MOTT-RELAESRACIAISENTRE-1992

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RELAÇÕES RACIAIS ENTRE HOMOSSEXUAIS NO BRASIL COLONIAL

Author(s): LUÍZ MOTT


Source: Revista de Antropologia , 1992, Vol. 35 (1992), pp. 169-189
Published by: Revista de Antropologia

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Revista de Antropologia. São Paulo, USP, 1992, v. 35, p. 169-190.

RELAÇÕES RACIAIS ENTRE HOMOSSEXUAIS


NO BRASIL COLONIAL

Luiz Mott

Mestrado de Ciências Sociais, UFBA - Coordenador da Linha de Pesquisa: "O negro e


os demais grupos discriminados". 1

RESUMO: A partir de pesquisa documental referente a processos inquisitoriais em Pernambuco e na


Bahia, o artigo atesta a antiguidade das práticas homossexuais no país, apesar da repressão sofrida em
tempos coloniais, quando eram consideradas "pecado nefando" e crime de "lesa-majestade". Examina
a cor da pele e a condição social dos parceiros cujos envolvimentos foram devassados pela Inquisição,
concluindo pela abrangência das práticas homossexuais da perspectiva das relações raciais e de poder.

PALAVRAS-CHAVE: homossexualismo-relações raciais-Inquisição no Brasil-homossexualismo in-


ter-racial.

Introdução

Em 1906, em seu livro intitulado Homossexualismo : a libertinagem no Rio


de Janeiro, o Dr. Pires de Almeida fazia a seguinte observação: "Excluída de ob-
jeto de estudo até a presente data, a pederastia no Brasil tem atravessado os qua-
tro séculos de nossa história, não obstante carecer ela de observação e de
pesquisa" (p. 76). Duas constatações importantes feitas por esse precursor dos es-
tudos sobre a homossexualidade em nosso país: a antiguidade de sua prática em
Terras de Santa Cruz e o desinteresse dos pesquisadores em estudá-la.
Não podemos negar que, do começo do século para cá, diversos trabalhos
se publicaram no Brasil tendo os homossexuais como tema. Num levantamento
exaustivo sobre este tópico, já conseguimos localizar mais de uma centena de ar-
tigos, livros, teses e comunicações, a maior parte abordando o "problema homos-
sexual" sob a lente da medicina legal, da criminologia, da psicopatologia - e, em
bem menor número e só recentemente, sob a perspectiva da psiquiatria, da histó-

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ria, da antropologia social. Se levarmos em conta que na mais completa biblio-


grafia consagrada à homossexualidade no mundo (Bullough et allii, 1976), reu-
nindo nada menos que 12.794 títulos (!!!), os artigos coasagrados ao Brasil não
ultrapassam uma dezena, seremos obrigados a repetir as mesmas palavras do Dr.
Pires de Almeida: "A pederastia no Brasil carece (ainda) de observação e pesqui-
sa".

Vários são os motivos que explicariam o descaso dos cientistas tupiniquins


por esta área do comportamento sexual do brasileiro: l2) trata-se de um dos as-
suntos mais tabus da cultura ocidental cristã (o apóstolo Paulo decretava "que es-
sas coisas não sejam sequer nomeadas entre vós" e, durante toda a Idade Média e
até bem perto de nós, a "sodomia" era chamada de "pecado nefando", isto é,
"cujo nome não pode ser pronunciado"); 2Ö) trata-se de um tema extremamente
melindroso de ser pesquisado, seja pela diversidade maniqueísta das opiniões dos
diferentes estudiosos do assunto - indo da mais contundente reprovação e catego-
rização da homossexualidade como pecado, perversão, crime, desvio (Freud,
1897; Krafft-Ebing, 1987; Marañon, 1938; Jaime, 1947; Oraison, 1977; Lima,
s/d; Irajá, 1946) até sua defesa e propaganda como uma variável legítima, normal
e saudável de expressão sexual (Ulrich, 1898; Hirschfeld, 1942; Carpenter, 1912;
Daniel & Baudry, 1977; Altman, 1973). Tema melindroso quanto à grande diver-
sidade das opiniões daqueles que o estudaram, melindroso também quanto à pró-
pria aproximação do pesquisador junto ao objeto de estudo: por serem alvo de
secular intolerância, discriminação e violência, os homossexuais sempre viveram
na clandestinidade. Acostumados a temer a fogueira, os campos de concentração,
a morte a pedradas (como ainda acontece hoje em dia no Irã), os "pederastas" re-
lutam em responder às questões indiscretas dos pesquisadores. Não têm por que
acreditar na neutralidade axiológica e na inocência dos cientistas, vistos como os
novos inquisidores dos tempos modernos. E têm razão para tal desconfiança, pois
foram os "cientistas" do século XX que ora castraram, ora fizeram enxertos nos
"pederastas" de testículos de macaco (Ribeiro, 1938: LXXXIX), ora fizeram-lhes
lobotomia e, em pleno 1982 no Brasil, ainda classificam oficialmente o homosse-
xualismo como "desvio e transtorno sexual".2 Em sã coasciência: o leitor confia-
ria nesta plêiade de carrascos que sob a proteção da "ciência" cometeu tantas
crueldades contra os "pervertidos sexuais"?
Apesar de já em 1927 Malinowski, considerado como um dos fundadores
da moderna antropologia, ter chamado a atenção para a importância de se estudar
temas de sexualidade humana, tirando-se a "folha de parreira que cobre o sexo"
(1973: 10), ainda hoje as pesquisas sobre a sexualidade em geral e sobre o ho-
mossexualismo em particular são consideradas como temas menores no milieu
académico. "Os médicos tinham vergonha de se ocupar com tal problema", afir-
mava Viveiros de Castro em 1897 (Irajá, 1931 : 207). Recentemente, um curso so-

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bre "história e antropologia da sexualidade", tendo como bibliografia nomes do


quilate de Lévi-Strauss, Margaret Mead, Foucault, Florestan Fernandes, Reich
etc., espantou a um alto dirigente de minha universidade, rotulando o curso de
"aula de sacanagem". Esta mesma autoridade teria se oposto à eleição para a che-
fia do departamento de um professor doutor alegando que "pederasta" não podia
ser chefe de departamento.
Felizmente o obscurantismo e a homofobia começam a ceder lugar à razão
e à verdadeira ciência: prova disto são as duas moções aprovadas pela SBPC
(1981) e pela Associação Brasileira de Antropologia (1982), ambas sociedades
comprometendo-se oficialmente a lutar contra todas as manifestações de precon-
ceito e discriminação sexual.3 Esta última vitória tem apenas alguns meses de
conquista: na última reunião da SBPC, em Campinas, aprovou-se por unanimida-
de uma "Recomendação" onde se reconhece a relevância dos estudos sobre a se-
xualidade em geral e sobre a homossexualidade em particular, comprometen-
do-se a SBPC a oficiar às principais instituições de pesquisa, fundações e órgãos
financiadores, estimulando-os a incrementarem sua produção científica nestas
áreas do comportamento sexual (da "sacanagem" e "viadagem", como diriam os
sexófobos...).
Assim sendo, após este longo prolegómeno tendo como escopo legitimar o
tema de minha exposição e especialização académica e ao mesmo tempo calar a
boca dos maledicentes, dois são nossos objetivos nesta comunicação: lö) recons-
tituir os principais aspectos das relações raciais numa população de homossexuais
masculinos: os sodomitas processados pelo Tribunal do Santo Ofício da Inquisi-
ção em suas devassas realizadas na Bahia e em Pernambuco entre os anos 1591 e
1620, dando início assim a um árduo trabalho de resgate na história de um seg-
mento social até então desconhecido que, como os judeus ("cristãos-novos"), teve
de esconder-se, como estratégia de sobrevivência na sociedade colonial brasilei-
ra; 2ß) discutir em que medida a especificidade social e sexual destes "cripto-ho-
mossexuais" implicou um tipo de interação racial diverso do observado na
sociedade heterossexista global*

"Somitigos, tibira e jimbanda"

Estes são os termos encontrados nos processos da Inquisição para se referir


aos "sodomitas" brancos, índios e negros, respectivamente, quando os Visitadores
do Santo Ofício iastalaram seus tribunais na Bahia e em Pernambuco entre os
anos 1591 e 1620. De um total de 283 culpas confessadas nestes tribunais, englo-
bando blasfémias, superstição, judaísmo e luteranismo, bigamia, feitiçarias etc. -
há 44 casos de sodomia (15,5% dos desvios), sendo depois das blasfémias o peca-

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do mortal mais frequentemente praticado pelos primeiros povoadores nordestinos


(Siqueira, 1978: 227).
Como explicar a existência de tantos adeptos do amor de Sodoma neste co-
meço de nossa história, se em Portugal desde o século XIII a lei ordenava que
fossem castrados e colgados pelas pernas até morrerem os horneas culpados do
"pecado contra a natura" (Oliveira Marques, 1971: 128)? Às vésperas da desco-
berta do Brasil, as Ordenações Afonsinas, além de condenarem o homossexualis-
mo com a pena de morte, filosofavam sobre a matéria: "Sobre todos os pecados,
bem parece ser o mais torpe, sujo e desonesto, o pecado da sodomia, e não é
achado outro tão aborrecido ante Deus e o mundo, como ele...", sendo a causa do
Dilúvio universal, da destruição das cinco cidades contíguas a Sodoma e Gomor-
ra, motivo da extinção da Ordem dos Templários etc. etc. Portanto, nada mais
prudente que El Rey precavesse seu Reino de tantos perigos: "Mandamos e po-
mos por lei geral que todo homem que tal pecado fizer seja queimado e feito per
fogo em pó, por tal que já nunca de seu corpo possa ser ouvida memória" (Livro
V, 1. 17: 53-4).
Com as grandes descobertas e expaasão portuguesa pelos quatro ventos,
Dom Sebastião se torna "rei de Portugal e dos Algarves daquém e dalém mar em
Africa, Senhor da conquista, navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e
da índia etc.". No seu Regimento de 1574, na "Lei sobre o pecado de sodomia",
El Rey atribui com justeza ao contato com estes novos povos o incremento do
"pecado contra a natureza" no Reino lusitano: "Vendo eu como de algum tempo a
esta parte foram algumas pessoas de meus Reinos e Senhorios culpados em o pe-
cado nefando, de que eu recebi grande sentimento pela graveza do pecado tão
abominável, de que meu Reino pela bondade de Deus tanto tempo foram lim-
pos..." (Regimento de 1574: 20).
De fato, ao chegarem na África, Japão, índia e Brasil, os portugueses en-
contraram diversos povos e sociedades que praticavam abertamente o homosse-
xualismo tanto masculino quanto feminino. Mais ainda: em algumas conquistas,
os sodomitas eram alvo de distinção e respeito, ocupando posições importantes
dentro da hierarquia social. Apenas como ilustração: de um total de 76 socieda-
des estudadas pelos antropólogos Ford & Beach, incluindo todas as raças e conti-
nentes, em 64% o homoerotismo era público, aprovado e reconhecido favoravel-
mente, sendo que, nas 36% restantes, a homofilia era praticada raramente ou em
segredo, sendo alvo de hostilidade por parte da cultura local (1952: 129-34). Nos-
sa sociedade, herdeira da moralidade judaico-cristã, infelizmente situa-se dentro
do grupo minoritário que hostiliza o homoerotismo
Tomemos como referência duas áreas culturais que serviram de matriz na
formação da sociedade brasileira: os Tupinambá e os nativos de Angola. Come-
cemos pelos ameríndios. Diz Gabriel Soares de Souza em 1587: "São os Tupi-
nambá tão luxuriosos que não há pecado de luxúria que não cometam. São muito

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afeiçoados ao pecado nefando, entre os quais se não tem por afronta, e o que se
serve de macho se tem por valente e contam esta bestialidade por proeza. E nas
suas aldeias pelo sertão há alguns que têm tenda pública e quantos os querem
como mulheres públicas" (1971: 308). Léry, Gandavo, Pero Correia, Abbeville,
Rodolfo Garcia também observaram práticas homossexuais entre os primeiros
habitantes do Brasil (Fernandes, 1963: 160), sendo que para os demais grupos in-
dígenas da América (Caribe, Norte e América Espanhola), Raquena encontrou 82
tribos que praticavam amplamente a sodomia em suas mais variadas expressões
(1945: 24-7). Antropólogos contemporâneos observaram igualmente a prática do
homossexualismo entre os índios de norte a sul do Brasil: entre os Nambikwara
(Lévi-Strauss, 1948: 400), Guaiakil (Clastres, 1972: 273-308), Kaingang (Henry,
1964: 18), Tapirapé (Wagley, 1949: 160) etc. etc.
Quanto à prática do homossexualismo na África tradicional, dispomos de
dezenas de depoimentos de antropólogos contemporâneos, cujas informações fo-
ram analisadas por Ford & Beach. Entre os africanos que praticavam tradicional-
mente a "pederastia", temos os Daomeanos, Ila, Lango, Nama, Siwan, Tamala,
Thonga (Ford & Beach, 1952: 130); é igualmente encontradiço o homossexualis-
mo entre os Nupe da Nigéria (Nadei, 1947: 152), entre os Azande (Evans-Prit-
chard, 1937: 56), entre os Khoisan da África do Sul (Schapera, 1941: 242) etc.
O que mais nos interessa, por hora, é a evidência do "amor socrático" entre
os africanos da costa ocidental por ocasião do tráfico negreiro. E dispomos de
duas referências da época que confirmam tal presença. Eis o que revelava em
1681 o Capitão Cardonega em sua História geral das guerras angolanas, consi-
derado pela crítica observador cuidadoso e fidedigno: "Há entre o gentio de An-
gola muita sodomia, tendo uns com outros suas imundícies e sujidades, vestindo
como mulheres. Eles chamam pelo nome da terra: quimbandas, os quais, no dis-
trito ou terras onde o s há, têm comunicação uns com os outros. E alguns de-
les são finos feiticeiros para terem tudo mau e todo o mais gentio os respeita e os
não ofendem em coisa alguma. Andam sempre de barba raspada, que parecem
capões, vestindo como mulheres" (1942: 259). A outra referência acima aludida
será transcrita mais adiante.
Praticado livremente pelos brasis autóctones e pelos africanos que para cá
vieram trazidos, praticado clandestinamente em Portugal pelos lusitanos, mouros
e judeus, o homossexualismo encontrou no Brasil quinhentista condições as mais
favoráveis para seu florescimento. Imbuídos da idéia de que "abaixo do Equador
não há pecado", favorecidos pela imeasidão de terra e falta de controle policial e
moral, beneficiados pela situação colonial que conferia aos brancos o direito legí-
timo de usar (e abusar) dos negros e índios seus escravos, e finalmente asside-
rando o desequilíbrio dos sexos que marcou longos períodos do Brasil de antanho
(Gorender, 1978: 333-40; Mott, 1978: 1199), só nos resta concluir que a "Terra
dos Papagaios" era ambiente muito favorável ao desenvolvimento de expressões

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sexuais mais livres e criativas. As heresias - ou seja, reinterpretações dos princí-


pios teológicos oficiais - pululavam na área da moralidade sexual: vários são os
colonos acusados na Inquisição de defenderem o ponto de vista de que "a cópula
entre pessoas solteiras não coastituía pecado" (Porto, 1968: 164); o colono Do-
mingos Pires, de Pernambuco, é denunciado em 1593 de ter declarado que "dor-
mir carnalmente com uma negra ou com mulher solteira não era pecado mortal"
(Denunciações de Pernambuco, 1929: 115); outro pernambucano dissera que pre-
cisavam "sete pecados de dormir com mulher solteira para fazer um pecado mor-
tal" (Denunciações de Pernambuco, 1929: 140) e estoutro afirmou que "podia
dormir carnalmente com qualquer índia e não pecava nisso, bastando dar-lhe uma
camisa ou qualquer coisa, porque dormir com uma mulher solteira não era peca-
do mortal pagando-se seu trabalho" (Denunciações de Pernambuco, 1929: 210).
Heresias morais, diga-se en passant , que eram fartamente praticadas pelos pri-
meiros povoadores nordestinos e pelos seas descendentes: na Devassa realizada
na Comarca do Sul da Bahia, no ano de 1813, 51,3% das denúncias de desvio pe-
caminoso referiam-se à prática de "imoralidades sexuais", notadamente da aman-
cebia (Mott, 1981: 3), chegando à calamitosa cifra de 95,2% das acusações nas
Minas Gerais no ano de 1734 (Carrato, 1968: 16).
Como a sodomia constituía pecado muito mais grave do que a amancebia, a
bigamia, o adultério - equivalendo na gravidade e condenação ao crime de lesa-
majestade (Ordenações Manuelinas, Livro V, t. XII) -, punida com morte na fo-
gueira, mesmo sendo bastante praticada - conforme mostraremos a seguir -, o
temor da fogueira impedia certamente que se tornasse assunto de conversação,
como ocorria com os outros desvios na moralidade heterossexual. Não obstante
continuar na categoria de "nefando", isto é, "indigno de se falar" (Coastituições
da Bahia, 1853: § 958), sua gravidade execrável não era de todos conhecida. O
primeiro sodomita a se confessar em Salvador, o Padre Frutuoso Alvares, 65
anos, disse que alguns de seus parceiros "por serem pequenos demais não enten-
diam ser pecado" (Confissões da Bahia, 1935: 20); Antonio de Aguiar, 20 anos,
morador em Matoim no Recôncavo, disse: "sabia que era pecado, mas não que
era tão grave" (Confissões da Bahia, 1935: 152). Belchior da Costa tinha 14 anos
e dormia na mesma cama com Mateus Nunes, 20 anos, quando este "começou a
solicitar de maneira que com efeito chegou a dormir com ele carnalmente, meten-
do nele seu membro desonesto pelo vaso traseiro dele, cumprindo nele assim
como fizera com mulher por diante, coasumando o pecado de sodomia". Pergun-
tado pelo inquisidor se tinha coasciência de seu pecado, respondeu que "naquele
tempo não entendeu ele confessante bem ser isso pecado" (Confissões da Bahia,
1935: 115). Passemos do nível das representações para o real.
Vejamos então sumariamente alguas aspectos da prática da sodomia no
Nordeste colonial. Conforme antecipamos, nossa fonte para essas reflexões são
os livros de confissão e denúncia do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição refe-

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rentes às visitas realizadas na Bahia entre 1591 e 1593 e em Pernambuco entre


1593 e 1595, e numa segunda visitação realizada em Salvador entre 1618 e 1620.
De acordo com o levantamento realizado por Sônia Siqueira, na primeira visita-
ção baiana constaram dezenove confissões de sodomia, sendo dezoito na segun-
da, totalizando 37 somitigos (1978: 228). De acordo com nosso levantamento
(incluindo também as confissões e denúncias do Pará), conseguimos até o presen-
te identificar 135 sodomitas, possuindo para cada caso uma ficha de identificação
com nome, cor, naturalidade, estado civil, ocupação, filiação, moradia, idade da
primeira e das demais relações homossexuais, nome e identificação dos parceiros,
local, horário e descrição das relações. Infelizmente nem todos os processos - so-
bretudo as denúncias - fornecem informação completa sobre os acusados de so-
domia, tanto que sabemos a cor apenas de 67 dos somitigos. A saber:

COR/ETNIA DOS SODOMITAS

Brancos 40
Mulatos 10
Pretos 6
Mamelucos 4
índios 3
Morenos 3
Mourisco 1
TOTAL 67

De acordo com as estimat


deveriam representar por
dios mansos e 24% os negr
os negros e 16% os branc
nal da Bahia, 73% eram b
1966: 14-5). Dada a diversid
latar a representatividade
nestes primórdios de Bra
dos sodomitas brancos (60,
notipos, 9% de negros e
conseguinte aproximadame
Ao todo foram proce
parceiros eram "de cor" di
os sodomitas de cor que m
toque racial. Destes, disp
dos seguintes:

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- BRANCOS: 3 estudantes, 2 criados, 1 capitão, 1 feitor, 1 advogado,


1 escrivão, 1 senhor de engenho, 1 pagem do Governador.
- NEGROS: 5 escravos, 2 criados forros, 1 pedreiro.
- MULATOS: 3 escravos, 3 forros, 1 pajem, 1 mestre, 1 "crioulo de casa".
- MORENOS: 1 morador num mosteiro, 1 criado.
- ÍNDIOS: 2 escravos.
- MOURISCO: 1 cozinheiro.

Obviamente, quanto mais próximas do estoque racial branco, as ocupações


tendem a se sofisticar ou serem mais rentáveis, degradando-se à medida que os
indivíduos mais se aproximam da pureza étnica de cor, seja negra, seja índia:
uma lei universal intrínseca à dinâmica dos sistemas escravistas multirraciais.
Não deixa de ser sintomático que 1/5 dos sodomitas cuja profissão é conhecida
estivessem empregados em serviços domésticos, na qualidade de criados, pajens,
"crioulos de casa", "morador num mosteiro". Embora homossexualismo não im-
plique obrigatoriamente assumir comportamentos, ocupações ou trejeitos do ou-
tro sexo - e a quantidade de homossexuais famosos do passado e presente que
brilharam como militares é uma prova incontestável deste enunciado (Ellis, 1933:
14-6) -, uma pequena parcela de homossexuais manifesta preferências para ativi-
dades e trabalhos do sexo oposto, fenómeno observado não só entre os "inverti-
dos" nativos da África e da América (Cias tres, 1972), como igualmente entre os
sodomitas brancos no Brasil colonial: Baltasar da Lomba, homem solteiro, "já ve-
lho de seus 50 anos, costuma coser, fiar e amassar (pão) como mulher" (Denun-
ciações de Pernambuco, 1929: 399).
Dos 46 somitigos de cor, ou que mantiveram relações sexuais inter-raciais,
temos as seguintes composições interétnicas nas seguintes freqiiências:

RELAÇÕES INTERÉTNICAS ENTRE SODOMITAS

Branco + Mulato 9
Branco + Mameluco 5
Branco + Negro 3
Branco + Mourisco 3
Branco + Moreno 2
Branco + índio 1
Negro + Negro 3
índio + índio 1
Mameluco + Mulato 1

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O pequeno número de relações intra-raciais entre os sodomitas de cor (cin-


co num total de 28) deve ser explicado certamente não pela menor prática da "pe-
derastia" entre os não-brancos, mas pelo policiamento menos efetivo e menor
controle social a que estas populações subalternas estavam sujeitas. Pelos matos
ou em suas choupanas e senzalas, estavam mais livres do olhar perscrutador dos
familiares do Santo Ofício, o que não acontecia com os colonas brancos, os
maiores alvos da Inquisição não só por serem mais visíveis socialmente, como
por representarem presa mais interessante para o Tribunal, posto que os bens dos
sodomitas (assim como de outros culpados) revertiam parte para os delatores,
parte para a Coroa dei Rey (Ordenações Manuelinas, Livro V, t. XII: 48). Obser-
ve-se que os brancos, majoritários, mantêm relações preferencialmente com mes-
tiços, sendo poucas as relações envolvendo brancos com índios ou negros puros.
Em que medida tal coastatação concordaria com o enunciado de Thaies de Aze-
vedo de que "são mais aprovados os casamentos entre indivíduos de característi-
cas antropofísicas não muito distantes" (1966: 1)1 Se para as uniões oficiais tal
tendência parece ser dominante, para as uniões livres o mesmo autor reconhece
que a regra "diminui nitidamente". Já em 1700, o jesuíta Benci ponderava escan-
dalizado: "Quantos senhores há casados com mulheres dotadas assim de honra e
fermosura, e as deixam talvez por uma escrava enorme, monstruosa e vil?"
(1977: 103). Caso aliás que foi observado pelo viajante Gentil de la Barbinais,
nesse mesmo período: diz ele que conheceu um reinol que largou sua encantado-
ra lisboeta "pelo amor de uma negra que não teria merecido as atenções de mais
feio preto de toda a Guiné..." (apud Freyre, 1966: 478). Uniões livres envolvendo
parceiros de fenotipos extremos foram observadas também no milieu homófilo no
tempo do Império: "Um notável advogado do foro do Rio de Janeiro, na década
de 1860, apesar de casado com uma fluminense de rara beleza e esmerada educa-
ção, ia solicitar prazeres contranaturais até mesmo entre indivíduos os mais repe-
lentes. Conta-se que fora procurar um africano espadaúdo, musculoso, de feições
chatas e grossas, para partilhar debaixo de seu teto o próprio leito, desprezando o
tálamo onde refreava as lágrimas uma infeliz abandonada..." (Pires de Almeida,
1906: 168).
Nessas ligações homoeróticas heterocromáticas nem sempre a iniciativa da
relação parte do branco dominador: há casos em que o "sedutor" é da raça infe-
riorizada. Assim foi o que ocorreu com Bastião de Morais, pernambucano, filho
do Juiz de Vila de Igaraçu, 18 anos: dormia ele certa noite em casa de seu tio
quando um mulato escravo da casa, Domingos, 22 anos, veio "à sua cama e o
provocou a pecarem de maneira que, com efeito, o dito Domingos virou a ele
confessante com a barriga para baixo e se lançou de bruços sobre suas costas e
com seu membro viril desonesto penetrou no vaso traseiro dele, confessante, e
dentro dele cumpriu, fazendo com ele por detrás como se fizera com mulher por
diante, e ele isto mesmo fez também ele confessante com o dito Domingos, de

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maneira que ambos alternadamente consumaram na dita noite duas vezes o peca-
do nefando de sodomia, sendo um deles uma vez agente e outra paciente" (Con-
fissões de Pernambuco, 1970: 25-6).
Outro menino, Bartolomeu Pires, 11 anos, branco natural de Olinda, dor-
mia tranquilamente na mesma rede com João Fernandes, mameluco de 18 anos,
quando este, "estando ambos com camisas, sem ceroulas, começou a provocar
que se queria pôr em cima dele, confessante, e assim procederam a tanto que o
dito mameluco se lançou de costas e ele confessante levantando as pernas do dito
mameluco se lançou de bruços sobre ele e meteu seu membro viril pelo vaso infe-
rior do mameluco, tendo ajuntamento carnal, nefando e sodomitico" (Confissões
de Pernambuco, 1970: 45).
O "sedutor" nesta outra acusação é um mulato forro de nome Mateus Duar-
te, 50 anos, que "há um ano e meio esteve preso na cadeia de Salvador, acusado
de ter cometido o pecado nefando de sodomia, segundo é público, o qual dizem
que cometeu para o dito pecado a um moço branco de 17 anos e que o dito moço
não consentiu e gritou. O mulato encontrava-se fugido da cadeia" (Denunciações
da Bahia, 1925:249).
Nas relações sodomíticas inter-raciais encontramos todo um continuum de
interações, hora os brancos exercendo seu poder e prepotência de casta superior,
ora os "de cor" encontrando mil artifícios para serem eles os donos do poder ao
menos neste microuniverso diàdico ditado pelo homoerotismo. Embora disponha-
mos de documentação provante de que ao menos no Pará, nos meados do século
XVIII, um senhor abusou violentamente de dezenove cativos seus, causando em
vários deles traumatismo ano-retal, levando alguns inclusive a falecer devido à
infecção (Amaral Lapa, 1978: 261), nestes primórdios da história nordestina ne-
nhum escravo acusou seu senhor de tê-lo sodomizado com a mesma violência do-
cumentada para o Grão-Pará. Dispomos entretanto de alguns casos onde
transparecem nítidas situações de dominação senhorial. Verbi gratia : Pero Gar-
cia, senhor de um engenho em Peroaçu, no Recôncavo da Bahia, aos 42 anos,
embora casado, descobriu as delícias do amor homossexual: acusa-se que "venci-
do pelo apetite da carne, cometera o pecado nefando de sodomia" com quatro
parceiros: dois mulatos forros, moradores em sua casa, e mais dois escravos, sen-
do a última vez com "Jacinto, um moleque negro, seu cativo, que teria naquela
época de 6 para 7 anos, pouco mais ou menos" (Confissões da Bahia, 1963:
444).5 Neste caso é impossível saber se houve ou não violência física ou cons-
trangimento moral por parte do senhor em relação a seus subalternos. O que sabe-
mos é que sua relação com o mulato Joseph era tão regular que "duas negras da
terra chamavam ao dito mulato 'manceba' de seu senhor".
Gaspar Rois, 30 anos, feitor de engenho em Pirajá, nos arredores de Salva-
dor, foi acusado de "pecar algumas vezes no nefando com Matias, 25 anos, negro
da Guiné, seu escravo, atando-o e constrangendo-o, e por amor disso o negro fu-

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gira para a casa de Manoel de Miranda, onde disse que o dito feitor o constrangia
a pecar no dito nefando" (Confissões da Bahia, 1935: 54). Esta é a mais explícita
acusação de constrangimento homossexual envolvendo parceiros de raças e clas-
ses diferentes: um feitor branco e seu escravo africano. Acusação semelhante re-
caiu sobre o advogado Felipe Thomaz, judeu português, casado, "que cometera o
seu escravo mulato Francisco para o pecado nefando de sodomia e que por isso
lhe fugira para a fazenda de Antonio Cardoso de Ramos. E soube mais que o dito
mulato se queixava de que o denunciado o mandava estar em camisa e sem calças
quando lhe escrevia de noite..." (Denunciações da Bahia, 1927: 107).
Nem sempre, todavia, os brancos lançam mão de sua condição estamental
como estratégia política de dominação vis-à-vis seus parceiros carnais. O já cita-
do Baltasar da Lomba, que causava estranheza a seus contemporâneos pelo saber
"coser, fiar e amassar como mulher", é acusado de ter praticado nefandices com
diversos índios e mais ainda: "haverá 3 ou 4 anos, uma escrava brasila vira o dito
Baltasar com um negro, fazendo o pecado nefando em cima de umas hervas fora
de casa" e outra vez outro denunciante declarou ao Visitador que "às escuras, e
por uma abertura da porta, poz a orelha e aplicou o sentido e ouviu falar no quar-
to o dito Baltasar da Lomba com um índio de nome Acahuy, 20 anos, e os sentiu
que estavam ambos em uma rede e sentiu a rede rugir e a eles ofegarem como
que estavam no trabalho nefando, e ouvindo do dito índio umas palavras na lín-
gua, que queriam dizer * queres mais?' como coisa que acabassem de fazer o pe-
cado e o dito Baltasar disse então que saissem fora a urinar" (Denunciações de
Pernambuco, 1929: 399-401). O tom da pergunta do índio, o uso da própria lín-
gua ameríndia e a situação social do branco, cuja profissão era "ser criado", suge-
rem uma relação de mútuo consentimento e camaradagem, apesar da diversidade
racial dos parceiros. Os já citados casos em que a iniciativa ou mesmo sedução
homossexual partiu de rapazes "de cor" reforçam a ilação de que nem sempre as
relações entre somitigos repetia o parâmetro hierárquico de o branco ser o domi-
nador. Situação semelhante provavelmente deveria ocorrer também nas relações
heterossexuais envolvendo brancos e mulheres de cor.
Poderia o leitor indagar se a divisão dos papéis no ato sexual implicaria
uma repetição na esfera homoerótica da mesma estratificação sócio-racial obser-
vada na sociedade colonial brasileira. Em outros termos: haveria coincidência em
ser branco o sodomita àtivo (chamado na época de "agente") e de cor os passivos
(na época cognominados de "pacientes")? Teria credibilidade Gilberto Freyre
quando sugeriu que as mulheres de cor, notadamente as mulatas - e, por analogia,
os "passivos" -, teriam uma propensão tradicional para comportamentos sexuais
masoquistas?
Dos 67 somitigos sobre os quais dispomos de informação sobre a cor, para
43 sabemos qual a posição assumida predominantemente no intercurso sexual.
Este é o conteúdo do quadro abaixo:

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MOTT, Luiz. "Relações raciais entre homossexuais no Brasil colonial".

COR E POSIÇÃO NO ATO SEXUAL

"Ativo" "Passivo" "Troca-troca" Total


BRANCOS 6 5 4 15
NEGROS 4 5-9
ÍNDIOS 2 1-3
MESTIÇOS 4 8 4 16
TOTAL 16 19 8 43

A leve superioridade dos


a ser representativa, o me
que foram "pacientes". O
mestiços: num total de de
clusivamente como "agen
"troca-troca". Se "passivid
bem questiona Michel M
aíestaria mais uma prova
miscigenação como causa
veiros de Castro ao escrev
tre que no 2fi Congre
mestiçagem são as mais fe
porque os mestiços, a par
dos de senso moral e pro
apenas numa perspectiva
- é que se atribui ao "pene
o pederasta, por serem "r
se identifica com ser dom
sempre num "coitado"? Se
diferentes consolida-se tr
posse não só das mulheres
mais grupos étnicos - a
nem para as mulheres bra
noticiado episódios de pre
vis parceiros sexuais de
implica privilégio de raça,
"pacientes" de negros, ín
mente os brancos que m
equilibrada" (Sahlins, 19
com um mulato e outro mourisco.
Antes de concluir essas reflexões relativas à prática da sodomia por parte
dos primeiros colonos do Nordeste brasileiro, valeria referir dois aspectos mar-

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cantes das relações nefandas entre a população de cor da Bahia colonial. A pri-
meira observação refere-se à existência de uma relação estável entre sodomitas
da mesma raça e de igual situação juridico-social: trata-se de dois índios escra-
vos, moradores na ilha da Maré, na Bahia de Todos os Santos. Segundo seus acu-
santes, "era público e notório que Joane além de fazer o pecado nefando com
outros muitos, usando de fêmea, ora particularmente está com o índio Constanti-
no, amancebado como se foram homem com mulher, servindo com o dito índio
Joane de mulher e o dito Constantino de homem" (Denunciações da Bahia, 1925:
569). Este "caso" era conhecido "por todos os negros e índios da Maré e assim o
dizem todos eles comumente e publicamente". Joane devia provavelmente ser um
dos "tibira" que os primeiros cronistas descreveram como existindo numerosos
nas aldeias Tupinambá das ilhas do Recôncavo. Relação estável de "amancebia",
pública e notória, com divisão explícita de papéis sexuais, é esta a primeira refe-
rência de que se tem notícia entre os homossexuais ameríndios do Brasil.
Outra referência interessante encontrada nos processos do Santo Ofício é a
que envolve o sapateiro Francisco, natural do Congo, cativo de Antonio Pires,
morador abaixo da igreja da Misericórdia, o qual tinha fama entre os negros de
ser somitigo. Seu acusante, o lisboeta Matias Moreira, cristão-velho, disse que,
"em Angola e Congo, nas quais terras ele denunciante andou muito tempo e tem
muita experiência delas, é costume entre os negros gentios trazerem um pano cin-
gido com as pontas por diante, os negros somitigos, que no pecado nefando ser-
vem de mulheres pacientes, aos quais pacientes chamam, na língua de Angola e
Congo, 'jimbandaa', que quer dizer somitigos pacientes". Ouvindo dizer que o
dito Francisco era sodomita, certa feita "viu ele denunciante ao dito negro trazer
um pano cingido assim como na sua terra em Congo trazem os somitigos pacien-
tes, e logo o repreendeu disso e o dito Francisco lhe respondeu que ele não usava
de tal e o repreendeu também porque não trazia o vestido de homem que lhe dava
o seu senhor, dizendo-lhe que em ele não querer trazer o vestido de homem, mos-
trava ser somitigo, pois também trazia o dito pano do dito modo e contudo lhe ne-
gou que não usava de tal. E depois o tornou ainda duas ou tres vezes a ver nesta
cidade com o dito pano cingido e tornou a repreender e já agora anda vestido em
vestido de homem" (Denunciações da Bahia, 1925: 406-7).
Este Francisco Congo pode ser considerado o primeiro travesti do Brasil, o
homossexual mais corajoso de que se tem notícia neste começo de nossa história,
pois, além de ter fama entre os negros de ser somitigo, mesmo repreendido conti-
nuou por certo tempo a usar traje típico de "jimbandaa" (ou "quimbanda", como
grafou o Capitão Cardonega em 1681, em documento citado à página 173). O po-
bre sapateiro congolês incorria, pelo seu proceder, em dois graves pecados puni-
dos pelo Direito Canónico: crime de sodomia e crime de "fingir ser de diferente
estado e condição": "o homem que se vestir em traje de mulher pagará 100 cruza-

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MOTT, Luiz. " Relações raciaiç entre homossexuais no Brasil colonial".

dos e será degredado para fora do Arcebispado da Bahia arbitrariamente, confor-


me o escândalo que der e efeitos que resultarem" (Constituições Primeiras do Ar-
cebispado da Bahia, 1853: § 939 e 958).
Como se observa a partir do exposto até aqui, não havia lugar na sociedade
colonial brasileira para a publicidade do "vício de Veneza": o espectro da foguei-
ra impelia os "pederastas" a fazerem total segredo de seu homoerotismo. Os so-
mitigos de cor, menos informados do perigo da Inquisição, eram mais ousados,
chegando a vestir-se a caráter, vivendo publicamente amancebados. Outros não
acreditavam que pudesse ser efetiva a ação do Santo Ofício: Duarte de Angola,
20 anos, escravo dos jesuítas do Colégio da Bahia, disse que Joane, negro da Gui-
né, "por muitas vezes o perseguiu e cometeu com dádivas que fizesse com ele o
pecado nefando, e que não o consentiu mas o repreendeu e lhe disse que era caso
de os queimarem, ao que o dito Joane lhe respondeu que também Francisco Ma-
nicongo fazia o dito pecado com outros negros e que não o queimavam..." (De-
nunciações da Bahia, 1925: 408).
O medo da fogueira devia ser um tormento para os gays daquela época:6
quando o primeiro sodomita foi preso no Brasil, o mulato Mateus Duarte, forro,
50 anos, "que já pinta de branco", era voz corrente na Bahia que "o dito nulato ia
ser queimado" (Denunciações da Bahia, 1925: 467). Dez anos antes da chegada
do primeiro inquisidor ao Brasil, o mulato Fernão Luiz, de Matoim, "depois de
ter cometido o pecado nefando com um moço das Ilhas (da Madeira?), por não
ser descoberto matara ao dito moço e a seu pai e mãe, com peçonha que lhes deu
em uma galinha para comer" (Denunciações da Bahia, 1925: 466). O já citado
advogado Felipe Thomaz, cristão-novo, tão injuriado estava de ser sodomita "que
anda de provérbio entre brancos e negros", chegou ao excesso semelhante ao mu-
lato supracitado: "matou um moço que o servia de criado, por ter cometido com
ele o dito pecado e para que o não descobrisse".
Cinco anos antes da instalação do Tribunal da Inquisição na Bahia, Gaspar
Rois pagou 10 cruzados ao Juiz Eclesiástico Antonio Gomes para queimar o auto
que contra ele se levantara, por pecar no nefando com o guinéu Matias (Confis-
sões da Bahia, 1935: 52). Em todos esses casos de extrema violência o que se
evidencia é o terror da fogueira e a tentativa de se apagar as provas do crime ne-
fando nem que para tanto o recurso fosse matar o cúmplice, arriscando-se o falto-
so a incorrer e ser condenado por um crime punível pelo tribunal civil.
A clandestinidade, segredo e discrição a que deviam se submeter os homos-
sexuais forçavam-nos a uma coalescência e cumplicidade que neutralizava as
barreiras de raça e mesmo de hierarquia social. Um escravo que acusasse com
provas seu senhor do execrável pecado poderia levá-lo às barras do tribunal, qui-
çá mesmo à fogueira. Tal situação de clandestinidade e punibilidade a que esta-
vam sujeitos os nefandistas do século XVI e XVII é a meu ver o que torna

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específicas as interações raciais deste pequeno segmento social. Sendo a homos-


sexualidade uma relação clandestina que se restringia ao segredo das alcovas ou
aos ermos das matas, estavam por conseguinte os sodomitas livres do controle e
censura social que certamente deviam pesar sobre os brancos em suas relações
com parceiras de cor. Embora nunca se tenha cumprido no Brasil a proibição de
casamentos interétnicos, como ocorreu por exemplo em Cuba (Martinez -Alier,
1973: 453-72), e houvesse aqui bastante tolerância face às uniões livres dos bran-
cos com mulheres de cor, nem por isso as esposas brancas deixaram de reprimir
as ousadias de seus maridos infiéis, repressão que temos documentada para a Ba-
hia meridional dos inícios do século XIX (Mott, 1981) e que Gilberto Freyre diz
atingir requintes de crueldade: "Não dois nem três, porém muitos são os casos de
crueldades de senhoras de engenho que mandavam arrancar os olhos de mucamas
bonitas e trazê-los à presença do marido à hora da sobremesa. Baronesas já de
idade que por ciúme ou despeito mandavam vender mulatinhas de 15 anos a ve-
lhos libertinos. Outras que espatifavam a salto de botina dentaduras de escrava,
ou mandavam-lhes cortar os peitos, arrancar as unhas, queimar a cara ou as ore-
lhas. Toda uma série de judiarias. O motivo, quase sempre, o ciúme do marido. O
rancor sexual. A rivalidade de mulher com mulher" (1966: 362). Entre os sodo-
mitas, posto que "o segredo era a alma do negócio", vale dizer, da sobrevivência,
não havia lugar para toda essa violência, nem por parte do ciúme de terceiros,
nem por parte de um dos amantes, pois qualquer excesso poderia redundar na de-
lação. E, embora também o delator fosse culpado, quem tomasse a iniciativa de
primeiro se confessar arrependido gozava do beneplácito e perdão, muito embora
estivesse sujeito a torturas e castigos mais leves, como ser açoitado publicamente,
ser enviado para as galés do Reino, ser degredado para fora da cidade ou para a
Africa, jejuar e rezar os salmos penitenciais, percorrer a nave da igreja de peito
nu carregando vela acesa e se autoflagelando etc. (Siqueira, 1978: 367ss; Sinis-
trari, s/d).
Sendo a relação homoerótica uma interação não reprodutora, motivada uni-
camente por impulsos libidinosos, a aproximação de pessoas de raças diferentes
não passa por outro crivo senão o da atração sexual ou afetiva, fato que não ocor-
re com igual inteasidade nas relações heterossexuais, onde uma cópula de um
branco com uma mulher de cor poderá redundar num mesticinho indesejado. Se
ainda hoje em dia, a quase cem anos da abolição, o temor de uma prole mestiça
impede e inibe muitos casais heterocromáticos de se unirem em matrimónio, com
mais razão, durante o período escravista, a cor escura devia ser uma variável le-
vada em consideração e inibidora de eventuais casamentos inter-raciais, sobretu-
do quando um dos envolvidos era de classe superior. "Casamentos de pessoas de
cor diferente sempre produzem algum mal-estar ou mesmo abalo nas famílias e

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MOTT, Luiz. " Relações raciais entre homossexuais no Brasil colonial".

nos meios em que ocorrem", easina o baiano Thaies de Azevedo (19 66: 6). Mes-
mo presenciando no Brasil antigo uma grande tolerância nas uniões sexuais livres
envolvendo brancos com mulheres de cor, tolerância estendida também para os
filhos bastardos, nas classes dominantes a norma, em se tratando de casamentos,
sempre foi a "endogamia hipergâmica", isto é, "a regra de casamento que interdiz
a uma pessoa de um grupo social (casta, classe etc.) eleger seu cônjuge num gru-
po que lhe seja social (ou racialmente) inferior" (Panoff, 1973: 137). O viajante
Expilly em meados do século passado escrevia a esse respeito: "Uma branca des-
posar um mulato? Isso raramente se vê nas altas-rodas, pois seria repelida por to-
dos, apontada e excluída da sociedade. O mais opulento mulato é inferior ao
branco, ele o sabe e lhe será lembrado" (apud Viotti da Costa, 1966: 278). Com
os sodomitas nada disso devia ocorrer posto que as uniões eram secretas, não re-
produtoras, e não implicavam ameaça para o patrimônio dos brancos ricos.

À guisa de conclusão

Tenho dificuldade de concluir este trabalho não só por tratar-se de uma


pesquisa em andamento, ainda inconclusa, como pela própria natureza de seu
conteúdo polèmico e delicado, posto que aborda temas pouco estudados na Aca-
demia. Alguns assinariam junto com o vetusto professor de Medicina Legal da
Universidade de Berlim, Dr. Casper, quando disse: "se o interesse da ciência é sa-
grado, acima da ciência está a moral, bem mais sagrada ainda..." (apud Lima,
1934: 3). A estes eu responderia citando o prof. Estácio de Lima, antigo catedráti-
co de Medicina Legal da Universidade onde hoje tenho a honra de lecionar: "Ne-
nhuma ferida física ou moral por mais corrompida que esteja deve espantar
àquele que se devota à ciência do homem, obrigando-o a tudo ver, permitindo-lhe
também tudo dizer" (Lima, 1934: 4). Evidentemente que não considero o homos-
sexualismo como ferida, muito menos como anormalidade, perversão, pecado,
imoralidade etc. etc. E aí se coloca mais um problema que me dificulta concluir
esta comunicação: minha situação de "académico militante". Lévi-Strauss sugere
um caminho: "Uma vez formulada a distinção entre objeto e sujeito, o próprio su-
jeito pode de novo desdobrar-se do mesmo modo, e assim por diante, de maneira
ilimitada, sem ser jamais reduzido a nada. A observação sociológica (...) extrai-se
graças à capacidade do sujeito de objetivar-se indefinidamente, isto é (sem che-
gar jamais a omitir-se como sujeito), de projetar para fora frações sempre decres-
centes de si mesmo. Teoricamente, pelo menos, esse desmembramento não tem
limite, a não ser o de implicar sempre a existência de dois termos como condição
de sua possibilidade" (Lévi-Strauss, 1974). Sujeito e objeto - eu e "meus" sodo-
mitas mantemos uma relação que escapa à diatètica (e diga-se en passant que En-

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gels, em sua única referência à homossexualidade - dos gregos -, rotula-a de


"prática repugnante" - Engels, 1944: 89), na medida em que minha síntese en-
quanto pesquisador não nega, antes pelo contrário fornece-me elementos positi-
vos que alimentam minha práxis voltada para a defesa da igualdade de direitos
para os homossexuais brasileiros da atualidade. Não escondo esse meu envolvi-
mento efetivo e afetivo com a homossexualidade: após milénios de clandestinida-
de, opressão, intolerância, carnificina (300 mil gays foram assassinados pelos
nazistas! - Lauritsen & Thorstad, 1974), finalmente há espaço para que os "obje-
tos" de estudo comecem a falar, tenham voz. Não postulo uma antropologia femi-
nina, uma sociologia negra, uma etnologia carajá, nem uma psiquiatria gay, mas
defendo sim que negros, mulheres, homossexuais, índios, palestinos etc. tenham
direito de fazer ciência, que sejam os porta-vozes preferenciais de seu povo, in-
clusive dentro da Academia. Só o futuro dirá se essa nova ciência, feita pelos
"povos primitivos, pervertidos, sexo frágil etc.", produziu resultados menos de-
sastrosos do que a ciência feita apenas pelos cidadãos "normais" que até há pou-
co, nesta mesma academia a que tenho a honra de pertencer, ensinaram que negro
era inferior e até hoje explicam o homossexualismo como decorrente de uma in-
flamação de uma certa glândula na 14a ou 17a semana da gravidez e advertem à
população a ter cuidado com os gays posto que são dez vezes mais infectados de
doenças venéreas que as prostitutas (Mott, 1982). Aliás, é essa mesma ciência
que no capítulo dos "distúrbios do instinto sexual", além de rotular o homosse-
xualismo como desvio e transtorno, inclui duas modalidades de perversão - pas-
me o leitor: " crono-inversão : é a propeasão de certas pessoas por parceiros de cor
diferente; e etno-inversão: é a manifestação erótica por pessoas de raças diferen-
tes" (Veloso de França, 1977: 160).
Temos o privilégio de viver num período de grandes transformações tanto
na Academia como no próprio sentido e significado da produção científica: o ma-
gister dixit , a cátedra vitalícia, as listas séxtuplas, a decoreba e a palmatória per-
tencem ao museu das antigüidades. Hoje tem índios de cabeleira comprida
fazendo universidade em Brasília, negros há mais de século ocupam lugares de
destaque na inteligentzia brasileira, inclusive na Universidade, mulheres idem.
Pergunto: quantos professores e professoras, seja em escolas primárias, seja nas
universidades, quantos podem dizer publicamente que são homossexuais, sem
perder seus empregos? E por que não? Por que nossa sociedade heterossexista e
homofóbica teme que esses mestres digam a verdade científica em suas salas de
aula, a saber, "que todas as expressões sexuais, desde que respeitem a liberdade
alheia, são igualmente válidas, legítimas e saudáveis", conforme dizem os antro-
pólogos brasileiros na moção aprovada no congresso brasileiro de 1981 da cate-
goria. Somos privilegiados, repito, porque dispomos do respaldo da ciência para
ensinarmos a nossos alunos o que o bom senso e os defensores dos direitos huma-
nos cansam de repetir: que todas as raças são iguais, que todos os sexos (inclusive

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o "terceiro sexo", para usar uma expressão do século passado) devem ter os mes-
mos direitos, que as diferenças (seja na cor, seja na expressão sexual) não devem
implicar desigualdade.
Esta minha pesquisa sobre os sodomitas do Brasil colonial tem exatamente
essa finalidade: resgatar a história secreta de um segmento social até então estig-
matizado, escondido. Resgatar o passado de milhares de homens e mulheres cujo
direito à história foi até então negado. E essa história nos revela que, apesar de
toda a opressão a que estavam sujeitos os homossexuais -considerados como cri-
minosos de lesa-majestade e punidos com a morte -, apesar da intolerância de
que eram alvo, esses homens resistiram, desobedeceram, fizeram o amor da for-
ma que gostavam, certos de que errados estavam quem os reprimia. E a tenacida-
de desses somitigos, tibira e jimbandas, mesmo sem a consciência histórica e o
respaldo científico de que hoje nos beneficiamos, preparou o terreno para que
hoje os gays tenham não apenas direito, mas inclusive orgulho de se assumirem
homossexuais.

NOTAS

(1) Esta comunicação faz parte de uma pesquisa mais ampla que tem como título "Moralidade
e sexualidade no Brasil colonial e na atualidade", que conta com o auxílio de uma bolsa do CNPq, a
quem deixo impresso mais uma vez meu agradecimento. Declaro também minha gratidão a Aroldo
Assunção, companheiro de militância e de pesquisa, que me auxiliou significativamente na sistemati-
zação deste material.
(2) De acordo com o § 302.0 do Código de Saúde seguido pelo INAMPS (Decreto n° 60501 de
14/3/1967, art. 113, § 1), a homossexualidade é considerada "desvio e transtorno sexual*1. Diversos
países signatários da carta da OMS (Organização Mundial de Saúde), por pressão do movimento ho-
mossexual internacional, aboliram tal parágrafo.
(3) Como nem todos os colegas de Academia conhecem o teor dessas duas moções, aproveito
este espaço para transcrevê-las integralmente tal qual foram por mim encaminhadas e aprovadas em
plenário:
" Moção contra a discriminação sexual : Que a presidência e assembléia geral da SBPC apóiem
oficialmente a campanha iniciada pelo movimento homossexual brasileiro contra toda forma de dis-
criminação sexual. Que a SBPC se oponha energicamente a todas as leis, códigos e posturas que, con-
trariamente à ciência, rotulam o homossexualismo como 'patologia'. Que nas próximas reuniões
anuais da SBPC haja sempre espaço para debates interdisciplinares sobre a questão homossexual. Que
a SBPC se comprometa a apoiar o encaminhamento do abaixo-assinado contra a discriminação sexual
junto aos organismos governamentais competentes." Salvador , 33" Reunião da SBPC, 14/7/1981.
"Moção contra a discriminação sexual : A exemplo da Associação Antropológica Americana,
que em 1970 votou e aprovou uma moção pela liberdade sexual, propomos que a Associação Brasilei-
ra de Antropologia aprove e divulgue, na medida do possível, que:
I. Todas as expressões sexuais, desde que respeitem a liberdade alheia, são igualmente válidas
e legítimas;
II. A discriminação sofrida em nossa sociedade por expressões sexuais consideradas desvian-
tes atropela um direito de todo ser humano de fazer sexo como e com quem quiser;

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Revista de Antropologia. São Paulo, USP, 1992, v. 35, p. 169-190.

III. A Antropologia, que tem no respeito pela alteridade e na luta contra o etnocentrismo sua
raison d'être , a pòi a o direito do movimento das minorias sexuais de se organizar e ser respeitado da
mesma forma que os demais grupos minoritários;
IV. Considerando que a homossexualidade tem sido uma das expressões sexuais mais reprimi-
das e desprezadas em nossa sociedade, a ABA enquanto órgão supremo dos antropólogos do Brasil, à
imitação da SBPC, apóia a campanha nacional pela extinção do § 302.0 do Código de Saúde do
INAMPS, que rotula o homossexualismo como 'desvio e transtorno sexual'. n S. Paulo, 13* Reunião
da ABA, 6/4/1982.
(4) Data venia , transcrevo também esta última "Recomendação'' aprovada pela reunião da
SBPC de 1982: "1) Considerando a pequena produção científica no Brasil de pesquisas e trabalhos re-
lativos à sexualidade humana em geral e à homossexualidade em particular; 2) Considerando que nos
países desenvolvidos a produção científica nesta área tem crescido enormemente, gozando de incenti-
vos e respeitabilidade por parte dos órgãos financiadores e instituições de pesquisa; 3) Considerando
que no Brasil, sobretudo na área das Ciências Humanas, os projetos de pesquisa sobre a sexualidade
em geral e a homossexualidade em particular têm sido mal recebidos, discriminados e considerados
irrelevantes ou faltos de interesse científico, sendo por vezes indeferidos apesar da inquestionável
qualidade científica e relevância social; Proponho: que a SBPC use de todo o empenho, oficiando às
fundações, instituições de pesquisa e órgãos financiadores que acolham com idêntica objetividade
científica e sem discriminação os projetos que tratem de temas relacionados com a sexualidade e ho-
mossexualidade, insistindo junto aos órgãos financiadores e fundações que instituam prémios e estí-
mulos aos projetos de pesquisa sobre temas de sexualidade." 5. Paulo, 34* SBPC, 12/7/1982.
(5) Pelo visto, nesta época, manter relações sexuais com crianças de idade menor não consti-
tuía grave perversão, tanto que o Cónego Jácome de Queiroz, mameluco, natural da capitania do Espí-
rito Santo, 46 anos, confessou que certi noite "levou a sua casa uma moça mameluca que então teria 6
ou 7 anos, que andava de noite vendendo peixe pela rua, escrava cativa de Ana Carneira, mulher do
mundo... depois de jantar e encher-se de vinho, cuidando que corrompia a dita moça pelo vaso natural,
a penetrou pelo vaso traseiro e nele teve penetração sem polução, e tanto que sentiu que era pelo tra-
seiro, se afastou e tirou dela e isto lhe aconteceu uma vez, por seu desatento...". Haverá 7 ou 8 anos,
"querendo corromper outra moça per nome Esperança, sua escrava, de idade de 7 anos pouco mais ou
menos no dito tempo, cuidando que a corrompia pelo vaso natural, a penetrou também pelo trazeiro...
e a dita escrava depois ele vendeu a Marçal Roiz e está ora casada" (Confissões da Bahia, 1935: 46-7).
Nenhuma referência sequer ao fato de tratar-se de crianças impúberes: o crime estava no erro do
"vaso" e não na relação de poder do senhor-adulto com a criança-escrava.
(6) Propositadamente emprego aqui a expressão "gay" pois, de acordo com Boswell (1980:
43), desde o século XIII que na língua catalã-provençal se emprega o termo "gai" para referir-se a
uma pesssoa abertamente homossexual. Em seu livro Cristandade, tolerância social e homossexuali-
dade, Boswell emprega este mesmo cognome para referir-se aos sodomitas da Idade Média: "Gay
people in Western Europe from the Beginning of the Christian Era to the Fourteenth Century". Para
sermos mais fiéis a nossas raízes lingüísticas, considero melhor o termo "gay" do que "homossexual",
este último vocábulo somente tendo sido cunhado em 1869 por Benkert e divulgado em 1870 pelo
médico alemão Westphal. Com uma certa ironia, usei nesta comunicação diversos termos antigos que
até hoje são encontradiços em textos sobre os homossexuais, a saber: "uranistas", "pederastas", "ho-
mófilos", "terceiro sexo", "nefandistas", "somitigos" e "sodomitas". A homossexualidade também foi
cognominada com os epítetos de "vício de Veneza" (ou "vício italiano"), "amor socrático" (ou "amor
grego"), "vício dos clérigos", "amor que não ousa dizer seu nome" etc. Conforme ficou patente, abor-
dei neste trabalho apenas a homossexualidade masculina - e, embora o lesbianismo (também chamado
de "tribadismo") seja tão praticado quanto a pederastia (masculina), inclusive constando nos processos
da Inquisição diversos casos de lésbicas contumazes, deixamos para outros pesquisadores(as) o estudo
e divulgação deste aspecto da sexualidade feminina.

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