ChacarasLazer_NovoRural

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A INTERFACE ENTRE A IMPLANTAÇÃO DE CHÁCARAS PARA

LAZER E A CONSTITUIÇÃO DO “NOVO RURAL BRASILEIRO”

THE INTERFACE AMONG THE IMPLANTATION OF SMALL


FARMS FOR LEISURE AND THE CONSTITUTION OF THE
"NEW RURAL BRAZILIAN"

Jamile Ruthes Bernardes


Mestranda na Universidade Estadual de Londrina no
curso: Geografia, meio ambiente e desenvolvimento.
[email protected]

Ideni Terezinha Antonello


Professora Adjunta do curso de Geografia
Universidade Estadual de Londrina.
[email protected]

Resumo

O Brasil, a partir de 1950/60, passou por um processo intenso de modernização da


agricultura, com a inserção na base técnica produtiva de insumos modernos, assim o
processo produtivo ganhou autonomia frente ao trabalho humano e, ao mesmo tempo
intensificou a área produzida e a produtividade obtida. Tal fato proporcionou mudanças
profundas na base técnica produtiva agrícola, as quais desencadearam transformações
na organização socioespacial no rural nacional, principalmente, na estrutura do mercado
de trabalho rural, bem como nas ocupações e usos desse espaço. A presente
investigação tem como foco central de estudo as chácaras para lazer, na tentativa de
verificar a interface entre esse novo uso da terra rural e a constituição de um “novo rural
brasileiro”, além das possibilidades para esse espaço como, unidade de lazer e
potencialidade de oferta de emprego à população local. O recorte espacial da área,
denominada Recanto Santa Andréa, é um loteamento de chácaras localizado na cidade
de Cambé – PR. Para atingir o escopo da pesquisa utilizamos como procedimento
metodológico à realização de trabalhos de campo via coleta de dados mediante
entrevistas semi-estruturadas. Ressaltamos que realizamos um levantamento
bibliográfico, o qual nos proporcionou embasamento teórico para prosseguirmos e
efetivarmos nosso trabalho de investigação.

Palavras-chave: Espaço rural. Chácaras de lazer. “Novo rural brasileiro”.

Abstract

Starting from 1950/60, Brazil went by an intense process of modernization of the


agriculture, with the insert in the productive technical base of modern inputs, like this
the productive process wins autonomy front the human work and, at the same time it
intensifies the produced area and the obtained productivity. Such fact provided deep
changes in the productive technical base agricultural, which unchained transformations
in the organization rural space national, mainly, in the structure of the rural job market,

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as well as in the occupations and uses of that space. This investigation has as central
focus of study the small farms for leisure, in the attempt of verifying the interface
between that new use of the rural earth and the constitution of a "new rural Brazilian",
besides the possibilities as: unit of leisure and potentiality of job offer to the local
population. The area denominated Recanto Santa Andréa is located division into lots of
small farms in the city of Cambé - PR. To reach the mark of the research we used as
methodological procedure to the accomplishment of field works through collection of
data by semi-structured interviews. We emphasized, that we accomplished a
bibliographical rising, which provided us theoretical for we continue and we execute
our investigation work.

Keywords: Rural space. Farms for leisure ."New rural Brazilian".

Introdução

O espaço rural brasileiro, antes da década de 50/60 do século XX, no período


anterior à explosão das tecnologias que se disseminaram nas atividades agropecuárias,
encontrava-se organizado de tal forma que essas atividades tinham como sustentáculo
do processo produtivo a força de trabalho humana. Contudo, podemos ressaltar que,
após 1970, o agro nacional entra em um novo patamar produtivo, pois passou por um
intenso processo de reestruturação produtiva da agropecuária, possibilitando a
formatação do que Elias (2002) identificou como o processo de integração de capitais
(industriais, bancários, agrários entre outros), proporcionado aos produtores que já
dispunham de capital ou que foram subsidiados pelo Governo Federal mediante ao
crédito rural desde o início da modernização da agricultura, a fazerem, dos seus
negócios, empreendimentos promissores, pois, ao inserir na base técnica produtiva o
maquinário e insumo moderno, o processo produtivo ganhou autonomia frente o
trabalho humano e, ao mesmo tempo intensificou a área produzida e a produtividade
obtida. Tal fato, possibilitou mudanças profundas na base técnica produtiva agrícola, as
quais desencadearam transformações na organização socioespacial no rural nacional,
principalmente, na estrutura do mercado de trabalho rural. Nesse sentido, a
territorialização do agronegócio no agro nacional pauta-se na reestruturação da base
técnica produtiva, a qual ganha força com as revoluções da informática e da
biotecnologia. Essas se materializam com o aumento do capital morto, resultando na
redução do trabalho humano agrícola, pois a biotecnologia e a tecnologia da informática

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caminham juntas para promover a constituição de um novo processo de produção


agrícola. Nesse movimento sobressai-se a diminuição contínua de postos de trabalhos
agrícolas e ao mesmo tempo promove o surgimento de atividades não agrícolas,
contudo em menor número.
Esse processo desenvolveu-se de forma seletiva, no sentido em que abarcou
determinados grupos de produtores e de produtos, isto é, foram os médios e grandes
proprietários latifundiários que conseguiram se apropriar dos subsídios governamentais
para colocar em prática a modernização da produção direcionada para os produtos
destinados à exportação, particularmente, a cultura da soja. Observamos que, nesse
movimento de reorganização socioespacial que se materializa o “meio técnico-
científico-informacional” (SANTOS; SILVEIRA, 2001), produto do consórcio entre os
avanços tecnológicos e o capital. Cabe levar em consideração o desenvolvimento
geograficamente desigual que marca a sua constituição e sua disseminação no espaço
nacional. Com ressaltam Santos e Silveira:
O meio técnico-científico-informacional não se impõe igualmente sobre o
território. [...]. Representando cerca de 20% da área total cultivada no Brasil,
25% da produção de grãos e 43% do rebanho nacional, os cerrados
aparecem como a mais produtiva das regiões brasileiras para a produção
agropecuária capitalista. O meio técnico precedente era parcamente presente
e a enormidade dos vazios diminuiu as resistências à inovação, permitindo a
chegada brutal da nova tecnoesfera e da nova racionalidade econômica. Já
no Nordeste, o peso das heranças materiais e culturas é muito forte, agindo
como freio e resistência. Assim, as novas técnicas e as novas formas de fazer
apenas ocupam os interstícios de um trabalho vivo e de um trabalho morto
próprios de épocas anteriores. (2001, p.104).

Percebemos que a configuração da reorganização do espaço rural foi comandada


pelo desenvolvimento geograficamente desigual, o qual desencadeou a manutenção e o
aprofundamento das desigualdades sociais, econômicas e dos territórios regionais.
Assim, Balsan (2006) coloca que as áreas onde predominam as atividades
agropecuárias assentadas em produtos de alto valor de mercado encontram-se entre as
mais modernizadas, enquanto as áreas de agricultura voltadas para produtos da cesta
básica apresentam baixos índices de modernização.
A “chegada brutal da tecnoesfera” ocorre alicerçada na captação de mercados
internacionais de produtos alimentares industrializados ou semi-industrializados. Pois se
encontra diretamente relacionada à cristalização da indústria à montante e à jusante das
atividades agropecuárias mediante territorialização dos CAIs (Complexos

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Agroindustriais). Para Elias e Pequeno (2005), os CAI's constituem-se nos atores


centrais da reestruturação produtiva incentivada por financiamentos e investimentos,
tanto estatais como particulares, que atuam no agro nacional. Por conseguinte, diversas
alterações no âmbito social, econômico e territorial foram responsáveis pela atual
organização socioespacial rural. Dentre essas alterações pode-se considerar como as
mais significativas o intenso êxodo rural, a alta taxa de urbanização, a especialização de
culturas e a concentração fundiária (MARAFON, 1998).
No cenário de transformações profundas que atinge o rural e reverbera no urbano,
faz emergir debates teóricos em torno das relações campo-cidade ou rural-urbano e
afloram uma gama de propostas ancoradas em pressupostos teóricos- metodológicos
diferentes na busca de apreender a complexidade que envolve essa relação na
atualidade. Essa complexidade se apresenta como um desafio para os pesquisadores que
têm como objeto de investigação o espaço rural, bem como o urbano, inseridos em um
movimento de mudança que fomenta uma reorganização do espaço marcada pela
transitoriedade, pois a produção e a reprodução deste não se apresentam de forma
acabada e fixa, mas envoltas na mobilidade do capital e na sua espacialização efêmera.
Tal processo consubstancia-se como uma “paisagem irrequieta” (SOJA,1993), pois é
fruto de uma organização espacial que sofre da efemeridade do tempo presente com a
“compreensão tempo-espaço” (HARVEY, 1992).
Observamos no debate sobre as relações rural-urbano e ou campo-cidade a defesa
da desintegração do rural tradicional com a configuração de um novo rural mediante o
processo de urbanização do espaço rural. Por outro lado, essa postura ocorre em defesa
da relevância do rural. Desses dois focos irradiam várias interpretações da realidade do
espaço rural na contemporaneidade, dentre elas destaca-se a tese de uma nova dinâmica
da produção agropecuária marcada pela a urbanização do rural, na qual a concepção de
rural não se encontra mais vinculada à atividade estritamente agrícola, pois a introdução
da informática, da biotecnologia e da engenharia genética nas atividades agrícolas
fomenta o desenvolvimento de atividades não-agrícolas no campo. Essa postura é
defendida por Graziano da Silva (1999) que considera que o processo de urbanização
brasileiro se desloca para o espaço rural transformando-o. Essa transformação vincula-
se diretamente à modernização da base técnica produtiva agrícola com os avanços

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tecnológicos. O autor avalia que o “o novo rural” emerge a partir dos anos 1980 no
Brasil pautado em três grupos de atividades, a saber:
1- Uma agropecuária moderna baseada em commodities e intimamente ligada às
agroindústrias (formação e sedimentação dos complexos agroindustriais).
2- O desenvolvimento de um conjunto de atividades não agrícolas, essas ligadas à
moradia, ao lazer e a várias atividades industriais e de prestação de serviços
(jardinagem, pedreiro, caseiro entre outros).
3 - A disseminação de um conjunto de atividades agropecuárias destinadas a
nichos de mercado com o a produção de rã, pássaros, avestruz entre outras, bem como a
psicultura, fruticultura, floricultura, horticulturas.
Nas palavras do autor “um espaço rural penetrado pelo mundo urbano com velhos
e novos personagens, como os neorurais (profissionais liberais e outros ex-habitantes da
cidade que passaram a residir no campo)” (GRAZIANO DA SILVA,1999). Essa
postura ancora-se na defesa de que a realidade do espaço rural nacional não pode ser
considerada e trabalhada a partir das atividades agropecuárias e agroindustriais, mas
devemos pensá-lo no bojo das novas funções e novas ocupações que se fazem presente.
Ressaltamos a hipótese do “renascimento rural” (“la renaissance rurale”)
defendida por Kayser (1989) tendo como ponto de partida a realidade francesa, a qual
encontra-se associada à tese de um repovoamento do rural vinculado à segunda
residência, ou seja, seu argumento assenta-se no movimento populacional no sentido
inverso ao fomentado pelo processo de urbanização, uma vez que está ocorrendo nos
países de capitalismo avançado um repovoamento do espaço rural via atividades não
agrícola (descentralização industrial), local de moradia para aposentados e de lazer.
A importância de se distinguir essa dinâmica socioeconômica e territorial
encontra-se nas discussões em relação à atuação do poder Estatal. É necessário o
reconhecimento da “la multifonctionnalité de l’agriculture” para se repensar o espaço
rural, principalmente tendo em mente as políticas públicas para o setor, pois como
coloca Mundler (2007, p.1) “Si la miltifonctionnalité suscite tant d’intérêt, c’est parce
qu’elle offre, à ceux qui l’espèrent, la perspective d’un changement radical dans la
façon dant l’agriculture est orientée par les politiques publiques”.
A preocupação do autor é pensar o espaço rural em um contexto amplo que
envolva todos os atores sociais presente nesse espaço, ou seja, não se limitar em ver as

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explorações rurais como unidades fechadas de produção agrícolas (“monofunctionnel”),


mas que as mesmas, a partir das políticas públicas, podem se abrir para outras
atividades como o turismo e a venda de produtos locais. Uma vez que Mundler (2007)
argumenta que a “multifonctionnalité” vincula-se as demandas sociais, essas
direcionadas pelas práticas sociais que podem assumir um papel significativo no
desenvolvimento rural. Por conseguinte, o autor afirma: “De ce point de vue, la
multifonctionnallité est l’occasion d’un renouvellement des conditions de dialogue entre
agriculteurs et autres usagers de l’espace rural” (MUNDLER, 2007, p.5).
Para Mundler (2007) as relações campo-cidade ganham o significado de
interconexão o que não permite falar do espaço urbano e rural como dicotômicos, e sim
em uma unidade dialética, particularmente que começa a ganhar a força à presença de
atores sociais no espaço rural não vinculado estritamente à agricultura. Nessa mescla de
atores sociais o autor coloca a necessidade de um diálogo entre os agricultores e os
demais atores sociais que fazem o espaço rural contemporâneo francês. Tal fato pode
ser visualizado no estudo de Dollé (2004) sobre o espaço rural francês, o qual
identificou o crescimento do setor de serviços fruto do processo de terceirização da
economia rural, a mesma gera empregos nesse espaço não ligados diretamente a
atividades agrícolas.
Salientamos um outro estudo que respalda as análises acima, particularmente
podemos dizer que vem corroborar a hipótese de Kayser (1989) sobre o repovoamento
do espaço rural francês, tendo em vista que a pesquisa coloca que em determinadas
áreas à função residencial apresenta-se como dominante, nas quais a média de empregos
agrícolas é 2%, enquanto que 40% da população trabalha em outros lugares e em outras
atividades (DATAR, 2004). Cabe ressaltar que a investigação diagnosticou quatro
funções no espaço rural, a saber: a função recreativa/ turística, a residencial, a de
preservação da natureza e a produtiva.
A interpretação de Veiga (2004) em relação dinâmica socioespacial nos países de
capitalismo avançado considera que o progresso da urbanidade gera o “nascimento” de
outra ruralidade, já que o autor realiza uma crítica as teses de Kayser (1989) e de
Lefebvre (1970) ao avaliar que o processo que está se desencadeando não é um
“renascimento rural”, mas um fenômeno inteiramente novo tendo em vista que:
Na atual processo de globalização, a ruralidade dos países avançados não
desapareceu, nem renasceu, fazendo com que as duas hipóteses fossem ao

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mesmo tempo parcialmente verificadas e refutadas, o que leva à formulação


de uma terceira: o mais completo triunfo da urbanidade engendra a
valorização de uma ruralidade que não está renascendo, e sim
nascendo.(VEIGA, 2004, p.55, grifo do autor).

Veiga ao se referir à hipótese da completa urbanização (desaparecimento do


ruralidade) defendida por Lefebvre (1970), considera que a mesma não se concretizou
Assim, a partir da contraposição das teses de Kayser e Lefebvre, Veiga defende que
“[...] a ‘revolução do espaço’ que engendra a ‘sociedade urbana’ (ou pós-industrial)
tende a revigorar a ruralidade, mas mediante mutação, e não ‘renascimento’” (2004,
p.55, grifo do autor). Inclusive o autor utiliza-se da análise que consideração que a
cidade e o campo se entrelaçaram com a troca de alianças, ou seja, se casaram; o que
proporciona o nascimento de novas relações campo-cidade.
Destacamos os estudos realizados sobre a realidade dos países de capitalismo
avançado com o intuito de apresentar a relação estrita entre o movimento de
reorganização espacial fruto do processo de modernização das atividades agropecuária
e, conseqüentemente urbanização, que fomenta análises dos pesquisadores globalmente
para compreender a direção ou o “futuro” das relações campo-cidade, particularmente
que a mundialização do capital é uma realidade.
Observamos uma linha de pensamento contrária à defesa da constituição de um
novo rural brasileiro. Essa linha de pensamento considera que as estratégias de
sobrevivência dos produtores familiares, como por exemplo às atividades não agrícolas,
não são novas, mas sempre estiveram presentes na realidade dos produtores rurais, as
quais se mantém na atualidade, pois se cristalizam nas novas ocupações não-agrícolas.
Por conseguinte, se constituem em uma recriação de antigos mecanismos de
sobrevivência dos produtores. Enquadra-se nessa perspectiva a interpretação de
Alentejano (2003) que, escreve sobre as relações campo-cidade no Brasil no século
XXI, percebe as mudanças que marcaram o espaço rural, mas defende que o rural
mesmo com outro significado se faz presente na terra. Dessa maneira a terra constitui-se
como elemento fundamental do espaço rural.
O autor também afirma que o ponto central da particularidade do rural em relação
ao urbano encontra-se nas “dimensões econômica, social com a terra” (ALENTEJANO,
2003,p.29). Todavia, o autor alerta que não está defendendo uma relação específica
entre o homem e a terra, apenas que a dinâmica urbana não se vincula diretamente a

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terra, enquanto que o rural encontra-se intrinsecamente relacionado a ela. Nas palavras
de Alentejano:
Assim, independente das atividades desenvolvidas, sejam elas industriais,
agrícolas, artesanais ou de serviços, das relações de trabalho existentes,
sejam assalariadas, pré-capitalistas ou familiares e do maior ou menor
desenvolvimento tecnológico, temos a terra como elemento que perpassa e
dá unidade a todas essas relações, muito diferente do que acontece nas
cidades onde a importância econômica, social e espacial da terra é muito
mais reduzida. (2003, p. 29).

Percebemos que a premissa do autor assenta-se na particularidade que marca as


realidades urbana e rural. No entanto, pondera que para apreender o rural e o urbano de
forma ampla se torna necessário levar em consideração a “intensidade da
territorialidade”, no sentido de que o urbano apresenta relações globais mais
“descoladas do território”, enquanto que rural se fundamenta em uma territorialidade
mais intensa (ALENTEJANO,2003). Assim, ele conjectura que para se falar de um
“novo mundo rural” cabe extrapolar a visão dicotômica do rural-urbano. E,
principalmente, se funda na construção de uma territorialização de serviços e atividades
urbanos no espaço rural. Entretanto, o cerne do desafio para se atingir esse “novo
mundo rural” encontra-se na realização da reforma agrária, pois permitiria a “[...]
construção de uma nova sociedade pautada pela solidariedade, a cooperação e o bem
estar coletivo. Enfim, seja a base para a revalorização democrática do rural brasileiro”
(ALENTEJANO,2003, p.39).
No bojo das discussões sobre as relações campo-cidade Biazzo (2007) realiza um
ensaio interpretativo, no qual apresenta uma análise a partir de vários autores e se
dedica a elucidar a diferença no uso das categorias rural e urbano com o intuito de
definir-lhe um sentido. Dessa forma, destacamos a perspectiva que o autor apresenta ao
considerar que campo e cidade se apresentam como formas, e ruralidades e urbanidades
se constituem em conteúdos fruto de construções sociais. Assim,
Campo e cidade são, portanto, materialidades. Concretizam-se como
paisagens contrastantes. Ruralidades e urbanidades são racionalidades ou
lógicas. Manifestam-se por meio de nossos atos, através das práticas sociais.
Na esfera dos sujeitos, são conteúdos incorporados no curso da vida. Na
esfera das instituições ou agentes coletivos, são ora incorporados, ora
herdados. De qualquer modo, são representações provenientes de diferentes
universos simbólicos, reproduzidos por cada indivíduo em seu convívio
social. (BIAZZO, 2007, p.17).

Nesse sentido, as ruralidades e urbanidades se fazem presentes de forma


imbricadas em diferentes escalas (micro, meso ou macro região), particularmente se

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combinam nas práticas socais, portanto o autor argumenta a tese de abandonar a


amarração entre espaço rural ou espaço urbano em prol das categorias ruralidades e
urbanidades, uma vez que acredita que as respectivas categorias assumem conteúdo
analítico, pois estão imbuídas de identidades sociais (BIAZZO, 2007).
Observamos, a partir da reflexão teórica sobre os debates em torno das relações
campo-cidade realizada acima, que os pesquisadores buscam interpretações teóricas
para se compreender a complexidade que se apresenta às relações campo-cidade na
atualidade. Dessa forma, consideramos que não é mais possível analisar o espaço rural
apenas pautado no agrícola, no momento que se desenvolve um conjunto de atividades
não voltadas simplesmente para o agropecuário, como a prestação de serviços, envolto
em ocupações como, por exemplo, o turismo rural ou ecológico, comércio e indústria,
no caso do nosso objeto de estudo os serviços domésticos presentes nas chácaras de
lazer, ou seja, é necessário se pensar nos atores sociais diferenciados que se encontram
no espaço rural atualmente. É interessante salientarmos que muitas pessoas utilizam-se
dos novos usos do solo nas áreas rurais, mas não percebem o processo de transformação
que o alterou, o qual recriou e criou um espaço visando uma finalidade diferenciada da
produção agropecuária, ou seja, as pessoas que usufruem dessa reorganização espacial
não possuem consciência da sua forma anterior.
Nesse sentido, destacamos que a proposta teórica na qual se alicerça a presente
pesquisa pauta-se na visão da reorganização socioespacial e diz respeito ao que está
sendo designado de “Novo Rural Brasileiro”, e que se constitui em atividades como:
ecoturismo, chácaras para lazer, loteamentos residenciais, restaurantes ecológicos, entre
muitas outras atividades (GRAZIANO DA SILVA, 1999). Essas atividades imprimem
um novo sentido ao espaço rural, particularmente aos atores sociais envolvidos nesse
processo.
Podemos dizer que, atualmente, o rural tornou-se flexível, abrigando tanto
atividades não agrícolas como se dedicando às atividades agropecuárias. No momento
em que as atividades não agrícolas são desencadeadas no espaço rural, ocorre um
interesse por elas, não somente por parte de participantes de atividade de lazer, mas
também de agentes que farão, desse espaço, um instrumento de utilidade pública. Esse
termo é empregado não no sentido de que a propriedade será do Estado, mas quer dizer,
que, onde o Governo vê possibilidades de obter recurso, investe, nem sempre em infra-

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estrutura, como gostaríamos, mas em mudanças de legislação para beneficiar-se por


meio da cobrança de impostos, como IPTU, por exemplo. Esse ponto será abordado em
nosso estudo, no intuito de mostrarmos as várias interfaces do “novo rural brasileiro”.
A presente investigação tem como foco central de estudo as chácaras para lazer,
na tentativa de verificar possíveis possibilidades apresentadas por essa forma de
ocupação do espaço para os problemas ambientais, visando analisar suas vantagens
como: unidade de lazer; potencialidade de oferta de emprego à população local e como
unidade de produção voltada a produtos da fruticultura e horticultura. Esse último ponto
pode se constituir em um mecanismo no processo de preservação ambiental.
Destacamos que o objeto central do estudo, as chácaras de lazer, tem como recorte
espacial a área denominada Recanto Santa Andréa, loteamento de chácaras localizado
no município de Cambé – PR. Este loteamento é composto por 95 chácaras, as quais
são voltadas para fins de segunda moradia e lazer. Essa área, antes localizada no espaço
rural, pois é fruto de uma única propriedade agrícola, adquiriu uma nova classificação,
segundo a legislação do município de Cambé, passando a ser considerada urbana, com a
implantação do loteamento, fato ocorrido no ano de 1980. Para atingir o objetivo da
pesquisa utilizamos como procedimento metodológico a realização de trabalhos de
campo via coleta de dados mediante entrevistas semi-estruturadas, pois, estas
possibilitaram registrar observações qualitativas sobre a paisagem e o perfil dos
entrevistados, favorecendo uma complementação dos dados secundários (estatísticos).
Ressaltamos, que realizamos um levantamento bibliográfico, o qual nos proporcionou
embasamento teórico para prosseguirmos e efetivarmos nosso trabalho de investigação.
Este artigo apresenta uma introdução, na qual se voltou para uma reflexão sobre os
debates em torno das relações campo-cidade com escopo de deixar clara a postura
teórica que norteou a presente investigação. Após essa reflexão voltamos à análise para
a discussão sobre as chácaras para lazer como um componente do novo uso do espaço
rural brasileiro. A partir dessa análise trabalharemos os aspectos gerais do município de
Cambé, com o intuito de adentrar no recorte espacial da nossa pesquisa, o Recanto
Santa Andréa, no qual apresentaremos a análise dos dados obtidos na investigação
empírica com o objetivo de explanar a organização socioespacial da área em foco.

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Chácaras para lazer: um componente do “novo rural brasileiro”

As questões relacionadas a estrutura fundiária no Brasil ainda hoje são foco de


discussões e debates. No sentido de que ouvimos falar em reforma agrária,
modernização do espaço rural, êxodo dos trabalhadores do campo para as cidades, falta
de estrutura no campo e percebemos que nada foi realmente resolvido, ou seja, na falta
de soluções por parte do Governo, alguns agricultores buscam novas formas de superar
as dificuldades. Muitos lugares já apresentam uma estrutura mais bem organizada, como
é caso das cooperativas, onde, num trabalho integrado, os cooperados buscam uma
melhor produção, num sistema de agricultura familiar. Destacamos que nessa pesquisa
compreendemos a agricultura familiar como “o resultado do trabalho de um grupo de
pessoas unidas por laços de sangue na busca de manter sua existência” (ANTONELLO,
2001, p.39). Esse sistema familiar desenvolve varias produções como: apicultura,
floricultura, horticultura, sericicultura, pecuária leiteria entre outras, como forma de
atividade principal ou complemento de renda na tentativa de garantir a compra de sua
produção pelas cooperativas por um preço negociável.
Em contrapartida, sabemos que, em muitos lugares, o espaço rural continua sendo
motivo de conflitos, como é o caso das lutas dos sem-terra pela reforma agrária, ou
mesmo dos que já possuem sua terra, mas que passam por dificuldades, como falta de
incentivos para desenvolver suas lavouras, problemas com acidez no solo, a falta de
irrigação, entre outras.
É pertinente ter essa visão de conjunto do espaço rural brasileiro, para que se
possa analisar como a modernização, no sentido da tecnologia implantada no campo e
do desenvolvimento de novas atividades estão fazendo deste espaço rural o que se
denomina, segundo Graziano da Silva (1999) o “Novo Rural Brasileiro”.
A procura por atividades ligadas ao turismo, às questões ecológicas, segunda
residência e ao lazer, multiplicam espaços destinados às chamadas chácaras de lazer,
desencadeando uma crescente valorização da terra. Tal fato se vincula à busca de alívio
do estresse das atividades diárias pela população que reside nas cidades, que tem
procurado lugares disponíveis para lazer. Nesse sentido, auxiliam no processo de
mudança do rural “tradicional”, que era caracterizado por desenvolver atividades

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eminentemente agrícolas passando então a esse “novo rural”, ou seja, um espaço que
assume novas finalidades e funções.
Existem, ainda, outras modalidades que estão fazendo do espaço rural instrumento
passível de grande valorização como é o caso da procura, por indústrias, de terrenos
localizados próximos de suas fontes de matéria-prima no intuito de diminuir seus custos
e ainda fugir dos congestionamentos e da poluição das cidades. Citamos esse fato
somente para deixar claro que outras atividades também estão modificando o rural
brasileiro, mas o tema central deste estudo serão as chácaras de lazer.
Podemos considerar que essas mudanças socioespaciais estão refletindo em outras
atividades, como por exemplo, no próprio trabalho das pessoas que estão residindo no
espaço rural atualmente. Pois o avanço nos meios de transporte permite que as pessoas
desloquem-se com mais facilidade. Dessa forma, muitos trabalhadores que antes se
dedicavam somente às atividades agrícolas, passaram a procurar, nas cidades, uma fonte
de renda para complementar seu orçamento. Nesse ponto sobressai-se a territorialização
dos CAIs que promovem a materialização da tecnificação do território, pois:
Nas áreas onde hoje a produção agropecuária se dá com importante
participação da ciência, da tecnologia e da informação, a paisagem bucólica
muito freqüentemente associada à vida no campo não é mais do que mera
lembrança, pois o meio natural e o meio técnico vêm sendo rapidamente
substituídos pelo “meio técnico-científico-informacional”. (ELIAS, 2002,
p.25).

Geralmente, esses empregos são buscados por membros da família, que passam a
constituir um grupo denominado de trabalhadores não-agrícolas que residem em
propriedades rurais. Portanto, proporcionam uma renda não-agrícola para a manutenção
do grupo familiar na unidade de produção agrícola, ou, em determinados casos, na
propriedade rural, no sentido de que a principal renda não advém das atividades
agropecuárias. Ocorre, ainda, a presença de trabalhadores sem-terra que trabalham,
tanto na agricultura, como nas atividades oferecidas no espaço urbano, obtendo renda
dupla e favorecendo seu orçamento. Essa renda dupla, tanto de trabalhos não-agrícolas
como agrícolas viabilizam a sobrevivência desses trabalhadores.
Nesse contexto, consideramos que o termo o “Novo Rural Brasileiro”,
particularmente em sua base teórica e metodológica proporciona apreender o processo
de mudanças que está acontecendo na atualidade no espaço rural, principalmente nas
áreas onde temos a territorialização do capital. O espaço rural mudou, é novo, no

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A interface entre a implantação de chácaras para lazer e a constituição do “novo rural124
brasileiro”

sentido de que novas ocupações estão acontecendo neste meio e é a partir delas que
daremos ênfase nas chácaras para lazer.
No caso do nosso recorte espacial de pesquisa as chácaras para lazer são pequenas
e médias unidades de terra entre 2.500 m² a 2 hectares (20.000 m²), não podendo
ultrapassar, portanto, o módulo rural (um módulo rural equivale a 12 hectares no
município de Cambé - PR). Normalmente, os proprietários dessas chácaras são pessoas
que moram nas cidades, pois, acreditam que, naquele espaço, terão um recanto para
aliviar o estresse diário, aumentando assim sua qualidade de vida e a de sua família.
As atividades desenvolvidas nessas chácaras são as mais diversas, desde a
horticultura, piscicultura, pequenas criações, até uso exclusivo como segunda moradia
de seus donos ou ainda como locação das mesmas para usos festivos. Todavia, as
atividades presentes nas chácaras de lazer, dependem da área onde as mesmas estão
localizadas, já que ao se encontrarem no espaço urbano, não podem, manter ali, por
exemplo, uma granja, fato que afetaria enormemente os vizinhos devido ao mau cheiro,
entre outros incômodos.
Quando as propriedades estão localizadas no espaço rural, a situação mostra-se
diferente. No espaço rural, as atividades a serem desenvolvidas têm uma amplitude
maior, visto que a área é apropriada para tal. Dependendo do tamanho das chácaras, os
proprietários constroem pesque-pagues ou mantêm pequenas culturas como flores,
hortas, criam coelhos, aves, entre outras atividades, as quais se voltam para “nichos de
mercado”, principalmente de produtos que não demandam grandes extensões de terra e
ao mesmo tempo, são valorizados. Há aqueles que fazem da sua chácara um
empreendimento, ao construir alguns chalés para locar para usos em finais de semana.
Dessa forma, o proprietário consegue retirar, de sua propriedade, dinheiro para mantê-
la, ou ainda, auferir lucro. Graziano da Silva e Vilarinho analisam este assunto do
seguinte modo:
O impacto da proliferação das chácaras de fim de semana tem sido notável
sobre a paisagem rural. Primeiro, contribuem para manter as áreas de
preservação/conservação do que restou da flora local e, muitas vezes, dão
início a um processo de reflorestamento, mesclando espécies exóticas e
nativas. Segundo, expulsam as “grandes culturas”, que, em geral, utilizam-se
de grandes quantidades de insumos químicos e de máquinas pesadas nas
periferias das cidades. Terceiro, dão novo uso as terras antes ocupadas com
pequena agricultura familiar, até mesmo assalariando antigos posseiros e
moradores do local como “caseiros”, jardineiros e outras práticas de
preservação e principalmente guarda do patrimônio aí imobilizado na
ausência dos proprietários. (GRAZIANO DA SILVA; DALE. 2000, p. 43).

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A interface entre a implantação de chácaras para lazer e a constituição do “novo rural125
brasileiro”

De acordo com os estudiosos citados acima, há um fator muito importante


embutido nesse novo uso do rural. As chácaras, a partir do momento em que passam a
existir, necessitam de mão-de-obra para que se mantenham bem estruturadas. Os
caseiros podem ser considerados trabalhadores importantes neste meio, pois, quase
sempre, necessita-se de ajuda para manter a limpeza e a segurança do lugar. Assim,
essas pessoas são contratadas para morar nas propriedades mediante diversos acordos
firmados com seus patrões como, por exemplo, ganharem uma cesta básica, um salário
mínimo e a moradia, em troca dos seus serviços. Esses caseiros, algumas vezes, podem
plantar em alguma parte das chácaras e extrair de lá complemento para sua alimentação.
Existe ainda, a possibilidade de esses caseiros poderem manter suas esposas ou filhos
durante um período nos afazeres da chácara, enquanto ele se dedica a outra atividade,
que pode ser um emprego na cidade. Essas relações constituem-se uma abertura de
obtenção de renda não agrícola no espaço rural.
A carência de empregos e de moradia na cidade faz com que, muitas vezes,
pessoas dirijam-se para o espaço rural, na busca de alternativas de ocupação. As
alternativas de postos de trabalho no espaço rural ocorrem principalmente pelo
desenvolvimento de atividades não agrícolas como: nas chácaras de lazer, pousadas,
hotéis, restaurantes, locais que necessitam de mão-de-obra para conservação de jardins,
piscinas, limpeza domiciliar, entre outras atividades. Esse redimensionamento das
ocupações é verificado em nível nacional, pois,
No plano nacional, o avanço das atividades não-agrícolas no meio rural vem
removendo o prévio predomínio exercido pelas atividades agrícolas quanto à
geração de empregos, pois no binômio 1996-1997 o total de pessoas com
empregos não-agrícolas perfez, aproximadamente, 51% do total da categoria
dos empregados com domicílio rural. (LAURENTI; GROSSI, 1999, p.48).

Ressaltamos que essa mudança de uso do solo vem se processando com a


implantação das chácaras e trouxe algumas vantagens para o meio ambiente, pois a
necessidade de um lugar com ar puro e belezas naturais é o principal atrativo desses
espaços. Nesse sentido, podemos dizer que as novas funções que se fazem presente no
espaço rural nacional proporcionam uma recuperação da flora e, dessa forma,
contrapõe-se com a degradação ambiental colocada em marcha com o processo de
modernização da agricultura brasileira, particularmente com a monocultura.

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A interface entre a implantação de chácaras para lazer e a constituição do “novo rural126
brasileiro”

Aspectos gerais do município de Cambé

Em primeiro lugar destacamos que o município de Cambé localiza-se na


Mesorregião Norte Central Paranaense, a qual abrange uma área de 2.453.216 hectares,
o que corresponde cerca de 12% do território estadual. Esta região faz fronteira, ao
norte, com São Paulo, pelo rio Paranapanema, e possui como principais divisas o rio
Tibagi, a leste, e o rio Ivaí, a oeste. É constituída por 79 municípios, dos quais se
destacam Londrina e Maringá, em função de suas dimensões populacionais e níveis de
polarização.
O espaço rural do estado do Paraná, a partir da década de 70 do século XX, foi
marcado pela introdução maciça, na agricultura, de avançadas tecnologias de cultivo,
mediante a substituição da cultura cafeeira pela produção de commodities (a soja,trigo e
milho) e ampliação das áreas de pastagens, e de alterações radicais nas relações de
trabalho, todos estes elementos altamente poupadores de mão-de-obra. Desse modo, a
região experimentou, rapidamente, um processo intenso de urbanização, estimulado
particularmente pelo êxodo rural. Entre 1970 e 1980, a população rural da Mesorregião
Norte Central decresceu a um ritmo expressivo. De modo que, de 1950 a 2000, a
população rural caiu de 64% para apenas 18,8%. Em contrapartida, a população urbana
cresceu de 36%, em 1950, para 81,2%, em 2000, o que acarretou alguns problemas nas
cidades que foram planejadas, no ato de sua implantação, para acomodar parcelas
menores de população. Esse fenômeno causou, além do avanço dos limites urbanos
sobre a rural: desemprego, falta de saneamento básico em conjuntos habitacionais mal
planejados ou mesmo em áreas invadidas pela população carente, dificuldades no acesso
a serviços médico-hospitalares, entre outros.
Se voltarmos o olhar para a Mesorregião Norte-Central, perceberemos que,
conforme dados apontados pelo IPARDES (2004), acompanhando o padrão médio do
Estado, até 1970 mais de 90% dos municípios da Mesorregião registravam proporções
superiores a 50% da população vivendo no espaço rural, índice reduzido em 2000, para
16,5% (29% no Estado). Por outro lado, em 2000, proporção idêntica de municípios
(16,5%) do Norte Central apresentava mais de 90% da população no espaço urbano –
enquanto que na totalidade do estado do Paraná essa proporção atingia apenas 9,3% –

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A interface entre a implantação de chácaras para lazer e a constituição do “novo rural127
brasileiro”

e mais de 40% dos municípios da Mesorregião apresentavam, naquele ano, graus de


urbanização entre 75% e 90%. Esse processo, além de ter provocado grande
transformação na distribuição geográfica da população, causou intensos impactos na
estrutura urbana e nas condições de gestão das cidades, que passaram a administrar um
abrupto crescimento das demandas. Alguns dos municípios da Mesorregião situam-se,
desde os anos 70, entre aqueles que vêm crescendo mais do que a média do Estado
como: Londrina, Maringá, Cambé, Arapongas, Ibiporã, Paiçandu e Sarandi, desde 1980.
No caso específico de Cambé (Mapa 1) o mesmo compreende uma extensão de
495 Km, sendo que 25Km² compõem o espaço urbano e conta atualmente com uma
população estimada de 88.186 habitantes (IBGE,2000). O município se mostra
atualmente como uma cidade que se fortalece no ramo industrial, visto que alguns
incentivos são oferecidos aos empresários para que tragam, para o município, suas
indústrias. O comércio e a prestação de serviço, também estão presentes. Salientamos
que o município de Cambé tem como atividade forte a agricultura, visto que o seu
espaço rural é bem abastado, no sentido que as principais culturas são a soja, o café e
milho, isto é, produtos próprios do agronégocio. Cabe salientarmos que os pontos
fundamentais que caracterizam o agronégocio são: grandes estabelecimentos
agropecuários, presença de tecnologia na base produtiva, utilização mínima de trabalho
humano (GIRARDI; FERNANDES, 2005). Nesse sentido, percebemos a força de
atuação do agronégocio no espaço rural norte paranaense mediante o deslocamento
populacional sentido rural-urbano. Nesse contexto, o município de Cambé sofreu um
dinamismo da reorganização espacial vinculado diretamente ao processo de
reestruturação produtiva agropecuária e da indústria, pois esse processo conforme Elias
e Pequeno (2005) difunde um novo modelo econômico de produção agropecuária, o
qual eles denominam de “agricultura científica”. Nas palavras dos autores:
Dentre as características da agricultura científica está sua forte integração á
economia urbana, desenvolvendo-se uma extensa gama de novas relações
campo-cidade, diluindo em parte, a clássica dicotomia entre estes dois
subespaços, construindo uma unidade dialética. As cidades próximas ás
áreas de realização da agricultura científica tornam-se responsáveis pelo
suprimento de suas principais demandas, seja de mão-de-obra, de recurso
financeiros, aportes jurídicos, de insumos, de máquinas, de assistência
técnica etc, aumentando a economia urbana e promovendo redefinições
regionais (ELIAS;PEQUENO, 2005, p.15-16, grifo dos autores).

A partir da análise de Elias e Pequeno (2005) podemos afirmar que a cidade de


Cambé assume o papel de “cidade do agronégocio”, no momento que as transformações

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A interface entre a implantação de chácaras para lazer e a constituição do “novo rural128
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na organização socioespacial do município encontram-se diretamente vinculadas a


territorialização do agronégocio.

Mapa 1 – Localização do Município de Cambé


Fonte: Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Hídricos, 2005.

Destacamos que como nossa área de estudo, o loteamento denominado Santa


Andréa localiza-se na área urbana da cidade de Cambé, exporemos, a seguir a Tabela 1,
para compreendermos como se efetivou a redistribuição da população rural e urbana
entre 1970-2000 e para que se possa visualizar o que ocorreu no município durante estas
três décadas fruto da sedimentação da reestruturação produtiva agropecuária. Nosso
objetivo é entender o deslocamento da população da área rural para urbana durante esse
recorte temporal para estabelecer uma correlação com a área de estudo.

Tabela 1 – Distribuição da População segundo a situação do domicílio Município de


Cambe 1970 -2000
Município Cambé População Urbana População Rural
% % Total
Ano Absoluta absoluta
1970 13.510 37,92 22.111 62,08 35.621
1980 44.814 83,19 9.054 16,81 53.868
19911 66.817 90,40 7.025 9,60 73.842
2000 81.942 92,92 6.244 7,08 88.186
Fonte: Anuário Estatístico Paraná 1978/1982. Censo Demográfico IBGE – 1991/2000.

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A interface entre a implantação de chácaras para lazer e a constituição do “novo rural129
brasileiro”

Os dados demonstram claramente o êxodo rural que ocorreu no município de


Cambé nos períodos assinalados acima, principalmente na década 70 para 80 do século
passado. Houve uma inversão, e o que antes era eminentemente rural, tornou-se urbano.
No início da década de oitenta, nossa área de estudo foi declarada como zona urbana,
confirmando, mais uma vez, que, nessa época, o rural passou por transformações
socioespaciais intensas.
Podemos dizer que o município de Cambé sofreu mudanças significativas em
relação ao crescimento populacional ao ganhar, entre 1970 e 2000, 52.565 habitantes, os
quais não são oriundos simplesmente do crescimento vegetativo populacional, mas se
vinculam à própria dinâmica de desenvolvimento do norte do Paraná, particularmente
ao processo de urbanização e “periferização induzida” comandado pela cidade de
Londrina, vale salientarmos que o município de Cambé compõe a Região
Metropolitana de Londrina. Nesse processo, insere-se a criação do Loteamento Recanto
Santa Andréa (LRSA), nosso recorte espacial de estudo, bem como o avanço de
conjuntos habitacionais destinados à população do município de Londrina, localizados
nas áreas limites entre este município e Cambé. Dessa forma, o processo de
“periferização induzida” pode aclarar a causa do crescimento da população urbana de
Cambé, que, de um município predominantemente rural, na década de 70, quando
possuía 62,08% da sua população no espaço rural, chegou, em 2000, com 92,92% da
população localizada no espaço urbano.
Entretanto, neste ponto cabe realizarmos uma pequena discussão sobre os critérios
de delimitação do espaço urbano e rural. Principalmente, em função das diferentes
metodologias adotadas em cada país. Em muitos países, o critério utilizado para
determinar se uma área é urbana ou rural diz respeito ao número de pessoas que residem
no lugar analisado. Por exemplo, nos EUA é considerada “população rural a que não
reside em aglomerado com mais de 10 mil habitantes ou nos limites externos de uma
cidade de mais de 50 mil habitantes, com densidade populacional inferior a 100
habitantes por milha quadrada” (WANDERLEY,1994, apud GRAZIANO DA SILVA;
GROSSI, 2000, p. 9).
Outro critério utilizado para delimitar áreas como urbana ou rural é o do peso
econômico na ocupação de mão-de-obra da agricultura, como diz Abramovay (2000)
sobre Israel, ou seja, nesse país são urbanas as localidades onde 2/3 dos chefes de

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A interface entre a implantação de chácaras para lazer e a constituição do “novo rural130
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família exercem ocupações não-agrícolas. No Chile, além do patamar populacional


(1.500 habitantes), a localidade rural deve ter menos de 50% de seus habitantes
ocupados em atividades não agrícolas.
No Brasil o IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística criou sua
categoria de delimitação, segundo a localização geográfica definida pela legislação
municipal vigente na data da coleta, portanto, são as leis dos municípios que demarcam
o que é urbano e o que é rural. Nesse sentido, o IBGE salienta:
Na situação urbana, consideram-se as pessoas e os domicílios recenseados
nas áreas urbanizadas ou não, correspondentes às cidades (sedes municipais),
às vilas (sedes distritais) ou às áreas rurais isoladas. A situação rural abrange
a população e os domicílios recenseados em toda a área situada fora desses
limites, inclusive os aglomerados rurais de extensão urbana, os povoados e os
núcleos. (1998, apud GRAZIANO DA SILVA; GROSSI, 2000, p. 10)

A delimitação do espaço rural e urbano envolve diretamente as prefeituras, as


quais necessitam de renda para garantir que o orçamento mensal ou mesmo anual
consiga manter seus compromissos com a população no caso do atendimento à saúde,
educação, luz, asfalto, entre outros. Essa receita provém, principalmente, do IPTU
(Imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana) que é cobrado dos donos dos
imóveis em área urbana e remetidos à prefeitura, enquanto que o ITR (Imposto
Territorial Rural) é um imposto Federal. Portanto, é possível entender porque, muitas
vezes, a prefeitura estende a faixa que compreende a área urbana para muitas áreas que
deveriam constar como rurais, pois, visam, o aumento do recolhimento das taxas do
IPTU para, assim, gerar mais receita.
Tal situação ocorreu na área de estudo, pois com a implantação do Loteamento
Recanto Santa Andréa, a prefeitura efetivou a mudança do perímetro urbano do
município de Cambé. Consideremos que se essa transformação, automaticamente,
garantisse à população desses locais a implantação de infra-estrutura tal qual aos centros
urbanos e saneamento básico, tal classificação teria significado para a população que
passa a arcar com este imposto, mas não é isto que, de um modo geral, ocorre. Portanto,
observamos que a discussão sobre a questão dos critérios sobre as delimitações deverá
ficar mais clara para a população municipal para que seja possível a esta reivindicar seu
direito em prol do bem-estar social.

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Recorte espacial da pesquisa: Recanto Santa Andréa

O histórico do loteamento foi feito mediante a técnica de pesquisa de memória-


viva com o Sr. Odorício Onofre, o qual era proprietário da área onde hoje está
localizado o loteamento de chácaras. Foi necessário trabalhar dessa forma por
inexistirem dados em referência ao lugar tomado como recorte espacial de estudo.
Salientamos que a propriedade anteriormente se dedicava à produção leiteira e de grãos,
contudo em decorrência das fortes geadas que ocorreram na região na década de setenta,
bem com a concorrência com uma grande empresa na área de pecuária leiteira, o Sr.
Odorício Onofre, no início dos anos oitenta, trocou suas atividades pelo planejamento
do loteamento seduzido em grande parte por um amigo do setor imobiliário. Todavia,
ele pouco ganhou com isso em virtude de ter sido ludibriado por seu colega e os lotes
terem sido vendidos a preços muito maiores que o que era de seu conhecimento.
Atualmente, o loteamento está valorizado e um lote custa em torno de R$ 70.000,00
sem nenhuma benfeitoria.
Destacamos que a presente análise pauta-se na pesquisa empírica realizada junto
aos proprietários das chácaras para lazer e os caseiros e/ou jardineiros, funcionários que
cooperavam na manutenção das mesmas, as entrevistas foram realizadas entre
10/05/2005 a 20/07/2005. Entrevistamos, no total 24 pessoas, sendo 14 proprietários de
chácaras e 10 caseiros, os quais contribuíram enormemente com nosso estudo.
Com base nas respostas que obtivemos, conseguimos perceber certa
homogeneidade entre as falas dos proprietários das chácaras, pois muitos deles são
donos dos lotes há bastante tempo. Dos 14 proprietários entrevistados, apenas 2
adquiriram as chácaras a menos de 5 anos. Esse referencial é importante, pois, esse fato
indica que os mesmos vivenciaram o processo de reorganização espacial da área de
investigação. Assim, esses proprietários adquiriram as chácaras a partir da década de 90,
do século XX.
Salientamos que o ponto valorização do espaço materializado nas chácaras foi
ressaltado pelos proprietários, por exemplo, um dos entrevistados colocou que pagou
por um lote de 5.000 m.² o valor de R$ 14.000,00 sendo que o pagamento foi feito em
14 vezes de R$ 1.000,00, isso ocorreu no ano de 1998. Esse proprietário é um
empresário residente na cidade de Londrina, o qual utiliza sua chácara para lazer nos

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finais de semana. Outro proprietário afirmou que comprou sua chácara, também de
5.000 m.², no ano de 1998, num leilão, e pagou a quantia de R$ 8.000,00 mais uma
dívida de IPTU no valor de R$ 1.200,00, ou seja, a chácara saiu por um valor de R$
9.200,00. Esse proprietário pode aproveitar-se da valorização ocorrida na área, pois em
1999 vendeu-a para um conhecido pelo valor de R$ 35.000,00 após ter realizado como
benfeitoria apenas muro ao redor do lote. Podemos observar a valorização do espaço
dessa chácara em 79,19% do valor original, ocorrido durante o período de 1 ano no
Recanto Santa Andréa. Nesse período, ainda não existia asfalto, como atualmente, em
frente a essa chácara. Entretanto, esse ex-proprietário comprou-a novamente pelo valor
de R$ 38.000,00 e hoje construiu casa, piscina, pomar, entre outros, e disse que não a
vende por menos de R$ 200.000,00.
As outras entrevistas também nos proporcionaram uma visão da valorização
crescente das terras do loteamento, apesar de saber que atualmente quem adquire um
imóvel nesse loteamento já não faz um negócio tão bom como fizeram os proprietários
mais antigos. Acreditamos que o Loteamento, assim que foi liberado para venda, não se
mostrava como algo tão interessante como é hoje, pois foi nos anos de 1990 que se
consolidou como estilo de vida, o afastamento da cidade para obter qualidade de vida,
bem-estar e lazer.
O loteamento Recanto Santa Andréa, segundo o Sr. Odorício Onofre foi quase
totalmente vendido para pessoas que residiam em Londrina, cerca de 70% dos
proprietários eram londrinenses. Hoje, o que percebemos diante das entrevistas, é que a
maioria dos entrevistados reside em Cambé. Podemos explicar este fato por existir hoje,
no município de Londrina locais que podem ser adquiridos para fins de lazer, sendo
desnecessário adquirir um lote em outro município. Esse fenômeno começa a
disseminar-se, principalmente na década de noventa em diante, tendo em vista o
aumento expressivo da procura de moradias ou chácaras para lazer em lugares retirados
da cidade, que ofereçam paz e tranqüilidade, a fim de aliviar tensões e os desgastes
causados pelas atividades citadinas.
Os agentes imobiliários, percebendo essa necessidade, iniciaram uma estratégia de
marketing para atrair cada vez mais compradores para esses lotes, tanto em
condomínios fechados como em chácaras para lazer. Podemos considerar que esses
empreendimentos imobiliários voltam-se para pessoas com poder econômico elevado,

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A interface entre a implantação de chácaras para lazer e a constituição do “novo rural133
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os quais têm condições para poderem usufruir as potencialidades de lazer de uma


segunda residência cristalizada nas chácaras.
Outra abordagem que fizemos foi em relação à utilidade das chácaras, se são
usadas para lazer, moradia e ainda quanto aos investimentos e rendimentos que as
mesmas proporcionam. Observamos que, para a grande maioria dos entrevistados, as
chácaras são usadas para lazer ou segunda moradia. Somente dois entrevistados,
comerciantes da cidade de Cambé, moram nas chácaras e esses nos disseram que o
“espaço é tão maravilhoso que não compensa morar na cidade, e relataram ainda que
pelo valor do investimento o espaço precise ser mais bem aproveitado” (Trabalho de
campo, 2005).
A viabilidade econômica de manter as chácaras funcionando foi uma questão
bastante importante, pois um dos nossos objetivos, nessa pesquisa, é analisar a
viabilidade de se manter uma área, que traga ou não retorno financeiro,em boas
condições. Todos os entrevistados disseram que a viabilidade deve ser vista de duas
maneiras. Primeiro, para quem utiliza as chácaras somente para lazer, a situação é a de
que o dinheiro gasto naquele empreendimento não traz retorno financeiro algum, mas,
em contrapartida, alimenta a alma contra o estresse vivido no dia-a-dia. Outra situação é
a de que algumas chácaras são utilizadas como área de recreação para locação, onde
qualquer pessoa pode passar um dia ou até mesmo um final de semana, podendo
aproveitar da infra-estrutura oferecida por valores que giram em torno de R$ 250,00 ao
dia. Nessa situação, os cinco proprietários que alugam as chácaras disseram que os
custos para mantê-las são altos e o lucro é reduzido, contudo, ao mesmo tempo podem
usufruir o lazer da área. Assim, temos no loteamento, entre as chácaras, cujos
proprietários foram entrevistados, as seguintes situações: somente a utilizam para lazer,
lazer e aluguel ou lazer e moradia.
O outro foco da pesquisa voltou-se para os trabalhadores presentes nas chácaras,
os denominados caseiros. Esses profissionais têm como características principais, a
prestação de serviços de jardinagem, limpeza de piscina, pequenos consertos, entre
outras atividades. Para que seja possível essa prestação de serviço, esse profissional
estabelece um acordo com o dono da chácara visando atender as duas partes envolvidas.
Normalmente, o que se estabelece é a cessão de uma casa e de um espaço para cultivo
de horta e frutas, além de energia elétrica para o caseiro e sua família. Algumas vezes é

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estabelecido um salário que gira em torno de R$ 250,00 a R$ 300,00 (2005), mais uma
cesta básica, mas isso depende do acordo estabelecido. Campanhola e Graziano da
Silva (2004, p. 181) apontam no estudo realizado sobre os caseiros de Vinhedo-SP, que
é possível constatar uma diversidade muito grande, em termos de salário, além das
exigências dos patrões em relação às atividades que serão desenvolvidas pelos caseiros
nas chácaras. Tal fato foi constatado na nossa investigação, no sentido que não ocorre
uma homogeneidade nos acordos entre os caseiros e os proprietários das chácaras.
Dessa forma, com intuito de apreender a experiências e as condições de
existências desses profissionais, entrevistamos 10 caseiros que prestam serviços no
loteamento. Nossa primeira questão para os caseiros foi em referência à origem dos
mesmos, tendo em vista o objetivo de saber de onde vieram e por quais motivos. Dos
10 entrevistados, 8 disseram ter vindo de cidades vizinhas de Cambé como: Jataizinho,
Porecatu, Rolândia e Londrina. Ao entrevistarmos esses caseiros, que na verdade são 8
caseiros e 2 caseiras, percebemos que todos nasceram no espaço rural e que alguns
moraram na cidade, sendo que as atividades que já exerceram foram: pedreiro, diarista,
marceneiro e auxiliar geral. A dificuldade em conseguir um trabalho rentável existe
devido à falta de capacitação, ou seja, essas pessoas freqüentaram poucas séries
escolares, sendo que, apenas 2 conseguiram concluir o ensino fundamental. A opção por
trabalharem como caseiros reflete o pensamento dos mesmos que disseram ser esta
profissão um trabalho que não necessita de alta capacitação e, por isso, eles não
procuram a escola novamente, alguns por falta de oportunidade. Sendo assim, os
caseiros vêem nas chácaras, em que trabalham, a alternativa de manter o emprego
estável, além, de ter como garantia a moradia para ele e sua família. Campanhola e
Graziano (2004,p.180) confirmam essa visão quando apontam que
Ser caseiro pode ser considerado apenas uma atividade transitória para
alguns, há um número significativo de entrevistados para os quais a profissão
de caseiro é considerada alternativa mais viável de emprego e não existe
muita perspectiva em abandoná-la.

Na ótica dos caseiros que entrevistamos, as atividades que exercem são muito
importantes como um deles ressaltou: “se não fosse nós, os patrão não teria a casa
limpa, a piscina cuidada, a grama cortada. Eu acho que nosso trabalho é importante
sim, mais até que o de doméstica que a mulher faz pra eles, porque lavar louça não

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deixa um ambiente bonito como o jardim tando bem cuidado”(Trabalho de campo,


2005).
A partir da pesquisa com os trabalhadores que encontram nas chácaras as suas
ocupações, é possível constatar que a totalidade das famílias que sobrevivem dessa
atividade corresponde ao conjunto de 60 pessoas, o que demonstra a importância da
presença de novos usos da terra no espaço rural, ou, como no caso do nosso estudo, uma
área de transição entre o centro urbano e o rural do município de Cambé. Ressaltamos
que são exatamente nessas “novas ocupações” geradas no espaço rural que vários
teóricos acreditam ser uma alternativa para se manter a população nesse espaço. Essa
afirmativa pode ser observada num estudo realizado por Graziano da Silva e Grossi
(2000, p.2) sobre o espaço rural brasileiro, ao colocarem que
[...] o que segurou gente no campo brasileiro não foram as atividades
agropecuárias “strictu sensu”, mas sim as ocupações não-agrícolas. Cerca de
um milhão de pessoas residentes em áreas rurais encontraram em ocupações
diversas de atividades não-agrícolas, novos postos de trabalho entre 1981 e
1997.

Uma outra questão refere-se aos filhos pequenos que muitos caseiros possuem.
Para as crianças, a prefeitura disponibiliza o transporte das mesmas até a escola. Além
disso, a 500 metros do loteamento, existe um ponto de ônibus que faz a linha
Brastislava-Cambé e que auxilia os pais e os filhos caso queiram fazer cursos ou tenham
alguma atividade para desempenharem no centro da cidade. Um outro aspecto que
levantamos durante as entrevistas foi sobre cursos gratuitos que existem no bairro ao
lado do Recanto Santa Andréa. As atividades são de aeróbica e artesanato para
mulheres.
Durante nosso estudo, percebemos que esse loteamento de chácaras possui várias
relações, pois, além de opção para trabalho, são ambientes para descanso e reflexão.
Assim, finalizamos a investigação com a constatação de temos atingindo o escopo da
pesquisa ao realizar uma análise das relações sociais e espaciais que compõem o
Loteamento Recanto Santa Andréa.

Considerações Finais

CAMPO-TERRITÓRIO: revista de geografia agrária, v.4, n. 7, p. 112-139, fev. 2009.


A interface entre a implantação de chácaras para lazer e a constituição do “novo rural136
brasileiro”

O empenho que é posto diante de uma pesquisa faz com que o pesquisador sinta
que está realizando um esforço para compreender o que lhe incomodou em algum
momento em relação ao objeto de estudo proposto. Foi nessa perspectiva que
trabalhamos, empenhando-nos ao máximo, para compreender as mudanças
socioespaciais ocorridas no espaço rural que se transformou no Loteamento Recanto
Santa Andréa e, automaticamente em espaço urbano pela prefeitura. Nesse contexto,
acreditamos que as mudanças foram significativas, tanto ao ver dos caseiros, como dos
proprietários das chácaras, em relação às mudanças na infra-estrutura geral do
loteamento, bem como da valorização espacial da área.
Salientamos a importância da pesquisa com os caseiros, pois estes, na maioria das
vezes nos trouxeram informações sobre a realidade do loteamento, no sentido que a
vivência deles é diária naquele espaço, diferentemente dos proprietários que não
residem nas chácaras. Para as pessoas que obtém uma ocupação nas chácaras, no caso
os caseiros, as mesmas representam uma alternativa de sobrevivência em atividades
agrícolas e não-agrícolas, pois identificamos no loteamento Recanto Santa Andréa, que
os caseiros tanto trabalham nas chácaras, como na cidade, os quais se constituem
trabalhadores polivantes, no sentido que assumem diferentes atividades tanto agrícolas
como não agrícolas.
Quanto à satisfação, em relação ao empreendimento chácaras para lazer, os
proprietários entrevistados salientaram que não existe “lugar melhor” para passar
momentos agradáveis com seus amigos e familiares, mesmo que os custos sejam altos,
além de outros fatores, como falta de segurança e ausência de infra-estrutura. Sendo
assim, percebemos que mais que um lote, esse espaço criou referências pessoais com
seus proprietários, e a partir disso, surgiu o vínculo e o sentimento de pertencimento em
relação ao lugar.
Em relação ao setor imobiliário, podemos dizer que é um segmento que está em
incessante procura por áreas que possam tornar-se objeto de consumo, ou seja, procura-
se por terras afastadas dos centros urbanos, constrói-se uma infra-estrutura, a qual é
capaz de atrair muitos compradores com a promessa de obter um espaço totalmente
seguro, com muito verde, que auxilie no alívio das tensões diárias, entre outras. As
pessoas, seduzidas pelo anúncio, acabam adquirindo esses lotes a fim de destinar-lhes
ao lazer familiar.

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A interface entre a implantação de chácaras para lazer e a constituição do “novo rural137
brasileiro”

Consideramos que as mudanças que o espaço rural brasileiro vem passando nas
últimas décadas podem ser analisadas a partir da presença das chácaras para lazer, as
quais são apenas uma categoria na interface das transformações socioespacial rural, mas
muitas outras dão um novo tom ao rural, como o turismo rural, hotéis fazenda, pesque-
pagues, entre outros, o que torna as relações campo-cidade mais complexas no sentido
da presença de diferentes atores sociais nesse espaço. Dessa forma, cabe aos
pesquisadores o desafio de estudá-la com um olhar que extrapole a dicotomia rural-
urbano na busca abarcá-la na sua unidade dialética.

Notas
________________________
1
No ano de 1990 não foi realizado o Censo Demográfico no Brasil, por isso utilizamos os dados do ano
de 1991

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