Um Ocidente Sequestrado - Milan Kundera
Um Ocidente Sequestrado - Milan Kundera
Um Ocidente Sequestrado - Milan Kundera
Capa
Folha de rosto
Sumário
Introdução — Jacques Rupnik
A literatura e as nações pequenas — Discurso ao Congresso dos
Escritores Tchecos (1967)
Sobre o autor
Lista de obras
Notas
Créditos
Introdução
Jacques Rupnik
Há congressos mais importantes, ou ao menos mais memoráveis,
que os do Partido. Na Tchecoslováquia comunista eles eram
frequentes e parecidos entre si. Os congressos de escritores podiam ser
imprevisíveis e por vezes eram o prenúncio de mudanças profundas na
relação entre o poder e a sociedade.
Há também discursos que marcam uma época e cuja releitura hoje
ressoa de um jeito singular. Pensemos na denúncia de censura que
Alexander Soljenítsin faz a Moscou em maio de 1967 e que inspira
uma bela canção de Guy Béart: “Le poète a dit la vérité, il doit être
exécuté…”.1 São menos conhecidos os discursos impressionantes
proferidos em Praga um mês depois no Congresso dos Escritores, a
começar por este de Milan Kundera.
Milan Kundera era então um escritor de sucesso: no teatro, com Les
Propriétaires des clés [Os donos das chaves] (1962), com a coletânea
de contos Amores risíveis (1963 e 1965) e sobretudo A brincadeira,
romance publicado em 1967 (na época do Congresso dos Escritores)
que evoca e encerra uma época e que, para os leitores tchecos, mas
não só para eles, segue associado à Primavera de 1968. Kundera era
professor da Escola de Cinema e tv (Famu, na sigla original) e se
tornou figura proeminente de uma expansão formidável da produção
cultural, de originalidade e diversidade excepcionais, tanto na
literatura (Bohumil Hrabal, Josef Škvorecký, Ludvík Vaculík…) como
no teatro (Václav Havel, Josef Topol…) e sobretudo na nouvelle vague
do cinema (Forman, Passer, Menzel, Němec, Chytilová…). Ele
considerava — com razão — os anos 1960 uma “época de ouro” da
cultura tcheca, que se desvencilha progressivamente das restrições
ideológicas do regime sem se submeter às do mercado. Nessa
perspectiva, a Primavera de Praga de 1968 não se limita à dimensão
política e deve ser de fato entendida como apogeu de uma década em
que o jornal semanal dos escritores, Literární noviny [Jornal literário],
é publicado com tiragem de 250 mil exemplares, todos vendidos no
mesmo dia — uma década em que a emancipação da cultura acelera a
desintegração da estrutura política.
Avaliando o perigo, o poder instituído tenta então retomar o
controle da situação, e o Congresso dos Escritores de junho de 1967 se
torna o palco dessa queda de braço entre os escritores e o poder, cujas
premissas vinham da conferência de Liblice de 1963, dedicada a Franz
Kafka, um sepultamento simbólico do “realismo socialista”. Quarenta
anos depois, a obra do escritor judeu, de Praga, de língua alemã, a
começar por O processo, ganhava outro realismo aos olhos dos
leitores tchecos, mais perigoso para o ocupante do Castelo, Antonín
Novotný, o chefe do Partido e do Estado.
O Congresso dos Escritores de 1967 teve muitos pontos altos. A
começar pelo discurso do escritor Pavel Kohout criticando a política
anti-israelense do bloco soviético na Guerra dos Seis Dias, antes de ler
a famosa carta de Soljenítsin para a União dos Escritores Soviéticos.
Isso foi demais para Kiri Hendrych, o guardião da ortodoxia
ideológica que dirigia o Partido; ele abandonou a sala e, ao passar por
trás da tribuna onde estavam Kundera, Procházka e Lustig, lançou-
lhes o inesquecível “Vocês perderam tudo, tudo mesmo!”. No dia
seguinte, foi a vez de Ludvík Vaculík, autor de Sekyra [O machado] e
membro da redação de Literární noviny, revoltado com a proposta de
Hendrych, de passar de todos os limites considerados aceitáveis
abordando sem rodeios a questão de fundo: o confisco do poder por
“um punhado de pessoas que quer tomar todas as decisões”,
criticando assim a censura e até mesmo a Constituição. A ruptura
estava consumada.
A história política recordará, naturalmente, do conflito explícito
entre os escritores e o poder; a derrota provisória dos primeiros no
verão de 1967; depois sua vitória (também provisória) na primavera
de 1968. A história das ideias recordará especificamente do discurso
de abertura de Milan Kundera. Como seus colegas, ele aborda a
censura, mas trata do tema da liberdade de criação por outro viés.
Adotando uma perspectiva histórica, Kundera se questiona a respeito
do destino da nação tcheca, cuja própria existência “não está dada” —
diante das elites dizimadas após a Batalha da Montanha Branca
(1620) e de dois séculos de germanização —, e volta à questão
provocadora formulada no fim do século xix pelo escritor Hubert
Gordon Schauer: valia mesmo a pena investir tantos esforços para
devolver aos tchecos uma língua dotada de alta cultura? Não seria
preferível fundir-se à cultura alemã, então mais desenvolvida e
influente? Quase um século depois, Kundera retoma a questão de
maneira retórica e oferece sua resposta: isso se justifica apenas por
uma contribuição original à cultura e aos valores europeus; dito de
outra forma, o universal pelo particular. A vitalidade da cultura tcheca
dos anos 1960 parece justificar tal ambição ou aposta. Pois essa
expansão da cultura, da qual depende a existência da nação, tem
como condição a liberdade. Quem defende a autonomia da cultura e a
liberdade de pensamento se torna uma ameaça aos ideólogos censores,
que Kundera chama de “vândalos”. Libertar a cultura das garras do
poder assume manifestamente uma dimensão política.
Mas a questão abordada por Kundera em 1967 também ressoa de
modo assustadoramente contemporâneo quando ele antecipa outra
dimensão: o futuro das nações pequenas nas “vastas perspectivas
integracionistas que se abriram na segunda metade do século xx”.
“Corre-se o risco de incorporar todas as nações pequenas no
processo de integração, as quais têm como defesa apenas o vigor de
sua cultura, a personalidade e as características inimitáveis de sua
contribuição.”2 Conter a “pressão não violenta desse processo de
integração nos séculos xx e xxi” se revelaria muito mais difícil que a
resistência outrora oferecida à germanização.
Assim, a interrogação sobre a especificidade do lugar da cultura
tcheca se desdobra na reflexão de Kundera sobre o futuro das nações
pequenas da Europa Central e antecipa, em determinados aspectos,
seus dilemas em uma Europa em globalização. Esse é também o ponto
de contato entre o discurso de Kundera no Congresso dos Escritores
de 1967 e o ensaio “Um Ocidente sequestrado: Ou a tragédia da
Europa Central”, publicado em 1983 em Le Débat.
a literatura e as nações pequenas
Discurso ao Congresso dos Escritores Tchecos
(1967)
Caros amigos, ainda que nenhuma nação exista no planeta Terra
desde os tempos imemoriais, e ainda que a própria ideia de nação seja
relativamente moderna, a maioria delas entende sua existência como
algo dado, um presente de Deus ou da Natureza que desde sempre
esteve aqui. Os povos são capazes de definir sua cultura, seu sistema
político e até suas fronteiras como criação própria, passível portanto
de questionamento ou problematização, enquanto consideram sua
existência como povo um fato isento de qualquer questionamento. A
história bem pouco feliz e descontínua da nação tcheca, que vivenciou
a antecâmara da morte, permitiu que ela própria não sucumbisse a
esse tipo de ilusão enganadora. A existência da nação tcheca nunca foi
entendida como algo dado, e é justamente o fato de ser algo não dado
um de seus atributos mais importantes.
Esse fenômeno se mostrou mais evidente no início do século xix,
quando um punhado de intelectuais tentou ressuscitar primeiro o
tcheco, essa língua quase esquecida, e depois, na geração seguinte, o
povo tcheco já em vias de extinção. Esse renascimento foi um gesto
deliberado e, como qualquer gesto, baseou-se em uma escolha entre
pró e contra. Ainda que tenham se inclinado em favor do “pró”, os
intelectuais oriundos do movimento de renovação nacional tcheca
também conhecem o peso dos argumentos que vão no sentido
contrário. Eles sabiam — como František Matouš Klácel, por
exemplo, que tratou disso — que a germanização teria simplificado a
vida dos tchecos, oferecendo mais oportunidades aos seus filhos.
Também sabiam que pertencer a uma das maiores nações confere peso
maior a qualquer trabalho intelectual e amplia seu alcance, enquanto a
ciência formulada em tcheco — cito Klácel — “circunscreve o
reconhecimento do meu zeloso trabalho”. Eles estavam conscientes
das complicações com as quais deparam os povos pequenos que —
como dizia Ján Kollár — “pensam e sentem apenas pela metade” e
cujo nível de educação — ainda citando Kollár — “com frequência é
medíocre e franzino; eles não vivem, apenas sobrevivem, não crescem
nem florescem, apenas vegetam, não geram árvores, só espinhos”.
Estar perfeitamente consciente desses argumentos, assim como dos
argumentos contrários, inclui a questão “ser ou não ser, e por quê?”
no próprio fundamento da existência moderna da nação tcheca.
Estimular tal existência significava, por parte dos protagonistas do
despertar nacional, uma grande aposta para o futuro. Eles colocaram
o povo diante do dever de justificar, no futuro, a justeza daquela
escolha.
Foi seguindo justamente a lógica desse não dado da existência da
nação tcheca que, em 1886, Hubert Gordon Schauer lançou na cara
da jovem sociedade tcheca, que já começava a se vangloriar de sua
pequenez, esta pergunta escandalosa: não teríamos contribuído mais
para a humanidade se tivéssemos somado nossa energia criativa à de
uma nação maior, cuja cultura é sem dúvida mais desenvolvida que a
tcheca, ainda em germinação? Será que valeram a pena todos os
esforços feitos para ressuscitar nosso povo? Será que o valor cultural
de nosso povo é suficiente para justificar sua existência? Soma-se
ainda outra pergunta: será que esse valor, por si só, será capaz de
protegê-lo, no futuro, do risco de perder a própria soberania?
O provincianismo tcheco que se contentava em vegetar, em vez de
viver, viu nesse questionamento, substituto de falsas certezas, um
ataque subjacente contra o país, e por esse motivo decidiu descartar o
sr. Schauer. Contudo, cinco anos depois, o jovem crítico Salda reputou
Schauer como a maior personalidade de seu tempo, e seu ensaio como
um gesto patriótico por excelência. Ele não estava errado. Schauer
apenas levou ao extremo um dilema do qual todos os líderes do
despertar nacional tcheco estavam conscientes. František Palacký
escreveu: “Se não elevarmos o pensamento da nação para atividades
mais grandiosas e nobres que aquelas exercidas por nossos vizinhos,
não conseguiremos sequer garantir nossa própria existência”. E Jan
Neruda dobrou a aposta: “Devemos elevar nossa nação ao patamar de
consciência e educação mundial para garantir não apenas prestígio,
mas também a própria sobrevivência”.
Os líderes da renovação tcheca associaram a sobrevivência da nação
aos valores culturais que ela deveria produzir. Desejavam medir esses
valores não em função de sua utilidade para o país, mas em função de
critérios — como se dizia à época — que se estendiam à humanidade
como um todo. Eles aspiravam à integração no mundo e na Europa.
Nesse contexto, gostaria de destacar uma especificidade da literatura
tcheca, que erigiu um modelo bastante raro no mundo: o do tradutor
como ator literário fundamental, senão o principal. Em última análise,
as maiores personalidades literárias do século anterior à Batalha da
Montanha Branca3 foram os tradutores: Řehoř Hrubý z Jelení, Daniel
Adam z Veleslavína, Jan Blahoslav. A célebre tradução de John Milton
assinada por Josef Jungmann lançou as bases do tcheco do período de
renovação nacional; a tradução literária tcheca figura até hoje em dia
entre as melhores do mundo, e o tradutor goza da mesma estima que
qualquer outra personalidade literária. A explicação para o papel
fundamental desempenhado pela tradução literária é óbvia: foi graças
às traduções que o tcheco se estabeleceu e se aperfeiçoou como língua
europeia — inclusive com uma terminologia europeia. Foi, enfim, por
meio da tradução literária que os tchecos fundaram sua literatura
europeia em língua tcheca e que a literatura formou os leitores
europeus que leem tcheco.
Para as grandes nações europeias com uma história dita clássica, o
enquadramento europeu em que elas evoluem constitui algo dado. No
entanto, os tchecos, por terem alternado períodos de vigília e de sono,
perderam diversas fases importantes do desenvolvimento de um
pensamento europeu e, assim, precisaram a cada vez se adaptar ao
enquadramento cultural, apropriar-se dele e reconstruí-lo. Para os
tchecos, nada nunca foi uma conquista incontestável, nem a língua,
nem o pertencimento europeu, que, a propósito, se resume a uma
eterna escolha entre duas opções: deixar que o tcheco se enfraqueça a
ponto de acabar, reduzindo-se a um mero dialeto europeu — e a
cultura tcheca, a mero folclore —, ou tornar-se uma nação europeia
com tudo o que isso implica.
Apenas esta segunda opção garantiria uma existência real,
existência, contudo, em geral bastante dura para um povo que, ao
longo de todo o século xix, dedicou a maior parte de sua energia à
construção de seus fundamentos, passando do ensino secundário à
redação de uma enciclopédia. E, no entanto, desde o início do século
xx e sobretudo entre as duas guerras, assistimos a uma expansão
cultural sem-par em toda a história tcheca. Por duas décadas, uma
plêiade de homens brilhantes se devotou à criação e logrou, nesse
espaço de tempo tão curto, pela primeira vez desde Comenius, elevar a
cultura tcheca ao patamar europeu, conservando suas especificidades.
Esse importante período, tão breve e intenso que ainda nos provoca
nostalgia, assemelhava-se não obstante mais à adolescência que à
idade adulta: por ainda estar no princípio, a literatura tcheca tinha
uma característica predominantemente lírica e não precisava, para se
desenvolver, de nada além de um tempo longo e sem interrupções de
paz. Naquele momento, desmantelar o crescimento de uma cultura tão
frágil, primeiro pela ocupação, depois pelo stalinismo, durante quase
um quarto de século, isolá-la do resto do mundo, apequenar suas
numerosas tradições internas, rebaixá-la à posição de simples
propaganda, foi uma tragédia que arriscava relegar a nação tcheca
mais uma vez — e agora, em definitivo — à periferia cultural da
Europa. Se, após alguns anos, a cultura tcheca retomou o fôlego, se
hoje ela se tornou sem dúvida o campo de atividade fundamental de
nosso êxito, se um bom número de obras excelentes viu a luz do dia e
determinadas artes, como o cinema tcheco, estão vivendo sua época de
ouro, trata-se, pois, do fenômeno mais significativo da realidade
tcheca destes últimos anos.
Nossa comunidade nacional tem, entretanto, consciência de tudo
isso? Ela percebe que poderia se reconciliar com essa época
memorável da adolescência de nossa literatura do entreguerras, e de
que isso seria uma oportunidade excelente? Ela sabe que seu futuro
depende do futuro de sua cultura? Ou será que enfim acabamos por
desaprovar a opinião dos líderes da renovação tcheca, segundo a qual,
na ausência de valores culturais sólidos, a sobrevivência de um povo
como tal está longe de ser garantida?
O papel da cultura em nossa sociedade sem dúvida mudou desde a
ressurreição nacional tcheca, e hoje não corremos mais risco de sermos
expostos a uma opressão étnica. No entanto, não acredito que agora a
cultura se preste menos que antes a justificar e preservar nossa
identidade nacional. Ao longo da segunda metade do século xx,
abriram-se vastas perspectivas integracionistas. Pela primeira vez, a
humanidade reuniu esforços para elaborar uma história comum.
Pequenas entidades se associam para formar entidades maiores. A
colaboração cultural internacional se concentra, ao se unir. O turismo
se torna um fenômeno de massa. Como consequência, amplia-se o
papel de diversas línguas mundiais importantes, e, como a vida toda se
internacionaliza, o peso das pequenas línguas diminui cada vez mais.
Há pouco tempo, conversei com um homem do teatro, um belga da
região de Flandres. Queixava-se de que sua língua estava ameaçada,
de que a intelligentsia flamenga se tornava bilíngue e começava a
preferir o inglês à língua materna dele, por facilitar o contato com a
ciência internacional. Nessas circunstâncias, os povos pequenos só
podem defender a língua e a soberania por meio do peso cultural da
própria língua e da singularidade dos valores gerados a partir dela. A
cerveja Pilsen, é claro, também é um valor. No entanto, em todos os
lugares bebe-se essa cerveja sob o nome de Pilsner Urquell. Não, a
cerveja de Pilsen não pode de forma alguma apoiar a reivindicação
dos tchecos de preservar a própria língua.4 No futuro, esse mundo que
continua a se integrar exigirá de nós, sem cerimônia e de maneira
completamente legítima, a justificativa para essa existência que
escolhemos há 150 anos e nos questionará sobre o motivo dessa
escolha.
Urge que toda a sociedade tcheca se conscientize de forma plena
sobre o papel essencial de sua cultura e literatura. A literatura tcheca é
bem pouco aristocrática — o que é outra especificidade sua; é uma
literatura plebeia estreitamente ligada ao vasto público nacional. Essa
é, ao mesmo tempo, sua força e sua fraqueza. A força reside em sua
base sólida, em que sua palavra ressoa alto; as fraquezas, em sua
emancipação insuficiente, no nível de educação, na abertura de
espírito, assim como nas eventuais manifestações de falta de cultura da
sociedade tcheca, da qual a literatura tanto depende. Às vezes temo
que nossa educação contemporânea perca essa característica europeia
que calava tão fundo no coração de nossos humanistas e de nossos
líderes da ressurreição nacional tcheca. A Antiguidade greco-romana e
a cristandade, essas duas fontes fundamentais do espírito europeu, que
provocam a tensão de suas próprias expansões, quase desapareceram
da consciência do jovem intelectual tcheco; trata-se de uma perda
insubstituível. Ora, existe uma continuidade sólida no pensamento
europeu, que sobreviveu a todas as revoluções do espírito; pensamento
que construiu seu vocabulário, sua terminologia, suas alegorias, seus
mitos, assim como as causas que defende, e sem o qual os intelectuais
europeus não conseguem se entender. Acabo de ler um relatório
avassalador sobre o conhecimento dos futuros professores de tcheco
em relação à literatura europeia, e prefiro não saber o que dominam
sobre a história mundial. O provincianismo não é apenas uma
característica de nossa orientação literária, mas sobretudo um
problema ligado à vida de toda a sociedade, à sua educação, ao seu
jornalismo etc.
Recentemente, assisti a um filme chamado As pequenas margaridas,
que conta a história de duas moças maravilhosamente vis, orgulhosas
de sua doce mesquinhez, e que destroem com alegria e bom humor
tudo o que está além de seu próprio horizonte. Vejo aí uma alegoria
do vandalismo de grande alcance e de uma atualidade candente. O que
é um vândalo? Não, não é o camponês analfabeto que, num acesso de
cólera, bota fogo na casa do rico proprietário de terras. Os vândalos
com quem cruzo são cultos, satisfeitos consigo mesmos, gozam de boa
posição social e não têm nenhum ressentimento específico contra
quem quer que seja. O vândalo é a mesquinhez orgulhosa que basta a
si mesma e está pronta, a qualquer momento, para reivindicar seus
direitos. Essa mesquinhez orgulhosa acredita que o poder de adaptar o
mundo à sua imagem faz parte de seus direitos inalienáveis e,
considerando que o mundo é majoritariamente feito de tudo aquilo
que está além dela, adapta o mundo à sua imagem, destruindo-o.
Assim, um adolescente decapita uma estátua em um parque porque
essa estátua está ostensivamente além de sua própria essência humana,
e faz isso se vangloriando, na medida em que cada gesto de
autoafirmação traz satisfação ao homem. Os homens que vivem
apenas seu presente descontextualizado, que ignoram a continuidade
histórica e a quem falta cultura, são capazes de transformar sua pátria
em um deserto sem história, sem memória, sem ecos e isento de
qualquer beleza. O vandalismo contemporâneo não se reveste apenas
de formas condenáveis pela lei. No momento em que uma comissão de
cidadãos, ou de burocratas responsáveis por um relatório, decreta que
uma estátua (um castelo, uma igreja, uma tília centenária) é inútil e
decide removê-la, esse caso não passa de outra forma de vandalismo.
Não há muita diferença entre a destruição legal e a ilegal, assim como
entre a destruição e a proibição. Um membro do Parlamento solicitou
recentemente, em nome de um grupo de 21 deputados, a proibição de
dois filmes tchecos importantes, de difícil acesso, incluindo — que
ironia! — essa alegoria do vandalismo que são As pequenas
margaridas. Ele se lançou sem pudor contra os dois filmes e já de
início admitiu, com todas as letras, que não os havia entendido. A
incoerência da proposta é apenas aparente. O maior delito imputado a
essas duas obras cinematográficas é justamente o fato de estarem além
do horizonte de seus juízes, o que os teria ofendido.
Em uma carta a Claude-Adrien Helvétius, Voltaire escreveu esta
frase magnífica: “Não concordo com o que você disse, mas defenderei
até a morte seu direito de dizê-lo”. Trata-se de uma formulação do
princípio ético básico de nossa cultura moderna. Quem retrocede na
história ao momento anterior ao nascimento desse princípio abandona
o Iluminismo para retornar à Idade Média. Qualquer repressão a uma
opinião, incluindo a repressão brutal a opiniões erradas, no fundo vai
contra a verdade, essa verdade a que só se chega no confronto de
opiniões livres e equivalentes. No século xx, qualquer interferência
nas liberdades de pensamento e de expressão — sejam lá quais forem
o método e a designação dessa censura — é um escândalo, assim como
um fardo pesado para nossa literatura em plena efervescência.
Uma coisa é incontestável: se hoje nossas artes prosperam, isso
ocorre graças aos avanços da liberdade de pensamento. O futuro da
literatura tcheca depende intimamente da dimensão dessa liberdade.
Sei que, no momento em que dizemos “liberdade”, há quem se irrite e
comece a protestar dizendo que a liberdade de uma literatura
socialista deve ter limites. Está claro que toda liberdade tem limites,
que são determinados pelo estado do saber, pela magnitude dos
preconceitos, pelo nível de educação etc. No entanto, nenhuma nova
era progressista foi definida pelos próprios limites! O Renascimento
não se autodefiniu pela ingenuidade acanhada de seu racionalismo —
ela só pôde ser vista a posteriori —, mas sim por uma emancipação
racionalista das fronteiras de então. O romantismo se autodefiniu pela
superação dos cânones classicistas e pela nova temática que conseguiu
apreender após ter atravessado as antigas fronteiras. De maneira
análoga, o termo de “literatura socialista” não vai adquirir um sentido
positivo enquanto não tiver realizado a mesma emancipação
libertadora.
No entanto, ainda vemos em nosso país maior virtude na defesa das
fronteiras que na superação delas. Diversas conjunturas políticas e da
sociedade são adotadas para justificar restrições à liberdade de
pensamento. Mas uma política digna desse nome é aquela que
privilegia interesses substanciais em detrimento de interesses
imediatos. E, para o povo tcheco, a grandeza de sua cultura equivale,
definitivamente, a esse interesse substancial.
Isso é ainda mais claro diante das excelentes perspectivas que a
cultura tcheca possui, hoje, diante de si. No século xix, o povo tcheco
viveu à margem da história mundial; ao longo do século atual,
estamos no centro dela. Uma vida no centro da história não é — e
sabemos bem disso — uma festa. Contudo, no campo mágico das
artes, os sofrimentos se transformam em riqueza criativa. Nesse
campo, mesmo a experiência amarga do stalinismo se torna um trunfo
— tão grande quanto paradoxal. Não me agrada falar do fascismo e
do comunismo em pé de igualdade. O fascismo, baseado em um anti-
humanismo escancarado, criou uma situação relativamente simples no
plano moral: apresentando-se a si mesmo como antítese dos princípios
e das virtudes humanistas, ele as manteve intactas. Por sua vez, o
stalinismo foi o herdeiro de um grande movimento humanista que,
apesar da fúria stalinista, conseguiu conservar boa quantidade de
posturas, ideias, slogans, retóricas e sonhos originais. Ver esse
movimento humanista se transformar em seu contrário, arrastando
consigo toda a virtude humana, transformando o amor pela
humanidade em crueldade para com os homens, o amor pela verdade
em delação etc., cria uma perspectiva inesperada sobre o próprio
fundamento dos valores e das virtudes humanas. O que é a história,
qual o lugar do homem na história e o que é o homem, afinal? Não é
possível responder a todas essas perguntas da mesma maneira, antes e
depois dessa experiência. Ninguém sai dela do mesmo jeito que nela
entrou. Naturalmente, o próprio stalinismo não está em questão. As
peregrinações desse povo entre democracia, jugo fascista, stalinismo e
socialismo (a história, agravada por um ambiente étnico muito
complicado) reproduzem todos os principais elementos da história do
século xx. Isso talvez nos permita formular perguntas mais pertinentes
e criar mitos mais significativos do que os povos que não atravessaram
a mesma jornada.
Durante esse século, nosso povo sem dúvida experimentou mais
provações que muitos outros, e se seu gênio se manteve adormecido,
talvez hoje ele saiba mais. Essa experiência maior poderia se
transformar em uma emancipação libertadora das antigas fronteiras,
uma superação dos limites atuais dos conhecimentos humanos e de
seu destino, e assim dar sentido, grandeza e maturidade à cultura
tcheca. Por ora, trata-se apenas, sem dúvida, de uma simples
oportunidade, de potencialidades; contudo, muitas obras criadas ao
longo desses últimos anos testemunham a realidade dessa boa fortuna.
No entanto, devo me perguntar ainda mais uma vez: nossa
comunidade nacional está consciente dessa oportunidade? Sabe que
isso lhe pertence? Sabe que uma oportunidade histórica dessas não se
apresenta mais de uma vez? Sabe que desperdiçar essa oportunidade
equivaleria a estragar o século xx para o povo tcheco?
“É senso comum”, escreveu František Palacký, “que foram os
escritores tchecos que permitiram que nossa nação evitasse o
perecimento, ao despertarem-na e fixarem objetivos nobres para seus
próprios esforços.” Os escritores tchecos têm responsabilidade
fundamental na própria sobrevivência de nosso povo, e até nossos
dias, pois é da qualidade da literatura tcheca, de sua grandeza ou
pequenez, de sua coragem ou covardia, de seu provincianismo ou
alcance universal, que depende em grande medida a resposta à questão
da sobrevivência desse povo.
Mas será que a sobrevivência desse povo vale a pena? E a
sobrevivência de sua língua, por sua vez, também vale a pena? Essas
perguntas essenciais, que inseridas nos fundamentos da existência
moderna dessa nação, ainda aguardam respostas definitivas. Pois
quem quer que, por fanatismo, vandalismo, falta de cultura ou
mesquinhez, sabote o esplendor cultural em curso, vai sabotar a
própria existência desse povo.
***
7
É responsabilidade da Europa Central, portanto, se o Ocidente nem
sequer se deu conta de seu desaparecimento?
Não completamente. Apesar da fraqueza política, no início de nosso
século a Europa Central se tornou um grande centro de cultura, talvez
o maior. Quanto a isso, é bem conhecida hoje a importância de Viena,
mas nunca é demais lembrar que a originalidade da capital austríaca é
impensável sem o pano de fundo dos outros países e cidades que, de
resto, também participaram, com a própria criatividade, da cultura
centro-europeia como um todo. Se a escola de Arnold Schönberg
fundou o sistema dodecafônico, o húngaro Béla Bartók, para mim um
dos dois ou três maiores músicos do século xx, soube encontrar a
última possibilidade original da música fundada no princípio tonal.
Praga criou, com a obra de Franz Kafka e Jaroslav Hašek, um grande
par romanesco para a obra dos vienenses Robert Musil e Hermann
Broch. O dinamismo cultural dos países não germanófonos se
intensificou mais depois de 1918, quando Praga trouxe ao mundo a
iniciativa do círculo linguístico de Praga e de seu pensamento
estruturalista.15 A grande trindade Witold Gombrowicz, Bruno Schulz
e Stanisław Witkiewicz foi o prenúncio, na Polônia, do modernismo
europeu dos anos 1950, notadamente o teatro chamado “do
absurdo”.
Uma questão se impõe: toda essa grande explosão criativa foi
somente coincidência geográfica? Ou ela estava enraizada em uma
longa tradição, em um passado? Em outras palavras: podemos falar da
Europa Central como uma verdadeira totalidade cultural com a
própria história? E, se tal totalidade existe, pode ser definida em
termos geográficos? Quais são suas fronteiras?
Seria inútil querer defini-las com exatidão. Pois a Europa Central
não é um Estado, e sim uma cultura ou um destino. As fronteiras são
imaginárias e devem ser traçadas e retraçadas com base em cada nova
conjuntura histórica.
Por exemplo, já em meados do século xiv, a Universidade Charles
reuniu, em Praga, intelectuais (professores e estudantes) tchecos,
austríacos, bávaros, saxões, poloneses, lituanos, húngaros e romenos,
já com a ideia em germe de uma comunidade multinacional em que
cada um tem direito à própria língua: na verdade, foi sob influência
indireta dessa universidade (cujo reitor era o reformador Jan Huss)
que surgiram naquele momento as primeiras traduções da Bíblia em
húngaro e em romeno.
Sucederam-se depois as outras conjunturas: a Revolução Hussita; o
esplendor internacional do Renascimento húngaro na época de Matias
Corvino; a formação do Império dos Habsburgo como a união pessoal
de três Estados independentes: a Boêmia, a Hungria e a Áustria; as
guerras contra os turcos; a Contrarreforma no século xvii. Nessa
época, a especificidade cultural centro-europeia ressurge com estrondo
graças ao extraordinário florescimento da arte barroca, que une essa
vasta região, de Salzburgo a Vilnius. Assim, no mapa europeu, a
Europa Central barroca (caracterizada pela predominância do
irracional e pelo papel dominante das artes plásticas e sobretudo da
música) torna-se o polo oposto da França clássica (caracterizada pela
predominância do racional e pelo papel dominante da literatura e da
filosofia). É nesse período do barroco que estão as raízes da expansão
extraordinária da música centro-europeia, que, de Joseph Haydn a
Arnold Schönberg, de Franz Liszt a Béla Bartók, condensa em si a
evolução de toda a música europeia.
No século xix, as lutas nacionais (dos poloneses, dos húngaros, dos
tchecos, dos croatas, dos eslovenos, dos romenos, dos judeus) opõem,
uma contra outra, nações que, embora não solidárias, isoladas e
fechadas em si mesmas, viviam a mesma grande experiência existencial
comum: a de uma nação que fez uma escolha entre existir e não
existir; em outras palavras, entre a vida nacional autêntica e a
assimilação a uma nação maior.
Mesmo os austríacos, a nação dominante do Império, não
conseguiram escapar da necessidade dessa escolha; precisaram fazer a
escolha entre a identidade austríaca e a fusão à entidade alemã maior.
Tampouco os judeus conseguiram evitar tal questão. Ao recusar a
assimilação, o sionismo, nascido aliás na Europa Central, escolheu tão
somente o mesmo caminho de todas as nações centro-europeias.
O século xx viu outras conjunturas: o colapso do Império, a
anexação russa e o longo período de revoltas centro-europeias, que
não passam de uma grande aposta na solução desconhecida.
O que definiu e determinou a configuração centro-europeia não
pode ser, portanto, as fronteiras políticas (que não são autênticas, por
serem sempre impostas por invasões, conquistas e ocupações), mas as
grandes conjunturas comuns que juntam os povos e que os reúnem
sempre de um modo diferente, em fronteiras imaginárias e sempre
mutáveis, no interior das quais subsiste a mesma memória, a mesma
experiência, a mesma comunhão de tradições.
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1. Em tradução livre: “O poeta disse a verdade, ele deve ser executado”. Versos de “La
Vérité”, de 1967. (n. t.)
4. A cerveja de tipo Pilsen foi criada em meados do século xix em Plzeň (Pilsen, em alemão),
na região da Boêmia, na República Tcheca, na cervejaria Plzeňský Prazdroj. O nome da marca
da cerveja é alemão: Pilsner Urquell, que significa “fonte original da cerveja Pilsen”. (n. t.)
5. Seria possível incluir, entre essas revoltas, a dos operários berlinenses de 1953? Sim e não.
O destino da Alemanha Oriental tem uma característica específica. Não existem duas
Polônias; por outro lado, a Alemanha Oriental não passa de uma parte da Alemanha, cuja
existência nacional não está de forma alguma ameaçada. Nas mãos dos russos, essa parte
desempenha o papel de refém, em relação ao qual a Alemanha Ocidental e a urss executam
uma política muito especial, que não se aplica às nações centro-europeias e que um dia, a meu
ver, será feita à custa delas. Talvez seja por isso que não há uma simpatia espontânea entre
alemães orientais e os outros. Vimos o que aconteceu quando os cinco exércitos do Pacto de
Varsóvia ocuparam a Tchecoslováquia. Os russos, os búlgaros, os alemães orientais eram
terríveis e temidos. No entanto, eu poderia contar dúzias de histórias sobre os poloneses e os
húngaros, que faziam o impossível para demonstrar sua discordância da ocupação e a
sabotavam abertamente. Se a essa conivência polonesa-húngaro-tcheca somarmos a ajuda
verdadeiramente entusiasta oferecida pela Áustria aos tchecos e o furor antissoviético que
tomou os iugoslavos, constatamos que a ocupação da Tchecoslováquia provocou de imediato
a emergência do espaço tradicional da Europa Central com uma clareza impressionante.
7. Leszek Kołakowski disse: “Ainda que, como Soljenítsin, eu acredite que o sistema soviético
superou o czarismo em sua característica opressora […], não chego a ponto de idealizar o
sistema contra o qual meus ancestrais lutaram em condições terríveis, foram mortos, foram
torturados e sofreram humilhações […]. Acredito que Soljenítsin tende a idealizar o czarismo,
o que nem eu, nem qualquer outro polonês, sem dúvida, pode aceitar” (Zeszyty Literackie, n.
2, Paris, 1983).
8. O casamento russo-ocidental mais feliz é a obra de Ígor Stravinski, que resume toda a
história milenar da música ocidental e, ao mesmo tempo, por sua imaginação musical,
continua sendo profundamente russo. Outro excelente casamento foi realizado na Europa
Central em duas óperas magníficas de um grande russófilo, Leoš Janáček: uma, a partir de
Aleksandr Ostróvski (Kátia Kabanová, 1924) e outra, que admiro infinitamente, a partir de
Fiódor Dostoiévski (Escritos da casa morta, 1928). Mas é muito sintomático que essas óperas
jamais tenham sido apresentadas na Rússia e que sejam mesmo desconhecidas nesse país. A
Rússia comunista rejeita os casamentos desiguais com o Ocidente.
9. Nem o prêmio Nobel deu um chacoalhão na indiferença estúpida dos editores europeus em
relação a Miłosz. No fim das contas, ele é sutil demais, e um poeta grande demais para se
tornar uma personalidade de nosso tempo. Seus dois livros de ensaios, A mente aprisionada
(1953) e Une autre Europe (1959), de onde tiro minha citação, são as primeiras análises finas,
não maniqueístas, do comunismo russo e de seu Drang nach West [avanço para o oeste, em
referência ao Drang nach Osten, movimento expansionista alemão em territórios eslavos da
Europa Central, no século xix].
10. Li num só fôlego o manuscrito da tradução norte-americana desse livro de Brandys, que
em polonês se intitula Miesiace [Os meses] e, em inglês, Warsaw Diary [Diário de Varsóvia].
Se não quiser permanecer na superfície dos comentários políticos e quiser se aprofundar no
essencial do drama polonês, aconselho a não perder esse grande livro!
11. O texto mais bonito e lúcido que já li sobre a Rússia como civilização singular é o de Emil
Cioran, intitulado “A Rússia e o vírus da liberdade”, publicado no livro História e utopia
(1960). La Tentation d’exister [A tentação de existir] (1956) contém outras considerações
excelentes sobre a Rússia e a Europa. Acho que Cioran é um dos raros pensadores que ainda
se questionam sobre o assunto fora de moda que é a Europa, em sua dimensão plena. Aliás,
não é Cioran como escritor que se questiona, mas Cioran como centro-europeu, oriundo da
Romênia, país “constituído para desaparecer, perfeitamente organizado para ser devorado”
(La Tentation d’exister). Só se pode pensar a Europa como Europa devorada.
12. Karel Havlíček Borovský tinha 22 anos quando, em 1843, viajou para a Rússia, onde
ficou durante um ano. Chegou lá como eslavófilo entusiasta e logo se tornou um dos críticos
mais severos da Rússia. Ele expressa suas opiniões em cartas e artigos, depois reunidos em um
livro breve. Trata-se de outras “cartas da Rússia”, escritas quase no mesmo ano que as de
[Marquês de] Custine. Elas dizem respeito aos julgamentos do viajante francês. (As
semelhanças são frequentemente divertidas. Custine: “Se seu filho está infeliz na França, siga
meu conselho: diga-lhe para ir à Rússia. Quem conheceu esse país a fundo ficará eternamente
satisfeito por viver em outro lugar”. Havlíček: “Se quer fazer um verdadeiro favor aos
tchecos, pague a eles uma viagem a Moscou!”.) Essa semelhança é ainda mais importante
considerando-se que Havlíček, plebeu, patriota tcheco, não pode ser suspeito de ter viés ou
preconceito contra os russos. Havlíček é a personalidade mais representativa da política
tcheca do século xix, haja vista a influência que exerceu em František Palacký e sobretudo
em Tomáš Masaryk.
13. Existe uma pequena obra divertida chamada How To Be an Alien [Como ser um
forasteiro], em que, no capítulo intitulado “Soul and Understatement” [Alma e eufemismo], o
autor fala da alma eslava. “O pior tipo de alma é a grande alma eslava. Aqueles que têm essa
alma eslava costumam ser pensadores muito profundos. Adoram dizer, por exemplo: ‘Em
alguns momentos estou feliz, em alguns momentos estou triste. Como você poderia me
explicar?’. Ou então: ‘Sou enigmático. Há momentos em que eu desejaria ser qualquer outra
pessoa, que não eu’. Ou então: ‘Quando estou sozinho em uma floresta à meia-noite e salto de
uma árvore para outra, sempre penso que a vida é estranha’.” Quem ousa zombar da grande
alma eslava? Naturalmente, um autor de origem húngara, George Mikes. É só na Europa
Central que a alma eslava soa ridícula.
20. No entanto, é preciso mencionar uma exceção célebre: durante os primeiros dias da
ocupação russa da Tchecoslováquia, foram o rádio e a televisão que, em emissões
clandestinas, tiveram papel de fato notável. Mas, mesmo então, era sempre a voz dos
representantes da cultura que prevalecia.
21. O semanário Literarni noviny [Jornal literário], com tiragem de 300 mil exemplares (em
um país de 10 milhões de habitantes), era editado pela União dos Escritores Tchecos. Foi ele
que, ao longo dos anos, preparou a Primavera de Praga e na sequência foi sua tribuna. Na
estrutura, esse jornal não se assemelha a semanários como a Time, que, todos parecidos, se
espalharam pelos Estados Unidos e pela Europa. Literarni noviny era realmente literário: ali
havia crônicas longas sobre arte, análises de livros. Os artigos dedicados a história, sociologia
e política eram escritos não por jornalistas, mas por escritores, historiadores e filósofos. Não
conheço nenhum semanário europeu de nosso século que tenha tido um papel histórico tão
importante e que o tenha desempenhado tão bem. As publicações literárias mensais tchecas
tinham tiragem entre 10 mil e 40 mil exemplares, e seu nível era notável, não obstante a
censura. Na Polônia, as revistas tiveram importância equivalente: hoje, existem centenas (!) de
publicações clandestinas!
Discurso ao Congresso dos Escritores Tchecos © 1967 by Milan Kundera
Um Ocidente sequestrado: Ou a tragédia da Europa Central © 1983 by Milan Kundera
Copyright das apresentações © 2021 by Éditions Gallimard
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou
em vigor no Brasil em 2009.
Título original
Un Occident kidnappé ou la tragédie de l’Europe Centrale
Capa
Alceu Chiesorin Nunes
Imagem de capa
defrocked/ Shutterstock
Preparação
Cristina Yamazaki
Revisão
Angela das Neves
Renata Lopes Del Nero
Versão digital
Marina Pastore
isbn 978-85-3593-592-9