Telecatch _ Clínicas públicas de psicanálise – Lacuna
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LACUNA
U M A R E V I S TA D E P S I C A N Á L I S E – I S S N 2 4 4 7 - 2 6 6 3
Senhoras e senhores,
a Lacuna convidou dois psicanalistas para um debate sobre a emergência das clínicas
públicas de psicanálise, suas viabilidades e condições de possibilidade. Em um texto
argumentativo, uma réplica e uma tréplica, o debate é desenvolvido com rigor e leveza
nessa nossa seção que procura colocar os autores para trabalhar sobre posições e
temáticas controversas intitulada “Telecatch”. Esperamos que gostem!
A clínica pública de psicanálise é fundada a partir de uma decisão primeira daqueles que
a ela se dedicam. Antes de tudo, ela é fruto de um desejo, de um entendimento dos
arquivos vivos e do potencial de criação de nossa disciplina e também de um
posicionamento concreto a favor da esfera pública na cidade, e na cidade da psicanálise.
A clínica que elaboramos, e propomos como objeto de ação social e como modelo que
pode ser replicado, é fruto do desenvolvimento teórico da psicanálise ao longo de seu
século, com elementos novos derivados de formulações e realizações psicanalíticas
anteriores tanto de Bion — o trabalho radical de estranhamento frente à realidade
psíquica, que implica a suspensão de desejo e de memória como momentos essências do
próprio método psicanalítico — quanto de René Kaës — o trabalho de elaboração
inconsciente grupal, onírico, de uma matéria psíquica que serve e se articula a um
indivíduo membro do grupo analítico — quanto, para não nos esquecermos de sua
contemporaneidade, do próprio Freud — a radicalidade do trabalho do deslocamento
inconsciente, e sua “transmissão de inconsciente para inconsciente” de elementos
significantes relevantes, um fenômeno evidentemente não controlável por parâmetros
eminentemente egoicos, ou por qualquer coisa ou função diretamente consciente.
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ampliado também vital à vida humana. Estas dimensões do psiquismo podem ser
perfeitamente observadas, por exemplo, no trilhamento social e histórico muito marcado
dos sonhos de Freud em A interpretação dos sonhos, para rememorarmos sua presença já
em um momento originário da própria disciplina.
Deste ponto de vista, temos uma cadeia de significantes inconscientes disponíveis para o
engajamento onde houver trabalho psíquico onírico, como método clínico fundamental da
psicanálise, seja na transferência individual dual do setting clássico, seja na transferência
sobredeterminada grupal, seja na transferência social e na força ideológica do desejo
onírico, já dizia Walter Benjamin, que vem do todo.
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Como podemos oferecer e doar nosso trabalho, porque a clínica se tornou leve,
socialmente produtiva, erótica e politicamente desejada, de modo a entrarmos no regime
da dádiva e sua outra ordem simbólica, com sua própria natureza e complexidade,
podemos olhar com olhos livres o trabalho psicanalítico por fora da coisa do dinheiro,
desnaturalizando-o e lembrando o velho dado marxista: que o dinheiro é um
representante, vedado ao saber, de uma relação social e de poder que é histórica. E é
assim que ele efetivamente funciona na psicanálise, em que aparece disfarçado de duplo
real da dívida simbólica do paciente.
Saímos do campo da troca significante e onírica mediada e engajada pelo valor de troca
das sociedades totalmente monetizadas e entramos no campo, a ser trabalhado como
modalidade de desejo e defesa própria, da dádiva. Elidimos deste modo a dívida
simbólica da existência humana — que se representa em uma análise — como dívida
ética que se represente no jogo antiético do dinheiro em sociedades de exclusão,
acumulação e poder desproporcional de mercado, antidemocráticas na raiz, como é
sobretudo a nossa. Deste modo, pessoas que jamais poderiam fazer uma análise, pelo
movimento ascensional da disciplina na régua social do dinheiro, seu alto custo e a real
busca de distinção burguesa própria a muitos analistas, podem, por fim, ter pleno acesso
a ela. E neste momento são de fato circuitos simbólicos possíveis de práticas sociais pós-
capitalistas que estão em jogo em nosso trabalho, de psicanalistas na cidade pública
desejada criada.
Voltando ao ponto inicial, (a) uma disposição interna orientada o mais amplamente para
o outro e para a crítica social das barreiras e desenhos de mercado da psicanálise, bem
como uma disposição do corpo do analista na cidade pública e coletiva e não na exclusiva
forma consultório, da venda de serviços do profissional liberal psicanalista, da
mercadoria psicanálise; (b) em conjunto com a criação do dispositivo, o setting clínico
n+1, do grupo de analistas em rodízio para um paciente, que deve performar aspectos
inconscientes não conhecidos dos modos tradicionais de praticar a psicanálise; e (c) a
crítica da articulação de toda dívida simbólica humana à exclusiva dívida social com o
sistema do dinheiro e do mercado, que sabe nos endividar sempre mais e mais, são os
vértices que movem em profundidade o desejo de uma clínica social pública de
psicanálise entre nós e hoje.
tramas sociais, nas políticas públicas que buscamos escutar a singularidade do sujeito e,
com isso, presentificar a psicanálise no mundo.
A ideia de uma Clínica Pública de Psicanálise não é propriamente uma novidade. Freud
por ocasião do Congresso de Budapeste em 1918, já expressava o desejo de tornar
acessível o tratamento psicanalítico a um maior número de pessoas e àquelas mais
carentes. Em 1920, a ideia se efetiva com a criação da Policlínica de Berlim ligada ao
Instituto de Berlim que tinha como objetivo formar jovens médicos interessados na
psicanálise. Inaugura-se a experiência da associação de um modelo clínico de
atendimento na formação psicanalítica que, ao mesmo tempo, tornava acessível o
tratamento à população empobrecida que sofria as consequências do pós-guerra na
Europa e, principalmente, na Alemanha.
A questão que interessa, e me parece que o teu trabalho aponta, é como podemos tomar o
dinheiro como um significante e não em sua materialidade concreta no registro da falta.
Pois, se o registro da falta ficar preso exclusivamente à carência do indivíduo que não
possui dinheiro para pagar a sua sessão, não será possível operar a torção que possibilita
que a falta trabalhe no sujeito como causa de desejo.
Freud pôde escutar as histéricas e com isso deu relevo à sexualidade na etiologia das
neuroses. Dessa forma, aquilo que se apresentava fora do padrão e das normas, foi
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tomado por ele como enigma a ser desvendado. Ao escutar os romances narrados pelas
histéricas, Freud ressignificou as manifestações somáticas e corporais incapacitantes,
teatralizadas e descabidas vividas por elas, e que as conduziam à loucura e a exclusão
social, e reconectou os sintomas aos enigmas da sexualidade feminina.
Penso que se o desejo de analista faz operar uma ética que movimenta o discurso
dominante em prol do discurso analítico, não é por oposição ou enfrentamento,
militância ou doação. Ou seja, o desejo de analista não é intencionado (nem bem nem
mal intencionado), ele é posicionado. Que ele seja posicionado implica que ele leva em
consideração a transferência e o inconsciente como direção do trabalho clínico. A clínica
pode ser um grupo, o individuo, o consultório, a rua, as supervisões, o trabalho em rede
junto a profissionais de outros campos do saber.
Freud já nos alertava que a psicanálise não é uma forma de ver o mundo, não é uma
cosmovisão. Desse modo, a política da falta-a-ser, intrínseca à posição do analista, e que
sustenta a ética da sua práxis, é assumida na psicanálise que se abre e se estende na
escuta das singularidades e das histórias das pessoas comuns que habitam as cidades
articulando-se aos discursos vigentes, indagando os limites da clínica e da teoria,
apresentando a dimensão não toda do saber.
Uma prática que surpreenda e que não apresente desafios se torna previsível e maçante.
O surpreender-se e o desafiar-se mantém o analista – como amante, erastés – na douta
ignorância lacaniana, usufruindo do insabido como interrogante que possibilita a
expansão dos limites do dizível. Arriscar-se é o oposto de precaver-se. Nesse sentido, não
há gerenciamento dos riscos, mas propulsão a eles.
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entre ser arte e ser de fato uma coisa qualquer existente no mundo, preparava o terreno
simbólico para as suas obras experiências futuras, dos Penetráveis, dos Ninhos, dos
grandes ambientes e dos Parangolés . Mas o dado teórico interessante da constituição dos
Bólides era o fato de que eles rearranjavam, como em um sistema de bricolagem próprio
do pensamento índio, por exemplo, os próprios fundamentos da arte moderna na qual
Hélio se inscrevera por tradição e na qual se formara.
fato, em sociedades de grande exclusão, um real valor político, uma relação social
implícita, apenas um gesto de poder. Como o direito à moradia em confronto real com o
direito à propriedade é a configuração de uma ação política concreta e imediata
contemporânea, a clínica aberta de direito à psicanalise é ação prática e teórica de
confronto à ideia do direito do dinheiro como sendo a medida universal de todo e
qualquer trabalho humano, e do trabalho analítico. É ação política e de produção de
diferença, em um quadro simbólico de interesses e de reprodução de poder.
Nestas condições históricas de cisão social radical, e de exclusão perversa da renda social,
como, com oscilações, costuma ser a brasileira, fica claro que a opção pelo trabalho
vinculado estruturalmente ao dinheiro é de fato uma opção de valor político social, uma
opção de economia política da psicanálise, que fixa a ideia do dinheiro como constitutivo
universal do sujeito para evitar o trabalho de pensar a psicanálise, e tudo o mais, como
sendo o verdadeiro direito universal do sujeito.
E felizmente, como foi bem dito pela Emília, o movimento psicanalítico também buscou
reagir a esta posição de economia política da psicanálise com seu outro movimento das
clínicas sociais, articuladas praticamente ao horizonte de uma possível ordem histórica
socialdemocrata ou socialista. E, no entanto, como também ocorre com o entendimento
do trabalho psicanalítico com grupos, tais problemas de vida social, de poder e de política
da situação da psicanálise no mundo, também sempre foram entendidos como não sendo
imanentes e centrais ao próprio desenvolvimento da experiência psicanalítica no mundo.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | BROIDE, Emília Estivalet; AB’SÁBER, Tales (2017) Clínicas
públicas de psicanálise. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -3, p. 2, 2017.
Disponível em: <https://revistalacuna.com/2017/04/28/n3-02/>.
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