Um Ocidente Sequestrado - Milan Kundera

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Sumário

Capa
Folha de rosto
Sumário
Introdução — Jacques Rupnik
A literatura e as nações pequenas — Discurso ao Congresso dos
Escritores Tchecos (1967)

Apresentação — Pierre Nora

um ocidente sequestrado: ou a tragédia da europa


central (1983)

Sobre o autor
Lista de obras
Notas
Créditos
Introdução
Jacques Rupnik
Há congressos mais importantes, ou ao menos mais memoráveis,
que os do Partido. Na Tchecoslováquia comunista eles eram
frequentes e parecidos entre si. Os congressos de escritores podiam ser
imprevisíveis e por vezes eram o prenúncio de mudanças profundas na
relação entre o poder e a sociedade.
Há também discursos que marcam uma época e cuja releitura hoje
ressoa de um jeito singular. Pensemos na denúncia de censura que
Alexander Soljenítsin faz a Moscou em maio de 1967 e que inspira
uma bela canção de Guy Béart: “Le poète a dit la vérité, il doit être
exécuté…”.1 São menos conhecidos os discursos impressionantes
proferidos em Praga um mês depois no Congresso dos Escritores, a
começar por este de Milan Kundera.
Milan Kundera era então um escritor de sucesso: no teatro, com Les
Propriétaires des clés [Os donos das chaves] (1962), com a coletânea
de contos Amores risíveis (1963 e 1965) e sobretudo A brincadeira,
romance publicado em 1967 (na época do Congresso dos Escritores)
que evoca e encerra uma época e que, para os leitores tchecos, mas
não só para eles, segue associado à Primavera de 1968. Kundera era
professor da Escola de Cinema e tv (Famu, na sigla original) e se
tornou figura proeminente de uma expansão formidável da produção
cultural, de originalidade e diversidade excepcionais, tanto na
literatura (Bohumil Hrabal, Josef Škvorecký, Ludvík Vaculík…) como
no teatro (Václav Havel, Josef Topol…) e sobretudo na nouvelle vague
do cinema (Forman, Passer, Menzel, Němec, Chytilová…). Ele
considerava — com razão — os anos 1960 uma “época de ouro” da
cultura tcheca, que se desvencilha progressivamente das restrições
ideológicas do regime sem se submeter às do mercado. Nessa
perspectiva, a Primavera de Praga de 1968 não se limita à dimensão
política e deve ser de fato entendida como apogeu de uma década em
que o jornal semanal dos escritores, Literární noviny [Jornal literário],
é publicado com tiragem de 250 mil exemplares, todos vendidos no
mesmo dia — uma década em que a emancipação da cultura acelera a
desintegração da estrutura política.
Avaliando o perigo, o poder instituído tenta então retomar o
controle da situação, e o Congresso dos Escritores de junho de 1967 se
torna o palco dessa queda de braço entre os escritores e o poder, cujas
premissas vinham da conferência de Liblice de 1963, dedicada a Franz
Kafka, um sepultamento simbólico do “realismo socialista”. Quarenta
anos depois, a obra do escritor judeu, de Praga, de língua alemã, a
começar por O processo, ganhava outro realismo aos olhos dos
leitores tchecos, mais perigoso para o ocupante do Castelo, Antonín
Novotný, o chefe do Partido e do Estado.
O Congresso dos Escritores de 1967 teve muitos pontos altos. A
começar pelo discurso do escritor Pavel Kohout criticando a política
anti-israelense do bloco soviético na Guerra dos Seis Dias, antes de ler
a famosa carta de Soljenítsin para a União dos Escritores Soviéticos.
Isso foi demais para Kiri Hendrych, o guardião da ortodoxia
ideológica que dirigia o Partido; ele abandonou a sala e, ao passar por
trás da tribuna onde estavam Kundera, Procházka e Lustig, lançou-
lhes o inesquecível “Vocês perderam tudo, tudo mesmo!”. No dia
seguinte, foi a vez de Ludvík Vaculík, autor de Sekyra [O machado] e
membro da redação de Literární noviny, revoltado com a proposta de
Hendrych, de passar de todos os limites considerados aceitáveis
abordando sem rodeios a questão de fundo: o confisco do poder por
“um punhado de pessoas que quer tomar todas as decisões”,
criticando assim a censura e até mesmo a Constituição. A ruptura
estava consumada.
A história política recordará, naturalmente, do conflito explícito
entre os escritores e o poder; a derrota provisória dos primeiros no
verão de 1967; depois sua vitória (também provisória) na primavera
de 1968. A história das ideias recordará especificamente do discurso
de abertura de Milan Kundera. Como seus colegas, ele aborda a
censura, mas trata do tema da liberdade de criação por outro viés.
Adotando uma perspectiva histórica, Kundera se questiona a respeito
do destino da nação tcheca, cuja própria existência “não está dada” —
diante das elites dizimadas após a Batalha da Montanha Branca
(1620) e de dois séculos de germanização —, e volta à questão
provocadora formulada no fim do século xix pelo escritor Hubert
Gordon Schauer: valia mesmo a pena investir tantos esforços para
devolver aos tchecos uma língua dotada de alta cultura? Não seria
preferível fundir-se à cultura alemã, então mais desenvolvida e
influente? Quase um século depois, Kundera retoma a questão de
maneira retórica e oferece sua resposta: isso se justifica apenas por
uma contribuição original à cultura e aos valores europeus; dito de
outra forma, o universal pelo particular. A vitalidade da cultura tcheca
dos anos 1960 parece justificar tal ambição ou aposta. Pois essa
expansão da cultura, da qual depende a existência da nação, tem
como condição a liberdade. Quem defende a autonomia da cultura e a
liberdade de pensamento se torna uma ameaça aos ideólogos censores,
que Kundera chama de “vândalos”. Libertar a cultura das garras do
poder assume manifestamente uma dimensão política.
Mas a questão abordada por Kundera em 1967 também ressoa de
modo assustadoramente contemporâneo quando ele antecipa outra
dimensão: o futuro das nações pequenas nas “vastas perspectivas
integracionistas que se abriram na segunda metade do século xx”.
“Corre-se o risco de incorporar todas as nações pequenas no
processo de integração, as quais têm como defesa apenas o vigor de
sua cultura, a personalidade e as características inimitáveis de sua
contribuição.”2 Conter a “pressão não violenta desse processo de
integração nos séculos xx e xxi” se revelaria muito mais difícil que a
resistência outrora oferecida à germanização.
Assim, a interrogação sobre a especificidade do lugar da cultura
tcheca se desdobra na reflexão de Kundera sobre o futuro das nações
pequenas da Europa Central e antecipa, em determinados aspectos,
seus dilemas em uma Europa em globalização. Esse é também o ponto
de contato entre o discurso de Kundera no Congresso dos Escritores
de 1967 e o ensaio “Um Ocidente sequestrado: Ou a tragédia da
Europa Central”, publicado em 1983 em Le Débat.
a literatura e as nações pequenas
Discurso ao Congresso dos Escritores Tchecos
(1967)
Caros amigos, ainda que nenhuma nação exista no planeta Terra
desde os tempos imemoriais, e ainda que a própria ideia de nação seja
relativamente moderna, a maioria delas entende sua existência como
algo dado, um presente de Deus ou da Natureza que desde sempre
esteve aqui. Os povos são capazes de definir sua cultura, seu sistema
político e até suas fronteiras como criação própria, passível portanto
de questionamento ou problematização, enquanto consideram sua
existência como povo um fato isento de qualquer questionamento. A
história bem pouco feliz e descontínua da nação tcheca, que vivenciou
a antecâmara da morte, permitiu que ela própria não sucumbisse a
esse tipo de ilusão enganadora. A existência da nação tcheca nunca foi
entendida como algo dado, e é justamente o fato de ser algo não dado
um de seus atributos mais importantes.
Esse fenômeno se mostrou mais evidente no início do século xix,
quando um punhado de intelectuais tentou ressuscitar primeiro o
tcheco, essa língua quase esquecida, e depois, na geração seguinte, o
povo tcheco já em vias de extinção. Esse renascimento foi um gesto
deliberado e, como qualquer gesto, baseou-se em uma escolha entre
pró e contra. Ainda que tenham se inclinado em favor do “pró”, os
intelectuais oriundos do movimento de renovação nacional tcheca
também conhecem o peso dos argumentos que vão no sentido
contrário. Eles sabiam — como František Matouš Klácel, por
exemplo, que tratou disso — que a germanização teria simplificado a
vida dos tchecos, oferecendo mais oportunidades aos seus filhos.
Também sabiam que pertencer a uma das maiores nações confere peso
maior a qualquer trabalho intelectual e amplia seu alcance, enquanto a
ciência formulada em tcheco — cito Klácel — “circunscreve o
reconhecimento do meu zeloso trabalho”. Eles estavam conscientes
das complicações com as quais deparam os povos pequenos que —
como dizia Ján Kollár — “pensam e sentem apenas pela metade” e
cujo nível de educação — ainda citando Kollár — “com frequência é
medíocre e franzino; eles não vivem, apenas sobrevivem, não crescem
nem florescem, apenas vegetam, não geram árvores, só espinhos”.
Estar perfeitamente consciente desses argumentos, assim como dos
argumentos contrários, inclui a questão “ser ou não ser, e por quê?”
no próprio fundamento da existência moderna da nação tcheca.
Estimular tal existência significava, por parte dos protagonistas do
despertar nacional, uma grande aposta para o futuro. Eles colocaram
o povo diante do dever de justificar, no futuro, a justeza daquela
escolha.
Foi seguindo justamente a lógica desse não dado da existência da
nação tcheca que, em 1886, Hubert Gordon Schauer lançou na cara
da jovem sociedade tcheca, que já começava a se vangloriar de sua
pequenez, esta pergunta escandalosa: não teríamos contribuído mais
para a humanidade se tivéssemos somado nossa energia criativa à de
uma nação maior, cuja cultura é sem dúvida mais desenvolvida que a
tcheca, ainda em germinação? Será que valeram a pena todos os
esforços feitos para ressuscitar nosso povo? Será que o valor cultural
de nosso povo é suficiente para justificar sua existência? Soma-se
ainda outra pergunta: será que esse valor, por si só, será capaz de
protegê-lo, no futuro, do risco de perder a própria soberania?
O provincianismo tcheco que se contentava em vegetar, em vez de
viver, viu nesse questionamento, substituto de falsas certezas, um
ataque subjacente contra o país, e por esse motivo decidiu descartar o
sr. Schauer. Contudo, cinco anos depois, o jovem crítico Salda reputou
Schauer como a maior personalidade de seu tempo, e seu ensaio como
um gesto patriótico por excelência. Ele não estava errado. Schauer
apenas levou ao extremo um dilema do qual todos os líderes do
despertar nacional tcheco estavam conscientes. František Palacký
escreveu: “Se não elevarmos o pensamento da nação para atividades
mais grandiosas e nobres que aquelas exercidas por nossos vizinhos,
não conseguiremos sequer garantir nossa própria existência”. E Jan
Neruda dobrou a aposta: “Devemos elevar nossa nação ao patamar de
consciência e educação mundial para garantir não apenas prestígio,
mas também a própria sobrevivência”.
Os líderes da renovação tcheca associaram a sobrevivência da nação
aos valores culturais que ela deveria produzir. Desejavam medir esses
valores não em função de sua utilidade para o país, mas em função de
critérios — como se dizia à época — que se estendiam à humanidade
como um todo. Eles aspiravam à integração no mundo e na Europa.
Nesse contexto, gostaria de destacar uma especificidade da literatura
tcheca, que erigiu um modelo bastante raro no mundo: o do tradutor
como ator literário fundamental, senão o principal. Em última análise,
as maiores personalidades literárias do século anterior à Batalha da
Montanha Branca3 foram os tradutores: Řehoř Hrubý z Jelení, Daniel
Adam z Veleslavína, Jan Blahoslav. A célebre tradução de John Milton
assinada por Josef Jungmann lançou as bases do tcheco do período de
renovação nacional; a tradução literária tcheca figura até hoje em dia
entre as melhores do mundo, e o tradutor goza da mesma estima que
qualquer outra personalidade literária. A explicação para o papel
fundamental desempenhado pela tradução literária é óbvia: foi graças
às traduções que o tcheco se estabeleceu e se aperfeiçoou como língua
europeia — inclusive com uma terminologia europeia. Foi, enfim, por
meio da tradução literária que os tchecos fundaram sua literatura
europeia em língua tcheca e que a literatura formou os leitores
europeus que leem tcheco.
Para as grandes nações europeias com uma história dita clássica, o
enquadramento europeu em que elas evoluem constitui algo dado. No
entanto, os tchecos, por terem alternado períodos de vigília e de sono,
perderam diversas fases importantes do desenvolvimento de um
pensamento europeu e, assim, precisaram a cada vez se adaptar ao
enquadramento cultural, apropriar-se dele e reconstruí-lo. Para os
tchecos, nada nunca foi uma conquista incontestável, nem a língua,
nem o pertencimento europeu, que, a propósito, se resume a uma
eterna escolha entre duas opções: deixar que o tcheco se enfraqueça a
ponto de acabar, reduzindo-se a um mero dialeto europeu — e a
cultura tcheca, a mero folclore —, ou tornar-se uma nação europeia
com tudo o que isso implica.
Apenas esta segunda opção garantiria uma existência real,
existência, contudo, em geral bastante dura para um povo que, ao
longo de todo o século xix, dedicou a maior parte de sua energia à
construção de seus fundamentos, passando do ensino secundário à
redação de uma enciclopédia. E, no entanto, desde o início do século
xx e sobretudo entre as duas guerras, assistimos a uma expansão
cultural sem-par em toda a história tcheca. Por duas décadas, uma
plêiade de homens brilhantes se devotou à criação e logrou, nesse
espaço de tempo tão curto, pela primeira vez desde Comenius, elevar a
cultura tcheca ao patamar europeu, conservando suas especificidades.
Esse importante período, tão breve e intenso que ainda nos provoca
nostalgia, assemelhava-se não obstante mais à adolescência que à
idade adulta: por ainda estar no princípio, a literatura tcheca tinha
uma característica predominantemente lírica e não precisava, para se
desenvolver, de nada além de um tempo longo e sem interrupções de
paz. Naquele momento, desmantelar o crescimento de uma cultura tão
frágil, primeiro pela ocupação, depois pelo stalinismo, durante quase
um quarto de século, isolá-la do resto do mundo, apequenar suas
numerosas tradições internas, rebaixá-la à posição de simples
propaganda, foi uma tragédia que arriscava relegar a nação tcheca
mais uma vez — e agora, em definitivo — à periferia cultural da
Europa. Se, após alguns anos, a cultura tcheca retomou o fôlego, se
hoje ela se tornou sem dúvida o campo de atividade fundamental de
nosso êxito, se um bom número de obras excelentes viu a luz do dia e
determinadas artes, como o cinema tcheco, estão vivendo sua época de
ouro, trata-se, pois, do fenômeno mais significativo da realidade
tcheca destes últimos anos.
Nossa comunidade nacional tem, entretanto, consciência de tudo
isso? Ela percebe que poderia se reconciliar com essa época
memorável da adolescência de nossa literatura do entreguerras, e de
que isso seria uma oportunidade excelente? Ela sabe que seu futuro
depende do futuro de sua cultura? Ou será que enfim acabamos por
desaprovar a opinião dos líderes da renovação tcheca, segundo a qual,
na ausência de valores culturais sólidos, a sobrevivência de um povo
como tal está longe de ser garantida?
O papel da cultura em nossa sociedade sem dúvida mudou desde a
ressurreição nacional tcheca, e hoje não corremos mais risco de sermos
expostos a uma opressão étnica. No entanto, não acredito que agora a
cultura se preste menos que antes a justificar e preservar nossa
identidade nacional. Ao longo da segunda metade do século xx,
abriram-se vastas perspectivas integracionistas. Pela primeira vez, a
humanidade reuniu esforços para elaborar uma história comum.
Pequenas entidades se associam para formar entidades maiores. A
colaboração cultural internacional se concentra, ao se unir. O turismo
se torna um fenômeno de massa. Como consequência, amplia-se o
papel de diversas línguas mundiais importantes, e, como a vida toda se
internacionaliza, o peso das pequenas línguas diminui cada vez mais.
Há pouco tempo, conversei com um homem do teatro, um belga da
região de Flandres. Queixava-se de que sua língua estava ameaçada,
de que a intelligentsia flamenga se tornava bilíngue e começava a
preferir o inglês à língua materna dele, por facilitar o contato com a
ciência internacional. Nessas circunstâncias, os povos pequenos só
podem defender a língua e a soberania por meio do peso cultural da
própria língua e da singularidade dos valores gerados a partir dela. A
cerveja Pilsen, é claro, também é um valor. No entanto, em todos os
lugares bebe-se essa cerveja sob o nome de Pilsner Urquell. Não, a
cerveja de Pilsen não pode de forma alguma apoiar a reivindicação
dos tchecos de preservar a própria língua.4 No futuro, esse mundo que
continua a se integrar exigirá de nós, sem cerimônia e de maneira
completamente legítima, a justificativa para essa existência que
escolhemos há 150 anos e nos questionará sobre o motivo dessa
escolha.
Urge que toda a sociedade tcheca se conscientize de forma plena
sobre o papel essencial de sua cultura e literatura. A literatura tcheca é
bem pouco aristocrática — o que é outra especificidade sua; é uma
literatura plebeia estreitamente ligada ao vasto público nacional. Essa
é, ao mesmo tempo, sua força e sua fraqueza. A força reside em sua
base sólida, em que sua palavra ressoa alto; as fraquezas, em sua
emancipação insuficiente, no nível de educação, na abertura de
espírito, assim como nas eventuais manifestações de falta de cultura da
sociedade tcheca, da qual a literatura tanto depende. Às vezes temo
que nossa educação contemporânea perca essa característica europeia
que calava tão fundo no coração de nossos humanistas e de nossos
líderes da ressurreição nacional tcheca. A Antiguidade greco-romana e
a cristandade, essas duas fontes fundamentais do espírito europeu, que
provocam a tensão de suas próprias expansões, quase desapareceram
da consciência do jovem intelectual tcheco; trata-se de uma perda
insubstituível. Ora, existe uma continuidade sólida no pensamento
europeu, que sobreviveu a todas as revoluções do espírito; pensamento
que construiu seu vocabulário, sua terminologia, suas alegorias, seus
mitos, assim como as causas que defende, e sem o qual os intelectuais
europeus não conseguem se entender. Acabo de ler um relatório
avassalador sobre o conhecimento dos futuros professores de tcheco
em relação à literatura europeia, e prefiro não saber o que dominam
sobre a história mundial. O provincianismo não é apenas uma
característica de nossa orientação literária, mas sobretudo um
problema ligado à vida de toda a sociedade, à sua educação, ao seu
jornalismo etc.
Recentemente, assisti a um filme chamado As pequenas margaridas,
que conta a história de duas moças maravilhosamente vis, orgulhosas
de sua doce mesquinhez, e que destroem com alegria e bom humor
tudo o que está além de seu próprio horizonte. Vejo aí uma alegoria
do vandalismo de grande alcance e de uma atualidade candente. O que
é um vândalo? Não, não é o camponês analfabeto que, num acesso de
cólera, bota fogo na casa do rico proprietário de terras. Os vândalos
com quem cruzo são cultos, satisfeitos consigo mesmos, gozam de boa
posição social e não têm nenhum ressentimento específico contra
quem quer que seja. O vândalo é a mesquinhez orgulhosa que basta a
si mesma e está pronta, a qualquer momento, para reivindicar seus
direitos. Essa mesquinhez orgulhosa acredita que o poder de adaptar o
mundo à sua imagem faz parte de seus direitos inalienáveis e,
considerando que o mundo é majoritariamente feito de tudo aquilo
que está além dela, adapta o mundo à sua imagem, destruindo-o.
Assim, um adolescente decapita uma estátua em um parque porque
essa estátua está ostensivamente além de sua própria essência humana,
e faz isso se vangloriando, na medida em que cada gesto de
autoafirmação traz satisfação ao homem. Os homens que vivem
apenas seu presente descontextualizado, que ignoram a continuidade
histórica e a quem falta cultura, são capazes de transformar sua pátria
em um deserto sem história, sem memória, sem ecos e isento de
qualquer beleza. O vandalismo contemporâneo não se reveste apenas
de formas condenáveis pela lei. No momento em que uma comissão de
cidadãos, ou de burocratas responsáveis por um relatório, decreta que
uma estátua (um castelo, uma igreja, uma tília centenária) é inútil e
decide removê-la, esse caso não passa de outra forma de vandalismo.
Não há muita diferença entre a destruição legal e a ilegal, assim como
entre a destruição e a proibição. Um membro do Parlamento solicitou
recentemente, em nome de um grupo de 21 deputados, a proibição de
dois filmes tchecos importantes, de difícil acesso, incluindo — que
ironia! — essa alegoria do vandalismo que são As pequenas
margaridas. Ele se lançou sem pudor contra os dois filmes e já de
início admitiu, com todas as letras, que não os havia entendido. A
incoerência da proposta é apenas aparente. O maior delito imputado a
essas duas obras cinematográficas é justamente o fato de estarem além
do horizonte de seus juízes, o que os teria ofendido.
Em uma carta a Claude-Adrien Helvétius, Voltaire escreveu esta
frase magnífica: “Não concordo com o que você disse, mas defenderei
até a morte seu direito de dizê-lo”. Trata-se de uma formulação do
princípio ético básico de nossa cultura moderna. Quem retrocede na
história ao momento anterior ao nascimento desse princípio abandona
o Iluminismo para retornar à Idade Média. Qualquer repressão a uma
opinião, incluindo a repressão brutal a opiniões erradas, no fundo vai
contra a verdade, essa verdade a que só se chega no confronto de
opiniões livres e equivalentes. No século xx, qualquer interferência
nas liberdades de pensamento e de expressão — sejam lá quais forem
o método e a designação dessa censura — é um escândalo, assim como
um fardo pesado para nossa literatura em plena efervescência.
Uma coisa é incontestável: se hoje nossas artes prosperam, isso
ocorre graças aos avanços da liberdade de pensamento. O futuro da
literatura tcheca depende intimamente da dimensão dessa liberdade.
Sei que, no momento em que dizemos “liberdade”, há quem se irrite e
comece a protestar dizendo que a liberdade de uma literatura
socialista deve ter limites. Está claro que toda liberdade tem limites,
que são determinados pelo estado do saber, pela magnitude dos
preconceitos, pelo nível de educação etc. No entanto, nenhuma nova
era progressista foi definida pelos próprios limites! O Renascimento
não se autodefiniu pela ingenuidade acanhada de seu racionalismo —
ela só pôde ser vista a posteriori —, mas sim por uma emancipação
racionalista das fronteiras de então. O romantismo se autodefiniu pela
superação dos cânones classicistas e pela nova temática que conseguiu
apreender após ter atravessado as antigas fronteiras. De maneira
análoga, o termo de “literatura socialista” não vai adquirir um sentido
positivo enquanto não tiver realizado a mesma emancipação
libertadora.
No entanto, ainda vemos em nosso país maior virtude na defesa das
fronteiras que na superação delas. Diversas conjunturas políticas e da
sociedade são adotadas para justificar restrições à liberdade de
pensamento. Mas uma política digna desse nome é aquela que
privilegia interesses substanciais em detrimento de interesses
imediatos. E, para o povo tcheco, a grandeza de sua cultura equivale,
definitivamente, a esse interesse substancial.
Isso é ainda mais claro diante das excelentes perspectivas que a
cultura tcheca possui, hoje, diante de si. No século xix, o povo tcheco
viveu à margem da história mundial; ao longo do século atual,
estamos no centro dela. Uma vida no centro da história não é — e
sabemos bem disso — uma festa. Contudo, no campo mágico das
artes, os sofrimentos se transformam em riqueza criativa. Nesse
campo, mesmo a experiência amarga do stalinismo se torna um trunfo
— tão grande quanto paradoxal. Não me agrada falar do fascismo e
do comunismo em pé de igualdade. O fascismo, baseado em um anti-
humanismo escancarado, criou uma situação relativamente simples no
plano moral: apresentando-se a si mesmo como antítese dos princípios
e das virtudes humanistas, ele as manteve intactas. Por sua vez, o
stalinismo foi o herdeiro de um grande movimento humanista que,
apesar da fúria stalinista, conseguiu conservar boa quantidade de
posturas, ideias, slogans, retóricas e sonhos originais. Ver esse
movimento humanista se transformar em seu contrário, arrastando
consigo toda a virtude humana, transformando o amor pela
humanidade em crueldade para com os homens, o amor pela verdade
em delação etc., cria uma perspectiva inesperada sobre o próprio
fundamento dos valores e das virtudes humanas. O que é a história,
qual o lugar do homem na história e o que é o homem, afinal? Não é
possível responder a todas essas perguntas da mesma maneira, antes e
depois dessa experiência. Ninguém sai dela do mesmo jeito que nela
entrou. Naturalmente, o próprio stalinismo não está em questão. As
peregrinações desse povo entre democracia, jugo fascis­ta, stalinismo e
socialismo (a história, agravada por um ambiente étnico muito
complicado) reproduzem todos os principais elementos da história do
século xx. Isso talvez nos permita formular perguntas mais pertinentes
e criar mitos mais significativos do que os povos que não atravessaram
a mesma jornada.
Durante esse século, nosso povo sem dúvida experimentou mais
provações que muitos outros, e se seu gênio se manteve adormecido,
talvez hoje ele saiba mais. Essa experiência maior poderia se
transformar em uma emancipação libertadora das antigas fronteiras,
uma superação dos limites atuais dos conhecimentos humanos e de
seu destino, e assim dar sentido, grandeza e maturidade à cultura
tcheca. Por ora, trata-se apenas, sem dúvida, de uma simples
oportunidade, de potencialidades; contudo, muitas obras criadas ao
longo desses últimos anos testemunham a realidade dessa boa fortuna.
No entanto, devo me perguntar ainda mais uma vez: nossa
comunidade nacional está consciente dessa oportunidade? Sabe que
isso lhe pertence? Sabe que uma oportunidade histórica dessas não se
apresenta mais de uma vez? Sabe que desperdiçar essa oportunidade
equivaleria a estragar o século xx para o povo tcheco?
“É senso comum”, escreveu František Palacký, “que foram os
escritores tchecos que permitiram que nossa nação evitasse o
perecimento, ao despertarem-na e fixarem objetivos nobres para seus
próprios esforços.” Os escritores tchecos têm responsabilidade
fundamental na própria sobrevivência de nosso povo, e até nossos
dias, pois é da qualidade da literatura tcheca, de sua grandeza ou
pequenez, de sua coragem ou covardia, de seu provincianismo ou
alcance universal, que depende em grande medida a resposta à questão
da sobrevivência desse povo.
Mas será que a sobrevivência desse povo vale a pena? E a
sobrevivência de sua língua, por sua vez, também vale a pena? Essas
perguntas essenciais, que inseridas nos fundamentos da existência
moderna dessa nação, ainda aguardam respostas definitivas. Pois
quem quer que, por fanatismo, vandalismo, falta de cultura ou
mesquinhez, sabote o esplendor cultural em curso, vai sabotar a
própria existência desse povo.

Traduzido do tcheco para o francês por


Martin Daneš
Um Ocidente sequestrado
Apresentação
Pierre Nora
Publicado em novembro de 1983 em Le Débat (n. 27), este artigo,
logo traduzido para a maioria das línguas europeias, teve um impacto
inversamente proporcional a sua brevidade. Trata-se de cerca de vinte
páginas que, no Leste, desencadearam uma onda de reações,
discussões, polêmicas, oriundas da Alemanha e da Rússia. E que, no
Oeste, contribuíram para, segundo palavras de Jacques Rupnik,
“reformular o mapa mental da Europa” antes de 1989. O que há de
tão explosivo em tais páginas?
Na época em que o Ocidente via a Europa Central apenas como
parte do bloco do Leste, Milan Kundera veementemente recordava ao
Ocidente que a Europa Central, devido à cultura, pertencia
inteiramente ao Ocidente, e que, no caso dessas “nações pequenas”
pouco seguras de sua existência histórica e política (Polônia, Hungria,
Tchecoslováquia), a cultura havia sido e ainda era o santuário da
identidade.
Kundera, cuja formação era bastante marcada pela renovação das
artes, da literatura, do cinema nos anos 1960 na Tchecoslováquia, via
nessa vitalidade cultural uma preparação para a Primavera de Praga.
Uma cultura que não era privilégio das elites, mas o valor expressivo
em torno do qual o povo se reunia. Ele ampliava a reflexão para a
herança cultural de toda a Europa Central, com a “grandiosa” revolta
da Hungria em 1956 e as revoltas polonesas de 1956, 1968 e 1970.
“Europa Central: o máximo de diversidade no mínimo de espaço.”
O drama da Europa Central se desdobra no drama do Ocidente,
que não quer vê-lo e nem sequer se deu conta de seu desaparecimento;
que não sabe avaliar seu alcance por não se ver mais com base em sua
dimensão cultural. Na Idade Média, a unidade do Ocidente estava
assentada na cristandade; depois, durante a Modernidade, no
Iluminismo. E hoje? Ela foi substituída por uma cultura do
divertimento, associada aos mercados e às tecnologias da informação.
Assim, qual o sentido do projeto europeu?
A qualidade deste texto de Kundera não está apenas na força
demonstrativa, mas na voz tão pessoal e angustiada do autor, que
naquele momento se impôs como a de um dos maiores escritores
europeus.
“Um Ocidente sequestrado” teve papel decisivo na formação de
intelectuais franceses como Alain Finkielkraut, em sua defesa das
“nações pequenas” por ocasião da guerra da Iugoslávia; no livro A
derrota do pensamento (1987), e na criação da revista Le Messager
Européen, no mesmo ano. De maneira mais insidiosa, o artigo
preparou os espíritos para a ampliação da Europa em direção aos
países do Leste. Quem sabe dizer se, com sua influência difusa, ele não
atua ainda na determinação dos países da Europa Central em
permanecerem fiéis à própria herança histórica e à identidade cultural?
um ocidente sequestrado
ou a tragédia da Europa Central
(1983)
1

Em setembro de 1956, alguns minutos antes de seu escritório ser


destruído pela artilharia, o diretor da agência de notícias da Hungria
enviou para o mundo inteiro, por telex, uma mensagem desesperada
sobre a ofensiva russa desencadeada naquela manhã contra Budapeste.
A mensagem terminava com estas palavras: “Nós morremos pela
Hungria e pela Europa”.
O que essa frase significava? Com certeza significava que os tanques
russos punham a Hungria, e com ela a Europa, em perigo. Mas em
que sentido a Europa estava em perigo? Os tanques russos estavam
dispostos a atravessar as fronteiras húngaras em direção ao Oeste?
Não. O diretor da agência de notícias húngara queria dizer que a
Europa era um alvo na própria Hungria. Ele estava disposto a morrer
para que a Hungria permanecesse Hungria e permanecesse Europa.
Ainda que o significado da frase pareça claro, ela continua a nos
intrigar. Na verdade, aqui na França, e nos Estados Unidos, as pessoas
estão acostumadas a pensar que o que estava então em jogo não era
nem a Hungria, nem a Europa, mas um regime político. Jamais diriam
que era a Hungria em si que estava ameaçada, e tampouco entendem
por que uma Hungria confrontada com a própria morte interpela a
Europa. Quando denuncia a opressão comunista, Alexander
Soljenítsin reivindica a Europa como um valor fundamental pelo qual
vale a pena morrer?
Não, “morrer por sua pátria e pela Europa” é uma frase que não
poderíamos imaginar nem em Moscou, nem em Leningrado, apenas
em Budapeste ou em Varsóvia.

Na verdade, o que é a Europa para um húngaro, um tcheco, um


polonês? Desde o início, essas nações pertenciam à parte da Europa
enraizada na cristandade romana. Participaram de todas as fases de
sua história. A palavra “Europa” não representa, para elas, um
fenômeno geográfico, e sim um conceito de ordem imaterial, sinônimo
da palavra “Ocidente”. No momento em que a Hungria não é mais
Europa, isto é, Ocidente, ela é expelida para além do próprio destino,
para além da própria história; ela perde a própria essência de sua
identidade.
A Europa geográfica (que vai do Atlântico ao Ural) sempre foi
dividida em duas metades que evoluíram em separado: uma, ligada à
antiga Roma e à Igreja católica (símbolo distintivo: alfabeto latino); a
outra, ancorada em Bizâncio e na Igreja ortodoxa (símbolo distintivo:
alfabeto cirílico). Depois de 1945, a fronteira entre essas duas Europas
se deslocou algumas centenas de quilômetros no sentido oeste, e
algumas nações que sempre se consideraram ocidentais acordaram um
belo dia e constataram que se encontravam a leste.
Consequentemente, depois da guerra se constituíram três
configurações básicas na Europa: a da Europa Ocidental, a da Europa
Oriental e a mais complicada, a dessa parte da Europa
geograficamente situada ao centro, culturalmente a oeste e
politicamente a leste.
Essa configuração contraditória da Europa que chamo de Central
pode nos levar a entender por quê, há 35 anos, é aqui que se concentra
o drama da Europa: a grandiosa revolta húngara de 1956, com o
massacre sanguinolento que a sucede; a Primavera de Praga e a
ocupação da Tchecoslováquia em 1968; as revoltas polonesas em
1956, 1968, 1970 e a dos últimos anos. Nada do que acontece na
Europa geográfica, nem pelo conteúdo dramático nem pelo significado
histórico, nem a oeste nem a leste, pode ser comparado com essa
sequência de revoltas centro-europeias.5 Cada uma dessas revoltas foi
levada a cabo por quase todo o povo. Se não tivessem sido apoiados
pela Rússia, os regimes desses países não teriam resistido mais de três
horas. Dito isso, o que acontecia em Praga ou em Varsóvia não pode
ser considerado, em essência, o drama da Europa Oriental, do bloco
soviético, do comunismo, mas sim, justamente, o drama da Europa
Central.
Na verdade, tais revoltas, apoiadas por toda a população, são
inimagináveis na Rússia. E são inimagináveis inclusive na Bulgária,
país que, como todos sabem, é a parte mais estável do bloco
comunista. Por quê? Porque desde a origem a Bulgária faz parte da
civilização do Leste, devido à religião ortodoxa, cujos primeiros
missionários eram então búlgaros. As consequências da última guerra,
assim, significam para os búlgaros uma mudança política,
naturalmente considerável e deplorável (lá, os direitos humanos são
tão violados quanto em Budapeste), mas não esse choque de
civilizações que elas representam para os tchecos, os poloneses, os
húngaros.

A identidade de um povo ou de uma civilização se reflete e se


resume no conjunto de criações de ordem imaterial que costumamos
chamar de “cultura”. Se essa identidade é ameaçada de morte, a vida
cultural se intensifica, se exacerba, e a cultura se torna o valor
expressivo em torno do qual se reúne todo o povo. É por isso que, em
todas as revoltas centro-europeias, a memória cultural e a produção
contemporânea tiveram papel tão grande e decisivo, mais que em
qualquer outro lugar e mais que em qualquer outra revolta popular
europeia.6
Escritores, reunidos em um círculo com o nome do poeta romântico
Sándor Petőfi, desencadearam na Hungria uma grande reflexão crítica
e prepararam assim a explosão de 1956. Durante anos, foram o
teatro, o filme, a literatura e a filosofia que trabalharam pela
emancipação libertária da Primavera de Praga. Foi a proibição de um
espetáculo de Adam Mickiewicz, o maior poeta romântico polonês,
que desencadeou a famosa revolta dos estudantes poloneses em 1968.
Esse casamento feliz entre a cultura e a vida, a criação e o povo,
deixou nas revoltas centro-europeias a marca de uma beleza
inimitável, que deixará — a nós, que as vivemos — enfeitiçados para
sempre.
Isso que eu considero bonito, no sentido mais profundo da palavra,
um intelectual alemão ou francês considera suspeito. Ele tem a
impressão de que essas revoltas não são autênticas e realmente
populares, se sofrem influência grande demais da cultura. É estranho,
mas, para alguns, cultura e povo são conceitos incompatíveis. A ideia
de cultura se confunde, aos olhos deles, com a imagem de uma elite de
privilegiados. Por isso acolheram o movimento Solidariedade com
muito mais simpatia que as revoltas anteriores. Bem, de todo modo o
Solidariedade não é diferente, em sua essência, destes últimos
movimentos, ele não passa do apogeu daqueles outros: a união mais
perfeita (a mais perfeitamente organizada) entre o povo e a tradição
cultural perseguida, negligenciada ou oprimida do país.

Pode-se dizer o seguinte: mesmo admitindo que os países centro-


europeus defendem sua identidade ameaçada, isso não torna a
situação deles tão específica. A Rússia se encontra em situação
semelhante. Também ela está perdendo a identidade. Na verdade, não
é a Rússia, mas o comunismo que priva as nações de sua essência e
que, seja dito, fez do povo russo sua primeira vítima. Sim, a língua
russa estrangula a língua das outras nações do Império; mas não é que
os russos queiram russificar os outros, e sim que a burocracia soviética
profundamente anacional, contranacional, supranacional, precisa de
uma ferramenta técnica para unificar seu Estado.
Entendo essa lógica, e entendo também a vulnerabilidade dos
russos, que sofrem com a ideia de que se confunda o comunismo
odiado com sua pátria amada.
Mas é preciso entender também um polonês, cuja pátria, com
exceção de um curto período entre as duas guerras, é subjugada pela
Rússia há dois séculos e enfrentou durante todo esse tempo uma
russificação tão paciente quanto implacável.
Na fronteira oriental do Ocidente que é a Europa Central, sempre se
foi muito mais sensível ao perigo da potência russa. E não apenas os
poloneses. Frantisek Palacký, o grande historiador e a personalidade
mais representativa da política tcheca do século xix, escreveu em
1848 a famosa carta ao Parlamento revolucionário de Frankfurt, na
qual legitimava a existência do Império dos Habsburgo, único bastião
possível contra a Rússia, “essa potência que, tendo hoje uma enorme
grandeza, aumenta sua força mais do que qualquer país ocidental”.
Palacký alertou contra as ambições imperiais da Rússia, que tenta se
tornar “monarquia universal”, isto é, que aspira à dominação do
mundo. A “monarquia universal da Rússia”, diz Palacký, “seria uma
desgraça imensa e indizível, uma desgraça sem medida e sem limites”.
Segundo Palacký, a Europa Central deveria ter sido o lar das nações
igualitárias que, com respeito mútuo, protegidas por um Estado
comum e forte, cultivariam suas diversas originalidades. Embora não
tenha jamais se realizado plenamente, esse sonho, compartilhado por
todas as grandes cabeças centro-europeias, permaneceu no entanto
forte e influente. A Europa Central queria ser a imagem condensada
da Europa e de sua riqueza heterogênea, uma pequena Europa
arquieuropeia, uma miniatura da Europa das nações concebida sob a
regra “o máximo de diversidade no mínimo de espaço”. Como ela não
ficaria horrorizada com a Rússia, que, diante dela, se fundava sob a
regra oposta: o mínimo de diversidade no máximo de espaço?
Na verdade, nada é mais estrangeiro à Europa Central e à sua
paixão pela diversidade que a Rússia, uniforme, uniformizante,
centralizadora, que transformava com uma temível determinação
todas as nações de seu Império (ucranianos, bielorrussos, armênios,
letões, lituanos etc.) em um único povo russo (ou, como se prefere
dizer hoje, neste momento de mistificação generalizada do
vocabulário, um único povo soviético).
Dito isso, o comunismo é a negação da história russa ou, em vez
disso, sua realização?
Ele com certeza é sua negação (negação de sua religiosidade, por
exemplo) e simultaneamente sua realização (realização de suas
tendências centralizadoras e de seus sonhos imperiais).
Do ponto de vista interno da Rússia, o primeiro aspecto, o da
descontinuidade, é mais marcante. Do ponto de vista dos países
subjugados, é o segundo aspecto, o da continuidade, o que se percebe
com mais intensidade.7

Não estou, porém, criando uma oposição entre a Rússia e a


civilização ocidental de um maneira absoluta demais? Embora
dividida em suas partes ocidental e oriental, a Europa não é, apesar de
tudo, uma única entidade ancorada na Grécia Antiga e no pensamento
dito judaico-cristão?
Claro que sim. As longínquas raízes antigas unem a Rússia a nós.
Além disso, ao longo de todo o século xix, a Rússia se aproximou da
Europa. O fascínio era recíproco. Rainer Maria Rilke declara a Rússia
sua pátria espiritual, e ninguém escapou da força do grande romance
russo, que segue inseparável da cultura europeia comum.
Sim, tudo isso é verdade, e o noivado cultural das duas Europas
seguirá como uma grande recordação.8 Mas não é menos verdadeiro
que o comunismo russo reavivou vigorosamente as velhas obsessões
antiocidentais da Rússia e a arrancou com brutalidade da história
ocidental.
Gostaria de destacar isto mais uma vez: é na fronteira oriental do
Ocidente que, mais que em qualquer outro lugar, a Rússia é vista
como um Antiocidente; ela parece não só uma potência europeia entre
outras, mas uma civilização particular, uma outra civilização.
Czesław Miłosz fala disso em seu livro Une autre Europe [Uma
outra Europa]: nos séculos xvi e xvii, os poloneses viam os
moscovitas como “bárbaros contra os quais batalhávamos nas
fronteiras distantes. Não tínhamos nenhum interesse especial por eles
[…]. Foi nessa época, quando a leste só havia o vazio, que surgiu para
os poloneses a concepção de uma Rússia situada ‘no exterior’, fora do
mundo”.9
Parecem “bárbaros” aqueles que representam um outro universo.
Os russos ainda são vistos assim pelos poloneses. Kazimierz Brandys
conta esta história: um escritor polonês encontrou Anna Akhmátova, a
grande poeta russa. O polonês estava se queixando de sua situação:
todas as obras dele haviam sido proibidas. Ela o interrompeu: “Você
foi preso?”. O polonês respondeu que não. “Você ao menos foi
expulso da União dos Escritores?” “Não.” “Então do que você está se
queixando?” Akhmátova estava sinceramente intrigada.
E Brandys comenta:
Os consolos russos são assim. Nada lhes parece tão horrível em comparação com o destino
da Rússia. Mas esses consolos não fazem nenhum sentido. O destino russo não faz parte de
nossa consciência; ele nos é estrangeiro; não somos responsáveis por ele. Ele recai sobre
nós, mas não é herança nossa. Essa é também minha relação com a literatura russa. Ela me
assustou. Até hoje fico horrorizado com algumas novelas de [Nikolai] Gógol e com tudo
que [Mikhail] Saltykov-Shchedrin escreveu. Preferiria não conhecer o mundo deles, não
saber que ele existe.10

As palavras sobre Gógol não manifestam uma rejeição à arte de


Gógol, que fique claro, mas o horror do mundo evocado por essa arte:
esse mundo nos fascina e nos atrai quando está longe e revela toda sua
terrível estrangeiridade no momento em que nos cinge de perto: ele
tem outra dimensão (maior) da tristeza, outra imagem do espaço (um
espaço tão imenso que nações inteiras se perdem nele), outro ritmo
(lento e paciente), outra maneira de rir, de viver, de morrer.11
É por isso que após 1945 a Europa que chamo de Central percebe a
mudança de seu destino não apenas como catástrofe política, mas
como questionamento de sua civilização. Sua resistência tem como
significado profundo a defesa de sua identidade; ou, dizendo de outro
modo, a defesa de sua ocidentalidade.

Não temos mais ilusões em relação ao regime dos países-satélites da


Rússia. Mas esquecemos a essência de sua tragédia: eles
desapareceram do mapa do Ocidente.
Como se explica que esse aspecto do drama tenha permanecido
quase invisível?
Pode-se explicar implicando, em primeiro lugar, a própria Europa
Central.
Os poloneses, os tchecos, os húngaros tiveram uma história
movimentada, fragmentada e uma tradição de Estado menos forte e
contínua que a dos grandes povos europeus. Encurraladas de um lado
pelos alemães, de outro pelos russos, essas nações exauriram suas
forças na luta pela sobrevivência e pela língua. Sem meios de ingressar
suficientemente na consciência europeia, elas permaneceram a parte
menos conhecida e mais frágil do Ocidente, escondidas, além disso,
atrás da cortina de línguas estranhas e pouco acessíveis.
O Império austríaco teve uma grande oportunidade de criar um
Estado forte na Europa Central. Infelizmente, os austríacos estavam
divididos entre o nacionalismo arrogante da Grande Alemanha e sua
própria missão centro-europeia. Não conseguiram construir um
Estado federativo de nações igualitárias, e seu fracasso se tornou a
infelicidade de toda a Europa. Insatisfeitas, as outras nações centro-
europeias fizeram o Império explodir em 1918, sem se dar conta de
que, apesar das insuficiências, ele era insubstituível. Assim, depois da
Primeira Guerra Mundial, a Europa Central se transformou em uma
região de pequenos Estados vulneráveis, cuja fraqueza permitiu as
primeiras conquistas de Hitler e o triunfo final de Stálin. Talvez, no
inconsciente coletivo europeu, esses países ainda fossem equivalentes a
desordeiros perigosos.

***

Por fim, e para ser sincero, vejo a responsabilidade da Europa


Central nisso que chamarei de “ideologia do mundo eslavo”. Escolho
a palavra “ideologia” por ela não passar de uma mistificação política
criada no século xix. Os tchecos (apesar da dura advertência das
personalidades mais representativas desse povo) adoravam brandi-la
ao se defenderem ingenuamente contra a agressividade alemã; os
russos, por sua vez, usaram-na de bom grado para justificar objetivos
imperiais. “Os russos adoram chamar de ‘eslavo’ tudo o que é russo,
para depois poder chamar de ‘russo’ tudo o que é eslavo”, declarou já
em 1844 o grande escritor tcheco Karel Havlíček,12 que alertava os
compatriotas contra sua russofilia tola e irrealista. Irrealista pois,
durante sua história milenar, os tchecos jamais tiveram contato direto
com a Rússia. Apesar do parentesco linguístico, não compartilhavam
com os russos nenhum mundo comum, nenhuma história comum,
nenhuma cultura comum, enquanto a relação entre poloneses e russos
não passava de uma luta de vida ou morte.
Há cerca de sessenta anos, Jósef Konrad Korzeniowski, conhecido
como Joseph Conrad, irritado com a etiqueta de “alma eslava” que
adoravam colar nele e em seus livros devido à sua origem polonesa,
escreveu: “Nada é mais estrangeiro ao temperamento polonês, com
seu sentimento cavalheiresco de regras morais e seu respeito
exagerado aos direitos individuais, do que isso que chamam, no
mundo literário, de ‘espírito eslavo’”. (Como eu o compreendo!
Também não conheço algo mais ridículo que esse culto das
profundezas obscuras, essa sentimentalidade candente e vazia que
chamam de “alma eslava” e que atribuem a mim de tempos em
tempos!)13
Ainda assim, a ideia de mundo eslavo se tornou um lugar-comum da
historiografia mundial.14 A divisão da Europa depois de 1945, que
unificou esse suposto “mundo” (incluindo nele também os pobres
húngaros e romenos, cuja língua, naturalmente, não é eslava; mas
quem prestaria atenção a um detalhe desses?), pôde então parecer uma
solução quase natural.

7
É responsabilidade da Europa Central, portanto, se o Ocidente nem
sequer se deu conta de seu desaparecimento?
Não completamente. Apesar da fraqueza política, no início de nosso
século a Europa Central se tornou um grande centro de cultura, talvez
o maior. Quanto a isso, é bem conhecida hoje a importância de Viena,
mas nunca é demais lembrar que a originalidade da capital austríaca é
impensável sem o pano de fundo dos outros países e cidades que, de
resto, também participaram, com a própria criatividade, da cultura
centro-europeia como um todo. Se a escola de Arnold Schönberg
fundou o sistema dodecafônico, o húngaro Béla Bartók, para mim um
dos dois ou três maiores músicos do século xx, soube encontrar a
última possibilidade original da música fundada no princípio tonal.
Praga criou, com a obra de Franz Kafka e Jaroslav Hašek, um grande
par romanesco para a obra dos vienenses Robert Musil e Hermann
Broch. O dinamismo cultural dos países não germanófonos se
intensificou mais depois de 1918, quando Praga trouxe ao mundo a
iniciativa do círculo linguístico de Praga e de seu pensamento
estruturalista.15 A grande trindade Witold Gombrowicz, Bruno Schulz
e Stanisław Witkiewicz foi o prenúncio, na Polônia, do modernismo
europeu dos anos 1950, notadamente o teatro chamado “do
absurdo”.
Uma questão se impõe: toda essa grande explosão criativa foi
somente coincidência geográfica? Ou ela estava enraizada em uma
longa tradição, em um passado? Em outras palavras: podemos falar da
Europa Central como uma verdadeira totalidade cultural com a
própria história? E, se tal totalidade existe, pode ser definida em
termos geográficos? Quais são suas fronteiras?
Seria inútil querer defini-las com exatidão. Pois a Europa Central
não é um Estado, e sim uma cultura ou um destino. As fronteiras são
imaginárias e devem ser traçadas e retraçadas com base em cada nova
conjuntura histórica.
Por exemplo, já em meados do século xiv, a Universidade Charles
reuniu, em Praga, intelectuais (professores e estudantes) tchecos,
austríacos, bávaros, saxões, poloneses, lituanos, húngaros e romenos,
já com a ideia em germe de uma comunidade multinacional em que
cada um tem direito à própria língua: na verdade, foi sob influência
indireta dessa universidade (cujo reitor era o reformador Jan Huss)
que surgiram naquele momento as primeiras traduções da Bíblia em
húngaro e em romeno.
Sucederam-se depois as outras conjunturas: a Revolução Hussita; o
esplendor internacional do Renascimento húngaro na época de Matias
Corvino; a formação do Império dos Habsburgo como a união pessoal
de três Estados independentes: a Boêmia, a Hungria e a Áustria; as
guerras contra os turcos; a Contrarreforma no século xvii. Nessa
época, a especificidade cultural centro-europeia ressurge com estrondo
graças ao extraordinário florescimento da arte barroca, que une essa
vasta região, de Salzburgo a Vilnius. Assim, no mapa europeu, a
Europa Central barroca (caracterizada pela predominância do
irracional e pelo papel dominante das artes plásticas e sobretudo da
música) torna-se o polo oposto da França clássica (caracterizada pela
predominância do racional e pelo papel dominante da literatura e da
filosofia). É nesse período do barroco que estão as raízes da expansão
extraordinária da música centro-europeia, que, de Joseph Haydn a
Arnold Schönberg, de Franz Liszt a Béla Bartók, condensa em si a
evolução de toda a música europeia.
No século xix, as lutas nacionais (dos poloneses, dos húngaros, dos
tchecos, dos croatas, dos eslovenos, dos romenos, dos judeus) opõem,
uma contra outra, nações que, embora não solidárias, isoladas e
fechadas em si mesmas, viviam a mesma grande experiência existencial
comum: a de uma nação que fez uma escolha entre existir e não
existir; em outras palavras, entre a vida nacional autêntica e a
assimilação a uma nação maior.
Mesmo os austríacos, a nação dominante do Império, não
conseguiram escapar da necessidade dessa escolha; precisaram fazer a
escolha entre a identidade austríaca e a fusão à entidade alemã maior.
Tampouco os judeus conseguiram evitar tal questão. Ao recusar a
assimilação, o sionismo, nascido aliás na Europa Central, escolheu tão
somente o mesmo caminho de todas as nações centro-europeias.
O século xx viu outras conjunturas: o colapso do Império, a
anexação russa e o longo período de revoltas centro-europeias, que
não passam de uma grande aposta na solução desconhecida.
O que definiu e determinou a configuração centro-europeia não
pode ser, portanto, as fronteiras políticas (que não são autênticas, por
serem sempre impostas por invasões, conquistas e ocupações), mas as
grandes conjunturas comuns que juntam os povos e que os reúnem
sempre de um modo diferente, em fronteiras imaginárias e sempre
mutáveis, no interior das quais subsiste a mesma memória, a mesma
experiência, a mesma comunhão de tradições.

Os pais de Sigmund Freud eram da Polônia, mas foi na Morávia,


meu país natal, que o pequeno Sigmund passou a infância, assim como
Edmund Husserl e Gustav Mahler; também o romancista vienense
Joseph Roth tem raízes na Polônia; o grande poeta tcheco, Julius
Zeyer, nasceu em Praga, em uma família germanófona, e a língua
tcheca foi a escolhida por ele. Por sua vez, a língua materna de
Hermann Kafka era o tcheco, enquanto seu filho Franz adotou a
língua alemã. O escritor Tibor Déry, personalidade-chave da revolta
húngara de 1956, era de uma família germano-húngara, e meu
querido Danilo Kiš, excelente romancista, é húngaro-iugoslavo. Que
emaranhado de destinos nacionais entre as personalidades mais
representativas!
E todos esses que mencionei são judeus. Na verdade, nenhum lugar
do mundo foi tão profundamente marcado pelo gênio judeu. São
estrangeiros e estão em casa em qualquer lugar, educados para estar
acima das disputas nacionais; no século xx, os judeus eram o principal
elemento cosmopolita e integrador da Europa Central, seu cimento
intelectual, a condensação de seu espírito, o criador de sua unidade de
espírito. É por isso que adoro a herança judaica e sou afeiçoado a ela
com paixão e nostalgia, como se fosse minha própria herança pessoal.
Outra coisa faz a nação judaica ser tão cara a mim: é no destino
dela, a meu ver, que o futuro centro-europeu se concentra, se reflete e
encontra uma imagem simbólica para si. O que é a Europa Central? A
região indeterminada de nações pequenas entre a Rússia e a
Alemanha. Destaco as palavras: nações pequenas. Na verdade, o que
são os judeus senão uma nação pequena, a nação pequena por
excelência? A única nação pequena de todos os tempos que sobreviveu
aos impérios e à marcha devastadora da História.
Mas o que é nação pequena? Apresento-lhes minha definição: nação
pequena é aquela cuja existência pode, a qualquer momento, ser
questionada, que pode desaparecer, sabe-se lá o que mais. Um francês,
um russo, um inglês não costumam se perguntar a respeito da
sobrevivência de sua nação. Seus hinos falam apenas de grandeza e
eternidade. Bem, o hino polonês começa com os versos: “A Polônia
ainda não pereceu…”.
Como lar das nações pequenas, a Europa Central tem uma visão de
mundo própria, baseada na desconfiança profunda a respeito da
História. A História, essa deusa de Hegel e de Marx, essa encarnação
da Razão que arbitra e nos julga, é a História dos vencedores. Ora, os
povos centro-europeus não são vencedores. Eles são inseparáveis da
História europeia, não existem sem ela, mas representam apenas o
avesso dessa História, suas vítimas e seus outsiders. Nessa experiência
histórica desencantada está a fonte de originalidade de sua cultura, de
sua sabedoria, de seu “espírito brincalhão” que faz troça da grandeza
e da glória. “Não esqueçamos que é ao nos opormos à História
propriamente dita que podemos nos posicionar contra essa de hoje.”
Gostaria de gravar essa frase de Witold Gombrowicz na porta de
entrada da Europa Central.16
É por isso que nessa região de nações pequenas que “ainda não
pereceram” a vulnerabilidade da Europa, de toda a Europa, foi visível
de modo mais nítido e antes que em outros lugares. Na verdade, em
nosso mundo moderno, no qual o poder tende a se concentrar cada
vez mais nas mãos de alguns poucos e grandes, todas as nações
europeias correm o risco de, em breve, tornarem-se nações pequenas e
enfrentar o mesmo futuro que elas. Nesse sentido, o destino da Europa
Central parece ser a antecipação do destino europeu de modo geral, e
sua cultura passa imediatamente a ter enorme atualidade.
Basta ler os maiores romances centro-europeus:17 em Os
sonâmbulos, de Hermann Broch, a História parece um processo de
degradação dos valores; Um homem sem qualidades, de Robert Musil,
retrata uma sociedade eufórica, que não sabe que vai desaparecer
amanhã; em As aventuras do bom soldado Svejk, de Jaroslav Hašek,
simular-se idiota é a última possibilidade de preservar a liberdade; as
visões romanescas de Kafka nos falam do mundo sem memória, do
mundo pós-tempo histórico. Toda grande criação centro-europeia do
início do nosso século, até os dias de hoje, poderia ser entendida como
uma longa meditação sobre o possível fim da humanidade europeia.

Hoje a Europa Central é subjugada pela Rússia, com exceção da


pequena Áustria, que, mais por oportunidade que por necessidade,
manteve a independência, mas que, retirada do ambiente centro-
europeu, perde grande parte da especificidade e toda sua importância.
O desaparecimento do lar centro-europeu foi com certeza um dos
grandes acontecimentos do século para toda a civilização ocidental.
Assim, repito minha pergunta: como é possível que tenha permanecido
despercebido e não nomeado?
Minha resposta é simples: a Europa não notou o desaparecimento
de seu grande lar cultural porque a Europa não percebe mais sua
unidade como unidade cultural.
Em que, de fato, se baseia a unidade da Europa?
Na Idade Média, baseava-se na religião comum.
Na Modernidade, quando o Deus medieval se transformou em Deus
absconditus, a religião cedeu lugar à cultura, que se tornou a
realização dos valores supremos por meio dos quais a humanidade
europeia entendia-se, definia-se, identificava-se.
Ora, parece-me que em nosso século outra mudança se aproxima,
tão importante quanto essa que separa a época medieval da
Modernidade. Assim como Deus outrora cedeu lugar à cultura, hoje é
a cultura, por sua vez, que cede lugar.
Mas a quem e a quê? Em que domínio se realizarão os valores
supremos capazes de unir a Europa? As proezas da técnica? O
mercado? A mídia? (O grande poeta será substituído pelo grande
jornalista?) Ou então a política? Mas qual política, a de direita ou a de
esquerda? Para além desse maniqueísmo tão tolo quanto insuperável,
ainda há como discernir um ideal comum? Seria o princípio da
tolerância, o respeito pela crença e pelo pensamento do outro? No
entanto, essa tolerância não se torna vazia e inútil, se não protege mais
nenhuma criação rica e nenhum pensamento de peso? Ou poderíamos
entender a renúncia da cultura como uma espécie de libertação, à qual
devemos nos abandonar, em euforia? Ou então o Deus absconditus
retornará para ocupar seu lugar vago e fazer-se visível? Não sei, não
sei mesmo. Só sei que a cultura cedeu seu lugar.
Hermann Broch era obcecado por essa ideia desde os anos 1930. Ele
disse, por exemplo: “A pintura se tornou algo completamente
esotérico e dependente do mundo dos museus; ninguém mais se
interessa por ela e por seus problemas, ela é quase o resquício de um
passado”.
Essas palavras foram surpreendentes à época; hoje não são mais.
Nos últimos anos, fiz uma pequena pesquisa pessoal, perguntando
inocentemente para as pessoas que encontrava qual era seu pintor
contemporâneo favorito. Constatei que ninguém tinha um pintor
contemporâneo favorito, e que a maioria nem sequer conhecia algum.
Essa situação era impensável trinta anos atrás, na geração de Henri
Matisse e Pablo Picasso. Nesse meio-tempo, a pintura perdeu
relevância, ela se tornou uma atividade marginal. Será que isso
aconteceu pelo fato de não ser mais boa? Ou porque perdemos o
gosto e os sentidos para ela? Em todo caso, a arte que criou o estilo
das épocas, que acompanhou a Europa ao longo dos séculos, ela nos
abandona, ou então fomos nós que a abandonamos.
E a poesia, a música, a arquitetura, a filosofia? Também elas
perderam a capacidade de forjar a unidade europeia, de constituir sua
base. É uma mudança tão importante para a humanidade europeia
quanto a descolonização da África.

10

Franz Werfel passou o primeiro terço da vida em Praga, o outro em


Viena e o último como imigrante, a princípio na França, depois nos
Estados Unidos; essa é uma biografia tipicamente centro-europeia.
Está em Paris em 1937, com a esposa, a famosa Alma, viúva de
Mahler, a convite do Instituto Internacional de Cooperação Intelectual
da Liga das Nações para um colóquio que deveria tratar do “futuro da
literatura”. Em sua conferência, Werfel contesta não apenas o
hitlerismo, mas o perigo totalitário de modo geral, a estupidificação
ideológica e jornalística de nosso tempo, que mataria a cultura. Ele
termina a conferência com uma proposta que pensava ser capaz de
refrear o processo infernal: fundar uma academia mundial de poetas e
pensadores (Weltakademie der Dichter und Denker). Em nenhuma
hipótese seus membros seriam representantes de Estados. A escolha
deveria ser feita em função do valor da obra deles. O número de
membros, entre os maiores escritores do mundo, deveria se situar
entre 24 e 40. A missão dessa academia, independentemente da
política e da propaganda, seria “fazer frente à politização e à
barbarização do mundo”.
Além de não ter sido aceita, a proposta foi ridicularizada. É claro,
era ingênua. Terrivelmente ingênua. Como criar essa academia
independente em um mundo politizado, em que os artistas e
pensadores já estavam irremediavelmente “engajados”? Ela só poderia
ter o aspecto cômico de uma assembleia de espíritos superiores.
Ainda assim, essa proposta ingênua me parece comovente, por trair
a necessidade desesperada de ainda encontrar uma autoridade moral
em um mundo desprovido de valores. Ela não passava de um desejo
angustiado de fazer a voz inaudível da cultura, a voz dos Dichter und
Denker, ser escutada.18
Tal história se confunde, em minha memória, com a lembrança da
manhã em que, depois de revistar o apartamento, a polícia confiscou
mil páginas do manuscrito filosófico de um amigo, um célebre filósofo
tcheco. Nesse mesmo dia, passeamos pelas ruas de Praga. Descemos de
Hradčany, onde ele morava, em direção à ilha de Kampa;
atravessamos a ponte Mánes. Ele tentava fazer piada: como os
meganhas iam decifrar sua linguagem filosófica, tão hermética? Mas
piada alguma tranquilizaria sua angústia, remediaria os dez anos de
trabalho perdido representado por esse manuscrito, do qual o filósofo
não tinha nenhuma cópia.
Discutimos a possibilidade de enviar uma carta aberta ao exterior
para transformar esse confisco em um escândalo internacional. Para
nós, estava claro que precisávamos nos dirigir não a uma instituição
ou a um chefe de Estado, mas a uma personalidade que se situasse
acima da política, alguém que representasse um valor indiscutível,
aceito amplamente na Europa. Logo, uma personalidade da cultura.
Onde estava, porém, essa pessoa?
De súbito, compreendemos que essa personalidade não existia. Sim,
havia grandes pintores, dramaturgos e músicos, mas eles não
ocupavam na sociedade esse lugar privilegiado de autoridade moral
que a Europa aceitaria como seu representante simbólico. A cultura
não existia mais como o campo em que se realizavam os valores
supremos.
Caminhamos em direção à praça da cidade velha, perto de onde eu
morava então, e sentimos uma solidão imensa, um vazio, o vazio do
espaço europeu de onde a cultura ia embora lentamente.19

11

A última lembrança do Ocidente que os países centro-europeus


guardam de sua própria experiência é a do período entre 1918 e 1938.
Eles se apegam a esse período mais do que a qualquer outra época de
sua história (as pesquisas realizadas clandestinamente provam isso). A
imagem que eles têm do Ocidente é, portanto, a imagem do Ocidente
de ontem; do Ocidente em que a cultura ainda não havia cedido
completamente seu lugar.
Nesse sentido, gostaria de destacar uma circunstância significativa:
as revoltas centro-europeias não foram apoiadas pelos jornais, pelas
rádios ou pela televisão, isto é, pela mídia. Foram preparadas,
executadas, realizadas pelos romances, pela poesia, pelo teatro, pelo
cinema, pela historiografia, pelas revistas literárias, pelos espetáculos
cômicos populares, pelas discussões filosóficas, isto é, pela cultura. Os
veículos de massa que, para um francês ou um norte-americano,
confundem-se com a própria imagem do Ocidente contemporâneo,
não tiveram nenhum papel nessas revoltas (eles estavam
completamente subjugados pelo Estado).20
É por isso que, quando os russos ocuparam a Tchecoslováquia, a
primeira consequência foi a destruição completa da cultura tcheca
propriamente dita. Havia três propósitos nessa destruição: primeiro,
destruiu-se o centro da oposição; em segundo lugar, minou-se a
identidade da nação para que ela pudesse ser digerida mais facilmente
pela civilização russa; em terceiro lugar, deu-se um fim violento à
Modernidade, isto é, a essa época em que a cultura ainda representava
a realização dos valores supremos.
Essa terceira consequência é a que me parece mais importante. Na
verdade, a civilização do totalitarismo russo é a negação radical do
Ocidente tal como ele nasceu, na aurora da Modernidade, fundado
sobre o ego que pensa e duvida, caracterizado por uma produção
cultural concebida como expressão desse ego único e inimitável. A
invasão russa lançou a Tchecoslováquia a uma época “pós-cultura” e
assim a expôs, desarmada e nua, diante do Exército russo e da
televisão estatal onipresente.
Ainda abalado por esse acontecimento triplamente trágico que foi a
invasão de Praga, cheguei à França e tentei explicar aos meus amigos
franceses o massacre da cultura ocorrido após a invasão: “Imaginem!
Acabaram com todas as revistas literárias e culturais! Todas, sem
exceção! Isso nunca aconteceu na história tcheca, nem mesmo na
ocupação nazista durante a guerra!”.
Bem, meus amigos me olhavam com uma complacência
constrangida, cujo significado entendi depois. Na verdade, a nação
inteira ficou sabendo quando acabaram com todas as revistas da
Tchecoslováquia, e foi com angústia que ela compreendeu o imenso
significado desse acontecimento.21 Se na França ou na Inglaterra todas
as revistas desaparecessem, ninguém perceberia, nem os editores. Em
Paris, mesmo nos círculos mais cultivados, durante o jantar as
discussões giram em torno dos programas de televisão, e não das
revistas. Porque a cultura já cedeu lugar. Seu desaparecimento, que em
Praga vivemos como uma catástrofe, um choque, uma tragédia, é
vivido em Paris como algo banal e insignificante, quase não visível,
como um não acontecimento.

12

Depois da destruição do Império, a Europa Central perdeu seu


bastião. Depois de Auschwitz, que varreu a nação judaica da
superfície, ela não perdeu a alma? E, depois de ter sido arrancada da
Europa em 1945, a Europa Central ainda existe?
Sim, sua produção e suas revoltas indicam que ela “ainda não
pereceu”. Contudo, se viver significa existir aos olhos de quem
amamos, a Europa Central não existe mais. Para ser mais preciso: aos
olhos de sua amada Europa, ela não passa de uma parte do Império
soviético, nada mais.
E por que se espantar com isso? Pelo sistema político, a Europa
Central é leste; pela história cultural, ela é Ocidente. Mas, como a
Europa está perdendo o sentido da própria identidade cultural, ela vê
a Europa Central apenas pelo regime político; em outras palavras: ela
vê na Europa Central apenas a Europa Oriental.
A Europa Central precisa então combater não apenas a força
opressiva da grande vizinha, mas também a força imaterial do tempo
que, irremediavelmente, deixa atrás de si a época da cultura. É por isso
que as revoltas centro-europeias têm algo de conservadoras, quase
anacrônicas, eu diria: elas tentam desesperadamente restaurar o tempo
passado, o tempo passado da cultura, o tempo passado da
Modernidade, porque apenas naquela época, apenas no mundo que
preserva uma dimensão cultural, a Europa Central ainda pode
defender sua identidade, ainda pode ser vista como tal.
A verdadeira tragédia da Europa Central, portanto, não é a Rússia,
mas a Europa. A Europa, essa Europa que, para o diretor da agência
de notícias da Hungria, representava um valor tamanho que ele estava
disposto a morrer por ela — e morreu. Atrás da cortina de ferro, ele
não tinha dúvida de que os tempos tinham mudado e de que, na
Europa, a Europa não era mais percebida como valor. Ele não tinha
dúvida de que a frase que enviou por telex para além das fronteiras de
seu país tinha um tom antiquado e nunca seria entendida.
sobre o autor
Milan Kundera nasceu em Brno, na República Tcheca, em 1929, e
emigrou para a França em 1975, onde viveu como cidadão francês.
Romancista e pensador de renome internacional, é autor, entre outras
obras, de A identidade, Risíveis amores, A festa da insignificância,
publicadas no Brasil pela Companhia das Letras. Morreu em 2023.
lista de obras
A arte do romance
A brincadeira
A cortina
Um encontro
A festa da insignificância
A identidade
A ignorância
A imortalidade
A insustentável leveza do ser
A lentidão
O livro do riso e do esquecimento
Um ocidente sequestrado: Ou a tragédia da Europa Central
Risíveis amores
Os testamentos traídos
A valsa dos adeuses
A vida está em outro lugar
Notas

1. Em tradução livre: “O poeta disse a verdade, ele deve ser executado”. Versos de “La
Vérité”, de 1967. (n. t.)

2. Entrevista de Milan Kundera a Antonin Liehm, publicada em Trois générations (Paris:


Gallimard, 1970), coletânea de entrevistas sobre o fenômeno cultural tcheco, com prefácio de
Jean-Paul Sartre. Essa entrevista, realizada na véspera do Congresso dos Escritores de 1967, é
ainda hoje o melhor autorretrato intelectual de Kundera.

3. A Batalha da Montanha Branca, ocorrida em 8 de novembro de 1620, foi uma das


primeiras e mais importantes batalhas da Guerra dos Trinta Anos; ela marcou o fim da
independência tcheca. (n. e. francesa)

4. A cerveja de tipo Pilsen foi criada em meados do século xix em Plzeň (Pilsen, em alemão),
na região da Boêmia, na República Tcheca, na cervejaria Plzeňský Prazdroj. O nome da marca
da cerveja é alemão: Pilsner Urquell, que significa “fonte original da cerveja Pilsen”. (n. t.)

5. Seria possível incluir, entre essas revoltas, a dos operários berlinenses de 1953? Sim e não.
O destino da Alemanha Oriental tem uma característica específica. Não existem duas
Polônias; por outro lado, a Alemanha Oriental não passa de uma parte da Alemanha, cuja
existência nacional não está de forma alguma ameaçada. Nas mãos dos russos, essa parte
desempenha o papel de refém, em relação ao qual a Alemanha Ocidental e a urss executam
uma política muito especial, que não se aplica às nações centro-europeias e que um dia, a meu
ver, será feita à custa delas. Talvez seja por isso que não há uma simpatia espontânea entre
alemães orientais e os outros. Vimos o que aconteceu quando os cinco exércitos do Pacto de
Varsóvia ocuparam a Tchecoslováquia. Os russos, os búlgaros, os alemães orientais eram
terríveis e temidos. No entanto, eu poderia contar dúzias de histórias sobre os poloneses e os
húngaros, que faziam o impossível para demonstrar sua discordância da ocupação e a
sabotavam abertamente. Se a essa conivência polonesa-húngaro-tcheca somarmos a ajuda
verdadeiramente entusiasta oferecida pela Áustria aos tchecos e o furor antissoviético que
tomou os iugoslavos, constatamos que a ocupação da Tchecoslováquia provocou de imediato
a emergência do espaço tradicional da Europa Central com uma clareza impressionante.

6. Um observador externo pode ter dificuldade em entender o paradoxo: o período pós-1945


é, ao mesmo tempo, o mais trágico e um dos maiores da história cultural da Europa Central.
Seja no exílio (Witold Gombrowicz, Czesław Miłosz), na forma de uma criação clandestina (a
Tchecoslováquia depois de 1968) ou como atividade tolerada pelas autoridades, obrigadas a
ceder mediante a pressão da opinião pública, o filme, o romance, o teatro, a filosofia nascidos
nessa época representam o apogeu da produção europeia.

7. Leszek Kołakowski disse: “Ainda que, como Soljenítsin, eu acredite que o sistema soviético
superou o czarismo em sua característica opressora […], não chego a ponto de idealizar o
sistema contra o qual meus ancestrais lutaram em condições terríveis, foram mortos, foram
torturados e sofreram humilhações […]. Acredito que Soljenítsin tende a idealizar o czarismo,
o que nem eu, nem qualquer outro polonês, sem dúvida, pode aceitar” (Zeszyty Literackie, n.
2, Paris, 1983).

8. O casamento russo-ocidental mais feliz é a obra de Ígor Stravinski, que resume toda a
história milenar da música ocidental e, ao mesmo tempo, por sua imaginação musical,
continua sendo profundamente russo. Outro excelente casamento foi realizado na Europa
Central em duas óperas magníficas de um grande russófilo, Leoš Janáček: uma, a partir de
Aleksandr Ostróvski (Kátia Kabanová, 1924) e outra, que admiro infinitamente, a partir de
Fiódor Dostoiévski (Escritos da casa morta, 1928). Mas é muito sintomático que essas óperas
jamais tenham sido apresentadas na Rússia e que sejam mesmo desconhecidas nesse país. A
Rússia comunista rejeita os casamentos desiguais com o Ocidente.
9. Nem o prêmio Nobel deu um chacoalhão na indiferença estúpida dos editores europeus em
relação a Miłosz. No fim das contas, ele é sutil demais, e um poeta grande demais para se
tornar uma personalidade de nosso tempo. Seus dois livros de ensaios, A mente aprisionada
(1953) e Une autre Europe (1959), de onde tiro minha citação, são as primeiras análises finas,
não maniqueístas, do comunismo russo e de seu Drang nach West [avanço para o oeste, em
referência ao Drang nach Osten, movimento expansionista alemão em territórios eslavos da
Europa Central, no século xix].

10. Li num só fôlego o manuscrito da tradução norte-americana desse livro de Brandys, que
em polonês se intitula Miesiace [Os meses] e, em inglês, Warsaw Diary [Diário de Varsóvia].
Se não quiser permanecer na superfície dos comentários políticos e quiser se aprofundar no
essencial do drama polonês, aconselho a não perder esse grande livro!
11. O texto mais bonito e lúcido que já li sobre a Rússia como civilização singular é o de Emil
Cioran, intitulado “A Rússia e o vírus da liberdade”, publicado no livro História e utopia
(1960). La Tentation d’exister [A tentação de existir] (1956) contém outras considerações
excelentes sobre a Rússia e a Europa. Acho que Cioran é um dos raros pensadores que ainda
se questionam sobre o assunto fora de moda que é a Europa, em sua dimensão plena. Aliás,
não é Cioran como escritor que se questiona, mas Cioran como centro-europeu, oriundo da
Romênia, país “constituído para desaparecer, perfeitamente organizado para ser devorado”
(La Tentation d’exister). Só se pode pensar a Europa como Europa devorada.
12. Karel Havlíček Borovský tinha 22 anos quando, em 1843, viajou para a Rússia, onde
ficou durante um ano. Chegou lá como eslavófilo entusiasta e logo se tornou um dos críticos
mais severos da Rússia. Ele expressa suas opiniões em cartas e artigos, depois reunidos em um
livro breve. Trata-se de outras “cartas da Rússia”, escritas quase no mesmo ano que as de
[Marquês de] Custine. Elas dizem respeito aos julgamentos do viajante francês. (As
semelhanças são frequentemente divertidas. Custine: “Se seu filho está infeliz na França, siga
meu conselho: diga-lhe para ir à Rússia. Quem conheceu esse país a fundo ficará eternamente
satisfeito por viver em outro lugar”. Havlíček: “Se quer fazer um verdadeiro favor aos
tchecos, pague a eles uma viagem a Moscou!”.) Essa semelhança é ainda mais importante
considerando-se que Havlíček, plebeu, patriota tcheco, não pode ser suspeito de ter viés ou
preconceito contra os russos. Havlíček é a personalidade mais representativa da política
tcheca do século xix, haja vista a influência que exerceu em František Palacký e sobretudo
em Tomáš Masaryk.

13. Existe uma pequena obra divertida chamada How To Be an Alien [Como ser um
forasteiro], em que, no capítulo intitulado “Soul and Understatement” [Alma e eufemismo], o
autor fala da alma eslava. “O pior tipo de alma é a grande alma eslava. Aqueles que têm essa
alma eslava costumam ser pensadores muito profundos. Adoram dizer, por exemplo: ‘Em
alguns momentos estou feliz, em alguns momentos estou triste. Como você poderia me
explicar?’. Ou então: ‘Sou enigmático. Há momentos em que eu desejaria ser qualquer outra
pessoa, que não eu’. Ou então: ‘Quando estou sozinho em uma floresta à meia-noite e salto de
uma árvore para outra, sempre penso que a vida é estranha’.” Quem ousa zombar da grande
alma eslava? Naturalmente, um autor de origem húngara, George Mikes. É só na Europa
Central que a alma eslava soa ridícula.

14. Abra-se por exemplo a Histoire universelle [História universal] da Encyclopédie de La


Pléiade. Encontramos o reformador da Igreja católica, Jan Hus, não no mesmo capítulo de
Lutero, mas no de Ivan, o Terrível! E vamos procurar em vão um texto básico sobre a
Hungria. Como não podem ser incluídos no “mundo eslavo”, os húngaros não têm lugar no
mapa da Europa.
15. Na verdade, o pensamento estruturalista nasceu em torno do fim dos anos 1920, no
Círculo Linguístico de Praga. O grupo era formado por estudiosos tchecos, russos, alemães e
poloneses. Foi nesse meio muito cosmopolita que, durante os anos 1930, Jan Mukařovský
elaborou sua estética estrutural. O estruturalismo de Praga estava organicamente enraizado
no formalismo tcheco do século xix. (As tendências formalistas eram mais fortes na Europa
Central que em outros lugares, a meu ver devido ao lugar dominante que ali ocupavam a
música e, por conseguinte, a musicologia, que é “formalista” em sua essência.) Inspirado no
ímpeto recente do formalismo russo, Mukařovský ultrapassava radicalmente seu caráter
unilateral. Os estruturalistas foram os aliados dos poetas e dos pintores da vanguarda de
Praga (antecipando assim a aliança criada na França trinta anos depois). Com sua influência,
protegeram a arte da vanguarda da interpretação rigidamente ideológica que sempre
acompanhava a arte moderna. A obra de Mukařovský, conhecida no mundo todo, nunca foi
publicada na França. (Em 2018, dezoito artigos do teórico e crítico literário tcheco foram
publicados na coletânea francesa Jan Mukařovský: Écrits 1928-1946; em português, Escritos
sobre estética e semiótica da arte saiu em 1988 pela lisboeta Editorial Estampa. [n. t.])
16. Gosto bastante de dois livros sobre a “visão centro-europeia do mundo”: o primeiro, mais
literário, se chama L’Europe centrale: l’anedocte et l’histoire [A Europa Central: a anedota e a
história]; ele é anônimo (assinado por Josef K.) e circula, datilografado, em Praga; o segundo,
mais filosófico, é Il mondo della vita: un problema politico [O mundo da vida: um problema
político]; o autor é um filósofo genovês, Václav Bělohradský. Este livro, publicado na França
pela editora Verdier, merece grande atenção. Faz um ano que a questão centro-europeia é
trabalhada em um periódico muito importante, editado pela Universidade de Michigan: Cross
Currents, a Yearbook of Central European Culture.
17. O escritor francês que há tempos se refere ao romance centro-europeu (para quem esse
romance não se limita aos romances vienenses, mas engloba também o romance tcheco e o
polonês) é Pascal Lainé. Ele diz coisas interessantes em seu livro de entrevistas, Si j’ose dire [Se
ouso dizer] (Mercure de France).
18. A conferência de Werfel não era, em si, nada ingênua, e não perdeu sua atualidade. Ela me
lembra outra conferência, a de Robert Musil no Congresso para a Defesa da Cultura, em
Paris, em 1935. Assim como Werfel, ele via perigo não apenas no fascismo, mas também no
comunismo. A defesa da cultura não significa, para ele, o engajamento da cultura em uma luta
política (como todo mundo pensava na época), mas, ao contrário, o engajamento na proteção
da cultura contra o processo de estupidificar a politização. Ambos se dão conta de que, no
mundo moderno da técnica e da mídia, não há grandes esperanças para a cultura. As opiniões
de Musil e de Werfel foram muito mal recebidas em Paris. No entanto, em todas as discussões
político-culturais que escuto ao meu redor, não teria quase nada a acrescentar ao que Werfel e
Musil disseram, e nesses momentos me sinto muito ligado a eles, nesses momentos me sinto
irremediavelmente centro-europeu.
19. Depois de uma longa hesitação, ele acabou enviando a carta — para Jean-Paul Sartre. Sim,
Sartre ainda era a última grande figura mundial da cultura: no entanto, foi justamente ele que,
na minha opinião, por sua concepção de “engajamento”, fundou a base teórica de uma
abdicação da cultura como força autônoma, específica e irredutível. De todo modo, Sartre
reagiu prontamente a essa carta de meu amigo publicando um texto no Le Monde. Sem essa
intervenção, não creio que a polícia teria enfim (quase um ano depois) devolvido o manuscrito
ao filósofo. No dia do enterro de Sartre, meu amigo de Praga me veio à lembrança: agora, não
haveria mais nenhum destinatário para sua carta.

20. No entanto, é preciso mencionar uma exceção célebre: durante os primeiros dias da
ocupação russa da Tchecoslováquia, foram o rádio e a televisão que, em emissões
clandestinas, tiveram papel de fato notável. Mas, mesmo então, era sempre a voz dos
representantes da cultura que prevalecia.
21. O semanário Literarni noviny [Jornal literário], com tiragem de 300 mil exemplares (em
um país de 10 milhões de habitantes), era editado pela União dos Escritores Tchecos. Foi ele
que, ao longo dos anos, preparou a Primavera de Praga e na sequência foi sua tribuna. Na
estrutura, esse jornal não se assemelha a semanários como a Time, que, todos parecidos, se
espalharam pelos Estados Unidos e pela Europa. Literarni noviny era realmente literário: ali
havia crônicas longas sobre arte, análises de livros. Os artigos dedicados a história, sociologia
e política eram escritos não por jornalistas, mas por escritores, historiadores e filósofos. Não
conheço nenhum semanário europeu de nosso século que tenha tido um papel histórico tão
importante e que o tenha desempenhado tão bem. As publicações literárias mensais tchecas
tinham tiragem entre 10 mil e 40 mil exemplares, e seu nível era notável, não obstante a
censura. Na Polônia, as revistas tiveram importância equivalente: hoje, existem centenas (!) de
publicações clandestinas!
Discurso ao Congresso dos Escritores Tchecos © 1967 by Milan Kundera
Um Ocidente sequestrado: Ou a tragédia da Europa Central © 1983 by Milan Kundera
Copyright das apresentações © 2021 by Éditions Gallimard

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou
em vigor no Brasil em 2009.

Título original
Un Occident kidnappé ou la tragédie de l’Europe Centrale

Capa
Alceu Chiesorin Nunes

Imagem de capa
defrocked/ Shutterstock

Preparação
Cristina Yamazaki

Revisão
Angela das Neves
Renata Lopes Del Nero

Versão digital
Marina Pastore

isbn 978-85-3593-592-9

Todos os direitos desta edição reservados à


editora schwarcz s.a.
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