2015), que também têm se aliado às emissoras abertas e às
plataformas de vídeo sob demanda na produção de conteúdo nacional.
O Brasil possui cerca de 88 plataformas de vídeo over-the-top6 (OTTs)
(BB BUSINESS BUREAU, 2021); dentre elas, segundo levantamento
realizado pelo guia JustWatch entre abril e junho de 2021, a mais popular
é a Netflix, com 31% do mercado, seguida por Prime Video (com 24%),
Disney+ (12%), Globoplay (8%), HBO Go7 (7%) e Telecine Play8 (6%)

5. Vinculada à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) desde que foi adquirida, em
1989, por Edir Macedo, a Record passou a investir continuamente em narrativas religiosas
a partir de 2010, quando estreou a minissérie A História de Ester. Em 2015, a estação
resolveu estender esse estilo aos seus títulos de longa serialidade, alocando-os às 20h30.
Os Dez Mandamentos, desta forma, foi a primeira telenovela bíblica do canal, e seu sucesso
motivou, inclusive, a produção de uma segunda temporada da história em 2016.
6. Conteúdo, serviço ou aplicativo disponível on-line para uso imediato por parte do
usuário.
7. Em 29 de junho de 2021, dia anterior à finalização do período recortado para o referido
monitoramento efetuado pelo JustWatch, o serviço HBO Go foi substituído pelo HBO
Max em todos os países da América Latina.
8. No mês de outubro de 2021, o Grupo Globo anunciou a extinção do Telecine Play,
sublinhando que os conteúdos da plataforma migrariam para o catálogo do Globoplay.
Isso provavelmente incrementará a participação deste último serviço OTT no mercado
do streaming.
184 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

(ALEXANDRO, 2021). Netflix e Globoplay são os serviços de streaming


que, até o momento, mais se destacam na produção de ficções seriadas
brasileiras originais e exclusivas.
Operando no país desde 2011, a Netflix já coproduziu 14 séries
ficcionais nacionais, com títulos como 3% (2016-2020) e Cidade Invi-
sível (2021-presente) alcançando repercussão global. De alguma
maneira, diversas das ficções latino-americanas realizadas pelo serviço
de streaming estadunidense ilustram a tendência de “telenovelização”
das séries (LOPES et al., 2020) com fatores para além da serialidade,
como a adesão explícita a entrechos melodramáticos – vide Ingober-
nable (2017-presente), “dramalhão” mexicano pessimista quanto à cena
sociopolítica daquele país; e a elevated soap opera9 brasileira Coisa Mais
Linda (2019-presente), que aborda o surgimento da bossa nova no Rio
de Janeiro dos anos 1950 sob uma perspectiva feminina/feminista. Estes
dois exemplos demonstram como a Netflix procura cativar o público da
região por meio de equações calcadas na ideia de proximidade cultural
(STRAUBHAAR, 2007), nas quais o melodrama, consubstanciado à
cultura latina, atua como um mecanismo de produção textual (COLÓN
ZAYAS, 2019) – orquestrado, muitas vezes, sob a lógica algorítmica que
emerge como trunfo desses provedores de TV pela internet defronte à
expertise dos produtores locais (CORNELIO-MARÍ, 2020).
O Globoplay, a seu turno, foi criado em 2015 como uma evolução do
Globo.tv+, plataforma de VoD anterior da Globo que já era uma versão
atualizada do serviço por assinatura Globo.com. O novo sistema OTT
do canal, contudo, só passou a investir maciçamente na ampliação de seu
catálogo em 2018, quando adquiriu um número expressivo de produ-
ções internacionais (narrativas seriadas, filmes e afins) e lançou duas
séries originais – Assédio e a primeira temporada de Ilha de Ferro – que,
diferentemente de produtos anteriores, só tiveram seus episódios pilotos
exibidos pela TV aberta naquele ano, em uma faixa denominada Cine
Globoplay. A plataforma passou a potencializar, a partir dali, “a aqui-

9. De acordo com os realizadores da série – um produtor brasileiro e uma escritora


estadunidense –, este foi o termo empregado pela Netflix ao encomendar a obra. Vale
ressaltar, ainda, que o idioma utilizado na sala de roteiro de Coisa Mais Linda foi o inglês.
“SERIEMANIA” NO PAÍS DA “NOVELOMANIA”? 185

sição de audiência de streaming por meio da difusão de seus produtos


no sistema broadcasting” (MUNGIOLI; IKEDA; PENNER, 2018, p. 61).
Em 2019, a Globo adotaria uma estratégia ainda mais ousada, envol-
vendo a oferta de uma telenovela inédita no streaming: após levar ao ar
o capítulo de estreia de Órfãos da Terra às 18h, a emissora anunciou que
os outros capítulos da trama estariam disponíveis no Globoplay com um
dia de antecedência à exibição na TV. Ao fazê-la circular primeiramente
pelo ambiente on-line em meio a pressões mercadológicas e a novas
lógicas de produção e consumo dos produtos audiovisuais, a Globo
viabilizou a uma audiência múltipla e multifacetada novos rearranjos
quanto à assistência da ficção em questão fora da rigidez de uma grade
horária fixa, com fluxo unidirecional (LOPES et al., 2020). Trata-se de
um movimento que lança um olhar para o futuro, pois os fãs de tele-
novelas ainda têm a televisão como principal fonte de entretenimento,
mas estão se conectando cada vez mais a outros meios, especialmente
o smartphone, para o consumo de conteúdos audiovisuais (KANTAR
IBOPE MEDIA, 2020).

Caso um telespectador com acesso ao Globoplay visse um capítulo


[de Órfãos da Terra] pela televisão e ficasse interessado sobre o que
aconteceria no próximo, ele poderia recorrer à plataforma para sanar
sua curiosidade. Como, porém, a distribuição no ambiente on-line se
dava capítulo a capítulo – emulando a lógica da TV –, e não em blo-
cos, modelo mais comum às séries on-demand, ele teria que aguardar
mais um dia para ver a sequência no Globoplay ou dois dias para
acompanhá-la na TV aberta. Ainda há, portanto, certo limite quanto
às ritualidades – e serialidades – ao alcance do espectador de teleno-
velas10. (LOPES et al., 2020, p. 113)

Apesar do sucesso da empreitada, a Globo optou por reservar ao


broadcasting a primeira exibição dos últimos cinco capítulos da trama
– isto é, a lógica tradicional de oferta do conteúdo televisivo voltou a
vigorar quando a narrativa chegou aos seus momentos decisivos. Esse

10. Na plataforma de VoD, porém, o telespectador também se encontrava livre dos breaks
comerciais (apesar da permanência das vinhetas que indicavam a ida e a volta para esses
intervalos) e das cenas do capítulo anterior editadas no formato de prólogo – estratégia de
recapitulação adotada por todas as telenovelas da Globo a partir da segunda metade da
década de 2010.
186 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

modus operandi também foi aplicado à distribuição da sucessora de


Órfãos da Terra, Éramos Seis (2019), enquanto a 27ª e última tempo-
rada inédita da soap opera Malhação (2019), a partir de determinado
momento, passou a ter os cinco capítulos que compunham suas semanas
disponibilizados no streaming no domingo anterior à exibição daquele
bloco na TV aberta.
Em meio a um circuito que abrange desde o deslocamento da experi-
ência e dos domínios da televisão para as redes (JOST, 2019) às mutações
nos modos de produção e reconhecimento dos gêneros e formatos tele-
visuais (BUXTON, 2010; MUNGIOLI, 2012; SILVA, 2014; MITTELL,
2015), as “histórias curtas” parecem emergir globalmente como um
vetor cultural e tecnológico que reflete, no plano audiovisual, a raison
d’être da cultura oral contemporânea (LOPES et al., 2015).
Podemos dizer que o cenário nacional observa, na atualidade, um
movimento semelhante àquele ocorrido em 1979, com o advento das
chamadas “séries brasileiras” – quando a Globo estreou, em sua faixa
noturna, três séries que tinham como proposta delinear “um ‘painel do
Brasil’ onde fosse possível discutir a ‘realidade brasileira’” (MIRANDA;
PEREIRA, 1983, p. 57): Carga Pesada, voltada a um “Brasil rural”
contemporâneo; Malu Mulher, trazendo a problemática feminina (e
feminista) com maior contundência à televisão; e Plantão de Polícia,
que abordava o noticiário policial como alegoria do cotidiano do Rio
de Janeiro. Nos últimos anos, diversas séries procuraram apresentar
diferentes perspectivas – sociais, culturais, mercadológicas e até mesmo
políticas e ideológicas – da realidade do Brasil: 1 Contra Todos (Fox,
2016-presente), Carcereiros (Globoplay/Globo, 2017-2021) e Irman-
dade (Netflix, 2019-presente) se voltaram ao universo dos presídios
brasileiros; Unidade Básica (Universal TV, 2016-presente) e Sob Pressão
(Globo, 2017-presente), à saúde pública; Rotas do Ódio (Universal TV,
2018-presente), aos crimes de intolerância; O Mecanismo (Netflix, 2018-
2019), à cena política do país (ainda que de modo controverso); Sintonia
(Netflix, 2019-presente), à vida em uma favela paulistana; e Cidade Invi-
sível, a uma atualização do folclore nacional.
Além disso, políticas de financiamento e estímulo à produção audio-
visual culminaram na realização de séries e minisséries que, prove-
“SERIEMANIA” NO PAÍS DA “NOVELOMANIA”? 187

nientes das cinco regiões do país, foram ao ar nas TVs públicas estaduais
e nacionais. Essas políticas começaram a ser implementadas ao final do
segundo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, no rastro da inauguração
da TV Brasil. Posteriormente à promulgação da Lei nº 12.485/2011
foram lançados os editais Prodav/TVs Públicas – duas edições nas
gestões de Dilma Rousseff e uma no governo de Michel Temer –, que
possibilitaram uma continuidade no âmbito da produção independente
fora do eixo Rio-São Paulo. Ficções de curta serialidade que abordavam
questões de classe, gênero e raça e temas relativos à memória histórica
da nação e à problemática da sustentabilidade, dentre outros tópicos,
foram realizadas por meio desses editais para serem levadas ao ar nas
TVs públicas estaduais. Algumas dessas obras, então, ganharam janela
nacional quando exibidas pela TV Brasil ou pela TV Cultura – que,
desta forma, se tornaram um importante espaço para a visibilidade de
perspectivas locais dentro de um sistema midiático que privilegia apre-
ensões e sentidos da identidade nacional ancorados no imaginário da
Região Sudeste (NÉIA, 2021).
Essas equações que, de alguma maneira, envolvem a diluição de
fronteiras entre o “mundo narrado” das tramas e o “mundo vivido” dos
telespectadores, entretanto, não são exclusivas das “histórias curtas” em
nossa teleficção: a telenovela brasileira, afinal, passou a demarcar sua
especificidade frente a outros modelos dramáticos latino-americanos
justamente ao incorporar, sob as regras do melodrama, temas caros
ao cotidiano e à agenda social do país (HAMBURGER, 2005; LOPES,
2009). Não é por acaso, portanto, que ela ainda detenha a centralidade
do cenário audiovisual nacional, impondo-se imperativamente em nossa
indústria televisiva como paradigma narrativo e modelo de produção:
suas convenções e seus dispositivos dramatúrgicos acabam por rever-
berar mesmo nas ficções de curta serialidade. A primeira temporada de
3%, a título de exemplo, foi duramente criticada por muitos espectadores
e pela própria imprensa especializada porque seus enquadramentos, sua
produção e até a interpretação de seu elenco se assemelhavam a uma
“linguagem de novela”. Além disso, o próprio esquema de gravação das
séries brasileiras empresta o modus operandi das telenovelas, adotado
pelo menos desde o início da década de 1970 (NÉIA, 2021): visando à
188 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

otimização do tempo e à diminuição dos custos de produção, costuma-


-se captar todas as cenas de uma temporada que se passam em determi-
nado cenário/locação de uma só vez – ao invés de se gravar episódio a
episódio, como ocorre nos EUA.
De qualquer modo, o paradigma dramático estadunidense ainda
serve de parâmetro aos profissionais envolvidos na realização de séries
no Brasil, principalmente aos roteiristas – vide a predominância de
manuais e livros norte-americanos nos currículos de cursos livres,
técnicos e acadêmicos de roteiro. Isso se deve não só ao sucesso do
formato mundo afora ou a uma certa imposição imperialista da “cultura
ianque” em um cenário globalizado, mas ao know how adquirido pela
televisão dos Estados Unidos na produção de “histórias curtas”. Por
lá, as séries definitivamente ocupam a condição de protagonistas do
debate cultural da atualidade, configurando-se como o produto narra-
tivo que melhor acompanhou as mudanças de hábitos dos espectadores
(COELHO, 2018; NBCUNIVERSAL BRASIL, 2021). Neste ínterim,
títulos que vão desde 13 Reasons Why (Netflix, 2017-2020) a The
Handmaid’s Tale (Hulu, 2017-presente) despontam como motores midi-
áticos de significativas discussões na arena pública devido à ênfase de
seus enredos em assuntos candentes da sociologia e da política contem-
porâneas (COELHO, 2018).
Ora, tais ponderações aproximam a atual visibilidade ostentada pelas
séries com o status que a telenovela adquiriu em nossa cultura. Lopes
(2009) já destacou que tanto a discursividade gerada pelas teleficções
de longa serialidade como a utilização, por parte destas, de dispositivos
naturalistas e documentarizantes na abordagem de temáticas sociais
foram as principais responsáveis por converterem a teledramaturgia no
Brasil em um verdadeiro fórum para o debate público, promovendo a
pluralidade de interpretações das realidades representadas/imaginadas
por suas tramas. As “histórias curtas” recentemente produzidas em nosso
país, por conseguinte, também dialogam – ainda que de maneira indireta
– com a formulação histórica da telenovela brasileira ao buscarem um
caminho original alicerçado nas dinâmicas sociais, culturais e estéticas
da nação com vistas à solidificação do formato série em nossa televisão.
“SERIEMANIA” NO PAÍS DA “NOVELOMANIA”? 189

Isso acontece, no entanto, em um momento no qual as narrativas


televisivas se tornam objeto de consumo mundial, dando margem
a modelos que questionam o lugar dos conteúdos audiovisuais como
reflexos do nacional (SAUNDERS, 2017). Assim, apesar de os prove-
dores de VoD com atuação transnacional operarem no país em uma
busca constante pela articulação de questões caras à brasilidade com os
gostos do mercado global, muitas vezes as ficções realizadas por essas
majors acabam privilegiando a visão que produtores e executivos estran-
geiros têm do Brasil. A própria Netflix é conhecida por ter o controle
total de todas as etapas da produção de seus “originais”, da criação dos
roteiros às gravações nos sets – em um processo no qual se observa até
mesmo uma diluição da noção de autoria, historicamente importante
na consolidação de nossa telenovela. Cinco anos após a estreia de 3%,
a primeira série brasileira da plataforma, já é possível observar a sedi-
mentação de um padrão estético e narrativo no qual o nacional – o
brasileiro, no caso – não raramente se configura como uma espécie de
“Outro” – operado inclusive (mas não somente) sob a lógica imperialista
que mencionamos acima.
Paralelamente, o chamado “padrão Globo de qualidade”11, forjado
na década de 1970, ainda se afigura nas ficções do Globoplay – com
as vantagens e desvantagens inerentes a tal fenômeno. Alguns proce-
dimentos narrativos e estéticos, bem como imagens sociogeográficas
(NÉIA, 2021), canonizados no decorrer dos últimos 50 anos na TV
aberta persistem nas séries produzidas pela Globo para o ambiente
digital. É inegável, contudo, que o conglomerado de mídia brasileiro
possui vantagens significativas na chamada guerra do streaming quanto
ao caminho rumo a uma equação mais paritária entre a produção tele-
visiva hegemônica brasileira – ou seja, a telenovela, firmada no gosto do
público nacional – e as formas mais curtas de se contar histórias.
No que tange às produções independentes que, realizadas em dife-
rentes regiões do país, poderiam colaborar diretamente na renovação

11. O know how e a expertise adquiridos pela Rede Globo desde o início dos anos 1970
culminaram na criação de uma marca específica para a emissora – um receituário não
escrito que congrega parâmetros estéticos, comerciais e, consequentemente, ideológicos,
abrangendo tanto as políticas como o capital humano da empresa.
190 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

estética e social de nossa ficção televisiva, elas infelizmente não dispõem


de um espaço significativo no circuito da cultura brasileira. Ao invés
de se valerem, por exemplo, de um serviço de streaming que as dispo-
nibilize para audiências de todo o território nacional, essas obras estão
relegadas a horários um tanto ingratos na TV Cultura e se tornaram
reféns do caráter ainda mais errático adquirido pela TV Brasil na gestão
federal de Jair Bolsonaro. Além disso, a manutenção de iniciativas como
os editais Prodav/TVs Públicas está sob risco, tendo em vista a asfixia
e o desmonte do setor cultural perpetrados pelo governo em questão.

4. À guisa de conclusão: desafios e perspectivas para os próximos


anos
Procedemos agora a um exercício de sinalizações quanto a tendências
que, a partir de nosso mapeamento, se projetam como as mais factíveis
a despontarem nos próximos anos. Ainda que nos lancemos ao campo
da “futurologia” de modo a atender a demandas inerentes a nosso objeto
de estudo, temos ciência de que tais argumentos estão sujeitos a fatores
que vão desde (a falta de) políticas de fomento à produção audiovisual
à regulação do VoD no país – além, é claro, dos desafios acarretados em
decorrência da pandemia de Covid-19, responsável por paralisar toda a
indústria teleficcional nacional em 2020.
No âmbito das telenovelas, há uma predisposição à ampliação do
número de sequências narrativas para além da realização de spin-offs
curtos, no formato websérie, exclusivos para o streaming – prática de
transmidiação empreendida por títulos como Totalmente Demais (2015),
Êta Mundo Bom! (2016), Liberdade, Liberdade (2016), Haja Coração
(2016) e Pega Pega (2017), todas da Globo. O desdobramento de Os
Dez Mandamentos em duas temporadas e a produção de uma continu-
ação de Verdades Secretas, lançada pelo Globoplay em 2021, indicam
que as emissoras estão dispostas a apostar na capacidade dos telespec-
tadores de recuperarem mnemonicamente enredos e personagens vistos
em ocasiões mais remotas – todas as teleficções mais recentes, afinal,
se encontram disponíveis no ambiente digital para serem maratonadas
a qualquer instante. Mesmo Nos Tempos do Imperador (Globo, 2021),
“SERIEMANIA” NO PAÍS DA “NOVELOMANIA”? 191

espécie de “extensão cronológica” de Novo Mundo (Globo, 2017), reforça


essa tendência (HADDEFINIR, 2021).
Além disso, proliferam-se os rumores de que plataformas como
Netflix e HBO Max pretendem, em breve, se aventurar na produção de
telenovelas. Os recentes movimentos observados no mercado televisivo,
como a unificação das empresas do Grupo Globo e a adesão, por parte
deste conglomerado, de novos modelos de contrato, contribuem para a
viabilidade deste cenário: tais rearranjos permitiram que diversos profis-
sionais cuja imagem está fortemente atrelada à do canal carioca (do setor
executivo às áreas criativas) se transferissem para outras empresas. O
sucesso da disponibilização de telenovelas antigas no Globoplay também
nos mostra que o formato tem fôlego tanto para despertar o interesse do
público do streaming quanto para atrair segmentos que ainda têm na TV
tradicional sua principal fonte de entretenimento.
Enquanto a telenovela brasileira parece demarcar sua especificidade
defronte à diversificação narrativa intrínseca ao cenário contemporâneo
recorrendo abertamente ao melodrama e a procedimentos verificados ao
longo de sua diacronia (NÉIA, 2021), as séries, de acordo com pesquisa
da NBCUniversal Brasil (2021), tendem a se voltar cada vez mais a ques-
tões de representatividade e pertencimento – dado que, desde o boom
dessas ficções na TV por assinatura, elas passaram a se ramificar em
nichos. Iniciativas como o Laboratório de Narrativas Negras e Indígenas
para o Audiovisual, parceria da Globo com a Festa Literária das Perife-
rias (Flup), mostram que existem, no mínimo, boas intenções por parte
da esfera produtora quanto ao investimento em uma maior pluralidade
na composição de suas equipes. As “histórias curtas” do mainstream,
todavia, ainda são tímidas na atualização de marcas identitárias histori-
camente imaginadas pela teleficções nacionais. Tomando as palavras da
escritora estadunidense Octavia Butler, podemos dizer que, se não há
nada de novo sob o sol, há, ao menos, novos sóis.
Por último, é preciso destacar que muitas séries produzidas para o
streaming garantiram a veiculação de conteúdo inédito pelas estações
de TV em meio à interrupção das gravações de ficções para controle
da pandemia de coronavírus. Este detalhe, assim como as estratégias
engendradas em 2019 pela Globo e pelo Globoplay na distribuição de
192 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

telenovelas inéditas, nos dá a dimensão exata da relação mutualística


(MEIMARIDIS; MAZUR; RIOS, 2020) estabelecida entre a televisão –
especialmente os canais abertos – e o ecossistema digital no Brasil. Prova
inequívoca de que a coexistência entre o arcaico e o moderno típica das
sociedades do Sul global desafia, inclusive, as distinções entre broadcas-
ting e streaming consolidadas em mercados do Norte. A ver quais mesti-
çagens (MARTÍN-BARBERO, 2003) entre “antigas” e “novas” imagina-
ções, formas de narrar e tecnologias, entre sensorialidades e tecnicidades
tradicionais e emergentes, hão de florescer futuramente no âmago do
circuito cultural da teledramaturgia brasileira.
“SERIEMANIA” NO PAÍS DA “NOVELOMANIA”? 193

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Capítulo 11

Guerra simbólica: pânico moral


e a retórica do Daesh em Flames Of War
Lilian Sanches
#streaming #série documental #terrorismo

1. Introdução
Ataques e grupos terroristas, por sua natureza, despertam a atenção
de toda a sociedade, atendendo aos critérios de noticiabilidade adotados
pelos veículos de comunicação de diversas partes do mundo e, em um
processo de retroalimentação cíclico, atualmente agitando as redes
sociais, o que evidencia o forte apelo midiático e o interesse coletivo que
envolve esse tipo de acontecimento. Em consequência a essa circuns-
tância intrínseca, uma atmosfera de medo contínuo e coletivo se instalou
no Ocidente, principalmente nos Estados Unidos e Europa, com propor-
ções sem precedentes após o 11/09, devido à representação midiática
do terrorismo e seus perpetradores. Diversos estudos internacionais
(MENDONÇA, 2002) relacionam de forma contundente o aumento da
sensação de insegurança ao conteúdo veiculado na mídia. Ademais, os
resultados dessas pesquisas apontam que o medo social não se baseia
em dados estatísticos concretos, como os apresentados acima, mas em
uma “ansiedade produzida simbolicamente” a partir do teor e frequência
das informações disseminadas à opinião pública, fenômeno chamado
de intuições estatísticas ingênuas, que se relacionam diretamente com a
200 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

heurística de disponibilidade. Os achados encontram ressonância ainda


nas características do conceito de pânico moral, cunhado pelo sociólogo
Stanley Cohen em seu icônico livro Folk devils and moral panics (1980).
Com o enfraquecimento da Al Qaeda, o Daesh1, grupo dissidente da
organização terrorista internacional, tornou-se protagonista dos atos
de terrorismo no mundo ocidental. Com especificidades ímpares e
requintes de crueldade, o novo grupo se valeu de estratégias e retó-
ricas propagandistas rebuscadas a fim de disseminar o medo durante
seu período de ascensão e apogeu, ampliando desproporcionalmente a
percepção de poder. Visando contribuir para as discussões acerca do
tema, o presente artigo foi desenvolvido a fim de investigar o uso das
redes sociais e plataformas digitais pelo grupo terrorista de forma a
fomentar o pânico moral entre a opinião pública do Ocidente, contri-
buindo, como efeito colateral, para a cristalização de estereótipos e, em
consequência, da islamofobia.
Para exemplificar a questão, serão apresentadas as análises contextual
e fílmica da série Flames of War, composta de dois longas-metragens em
formato documental divulgados pelo Daesh. O primeiro filme, nomeado
Flames of War: fighting has just begun, foi lançado em 19 setembro
de 2014, durante a ascensão do grupo terrorista; já o filme-sequência
chegou a conhecimento público em 29 de novembro de 2017, período
crítico marcado pela perda de grande parte do território conquistado no
Iraque e Síria, e conta com o título Flames of War: until the final hour,
em clara alusão à obra de Traudl Junge, que retrata os últimos dias do
regime nazista e de Adolf Hitler.

1. A autora opta por se referir ao grupo terrorista autointitulado Estado Islâmico pela
sigla Daesh. Desde junho de 2014, data de declaração do califado, o nome foi reduzido
pela própria organização de Estado Islâmico do Iraque e do Levante para apenas
Estado Islâmico (com as siglas “IS” em inglês e “EI” em português). A partir de então,
foi instaurado no mundo árabe um movimento contra a nomenclatura e solicitações
formais de representantes muçulmanos de diversos países para o uso do termo Daesh em
substituição. Daesh é a sigla para al-Daula al-Islamiya al-Iraq wa Sham (Estado Islâmico
do Iraque) e também um trocadilho em árabe com a palavra ‘Dahes’, que significa “aquele
que semeia a discórdia”. Por entender que o termo pode contribuir para a desconstrução da
representação nociva do universo árabe e da islamofobia, temas sensíveis para a pesquisa
da autora, a escolha da sigla Daesh para referências ao grupo terrorista fica aqui registrada.
GUERRA SIMBÓLICA 201

No percurso teórico sugerido, a primeira parte da investigação


volta-se ao contexto histórico e cultural no qual o Daesh está inserido,
tendo como fio condutor a teoria de David Rapoport (2001; 2007; 2013)
a respeito das quatro ondas do terrorismo moderno, passando pela
matriz religiosa do grupo e as origens ligadas à Al Qaeda. Na sequência,
o trabalho aprofunda o olhar acerca do projeto autoritário do Daesh e
a nociva politização do conceito de jihad, basilar no Islã e distorcido
pela representação midiática dos ataques e grupos terroristas. Nesse
momento, são introduzidos os postulados de Carl Gustav Jung a fim
de traçar associações entre a utopia extremista e o arquétipo do herói,
fornecendo referências necessárias para a decorrente análise da retórica
propagandista manifesta nos filmes que servirão como objeto de estudo.
Por fim, antes de prosseguir para a análise da sequência Flames of
War, faz-se necessário explorar ainda a conjuntura midiática na qual
o Daesh está inserido, considerando o papel das redes sociais e cober-
tura jornalística para a construção de representações no que concernem
aos terroristas e muçulmanos. O artigo visa ressaltar, como consequ-
ência e ponto de interesse central, a disseminação de pânicos morais
(COHEN, 1980; BAUMAN, 2016) na sociedade ocidental, ancorados
pelos fenômenos das heurísticas de disponibilidade e representatividade
(TEVRSKY; KAHNEMAN, 1974).

2. Terrorismo moderno e o levante do Daesh


O terrorismo, embora sem consenso terminológico, é um fenômeno
milenar que tem sido estudado por diversos campos do conhecimento.
A definição do conceito de terrorismo, no entanto, tem sido fonte de
controvérsia nas áreas de conhecimento acadêmico, jurídico e político.
Autores como o suíço Alex Schmid apontam a complexidade do tema
e a ausência de uma definição neutra, devido aos vínculos ideológicos
do termo “terrorismo”, considerado o mais politizado da atualidade.
“Em sua dimensão pejorativa, o destino do termo ‘terrorista’ é compa-
rável ao uso e abuso de outros termos no vocabulário político, como
racista, fascista ou imperialista” (SCHMID, 2011, p. 40). Soma-se como
complicador o direito resguardado de cada estado nação definir legis-
lativamente o que é terrorismo, podendo incluir grupos insurgentes ou
202 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

formas de resistência política, privadas dos devidos meios democráticos


para se exprimir, sob a categoria.
Referência em estudos do tema na academia internacional, o estadu-
nidense David Rapoport sistematizou os acontecimentos do terrorismo
moderno recorrendo ao conceito de ondas: contextos e períodos histó-
ricos que englobam eventos e grupos terroristas com objetivos e caracte-
rísticas comuns e podem ou não se sobrepor. A teoria, conhecida como
“The Four Waves of Modern Terrorism”, foi publicada pela primeira vez
em dezembro de 2001. Desde a década de 1880, quatro ondas de terror
sucessivas e sobrepostas acometeram o mundo, cada uma com suas
características, objetivos e táticas. As três primeiras duraram aproxima-
damente uma geração, estimada pelo autor em, aproximadamente, 40
anos; a quarta teve início em 1979 e, embora sem consenso acadêmico,
Rapoport defende sua vigência até os dias atuais.
De acordo com Rapoport (2001), a primeira onda, conhecida como
terrorismo anárquico, teria sido iniciada pelos anarquistas russos na
década de 1880 a partir da estratégia de assassinar políticos e militares
Czaristas, objetivando a queda do regime. Já a segunda, se configura
pela luta anticolonial na Ásia e na África, deflagrada após a Primeira
Guerra Mundial, e que conta como característica principal o naciona-
lismo e ações de guerrilha contra os exércitos e representantes dos colo-
nizadores. O grupo paramilitar sionista Irgun foi o primeiro a deixar
de usar o termo terrorista e passar a se definir como “freedom fighters”,
que lutavam contra o terrorismo de Estado, uma definição adotada pelas
demais organizações dessa onda subsequentemente. Em retaliação, os
governos envolvidos nos conflitos decretaram que todos os rebeldes
contra-hegemônicos que fizessem uso de violência seriam considerados
terroristas. Como na primeira onda, uma guerra – desta vez no Vietnã
– enfraqueceu os movimentos do período e propiciou a origem de uma
nova etapa no terrorismo internacional.
Inserida no contexto da Guerra Fria, a New Left emergiu como a
terceira onda, atingindo seu auge entre os anos 1960 e 1980, período
marcado por atos reivindicados por organizações como a OLP - Organi-
zação para a Libertação da Palestina, as Brigadas Vermelhas, ETA - Pátria
Basca e Liberdade e o grupo Baader-Meinhof. A onda foi fortemente
GUERRA SIMBÓLICA 203

influenciada pelo êxito dos vietcongs contra as Forças Armadas estadu-


nidenses ao longo da guerra do Vietnã. Nesse momento, a expressão
“terrorismo internacional” começou a ser utilizado de forma corriqueira
para descrever os atos perpetrados; grande parte dos grupos focava suas
atividades em territórios estrangeiros.
Com a virada da década, no início dos anos 1980, os revolucionários
terroristas sofreram derrotas consecutivas, enfraquecendo a New Left. A
vitória da Revolução Islâmica no Irã e a derrota soviética no Afeganistão,
em 1979, provocaram uma reviravolta política que produziu as condi-
ções necessárias para a formação da quarta onda de terrorismo, que se
intensificou após o final da Guerra Fria. Ambos os eventos, afetados
profundamente pela participação de voluntários muçulmanos, “eviden-
ciou que a religião agora promovia mais esperança do que a corrente
revolucionária” (RAPOPORT, 2001). Surge, então, a quarta e última
onda definida por Rapoport, que tem as concepções fundamentalistas
do islã em seu cerne, devido aos grupos que vêm conduzindo os mais
significativos ataques terroristas internacionais deste período.
Baseado no conceito de Rapoport, porém em desacordo sobre a
duração da quarta onda, o especialista em terrorismo Jeffrey Kaplan
(2008) defende que uma quinta onda já teria surgido e seria caracteri-
zada pelo “utópico intuito de criar, de forma radicalizada, uma socie-
dade aperfeiçoada no nível local. [...] de reconstituir o modelo de uma
‘Era de Ouro’ perdida ou um mundo inteiramente novo em apenas uma
geração” (2008, p. 12). Movimentos com esse intuito teriam emergido de
forma dissidente a partir das ondas postuladas por Rapoport e, apesar
do localismo radical e xenofobia, compartilhariam zeitgeist suficiente
para formar sua própria onda. Apesar da ausência de consenso acerca
da ideia postulada por Kaplan (2008), o conceito pode ser aplicado a
grupos como o nigeriano Boko Haram e o Daesh.
Enquanto Kaplan admite similaridades, embora relutante, Celso
(2015) defende que grupos como Daesh e Boko Haram possuem tendên-
cias da quinta onda, o que os diferencia de outras organizações terroristas
fundamentalistas da quarta onda, como a Al-Qaeda. O autor argumenta
que as duas organizações citadas possuem uma agenda sectária radical
204 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

baseada no takfirismo2, descolando seus objetivos dos movimentos


islâmicos mais amplos, que sempre pleitearam a criação de uma comu-
nidade unificada, a ummah. No foco das atenções midiáticas e socio-
políticas desde o 11 de Setembro, a Al Qaeda Central, historicamente,
sempre rejeitou a violência de seus afiliados contra os próprios muçul-
manos. Por diversas vezes, em correspondência com líderes regionais,
o próprio Osama bin Laden, líder e fundadora da Al-Qaeda, expressou
preocupação e emitiu ordens para tentar inibir a brutalidade sectária da
Al Qaeda Iraque (AQI), que se expandiria de forma incontrolável até se
fundar a organização dissidente Estado Islâmico do Iraque e do Levante
em 2013 (CELSO, 2015).
Além das diferenças estratégicas e ideológicas com a Al-Qaeda
Central, a ascensão do Daesh se relaciona também intimamente com
a precarização do Estado iraquiano em decorrência da invasão no país
árabe, iniciada pelos Estados Unidos em 2003. Após a queda do regime
de Saddam Hussein as divisões sectárias foram acirradas pelo apoio
estadunidense e ocidental ao governo da maioria xiita (60% da popu-
lação iraquiana) empossado posteriormente, representado pela figura
do então primeiro-ministro Nouri al-Maliki, levando à discriminação
e ao isolamento político e econômico da minoria sunita (20%). Apro-
veitando-se da circunstancial fragilidade política e insatisfação popular,
o “Estado Islâmico ganhou terreno rapidamente junto à comunidade
sunita, com a incorporação de outros grupos, aliança com comandantes
militares de Saddam Hussein e funcionários do Partido Baath, expulsos
de seus cargos após a invasão” (LAURIA; SILVA; RIBEIRO, 2015; p. 3).
A privação de oportunidades e dos direitos dos sunitas criou as
nuances psicossociais necessárias para tornar possível o projeto autori-
tário do Daesh que, no início, contou com pouca resistência das popu-
lações locais iraquianas e sírias e criou terreno fértil para o processo
de recrutamento e radicalização. Inserido nesse contexto sociopolítico,
o poderio militar do Daesh cresceu exponencialmente por meio do
apoio financeiro estrangeiro para que o grupo intensificasse sua partici-

2. Corrente política mais radical do islã, proveniente da palavra takfir, que significa herege.
Defendem a pureza do islã da linha wahabista; todos que não a seguem são considerados
hereges e infiéis, justificando, portanto, suas mortes.
GUERRA SIMBÓLICA 205

pação na guerra civil síria, apoiando os rebeldes contra o ditador Bashar


al-Assad.
Nesse contexto, o califado proclamado por Abu Bakr al-Baghdadi em
30 de junho de 2014 se expandiu rapidamente por territórios do Iraque
e Síria, se estendendo desde Aleppo até a província de Diyala, passando
por Homs, Damasco, Mossul e Bagdad. De acordo com dados levan-
tados pelo exército estadunidense, a área ultrapassava 190 mil quilô-
metros quadrados, aproximadamente, o equivalente a toda a extensão
do estado do Paraná. Estima-se que mais de oito milhões de pessoas
estiveram sob o domínio do Daesh durante o ápice de sua conquista
territorial, em 2015, contribuindo para o agravamento da crise huma-
nitária decorrente dos fluxos migratórios em massa, que bateram novos
recordes históricos e os superaram, naquele mesmo ano.

3. Teatro do terror e pânico moral


Se a quarta onda de terrorismo teve seu início na década de 1980, o
mundo ocidental só teve a percepção da dimensão do movimento na
virada do milênio. Reivindicados pela Al-Qaeda, os ataques conduzidos
em 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, colocaram o terrorismo
em pauta nas esferas sociais, midiática, política e econômica. Na visão
de Morin (2011), os atentados constituíram um “eletrochoque decisivo
para o devir da sociedade-mundo e, com a desintegração das duas torres
de Manhattan, propagou no globo o sentimento de uma ameaça plane-
tária”. Essa nova dinâmica alterou a percepção do terrorismo no imagi-
nário social antes percebida como distante por acometer apenas países
“distantes e subdesenvolvidos” (MORIN, 2011).
A resposta a essa nova ameaça, batizada de “guerra ao terror”, dire-
cionou esforços contra grupos fundamentalistas de matriz religiosa,
com base em uma agenda historicamente preconceituosa referente à
construção ocidentalista de que o islã seria “um mal a ser combatido por
apresentar um perigo sem precedentes para o Ocidente” (GOLDBERG,
2009). Nenhuma outra das três ondas anteriores propostas por Rapo-
port (2001) haviam desencadeado ações globais coordenadas de contra-
terrorismo. Para Butler (2015), a mídia, estimulada por atores políticos,
construiu a representação do terrorismo após o 11 de Setembro de
206 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

forma que acabamos “constantemente pensando nos terroristas como


uma perigosa ameaça a nós e a nosso país” ao passo que os dados encon-
trados antes dos atentados de 2001 apontam que o terrorismo não era
abordado como um assunto de relevância nacional, bem como a cober-
tura jornalística referente ao tema focava em diversos perpetradores e
não apenas em grupos de matriz religiosa.
Principalmente nos Estados Unidos e Europa, a relação simbiótica
travada entre terrorismo e mídia tem sido descrita como “teatro do
terror”. O termo, carregado de significados simbólicos, reflete a carga
dramática impressa no uso dos meios de comunicação tradicionais e
plataformas digitais de disseminação de conteúdo pelas organizações
terroristas e a respectiva cobertura midiática. Com as atuais capa-
cidades da mídia de massa, Shoshansi e Slone (2008) apontam que a
mídia tem sido ponto central de consideração na orquestração cuida-
dosa que envolve o planejamento de atos terroristas. Essa preocupação,
na visão dos autores, faz parte de uma estratégia para a ampliação da
percepção de poder por parte da opinião pública, permitindo que até
pequenos grupos terroristas recebam atenção desproporcional às suas
verdadeiras capacidades de ação. Os símbolos e as mensagens enviadas
são desenhadas para manter a ilusão de força aumentada, projetando-a
para além do ataque em si mesmo. Desta forma, o interesse público e
a atenção midiática acabam por servir às organizações terroristas, que
usufruem desse interesse para propagar medo e a ameaça de futuros
ataques (SHOSHANI; SLONE, 2008). Neste mote, Mendonça (2002)
revisou diversos estudos internacionais com evidências que relacionam
de forma contundente o aumento da percepção social de insegurança
e a repercussão dos atos de violência na mídia. Com base no resultado
dessas pesquisas, o autor conclui que o medo social não se baseia em
dados estatísticos concretos, mas em uma “ansiedade produzida simbo-
licamente” a partir do teor e frequência das informações disseminadas
à opinião pública.
Os achados de Mendonça encontram ressonância na perspectiva das
intuições estatísticas ingênuas, fenômeno identificado pela psicologia
social, que revela a tendência dos indivíduos de basearem, inconscien-
temente, percepções da realidade não nos parâmetros do pensamento
GUERRA SIMBÓLICA 207

racional, mas em emoções atreladas à heurística de disponibilidade,


gerando medos irrealistas (MEYERS, 2014). Atalhos mentais complexos
voltados para os processos de julgamento e de tomada de decisão, as
heurísticas, classificadas por Tversky e Kahneman (1973, 1974), embora
úteis para o psiquismo, acabam por exacerbar o enviesamento e distor-
ções do real. No caso da heurística de disponibilidade, considerada um
dos princípios básicos do pensamento social, é o esquema mental utili-
zado para estimar a probabilidade ou frequência de um evento conforme
a facilidade, rapidez e clareza com que tal fato (re)surge na mente. Como
ataques terroristas, eventos marcantes, imagéticos e cognitivamente
disponíveis são percebidos como mais prováveis de ocorrer novamente.
Dessa forma, auxiliado paradoxalmente pela mídia, o terrorismo, por
romper com a normalidade, impacta profundamente os indivíduos, os
distraindo de perigos estatisticamente urgentes para focar em um risco
irreal simbolicamente construído.
Essa atmosfera de medo irracional contínuo e coletivo, por sua vez,
gera o que o sociólogo Stanley Cohen batizou de pânico moral em seu
icônico livro Folk devils and moral panics (1980). A criação e sustentação
dessa circunstância social proporciona a oportunidade para os partidá-
rios da estrutura dominante de um universo simbólico moral forjarem
um universo antagônico e atacá-lo; durante o processo de eliminação
do inimigo comum do bem-estar social, o moralmente desejável, inde-
sejável, aceito e rejeitado acaba por ser redefinido. A partir dos estudos
de Cohen, estruturou-se a sociologia do pânico moral, que explora a
perspectiva analítica da teoria do rótulo. O conceito define os desvios
de uma construção social e não apenas uma qualidade intrínseca de
atos ou atores sociais específicos. De acordo com o postulado do soci-
ólogo Howard Becker (1963), a ênfase é conferida ao papel dos agentes
de controle social, os chamados “empreendedores morais”, o que pode
ser prontamente associado às ramificações da aplicação do conceito de
“guerra ao terror” e às políticas de contraterrorismo.
No campo da psicologia social, von Sikorski et al. (2017) teorizam
que a cobertura jornalística que explicitamente associa o islã ao terro-
rismo provoca sensações de medo em indivíduos não-muçulmanos,
ao passo que a diferenciação clara entre muçulmanos e terroristas
208 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

– desconstruindo o estereótipo em caráter educativo – tem a capaci-


dade de enfraquecer essas reações de medo. Os estudiosos afirmam
que a mensagem disseminada pelos meios de comunicação é crucial na
percepção individual e social dos fatos. “Se todos os muçulmanos são
percebidos como terroristas, então a ameaça terrorista é muito maior se
comparada com a noção de que terroristas muçulmanos são indivíduos
isolados e não associados com a maioria da comunidade muçulmana”
(VON SIKORSKI et al., 2017). Ao modificar o discurso durante a cober-
tura da pauta terrorista, a mídia teria a capacidade quase instantânea
de controlar o medo individual em sua origem e, consequentemente,
de modo menos efetivo, a atmosfera de pânico moral gerada a partir da
ausência de diferenciação midiática entre terrorismo e islã.
No entanto, o pânico social que se propagou nos Estados Unidos e,
principalmente, na Europa, acentuada pelos os fluxos migratórios em
massa dos últimos anos, guarda certo paradoxo. Os mesmos migrantes
rotulados de forma generalista como terroristas estão, de fato, em sua
maioria, fugindo da guerra e de ataques terroristas, de Estado ou não,
que ocorrem em seus próprios países de modo recorrente e letal.
Bauman (2016) recorda na fala do repórter do Guardian, Christo-
pher Catrambone, que após os ataques terroristas de Paris, o alarmismo
subsequente aos eventos de novembro de 2015 agravou a problemática
da chamada crise humanitária. “A tragédia humana de gente fugindo
pelo mar para escapar do terrorismo está sendo depreciada por acusa-
ções amargas, pela construção de muros e pelo medo de que esses refu-
giados venham nos matar” (BAUMAN, 2016). O sociólogo declara
ainda que utilizar a palavra “crise” como referência à situação é apenas
um codinome politicamente correto para a fase atual da eterna batalha
dos formadores de opinião pela conquista e subordinação das “mentes e
dos sentimentos humanos”.

4. Flames of War: análise da retórica propagandista do Daesh


Após completar o percurso teórico que embasa pontos centrais de
interesse, o presente artigo se propõe a analisar os principais elementos
retóricos presentes na série Flames of War, composta de dois longas-
-metragens em formato documental divulgados pelo Daesh. Ambas as
GUERRA SIMBÓLICA 209

produções audiovisuais foram elaboradas pelo Al Hayat Media Center,


departamento de mídia do grupo terrorista, especializado na confecção
e divulgação de conteúdo propagandístico para o público europeu, esta-
dunidense e russo. Notórios pela qualidade técnica, vídeos e filmes apre-
sentam linguagem uniforme, ancorada em narrativas cinematográficas e
televisivas, além de contar com elementos de computação gráfica. Dessa
forma, tanto a estética como a retórica dos produtos audiovisuais foram
desenvolvidos a fim de ressignificar e explorar símbolos da cultura
ocidental populares, principalmente, entre os jovens. Até mesmo a logo-
marca do centro midiático se assemelha, propositalmente, à identidade
visual da Al-Jazeera, o principal meio de comunicação do mundo árabe,
em uma tentativa de conferir veracidade e familiaridade ao conteúdo
divulgado.
Com 55 minutos e 13 segundos de duração, o primeiro filme,
nomeado Flames of War: fighting has just begun, foi lançado em 19
setembro de 2014 pela rede social Twitter. O período, marcado pela
ascensão e expansão territorial do Daesh durante os desdobramentos
da guerra na Síria, influencia diretamente a estrutura retórica do docu-
mentário, o primeiro do gênero divulgado pelo grupo, gerando ampla
repercussão na mídia ocidental. Hiperbólica, a produção revela como
objetivo principal reforçar e amplificar o poder do grupo terrorista e, ao
mesmo tempo, reduzir a efetividade bélica e a moral dos ditos inimigos.
Por meio de edições que exageram e manipulam a realidade, a compo-
sição reúne diversas passagens de guerra registradas com exclusividade
pelo Al Hayat Media Center e imagens de cobertura jornalística, costu-
radas por uma trilha sonora marcante e narração dramática, conduzida
em inglês nativo.
A cena de abertura apresenta o tom de exaltação que será mantido
durante todo o filme. O plano abre com os membros clamando: “You are
with us or against us” (Você está conosco ou contra nós, em tradução
livre da autora). Na sequência, é inserido um vídeo do ex-presidente
dos Estados Unidos, George W. Bush, dizendo o mesmo e também um
trecho de seu famoso discurso “Missão cumprida”, gravado a bordo do
USS Abraham Lincoln (CVN-72), um super porta-aviões de propulsão
nuclear, durante a Invasão do Iraque, em maio de 2003. Então, surge a
210 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

mensagem “They lied: the flames of war were only beginning to inten-
sify” (Eles mentiram: as chamas da guerra estão apenas começando a
se intensificar). Pela primeira vez, o termo que nomeia o filme é intro-
duzido ao público, em clara alusão aos destinatários da mensagem.
Outra passagem importante e direcionada ao Ocidente se configura
pela representação da população civil de territórios recém “libertados”
pelo Daesh, saldando e solicitando mantimentos e água aos soldados.
Novamente, a cena é instrumentalizada para acusar os líderes islâ-
micos que se opõem aos atos do Daesh, “espalhando mentiras sobre o
regime na televisão herege”.
Antes do início das cenas de guerra, há uma seção em que o grupo
ressalta a necessidade de purificar o islã, graças aos muitos muçul-
manos que não mantém a fé de forma correta, principalmente aqueles
que defendem que a jihad física – em oposição à jihad do coração ou
da alma – não deve fazer parte da prática contemporânea da religião.
Justificando e defendendo os atos perpetrados, o narrador introduz
imagens de batalha por uma base aérea síria, destacando que a luta
do Daesh é diferente das de seus inimigos, pois o grupo luta não por
ganhos mundanos, mas por recompensas divinas. Diversas cenas
mostram soldados emocionados rezando no campo de batalha em
agradecimento a Alá. Nesse ponto da produção, a retórica ideológica se
intensifica, promovendo a perversão de ideais sagrados e o processo de
desumanização do outro, no caso, os inimigos estadunidenses e euro-
peus. Argumento recorrente na retórica propagandista, a morte em
batalha – ou o martírio, na concepção extremista – é construída como
um momento de celebração e nunca como uma perda. Nesse sentido,
um trecho na primeira metade do documentário mostra quando um
dos soldados do Daesh é baleado; seus companheiros avançam no
campo de batalha sem parar para prestar socorro enquanto o câmera
também continua filmando. Nesse momento, o narrador anônimo
retrata a morte como gloriosa, afirmando que os espectadores puderam
assistir a “alma dele indo para um lugar muito melhor”.
Como nas produções hollywoodianas, o ápice do documentário se
localiza nos minutos finais. De modo icônico, as imagens exibem cenas
registradas após a conquista da base da 17ª Divisão síria, próximo à
GUERRA SIMBÓLICA 211

Raqqa. Apartamentos residenciais formam o pano de fundo para a apre-


sentação de uma fileira de soldados capturados cavando as próprias
covas com as mãos em um campo aberto. Um dos soldados é colo-
cado em plano fechado para então fazer uma longa declaração contra o
regime de Bashar al-Assad e seus aliados. Para dramatizar ainda mais a
sequência, o narrador aparece, enfatizando a mensagem de que a guerra
está apenas começando para, então, fazer parte da execução em massa
dos prisioneiros. Os corpos caem nas covas e o primeiro filme da série
Flames of War termina com as imagens se afastando de forma gradual.
Já o filme-sequência chegou ao conhecimento público, pelo Youtube,
em 29 de novembro de 2017, período crítico para o Daesh, marcado
pela perda de grande parte do território conquistado no Iraque e Síria.
A nova produção conta com o título Flames of War: until the final hour,
em clara alusão à obra de Traudl Junge, que retrata os últimos dias do
regime nazista e de Adolf Hitler. Paralelamente, o título também reforça
a ideia propagada de que os ataques terroristas e a luta do Daesh na
guerra síria seriam um modo de dar início ao “fim dos tempos”; por
meio de manifestos e vídeos, mensagens defendem que uma grande
batalha contra os infiéis desencadearia os acontecimentos necessários
para o “dia do juízo final”, descrito pelo Hadiz, um dos textos sagrados.
O roteiro, organizado de forma estratégica, reitera essa referência cons-
tantemente ao longo dos 58 minutos de filme, reforçando que a vitória
contra o Al’ahzab3 ainda virá, apesar das perdas momentâneas. A retó-
rica tem como intuito atingir tanto os inimigos quanto apoiadores do
grupo; voltada para estes últimos, a mensagem salienta o apelo reli-
gioso do momento de provação, dos mártires e do arquétipo do herói.
O período de perdas é interpretado como a necessidade de revelar os
verdadeiros fiéis. É possível notar um aumento significativo no uso de
passagens do Alcorão e referências religiosas a fim de fundamentar a
narrativa da inevitável vitória após as derrotas por meio da intervenção
divina. Nos minutos finais, reforçando a importância da mensagem, há a
aparição do então califa Abu Bakr al-Baghdadi, que se dirige aos muçul-
manos, enfatizando, mais uma vez, para que não se impressionem com

3. Coalizão de países, considerados infiéis, que luta contra o Daesh.


212 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

“as nações pecadoras, que se unem contra o Estado Islâmico, pois essa é
a condição para a vitória em qualquer era”. Toda a composição da cena
para o discurso do califa enfatiza a lógica propagandista messiânica
que envolve a figura de al-Baghdadi, que, como todo líder carismático,
assume o mito do escolhido por Deus.
O segundo longa-metragem da série Flames of War trabalha também,
de forma ainda mais acentuada, o processo de desumanização dos
inimigos. Logo nos primeiros minutos, imagens de crianças mortas em
decorrência de um ataque da coalizão à cidade de Raqqa preenchem a
tela, seguidas de um vídeo em que o presidente estadunidense Donald
Trump comenta sobre a brutalidade do Daesh: “This is an evil, sadistic,
monstrous enemy, absolute butchers” (Esse é um inimigo demoníaco,
sádico monstruoso, são açougueiros). A inserção busca descreditar o
discurso dos inimigos por meio da contradição: os que acusam o Daesh
de ser desumano praticam atos tão ou até mesmo mais brutais, sem uma
causa ou a orientação divina, tornando-os injustificáveis; argumento
explorado a fim de legitimar os ataques perpetrados, principalmente, a
alvos ocidentais.
Elementos de teor emocional, com ênfase na trilha sonora, foram
empregados em abundância, se comparados ao primeiro filme; a
ausência de pluralidade de argumentos para manter a ideologia extre-
mista frente às recentes perdas pode ser um dos motivos que justifi-
quem a escolha. Após reforçar a premissa de desumanização dos
inimigos durante todo o roteiro, compondo a narrativa para legitimar
os atos cometidos, os minutos finais foram elaborados para impactar
os inimigos e a audiência, salientando que a capacidade operativa do
Daesh se mantém intacta. Cenas de execuções de prisioneiros com facas,
tiros, pedras e fogo invadem a tela, inclusive, registradas em slow motion
e alta qualidade. Por cerca de cinco minutos, uma sequência de degola-
mentos tem destaque, sendo finalizada apenas quando a última cabeça é
jogada em um buraco ensanguentado no chão. Em um artifício retórico,
os dois filmes da série Flames of War compartilham a mesma cena final:
soldados capturados cavando as próprias covas com as mãos em um
campo aberto e, posteriormente, a execução de todos eles. A escolha de
repetir o final simboliza a manutenção das convicções ideológicas e o
GUERRA SIMBÓLICA 213

reforço da vitória após o período de provação. De modo subliminar, o


fechamento revela a crença de que, independentemente da fase da luta
contra os infiéis, o destino daqueles que se opõem ao Daesh é sempre o
mesmo, graças à vontade de Deus.

5. Considerações finais
Com base na análise da retórica propagandista intrínseca na
série Flames of War, é possível identificar que o Daesh se apropria de
elementos ocidentalizados da cultura audiovisual a fim de conferir
credibilidade e legitimidade às produções, em um processo paradoxal.
O universo simbólico, acionado pela estética e técnica empregadas em
ambos os filmes, aliado ao uso da língua inglesa evidencia o esforço em
conferir um aspecto internacional à organização terrorista. Com reforço
dos integrantes europeus e estadunidenses, o Al Hayat Media Center
estudou cuidadosamente a estratégia propagandística utilizada pelos
governos dos Estados Unidos e Reino Unido para validar social e midia-
ticamente a invasão ao Iraque, após o 11 de Setembro, e aprimorá-la
visando atingir seus próprios objetivos. Dessa forma, o Daesh conseguiu
estabelecer mitos igualmente falsos e distorcidos a serviço do proseli-
tismo e recrutamento, por meio da instrumentalização midiática profis-
sional, principalmente das redes sociais (NAPOLEONI, 2015, p.21).
Apesar de terem sido produzidos em contextos diferentes, ambos
os filmes se sobrepõem na tentativa de fortalecer os pilares ideológicos
que justificam a existência do Daesh. A intenção de legitimar o grupo
nos âmbitos político e religioso é latente. Isso fica refletido na própria
escolha do nome do califado como “Estado Islâmico”, representando a
utopia de ser reconhecido como um Estado, de fato, independente e a
asserção do papel central do islã na política, rejeitando em seu cerne
qualquer flexibilização de caráter secular.
A tentativa de legitimação política fica registrada categoricamente
no primeiro filme, que dedica longas cenas para apresentar a estrutura
burocrática atendendo às necessidades da população por meio de ativi-
dades consideradas estatais, incluindo supostas parcerias com líderes
locais nos territórios iraquiano e sírio. Já o desejo de se legitimar na
esfera religiosa conta ainda com muito mais dedicação e empenho retó-
214 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

rico, principalmente no segundo filme. Devido às perdas militares e


ataques terroristas já perpetrados, argumentos e elementos religiosos
são instrumentalizados em abundância para validar a lógica extremista
e, consequentemente, o nível de violência empregado pelo grupo. A
partir de uma cosmovisão dicotômica, a interpretação das escrituras
sagradas induz ao conflito contra aqueles considerados infiéis, apóstatas
ou heréticos, que não possuem direito de defesa frente às leis divinas,
encaradas como incontestáveis.
Mesmo com a redução do domínio territorial e a morte do califa Abu
Bakr al-Baghdadi em decorrência de uma operação militar dos Estados
Unidos na Síria em outubro de 2019, os efeitos da retórica propagan-
dística do Daesh seguem ativos e influentes, especialmente na esfera
digital. No atual contexto social, a falência das instituições e promessas
da modernidade mantém o projeto autoritário do Daesh vivo, arraigado
no apelo do martírio último e a perversão do arquétipo do herói, parte
indissociável da psique humana.
A série Flames of War representa um importante marco evolutivo
na estratégia, estética e prática midiática dos movimentos terroristas,
não apenas voltadas aos processos de recrutamento e radicalização,
mas também na propagação do pânico moral. A partir dos resultados
e análises decorrentes, o presente artigo espera contribuir para abrir
caminho a pesquisas posteriores, nomeadamente, no que diz respeito à
relação entre a midiatização do terrorismo, na retórica propagandística
do Daesh, e o aumento da incidência de operadores solitários, popular-
mente conhecidos como “lone wolves”, considerando as características
dos relacionamentos possibilitados pela interatividade tecnológica.
GUERRA SIMBÓLICA 215

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Capítulo 12

Narrativa audiovisual e performances


femininas: o gênero como figura
de historicidade em Coisa Mais Linda
Nicoli Tassis
#streaming #série ficcional #performancefeminina

Durante a maior parte do século XX, reconhecer e transcender o


seu sujeito foi considerada uma tarefa fundamental para as diversas
vertentes do feminismo e suas importantes reivindicações ao longo
da história. Especialmente, no que diz respeito à quebra das prescri-
ções de uma sociedade patriarcal – compreendida aqui como aquela
regida por uma lógica sociopolítica que privilegia os homens em situ-
ações de poder, enquanto subjuga a existência e a ação femininas, de
variadas maneiras. Ainda que as abordagens do conceito de patriarcado
se mostrem bastante heterogêneas e até mesmo controversas, a ponto
de algumas pesquisadoras optarem por não usar mais o termo em suas
pesquisas, consideramos importante resgatá-lo, diante da constatação
de que, apesar dos avanços vivenciados nas últimas décadas, ainda há
muitos silenciamentos e violências que se perpetuam pela condição de
“ser mulher”.
Em 1990, Judith Butler lançou nos Estados Unidos a obra “Problemas
de gênero: feminismo e subversão da identidade”, que chamou a atenção
para o fato de que era preciso elaborar o “ser mulher” em movimentos
que não apenas se limitassem a fazer um contraponto à dominação
218 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

masculina, mas que, de fato, descontruíssem os critérios prévios da


regulação política e da representação que, historicamente, têm assujei-
tado as mulheres, dotando-lhes de uma posição secundária nos espaços
públicos. Para a autora, enquanto a categoria “mulher” opera na lógica
da totalidade, não só falha no intuito de unificar pautas e reivindicações,
como também cai na contradição de alimentar a própria estrutura de
opressão que pretende combater.
No período de lançamento dessa obra, as diversas vertentes femi-
nistas já estavam há pelo menos uma década discutindo os problemas da
fixação do feminino numa identidade única e generalista, remediando
essa questão com o uso da palavra no plural. Ao assumirem o desejo de
conferir ampla visibilidade às múltiplas causas das “mulheres”, pesqui-
sadoras e/ou militantes dos feminismos buscavam suplantar as críticas
em torno da incapacidade de se falar em nome de uma totalidade, que
jamais poderia ser apreendida em um significante, uma vez que a grande
diversidade das chamadas “experiências femininas” no cotidiano social
tornam o substantivo “mulher” bastante redutor e limitado.
Em um dos inúmeros diálogos estabelecidos por Butler em sua obra,
destaca-se o embate com Simone de Beauvoir e sua distinção entre sexo e
gênero, considerada basilar para a maior parte das teorias feministas. Na
concepção butleriana, tal dicotomia estaria, indubitavelmente, inscrita
na tradição de oposições metafísicas que orientam o pensamento
ocidental e, portanto, seria parte da mesma lógica coercitiva hegemô-
nica que buscava, contraditoriamente e sem êxito, combater. Na pers-
pectiva beauvoiriana, o sexo diria respeito ao que é natural, enquanto o
gênero seria socialmente construído. Tese essa que Butler (2003) acre-
dita ser uma tentativa de diferenciação improdutiva, por reproduzir
acriticamente o modelo binário significante/significado.
Para a autora, não há distinção entre sexo e gênero, e sim uma
“unidade metafísica”. Assim, ela propõe repensar os corpos não mais
como um dado biológico, mas como “superfícies politicamente regu-
ladas”, ou seja, produzidos na interação dos processos de institucio-
nalização, codificação e regularidades que ofertam múltiplos sentidos,
sendo indissociável das redes de instituições, dos demais corpos e tecno-
logias em que são continuamente (re) construídos e (re) significados.
NARRATIVA AUDIOVISUAL E PERFORMANCES FEMININAS 219

Nessa perspectiva, Butler (2003) investiga a identidade, a sexualidade


e o gênero norteados pelo reconhecimento de que não caberia mais aos
estudos feministas resolver as questões da identidade primária (do seu
sujeito) como fundamento da sua tarefa política.
Longe de ser uma perspectiva apolitizada, em que se prescinde da
política representativa ou de qualquer tipo de institucionalidade, o que
a autora reivindica é o reconhecimento: das limitações do modelo repre-
sentativo; do seu caráter eminentemente fluido; e das interferências
práticas inerentes à institucionalização de identidades no circuito social.
Nesse ponto, torna-se necessário pensar, ainda que brevemente, sobre o
próprio conceito de representação. A partir de Foucault, apresentam-
-se duas vertentes para tratarmos o conceito. A primeira diz respeito
ao processo político de visibilidades e legitimações das mulheres como
sujeito, tão caro às lutas feministas por equidade de gênero. Mas,
a segunda, de viés problemático, é inerente à função normativa da
linguagem, no sentido de determinar como os indivíduos deveriam ser
e performar.
Numa perspectiva foucaultiana, é preciso, portanto, problematizar
que as instituições e os sistemas jurídicos de poder produzem os sujeitos
que veem posteriormente a representar, a partir de critérios previamente
delimitados para determinado gênero. Desse modo, a representação
pressupõe um anterior que deve ser materializado e é para não incorrer
nessa “armadilha” que se propõe refletir sobre a dimensão histórica,
reconhecendo o caráter eminentemente relacional que deve atravessar
e constituir os estudos da comunicação. Desse modo, nos aproximamos
de Butler (2003) no entendimento de que a identidade é sempre fruto de
práticas legitimadoras e, por isso, deve ser debatida sob o prisma de uma
genealogia crítica de suas materialidades e subjetivações.
A partir dessa discussão, oferta-se o conceito de performance, que
diz respeito à reatualização perene e processual das marcas culturais de
gênero que, por sua vez, pode ser compreendido como uma ação que
constitui identidades transitórias. Em outras palavras, ao se contrapor à
dicotomia gênero (social) e sexo (biológico), a autora apresenta a prática
performática como um espaço de atualização contínua dos gestos, do
vocabulário e das imagens que compõem as marcas culturais de gênero
220 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

e o caracterizam como um processo social, dotando a prática performá-


tica de um caráter volúvel e dramático. Nessa perspectiva, é refutada a
ideia do gênero como uma identidade estável ou mesmo um locus de
ação que se desdobra em atos afins. Antes, o gênero passa a ser perce-
bido como uma identidade tênue, temporalmente construída por meio
de uma repetição estilizada de atos. Assim, “o efeito de gênero” é cons-
truído pela estilização do corpo, cotidianamente, constituindo um “eu”
que de permanente tem apenas o seu processo de construção, tornando
o corpo tão cultural quanto o gênero.
Ao afirmar que os corpos performam gêneros, repetidamente, Butler
(2003) não considera esses “estilos de carne” como verdadeiros ou falsos
e sim como marcas de que aquilo que é coletivamente reconhecido
como próprio ou não a um determinado gênero só é possível por conta
dessa estrutura de repetição e citação continuadas. Nesse ponto, residem
as principais críticas ao seu trabalho, pois ao refutar a dicotomia sexo/
gênero, ela não oferta a sedimentação de um novo lugar teórico-meto-
dológico que resolva, de fato, a complexa questão colocada.
Contudo, talvez, aí também esteja a maior contribuição do seu
pensamento. Ao propor o abandono da pretensão de estabilidade iden-
titária, ela sinaliza que as novas identidades que surgem e interagem
nesse fluxo constante, por mais variadas e singulares que possam ser,
são fixações que, uma vez admitidas, eliminam o caráter contingente
atrelado ao conceito de performance. Daí, a importância de se assumir
o permanente movimento, não como uma fraqueza ou inconsistência de
investigação, mas como a sua potência.
Ao admitir o gênero como performativo, Butler (2003) evidencia
que não há essência inerente aos signos corporais, propondo pensar de
maneira imbricada sobre as três dimensões fluidas que comporiam a
corporeidade: 1) sexo anatômico, biologicamente definido; 2) identi-
dade de gênero, que Beauvoir (2009) considera uma construção social;
e 3) a performance de gênero, elemento perturbador das duas primeiras
dimensões, que reafirma o caráter imitativo de todo gênero e aponta
para a desnaturalização das identidades sexuais.
Desse modo, assume-se que não é possível fixar valores com base no
gênero, nem considerar comportamentos como “naturais” ou “antinatu-
NARRATIVA AUDIOVISUAL E PERFORMANCES FEMININAS 221

rais” por categorias prévias, avançando na compreensão do “ser mulher”


como um ato da vontade, como pressupôs Beauvoir (2009), construído
gradualmente e atravessado por uma infinidade de modos, práticas e
significados culturais. Nesse contexto, o gênero é observado como um
fenômeno dinâmico, com destaque para o processo de escolha existen-
cial dentre as diversas possibilidades culturais recebidas e renovadas
(BUTLER, 2003).
No ensejo desse debate, reconhecemos que as narrativas audio-
visuais – assim como outras formas de narrar - desvelam determina-
ções concretas, historicamente constituídas e, portanto, mais do que
representações estáticas da realidade, materializam relações sociais
complexas, em suas convenções, formas, discursos e temáticas. Assim,
admitimos a série Coisa Mais Linda (Original Netflix Brasil, 2019, 2020),
como empiria instigante para problematizar, em caráter exploratório, as
múltiplas experiências de “ser mulher” materializadas nas telas.
Produzida e distribuída pela plataforma de streaming que ocupa o
segundo lugar em número de assinaturas no Brasil - com 17,9 milhões,
perdendo apenas para a Globoplay, com 20 milhões de assinantes
(SILVA, 2021) -, a série é composta por duas temporadas e 13 episó-
dios, tendo como criadores Giuliano Cedroni e Heather Roth, e direção
geral de Caito Ortiz. É centrada na trajetória de quatro personagens
(Maria Luiza Carone Furtado ou Malu, interpretada por Maria Casade-
vall; Adélia Araújo, por Pathy Dejesus; Thereza Soares, por Mel Lisboa;
e Lígia Soares, por Fernanda Vasconcelos) que - apesar de suas vivências
singulares, especialmente no que diz respeito aos contextos econômicos,
familiares, culturais e raciais - têm em comum a luta por autonomia, em
uma sociedade de composição binarista.
Acreditamos, assim, que essa série é emblemática para compre-
endermos, ainda de forma exploratória, a respeito das performances
femininas, via historicidade, assumindo uma perspectiva relacional,
contextual e transdisciplinar de investigação. Por meio da historicidade,
consideramos que é possível construirmos um percurso teórico-meto-
dológico que problematize as contradições e disputas materializadas
em muitos dos episódios, ambientados nas décadas de 1950 e 1960, de
222 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

modo a observar como as formações hegemônicas se relacionam com as


instabilidades e potências de transformação.
Ao longo das duas temporadas da série, a condição de “ser mulher”
se oferta como fio condutor da narrativa, apresentando aos especta-
dores uma saga paradoxal. Ao mesmo tempo em que as coprotago-
nistas seguem em uma busca (menos ou mais) consciente da sua trans-
cendência como sujeito, vivem imersas em experiências cotidianas
que insistem em reduzi-las à imanência. Nesse ponto, a série parece
se embater com a mesma questão-problema trabalhada por Beauvoir
(2009): em um mundo em que aos homens é inerente o reconhecimento
pleno; às mulheres resta a luta e a reivindicação diária para alcançá-lo.
Mesmo sendo ambientada no Rio de Janeiro de meados do século XX,
a produção trata de temas ainda não superados, como a resistência ao
racismo e ao machismo, dados a ver nos constantes conflitos narrados,
algumas vezes de modo violento, outras de forma sutil, mas não menos
problemáticas. Tal constatação nos aponta para a importância da consci-
ência histórica, em gestos investigativos que compreendam que passado,
presente e futuro são constantemente reconfigurados e se ofertam numa
relação imbricada de afetos e tensionamentos múltiplos.
É nesse cruzamento de rotas que o presente se estabelece como histó-
rico sendo, portanto, vivo (RICOEUR, 1985). Assim, numa perspectiva
ricoeuriana, admitimos que todo o esforço de narrar – inclusive, o das
séries audiovisuais ficcionais – é um modo de lidar com a experiência
temporal e de dotar de sentidos a nossa trajetória em determinado
tempo e espaço. A consciência histórica nos permite, desse modo, olhar
para a série e compreendê-la como a configuração de mundos possíveis,
a partir dos quais se tem uma proposição de experiência do/no/sobre
o tempo, que tensiona - de modo permanente e fluido - o presente, o
passado e o futuro.
Para tangibilizar essa perspectiva teórico-metodológica, propomos o
gênero como uma “figura de historicidade” (RIBEIRO, LEAL e GOMES,
2017), ou seja, como uma imagem conceitual capaz de, num duplo
movimento, dar a ver as questões temporais que atravessam e consti-
tuem a série enquanto fenômeno midiático (dimensão reflexiva); ao
passo que também sugere caminhos e operadores para a sua problema-
NARRATIVA AUDIOVISUAL E PERFORMANCES FEMININAS 223

tização (dimensão operacional). Ao ser admitido como figura de histo-


ricidade, o gênero se torna o conceito nuclear, tanto da investigação
teórica, quanto metodológica, dessa análise exploratória.
Diante disso, nos alinhamos com a compreensão de que a cultura
se estabelece como lugar de variadas disputas e subjugações que se
dão não só pela força, mas pelas coerções de ordem simbólica. Assim,
a formação das tradições e da hegemonia de uma determinada classe
dominante – no escopo da série analisada, do patriarcado brasileiro,
presente na constituição do ideal de família e da sociedade em geral
(FREYRE, 2002) – depende da ampla legitimação dos valores e práticas
que sustentam tal dominação, empreendida a partir da universalização
de significados para o conjunto social (WILLIAMS, 1979, 2011).
Se a universalização de sentimentos, práticas, valores e significados
é elemento basilar para a instauração das hegemonias, então, torna-se
fundamental problematizar as implicações de certas formas de ser e estar
no mundo serem (re)afirmadas, enquanto tantas outras são negadas ou
excluídas. Pretendemos realizar esse movimento crítico de investigação,
a partir da seguinte pergunta norteadora: Quais são as formas de “ser
mulher” performadas pelas quatro coprotagonistas na série Coisa Mais
Linda? Assim, mais uma vez, essa perspectiva analítica se alinha com
Butler (2003), ao se contrapor à noção estável e totalizadora do “ser
mulher”, o que nos coloca diante do desafio de não situar o “feminino”
como uma dimensão prévia ao masculino, que supostamente devia ser
resgatada, mas de direcionar o gesto de investigação para os processos
de criação e transformação no bojo dessa mesma cultura.
Fazem parte do corpus ampliado desse exercício analítico explora-
tório os 13 episódios das duas temporadas. Para trabalhar o gênero como
figura de historicidade elegeram-se os seguintes operadores metodoló-
gicos, ofertados no cruzamento com as próprias escolhas temáticas e
narrativas da série, a saber: a) racismo e machismo; b) violência simbó-
lica; c) violência estrutural; d) violência patriarcal (BOURDIEU, 2014;
DAVIS, 2016, 2017, 2018; GALTUNG, 1969). Desse modo, propomos
um gesto investigativo inicial de proposição do gênero como uma
figura de historicidade. Buscamos, por via complementar, problema-
tizar os significados e relações sociais que atravessam o ser(ou se tornar)
224 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

mulher(es), a partir da multiplicidade temporal materializada em Coisa


mais Linda.

1. Entre o samba e a bossa nova: somos muitas


A abertura da série aciona o imaginário coletivo (MEAD, 1926)
em torno da “cidade maravilhosa”, trazendo imagens que remetem à
exuberância do Rio de Janeiro (RJ), então capital do país, em 1959. Logo
nos segundos iniciais, a voz da protagonista Maria Luiza se faz ouvir,
em meio à profusão de fogos de artifício e da oferenda à Iemanjá, emba-
lada nas ondas do mar de Copacabana, numa provável comemoração
de Réveillon. “Uma mulher tem que ter qualquer coisa além da beleza,
qualquer coisa de triste, qualquer coisa que chora, qualquer coisa que
sente saudade. Um molejo de amor machucado, uma beleza que vem
da tristeza de se saber mulher”. Essa fala de abertura se oferta quase
como um prenúncio dos afetos que aguardam os espectadores ao longo
da série.
Maria Luiza começa a sua jornada como uma jovem esposa e mãe, a
qual deixa o conforto da mansão de seu pai em São Paulo (SP) à procura
do marido Pedro, que havia se mudado tempos antes para a capital
fluminense a fim de abrir um restaurante, com o dinheiro oriundo,
provavelmente, de uma espécie de dote matrimonial. Ao chegar ao Rio
de Janeiro, ela encontra o apartamento em que ele morava e o suposto
estabelecimento comercial em estado de abandono. Na sequência,
descobre que também havia sido abandonada pelo companheiro, que
mantinha relacionamentos extraconjugais e desapareceu com todo o seu
recurso financeiro. A dor do luto por ter sido enganada é tanta que ela
põe fogo nas fotos e roupas do marido, quase sendo tragada também
pelas chamas. Nesse momento, é socorrida por Adélia, que trabalha
como diarista no edifício. Começa, ali, o embrião de uma saga de soro-
ridade, ou seja, de apoio recíproco para se conseguir o poder para todas
as mulheres, numa aliança de gradativa confiança e reconhecimento
mútuo (LAGARDE, 2005).
Mais tarde, ao encontrar a amiga de infância Lígia (casada com um
político conservador em ascensão chamado Augusto), Maria Luiza é
aconselhada a contar às pessoas que Pedro faleceu. Assim, não teria que
NARRATIVA AUDIOVISUAL E PERFORMANCES FEMININAS 225

enfrentar o julgamento da chamada alta sociedade e a vergonha de ser


uma “mulher separada”. Aqui vale recordar que, do ponto de vista legal,
vigorava naquele período o desquite, instituído em 1942, a partir do
artigo 315, da Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916 (CÓDIGO CIVIL,
1916). Em termos práticos, consistia na separação do casal e de seus
bens, sem, contudo, romper o vínculo conjugal, o que impedia novos
casamentos no Brasil. Desse modo, o desquite – ou seja, “não quites” ou
em débito com a sociedade - permitia o fim dos deveres de coabitação,
do regime de bens e da fidelidade recíproca, mas mantinha o vínculo
matrimonial em uma época em que o casamento era considerado
perpétuo e indissolúvel.
Contudo, a própria Lígia acaba contando o ocorrido à jornalista
Thereza, sua concunhada, casada com Nelson, irmão de Augusto, que
se torna mais uma das mulheres dessa rede de apoio. Com vistas a se
despedir do Rio de Janeiro e retornar a São Paulo, Maria Luiza aceita,
relutante, o convite das amigas para um passeio de barco, onde ela
conhece mais dois personagens que se tornarão centrais durante as
duas temporadas da série: Roberto (Gustavo Machado), diretor de uma
gravadora, e Chico (Leandro Lima), artista de Bossa Nova, novidade
musical naquele período. Ao longo das temporadas, os três compõem
um triângulo amoroso.
Antes de regressar a São Paulo, Maria Luiza aceita o convite de
Chico para conhecer o “Rio de Janeiro de verdade”. Os dois sobem o
morro e ela ouve pela primeira vez o samba carioca. Diante daquela
experiência tão diferente da sua realidade como filha de um rico fazen-
deiro de café, ela começa a se identificar como “Malu” e compreende
que não precisava de marido para levar adiante o sonho de abrir um
clube musical. Mas, as limitações por conta da condição feminina logo
começam a aparecer: o banco lhe nega empréstimo; o pai ameaça cortar
o auxílio financeiro, caso não volte para casa e se case novamente; o
Roberto recusa o seu pedido de sociedade; o agiota de seu ex-marido
passa a persegui-la; e o próprio sistema legal naquele período não auto-
rizava as mulheres a abrirem e gerirem uma empresa.
No contexto legal brasileiro, o Código Civil (1916) colocava a mulher
em situação de inferioridade legal na “hierarquia familiar”, com exceção,
226 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

da “falta ou impedimento” do marido (arts. 233, 240, 247 e 251). Tal


código foi revisado pela Lei n. 4.121, de 27 de agosto de 1962 e são
muitos os artigos que marcam as desigualdades de gênero. As mulheres
casadas não poderiam “aceitar ou repudiar herança ou legado”, sem a
autorização do marido (art. 242, inciso IV); só poderiam administrar
os bens do casal quando o esposo estivesse “em lugar remoto, ou não
sabido”, “em cárcere por mais de dois anos” ou fosse “judicialmente
declarado interdito” (art. 251, incisos I, II e III).
Ademais, só poderiam ajuizar ações civis e comerciais com permissão
dos maridos (art. 242, inciso VI), salvo exceções (arts. 248 e 251), e só
teriam direito à pensão alimentícia fixada pelo juiz no desquite judicial
se fosse considerada “inocente e pobre” (art. 320). No artigo 6º, inciso II,
afirma-se que as mulheres casadas “são incapazes, relativamente a certos
atos (art. 147, n.1) ou à maneira de os exercer”, definindo que competia
ao marido como chefe da sociedade conjugal “o direito de autorizar a
profissão da mulher e a sua residência fora do teto conjugal” (art. 233,
nº IV), o que era corroborado no Art. 242, que diz “a mulher não pode,
sem autorização do marido: exercer profissão”.
É no bojo dessas restrições aqui brevemente resgatadas que
Malu começa o seu processo de emancipação e encontra em Adélia uma
coprotagonista improvável, pela sua condição de mulher negra, neta
de pessoas que viveram em condição de escravidão, analfabeta, “mãe
solteira”, empregada doméstica e moradora do morro. Ao vê-la no hall
do prédio trazendo a filha doente para o trabalho, a paulista resolve
fazer-lhe uma proposta de emprego. Adélia, que a princípio nega, é
interrompida pela chegada da patroa que, desaprovando o seu atraso, a
dispensa da diária, sem remuneração. “Eu não faço você dormir aqui, eu
deixo você levar a minha roupa pra lavar em casa e ainda te dou folga no
domingo” (COISA MAIS LINDA, 1x2, 2019).
Mesmo consciente das práticas abusivas da patroa, que chega a
afirmar que não queria a menina mexendo em suas coisas, Adélia se
porta de modo subserviente e, inclusive, a agradece. Essa é apenas uma
das inúmeras cenas da série que realçam a classe e a raça como marca-
dores das desigualdades sociais que se perpetuam no contexto brasi-
leiro, até os dias de hoje. “A terceirização do trabalho doméstico cria,
NARRATIVA AUDIOVISUAL E PERFORMANCES FEMININAS 227

portanto, uma oposição de classe e raça entre as próprias mulheres, ao


mesmo tempo em que se configura em uma solução privada para um
problema público, sendo, portanto, acessível apenas àquelas famílias
com mais renda” (IPEA, 2020).
De acordo com o levantamento feito pela Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua (PNAD CONTÍNUA, 2020), a partir
dos dados comparativos entre os últimos trimestres de 2019 e 2020, o
trabalho doméstico continua sendo uma atividade exercida de modo
majoritário por mulheres, que compõem 92% dos 4,9 milhões de traba-
lhadores, sendo 52% delas chefes de família. Destas, 75% atuam na infor-
malidade, sem carteira assinada, trabalhando uma média semanal de
52 horas, recebendo menos de um salário mínimo. As mulheres negras
e de baixa escolaridade são maioria, representando 65% ou 3 milhões
de pessoas, o que “radicaliza a divisão sexual do trabalho e a lógica de
opressões interseccionais” (BRITO; CAL, 2020).
Com a promulgação da Emenda Constitucional 72, conhecida
como a PEC das Domésticas (PEC 66, 02/04/2012), e a posterior apro-
vação da Lei Complementar 150/2015, que regulamentou a referida
emenda, o trabalhador doméstico passou a ter legalmente garantidos os
direitos ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), ao seguro-
-desemprego, salário-família, adicional noturno, adicional de viagens,
etc. Mesmo assim, torna-se evidente pelas pesquisas recentes que tais
conquistas ainda estão distantes de vigorar concreta e amplamente.
Que dirá em meados do século passado, tempo em que se passa a trama
da série analisada, em que não havia amparo legal ao reconhecimento
dessas trabalhadoras como sujeito de direitos.
Adélia, apesar de ser performada como uma mulher forte e bata-
lhadora, convive cotidianamente com a invisibilidade e a submissão ao
“outro”, seja à patroa que lhe trata em condições análogas à escravidão;
ao seu namorado Capitão (Ícaro Silva), suposto pai biológico de sua
filha Conceição, que segue livremente o seu sonho de ter uma carreira
musical, entrando e saindo de sua vida, sem maiores explicações, ou
responsabilidade parental; à irmã Ivone (Larissa Nunes), que durante
boa parte da trama se aproveita dela financeiramente; ao Nelson (verda-
deiro pai biológico de sua menina) com quem teve um relacionamento
228 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

amoroso durante o tempo em que trabalhou como doméstica em sua


casa e, apesar de gostar dela, não foi capaz de enfrentar a família para
assumir a relação; e até mesmo o fatídico primeiro encontro com Lígia,
que aponta para o modo como uma jovem negra é, costumeiramente,
enquadrada: se está presente no espaço de um futuro clube musical, é na
condição presumida de empregada.
Essas e outras relações de poder tensionadas ao longo da série dão a
ver que a violência simbólica se institui, em grande medida, por meio
da adesão do dominado às práticas dominantes, que acaba por tornar
corriqueiras situações afins que servem como instrumentos de validação
da condição de perpétuo assujeitamento. Também remetem à violência
estrutural, naturalizada em estruturas sociais pelas injustiças e explora-
ções de diversas ordens sofridas cotidianamente. Adélia, muitas vezes,
se encontra encarcerada por um ciclo contínuo de exclusões, não porque
não seja capaz de perceber as arbitrariedades dos circuitos de poder,
mas por ter a suas experiências diárias, desde a infância, atravessadas e
constituídas pela privação dos direitos básicos para uma vida, de fato,
digna e, portanto, própria a um sujeito de direitos.
Contudo, as hegemonias não são formações estáticas, sendo atraves-
sadas e constituídas por práticas emergentes e residuais (WILLIAMS,
2011). A sociedade improvável entre Adélia e Malu evoca muito das
instabilidades e disputas da sociedade brasileira em curso naquele
período. Mesmo diante do descrédito familiar e social, elas perseveram
no sonho de gestar o próprio negócio. “Duas mulheres malucas reali-
zando o impossível”, é o “contrato” que Malu escreveu em um pedaço
de papel, apontando para a impossibilidade legal de duas mulheres
firmarem um acordo desse tipo oficialmente, e também para o fato de
que sua futura sócia sequer era capaz de ler aquelas palavras e assinar o
próprio nome.
Quando a abertura do clube parece estar próxima, uma forte tempes-
tade destrói o estabelecimento. É nesse momento que a relação – a prin-
cípio horizontal – entre Malu e Adélia se desestabiliza, desvelando as
condições de raça e classe díspares que dotam as experiências e subjeti-
vidades dessas duas mulheres de um caráter bastante singular. O embate
que se segue é um dos mais potentes da série. Diante do apelo de Adélia
NARRATIVA AUDIOVISUAL E PERFORMANCES FEMININAS 229

de que juntas elas poderiam dar um jeito na situação, como já haviam


feito antes, Malu a confronta, recebendo na sequência uma verdadeira
“aula” a respeito das desigualdades sociais e suas interseccionalidades:

Malu: Pelo amor de Deus Adélia. Não precisa fingir que você se im-
porta.

Adélia: Eu me importo[...]

Malu: Por quê? Se fui eu que abri mão da minha vida inteira pra con-
seguir fazer essa merda desse lugar.

Adélia: Ah é! Você é a maior vítima do mundo inteiro.[...]

Malu: Adélia! Adélia eu tava tão perto, cê entende? Eu tava lutando


pelo meu direito de trabalhar, eu deixei meu filho na casa da minha
mãe. Tô tentando fazer alguma coisa pela minha vida. Só que tá muito
difícil!

Adélia: Chega Malu! Para de olhar pro seu próprio umbigo, sua egoís-
ta! Tudo eu! Eu fiz, eu perdi! Eu, eu, eu, eu. A gente perdeu! “Lutando
pelo meu direito de trabalhar?” Eu trabalho desde os oito anos de
idade. A minha avó nasceu numa senzala e é difícil. É bem difícil
mesmo. Eu trabalhei seis, sete dias na semana. Saía de casa às quatro
horas da manhã, ficava mais de uma hora ônibus na ida, mais uma
hora no ônibus na volta e chegava em casa a Conceição tava dormin-
do. Tudo isso pra por um prato de comida na mesa. Isso sim pra mim
é relevante. (COISA MAIS LINDA,1x 3, 2019).

É possível perceber como esse diálogo se relaciona, de maneira livre,


com várias das contribuições da filósofa estadunidense Ângela Davis
para os estudos feministas, lançando luz sobre o seu caráter intersec-
cional. Ao resgatar, em uma perspectiva historicizada, o protagonismo
das mulheres negras na resistência à escravidão nos Estados Unidos,
Davis (2016) as reconhece como sujeitos sociais e políticos de funda-
mental importância para o processo emancipatório, nos levando a fazer
uma releitura da chamada primeira onda do feminismo. Ao lado da luta
pelo direito ao voto das sufragistas – em sua maioria, mulheres brancas,
230 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

escolarizadas e provenientes das classes mais favorecidas – a autora


realça as lutas: contra a estrutura escravocrata e suas cicatrizes; contra a
violência patriarcal; contra a limitação feminina nos espaços públicos;
e em prol da inserção igualitária no mundo do trabalho remunerado.
Desse modo, ao resgatar de forma consciente e articulada as expe-
riências dolorosas vividas por si e seus ancestrais, Adélia reconta não
apenas a própria história, mas aponta para as contradições dos contextos
políticos, econômicos e socioculturais que historicamente tem configu-
rado gênero, raça e classe como elementos imbricados, mantenedores
das opressões, ao passo de que também materializam possibilidades de
emancipação. Assim, compreender a diversidade e instabilidade dos
sujeitos dos feminismos nos relembra da importância de quebrar os
silenciamentos e invisibilidades presentes nas estabilizações de sentido
que operam na lógica de uma falsa unidade. Em várias partes da série,
Adélia materializa a pesada carga das mulheres pretas e pobres, mora-
doras das periferias brasileiras, que não têm tempo para lidar com as
próprias dores, precisando suplantar o choro em nome da sobrevivência.
Ao longo das duas temporadas, as histórias das coprotagonistas
vão se desvelando, algumas vezes, de modo paralelo, outras, de forma
cruzada. Lígia sofre em silêncio com os abusos, psicológicos, físicos e
sexuais do seu marido, que lhe proíbe de levar adiante o sonho de ser
uma cantora. Quando ela atende ao pedido de Malu para cantar no clube,
após Chico chegar na noite de estreia bêbado e arrumar confusão, mal
tendo cantado uma canção, Lígia percebe que o palco é também o seu
lugar. A personagem, então, passa a viver dividida entre as “duas vidas”
que ama igualmente: ser esposa de Augusto e ter uma carreira musical
de sucesso. As agressões se tornam cada vez mais fortes e constantes até
que, no final do último episódio da primeira temporada, inconformado
pelo anúncio de separação, o político a mata a tiros, em um atentado
que quase também tira a vida de Malu, considerada a “má-influência”
que levou Lígia a abandonar o casamento e se tornar uma “mulher de
vida libertina”.
A segunda temporada da série traz o julgamento de Augusto, que após
um tempo foragido com o apoio da mãe, se entrega à polícia, alegando
que matou a esposa em “legítima defesa da honra”. Essa tese abomi-
NARRATIVA AUDIOVISUAL E PERFORMANCES FEMININAS 231

nável – usada no Brasil com recorrência, por gerações – só foi abolida,


em 15 de março de 2021, quando o Supremo Tribunal Federal (STF)
reconheceu por unanimidade a sua inconstitucionalidade, uma vez que
viola os princípios da dignidade, da proteção à vida e da igualdade de
gênero, garantidos pela Constituição Federal (1988). Nesse ponto, é
preciso ponderar que também é recente a própria regulamentação do
feminicídio como crime hediondo, associado à violência doméstica e
familiar, menosprezo e/ou discriminação à condição de “ser mulher” da
vítima (Lei nº. 13.104, de 09 de março de 2015). Na série, o argumento
foi considerado válido pelo tribunal e acolhido pelo júri.
Em uma sequência de diálogos difíceis de digerir pelo caráter misó-
gino da linha de argumentação, o advogado de defesa tece a narrativa
de uma jovem de comportamento sedutor e libertino, que teria levado
o marido a cometer um ato impensado, um equívoco isolado em sua
suposta trajetória ilibada de “homem de família” e “pessoa pública de
respeito”. Nesse raciocínio, amplamente corroborado socialmente, Lígia
seria culpada pelo próprio fim, por ter desprezado seus compromissos
matrimoniais e abortado o filho do casal. Como “punição”, teve a vida
brutalmente interrompida, enquanto o réu foi condenado a apenas
quatro anos em regime aberto.
Já Thereza, embora seja a personagem mais ciente da sua condição
como sujeito de direitos, convive com a opressão masculina no ambiente
de trabalho, sendo constantemente bombardeada por comentários a
respeito da suposta maior capacidade dos homens para o trabalho, por
características que lhes seriam inerentes, tais como, o “foco” e o “profis-
sionalismo”. De todas as coprotagonistas, ela é também a que mais mate-
rializa os ideais da modernidade, sendo uma mulher branca, de classe
média alta, poliglota, viajada, jornalista, que exerce uma sexualidade
livre, com aberturas para a bissexualidade e a vivência num relaciona-
mento aberto, sendo casada com um homem que apoia as suas escolhas
pessoais.
Sua potência transformadora está presente até mesmo em suas fragi-
lidades, como a sua relação frustrada com a maternidade. Ao invés de
se ver reduzida como mulher por causa da perda do filho e da condição
de esterilidade, Thereza assume a sua dor como algo pessoal, motivada
232 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

por um desejo consciente de ser mãe, e não pelas cobranças sociais que
perpetuam esse ideal feminino, de modo arbitrário e impositivo. Assim
como Lígia, ela vivencia o machismo estrutural, nas investidas cons-
tantes da sogra Eleonora (Esther Goés) que, mesmo sendo mulher, é
uma das personagens que mais materializa práticas e valores machistas
ao longo da série.
Eleonora acredita que as mulheres devem assumir uma postura
totalmente submissa no casamento, dedicando-se exclusivamente
ao ambiente doméstico, ao bem-estar dos maridos e à procriação e
cuidados com os herdeiros. Mesmo na situação em que Lígia lhe conta
os abusos físicos e psicológicos sofridos, ela culpabiliza a nora pelas
próprias violências sofridas. Contudo, diferente do conflito interno
que essa relação traz para Lígia, Thereza se mostra consciente e comba-
tiva, sendo uma referência para que as amigas também se libertem das
amarras sociais.

2. Do alto do mastro, um mergulho no mar


Assim como Malu se lança ao mar do alto do mastro do barco no
primeiro episódio da primeira temporada, essa investigação explora-
tória se propôs a fazer um mergulho na série, a fim de problematizar as
performances femininas das coprotagonistas, tomando o gênero como
uma figura de historicidade. Longe de encerrar em si todas as vivências
das mulheres brasileiras, a saga dessas quatro personagens centrais em
Coisa mais Linda nos leva a refletir sobre a diversidade de condições de
“tornar-se mulher” e da importância do apoio mútuo para garantir a
transcendência coletiva como sujeitos de direito.
Também nos mostra o quanto ainda é preciso reafirmar as conquistas
cotidianamente, necessidade destacada em vários momentos da série,
tais como: a reivindicação de Malu para que seu nome estivesse na
capa do disco que coproduziu com Roberto; a resiliência de Adélia em
assumir o relacionamento com Nelson, diante dos julgamentos sociais,
pelas diferenças de classe e raça do casal; a coragem de Lígia para sair
de um relacionamento abusivo, mesmo tendo um fim tão trágico; e os
firmes posicionamentos de Thereza em redações predominantemente
NARRATIVA AUDIOVISUAL E PERFORMANCES FEMININAS 233

masculinas que, contraditoriamente, questionavam até a capacidade das


mulheres de pautarem e produzirem os seus próprios conteúdos.
Por certo, mergulhar nessas narrativas em pleno século XXI nos
exige a disposição de um encontro-confronto: ao mesmo tempo em
que voltamos à superfície para respirarmos os ares dos atuais avanços
legais, trabalhistas e sexuais das mulheres; somos tragados novamente
pela força das ondas das desigualdades que se perpetuam e parecem nos
devolver às areias de meados do século passado, frente à divisão sexual
do trabalho; à disparidade salarial com os homens; a tripla jornada da
carreira e do lar; a emancipação de algumas às custas da exploração de
tantas; a culpabilização feminina das próprias agressões sofridas; entre
outras afins. Assim, entre fluxos e refluxos – como a metáfora das ondas
dos estudos feministas nos leva a refletir – esse é apenas um primeiro
exercício analítico, a ser ampliado nos futuros trabalhos.
Quiçá, sejamos capazes de mergulhar nessas águas e romper os fluxos
hegemônicos por meio de uma união passível, de fato, de abarcar as dife-
renças, compreendendo-as como potências de transformação. Assim
como nas telas, as pequenas mudanças estão sempre em curso, mesmo
que tentem sufocá-las com silenciamentos e invisibilidades. Podem ser
vistas nas “Malus” que não aceitam retornar para os ex-maridos que
lhes traíram, roubaram e abandonaram, a despeito de todas as pressões
sociais; nas “Adélias” que, diante das limitações e condições adversas,
continuam lutando pelo direito de existir e de ter uma vida digna;
nas “Lígias” que um dia percebem que não vale viver uma existência
de aparências e nos lembram que “o amor é tudo, menos, violência e
morte”; e nas “Therezas” que ouvem e respeitam a si mesmas, convi-
dando as demais ao mesmo exercício de reconhecimento, alteridade,
transcendência e emancipação.
234 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

Referências

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2009.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da


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Brasil, 2014.

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___________________. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: ZAHAR,


1979.
Capítulo 13 | Bússola #3

Imagem e Materialidade
José Ricardo da C. M. Junior
#audiovisual #metodologia #preservação

1. A materialidade1 como guia – o tangível como condição

PRIMEIRO COVEIRO: Que a peste nunca abandone esse palhaço


louco! Uma vez derramou na minha cabeça um garrafão inteiro de
vinho do Reno. Esse crânio aí, cavalheiro, foi o crânio de Yorick, o
bobo do rei.

HAMLET: Este aqui?

PRIMEIRO COVEIRO: Esse aí!

HAMLET: Deixa eu ver. (Pega o crânio.) Olá, pobre Yorick! Eu o co-


nheci, Horácio. Um rapaz de infinita graça, de espantosa fantasia. Mil
vezes me carregou nas costas; e agora, me causa horror só de lembrar!
Me revolta o estômago! Daqui pendiam os lábios que eu beijei não sei
quantas vezes. Yorick, onde andam agora as tuas piadas? Tuas cam-
balhotas? Tuas cantigas? Teus lampejos de alegria que faziam a mesa

1. Levando em consideração a complexidade que este conceito pode assumir, e entendendo


que se pode considerar o digital como uma reconfiguração do material, torna-se importante
definir que vamos trabalhar aqui o conceito de materialidade como aquilo que é tocável,
apreensível pelos sentidos táteis - a materialidade como uma escala da percepção humana.
238 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

explodir em gargalhadas? Nem uma gracinha mais, zombando da tua


própria dentadura? Que falta de espírito! Olha, vai até o quarto da mi-
nha grande Dama e diz a ela que, mesmo que se pinte com dois dedos
de espessura, este é o resultado final; vê se ela ri disso! (SHAKESPE-
ARE, 1997, p. 100).

O processo de embalsamamento2 e, mais tarde, o da tanatopraxia3


consiste na preparação de cadáveres e tem como finalidade retardar
o processo de putrefação do corpo. Assim, cumpre a dupla função de
proteger (fisicamente e emocionalmente) aqueles que vão velar o corpo
e de gerar uma imagem que seja capaz de transmitir ideias a partir
daquele corpo, uma tentativa de afastar a “transparência” e, por conse-
quência, a obscenidade4 daquela imagem - “ele (o profissional de tanato-
praxia) é desafiado a deixar aquela pessoa com a aparência o mais serena
possível, que é o que a família quer receber e ver (…), aquele corpo te
ensina, então devemos ter todo respeito por ele”5. A relação entre luto
e enlutado é extremamente complexa, em especial na contemporanei-
dade, naquilo que Byung-Chul Han chamaria de “sociedade da transpa-
rência” com sua obsessão pela positividade e pela massa de informações,
“a sociedade positiva tampouco admite qualquer sentimento negativo.
Deste modo, esquecemos como se lida com o sofrimento e a dor, esque-
cemos como dar-lhe forma” (HAN, 2017, p. 18). Poucas formas são

2. No embalsamento temos a evisceração, o que não está presente na tanatopraxia.


3. Tanatopraxia consiste em higienizar e conservar o corpo humano por meio de químicos
injetados. “Trata-se de uma técnica que nos últimos anos revolucionou o setor funerário,
que consiste na prática de higienização e conservação de corpos humanos através da
injeção de líquidos. O objetivo é proporcionar uma melhor apresentação do corpo no
momento do velório, tendo esta prática a tornar-se num serviço essencial para o setor
funerário. A Tanatopraxia é realizada com aplicação de produtos químicos no corpo
do falecido, uma maneira bem menos agressiva e mais eficaz, que os antigos métodos,
como o embalsamamento. Terminada a aplicação, o corpo fica com a aparência serena e
corada, como antes da morte.” (ABCEL, disponível em: http://abcel.com.br/site/o-que-e-
tanatopraxia/)
4. Abordamos aqui a obscenidade a partir da ideia daquilo que é desvelado, exposto,
desprovido de mistério: “O corpo que se torna carne não é sublime, mas obsceno”. (HAN,
p. 54, 2017); “Obscena é a transparência que nada encobre, nada esconde, colocando tudo
à vista”. (HAN, p. 64, 2017).
5. “O profissional da Tanatopraxia”. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=nNnoVTomEC0. Acesso em 1 de setembro de 2021.
IMAGEM E MATERIALIDADE 239

mais eloquentes do que aquela que repousa em permanente quietude


(mas inquietante), estando próxima e absolutamente distante ao mesmo
tempo… eis a imagem do falecido. Não seria essa imagem a mais clara
de todas imagens, aquela originária, ao mesmo tempo o início e cerne
de todas as questões?
Que esta imagem esteja indissociavelmente vinculada a um corpo e
a sua materialidade é bastante eloquente – ou como observa Blanchot

“a imagem, à primeira vista, não se assemelha ao cadáver, mas po-


deria ser muito bem que a estranheza cadavérica fosse também a da
imagem (…) algo está aí diante de nós, que não é bem o vivo em
pessoa, nem uma realidade qualquer, nem o mesmo que era em vida,
nem um outro, nem outra coisa” (BLANCHOT, 2011, p. 280).

Assim sendo, toda imagem é constituída pela falta – a falta da


presença, ou antes, uma “ausência corporificada” – elemento base de
afirmação de toda imagem.
O velório, este encontro premeditado com a imagem do outro que
possibilita um último olhar para o que se perdeu, é um rito essencial no
processo do luto. Trata-se da imagem do que partiu como sugestão de
presença, a presença de uma ausência que move as dinâmicas emocio-
nais daqueles que vem encontrar sua perda corporificada – tátil, mas
elusiva. Em uma afirmação constante de sua partida.
Além de trabalhar essa “dramaturgia do corpo” uma das funções
principais do embalsamento é retardar os processos de decomposição. É
um processo antigo (e já citado em relação ao cinema por figuras como
André Bazin6) que consiste, em essência, na substituição de algo que
outrora preenchia o corpo da figura que se apresenta ao olhar afetivo.
Essa substituição é primeiramente dos fluidos e, no caso da mumifi-
cação e do embalsamento, órgãos do próprio corpo e, em seguida, da
própria imagem-corpo que é interditada ao nosso olhar de maneira defi-
nitiva com o sepultamento, no que convencionamos nomear “ritos fúne-
bres”: processos de assimilação e despedida que ganham forma no rito
de internalização da imagem. Substituição da imagem material (tocável
e observável), por aquela mental que se conclui no sepultamento. Agora,

6. Ver em “Antologia da imagem fotográfica”, de André Bazin (2014).


240 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

a imagem só pode existir nos processos mentais. O corpo tátil – “objeto


primeiro de todo conhecimento” – dá lugar a uma imagem intangível.
Poderia se defender que todo o processo, do velório ao enterro no
ocidente, trata-se de se apropriar de uma outra existência, “narrativa-
-la” imageticamente, deixar que aquela imagem apresente ideias sobre
sua existência e condição. Ou seja, é um espaço de “diálogo” em que os
que atendem ao ritual se permitem a proximidade física daquele corpo,
rememoram narrativas a partir dele e permitem que ele, finalmente, se
converta em ideia e memória – em um processo similar ao da edição,
no qual são selecionados trechos a serem “eternizados”. Neste sentido, o
corpo velado é dotado de grande potência.

o sentido de morte é diferente para cultura, já que cada sociedade


compartilha rituais e códigos comuns, que assim se configuram em
elementos da socialização específicos deste grupo social. Grosso
modo, acreditamos que a humanidade historicamente buscou tratar a
morte como um importante fenômeno social e simbólico, composto
por rituais de passagem, os mais distintos possíveis, para um mundo
desconhecido, partilhando do desejo de um lugar melhor para o fale-
cido, onde as religiões e a fé fizeram parte da construção deste senti-
do, a partir desta compreensão de passagem. (KITAZAWA; BORGES;
RODRIGUEZ, 2016, p.1).

A fase do sepultamento encerra esse “processo de passagem imagé-


tica” (o velório): o corpo, agora fechado em seu invólucro, mas aberto ao
processo de decomposição gera a “imagem impossível de se ver, daquilo
que me fará o igual e semelhante desse corpo em meu próprio destino
futuro de corpo que se esvaziará, jazerá e desaparecerá num volume
mais ou menos parecido” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 38), a imagem
inapreensível. Esse processo de ruptura visual se faz necessário, pois
protege o olhar do futuro “do corpo semelhante ao nosso”, e impossibi-
lita (em alguma extensão) o toque, sustentando a distância material para
aproximar-se da ideia, e deste “fora”, que é natural à imagem. Assim,
todo o conhecimento imagético – culturalmente e tecnicamente regis-
trado estava vinculado, até a história recente, à materialidade das formas
e sua tangibilidade.
IMAGEM E MATERIALIDADE 241

O toque na imagem, a ênfase na sua presença, a adesão ao seu


testemunho material, enfim, a tangibilidade daquele elemento perante
nós. Eis o toque como “desejo de”. O toque possibilitado, por sua vez,
reafirma a distância entre o que toca e o objeto tocado, “ao aderir a sua
materialidade” não se toca na figura aquilo que se deseja alcançar. A
materialidade reafirma a distância entre as duas dinâmicas: o mundo
dos “vivos” e o mundo dos mortos, das “imagens”. Ou seja, é por meio
desta materialidade que a distância entre essas duas posições se inten-
sifica, ela se faz culturalmente necessária para se acessar o inacessível,
aquilo que é de nós distante e continuamente se distancia - aquilo que
recebe em muitas culturas o nome de “sagrado”.
Os ritos fúnebres consistem exatamente nesta dinâmica: algo é
revelado (o cadáver), uma espécie de simulacro do que foi, o objeto é
exposto como um artefato de mistério e reconhecimento - embora não
exatamente ele mesmo, nem como o reconheço (agora encoberto de
mistério, talvez por revelar sua inerte verdade). Eis o processo imagético
de revelação (palavra tão rica em significados), eis a nossa relação com
a imagem. No entanto, algo parece ter se transformado no período do
digital:

Na fotografia digital toda negatividade é expurgada. Não precisa mais


de câmara escura nem de processamento, não precisa ser precedida
por nenhum negativo. É um puro positivo. Extintos estão o devir, o
envelhecer, o morrer: ‘não só partilha (a foto) o destino do papel
(perecível), mesmo que seja fixado em material mais duro, nem por
isso torna-se menos mortal: como um organismo vivo é gerado de
grânulos nucleares de prata, floresce por um momento para logo
envelhecer. Atacado pela luz e pela umidade, empalidece, esgota-se
e desaparece […]’. Roland Barthes liga à fotografia uma forma de
vida para a qual a negatividade do tempo é constitutiva. Mas em
suas ligações técnicas, nesse caso, ela está acoplada à sua analogi-
cidade. A fotografia digital caminha de mãos dadas com uma forma
de vida totalmente distinta, que se afasta cada vez mais da negati-
vidade. É uma fotografia transparente sem nascimento e sem morte,
sem destino e sem evento. O destino não é transparente, e à fotografia
transparente falta o adensamento semântico e temporal. Assim, ela
não fala. (HAN, 2017, p. 30).
242 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

Se os materiais tangíveis perdem sua capacidade de evidência, se


sua materialidade perde relevância dando lugar ao intangível, ou seja,
o analógico em sua transição para o digital (uma realidade em que a
imagem se torna progressivamente menos tátil, menos vinculada a um
corpo), de que maneira se transformaria a nossa percepção de identi-
dade, do luto e da finitude? Elementos profundamente vinculados ao
universo das imagens, sua preservação e significado. As distinções
entre o dano fílmico e o dano digital evidenciam as diferenças de natu-
reza entre essas duas “classes de imagens”. O dano no digital (que seria
prudente distinguir da estética do glitch7) é, em muitas instâncias,
radical e repentino, ele ensina sobre a forma abrupta dos fins e a contar
com a finitude nestes termos. Em contraste, o dano fílmico, de maneira
geral é sobre progressão, ele se inscreve no corpo os elementos do tempo
e intempéries que levam à finitude daquela forma.
Os processos analógicos e digitais e os elementos que os distinguem
se revelam também em seus ritos. Rituais são maneiras de internalizar
processos da existência humana: seus fatos e dinâmicas; não podem
ser apressados e/ou acelerados, eles demandam tempo e devem ser
cumpridos com zelo e protocolo, inclusive no que diz respeito a sua
temporalidade e duração. Essas durações (elementos tão conhecidos
pelos apreciadores da imagem em movimento) dizem respeito, em
primeiro lugar, à dinâmica de produção das imagens fílmicas: a fixação,
a revelação, a lavagem - processos geradores das imagens analógicas.
Transformações dessa natureza não devem ser consideradas estrita-
mente do ponto de vista dos avanços tecnológicos, mas na forma como
acessamos e percebemos o estar no mundo, como nos entendemos como
agentes no contexto que nos cerca.
É observável que a materialidade era elemento essencial à compre-
ensão até mesmo daquilo que, em algum sentido, tange a imaterialidade.
O(s) corpo(s) são evidências que por sua vez narram trajetórias, como
mapas daquela existência. Por um exame dos corpos/suportes (vivos ou
falecidos, analógicos ou digitais) é possível determinar muito sobre dada
história. Tendo isso em mente, o que se transformaria em um universo

7. Para uma discussão introdutória sobre o Glitch digital, ver: MENKMAN, Rosa Glitch.
Studies Manifesto; e MANON, Hugh S.; TEMKIN, Daniel. Notes on Glitch.
IMAGEM E MATERIALIDADE 243

imagético cada vez menos dependente de materialidade, da presença de


corpos que manifestem sua poética?

2. O digital e a dinâmica das possessões


Mas o que é o corpo do digital? O que dá forma a esta imagem que
tanto transformou a percepção da reprodutibilidade e reprodução? Por
sua própria natureza a imagem digital não possui um suporte definitivo,
é informação numérica que retém pouca informação de seus “corpos”.
Ao contrário do filme cinematográfico, o suporte não é um elemento
absolutamente determinante na estética final de um filme digital.

O cinema digital, armazenando imagens e sons nos bits e bytes de


aparatos computadorizados, desmaterializou a superfície que, por
mais de um século, abrigou os fotogramas, constituindo-se na subs-
tância poética em que foram impressionadas as mais pregnantes
sensações, visões e fantasias do século XX. (FELLINTO in MASCA-
RELLO, 2006, p. 413).

É flagrante também a distinção na ordem da temporalidade entre a


película fílmica e o arquivo de cinema digital. Esta temporalidade está
expressa (novamente) em seus corpos. A película, o filme cinematográ-
fico, é arquivada em rolos circulares, nos quais a informação está regis-
trada em fotogramas. Para acessar uma dessas imagens, é necessário
desenrolar essas sucessões de imagens – experienciar uma trajetória
mais ou menos linear, com a finalidade de alcançar o fotograma desejado
em um esforço físico e temporal. Ou seja, por mais rápido que se desen-
role o filme (mesmo em processos eletrônicos) não é possível se acessar
diretamente a imagem desejada. No caso do digital (e os processos que
o originaram), o acesso a determinado elemento imagético é quase
instantâneo. Isso possibilitou diversos avanços que redefiniram o fazer
audiovisual. Esse acesso “flexível” possibilitou, por exemplo, a edição
não-linear:

Esta nomeação, não-linear, decorre da possibilidade de que as ima-


gens têm de serem processadas de modo aleatório, já que se encon-
tram gravadas no disco duro do computador ou em discos ópticos.
A grande diferença operativa entre estes dois sistemas transformou
244 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

o conceito básico de como se pratica a edição de vídeo. (CANELAS,


2010, p.4).

A diferença entre essas duas classes de produção de imagens – o


digital e o analógico – está na natureza delas e de sua produção. O digital
amplificou diversos elementos, que de alguma maneira, já se encon-
travam na gênese da imagem fotográfica e, ao fazer essa ampliação de
algumas de suas características, reduziu outras e, por fim, transformou a
nossa percepção dessas imagens como fenômenos.
A distinção entre digital e analógico fica ainda mais clara na ponta
da conservação e preservação das imagens digitais. Geralmente, parte
importante do trabalho técnico de conservação focava em limpar e
preservar os suportes que eram gerenciados de maneira manual, repa-
rados (quando necessário), catalogados, e arquivados. Essa dinâmica,
naquilo que diz respeito à película, se transformou profundamente.
Trata-se de encontrar novos suportes para as imagens e sons de dado
arquivo audiovisual.
O processo de “luto pela perda” no âmbito do digital, não nos dá uma
imagem, nenhum suporte de referência (a não ser a imagem monolí-
tica de um HD, ou algo dentro desta linha narrativa). Neste caso, não
se vela ou lamenta pelo e perante o “corpo”, mas suas informações, seu
“espírito”. A informação se apresenta como é: flutuante e instável, em
uma fugidia adesão a corpos, trafegando por suportes múltiplos eviden-
ciando a dificuldade de preservar, sustentar a informação neste corpo
que é, por definição, frágil, repleto de inconstâncias e incertezas. A sua
força como mídia – sua multiplicidade e capacidade de reprodução – é
também a fonte de sua fragilidade, naquilo que diz respeito à sua dura-
bilidade e constância. Ou seja, em vez de discutir o corpo/suporte, é
sempre necessário discutir corpos/suportes.
Poderia se defender que, em termos de multiplicidade de cópias, algo
parecido ocorre com a película de um filme, uma vez que a cópia era um
elemento essencial à produção industrial cinematográfica. No entanto,
essa imagem se “impregnava” de seu suporte e vice-versa e, uma vez
vinculada àquele novo “corpo”, ali permanecia sofrendo transformações
até sua destruição, ou seja, toda imagem era vinculada a um suporte/
IMAGEM E MATERIALIDADE 245

corpo e era parte formativa daquela imagem, a transformava e consti-


tuía. A tangibilidade/materialidade da imagem em si era observável e
óbvia.
No caso de digital, não estamos tratando de corpos vinculados
à imagem, mas do que podemos tratar como uma “dinâmica das
possessões”8 ou, em sua esfera positiva, “dinâmicas mediúnicas”, que
consiste em suportes que canalizam dentro de si informações que se
manifestam positiva ou negativamente. Essa potência subversiva de
forças capazes de aderir ou assimilar determinada aparência ou forma,
para subvertê-la, parece uma descrição deleuziana do mecanismo do
simulacro. Entendendo que

quase invariavelmente, as imagens digitais cumprimentam seu obser-


vador sob o disfarce de analógico - como um fluxo suave e contínuo,
em vez de discretos pedaços digitais. Uma falha interrompe os dados
por trás de uma representação digital de tal forma que sua simulação
analógica não pode mais permanecer oculta. O que de outra forma
teria sido recebido passivamente - por exemplo, um feed de vídeo,
uma fotografia online ou uma gravação musical - agora tosse inespe-
radamente uma bolha tumoral de distorção digital. (MANON; TE-
MKIN, p.1).

Ou seja, o digital assume a aparência do analógico, mesmo tendo sido


produzido por meios absolutamente distintos. Ao revelar sua verdadeira
identidade, sua natureza simulacral vem à tona, subvertendo a dinâmica
dos olhares. O simulacro é assim o elemento que subverte um modelo
(neste caso, a imagem vinculada a um suporte fílmico). É muito ilus-
trativo que seja necessária uma perturbação em sua aparente estabili-
dade para revelar seus processos internos, que não possuem o compro-
misso com a materialidade (no sentido da película fílmica). O elemento

8. A possessão pode ser culturalmente pensada como a tomada de um corpo por outra
entidade, geralmente intangível, com a finalidade de que esta se manifeste, e afirme sua
verdade, ou ainda de subverter dado corpo. Em sua esfera positiva, é a possibilidade
mediúnica que canaliza, comunica. No imaginário cinematográfico, o possuído geralmente
é transfigurado pelo que o possui. Assim, embora seu corpo não seja substituído por outro,
ele é transformado pela nova dinâmica que habita aquele espaço partilhado (o corpo), até
que este seja dominado e transformado internamente – o que a altera por completo. Esse
corpo possuído gera um deslocamento do olhar para aquele corpo, anteriormente familiar,
com uma nova e perturbadora, potência.
246 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

fundador do simulacro é a diferença, a disparidade. Assim, no movi-


mento de emular uma ideia originária a partir de uma dessemelhança-
-base, acaba por descrever seu mecanismo: subversivo, “diabólico” (eis
novamente a ideia da possessão) que perverte o estatuto-modelo.

a diferença de natureza entre simulacro e cópia, o aspecto pelo qual


formam duas metades de uma divisão. A cópia é uma imagem dotada
de semelhança, o simulacro, uma imagem sem semelhança. O catecis-
mo, tão inspirado no platonismo, familiarizou-nos com esta noção:
Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, mas, pelo pecado,
o homem perdeu a semelhança embora conservasse a imagem. Tor-
namo-nos simulacros, perdemos a existência moral para entrarmos
na existência estética. A observação do catecismo tem a vantagem de
enfatizar o caráter demoníaco do simulacro. [...] O simulacro é cons-
truído sobre uma disparidade, sobre uma diferença, ele interioriza
uma dissimilitude. (DELEUZE, 2011, p. 263).

Eis a questão do simulacro: uma imagem sem semelhança. Uma


imagem fundada a partir de uma dessemelhança. A transgressão como
questão central dos simulacros-fantasmas. O próprio Deleuze vai tratar a
questão que define o simulacro e sua questão: “aquilo a que pretendem,
o objeto, a qualidade etc., pretendem-no por baixo do pano, graças a
uma agressão, de uma insinuação, de uma subversão, ‘contra o pai’ e sem
passar pela Idéia”. (DELEUZE, 2011, p. 262-263). Essa classe de imagem
seria assim produzida por uma forma totalmente distinta das demais
cópias. Algo em sua “produção” seria profundamente “profano”, ou
subversivo, no entanto como potência positiva, “Longe de ser um novo
fundamento, engole todo fundamento, assegura um universal desa-
bamento (effondrement), mas como acontecimento positivo e alegre,
como effondement” (DELEUZE, 2011, p. 268). É a defesa da ascensão
dos simulacros, “Ao serem lançados para as profundezas, os simula-
cros corroeram o fundamento: ‘o mundo do fundamento é minado por
aquilo que ele tenta excluir, pelo simulacro que o aspira e o esmigalha’”
(ORLANDI, 1989, p. 216). A imagem digital pensada como simulacro
abjura a tangibilidade abraçando a transparência, ou antes, corroendo
e fazendo reinventar nossos modelos da materialidade. Apresenta-
-se como uma forma de subversão das dinâmicas hierárquicas institu-
ídas pela imagem em seu período fílmico – ele elimina a ritualística da
IMAGEM E MATERIALIDADE 247

produção imagética no filme9 e, por consequência, toda nossa relação


com sua temporalidade e apreensão.
Como lidar com aquilo que não se funde, que não pertence ao seu
corpo? Aquilo que habita um certo trajeto dentro de um circuito pré-
-definido dentro de seu suporte? Se a tecnologia da imagem coloca novos
desafios para os suportes, são necessários novos suportes, novos corpos
para darem conta dessas “informações”. Assim tratam-se de novos
corpos. Trajetos aperfeiçoados, tamanhos variáveis, corpos complexi-
ficados, para se alcançar um fim mais eficiente, à custa do tangível e
da constância - perenidade não é um valor no arquivo digital. Veloci-
dade é. A informação, por sua vez, possui corpos que foram preparados
para serem “possuídos” ou canalizadores de informação – essa é sua
função e sua “identidade” manifesta. Esses dados são transportados e
neste transporte se revelam como elementos possuídos e possuidores
da informação. Essa dinâmica altera a percepção da imagem como algo
tangível, em certo nível tocável, e por consequência, temos a transfor-
mação na percepção da imagem – como algo não fisicamente arquivável.
E do corpo que suporta essa imagem como um objeto desprovido de
identidade em relação à imagem que suporta.

3. Uma conciliação?
Por fim, poderíamos pensar nesta migração tecnológica como uma
forma de libertação e novas potências estéticas, uma vez que essas dinâ-
micas da agilidade são afirmações do triunfo dos simulacros (ou do
simulacro dos simulacros) a nossa percepção das imagens - seu funcio-
namento, sua tangibilidade, sua preservação, foram reconfigurados.

9. Para gerar uma cópia de filme em película para exibição, demandavam-se filmes
negativos que depois seriam usados para gerar positivos em um processo complexo e de
alto custo. Os corpos reteriam informação de maneira definitiva e, uma vez registradas,
para qualquer alteração seria necessário reiniciar o processo de negativos e positivos.
A informação se inscrevia em seus corpos e esses corpos eram a manifestação de seu
conteúdo. O digital (e o vídeo) transforma esta dinâmica, em primeiro lugar, altera a
relação suporte e conteúdo e esta transformação em si altera toda a dinâmica de forças que
geram e gerenciam a imagem. Walter Benjamin, preconiza essa questão em seu olhar para
a reprodutibilidade técnica. No entanto, o nível de complexidade dessas novas ferramentas
são incompreensíveis mesmo dentro da complexa descrição de Benjamin.
248 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

As imagens no digital falam da nova dinâmica das coisas, ou são sua


maior representação – sua velocidade e inconstância. Mesmo no caso de
imagens revisitadas (filmes de arquivo, filmes restaurados, etc.) essas são
produzidas e têm finalidades muito diferentes dos seus originais, o que
fortalece seu papel como simulacros e sua potência de ruptura com os
meios que conhecíamos até a chegada desta tecnologia. A materialidade
não foi anulada, mas antes, reinventada. A perspectiva que associa o
intangível com o imaterial parece

ser redutora, do ponto de vista cultural, e inexata, do ponto de vis-


ta técnico. É redutora porque nega qualquer materialidade que não
seja aquela que se faça depender de metáforas como as de solidez,
palpabilidade, opacidade ou densidade, acepções herdeiras da velha
dos clássicos. É inexata porque, apesar de evanescentes, imprecisas ou
instáveis, as matérias numérico digitais não deixam de ser estados de
matéria. A crise da matéria ou dos suportes não conduz, portanto, de
forma simples, a um hipotético estado de ausência pura de matéria. A
matéria, mesmo que «virtualizada» ou convertida em estado numé-
rico ou energético, existe, afetando os nossos sentidos e persistindo
para além daquilo que conseguimos tocar. Em vez de, portanto, se
ceder à categoria abstrata do imaterial ou do desaparecimento da ma-
téria será necessário fazer justamente o inverso: admitir que surgiram
novas explorações da matéria, as quais são possibilitadas por um apa-
relhamento mais sofisticado. (ROCHA FERNANDES, 2016, p. 3).

O digital parece desafiar as convenções corpo e imagem, é um sério


desafio para a preservação dessas imagens, visto sua profusão e ausência
de “suporte definitivo”. São perceptíveis as alterações na percepção de
materialidade como algo intensamente fluido e ágil, gerando um possível
redesenho e uma reaproximação com a própria ideia de imagem e iden-
tidade, sua produção e preservação. Uma promessa em direção à ruptura
com os processos tangíveis da imagem, um “fazer subir os simulacros,
afirmar seus direitos entre os ícones ou as cópias” (DELEUZE, 2011, p.
267). Ou seja, um desafio técnico/cultural que tem estabelecido novos
parâmetros aos conceitos de distância e proximidade, tempo e espaço.
Enfim, das coordenadas que utilizamos para entender contextos e dinâ-
micas que nos circundam, culminando em profunda transformação na
própria ideia de identidade.
IMAGEM E MATERIALIDADE 249

(...) essa fabricação do chamado homem, que já não pode habitar fora
do campo dos media, poderá também passar por descobrir, dentro
do carácter sintético desse mesmo campo, novas possibilidades cria-
tivas e tectônicas para refazer o mundo. (…) Mais do que ficar preso
à erótica prometeica do imaterial e da libertação do constrangimento
da matéria, cabe ao (chamado) homem desfazer-se das falácias que
resultam do peso das antigas categorias e investir na compreensão
daquilo que resultou das alterações técnicas. Trata-se não apenas de
produzir significação sobre as máquinas e os dispositivos que utiliza,
como também produzir essa significação sobre si próprio e o mundo
em que habita. Nesse caminho, e aproveitando as novas potencialida-
des da técnica, ganhar-se-á vantagem para produzir novos simbóli-
cos e novas imagens que possam preencher o inconcebível. (ROCHA
FERNANDES, 2016, p. 9-10).

As tecnologias do digital carregam em si a ideia de transparências,


de corpos desvelados: “o que é velado só permanece igual a si mesmo
sob o velamento, e o desvelamento faz desaparecer o velado” (HAN,
2017, p. 52). Tratamos de um reequilíbrio entre suportes reconfigurados
e imagens “desveladas” atravessados por suas dinâmicas; simulacros que
afirmam ou revelam por meio de seu mecanismo, sua própria poética:
“o simulacro não é uma cópia degradada, ele encerra uma potência posi-
tiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a
reprodução” (DELEUZE, 2011, p. 267-268).
Os suportes vinculados a esta tecnologia são corpos que se oferecem
a imagens, às ideias, preparados para as dinamizarem e as colocarem no
mundo, transcendendo a virtualidade de sua natureza, em uma dinâ-
mica complexa e apaixonada. Um jogo de transparências dessacrali-
zadoras, reveladoras da imagem digital e seus mecanismos, visto que
“o sagrado não é transparente; ao contrário, ele é descaracterizado por
uma imprecisão misteriosa” (HAN, 2017, p. 43). Na obscenidade de sua
transparência, no nomadismo da sua informação (embora nomadismo
não seja a palavra precisa, visto que este deriva de corpos que habitam
espaços), encontramos uma ausência com potências para redescobrir os
processos culturais que têm pautado a relação humana com sua imagem
há séculos.
O que esta nova condição diz sobre a temporalidade do luto, a
percepção da perda e mesmo sobre a preservação dessas imagens é que
250 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

se faz necessário encontrar ou fabricar corpos capazes de dar forma à


nossa perda (para que ela se torne gradação), à nossa dor (para que esta
seja capaz de gerar identidade) enfim, de constituir uma negatividade
formativa que seja capaz de uma representação mais ampla da expe-
riência humana. Para fabricar este espaço dentro e a partir do digital,
é necessário subvertê-lo, gerar novos simulacros, até que se forme “o”
ponto no qual o contraditório possa ser expresso e vivenciado. Ponto
este que estará situado (provavelmente) no limiar da forma digital -
naturalmente constituída por extremos, formadas por 0s e 1s. Há de se
encontrar um lugar que não se reduza a essa constituição de sua origem,
ou antes, que a amplifique, tensionando suas possibilidades, com a
finalidade de abarcar aquilo que nos constitui nela. Nesta configuração
extrema dessas imagens que habitam o limiar das tecnologias digitais
(que estão em conflito com elas, sendo por elas abarcadas) pode-se
almejar por um “corpo” em possa habitar nosso toque, aquele no qual a
ausência se manifeste.
Esta uma conciliação possível: que venham as novas perturbações e
distorções da forma.
IMAGEM E MATERIALIDADE 251

Referências

BAZIN, André. O que é o cinema? André Bazin. São Paulo: Cosac Naify,
2014.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre


literatura e história da cultura. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

CANELAS, Carlos. Os Sistemas de Edição de Vídeo: linear versus


não-linear. Instituto Politécnico da Guarda, 2010.

DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido; tradução Luiz Roberto Salinas


Forte. São Paulo: Perspectiva, 2011.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo:


Editora 34, 2010.

HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Petrópolis, RJ: Vozes,


2017.

KITAZAWA, Hugo Minoru; BORGES, William Antônio; RODRIGUES,


Fabio da Silva. O mercado da morte como construção social. IV
Congresso Brasileiro de Estudos Organizacionais, Porto Alegre, RS,
Brasil. Disponível em: <https://anaiscbeo.emnuvens.com.br/cbeo/
article/viewFile/142/134>. Acesso em: 1 set. 2021.

MANON, Hugh S.; TEMKIN, Daniel. Notes on Glitch. Disponível em:


<http://www.worldpicturejournal.com/WP_6/PDFs/Manon.pdf>.
Acesso em: 1 set. 2021.

MENKMAN, Rosa. Glitch Studies Manifesto. Disponível em:


<http://2a-2011-12.ensa-bourges.fr/wp-content/uploads/2012/03/
Glitch-Studies-Manifesto-rewrite-for-Video-Vortex-2-reader1.pdf>.
Acesso em: 1 set. 2021.

ORLANDI, Luiz B. L. Simulacro na filosofia de Deleuze. 34 LETRAS, nº


5/6, set. 1989, Rio de Janeiro: Ed. 34 Literatura e Nova Fronteira S.A., p.
208-223.
252 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

ROCHA FERNANDES, Manuel Luís Bogalheiro in PINTO, José Gomes.


Da falácia do imaterial ao efeito de superfície em Kittler apud Tecnologias
culturais e arte dos mídias. Coleção cultura, mídia e artes, 2016.

SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução de Millôr Fernandes. Porto


Alegre: L&PM, 1997.
Sobre as autoras e os autores

Breno Henrique
Mestrando em Comunicação Social pela UFMG, onde também integra
o grupo de pesquisa Poéticas da Experiência. Bacharel em Cinema e
Audiovisual pelo Centro Universitário Una. Foi professor do curso de
Direção de Arte no Núcleo de Produção Digital realizado pela prefei-
tura de Belo Horizonte. Dirigiu o curta-metragem Como Se o Céu Fosse
Oceano (2018), vencedor da Mostra Competitiva Minas no 21° Festcur-
tasBH - Festival Internacional de Curta-Metragem de Belo Horizonte.
E-mail: [email protected]

Cláudia Chaves Fonseca


Doutora em Educação (PUC Minas), mestre em Comunicação, jornalista
e pedagoga. Atua como orientadora educacional no Centro de Formação
Artística e Tecnológica (CEFART) da Fundação Clóvis Salgado (FCS). É
revisora de textos autônoma.
E-mail: [email protected]
254 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

Daniel de Lima Veloso


Mestre em Comunicação Social, pela PUC Minas; pós-graduado em
Arte e Tecnologia. Atua como diretor de curtas e médias-metragem de
ficção e documentários com passagens em diversos festivais no Brasil e
Europa. Realiza filmes publicitários, instalações audiovisuais, programas
de TV e se especializou em trabalhos relacionados a música, dirigindo
registros de shows e videoclipes. É professor dos cursos de Cinema e
Audiovisual e Publicidade e Propaganda do Centro Universitário Una
e coordenador do Lumiar Festival Interamericano de Cinema Univer-
sitário.
E-mail: [email protected]

José Ricardo da C. M. Junior


Doutor e mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes (UFMG). É
crítico, roteirista e diretor de obras audiovisuais. Trabalhou como assis-
tente da Gerência de Cinema da Fundação Clóvis Salgado (2011-2012).
Foi chefe de departamento do Museu da Imagem e do Som de Belo Hori-
zonte - MIS BH (2014-2015). Participa como membro de comissões de
seleção de projetos audiovisuais; já atuou como na Câmara de Fomento
de Cultura de Belo Horizonte e como júri no 16º Festcurtas e 2º Festival
Audiovisual de Belém. É professor da graduação em Cinema e Audio-
visual no Centro Universitário Una, desde 2015. Em 2020 fundou o @
defilmeemfilme, espaço para propiciar trocas com os amantes da sétima
arte.
E-mail: [email protected]

Lilian Sanches
Jornalista, doutoranda do Programa de Psicologia Social e do Trabalho
da Universidade de São Paulo (USP), mestra em Processos Comunica-
cionais e especialista em Gestão de Conteúdo Jornalístico com ênfase
em plataformas digitais, pela Universidade Metodista.
E-mail: [email protected]
SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES 255

Luana Melgaço
Graduada em Comunicação Social pela UFMG. Em sua trajetória
profissional, realizou mais de vinte filmes como produtora e produ-
tora executiva, atuando desde a fase do desenvolvimento do projeto até
seu lançamento. É sócia da Anavilhana e foi integrante da Teia (www.
anavilhana.art.br e www.teia.art.br). Os filmes que produziu, quatro
deles em coprodução internacional, foram exibidos e premiados nos
mais importantes festivais de cinema no Brasil e no mundo, entre eles:
Kevin (2021), A Torre (2019), Breve história do Planeta Verde (2019),
Enquanto estamos aqui (2019), A cidade onde envelheço (2016), Sopro
(2013), Girimunho (2011), O céu sobre os ombros (2011), A falta que
me faz (2009). Além da produção, ministra oficinas, participa de semi-
nários, laboratórios, consultorias e colaborações em diversos projetos
brasileiros e internacionais.
E-mail: [email protected]

Lucas Martins Néia


Roteirista, dramaturgo e diretor teatral. Doutor em Ciências da Comu-
nicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo (ECA-USP), com pesquisa voltada à história da ficção televisiva
brasileira. Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de
Londrina (UEL). Oficineiro e palestrante do Programa Pontos MIS,
do Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS-SP). Membro da
Screenwriting Research Network (SRN) e da Red Internacional de Histo-
riógrafos de la Comunicación (RIHC). Semifinalista da competição de
pilotos de série do GUIÕES 2021 e finalista do concurso de pilotos de
série do FRAPA 2019.
E-mail: [email protected]

Marcelo Travassos da Silva


Publicitário formado pela Universidade Católica de Pernambuco em
2006. Também concluiu MBA em Marketing na Faculdade de Ciências
da Administração de Pernambuco, em 2012 – FCAP/UPE. Especiali-
zação em Estudos Cinematográficos pela Unicap em 2014. Mestrado em
256 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

Ciências da Linguagem em 2019, também pela Universidade Católica de


Pernambuco. Estuda linguagens da cultura pop.
E-mail: [email protected]

Maria de Fátima Augusto


Mestre em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes (UFMG). Bacharel
em Filosofia pela Faculdade de Ciências Humanas (UFMG). Autora do
livro A Montagem Cinematográfica e a Lógica das Imagens (2004). É
professora da Escola de Design da UEMG, desde 1997. Criadora e dire-
tora geral da CineDesign, Mostra Internazionale di Audiovisivo Speri-
mentale e Film di Animazione di Vigevano (Itália.)
E-mail: [email protected]

Mariana Mól Gonçalves


Doutora e Mestre em Artes pela Escola de Belas Artes (UFMG), com
pesquisa relacionada ao cinema latino-americano e brasileiro; graduada
em Jornalismo. Professora universitária, com experiência na graduação
Cinema e Audiovisual da PUC Minas (2021) e do Centro Universitário
Una (2015-2020). Membro suplente do Conselho estadual de política
cultural de Minas Gerais, segmento Audiovisual e novas mídias (2021-
2022). Integrou júri internacional no 21º FestcurtasBH (2019) e júri
nacional e mineiro da 16ª Múmia (2018). Também atua como produtora.
E-mail: [email protected]

Mariana Souto
Professora do curso de Audiovisual da Faculdade de Comunicação da
UnB. Doutora e mestra em Comunicação pela UFMG, com pós-douto-
rado pela ECA (USP). Lecionou na graduação de Cinema e Audiovi-
sual da Una e da PUC Minas. Foi curadora de mostras como o Janela
Internacional de Cinema de Recife, o FestcurtasBH e o Lumiar, júri da
Mostra de Tiradentes. Autora de Infiltrados e invasores – uma perspectiva
comparada sobre relações de classe no cinema brasileiro (Edufba, 2019).
E-mail: [email protected]
SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES 257

Nicoli Tassis
Líder do Grupo de Pesquisa em Narrativa Cultura e Temporalidade –
Narra. Professora do curso de Jornalismo da FACED/UFU, jornalista e
publicitária. Doutora e Mestre em Comunicação Social e Sociabilidade
Contemporânea pela UFMG. Desenvolve estudos na interface comuni-
cação e história, tendo como projeto atual investigar as relações entre
narrativa midiática e gênero. Na pesquisa e na prática profissional, dedi-
ca-se especialmente à grande reportagem escrita e audiovisual, traba-
lhando a interseção entre os modos de narrar do jornalismo, da litera-
tura e do cinema, com foco na linguagem documental e biografias.
E-mail: [email protected]

Piedra Magnani da Cunha


Gerente de ensino do Centro de Formação Artística e Tecnológica
(CEFART), da Fundação Clóvis Salgado/BH. Co-fundadora, gestora e
palestrante da Eterno Aprendiz. Mestre e graduada em Comunicação
Social (UFMG), habilitações em Jornalismo; e Rádio e TV, além de ter
experiência profissional de vários anos em televisão. Foi coordenadora
do curso de Jornalismo Multimídia, gestora em IES, coordenadora
pedagógica e professora universitária por 15 anos (Centro Universitário
Una e Estácio de Sá BH). Pesquisadora nas áreas de cultura e crítica das
mídias, televisão, jornalismo, política e feminismo.
E-mail: [email protected]

Reinaldo Maximiano Pereira


Jornalista, roteirista, podcaster e crítico de televisão e audiovisual.
Doutor em Comunicação Social (UFMG) e Mestre em Literaturas de
Língua Portuguesa (PUC Minas). É professor no MBA em Gestão de
Empreendimentos Culturais, no Instituto de Educação Continuada
(IEC-PUC Minas) e professor colaborador credenciado ao Mestrado
Profissional em Tecnologias, Comunicação e Educação da Universidade
Federal de Uberlândia (PPGCE/UFU). É membro fundador do cole-
tivo de roteiristas Texto Brasileiro atuando como storyteller, consultor
de dramaturgia e produtor de conteúdo (vídeos e podcasts). Integra o
quadro de comentaristas da Rádio Inconfidência AM 880, para assuntos
258 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS

de televisão e telenovela. No campo acadêmico, atua na pesquisa das


televisualidades, matrizes culturais e modernidade latino-americana,
tendo como objeto de pesquisa a telenovela brasileira.
E-mail: [email protected]

Sávio Leite
Mestre em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes, UFMG. Diretor de
curtas-metragens, professor no Centro Universitário Una e tradutor.
Seus trabalhos foram apresentados e premiados em importantes festi-
vais ao redor do mundo. Fundador e um dos diretores da Múmia –
Mostra Udigrudi Mundial de Animação.
E-mail: [email protected]

Vanessa Matos dos Santos


Docente do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Uberlândia
(UFU). Professora permanente do Programa de Pós-graduação em
Tecnologias, Comunicação e Educação (PPGCE) e Programa de Pós-
-graduação em Educação (PPGED), ambos da UFU. Mestre em Comu-
nicação pela UNESP (2007), Doutora em Educação Escolar pela UNESP
(2013) e Doutora em Meios e Processos Audiovisuais pela USP (2017).
E-mail: [email protected]
Mariana Mól Gonçalves é Doutora e Mestre em Artes pela
Escola de Belas Artes (UFMG), com pesquisa relacionada
ao cinema latino-americano e brasileiro; graduada em
Jornalismo. Professora universitária, com experiência na
graduação Cinema e Audiovisual da PUC Minas (2021)
e do Centro Universitário Una (2015-2020). Membro
suplente do Conselho estadual de política cultural de Minas
Gerais, segmento Audiovisual e novas mídias (2021-2022).
Integrou júri internacional no 21º FestcurtasBH (2019)
e júri nacional e mineiro da 16ª Múmia (2018). Também
atua como produtora.
E-mail: [email protected]

Reinaldo Maximiano Pereira é jornalista, roteirista,


podcaster e crítico de televisão e audiovisual. Doutor em
Comunicação Social (UFMG) e Mestre em Literaturas de
Língua Portuguesa (PUC Minas). É professor no MBA
em Gestão de Empreendimentos Culturais, no Instituto
de Educação Continuada (IEC-PUC Minas) e professor
colaborador credenciado ao Mestrado Profissional em
Tecnologias, Comunicação e Educação da Universidade
Federal de Uberlândia (PPGCE/UFU). É membro
fundador do coletivo de roteiristas Texto Brasileiro
atuando como storyteller, consultor de dramaturgia e
produtor de conteúdo (vídeos e podcasts). Integra o quadro
de comentaristas da Rádio Inconfidência AM 880, para
assuntos de televisão e telenovela. No campo acadêmico,
atua na pesquisa das televisualidades, matrizes culturais
e modernidade latino-americana, tendo como objeto de
pesquisa a telenovela brasileira.
E-mail: [email protected]

Esta coleção agrupa obras resultantes de parcerias e


cooperações acadêmicas entre o PPGCOM-UFMG e
outras universidades nacionais e internacionais, cujos
projetos deram origem a textos comuns, abordagens
cruzadas e aproximações conceituais marcadas pelo
jogo de dissonâncias.

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