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%C3%A7%C3%A3o_1999.pdf
O baile funk, enquanto fenômeno cultural das periferias urbanas, desafia as categorias
tradicionais de espaço, corpo e tempo ao transformar lugares marginalizados em
epicentros de vivência e resistência. Sob a perspectiva fenomenológica de Maurice
Merleau-Ponty, o corpo não é um objeto isolado no mundo, mas o mediador essencial
da experiência. É por meio dele que habitamos o espaço, nos relacionamos com o
tempo e construímos significados no mundo. Com base nessa abordagem, pode-se
compreender como os corpos periféricos no baile funk ressignificam os espaços
urbanos e se afirmam como agentes de transformação cultural.
Merleau-Ponty conceitua o corpo como "corpo vivido", isto é, um corpo que sente e age
em constante relação com o mundo. Ele não é um receptor passivo de estímulos ou um
objeto físico puramente determinado pelas leis da natureza, mas um corpo que
percebe, interpreta e se expressa. Essa percepção encarnada é a base da existência
humana, e nela se entrelaçam o espaço, o tempo e a corporeidade. No contexto do
baile funk, o corpo vivido revela-se em sua potência máxima: ele não apenas ocupa o
espaço, mas o cria, transformando becos, ruas e terrenos baldios em territórios
simbólicos e afetivos. Esse processo de criação espacial é inseparável dos gestos,
ritmos e interações que caracterizam o baile.
A noção de corpo vivido também nos ajuda a compreender como o baile funk articula
corporeidade e identidade. Para os sujeitos periféricos, a dança é mais do que uma
performance estética; ela é uma linguagem que comunica pertencimento, memória e
desejo. Cada gesto, cada movimento, carrega significados que vão além do indivíduo,
conectando-o a uma coletividade. A dança no baile funk é, portanto, uma forma de
inscrição no espaço e no tempo, uma maneira de dizer: "Eu existo, eu pertenço, eu
resisto." Essa dimensão expressiva do corpo revela a potência do baile como um
espaço de criação identitária, onde os sujeitos periféricos podem afirmar sua
singularidade e sua coletividade.
Além disso, o baile funk pode ser interpretado como uma heterotopia, nos termos de
Michel Foucault. Ele é um espaço que simultaneamente reflete e subverte a ordem
social. Dentro do baile, as hierarquias e exclusões que caracterizam a cidade são
desafiadas, criando um lugar onde os sujeitos periféricos podem reconfigurar suas
relações com o espaço e com o outro. Essa dimensão heterotópica reforça a ideia de
que o baile não é apenas um evento cultural, mas um fenômeno espacial que
questiona as normas e os limites da urbanidade. Ele é, ao mesmo tempo, um reflexo
das contradições da cidade e uma resposta a essas contradições, oferecendo um
espaço de liberdade e criação.
Por fim, é importante destacar que a fenomenologia do baile funk não se limita ao
espaço físico. Ela também envolve dimensões simbólicas e afetivas que ultrapassam
os limites do evento. O baile cria redes de pertencimento que conectam os
participantes de maneiras que vão além do espaço e do tempo imediatos. Essas redes
são fundamentais para compreender a força do baile funk como uma prática cultural
que transforma tanto os sujeitos quanto os espaços que eles habitam.
Ao integrar as reflexões de Terezinha Petrucia da Nóbrega sobre a fenomenologia de
Merleau-Ponty, podemos ampliar a compreensão de como o corpo no baile funk não
apenas interage com o espaço, mas o transforma por meio da sensibilidade estética.
Nóbrega destaca que a percepção não é uma simples resposta a estímulos, mas uma
"criação de sentido" que surge do movimento e da interação do corpo com o ambiente.
A dança no baile funk, assim como a arte, é uma forma de conhecimento sensível, que
ultrapassa o racionalismo e a causalidade linear. Cada movimento do corpo no baile
contribui para a configuração estética do espaço, onde a sinestesia — a fusão dos
sentidos — torna-se uma ferramenta de transformação, permitindo que os corpos
vivam e recriem o espaço de maneira coletiva e simbólica.
Além disso, a autopoiesis, conceito trazido por Nóbrega a partir das teorias de
Maturana e Varela, ajuda a explicar como os sujeitos periféricos no baile funk não são
meros receptores do espaço, mas o constroem ativamente. Como Nóbrega e Merleau-
Ponty sugerem, a percepção não é um processo de decodificação, mas de criação
constante, onde o corpo interage com o meio e reorganiza o mundo ao seu redor, tanto
fisicamente quanto simbolicamente. A plasticidade do cérebro e do corpo permite que
cada gesto, cada dança, seja uma oportunidade para ressignificar a realidade vivida, o
que é especialmente verdadeiro no contexto do baile funk.