MOTT-RELAESRACIAISENTRE-1992
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Revista de Antropologia
Luiz Mott
Introdução
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afeiçoados ao pecado nefando, entre os quais se não tem por afronta, e o que se
serve de macho se tem por valente e contam esta bestialidade por proeza. E nas
suas aldeias pelo sertão há alguns que têm tenda pública e quantos os querem
como mulheres públicas" (1971: 308). Léry, Gandavo, Pero Correia, Abbeville,
Rodolfo Garcia também observaram práticas homossexuais entre os primeiros
habitantes do Brasil (Fernandes, 1963: 160), sendo que para os demais grupos in-
dígenas da América (Caribe, Norte e América Espanhola), Raquena encontrou 82
tribos que praticavam amplamente a sodomia em suas mais variadas expressões
(1945: 24-7). Antropólogos contemporâneos observaram igualmente a prática do
homossexualismo entre os índios de norte a sul do Brasil: entre os Nambikwara
(Lévi-Strauss, 1948: 400), Guaiakil (Clastres, 1972: 273-308), Kaingang (Henry,
1964: 18), Tapirapé (Wagley, 1949: 160) etc. etc.
Quanto à prática do homossexualismo na África tradicional, dispomos de
dezenas de depoimentos de antropólogos contemporâneos, cujas informações fo-
ram analisadas por Ford & Beach. Entre os africanos que praticavam tradicional-
mente a "pederastia", temos os Daomeanos, Ila, Lango, Nama, Siwan, Tamala,
Thonga (Ford & Beach, 1952: 130); é igualmente encontradiço o homossexualis-
mo entre os Nupe da Nigéria (Nadei, 1947: 152), entre os Azande (Evans-Prit-
chard, 1937: 56), entre os Khoisan da África do Sul (Schapera, 1941: 242) etc.
O que mais nos interessa, por hora, é a evidência do "amor socrático" entre
os africanos da costa ocidental por ocasião do tráfico negreiro. E dispomos de
duas referências da época que confirmam tal presença. Eis o que revelava em
1681 o Capitão Cardonega em sua História geral das guerras angolanas, consi-
derado pela crítica observador cuidadoso e fidedigno: "Há entre o gentio de An-
gola muita sodomia, tendo uns com outros suas imundícies e sujidades, vestindo
como mulheres. Eles chamam pelo nome da terra: quimbandas, os quais, no dis-
trito ou terras onde o s há, têm comunicação uns com os outros. E alguns de-
les são finos feiticeiros para terem tudo mau e todo o mais gentio os respeita e os
não ofendem em coisa alguma. Andam sempre de barba raspada, que parecem
capões, vestindo como mulheres" (1942: 259). A outra referência acima aludida
será transcrita mais adiante.
Praticado livremente pelos brasis autóctones e pelos africanos que para cá
vieram trazidos, praticado clandestinamente em Portugal pelos lusitanos, mouros
e judeus, o homossexualismo encontrou no Brasil quinhentista condições as mais
favoráveis para seu florescimento. Imbuídos da idéia de que "abaixo do Equador
não há pecado", favorecidos pela imeasidão de terra e falta de controle policial e
moral, beneficiados pela situação colonial que conferia aos brancos o direito legí-
timo de usar (e abusar) dos negros e índios seus escravos, e finalmente asside-
rando o desequilíbrio dos sexos que marcou longos períodos do Brasil de antanho
(Gorender, 1978: 333-40; Mott, 1978: 1199), só nos resta concluir que a "Terra
dos Papagaios" era ambiente muito favorável ao desenvolvimento de expressões
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Brancos 40
Mulatos 10
Pretos 6
Mamelucos 4
índios 3
Morenos 3
Mourisco 1
TOTAL 67
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Branco + Mulato 9
Branco + Mameluco 5
Branco + Negro 3
Branco + Mourisco 3
Branco + Moreno 2
Branco + índio 1
Negro + Negro 3
índio + índio 1
Mameluco + Mulato 1
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maneira que ambos alternadamente consumaram na dita noite duas vezes o peca-
do nefando de sodomia, sendo um deles uma vez agente e outra paciente" (Con-
fissões de Pernambuco, 1970: 25-6).
Outro menino, Bartolomeu Pires, 11 anos, branco natural de Olinda, dor-
mia tranquilamente na mesma rede com João Fernandes, mameluco de 18 anos,
quando este, "estando ambos com camisas, sem ceroulas, começou a provocar
que se queria pôr em cima dele, confessante, e assim procederam a tanto que o
dito mameluco se lançou de costas e ele confessante levantando as pernas do dito
mameluco se lançou de bruços sobre ele e meteu seu membro viril pelo vaso infe-
rior do mameluco, tendo ajuntamento carnal, nefando e sodomitico" (Confissões
de Pernambuco, 1970: 45).
O "sedutor" nesta outra acusação é um mulato forro de nome Mateus Duar-
te, 50 anos, que "há um ano e meio esteve preso na cadeia de Salvador, acusado
de ter cometido o pecado nefando de sodomia, segundo é público, o qual dizem
que cometeu para o dito pecado a um moço branco de 17 anos e que o dito moço
não consentiu e gritou. O mulato encontrava-se fugido da cadeia" (Denunciações
da Bahia, 1925:249).
Nas relações sodomíticas inter-raciais encontramos todo um continuum de
interações, hora os brancos exercendo seu poder e prepotência de casta superior,
ora os "de cor" encontrando mil artifícios para serem eles os donos do poder ao
menos neste microuniverso diàdico ditado pelo homoerotismo. Embora disponha-
mos de documentação provante de que ao menos no Pará, nos meados do século
XVIII, um senhor abusou violentamente de dezenove cativos seus, causando em
vários deles traumatismo ano-retal, levando alguns inclusive a falecer devido à
infecção (Amaral Lapa, 1978: 261), nestes primórdios da história nordestina ne-
nhum escravo acusou seu senhor de tê-lo sodomizado com a mesma violência do-
cumentada para o Grão-Pará. Dispomos entretanto de alguns casos onde
transparecem nítidas situações de dominação senhorial. Verbi gratia : Pero Gar-
cia, senhor de um engenho em Peroaçu, no Recôncavo da Bahia, aos 42 anos,
embora casado, descobriu as delícias do amor homossexual: acusa-se que "venci-
do pelo apetite da carne, cometera o pecado nefando de sodomia" com quatro
parceiros: dois mulatos forros, moradores em sua casa, e mais dois escravos, sen-
do a última vez com "Jacinto, um moleque negro, seu cativo, que teria naquela
época de 6 para 7 anos, pouco mais ou menos" (Confissões da Bahia, 1963:
444).5 Neste caso é impossível saber se houve ou não violência física ou cons-
trangimento moral por parte do senhor em relação a seus subalternos. O que sabe-
mos é que sua relação com o mulato Joseph era tão regular que "duas negras da
terra chamavam ao dito mulato 'manceba' de seu senhor".
Gaspar Rois, 30 anos, feitor de engenho em Pirajá, nos arredores de Salva-
dor, foi acusado de "pecar algumas vezes no nefando com Matias, 25 anos, negro
da Guiné, seu escravo, atando-o e constrangendo-o, e por amor disso o negro fu-
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gira para a casa de Manoel de Miranda, onde disse que o dito feitor o constrangia
a pecar no dito nefando" (Confissões da Bahia, 1935: 54). Esta é a mais explícita
acusação de constrangimento homossexual envolvendo parceiros de raças e clas-
ses diferentes: um feitor branco e seu escravo africano. Acusação semelhante re-
caiu sobre o advogado Felipe Thomaz, judeu português, casado, "que cometera o
seu escravo mulato Francisco para o pecado nefando de sodomia e que por isso
lhe fugira para a fazenda de Antonio Cardoso de Ramos. E soube mais que o dito
mulato se queixava de que o denunciado o mandava estar em camisa e sem calças
quando lhe escrevia de noite..." (Denunciações da Bahia, 1927: 107).
Nem sempre, todavia, os brancos lançam mão de sua condição estamental
como estratégia política de dominação vis-à-vis seus parceiros carnais. O já cita-
do Baltasar da Lomba, que causava estranheza a seus contemporâneos pelo saber
"coser, fiar e amassar como mulher", é acusado de ter praticado nefandices com
diversos índios e mais ainda: "haverá 3 ou 4 anos, uma escrava brasila vira o dito
Baltasar com um negro, fazendo o pecado nefando em cima de umas hervas fora
de casa" e outra vez outro denunciante declarou ao Visitador que "às escuras, e
por uma abertura da porta, poz a orelha e aplicou o sentido e ouviu falar no quar-
to o dito Baltasar da Lomba com um índio de nome Acahuy, 20 anos, e os sentiu
que estavam ambos em uma rede e sentiu a rede rugir e a eles ofegarem como
que estavam no trabalho nefando, e ouvindo do dito índio umas palavras na lín-
gua, que queriam dizer * queres mais?' como coisa que acabassem de fazer o pe-
cado e o dito Baltasar disse então que saissem fora a urinar" (Denunciações de
Pernambuco, 1929: 399-401). O tom da pergunta do índio, o uso da própria lín-
gua ameríndia e a situação social do branco, cuja profissão era "ser criado", suge-
rem uma relação de mútuo consentimento e camaradagem, apesar da diversidade
racial dos parceiros. Os já citados casos em que a iniciativa ou mesmo sedução
homossexual partiu de rapazes "de cor" reforçam a ilação de que nem sempre as
relações entre somitigos repetia o parâmetro hierárquico de o branco ser o domi-
nador. Situação semelhante provavelmente deveria ocorrer também nas relações
heterossexuais envolvendo brancos e mulheres de cor.
Poderia o leitor indagar se a divisão dos papéis no ato sexual implicaria
uma repetição na esfera homoerótica da mesma estratificação sócio-racial obser-
vada na sociedade colonial brasileira. Em outros termos: haveria coincidência em
ser branco o sodomita àtivo (chamado na época de "agente") e de cor os passivos
(na época cognominados de "pacientes")? Teria credibilidade Gilberto Freyre
quando sugeriu que as mulheres de cor, notadamente as mulatas - e, por analogia,
os "passivos" -, teriam uma propensão tradicional para comportamentos sexuais
masoquistas?
Dos 67 somitigos sobre os quais dispomos de informação sobre a cor, para
43 sabemos qual a posição assumida predominantemente no intercurso sexual.
Este é o conteúdo do quadro abaixo:
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cantes das relações nefandas entre a população de cor da Bahia colonial. A pri-
meira observação refere-se à existência de uma relação estável entre sodomitas
da mesma raça e de igual situação juridico-social: trata-se de dois índios escra-
vos, moradores na ilha da Maré, na Bahia de Todos os Santos. Segundo seus acu-
santes, "era público e notório que Joane além de fazer o pecado nefando com
outros muitos, usando de fêmea, ora particularmente está com o índio Constanti-
no, amancebado como se foram homem com mulher, servindo com o dito índio
Joane de mulher e o dito Constantino de homem" (Denunciações da Bahia, 1925:
569). Este "caso" era conhecido "por todos os negros e índios da Maré e assim o
dizem todos eles comumente e publicamente". Joane devia provavelmente ser um
dos "tibira" que os primeiros cronistas descreveram como existindo numerosos
nas aldeias Tupinambá das ilhas do Recôncavo. Relação estável de "amancebia",
pública e notória, com divisão explícita de papéis sexuais, é esta a primeira refe-
rência de que se tem notícia entre os homossexuais ameríndios do Brasil.
Outra referência interessante encontrada nos processos do Santo Ofício é a
que envolve o sapateiro Francisco, natural do Congo, cativo de Antonio Pires,
morador abaixo da igreja da Misericórdia, o qual tinha fama entre os negros de
ser somitigo. Seu acusante, o lisboeta Matias Moreira, cristão-velho, disse que,
"em Angola e Congo, nas quais terras ele denunciante andou muito tempo e tem
muita experiência delas, é costume entre os negros gentios trazerem um pano cin-
gido com as pontas por diante, os negros somitigos, que no pecado nefando ser-
vem de mulheres pacientes, aos quais pacientes chamam, na língua de Angola e
Congo, 'jimbandaa', que quer dizer somitigos pacientes". Ouvindo dizer que o
dito Francisco era sodomita, certa feita "viu ele denunciante ao dito negro trazer
um pano cingido assim como na sua terra em Congo trazem os somitigos pacien-
tes, e logo o repreendeu disso e o dito Francisco lhe respondeu que ele não usava
de tal e o repreendeu também porque não trazia o vestido de homem que lhe dava
o seu senhor, dizendo-lhe que em ele não querer trazer o vestido de homem, mos-
trava ser somitigo, pois também trazia o dito pano do dito modo e contudo lhe ne-
gou que não usava de tal. E depois o tornou ainda duas ou tres vezes a ver nesta
cidade com o dito pano cingido e tornou a repreender e já agora anda vestido em
vestido de homem" (Denunciações da Bahia, 1925: 406-7).
Este Francisco Congo pode ser considerado o primeiro travesti do Brasil, o
homossexual mais corajoso de que se tem notícia neste começo de nossa história,
pois, além de ter fama entre os negros de ser somitigo, mesmo repreendido conti-
nuou por certo tempo a usar traje típico de "jimbandaa" (ou "quimbanda", como
grafou o Capitão Cardonega em 1681, em documento citado à página 173). O po-
bre sapateiro congolês incorria, pelo seu proceder, em dois graves pecados puni-
dos pelo Direito Canónico: crime de sodomia e crime de "fingir ser de diferente
estado e condição": "o homem que se vestir em traje de mulher pagará 100 cruza-
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nos meios em que ocorrem", easina o baiano Thaies de Azevedo (19 66: 6). Mes-
mo presenciando no Brasil antigo uma grande tolerância nas uniões sexuais livres
envolvendo brancos com mulheres de cor, tolerância estendida também para os
filhos bastardos, nas classes dominantes a norma, em se tratando de casamentos,
sempre foi a "endogamia hipergâmica", isto é, "a regra de casamento que interdiz
a uma pessoa de um grupo social (casta, classe etc.) eleger seu cônjuge num gru-
po que lhe seja social (ou racialmente) inferior" (Panoff, 1973: 137). O viajante
Expilly em meados do século passado escrevia a esse respeito: "Uma branca des-
posar um mulato? Isso raramente se vê nas altas-rodas, pois seria repelida por to-
dos, apontada e excluída da sociedade. O mais opulento mulato é inferior ao
branco, ele o sabe e lhe será lembrado" (apud Viotti da Costa, 1966: 278). Com
os sodomitas nada disso devia ocorrer posto que as uniões eram secretas, não re-
produtoras, e não implicavam ameaça para o patrimônio dos brancos ricos.
À guisa de conclusão
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o "terceiro sexo", para usar uma expressão do século passado) devem ter os mes-
mos direitos, que as diferenças (seja na cor, seja na expressão sexual) não devem
implicar desigualdade.
Esta minha pesquisa sobre os sodomitas do Brasil colonial tem exatamente
essa finalidade: resgatar a história secreta de um segmento social até então estig-
matizado, escondido. Resgatar o passado de milhares de homens e mulheres cujo
direito à história foi até então negado. E essa história nos revela que, apesar de
toda a opressão a que estavam sujeitos os homossexuais -considerados como cri-
minosos de lesa-majestade e punidos com a morte -, apesar da intolerância de
que eram alvo, esses homens resistiram, desobedeceram, fizeram o amor da for-
ma que gostavam, certos de que errados estavam quem os reprimia. E a tenacida-
de desses somitigos, tibira e jimbandas, mesmo sem a consciência histórica e o
respaldo científico de que hoje nos beneficiamos, preparou o terreno para que
hoje os gays tenham não apenas direito, mas inclusive orgulho de se assumirem
homossexuais.
NOTAS
(1) Esta comunicação faz parte de uma pesquisa mais ampla que tem como título "Moralidade
e sexualidade no Brasil colonial e na atualidade", que conta com o auxílio de uma bolsa do CNPq, a
quem deixo impresso mais uma vez meu agradecimento. Declaro também minha gratidão a Aroldo
Assunção, companheiro de militância e de pesquisa, que me auxiliou significativamente na sistemati-
zação deste material.
(2) De acordo com o § 302.0 do Código de Saúde seguido pelo INAMPS (Decreto n° 60501 de
14/3/1967, art. 113, § 1), a homossexualidade é considerada "desvio e transtorno sexual*1. Diversos
países signatários da carta da OMS (Organização Mundial de Saúde), por pressão do movimento ho-
mossexual internacional, aboliram tal parágrafo.
(3) Como nem todos os colegas de Academia conhecem o teor dessas duas moções, aproveito
este espaço para transcrevê-las integralmente tal qual foram por mim encaminhadas e aprovadas em
plenário:
" Moção contra a discriminação sexual : Que a presidência e assembléia geral da SBPC apóiem
oficialmente a campanha iniciada pelo movimento homossexual brasileiro contra toda forma de dis-
criminação sexual. Que a SBPC se oponha energicamente a todas as leis, códigos e posturas que, con-
trariamente à ciência, rotulam o homossexualismo como 'patologia'. Que nas próximas reuniões
anuais da SBPC haja sempre espaço para debates interdisciplinares sobre a questão homossexual. Que
a SBPC se comprometa a apoiar o encaminhamento do abaixo-assinado contra a discriminação sexual
junto aos organismos governamentais competentes." Salvador , 33" Reunião da SBPC, 14/7/1981.
"Moção contra a discriminação sexual : A exemplo da Associação Antropológica Americana,
que em 1970 votou e aprovou uma moção pela liberdade sexual, propomos que a Associação Brasilei-
ra de Antropologia aprove e divulgue, na medida do possível, que:
I. Todas as expressões sexuais, desde que respeitem a liberdade alheia, são igualmente válidas
e legítimas;
II. A discriminação sofrida em nossa sociedade por expressões sexuais consideradas desvian-
tes atropela um direito de todo ser humano de fazer sexo como e com quem quiser;
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III. A Antropologia, que tem no respeito pela alteridade e na luta contra o etnocentrismo sua
raison d'être , a pòi a o direito do movimento das minorias sexuais de se organizar e ser respeitado da
mesma forma que os demais grupos minoritários;
IV. Considerando que a homossexualidade tem sido uma das expressões sexuais mais reprimi-
das e desprezadas em nossa sociedade, a ABA enquanto órgão supremo dos antropólogos do Brasil, à
imitação da SBPC, apóia a campanha nacional pela extinção do § 302.0 do Código de Saúde do
INAMPS, que rotula o homossexualismo como 'desvio e transtorno sexual'. n S. Paulo, 13* Reunião
da ABA, 6/4/1982.
(4) Data venia , transcrevo também esta última "Recomendação'' aprovada pela reunião da
SBPC de 1982: "1) Considerando a pequena produção científica no Brasil de pesquisas e trabalhos re-
lativos à sexualidade humana em geral e à homossexualidade em particular; 2) Considerando que nos
países desenvolvidos a produção científica nesta área tem crescido enormemente, gozando de incenti-
vos e respeitabilidade por parte dos órgãos financiadores e instituições de pesquisa; 3) Considerando
que no Brasil, sobretudo na área das Ciências Humanas, os projetos de pesquisa sobre a sexualidade
em geral e a homossexualidade em particular têm sido mal recebidos, discriminados e considerados
irrelevantes ou faltos de interesse científico, sendo por vezes indeferidos apesar da inquestionável
qualidade científica e relevância social; Proponho: que a SBPC use de todo o empenho, oficiando às
fundações, instituições de pesquisa e órgãos financiadores que acolham com idêntica objetividade
científica e sem discriminação os projetos que tratem de temas relacionados com a sexualidade e ho-
mossexualidade, insistindo junto aos órgãos financiadores e fundações que instituam prémios e estí-
mulos aos projetos de pesquisa sobre temas de sexualidade." 5. Paulo, 34* SBPC, 12/7/1982.
(5) Pelo visto, nesta época, manter relações sexuais com crianças de idade menor não consti-
tuía grave perversão, tanto que o Cónego Jácome de Queiroz, mameluco, natural da capitania do Espí-
rito Santo, 46 anos, confessou que certi noite "levou a sua casa uma moça mameluca que então teria 6
ou 7 anos, que andava de noite vendendo peixe pela rua, escrava cativa de Ana Carneira, mulher do
mundo... depois de jantar e encher-se de vinho, cuidando que corrompia a dita moça pelo vaso natural,
a penetrou pelo vaso traseiro e nele teve penetração sem polução, e tanto que sentiu que era pelo tra-
seiro, se afastou e tirou dela e isto lhe aconteceu uma vez, por seu desatento...". Haverá 7 ou 8 anos,
"querendo corromper outra moça per nome Esperança, sua escrava, de idade de 7 anos pouco mais ou
menos no dito tempo, cuidando que a corrompia pelo vaso natural, a penetrou também pelo trazeiro...
e a dita escrava depois ele vendeu a Marçal Roiz e está ora casada" (Confissões da Bahia, 1935: 46-7).
Nenhuma referência sequer ao fato de tratar-se de crianças impúberes: o crime estava no erro do
"vaso" e não na relação de poder do senhor-adulto com a criança-escrava.
(6) Propositadamente emprego aqui a expressão "gay" pois, de acordo com Boswell (1980:
43), desde o século XIII que na língua catalã-provençal se emprega o termo "gai" para referir-se a
uma pesssoa abertamente homossexual. Em seu livro Cristandade, tolerância social e homossexuali-
dade, Boswell emprega este mesmo cognome para referir-se aos sodomitas da Idade Média: "Gay
people in Western Europe from the Beginning of the Christian Era to the Fourteenth Century". Para
sermos mais fiéis a nossas raízes lingüísticas, considero melhor o termo "gay" do que "homossexual",
este último vocábulo somente tendo sido cunhado em 1869 por Benkert e divulgado em 1870 pelo
médico alemão Westphal. Com uma certa ironia, usei nesta comunicação diversos termos antigos que
até hoje são encontradiços em textos sobre os homossexuais, a saber: "uranistas", "pederastas", "ho-
mófilos", "terceiro sexo", "nefandistas", "somitigos" e "sodomitas". A homossexualidade também foi
cognominada com os epítetos de "vício de Veneza" (ou "vício italiano"), "amor socrático" (ou "amor
grego"), "vício dos clérigos", "amor que não ousa dizer seu nome" etc. Conforme ficou patente, abor-
dei neste trabalho apenas a homossexualidade masculina - e, embora o lesbianismo (também chamado
de "tribadismo") seja tão praticado quanto a pederastia (masculina), inclusive constando nos processos
da Inquisição diversos casos de lésbicas contumazes, deixamos para outros pesquisadores(as) o estudo
e divulgação deste aspecto da sexualidade feminina.
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