Cruzamento de rotas audiovisuais
Cruzamento de rotas audiovisuais
Cruzamento de rotas audiovisuais
DE ROTAS
AUDIOVISUAIS
Cinema, Televisão e
CONSELHO CIENTÍFICO
Ana Carolina Escosteguy (PUC-RS) Kati Caetano (UTP)
Benjamim Picado (UFF) Luis Mauro Sá Martino (Casper Líbero)
Cezar Migliorin (UFF) Marcel Vieira (UFPB)
Elizabeth Duarte (UFSM) Mariana Baltar (UFF)
Eneus Trindade (USP) Mônica Ferrari Nunes (ESPM)
Fátima Regis (UERJ) Mozahir Salomão (PUC-MG)
Fernando Gonçalves (UERJ) Nilda Jacks (UFRGS)
Frederico Tavares (UFOP) Renato Pucci (UAM)
Iluska Coutinho (UFJF) Rosana Soares (USP)
Itania Gomes (UFBA) Rudimar Baldissera (UFRGS)
Jorge Cardoso (UFRB | UFBA)
www.seloppgcom.fafich.ufmg.br
Avenida Presidente Antônio Carlos, 6627, sala 4234, 4º andar
Pampulha, Belo Horizonte - MG. CEP: 31270-901
Telefone: (31) 3409-5072
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
Cruzamentos de Rotas Audiovisuais: cinema, televisão e
streaming / Organizadores: Mariana Mól Gonçalves, Reinaldo
C957
Maximiano Pereira. - Belo Horizonte, MG: PPGCOM/UFMG,
2022. - (Olhares Transversais; v.1 )
260p.
Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-86963-49-6
COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO
Bruno Guimarães Martins
Daniel Melo Ribeiro
DIAGRAMAÇÃO
Rafael Mello
Apresentação 11
Mariana Mól Gonçalves
Reinaldo Maximiano Pereira
I. #cinema
Capítulo 1
Diário de uma produtora independente no Brasil 17
Luana Melgaço
Capítulo 2
Cinema político no Brasil: reações e reflexões
sobre filmes brasileiros contemporâneos 31
Daniel de Lima Veloso
Capítulo 3
Temporada: espaços periféricos
no cinema brasileiro contemporâneo 51
Breno Henrique
Capítulo 4 | Bússola #1
A metodologia da série histórica: o operário
e o trabalho no cinema documental brasileiro 63
Mariana Souto
II. #televisão
Capítulo 5
Miguel e a travessia da caatinga: a crise entre o arcaico
e o moderno a partir da experiência visual
e do figurino em Velho Chico 85
Mariana Mól Gonçalves
Reinaldo Maximiano Pereira
Capítulo 6
Superamigos e as três dimensões
do espetáculo de caridade 111
Marcelo Travassos da Silva
Capítulo 7
Chuck Jones e Tex Avery: dois subversivos
pioneiros na criação de personagens animados 131
Sávio Leite
Maria de Fátima Augusto
Capítulo 8
Da TV aberta ao streaming:
permanências e transformações 141
Piedra Magnani da Cunha
Capítulo 9 | Bússola #2
Pesquisa metapórica como nova rota investigativa:
a comunicação como afecção 157
Vanessa Matos dos Santos
III. #streaming
Capítulo 10
“Seriemania” no país da “novelomania”?
Um mapeamento do circuito cultural
da teleficção brasileira contemporânea 177
Lucas Martins Néia
Capítulo 11
Guerra simbólica: pânico moral e a retórica
do Daesh em Flames of war 199
Lilian Sanches
Capítulo 12
Narrativa audiovisual e performances femininas:
o gênero como figura de historicidade
em Coisa mais linda 217
Nicoli Tassis
Capítulo 13 | Bússola #3
Imagem e Materialidade 237
José Ricardo da C. M. Junior
Sobre as autoras e os autores 253
Apresentação
Mariana Mól Gonçalves
Reinaldo Maximiano Pereira
2. O presente texto foi escrito alguns dias antes do trágico incêndio que atingiu o galpão da
Cinemateca Brasileira, na Vila Leopoldina em São Paulo, no dia 29 de julho de 2021. Boa
parte do patrimônio material brasileiro foi queimada junto a 4 toneladas de documentos
históricos, cópias de filmes e objetos (Nota da organização).
20 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
3. Lei emergencial de apoio aos profissionais da cultura que sofreram com o impacto da
pandemia de Covid19. Elaborada pelo Congresso, com forte apoio do setor cultural.
DIÁRIO DE UMA PRODUTORA INDEPENDENTE NO BRASIL 21
4. A Lei nº 12.845/2011 determina que os canais da TV paga exibam uma cota de produção
brasileira independente na programação, o que ampliou a capacidade de investimento do
FSA.
DIÁRIO DE UMA PRODUTORA INDEPENDENTE NO BRASIL 23
Filme político hoje em dia talvez também queira dizer filme que se
faz em lugar de outro, filme que mostra sua distância com o modo de
circulação de palavras, sons, imagens, gestos e afetos, em cujo âmago
ele pensa o efeito de suas formas. (RANCIÈRE, 2012, p. 81).
tal centralidade, Glauber faz uso de elementos formais, tal como ressalta
Xavier:
Sabemos nós – que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gri-
tados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto – que a
fome não será curada pelo planejamento de gabinete e que os remen-
dos do tecnicolor não escondem mais tumores. Assim, somente uma
cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se
CINEMA POLÍTICO NO BRASIL 41
Os filmes têm que ser políticos, mas podem sê-lo de outras manei-
ras, não somente como Rocha ou Saraceni. Não se pode nem tentar
imitá-los. É preciso que a turminha de hoje, mais nova, abra os olhos
e enverede por outras saídas. O cinema evolui em meses e mesmo
assim está atrasado em relação às outras atividades artísticas. (SGAN-
ZERLA, 2007, p. 27).
3. Revista de Cinema, 100 Novos filmes realizados fora do eixo, 19 de fevereiro de 2019,
Disponível em:
<http://revistadecinema.com.br/2019/02/100-novos-filmes-realizados-fora-do-eixo/>.
Acesso em: 20 fev. 2019.
CINEMA POLÍTICO NO BRASIL 47
Referências
BENTES, Ivana. Sertões e favelas no cinema brasileiro contemporâneo:
estética e cosmética da fome. Revista ALCEU, vol. 8, nº 15, PUC-RIO,
2007.
BERNARDET, Jean Claude. Brasil em tempo de cinema. Ensaio sobre
o cinema brasileiro de 1958 a 1966. São Paulo: Companhia das Letras,
2007.
BRASIL, André. Apresentação. Teia 2002-2012. Belo Horizonte: Teia,
2012.
CANUTO, Roberta Ellen. O Bandido da Luz Vermelha: por um cinema
sem limite. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Minas
Gerais, Faculdade de Letras. Belo Horizonte, 2006.
JOSÉ, Angela. Cinema marginal, a estética do grotesco e a globalização
da miséria. Revista Alceu, nº 15, Rio de Janeiro, 2007.
MORENO, Patrícia F. América em transe: Cinema e revolução na
América Latina (1965-1972). Tese (Doutorado) Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2011.
RAMOS, Fernão. Cinema Marginal (1968 – 1973) A representação em
seu limite. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Tradução Ivone C.
Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.
RESENDE, Luiz Augusto. Ruptura e continuidade no documentário
brasileiro: 1959-1962. Revista Alceu, vol 7, nº 14, Rio de Janeiro, 2007.
ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac
e Naify, 2003.
______________. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac e Naify,
2004.
SGANZERLA, Rogério. Encontros. Roberta Canuto (Org.). Rio de
Janeiro: Beco do Azougue, 2007.
XAVIER, Ismael. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome.
Posfácio: Leonardo Saraiva. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
Capítulo 3
2. Pouco mais de um mês, Quintal e Ela Volta na Quinta são exemplos de alguns filmes
em que os espaços internos são perscrutados em sua intimidade e postulados em cena
com agenciamentos afetivos e familiares na mise en scène que compõe a materialidade dos
filmes.
TEMPORADA 53
1) faz com que o cinema seja mais uma instância de difusão da visão
de mundo desse grupo hegemônico, que estereotipa e representa os
demais sob lentes negativas; (2) exclui as perspectivas e vivências al-
ternativas das minorias; (3) promove a internalização de valores de
um pequeno grupo dominante pela audiência; (4) impede que as mi-
norias desenvolvam uma auto-imagem positiva a partir de exemplos
(role-models). (TOSTE; RANGEL, 2020).
4. Tomamos aqui como referência o artigo “Na Vizinhança do Tigre: Lá onde a vida é
prisioneira” de César Guimarães, no qual o autor se valerá do modo como a cena fílmica se
impregna sensivelmente pelas formas de vida da juventude periférica no longa-metragem
A vizinhança do Tigre (Affonso Uchoa, 2014).
TEMPORADA 57
Hélio não precisa ir ao centro para dar o status de Belo aos horizontes
que já possui, esses que ele preenche com memórias e outras coisas
58 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
Referências
ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte:
Letramento, 2018. Coleção Feminismos Plurais.
Mariana Souto
#cinema #metodologia #cinemadocumental
1.Parte desta pesquisa foi desenvolvida ao longo do doutorado da autora, publicado em 2019
e depois apresentada ao Grupo de Trabalho Estudos de cinema, fotografia e audiovisual
do XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, em
junho de 2020, registrada em Anais eletrônicos. O presente texto é um desdobramento e
uma adaptação daqueles.
64 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
a indagação por sua trajetória pessoal, por suas opiniões, desejos, senti-
mentos. Nesse painel composto pelo diretor, 35 entrevistados testemu-
nham.
Como boa parte da obra de Coutinho, Peões tem a entrevista –
encontro e testemunho – como forma dramática predominante. É um
filme que se volta para o imaginário do operário: não se filma o trabalho.
O trabalho está nas questões, no discurso, na memória, mas não nas
imagens. Não pertence ao presente, afinal. Os corpos estão em repouso,
em enquadramentos quase sempre focados no rosto, que fita a câmera
e olha diretamente para o cineasta que o interpela – tão diferente dos
planos médios e gerais de Viramundo e ABC da greve, cujos olhares se
dão de esguelha ou movidos pelo estranhamento. Coutinho se mostra
no filme, apresenta seu projeto aos ex-operários reunidos, faz perguntas
audíveis, interage. Chegamos, portanto, ao documentário de tipo refle-
xivo – não apenas por pensar sua própria forma e expor seu processo,
como por seu caráter metalinguístico ao dialogar com o cinema brasi-
leiro (as imagens de ABC da greve, Greve! e de Linha de montagem são
fontes de pesquisa para a busca dos personagens, material de arquivo
exposto intra e extradiegeticamente).
Dos entrevistados, apenas três seguem operários: Geraldo, que vive
de contratos temporários e incertos, e a dupla formada por Antônio
(talvez já aposentado) e seu filho George, que menciona um robô, a
permanência da insalubridade e as novas exigências de estudo técnico e
superior para que os peões mantenham o emprego. Isso indica a male-
abilidade da categoria para Coutinho, que não entende o operário num
sentido estrito e se mostra mais interessado em trajetórias do que na
sondagem de uma condição de trabalho no presente.
Peões começa com entrevistas em Várzea Alegre, no Ceará, uma
pequena cidade que concentrou muitos migrantes metalúrgicos e depois
se desenrola inteiramente na região de São Bernardo do Campo. Peões
faz o caminho do retirante de Viramundo: começa no Nordeste e desce
ao Sudeste. No entanto, no Nordeste, os entrevistados são “retornados”
– o que traz para a narrativa e para a abordagem do tema a tônica de
uma rememoração, de um retorno apenas em lembrança ao que já foi, e
não de um verdadeiro movimento de ida. Assim, os temas da migração e
A METODOLOGIA DA SÉRIE HISTÓRICA 73
Joaquim: - Não, eu não moro aqui, Eu tô passando uns dias aqui. Por-
que é como eu lhe disse, eu nasci e me criei aqui, mas eu não posso
deixar São Bernardo, onde tudo que passou de importante em minha
vida foi em São Bernardo, então eu não troco São Bernardo por nada.
(...)
Peões não se interessa por eles. O filme busca os que não vingaram na
militância e se dispersaram. Talvez seja o caso da maioria, mas, ainda
assim, é preciso tornar claro que esse não foi o destino “natural” dos
operários do ABC e sim uma das consequências do recorte do docu-
mentário. Ao mesmo tempo em que revela certa predileção pelos operá-
rios dispersos, o próprio filme atua como sua junção, reconstituindo, em
seu interior, fragmentos de uma comunidade. É como se funcionasse,
ele mesmo, como o “local de reunião possível (de uma categoria colap-
sada)” (MESQUITA, 2016, p. 63), um réquiem para a classe operária.
Quem sabe o cinema brasileiro estivesse ali empenhado em promover
uma última reunião antes de se despedir dessa figura mítica.
A Geraldo, último entrevistado, Coutinho pergunta “o que é um
peão?”. O documentarista não parte de saberes prévios, de diagnósticos,
não toma nem a palavra e nem a classe como dadas. Diferente dos filmes
do modelo sociológico, que geralmente partem de teses preconcebidas
a serem comprovadas e ilustradas pela realidade, Coutinho investiga o
sentido daquele termo, de uso tão corrente, para aquele personagem
específico. Depois de um longo silêncio, Geraldo devolve uma pergunta
a Coutinho: “você já foi peão?”. “Não”, ele responde, tornando evidente
e incontornável a diferença entre esses dois homens, de classes sociais
distintas. Um corte seco e o filme se encerra. O final de Peões deixa em
aberto a problematização do lugar do diretor perante seus entrevistados.
Peões já apontava a falência da categoria que lhe batizava, quase
extinta no cinema contemporâneo. Segundo Consuelo Lins, esta rare-
fação não se deu apenas no cinema. “A condição operária foi sendo
gradualmente apagada do imaginário político, cultural e midiático em
vários países do mundo ocidental” (LINS, 2004, p. 426). Para o soci-
ólogo Adalberto Cardoso, em entrevista para Um sonho intenso (José
Mariani, 2014), a indústria automobilística ainda é muito simbólica da
organização do trabalho, no entanto hoje se produz um automóvel com
5% da presença humana do que se empregou há três ou quatro décadas
atrás.
Depois de 2004, data de Peões, dificilmente se encontram docu-
mentários que tratem do operário de maneira central. Na verdade, essa
ausência é anterior – Peões já é um filho temporão e nostálgico dessa
A METODOLOGIA DA SÉRIE HISTÓRICA 75
3. Considerações finais
Observando a série formada por esses quatro filmes, é revelador
pensar no estatuto dos diretores e da equipe: com um tema mais ou
menos comum, diferentes cinemas em diferentes momentos produzem
relações muito distintas entre sujeitos que filmam e sujeitos filmados.
A relação de exterioridade da equipe se traduzia nos olhares para a
câmera vistos em Viramundo e ABC da greve. Há momentos em que o
olhar pode ser entendido como hostil, desafiador ou provocador (“quem
é você, o que faz aqui, por que me filma?”), outros como disparador
da má consciência do espectador o que, por sua vez, deveria levar à
mobilização. Comentando o olhar para a câmera em Maioria absoluta,
Bernardet pontua:
Referências
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, vol. 1. Magia e técnica, arte e
política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
1. Travessias teórico-metodológicas
Neste capítulo, o esforço se concentra na investigação da experi-
ência visual oferecida pela televisão e das matrizes culturais brasileiras
e latino-americanas que subjazem essas materialidades, no campo da
telenovela. Os dados foram colhidos de Velho Chico1, de Benedito Ruy
Barbosa. A obra integra o grupo que nomeamos como A saga dos Coro-
néis2.
De partida, observamos a telenovela pelo prisma da sobrevivência da
cultura popular no meio massivo a partir do melodrama. Observamos,
ainda de saída, que Velho Chico é caracterizada por uma experiência
visual cuja estética é antropofágica e combina diferentes temporalidades
e espacialidades, nos enquadramentos, planos e figurinos. A nossa
atenção aqui recai, também, sobre o aspecto simbólico dos figurinos.
3. O “herdeiro natural” seria o segundo filho, Martim de Sá Ribeiro (Lee Taylor), que
renegou o pai e o poder econômico. Nesta altura do enredo, o paradeiro de Martim é
desconhecido.
88 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
7. Em 1953, André Bazin (1997, p. 80) previu que “a imagem da televisão sempre conservará
sua legibilidade medíocre” e restrita ao consumo doméstico.
MIGUEL E A TRAVESSIA DA CAATINGA 91
confronto (o desafeto sai do bar para evitar isso); e outra quando tenta
se impor a ponto de sentir uma deferência das pessoas no lugar. Ambas
têm um só objetivo: demonstrar seu poder.
O jogo de cartas nos parece sugestivo. Ainda com Santo em cena,
de costas para a mesa de jogo, e com o Coronel de frente a ela. Há a
figuração desse momento de blefe do Coronel, afinal, ele está ali para
reafirmar o seu poder como quem tem a maior cartada da mesa: o
herdeiro. É quando Santo sai de cena – o jogador que aguarda o melhor
momento para jogar. Já o Saruê lembra aquele jogador que não recua,
apenas faz dobrar a aposta. Essa provável associação de Miguel como o
trunfo, o naipe que prevalece sobre os demais fica mais evidente quando
o Coronel assegura a Chico Criatura: “Ele veio com tanto diploma, mais
tanto diploma, que vai faltá parede lá em casa pra pendurá! (ri alto)”.
Em cena, o poder e a continuidade. O Coronel garante a todos
da fazenda e cidade como o seu único neto dará continuidade à sua
linhagem e riqueza ao aceitar tomar conta da fazenda. Não é à toa que ao
ser questionado por Chico Criatura: “E o amigo tá pensando em amarrá
seu jegue num rego de água fresca quando o Saruezinho chegá?” - ao
que o coronel responde: “Quando ele tivé pronto, Chico... Quando tivé
pronto!”. Aqui se confirma o medo de Maria Tereza, a despeito de quais-
quer qualificações que credenciam Miguel para a administração das
terras da fazenda, ele vai ter que assumir a armadura do Coronel Saruê,
assim como Afrânio o fez nos anos 1960. A matriz cultural como forja,
o molde que gera cópias.
O Coronel Saruê apesar da alcunha que ostenta não é uma expressão
do coronelismo, mas do mandonismo e aqui precisamos recorrer ao
conceito. De acordo com José Murilo de Carvalho (1997), o mandonismo
se refere às estruturas oligárquicas e personalizadas de poder arbitrário.
Geralmente, o mandão é o indivíduo que tem a posse de algum recurso
estratégico para o ciclo econômico. Há várias designações: mandão,
potentado, chefe, caudilho, capo e coronel10. Assim, o coronelismo seria
10. No caso brasileiro, o termo coronel deriva dos títulos da Guarda Nacional, criada no
Império. De acordo com Carvalho (1997), essa instituição patrimonial foi um mecanismo
de cooptação dos proprietários rurais que compravam suas patentes e tinham o controle
da população local.
MIGUEL E A TRAVESSIA DA CAATINGA 99
11. Na crítica literária, o realismo maravilhoso designa a não disjunção entre o natural e o
sobrenatural e expressa uma tomada de posição de romancistas (Alejo Carpentier, Gabriel
García Márquez, entre outros) e demais artistas latino-americanos (entre 1940 e 1970)
ante a narrativa realista de matriz europeia, ao transgredir o real sem romper com ele, e
a afirmação de uma América Latina de origem mestiça, um continente complexo onde
convivem o moderno e o arcaico; a razão e os mitos.
100 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
13. A TV Globo detém o Direito Autoral das imagens usadas neste artigo. Conforme
orientações da Globo Universidade, há, nas imagens, a marca d’água da emissora.
102 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
versus arcaico, ela une o estilo clássico, feminino à cortes modernos e até
mesmo algumas peças ditas masculinas, como suspensórios e coletes.
No caderno de anotações, há uma página e uma ilustração dedicadas à
Tereza com a seguinte descrição: “Belle Époque - personagem atemporal
- romanticamente trágica”.
Por sua vez, o Coronel Saruê em seu figurino e caracterização para
a festa, não se distingue muito dos trajes utilizados pela personagem
em outras ocasiões da trama: peruca na cor acaju, camisa de linho rosa,
gravata azul estampada, bombacha de linho amarelo e sobretudo verde
musgo. Os detalhes do excesso dos acessórios também são importantes e
imponentes na construção da imagem de Coronel: prendedor de gravata
e abotoaduras de ouro, relógio de bolso com corrente de ouro, botas
de couro de cano alto (estilo campeira), anel de ouro, cinto de couro,
chapéu de palha - único item deste figurino condizente com o clima da
região - e charuto.
Quantas temporalidades há nesse figurino? O tempo do poder, talvez.
Toda a pompa, as camadas de roupas e o excesso de elementos em seu
visual (com destaque para a peruca que esconde os cabelos brancos)
evidenciam a personagem como uma figura de poder, impositiva, mas
decadente, caricata que tenta um verniz de jovialidade. No caderno
do diretor, a descrição que acompanha o desenho do Coronel Saruê é:
“peruca - elemento palaciano - decadente - figura do patético”.
O universo plástico de uma obra audiovisual, seja ela filme ou tele-
novela, é construído pela Direção de arte em trabalho articulado com
figurinista, cenógrafo, maquiador e cabeleireiro etc. O figurinista
elabora, planeja e executa a criação de toda a vestimenta das persona-
gens e “colabora na composição visual das figuras em cena”, como define
Vera Hamburger (2014, p. 27). Ao mesmo tempo que reforça a narração
mediante a criação de personagens críveis, o figurino também propor-
ciona um equilíbrio dentro da composição do quadro (fotograma) com
o uso da cor, da textura, da silhueta, dentre outros. Como bem define
Hamburger, o figurino é “um ponto ativo do quadro” (2014, p. 47).
Destarte, o figurino vai além do que a personagem veste. Ele também
se configura como uma porção do espaço do campo, uma superfície na
qual se pode desenhar, criar, incluir informação visual, cor, estampa,
104 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
4. Considerações finais
O trajeto metodológico aqui exercitado partiu da observação da
presença de elementos textuais e visuais que apontavam para o embate
entre o arcaico e o moderno, na telenovela Velho Chico. Assim, o passo
seguinte foi um esforço analítico que partiu das imagens num evento
narrativo específico extraído desta telenovela. A partir do cruzamento
de aportes dos Estudos Visuais e da Teoria Crítica Latino-americana
106 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
Referências
BRUNNER, José. Joaquim. Un espejo trizado: ensayo sobre cultura y
políticas culturales. Santiago de Chile: Flacso, 1988.
1. Introdução
Entre os acadêmicos em geral nem sempre elementos da cultura de
massa, como as narrativas com linguagem de quadrinhos são devida-
mente reconhecidas como gênero textual e discursivo capaz de trans-
mitir mensagens relevantes ao cidadão comum. Muitos deles relacionam
esse tipo de leitura apenas com momentos de lazer e entretenimento,
sem considerar os temas abordados nas páginas de jornais e revistas.
Segundo Goidanich (2014), as histórias em quadrinhos (HQs),
como se conhecem hoje, são frutos do jornalismo moderno. Na última
década do século XIX, Joseph Pulitzer e William Randolph Hearst, os
mais poderosos proprietários de cadeia de jornais dos Estados Unidos,
brigavam pela conquista de um maior público. Para atrair um público
consumidor de massa semialfabetizada e também os imigrantes, que
tinham dificuldade com o inglês, os empresários criaram os suplementos
dominicais. A grande parte do material destes Sundays era formada por
narrativas figuradas, bem ao estilo europeu. Foi destes suplementos que
surgiu, em 1895, o personagem de Richard Outcault, The Yellow Kid (o
garoto amarelo). No princípio, a figura fazia parte de um painel maior.
112 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
FIGURA 2: Capa
FONTE: DC COMICS, 1978
118 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
Este ano está sendo muito difícil para todo mundo. Mas é justamente
nesse momento que precisamos relembrar que existe esperança. Em
2020, o Criança Esperança completa 35 anos, graças a sua parceria. E
olha quanta história: mais de quatro milhões de crianças e jovens be-
neficiados em mais de seis mil projetos apoiados. Este ano foram 111
projetos selecionados pela UNESCO, em todas as regiões do Brasil.
Tem projeto de todo tipo: educação, arte, cultura, cidadania, inclusão.
E durante todo o mês de setembro vocês vão conhecer um pouco mais
da história de alguns deles na nossa programação. (GLOBO, 2020,
n.p).
3. Considerações finais
Diante do exposto, a relação entre linguística e o gênero textual das
histórias em quadrinhos se torna evidente, uma vez que a teoria do
modelo tridimensional de Norman Fairclough possibilitou a construção
desta análise, trazendo um ponto de vista crítico sobre a narrativa dos
Superamigos, destacando dimensões referentes à linguagem desses
personagens.
Por meio de análise novas camadas de interpretação foram reveladas,
o texto visual é a primeira delas, seguida pela prática discursiva e depois
a prática social. Nelas foi possível reconhecer discursos e ideologias, que
nem sempre são percebidos e, também, interpretados.
Além disso, as conexões com a comunicação. São muitos super-
-heróis transmídiasque representam vozes. Os superamigos apresentam
um programa de televisão na ficção que visa arrecadar dinheiro para a
caridade e um dos principais colaboradores é o bilionário Bruce Wayne,
que é sequestrado e resgatado pelos personagens fantásticos.
Importante ressaltar que as vozes de Superman, Batman, Mulher
Maravilha, Aquaman, Robin, Marvin e Wendy são fundamentais para
a construção do discurso a respeito de solidariedade nesta narrativa. A
intenção subjacente ao texto é colaborar para a resolução de problemas
sociais reais, por meio de doações. Por isso, o terceiro setor também faz
parte desse gibi lançado na década de 1970.
Considerando o contexto de produção de gibis americanos, também
é possível perceber que nenhum dos super-heróis é produtor do próprio
discurso. Na verdade, eles reproduzem o discurso do outro. Nesse caso,
os roteiristas da DC Comics. Uma ficção não existe concretamente e
não possui voz própria. Dessa forma, não pode criar seu próprio texto,
apenas reproduzir vozes. Isso não impede que se relacione com a reali-
dade social do lugar em que foi criada.
A revista em quadrinhos, com sua linguagem própria, faz parte da
cultura de massa. A produção e a circulação do texto visual nela presente
vão de acordo com interesses políticos e econômicos de cidades e países,
principalmente desses personagens mais antigos. Um texto, muitos
super-heróis, várias vozes, discursos e também ideologia – todos numa
narrativa ficcional que se relaciona com a realidade social não apenas
dos Estados Unidos, mas de vários países que realizam trabalhos soli-
dários.
SUPERAMIGOS E AS TRÊS DIMENSÕES DO ESPETÁCULO DE CARIDADE 129
Referências
DC COMICS. Da tevê para você! Superamigos, Revista Estados Unidos
da América: EBAL, dez. 1978.
EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: Martins Fontes,
1999.
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2016.
GLOBO.COM. Assista aqui ao tutorial e aprenda como enviar para a gen-
te a sua esperança. 5 set. 2020. G1. Disponível em: <https://redeglobo.
globo.com/criancaesperanca/noticia/assista-aqui-ao-tutorial-e-aprenda-
-como-enviar-para-a-gente-a-sua-esperanca.ghtml>. Acesso em: 10 set.
2020.
GOIDANICH, Hiron Cardoso. Enciclopédia dos quadrinhos. Porto Ale-
gre: LeP, 2014.
GUIA DOS QUADRINHOS. Superamigos/Superfriends. DC Comics.
Estados Unidos da América. Disponível em: <http://www.guiadosquadri-
nhos.com/personagem/superamigos/4005>. Acesso em: 15 set. 2020.
KRESS, Gunther; VAN LEEUWEN, Theo. Imagens de leitura: A Gramáti-
ca do Design Visual. Londres/Nova York: Routledge, 2006.
MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX – O espírito do tempo.
Rio de Janeiro. Companhia Editora Forense, 1969.
NAÇÕES UNIDAS. Criança Esperança 2019. Disponível em: <https://
nacoesunidas.org/ crianca-esperanca-recebe-doacoes-por-telefone-para-
-edicao-de-2019>. Acesso em: 15 set. 2020.
ROCHA, Ruth. Minidicionário. São Paulo: Scipione, 1996.
SEIXAS, Lia. Gêneros: um diálogo entre Comunicação e Linguística. Flo-
rianópolis: Editora Insular, 2014.
SILVA, Claudia Neves da. Igreja Católica, assistência social e caridade:
aproximações e divergências. Sociologias, nº 15, Porto Alegre, jan./jun.
2006. Disponível em: <http://hdl.handle.net/11449/68723>. Acesso em:
15 set. 2020.
Capítulo 7
isso falha, ele usa todas as economias de sua vida para alugar um teatro
abandonado a fim de apresentar o sapo (ele só consegue uma audiência
com a promessa de “Cerveja Grátis”). O sapo se apresenta em cima de
um arame alto atrás da cortina fechada, mas quando a cortina começa a
subir, ele encerra a música e, no momento em que é totalmente revelado
à multidão, ele novamente volta a ser um sapo comum. Como resultado
dessas falhas, o homem agora está sem-teto e morando em um banco de
parque, onde o sapo ainda atua, mas apenas para ele. Um policial ouve
o canto e se aproxima do homem, que aponta o sapo como cantor. Mas
quando o sapo novamente se apresenta como comum, o policial prende
o homem por perturbar a paz. Em seguida, ele está internado em um
hospital psiquiátrico junto com o sapo, que continua fazendo serenatas
para o paciente infeliz. Após sua libertação, carregando a caixa com o
sapo dentro, percebe o canteiro de obras onde ele originalmente encon-
trou a caixa e, felizmente, a despeja na nova pedra fundamental para o
futuro Edifício Tregoweth Brown antes de fugir, muito feliz por se livrar
do que se tornou seu fardo. A história salta para 2056. Os prédios já são
futuristas e as naves trafegam no espaço. A caixa com o sapo é desco-
berta novamente por um demolidor que também imagina uma fortuna
em dinheiro, foge com o sapo, e a história começa novamente.
Os dois diretores tinham como referência o cinema amalucado do
princípio do século XX, em que perseguições e muita violência apimen-
tavam o cardápio da época de ouro das comédias e seus respectivos
autores. Juntos, Jones e Avery realizaram outros curtas-metragens
que se tornaram clássicos através dos tempos. Um deles é a comédia
burlesca wagneriana What’s the opera, Doc? (1957), dirigido por Chuck
Jones. Nesta, está o coelho antropomórfico inspirado na persistência de
Groucho Marx e na doçura de Harpo, como se fossem os dois juntos,
como revelado por Chuck Jones anos depois: Pernalonga.
Analisando este curta específico What’s the opera, Doc? (1957), o
cenário remete às obras modernistas e geométricas da arte modernista
e sua narrativa transita entre o gênero musical e a dos filmes épicos.
Neste filme, Pernalonga se transveste como uma sensualizada donzela
que aparece num cavalo branco muito além do seu peso, com crinas
e rabo cor-de-rosa e uma guirlanda de flores, e o diretor enfatiza seus
134 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
seios usando a cor. Pernalonga também usa uma espécie de capacete que
remete à mitologia greco-romana. Posa de bailarina e sobe numa torre
que nos dá a impressão de ser um altar supremo. O ápice do sucesso
neste curta é quando Hortelino está claramente apaixonado, para logo
depois o encanto ser quebrado quando o capacete cai e percebemos que
a donzela é Pernalonga. Hortelino incorpora o ódio e se transforma
numa espécie de Deus que controla as forças da natureza. No final vence
a compaixão. E o diretor Chuck Jones parece antecipar temas dos anos
vindouros.
O personagem Pernalonga surge em 1940, em um curta-metragem
chamado The Wild Hare (A Lebre Selvagem), dirigido por Tex Avery.
Ao longo dos anos, o personagem estrelou mais de 160 curtas e foi
premiado com um Oscar de melhor curta-metragem de animação pelo
filme Cavaleiro Pernalonga (1958), dirigido por Friz Freleng. Com uma
estrela na Calçada da Fama de Hollywood, Pernalonga foi eleito como
melhor personagem de desenhos animados de todos os tempos pela
revista estadunidense TV Guide, em 2003. O coelho foi criado por várias
mãos mas, segundo Chuck Jones, quem deu a centelha ou a segurança
absoluta ao Pernalonga foi mesmo Tex Avery. O estilo de Tex Avery
quebrou o padrão de realismo estabelecido por Walt Disney e encorajou
os animadores a ampliar os limites da animação, permitindo fazer coisas
em um desenho animado que não seriam possíveis no mundo de um
filme em live-action.
Uma frase de Tex Avery frequentemente citada é: “num desenho
animado você pode fazer tudo”, sendo justamente isso o que seus dese-
nhos faziam. E, graças a Tex Avery e principalmente sua série Red hot
Riding Hood (1943), ainda na Metro-Goldwyn-Mayer, é que foi reali-
zada a transgressão da velha história de Chapeuzinho Vermelho. Essa
subversão vai ser levada em conta ao se criar todas as aventuras vividas
por Pernalonga. Nessa série há uma triangulação entre o lobo e a vovo-
zinha ninfomaníaca, que são mostrados de forma corriqueira, assim
como o suicídio.
Tome uma outra via”. E ainda bem que eu tomei. Nossa, eu curti mui-
to mais do que teria curtido se ficasse animando cenas a vida toda.
(WILLIAMS, 2016).
Referências
CHUCK JONES CENTER FOR CREATIVITY. Disponível em <http://
www.chuckjonescenter.org>. Acesso em: 1 set. 2021.
Da TV aberta ao streaming:
permanências e transformações
Piedra Magnani da Cunha
#televisão #streaming #consumo
1. Introdução
A TV aberta brasileira vem passando por turbulências e incertezas
face à ascensão da TV sob demanda e do streaming nos últimos anos.
Isso tornou-se público e notório, e intensificou-se sobretudo neste
contexto de isolamento social trazido pela pandemia do Covid-19, no
qual as pessoas passaram a dedicar seu tempo livre cada vez mais para
sua interação virtual com as mídias. Além da Netflix, pioneira no esta-
belecimento desta outra forma de consumo audiovisual, plataformas
como Amazon Prime Video, Apple TV+, Directv Go, Globoplay, Now e
o próprio Youtube têm se estabelecido também como novas referências,
enquanto outras chegam aos poucos ao mercado brasileiro, referen-
dando a tendência de crescimento e diversificação do segmento, como
é o caso da Disney+, HBO Max, Telecine Play, Pluto TV, Vix, Mubi,
Argo, LGBTFlix, Afroflix e tantas outras novas iniciativas que venham
atender às demandas de um público cada vez mais habituado à livre
escolha de filmes, séries, noticiários e animações disponíveis nos catá-
logos desses serviços. Muitos interpretam este fenômeno como uma
evolução das formas de consumo televisivo pelo público, afinal ele sairia
142 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
antinômicas. E este é o viés pelo qual a televisão deve ser pensada, para
além das abordagens estritamente tecnicistas, elitistas ou deterministas
a seu respeito. Afinal,
José Luiz Braga (2002) chama atenção ainda para o fato de que toda
nova mídia deve constituir seu próprio aparato conceitual e analítico
após seu surgimento, a partir do desenvolvimento do meio e da compre-
ensão que se é capaz de ter de suas especificidades. Para que se possa
expressar o estado das coisas referentes à produção de determinada
mídia é preciso, antes disso, desenvolver bases, vocabulário e critérios –
para julgar, selecionar, avaliar os objetos da crítica – que sejam inerentes
e intrínsecos à lógica daquela mídia. Só assim é possível perceber dife-
renças, especificidades, sutilezas dos produtos e processos mediáticos
postos em circulação e ultrapassar as perspectivas marcadas por “recusa
ou encantamento em bloco” (BRAGA, 2002, p. 27 e 34).
Em última análise, não nos é possível distinguir, entre o modelo de
TV aberta e o de TV sob demanda, hierarquias, regras fixas ou efeitos
homogêneos na vida dos telespectadores, ou mesmo na sociedade como
um todo. O que se pode reconhecer é, em primeiro lugar, a existência
de uma transformação em curso na interação TV versus. telespectador;
e, em segundo, que a TV, em qualquer de suas facetas, se apresenta
na contemporaneidade como este lugar das tensões e negociações, da
quebra de limites, e das misturas e hibridizações. Se, por um lado, a TV
ajuda a reforçar os sistemas de dominação e as relações de poder, por
outro também permite movimentos de resistência e apropriação de seus
produtos.
Portanto, ao invés de uma leitura apressada, rasteira, determinista,
maniqueísta, preconceituosa, redutora ou valorativa da televisão, apos-
tamos na relevância de uma outra perspectiva mais cuidadosa, apro-
fundada, destituída o mais possível de a priori e, portanto, aberta aos
movimentos quase imperceptíveis de escapes, ambiguidades, reconfigu-
rações, contradições, imprevisibilidades e atualizações que atravessam
os processos de produção e recepção televisivos.
DA TV ABERTA AO STREAMING 155
Referências
ADORNO, Theodor. Televisão, consciência e indústria cultural. COHN,
Gabriel (Org). Comunicação e indústria cultural. 4 ed. São Paulo: Cia.
Ed.Nacional, 1978a.
BUCCI, Eugênio. Brasil em tempo de TV. 3 ed. São Paulo: Boitempo Ed.,
1997.
1. Introdução
As imagens exercem verdadeiro fascínio sobre os homens desde os
primórdios da humanidade. Além de proporcionarem uma espécie de
registro dos fatos, possibilitam uma forma de expressão que extrapola
a linguagem discursiva, escrita. Não por acaso, as pinturas rupestres
permitem esta dupla leitura: por um lado, o registro dos fatos; por outro,
uma forma de expressão artística. Esse fascínio potencializou-se quando
as imagens deixaram de ser apenas estáticas e ganharam dinamicidade,
som, textura, volume, espessura; elas se tornaram moventes, vivas e
presentes. Os sentidos se aguçaram e o audiovisual tornou tais traços
mais evidentes. Nesse sentido, pode-se mesmo afirmar que o audiovi-
sual democratizou sensações (mais abstratas) que antes estavam restritas
apenas àqueles cujos espíritos eram mais permeáveis às tais sensações.
Com o passar do tempo, o audiovisual foi se espraiando por meio de
diversos dispositivos técnicos que, por sua vez, ensejaram novas lingua-
gens, sentidos, modelos de negócio. Do cinema até os atuais vídeos
produzidos e disseminados por meio de plataformas como Youtube
ou Vimeo, os estudos relacionados ao audiovisual proliferaram, mas,
158 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
quase sempre, ou pelo menos na maior parte das vezes, como manuais
que traziam receitas prontas sobre como um bom material poderia ser
produzido, com suas possibilidades de montagem (e aqui não foge ao
exemplo o clássico O homem com a câmera, de Vertov), planos, efeitos
etc.
O olhar só foi deslocado para a questão das sensações despertadas
pelo audiovisual quando a euforia técnica diminuiu. Aos poucos, o
cinema (uma das expressões do audiovisual) consagrou-se como arte e,
novamente, novos campos de estudo se abriram. O potencial dos filmes
foi logo percebido pela escola (como expressão da educação institu-
cionalizada e do consequente ensino-aprendizagem), não apenas pelo
fascínio da novidade, mas, sobretudo, porque esses materiais represen-
tavam uma nova tecnologia no cotidiano das salas de aula. Não tardou
para que o audiovisual começasse a ser utilizado em propostas voltadas
para a instrução massiva de grandes contingentes populacionais.
Babin e Kouloumdjian (1989) destacam, por exemplo, que o audiovi-
sual imprimia um novo modo de compreender a realidade por meio
de imagens em movimento e de sons e que, por sua vez, eram capazes
de representar uma nova realidade, inaugurando uma nova linguagem
que se caracterizava, segundo os autores, essencialmente por comunicar
ideias por meio de sensações e emoções. A escrita acabava ficando rele-
gada a um segundo plano, já que o audiovisual era capaz de cativar mais.
Já existem diversos manuais de leitura crítica de audiovisuais, metodolo-
gias para uso desses recursos em sala de aula oriundas de diversos países
(SANTOS, 2017). As tecnologias digitais potencializaram ainda mais o
debate acerca dos recursos midiáticos (dentre eles os audiovisuais) em
sala de aula. A evolução da didática mostrou que o simples uso não se
configura um processo efetivo e/ou eficiente. Os audiovisuais deixaram
de ser simples recursos imagéticos e sonoros para se tornarem, hoje,
mecanismos de potencialização do protagonismo. Ao invés de buscar
sempre algo pronto, torna-se mais enriquecedor construir algo de forma
colaborativa (SARTORI, 2001; SCOLARI, 2013).
Num cenário permeado por dispositivos móveis que capturam som
e imagens de forma simplificada e barateada, o contato das pessoas com
os audiovisuais (e sua produção e disseminação) tem se tornado cada
PESQUISA METAPÓRICA COMO NOVA ROTA INVESTIGATIVA 159
2. Pensar em imagens
Para início de percurso, é importante que se destaque, no escopo
deste capítulo, o que se compreende por audiovisual na contemporanei-
dade para que seja possível, na sequência, apresentar a articulação entre
tal entendimento e o metáporo.
Para além da mera junção técnica entre som e imagem, assumimos
que o audiovisual no mundo atual tem se colocado com o que Dubois
(2014) designa vídeo. Aqui é importante ressaltar que a referência não é
o cinema clássico ou tradicional. Ao contrário, o vídeo é o lugar de todas
as flutuações e, justamente por isso, carrega consigo diversos problemas
concernentes à sua identidade, conceituação, filiação etc. O vídeo é,
para Dubois, um estado. Não se trata apenas de algo fixo. Pode sê-lo
também, mas não apenas. Vídeo não é um objeto; trata-se de um estado,
pois se apresenta de forma “[...] múltipla, variável, instável, complexa,
ocorrendo numa variedade infinita de manifestações” (DUBOIS, 2014,
160 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
1. Dubois (2004) destaca e referencia uma série de vídeos em sua obra e indica as
características do vídeo em comparação ao cinema e à televisão. Dentre os vários pontos
destacados pelo autor, está, por exemplo, a mixagem de imagens em detrimento das
tradicionais edições de planos. Em função da limitação de espaço e, sobretudo, do objetivo
principal deste texto, optou-se aqui por apenas sintetizar (ainda que de forma bastante
incompleta) os pontos do pensamento do autor que dialogam com a Nova Teoria da
Comunicação.
PESQUISA METAPÓRICA COMO NOVA ROTA INVESTIGATIVA 161
2. Tradução livre do original: “The term evokes an utopia where nothing is misunderstood,
hearts are open and expression is uninhibited” (PETERS, 2012, Loc 84. p. 2, kindle edition).
3. Tradução livre do original: “In classical rhetorical theory communicatio was also a
technical term for a stylistic device in wich an orator assumes the hypothetical voice of the
adversary or audience; communicatio was less authentic dialogue than the simulation of
dialogue by a single speaker (PETERS, 2012, Loc. 177)
162 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
seres humanos, animais etc.) emite sinais, ou seja, sinais são emitidos
e recebidos cotidianamente, ainda que não se queira. Alguns sinais
podem ocorrer de forma deliberada, enquanto outros podem se dar de
forma não intencional. Entretanto, como bem destaca Marcondes Filho
(2008, p. 5-26), a emissão de um sinal não pressupõe, necessariamente,
a recepção. Uma ação não se liga à outra segundo uma relação de causa
e efeito. Cabe a cada um decidir a quais sinais dará atenção. Quando
ocorre o interesse por algo que está sendo dito, exibido, ouvido, então
esse sinal se converte em informação, cujo objetivo maior é possibilitar
ao ser mais e melhores condições de se adaptar, de agir e de estar no
mundo. Trata-se de uma ação deliberada que implica uma escolha, ou
seja, cada um vai em busca das informações de que necessita e as incor-
pora ao seu repertório numa ação de seleção consciente (MARCONDES
FILHO, 2010).
A Comunicação, por seu turno, pressupõe mudança qualitativa de
um estado para outro. Isso significa que algo precisa mudar no Ser para
que se possa afirmar que ocorreu a comunicação. Comunicar é um
fenômeno que, a despeito do que apregoa o senso comum, não acon-
tece com tanta frequência, e tampouco pode ser reproduzido em labora-
tório. Por resgatar a importância do Outro (praticamente negligenciado
nas teorias tradicionais e considerado mero receptor), a NTC parte do
ponto de vista de criar sentido, de gerar mudança, ruptura. O único ser
que é capaz de perceber isso é aquele que vivenciou o fenômeno comu-
nicacional (MARCONDES FILHO, 2018). Comunicação, por essa ótica,
é algo muito maior, livre de materialidade. Ela se estabelece, entre outros
aspectos, na relação com o outro, no princípio da alteridade, e é por essa
razão que o Outro recebe especial atenção por parte de Ciro Marcondes
Filho, (2004; 2010), o pai da NTC.
Também Buber faz uma importante reflexão (resgatada por
Marcondes Filho, 2010) a respeito do tu e do isso. A relação eu-tu é
distinta da relação eu-isso. Enquanto a primeira pressupõe o encontro
essencial do homem numa atitude de reciprocidade (posto que reco-
nheço o tu), a segunda é calcada na atitude objetivante (o isso deve servir
para ser investigado, transformado). Aqui não se fala necessariamente
de pessoas, posto que o isso pode se transformar em tu, a depender
164 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
da atitude que o ser tem diante dos fatos, das pessoas (MARCONDES
FILHO, 2010, p. 35).
A postura diz muito sobre o tipo de relação que se estabelece, visto
que “tratar uma pessoa como objeto de estudo é vê-la como ‘isso’”. Trans-
formar o isso em tu pressupõe uma nova atitude, um novo comporta-
mento, em que o eu se torna permeável ao outro (tu), pois, como destaca
Buber (2001, p. 56), “a alteridade essencial se instaura somente na relação
EU-TU; no relacionamento EU-ISSO o outro não é encontrado como
outro em sua alteridade”. Ao se basear na óptica de Lévinas, Marcondes
Filho defende que o Outro, no fenômeno comunicacional, é tal como é
em Lévinas: impenetrável, insondável, aquele que está fora de mim. Não
necessariamente se está falando de uma pessoa, mas sim daquilo que o
ser não é e, exatamente por isso, é aquilo que rompe o ego e possibilita
ver além de si mesmo. A comunicação pressupõe, dessa forma, o reco-
nhecimento do Outro, mas não apenas isso. É preciso romper a barreira
que há em mim para acolher, hospedar o Outro que me choca (por ser
tão diferente de mim) e que pode até mesmo me agredir dada a sua
estranheza. É preciso abrir-se. Essa abertura, no entanto, não acontece
sempre numa situação dialógica (como queria Buber); ela pode ocorrer
pelo atrito, pelo radicalmente oposto, pela formação de ranhuras e
fissuras na alma. Seguindo esta linha de raciocínio, Ciro Marcondes
Filho (2018; 2019) defende que a Comunicação só pode ser sentida,
observada. Não se trata de algo previsível e nem mesmo quantificável.
Trata-se de algo da ordem do sensível, da afecção.
própria Mente são uma só coisa que é concebida por um mesmo atri-
buto, o Pensamento”. Nessa perspectiva, Spinoza entende que o atributo
Pensamento está voltado para as questões da mente, enquanto o atributo
Extensão está ligado à materialidade física. No entanto, sublinhe-se, não
há uma real separação entre esses atributos. Spinoza os entende como
atributos ou instâncias de uma mesma coisa, mas não apregoa a sepa-
ração entre tais aspectos. A base de sua filosofia é o afeto, mas é prati-
camente inviável discutir esse vocábulo sem passar pela concepção de
ideia. Para ele, o sentido de ideia é simples: trata-se de um “[...] modo
de pensamento que representa alguma coisa. Um modo de pensamento
representativo” (DELEUZE, 2009, p. 20).
Affectus, por sua vez, refere-se a um modo de pensamento que não
representa nada, ou seja, “todo modo de pensamento não representa-
tivo será denominado afeto” (DELEUZE, 2009, p. 21). Como exemplo,
Deleuze cita o fato de uma pessoa querer algo; esse algo (objeto, coisa)
implica uma representação e, portanto, uma ideia. O fato de querer esse
algo, entretanto, não implica uma representação. Trata-se, por conse-
guinte, de um afeto. Tais definições são, contudo, apenas nominais. Do
ponto de vista de uma definição real, Spinoza entende que todos os seres
são autômatos espirituais e, como tal, as ideias perpassam os seres a todo
o momento (elas sucedem-nos, desdobram-se sobre eles). Dessa forma,
nessa “sucessão de ideias, nossa potência de agir ou nossa força de existir
é aumentada ou diminuída de uma maneira contínua (...) e isto é o que
nós chamamos afeto, o que nós chamamos existir” (DELEUZE, 2009, p.
28-29).
O affectus é, então, a variação (resultante das ideias) da força de existir
de alguém. Spinoza trabalha com a ideia de dois afetos fundamentais
(polos): a alegria e a tristeza. Quando a potência de agir aumenta, o
ser experimenta um affectus de alegria. O contrário faz com que o ser
experimente um affectus de tristeza. A afeçção (affectio), por sua vez, é
a situação ou estado de um corpo enquanto sofre uma ação proveniente
de outro corpo. Aqui, o importante é destacar a palavra “enquanto”. A
afecção se dá no durante, no atrito dos corpos, no contato.
A mistura entre os corpos é também denominada por Spinoza como
afecção. Normalmente, a afecção indicará a natureza do corpo afectado
166 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
5. Considerações Finais
No caso da Comunicação entendida como Acontecimento, pres-
supomos o movimento, o vivo, o fluxo. É impossível que as sutilezas
do Acontecimento Comunicacional sejam captadas por métodos que as
cristalizam. Interessa-nos aquilo que se passa enquanto se passa. Além
de oferecer estudo acerca da valorização dos audiovisuais, este tipo de
pesquisa nos liberta da visão há muito viciante de que só existe uma
172 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
4. Escrito em 1904, The country of the blinds (traduzido como: Em Terra de Cego) é um
conto que retrata a chegada de um homem vidente a um local habitado unicamente por
cegos há várias gerações. Sua habilidade (a visão) logo a passa a ser encarada pelos demais
como aquilo que dificulta sua vivência em grupo, resultando, ao final do conto, na fuga
do vidente para que pudesse manter sua faculdade de ver. Este conto contradiz o dito
popular de que “Em terra de cego, quem tem olho é rei”. Em verdade, Wells mostra o
quanto temos dificuldade de aceitar o diferente e conviver com ele. A intolerância chega
ao limite máximo quando, no conto, propõe-se que Núnez abra mão de sua visão para se
adaptar à vida naquela sociedade.
PESQUISA METAPÓRICA COMO NOVA ROTA INVESTIGATIVA 173
Referências
BABIN, Pierre; KOULOUMDJIAN, Marie-France. Os novos modos de
compreender. Trad. Maria Cecília Marques. São Paulo: Paulinas, 1989.
PETERS, John Durham. Speaking into the Air: A History of the Idea of
Communication. University of Chicago Press, 2012 (Kindle Edition).
1. Introdução
O presente capítulo se lança a um estudo exploratório referente ao
circuito da cultura – consumo, produção, regulação, representação e
identidade (HALL, 2016) – da ficção televisiva brasileira contempo-
rânea. Aludimos, já no título, à ideia de mapeamento por duas razões:
pela perspectiva rizomática denotada por ela, ideal para o diagnóstico
de fenômenos multidimensionais em suas relações com os sujeitos e as
tramas sociais, culturais, políticas e econômicas; e porque nos valemos
de uma abordagem mais livre na investigação de um território marcado
pela dinamicidade e diversificação de seus atores e competências. Aqui,
portanto, aventuramo-nos na elaboração de um “primeiro mapa”, objeti-
vando melhorá-lo futuramente conforme avançarmos em nossas explo-
rações.
1. Uma versão preliminar deste trabalho se encontra publicada nos anais do GP Ficção
Seriada do 44º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Promovido pela
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), o evento
foi realizado de maneira remota entre 4 e 9 de outubro de 2021.
178 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
BRASIL, 2021) das teleficções dos EUA. Desde então, as séries norte-
-americanas apostam cada vez mais em arcos dramáticos longos, que
chegam a perpassar a distensão narrativa da temporada, quando não
da série como um todo. Neste contexto, Mittell (2015) detecta a emer-
gência de uma televisão complexa, na qual há, inclusive, a operação de
um modo melodramático2 – isto é, o melodrama passa a ser entendido
como uma faceta comumente difundida nas narrativas televisivas, e
não exclusiva das soap operas ou de qualquer outra categoria. Assim,
este gênero, antes visto com ressalvas pelos produtores de TV do Norte
global, tem o seu sentido expandido, integrando de maneira ainda mais
evidente séries e outros formatos que trazem à tona possibilidades mais
fluidas de identificação e reconhecimento junto àquele público.
Paralelamente a esse processo de “telenovelização” das séries nos
Estados Unidos, o Brasil observará uma tendência de “serialização”
de suas telenovelas (LOPES et al., 2020), narrativas historicamente
marcadas pela mestiçagem (MARTÍN-BARBERO, 2003) entre o melo-
drama e noções de brasilidade (NÉIA, 2021) e que, por conta disso, se
converteram em um elemento central da cultura e da identidade do país
(HAMBURGER, 2005; LOPES, 2009). A partir dos anos 2000, com a
popularização de teleficções estadunidenses potencializada por meio do
consumo desses produtos em outros suportes (BUXTON, 2010) – a TV
a cabo e os DVDs e Blu-rays em um primeiro momento e as plataformas
de streaming posteriormente –, diversas telenovelas brasileiras inves-
tiram, de modo mais acentuado3, em plots e arcos mais curtos, propi-
ciando um fluxo dinâmico de histórias e personagens à ação (LOPES et
al., 2016). Podemos citar como exemplos Mulheres Apaixonadas (Globo,
2003), Kubanacan (Globo, 2003), Senhora do Destino (Globo, 2004),
2. Mittell (2015) dialoga aqui com as acepções de Gledhill (1987, 2000), que toma da
sociolinguística a noção de modalidade – a capacidade de se conferir estruturalidade a
determinados fenômenos culturais com o objetivo de compreender o conjunto de regras
que os envolvem – para investigar o melodrama como: (1) um tipo de ficção ou teatro;
(3) um gênero audiovisual específico; e (3) uma maneira de ver o mundo profundamente
arraigada à cultura popular.
3. Anteriormente à conjuntura aqui abarcada, afinal, tramas como Roque Santeiro (Globo,
1985), Vale Tudo (Globo, 1988) e Tieta (Globo, 1989) já haviam sido hábeis na mescla
entre a estrutura seriada folhetinesca e arcos mais concisos envolvendo suas personagens.
“SERIEMANIA” NO PAÍS DA “NOVELOMANIA”? 181
5. Vinculada à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) desde que foi adquirida, em
1989, por Edir Macedo, a Record passou a investir continuamente em narrativas religiosas
a partir de 2010, quando estreou a minissérie A História de Ester. Em 2015, a estação
resolveu estender esse estilo aos seus títulos de longa serialidade, alocando-os às 20h30.
Os Dez Mandamentos, desta forma, foi a primeira telenovela bíblica do canal, e seu sucesso
motivou, inclusive, a produção de uma segunda temporada da história em 2016.
6. Conteúdo, serviço ou aplicativo disponível on-line para uso imediato por parte do
usuário.
7. Em 29 de junho de 2021, dia anterior à finalização do período recortado para o referido
monitoramento efetuado pelo JustWatch, o serviço HBO Go foi substituído pelo HBO
Max em todos os países da América Latina.
8. No mês de outubro de 2021, o Grupo Globo anunciou a extinção do Telecine Play,
sublinhando que os conteúdos da plataforma migrariam para o catálogo do Globoplay.
Isso provavelmente incrementará a participação deste último serviço OTT no mercado
do streaming.
184 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
10. Na plataforma de VoD, porém, o telespectador também se encontrava livre dos breaks
comerciais (apesar da permanência das vinhetas que indicavam a ida e a volta para esses
intervalos) e das cenas do capítulo anterior editadas no formato de prólogo – estratégia de
recapitulação adotada por todas as telenovelas da Globo a partir da segunda metade da
década de 2010.
186 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
nientes das cinco regiões do país, foram ao ar nas TVs públicas estaduais
e nacionais. Essas políticas começaram a ser implementadas ao final do
segundo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, no rastro da inauguração
da TV Brasil. Posteriormente à promulgação da Lei nº 12.485/2011
foram lançados os editais Prodav/TVs Públicas – duas edições nas
gestões de Dilma Rousseff e uma no governo de Michel Temer –, que
possibilitaram uma continuidade no âmbito da produção independente
fora do eixo Rio-São Paulo. Ficções de curta serialidade que abordavam
questões de classe, gênero e raça e temas relativos à memória histórica
da nação e à problemática da sustentabilidade, dentre outros tópicos,
foram realizadas por meio desses editais para serem levadas ao ar nas
TVs públicas estaduais. Algumas dessas obras, então, ganharam janela
nacional quando exibidas pela TV Brasil ou pela TV Cultura – que,
desta forma, se tornaram um importante espaço para a visibilidade de
perspectivas locais dentro de um sistema midiático que privilegia apre-
ensões e sentidos da identidade nacional ancorados no imaginário da
Região Sudeste (NÉIA, 2021).
Essas equações que, de alguma maneira, envolvem a diluição de
fronteiras entre o “mundo narrado” das tramas e o “mundo vivido” dos
telespectadores, entretanto, não são exclusivas das “histórias curtas” em
nossa teleficção: a telenovela brasileira, afinal, passou a demarcar sua
especificidade frente a outros modelos dramáticos latino-americanos
justamente ao incorporar, sob as regras do melodrama, temas caros
ao cotidiano e à agenda social do país (HAMBURGER, 2005; LOPES,
2009). Não é por acaso, portanto, que ela ainda detenha a centralidade
do cenário audiovisual nacional, impondo-se imperativamente em nossa
indústria televisiva como paradigma narrativo e modelo de produção:
suas convenções e seus dispositivos dramatúrgicos acabam por rever-
berar mesmo nas ficções de curta serialidade. A primeira temporada de
3%, a título de exemplo, foi duramente criticada por muitos espectadores
e pela própria imprensa especializada porque seus enquadramentos, sua
produção e até a interpretação de seu elenco se assemelhavam a uma
“linguagem de novela”. Além disso, o próprio esquema de gravação das
séries brasileiras empresta o modus operandi das telenovelas, adotado
pelo menos desde o início da década de 1970 (NÉIA, 2021): visando à
188 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
11. O know how e a expertise adquiridos pela Rede Globo desde o início dos anos 1970
culminaram na criação de uma marca específica para a emissora – um receituário não
escrito que congrega parâmetros estéticos, comerciais e, consequentemente, ideológicos,
abrangendo tanto as políticas como o capital humano da empresa.
190 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
Referências
ALEXANDRO, Victor. Confira o desempenho das plataformas de
streaming durante o segundo trimestre de 2021. GKPB: Geek Publicitário.
Mirandópolis, 19 jul. 2021. Disponível em: http://gkpb.com.br/69669/
desempenho-plataformas-de-streaming/. Acesso em: 10 out. 2021.
MARTHE, Marcelo. Pausa para fritar ovos. Veja, São Paulo, n. 2171, p.
134, 30 jun. 2010.
SCOTT, Anthony Oliver. Os filmes estão de volta aos cinemas, mas o que
são filmes agora? Folha de S. Paulo, São Paulo, 20 jul. 2021. Disponível
em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/07/os-filmes-estao-
de-volta-aos-cinemas-mas-o-que-sao-filmes-agora.shtml. Acesso em:
10 out. 2021.
1. Introdução
Ataques e grupos terroristas, por sua natureza, despertam a atenção
de toda a sociedade, atendendo aos critérios de noticiabilidade adotados
pelos veículos de comunicação de diversas partes do mundo e, em um
processo de retroalimentação cíclico, atualmente agitando as redes
sociais, o que evidencia o forte apelo midiático e o interesse coletivo que
envolve esse tipo de acontecimento. Em consequência a essa circuns-
tância intrínseca, uma atmosfera de medo contínuo e coletivo se instalou
no Ocidente, principalmente nos Estados Unidos e Europa, com propor-
ções sem precedentes após o 11/09, devido à representação midiática
do terrorismo e seus perpetradores. Diversos estudos internacionais
(MENDONÇA, 2002) relacionam de forma contundente o aumento da
sensação de insegurança ao conteúdo veiculado na mídia. Ademais, os
resultados dessas pesquisas apontam que o medo social não se baseia
em dados estatísticos concretos, como os apresentados acima, mas em
uma “ansiedade produzida simbolicamente” a partir do teor e frequência
das informações disseminadas à opinião pública, fenômeno chamado
de intuições estatísticas ingênuas, que se relacionam diretamente com a
200 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
1. A autora opta por se referir ao grupo terrorista autointitulado Estado Islâmico pela
sigla Daesh. Desde junho de 2014, data de declaração do califado, o nome foi reduzido
pela própria organização de Estado Islâmico do Iraque e do Levante para apenas
Estado Islâmico (com as siglas “IS” em inglês e “EI” em português). A partir de então,
foi instaurado no mundo árabe um movimento contra a nomenclatura e solicitações
formais de representantes muçulmanos de diversos países para o uso do termo Daesh em
substituição. Daesh é a sigla para al-Daula al-Islamiya al-Iraq wa Sham (Estado Islâmico
do Iraque) e também um trocadilho em árabe com a palavra ‘Dahes’, que significa “aquele
que semeia a discórdia”. Por entender que o termo pode contribuir para a desconstrução da
representação nociva do universo árabe e da islamofobia, temas sensíveis para a pesquisa
da autora, a escolha da sigla Daesh para referências ao grupo terrorista fica aqui registrada.
GUERRA SIMBÓLICA 201
2. Corrente política mais radical do islã, proveniente da palavra takfir, que significa herege.
Defendem a pureza do islã da linha wahabista; todos que não a seguem são considerados
hereges e infiéis, justificando, portanto, suas mortes.
GUERRA SIMBÓLICA 205
mensagem “They lied: the flames of war were only beginning to inten-
sify” (Eles mentiram: as chamas da guerra estão apenas começando a
se intensificar). Pela primeira vez, o termo que nomeia o filme é intro-
duzido ao público, em clara alusão aos destinatários da mensagem.
Outra passagem importante e direcionada ao Ocidente se configura
pela representação da população civil de territórios recém “libertados”
pelo Daesh, saldando e solicitando mantimentos e água aos soldados.
Novamente, a cena é instrumentalizada para acusar os líderes islâ-
micos que se opõem aos atos do Daesh, “espalhando mentiras sobre o
regime na televisão herege”.
Antes do início das cenas de guerra, há uma seção em que o grupo
ressalta a necessidade de purificar o islã, graças aos muitos muçul-
manos que não mantém a fé de forma correta, principalmente aqueles
que defendem que a jihad física – em oposição à jihad do coração ou
da alma – não deve fazer parte da prática contemporânea da religião.
Justificando e defendendo os atos perpetrados, o narrador introduz
imagens de batalha por uma base aérea síria, destacando que a luta
do Daesh é diferente das de seus inimigos, pois o grupo luta não por
ganhos mundanos, mas por recompensas divinas. Diversas cenas
mostram soldados emocionados rezando no campo de batalha em
agradecimento a Alá. Nesse ponto da produção, a retórica ideológica se
intensifica, promovendo a perversão de ideais sagrados e o processo de
desumanização do outro, no caso, os inimigos estadunidenses e euro-
peus. Argumento recorrente na retórica propagandista, a morte em
batalha – ou o martírio, na concepção extremista – é construída como
um momento de celebração e nunca como uma perda. Nesse sentido,
um trecho na primeira metade do documentário mostra quando um
dos soldados do Daesh é baleado; seus companheiros avançam no
campo de batalha sem parar para prestar socorro enquanto o câmera
também continua filmando. Nesse momento, o narrador anônimo
retrata a morte como gloriosa, afirmando que os espectadores puderam
assistir a “alma dele indo para um lugar muito melhor”.
Como nas produções hollywoodianas, o ápice do documentário se
localiza nos minutos finais. De modo icônico, as imagens exibem cenas
registradas após a conquista da base da 17ª Divisão síria, próximo à
GUERRA SIMBÓLICA 211
“as nações pecadoras, que se unem contra o Estado Islâmico, pois essa é
a condição para a vitória em qualquer era”. Toda a composição da cena
para o discurso do califa enfatiza a lógica propagandista messiânica
que envolve a figura de al-Baghdadi, que, como todo líder carismático,
assume o mito do escolhido por Deus.
O segundo longa-metragem da série Flames of War trabalha também,
de forma ainda mais acentuada, o processo de desumanização dos
inimigos. Logo nos primeiros minutos, imagens de crianças mortas em
decorrência de um ataque da coalizão à cidade de Raqqa preenchem a
tela, seguidas de um vídeo em que o presidente estadunidense Donald
Trump comenta sobre a brutalidade do Daesh: “This is an evil, sadistic,
monstrous enemy, absolute butchers” (Esse é um inimigo demoníaco,
sádico monstruoso, são açougueiros). A inserção busca descreditar o
discurso dos inimigos por meio da contradição: os que acusam o Daesh
de ser desumano praticam atos tão ou até mesmo mais brutais, sem uma
causa ou a orientação divina, tornando-os injustificáveis; argumento
explorado a fim de legitimar os ataques perpetrados, principalmente, a
alvos ocidentais.
Elementos de teor emocional, com ênfase na trilha sonora, foram
empregados em abundância, se comparados ao primeiro filme; a
ausência de pluralidade de argumentos para manter a ideologia extre-
mista frente às recentes perdas pode ser um dos motivos que justifi-
quem a escolha. Após reforçar a premissa de desumanização dos
inimigos durante todo o roteiro, compondo a narrativa para legitimar
os atos cometidos, os minutos finais foram elaborados para impactar
os inimigos e a audiência, salientando que a capacidade operativa do
Daesh se mantém intacta. Cenas de execuções de prisioneiros com facas,
tiros, pedras e fogo invadem a tela, inclusive, registradas em slow motion
e alta qualidade. Por cerca de cinco minutos, uma sequência de degola-
mentos tem destaque, sendo finalizada apenas quando a última cabeça é
jogada em um buraco ensanguentado no chão. Em um artifício retórico,
os dois filmes da série Flames of War compartilham a mesma cena final:
soldados capturados cavando as próprias covas com as mãos em um
campo aberto e, posteriormente, a execução de todos eles. A escolha de
repetir o final simboliza a manutenção das convicções ideológicas e o
GUERRA SIMBÓLICA 213
5. Considerações finais
Com base na análise da retórica propagandista intrínseca na
série Flames of War, é possível identificar que o Daesh se apropria de
elementos ocidentalizados da cultura audiovisual a fim de conferir
credibilidade e legitimidade às produções, em um processo paradoxal.
O universo simbólico, acionado pela estética e técnica empregadas em
ambos os filmes, aliado ao uso da língua inglesa evidencia o esforço em
conferir um aspecto internacional à organização terrorista. Com reforço
dos integrantes europeus e estadunidenses, o Al Hayat Media Center
estudou cuidadosamente a estratégia propagandística utilizada pelos
governos dos Estados Unidos e Reino Unido para validar social e midia-
ticamente a invasão ao Iraque, após o 11 de Setembro, e aprimorá-la
visando atingir seus próprios objetivos. Dessa forma, o Daesh conseguiu
estabelecer mitos igualmente falsos e distorcidos a serviço do proseli-
tismo e recrutamento, por meio da instrumentalização midiática profis-
sional, principalmente das redes sociais (NAPOLEONI, 2015, p.21).
Apesar de terem sido produzidos em contextos diferentes, ambos
os filmes se sobrepõem na tentativa de fortalecer os pilares ideológicos
que justificam a existência do Daesh. A intenção de legitimar o grupo
nos âmbitos político e religioso é latente. Isso fica refletido na própria
escolha do nome do califado como “Estado Islâmico”, representando a
utopia de ser reconhecido como um Estado, de fato, independente e a
asserção do papel central do islã na política, rejeitando em seu cerne
qualquer flexibilização de caráter secular.
A tentativa de legitimação política fica registrada categoricamente
no primeiro filme, que dedica longas cenas para apresentar a estrutura
burocrática atendendo às necessidades da população por meio de ativi-
dades consideradas estatais, incluindo supostas parcerias com líderes
locais nos territórios iraquiano e sírio. Já o desejo de se legitimar na
esfera religiosa conta ainda com muito mais dedicação e empenho retó-
214 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
Referências
CELSO, Antony N. The Islamic State and Boko Haram: Fifth Wave
Jihadist Terror Groups. Foreign Policy Research Institute, San Angelo,
2015.
COHEN, Stanley. Folk devils and moral panics. 3ª ed. Nova York e
Londres: Routledge, 1980.
VON SIKORSKI et al. Muslims are not Terrorists: Islamic State Coverage,
Journalistic Differentiation Between Terrorism and Islam, Fear
Reactions, and Attitudes Toward Muslims. 2017.
Capítulo 12
Malu: Pelo amor de Deus Adélia. Não precisa fingir que você se im-
porta.
Adélia: Eu me importo[...]
Malu: Por quê? Se fui eu que abri mão da minha vida inteira pra con-
seguir fazer essa merda desse lugar.
Adélia: Chega Malu! Para de olhar pro seu próprio umbigo, sua egoís-
ta! Tudo eu! Eu fiz, eu perdi! Eu, eu, eu, eu. A gente perdeu! “Lutando
pelo meu direito de trabalhar?” Eu trabalho desde os oito anos de
idade. A minha avó nasceu numa senzala e é difícil. É bem difícil
mesmo. Eu trabalhei seis, sete dias na semana. Saía de casa às quatro
horas da manhã, ficava mais de uma hora ônibus na ida, mais uma
hora no ônibus na volta e chegava em casa a Conceição tava dormin-
do. Tudo isso pra por um prato de comida na mesa. Isso sim pra mim
é relevante. (COISA MAIS LINDA,1x 3, 2019).
por um desejo consciente de ser mãe, e não pelas cobranças sociais que
perpetuam esse ideal feminino, de modo arbitrário e impositivo. Assim
como Lígia, ela vivencia o machismo estrutural, nas investidas cons-
tantes da sogra Eleonora (Esther Goés) que, mesmo sendo mulher, é
uma das personagens que mais materializa práticas e valores machistas
ao longo da série.
Eleonora acredita que as mulheres devem assumir uma postura
totalmente submissa no casamento, dedicando-se exclusivamente
ao ambiente doméstico, ao bem-estar dos maridos e à procriação e
cuidados com os herdeiros. Mesmo na situação em que Lígia lhe conta
os abusos físicos e psicológicos sofridos, ela culpabiliza a nora pelas
próprias violências sofridas. Contudo, diferente do conflito interno
que essa relação traz para Lígia, Thereza se mostra consciente e comba-
tiva, sendo uma referência para que as amigas também se libertem das
amarras sociais.
Referências
Imagem e Materialidade
José Ricardo da C. M. Junior
#audiovisual #metodologia #preservação
7. Para uma discussão introdutória sobre o Glitch digital, ver: MENKMAN, Rosa Glitch.
Studies Manifesto; e MANON, Hugh S.; TEMKIN, Daniel. Notes on Glitch.
IMAGEM E MATERIALIDADE 243
8. A possessão pode ser culturalmente pensada como a tomada de um corpo por outra
entidade, geralmente intangível, com a finalidade de que esta se manifeste, e afirme sua
verdade, ou ainda de subverter dado corpo. Em sua esfera positiva, é a possibilidade
mediúnica que canaliza, comunica. No imaginário cinematográfico, o possuído geralmente
é transfigurado pelo que o possui. Assim, embora seu corpo não seja substituído por outro,
ele é transformado pela nova dinâmica que habita aquele espaço partilhado (o corpo), até
que este seja dominado e transformado internamente – o que a altera por completo. Esse
corpo possuído gera um deslocamento do olhar para aquele corpo, anteriormente familiar,
com uma nova e perturbadora, potência.
246 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
3. Uma conciliação?
Por fim, poderíamos pensar nesta migração tecnológica como uma
forma de libertação e novas potências estéticas, uma vez que essas dinâ-
micas da agilidade são afirmações do triunfo dos simulacros (ou do
simulacro dos simulacros) a nossa percepção das imagens - seu funcio-
namento, sua tangibilidade, sua preservação, foram reconfigurados.
9. Para gerar uma cópia de filme em película para exibição, demandavam-se filmes
negativos que depois seriam usados para gerar positivos em um processo complexo e de
alto custo. Os corpos reteriam informação de maneira definitiva e, uma vez registradas,
para qualquer alteração seria necessário reiniciar o processo de negativos e positivos.
A informação se inscrevia em seus corpos e esses corpos eram a manifestação de seu
conteúdo. O digital (e o vídeo) transforma esta dinâmica, em primeiro lugar, altera a
relação suporte e conteúdo e esta transformação em si altera toda a dinâmica de forças que
geram e gerenciam a imagem. Walter Benjamin, preconiza essa questão em seu olhar para
a reprodutibilidade técnica. No entanto, o nível de complexidade dessas novas ferramentas
são incompreensíveis mesmo dentro da complexa descrição de Benjamin.
248 CRUZAMENTO DE ROTAS AUDIOVISUAIS
(...) essa fabricação do chamado homem, que já não pode habitar fora
do campo dos media, poderá também passar por descobrir, dentro
do carácter sintético desse mesmo campo, novas possibilidades cria-
tivas e tectônicas para refazer o mundo. (…) Mais do que ficar preso
à erótica prometeica do imaterial e da libertação do constrangimento
da matéria, cabe ao (chamado) homem desfazer-se das falácias que
resultam do peso das antigas categorias e investir na compreensão
daquilo que resultou das alterações técnicas. Trata-se não apenas de
produzir significação sobre as máquinas e os dispositivos que utiliza,
como também produzir essa significação sobre si próprio e o mundo
em que habita. Nesse caminho, e aproveitando as novas potencialida-
des da técnica, ganhar-se-á vantagem para produzir novos simbóli-
cos e novas imagens que possam preencher o inconcebível. (ROCHA
FERNANDES, 2016, p. 9-10).
Referências
BAZIN, André. O que é o cinema? André Bazin. São Paulo: Cosac Naify,
2014.
Breno Henrique
Mestrando em Comunicação Social pela UFMG, onde também integra
o grupo de pesquisa Poéticas da Experiência. Bacharel em Cinema e
Audiovisual pelo Centro Universitário Una. Foi professor do curso de
Direção de Arte no Núcleo de Produção Digital realizado pela prefei-
tura de Belo Horizonte. Dirigiu o curta-metragem Como Se o Céu Fosse
Oceano (2018), vencedor da Mostra Competitiva Minas no 21° Festcur-
tasBH - Festival Internacional de Curta-Metragem de Belo Horizonte.
E-mail: [email protected]
Lilian Sanches
Jornalista, doutoranda do Programa de Psicologia Social e do Trabalho
da Universidade de São Paulo (USP), mestra em Processos Comunica-
cionais e especialista em Gestão de Conteúdo Jornalístico com ênfase
em plataformas digitais, pela Universidade Metodista.
E-mail: [email protected]
SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES 255
Luana Melgaço
Graduada em Comunicação Social pela UFMG. Em sua trajetória
profissional, realizou mais de vinte filmes como produtora e produ-
tora executiva, atuando desde a fase do desenvolvimento do projeto até
seu lançamento. É sócia da Anavilhana e foi integrante da Teia (www.
anavilhana.art.br e www.teia.art.br). Os filmes que produziu, quatro
deles em coprodução internacional, foram exibidos e premiados nos
mais importantes festivais de cinema no Brasil e no mundo, entre eles:
Kevin (2021), A Torre (2019), Breve história do Planeta Verde (2019),
Enquanto estamos aqui (2019), A cidade onde envelheço (2016), Sopro
(2013), Girimunho (2011), O céu sobre os ombros (2011), A falta que
me faz (2009). Além da produção, ministra oficinas, participa de semi-
nários, laboratórios, consultorias e colaborações em diversos projetos
brasileiros e internacionais.
E-mail: [email protected]
Mariana Souto
Professora do curso de Audiovisual da Faculdade de Comunicação da
UnB. Doutora e mestra em Comunicação pela UFMG, com pós-douto-
rado pela ECA (USP). Lecionou na graduação de Cinema e Audiovi-
sual da Una e da PUC Minas. Foi curadora de mostras como o Janela
Internacional de Cinema de Recife, o FestcurtasBH e o Lumiar, júri da
Mostra de Tiradentes. Autora de Infiltrados e invasores – uma perspectiva
comparada sobre relações de classe no cinema brasileiro (Edufba, 2019).
E-mail: [email protected]
SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES 257
Nicoli Tassis
Líder do Grupo de Pesquisa em Narrativa Cultura e Temporalidade –
Narra. Professora do curso de Jornalismo da FACED/UFU, jornalista e
publicitária. Doutora e Mestre em Comunicação Social e Sociabilidade
Contemporânea pela UFMG. Desenvolve estudos na interface comuni-
cação e história, tendo como projeto atual investigar as relações entre
narrativa midiática e gênero. Na pesquisa e na prática profissional, dedi-
ca-se especialmente à grande reportagem escrita e audiovisual, traba-
lhando a interseção entre os modos de narrar do jornalismo, da litera-
tura e do cinema, com foco na linguagem documental e biografias.
E-mail: [email protected]
Sávio Leite
Mestre em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes, UFMG. Diretor de
curtas-metragens, professor no Centro Universitário Una e tradutor.
Seus trabalhos foram apresentados e premiados em importantes festi-
vais ao redor do mundo. Fundador e um dos diretores da Múmia –
Mostra Udigrudi Mundial de Animação.
E-mail: [email protected]