Vera Lopes Da Silva_Tese
Vera Lopes Da Silva_Tese
Vera Lopes Da Silva_Tese
Rio de Janeiro
2017
Vera Lopes da Silva
Rio de Janeiro
2017
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/B
CDU 869.0(81)-051
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese,
desde que citada a fonte.
__________________________________ ____________________
Assinatura Data
Vera Lopes da Silva
Banca examinadora:
______________________________________
Prof.ª Dra. Ana Cláudia Coutinho Viegas
Instituto de Letras – UERJ
______________________________________
Prof.ª Dra. Fátima Cristina Dias da Rocha
Instituto de Letras – UERJ
_______________________________________
Prof.ª Dra. Ivete Lara Camargos Walty
Pontifícia Universidade Católica de Mina Gerais
_____________________________________
Prof. Dr. Wilberth Claython Ferreira Salgueiro
Universidade Federal do Espírito Santo
Rio de Janeiro
2017
DEDICATÓRIA
SILVA, Vera Lopes da. O escritor como objeto de si:uma vertente na literatura
contemporânea. 2017. 285 f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) - Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
SILVA, Vera Lopes da. The writer as an object of himself: a strand in contemporary
literature.2017. 285 f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) - Universidade do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
INTRODUÇÃO......................................................................................... 10
REFERÊNCIAS........................................................................................ 277
10
INTRODUÇÃO
Meu interesse pela caracterização das vozes discursivas pertence a um tempo bem
anterior ao que tem se manifestado durante minha vida acadêmica. Minhas impressões partem
de lembranças da infância: noites sem luz elétrica, meu pai contando casos recheados de
suspense, drama e humor. A exemplo, a cena em que fora expulso de casa, aos 12 anos,
levando apenas um embrulhozinho feito de jornal; dentro, uma única muda de roupa, carinho
angustiado da irmã mais velha.Outra, contada com fins educativos, sobre seus dias de fome,
quando,já estando nas ruas de Santos, no litoral paulista, roubava pratos de comida postos nas
janelas das casas para esfriar, um hábito de então. Narrava mais uma, agora de sua juventude,
circunstância em que conseguiu uma máquina para falsificar dinheiro (atividade narrada com
requintes), por meio do que fez grandes negócios. Ou, já adulto, quando armou uma cilada
para minha mãe: desmanchou um namoro de nove meses, alegando ser muito jovem para ter
compromissos (ele então tinha 31 anos); fez isso na expectativa de deixá-la triste e promover
grande surpresa com o envio, no dia seguinte, de um ramalhete de violetas com duas alianças.
E, ainda, famoso piadista, criando vozes femininas, infantis, idosas, representava não só os
personagens, mas os narradores; a encenação incrementava o humor. Já idoso, contou-me
sobre o tempo que passa. Apontando para o céu, encerrou a narrativa: “aquele que está lá em
cima está lendo um livro de Saramago e nem liga pra gente”. Pura autoficção: ele era ateu!
Vendo e ouvindo aquele homem sóbrio e honesto, um rígido pai-educador como convinha à
época, um leitor primoroso, eu ficava sempre em dúvidasobre a verdade daquelas
narrativas,das quais sobrevinham os efeitos providos pela sua estética: choro, encantamento,
risos, sempre sedução, sem saber com a clareza de hoje quetudo era oriundo das vozes que ali
se manifestavam.
Essas primeiras impressões de leitora perscrutando narradores foram sendo tomadas
pelos estudos teóricos. No decorrer dos tempos de graduação, as obras lidas sempre
impressionavam por esse aspecto, como Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell, cujos
narradores transmudam a si e a seus enredos, trocando fatos por meio de vozes alternantes e
cruzantes.No decorrer do período de mestrado, tomei como objeto de estudo a obra História
do Cerco de Lisboa, de José Saramago, porque ali me deparei com um narrador intrigante, um
“narrador em esfinge”, nomeação motivada pelo fato de que a obra oferta ao leitor um
narrador para deciframento. O desejo de estudar esse ser incógnito foi, de certa forma,
satisfeito naquela instância acadêmica, mas o interesse foi-se intensificando ante o acesso a
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várias obras de autores contemporâneos, nas quais se podem detectar vozes narrativas com
perfil inovador, singular.
Sendo assim, a escolha do corpus desta investigação é resultado de leituras, a princípio
sem o interesse acadêmico, apenas pela percepção de que,em muitas obrascontemporâneas, há
construções de narradores feitas de forma inédita, carregadas de estranhamento, o que ia
incrementando meu gosto pelos estudos sobre esse ser de papel, que me parecia tomado de
múltiplos perfis. Essas primeiras impressões encontraram estímulo na leitura de um artigo de
Leyla Perrone-Moisés (2012), “A literatura exigente”, publicado no jornal Folha de S.Paulo,
no caderno “Ilustríssima”, no qual a professora lista e comenta obras contemporâneas que
trazem peculiaridades em correspondência com o que já se anunciava para mim.
A tese que me propus a desenvolver, então,é a de que há um segmento da literatura
contemporânea brasileira que manifesta certa desconfiança quanto ao próprio trabalho de
escritor de literatura, desconfiança evidenciada por meio de um recurso estético relativo ao
elemento composicional da narrativa: o espaço. Inquietas, as vozes discursivas que se
encarnam no narrador não se fixam, sempre em deslocamentos físicos ou mentais, como se
fossem impulsionados para o entendimento de si. Por isso, pela impermanência em que se
colocam, é revelado um embaraço, um dilema, um mal-estar quanto à sua existência,
problema que se apresenta sob certa aura de fascínio, cuja resolução talvez se dê na e pela
construção da escrita, revelando o tempo que se inscrevem.
Como têm em seu bojo esses atributos comuns, embora cada uma delas com sua marca
autoral, duplo movimento atrativo à pesquisa e passível de estudos comparativos, essas obras
são tomadas como componentes de uma vertente reveladora dessa contemporaneidade. São
elas A história dos ossos, de Alberto Martins; A passagem tensa dos corpos, de Carlos de
Brito e Mello; A vendedora de fósforos, de Adriana Lunardi; Antiterapias, de Jacques Fux;
Berkeley em Bellagio, de João Gilberto Noll; Budapeste, de Chico Buarque; Diário da queda,
de Michel Laub; Divórcio, de Ricardo Lísias; Procura do romance, de Julián Fuks; Ribamar,
de José Castello.
A investigação incide em alguns de seus traços distintivos que ilustram a
contemporaneidade, especialmente: a) a presença de vozes discursivas ligadas de alguma
forma ao fazer literário — escritor, ghost-writer, narrador; b) a desconfiança desses sujeitos
quanto a si mesmos, relativamente a essa ligação com o próprio fazer literário; c) o
deslocamento, físico ou mental, desses seres discursivos, como aventura (in)voluntária para o
deciframento de si; d) a metalinguagem intricada ao discurso dessas vozes, como linguagem-
objeto.
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Walsh faz ver de que maneira podemos mostrar o que parece quase impossível de
dizer. Poderemos dizê-lo se encontrarmos outra voz, outra enunciação que ajude a
narrar. São sujeitos anônimos que aparecem para assinalar e fazer ver. A verdade
tem a estrutura de uma ficção em que outro fala. Fazer na linguagem um lugar para
que o outro possa falar. A literatura seria o lugar em que é sempre outro quem vem
dizer. “Eu sou outro”, como dizia Rimbaud. Sempre há outro aí. Esse outro é o que
se deve saber ouvir para que aquilo que se conta não seja mera informação, mas
tenha a forma da experiência (PIGLIA, 2001).
o que foi contraposto pelos modernos, que substituíram aquela “tradição coletiva pela
experiência individual como árbitro decisivo da realidade” (WATT, 1990, p. 16). O autor
associa então suas reflexões sobre narrador às variações de tempo e espaço para a composição
do romance moderno.
Tal associação demonstra que passa a haver uma tendência de vinculação do enredo à
memória biográfica do narrador, com a preferência, então, pela experiência individual, com
ênfase nos índices particulares, o que vincula o narrador a um modo de realismo. Essa
inclinação interessa-nos sobremaneira, porque permanece até os dias contemporâneos, embora
também orientada por outros novos ares, como se pretende tratar neste estudo.
Segundo Watt (1990), o tom do que se chamava realismo, para o mundo literário
anterior ao século XVIII, muda com a abordagem particularizante do sujeito ficcional, que “se
traduz no problema de definir a pessoa individual” (WATT, 1990, p. 19), por exemplo,
tomada por um nome de batismo que tenha a ver com a sua personalidade, em suas
particularidades, posta em determinado tempo e espaço que contribuam para a expressão de
sua identidade. Sendo assim, essas vozes discursivas que assumem o papel de narrador são
reveladas porque há um espaço e um tempo que as revelam. Não há, então, verdades
universais, incontestáveis. Pelo contrário, a experiência de um narrador, seu passado,
portanto, revela o seu presente; é causa do seu presente. Ainda segundo Watt, “o exemplo
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mais evidente e extremo é o romance de fluxo de consciência, que se propõe a apresentar uma
citação direta do que ocorre na mente do indivíduo sob o impacto do fluxo temporal” (WATT,
1990, p. 23).
Essa perspectiva temporal se alia à perspectiva espacial, pois a primeira se instaura na
segunda, pretendendo assegurar o narrador em sua atuação, porque, tentando firmar-se no
espaço, tenta fixar-se em seu posto de quem controla a narrativa. E é dessa forma que fica
autenticada sua atuação, registrada em tempo e em espaço.
Esse pequeno apanhado de reflexões teóricas sobre a categoria narrador — tanto no
que elucida Jacyntho Lins Brandão sobre o narrador nas obras clássicas greco-latinas
universais (realce de responsabilidade dos narradores, reflexo do mundo de que emergem,
transparência no modo de produção) quanto no que trata Ian Watt sobre essa mesma categoria
nas obras modernas universais (o realismo que se volta para as minúcias do indivíduo em
contraposição ao universal, a associação da voz que narra ao tempo e ao espaço como forma
de garantir-lhe a subjetividade e a segura demarcação de suas funções, entre elas a de escritor)
— será tomado aqui como fonte para estudos aplicados à tradição literária brasileira, de forma
a demonstrar que o tema sobre o qual nos debruçaremos não é algo inédito na literatura
brasileira, mas um aspecto que assume novos perfis na contemporaneidade, sempre em sua
complexidade.
Podemos observar que, na trajetória da tradição literária brasileira, o leitor tem podido
se defrontar pontualmente com vozes discursivas que, estrategicamente no papel de
narradores: a) têm alta responsabilidade sobre o fazer literário, a ponto de deixar claro ao
leitor o modo de produção desse fazer; b) refletem o mundo de que emergem, encenados em
alguma função ligada à produção literária, refletindo sobre essa sua função; c) constroem-se
em um tempo e em um espaço que lhe dão uma perspectiva biográfica convincente; d)
impingem ao texto sua assinatura, sua subjetividade.
O traço dessa assinatura que nos interessa é a peculiaridade de encenar a desconfiança
do seu fazer prosaico de maneira a tematizar esse fazer, todavia colocando-se em um espaço
que lhe dá uma perspectiva biográfica segura.
Exemplos desses narradores são Bentinho, de Dom Casmurro, de Machado de Assis;
Paulo Honório, de São Bernardo, de Graciliano Ramos; Riobaldo, de Grande sertão: veredas,
de Guimarães Rosa; o narrador inominado de Água viva, de Clarice Lispector. Trataremos
aqui de tecer breves considerações sobre a presença desse narrador desconfiado, em cada um
desses romances (tão diversos entre si quanto a seu tempo histórico, formas estéticas e público
leitor), para ilustrar como já era presente, mas de forma isolada, pontual, até se tornar uma
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Não consultes os dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão,
mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por
ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não
achei melhor título para minha narração; se não tiver outro daqui até o fim do livro,
vai este mesmo (ASSIS, 1997, p. 15).
Essa dificuldade em escolher um nome condizente com a obra norteia a leitura das
especificidades do texto machadiano sob dois aspectos: o conselho para que não se consulte o
dicionário e o tom de descomprometimento com a escolha do título da obra. Se o leitor
obedecer ao conselho, cairá nas malhas do narrador que se apresenta como escritor e aceitará
o despretensioso de sua voz. Se o leitor desobedecer, fugirá ao erro de cálculo que
sarcasticamente lhe é proposto. Isso porque, na verdade, os dicionários oferecem o mesmo
significado que essa voz discursiva afirma ter-lhe posto o vulgo — homem calado e metido
consigo, ou seja, “que ou aquele que é ensimesmado, sorumbático, triste” (FERREIRA, 2009,
p. 419) —, nada havendo de equivocado, portanto, nas considerações tecidas sobre esse
sujeito ficcional. Ocorrem aí indícios que determinam os lugares na interlocução, com um
fingimento que, propositalmente, encena tirar do narrador sua total autoridade de escritor e
ceder uma credencial ao leitor.
Em seguida, no segundo capítulo, Bentinho expõe, com clareza, o motivo da sua
escrita: “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a
adolescência” (ASSIS, 1997, p. 16). A ideia contida nessa frase, seguida da exposição de fatos
que demonstram a monotonia e consequente frustração no intento, acaba por se completar no
seguinte trecho:
Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar, e
lembrou-me escrever um livro. Jurisprudência, filosofia e política acudiram-me, mas
não me acudiram as forças necessárias. Depois, pensei em fazer uma “História dos
subúrbios”, menos seca que as memórias do padre Luís Gonçalves dos Santos,
relativas à cidade; era obra modesta, mas exigia documentos e datas, como
preliminares, tudo árido e longo. Foi então que os bustos pintados nas paredes
entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-
me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse a
ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o
do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras?...
Fiquei tão alegre com esta ideia, que ainda agora me treme a pena na mão. Sim,
Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande César, que me incitas a fazer os meus
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Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito,
levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há
bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na
antiga rua de Mata-Cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra,
que desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem as indicações que lhes fiz: é o
mesmo prédio assobradado, três janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas
alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do teto e das paredes é mais ou menos
igual, umas grinaldas de flores miúdas e grandes pássaros que as tomam nos bicos,
de espaço a espaço. Nos quatro cantos do teto, as figuras das estações e, ao centro
das paredes, os medalhões de César Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por
baixo... [...] O mais é também análogo e parecido. Tenho chacarinha, flores, legume,
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uma casuarina, um poço e lavadouro. Uso louça velha e mobília velha. Enfim, agora,
como outrora, há aqui o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a
exterior, que é ruidosa (ASSIS, 1997, p. 16).
é, na verdade, uma areia movediça que o absorve. E o claro desconforto humano, como
homem dono de terra, situação sem remédio, se traduz na sua escrita como desalento:
Levanto-me, procuro uma vela, que a luz vai apagar-se. Não tenho sono. Deitar-me,
rolar no colchão até a madrugada, é uma tortura. Prefiro ficar sentado, concluindo
isto. Amanhã não terei como me entreter.
[...]
De longe em longe, sento-me fatigado e escrevo uma linha (RAMOS, 2008, p. 220).
[...] o relato do narrador Riobaldo mescla “história” com “estória”, as duas mais
emblemáticas espécies narrativas. Ainda que ambas tenham prestígio diferenciado,
ao colocá-las em relação litigante, o escritor repete o procedimento fronteiriço
adotado em outras categorias temáticas e estruturantes de sua poética. Nesta obra, o
escritor encena um depoimento, que Riobaldo, um fazendeiro “quase barranqueiro”,
concede a um senhor culto que vem da “cidade” para conhecer de perto o universo
sertanejo, sua cultura, seus mitos e mais diretamente a história de apogeu e
decadência da jagunçagem (FANTINI, 2003, p. 274).
A apresentação que faz de si já aponta para o mal-estar que o acomete nessa função de
interlocutor: afirma-se como “só um sertanejo” que, “nessas altas ideias”, navega mal. E
acrescenta:
[...] sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com
toda leitura e suma doutoração. Não é que eu esteja analfabeto. Soletrei, anos e
meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mestre, Mestre Lucas, no
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A comparação que o narrador estabelece entre seu interlocutor (e aqueles que a ele se
assemelham) e si mesmo é um fator constante na narrativa, destacando sempre a própria
inferioridade, embora isso não o impeça de narrar de forma singular os fatos, pois, em um
labirinto de acontecimentos e impressões, enquanto filosofa, faz questionamentos, indaga-se.
Ainda de acordo com Fantini, “não possuindo a autoridade da narrativa épica ou da crônica
oficial, o testemunho oral do ex-jagunço só se tornará exemplar e só terá assegurado sua aura,
caso entre em interlocução com alguém cujo (suposto) saber seja capaz de conferir-lhe
legitimidade e assegurar-lhe a difusão” (FANTINI, 2003, p. 275).
Assim, tomada pelo tom da oralidade, como ocorre em “contações de causos”, a
narrativa perde-se e acha-se em movimentos não lineares, retrato estético da alma
perdidamente sofrida do homem que conta e que, no contar, sempre põe em questão sua
habilidade como depoente. Vamos nos ater ao seguinte trecho, que bem ilustra essa condição
titubeante e que possibilita que se entenda a imbricação entre o discurso e o personagem-
narrador:
Que tal, o que o senhor acha? Pois mire e veja: isto mesmo narrei a um rapaz de
cidade grande, muito inteligente vindo com outros num caminhão, para pescarem no
rio. Sabe o que o moço me disse? Que era assunto de valor, para se compor uma
estória em livro. Mas que precisava de um final sustante, caprichado. O final que ele
daí imaginou, foi um: que, um dia, o Faustino pegava também a ter medo, queria
revogar o ajuste! Devolvia o dinheiro. Mas o Davidão não aceitava, não queria, por
forma nenhuma. Do discutir, ferveram nisso, ferravam numa luta corporal. A fino, o
Faustino se provia na faca, investia, os dois rolavam no chão, embolados. Mas, no
confuso, por sua própria mão dele, a faca cravava no coração do Faustino, que
falecia...
Apreciei demais essa continuação inventada. A quanta coisa limpa verdadeira uma
pessoa de alta instrução não concebe! Aí podem encher este mundo de outros
movimentos, sem os erros e volteios da vida em sua lerdeza de sarrafaçar. A vida
disfarça? Por exemplo. Disse isso ao rapaz pescador, a quem sincero louvei. E ele
me indagou qual tinha sido o fim, na verdade de realidade, de Davidão e Faustino. O
fim? Quem sei. Soube somente só que o Davidão resolveu deixar a jagunçagem —
deu baixo do bando, e, com certas promessas, de ceder uns alqueires de terra, e
outras vantagens de mais pagar, conseguiu do Faustino dar baixa também, e viesse
morar perto dele, sempre. Mais deles, ignoro. No real da vida, as coisas acabam com
menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a
gente. Não se queira. Viver é muito perigoso... (ROSA, 2006, p. 63).
O tema da conversa é a escritura, sua forma, seu final; a verdade da ficção e a verdade
da realidade. Segundo essa voz discursiva, como a história contada é real, ela não tem o
tratamento que teria caso fosse ficção, tratamento que merece apreciação e de cuja feitura o
próprio narrador, Riobaldo, não é capaz. Só alguém de alta instrução conceberia um final
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limpo e verdadeiro. A um mero contador, como ele, só resta a verdade da vida, com menos
formato e que nem tem acabamento (palavra que pode promover o sentido de “final” e
“qualidade na execução”).
Verifica-se que Riobaldo, apesar da modéstia, da percepção que tem do valor do
estudo e da instrução, conhece bem as técnicas de narração oral. Sua posição pode ser
considerada, portanto, um logro, pois, embora sabendo disso e contando com qualidade
estética incontestável sua história, encena o desconforto ante o exercício da contação.
Sendo “só um sertanejo” (considera-se na expressão a presença de um advérbio de
intensidade e de um artigo indefinido que promovem o sentido de desmerecimento), não
assume a posição de um produtor de textos capaz de apresentar algo de valor estético, mas
conta, porque há um apelo irresistível que o obriga a contar (assim como ocorre com os
contadores da ficção): ele tem uma necessidade veemente de entender as veredas da vida.
Riobaldo, como qualquer escritor, vivencia a experiência da dor, mas diz saber que não
conseguirá dar a essa experiência a forma verbal cósmica, harmoniosa e perfeita. “Encarnação
da condição ambígua de jagunço e letrado” (FANTINI,2003, p.277), tem a experiência da dor,
sente-se um ser inadequado na vida e sofre também como relator dessa experiência vivida,
contada em vertigem.
Nota-se que a comparação entre o que sugere o rapaz da cidade e o que Riobaldo é
capaz de contar põe em conflito dois espaços, a cidade e o sertão. Verifica-se o incômodo do
personagem-contador, assim, quanto ao fato de que, sendo alguém pertencente ao sertão, não
tem domínio do ato de narrar. Isso porque, para ele, no “real da vida, as coisas acabam com
menos formato, nem acabam”, e o real da vida está na narrativa do sertanejo, que se dá no
sertão, em um grande sertão, no qual o protagonista está ancorado. Trata-se de seu espaço de
permanência existencial, filosófica. Até seu nome é composto por um elemento do sertão — o
rio — detalhe que demonstra como estão incorporados. Ambientação também aparentemente
firme, o sertão de Riobaldo é, na verdade, tomado de veredas. De qualquer forma, é nele que
o protagonista se arvora, em seus objetos móveis, do mundo físico. É nele que divaga, que
reflete, que existe, enfim, sendo uma vereda mesmo desse espaço, titubeante e exuberante em
sua capacidade de narrador, gerando “a desconfiança de que estamos sendo provocados por
insuspeitados protocolos discursivos a nos ameaçar por uma estética que corremos o risco de
não compreender” (FANTINI,2003,p. 276).
Por fim, vamos nos deter em Água viva, de Clarice Lispector (1990), obra que oferece
ao leitor uma declaração de amor, feita em uma situação de embate com as palavras. Algumas
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condições determinam essa luta, entre elas, o fato de a narradora ser uma pintora, não uma
escritora, e o fato de ela dirigir-se a um amado que pertence à área da escrita.
Essa dificuldade se materializa na obra desde as frases iniciais, ineditamente
inacabadas, quando já se revela a procura vã do sentido mais pleno nas palavras: “É com uma
alegria tão profunda. É uma tal aleluia” (LISPECTOR, 1990, p. 13). Vê-se o inacabamento
sintático e semântico, que retrata impossibilidades, incapacidades, impedimentos. A narradora
considera-se inábil na composição dessas frases, não sabe como compor o início de seu
discurso, como introduzir, com palavras, seus sentimentos, ideias e sensações. Não saberá
fazê-lo também ao longo dos parágrafos.
Tal impotência se dá porque ela vive uma experiência transitória: é uma pintora que se
lança ao estado de escritora, e isso é algo que a angustia, a ponto de antecipar, com temor, a
reação negativa do amado quanto a esse estado, bem como imaginar a própria explicação:
“Quando vires a me ler, perguntarás por que não me restrinjo à pintura e às minhas
exposições, já que escrevo tosco e sem ordem” (LISPECTOR, 1990, p. 14). E ela mesma se
esclarece, como que a dizer a si: “É que agora sinto necessidade de palavra — e é novo para
mim o que escrevo porque minha verdadeira palavra foi até agora intocada” (LISPECTOR,
1990, p. 14). E é esse “amadorismo” que a impele a, mais à frente, questionar-se: “o que
pintei nessa tela é passível de ser fraseado em palavras?” (LISPECTOR, 1990, p. 15).
Agrava essa sensação de mal-estar o fato de o amado ser da área da escritura, o que a
faz pôr em xeque a qualidade das frases, a sua intensidade, o gênero, a composição do enredo:
Também tenho que te escrever porque tua seara é a das palavras discursivas e não o
direto de minha pintura. Sei que são primárias as minhas frases, escrevo com amor
demais por elas e esse amor supre as faltas, mas amor demais prejudica os trabalhos.
Este não é um livro porque não é assim que se escreve. O que escrevo é um só
clímax? Meus dias são um só clímax: vivo à beira (LISPECTOR, 1990, p. 16).
que ora se manifesta. A segunda ponderação é a de que isso possa ser feito por meio de
estudos de corpus representativos.
Torna-se provocativo, então, estudar obras produzidas nos tempos atuais, cuja
composição se faria por elementos peculiares e reveladores desse tempo e, portanto, seriam
promotoras de uma nova estética. Como um dos pressupostos para que uma narrativa seja
assim considerada é que apresente, em sua composição, vozes capazes de instaurar um
enredo, este estudo optou por buscar, nessas vozes, aspectos peculiares que ilustrem a
contemporaneidade, em especial, a voz do sujeito ficcional narrador, em suas relações com
autoria e personagem.
Sendo assim, é preciso que, primeiramente, sejam apresentadas algumas considerações
sobre essas vozes, pois, embora haja uma corrente de reflexões teóricas sobre elas, há que se
considerar que, assim como os estudos de Brandão e Watt, parte significativa delas já não
opera com o modo de representação desses sujeitos na contemporaneidade.
E, já que nossas reflexões se dão sobre algo produzido no contemporâneo e, portanto,
promovido pelo contemporâneo, há que se tratar dele também, pois esse tempo, por sua vez e
da mesma forma, é configurado pelas vozes estéticas que nele se manifestam.
As reflexões acerca do fazer literário são de grande complexidade. Nosso papel aqui
não é discuti-las nem fazer uma revisão bibliográfica a seu respeito, mas apenas selecionar um
corpo de conceitos que viabilizem nossos estudos acerca de como esse fazer é tematizado e
desenvolvido em obras que nos parecem configurar uma vertente na literatura contemporânea,
com perspectivas teóricas, portanto, distintas daquelas apresentadas por Jacyntho Lins
Brandão e Ian Watt, concentradas em outros momentos históricos e estéticos, como
demonstramos nas obras referenciadas no primeiro capítulo.
São caras a este estudo questões relativas a autoria, narrador e personagem, que,
ficcionalmente, se constroem imbricados, a ponto de se configurarem como fatos literários,
como efeitos de sentido produzidos no e pelo texto. Para tratar dessas categorias, tomaremos
algumas considerações de Mikhail Bakhtin, em Estética da criação verbal (2003) e em
Questões de literatura e de estética (estudos vários reunidos em edição brasileira de 1988);
também de Walter Benjamin, “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”,
30
presente em Magia, técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura,
publicado em 1940; ainda de Theodor Adorno, em Notas de Literatura I, coletâneas de
ensaios publicadas a partir de 1958, especialmente o ensaio “Posição do narrador no romance
contemporâneo”; de Michel Foucault, em O que é um autor?, comunicação apresentada à
Societé Française de Philosophie, em 1969; e, por fim, de Silviano Santiago, especialmente
seu artigo “O narrador pós-moderno”, presente em Nas malhas da letra, publicado em 1989.
Ainda usufruiremos de reflexões de Antônio Candido e Anatol Rosenfeld, encontradas na
obra A personagem de ficção, de 1981, bem como as de Luís Alberto Brandão Santos e
Silvana Pessôa de Oliveira, em Sujeito, tempo e espaço ficcionais, de 2001.
Mikhail Bakhtin afirma ser necessário dimensionar as instâncias do que tem se
denominado como autor, dentro daquilo que ele considera a estrutura criativa em que se
instaura a obra. Segundo ele, há o autor-pessoa e o autor-criador. Este “é o agente da unidade
tensamente ativa do todo acabado, do todo da personagem e do todo da obra, e é
transgrediente [ou seja, ‘elemento externo em relação à composição interna do mundo do
herói’ (BAKHTIN, 2003, p. 426)] a cada elemento particular [da obra]” (BAKHTIN, 2003, p.
10).
Sendo assim, o autor-criador funciona como um componente da obra; não se trata,
diferentemente de um autor-pessoa, de alguém que assina a autoria da obra, reconhecido
socialmente como quem escreveu certo livro, um artista. Não se trata, também, daquela
instância encarregada de levar o enredo até o leitor, o narrador, uma instância gramatical do
texto.
Seguindo essa proposta teórica, tem-se o autor-criador como alguém que se revela por
uma “consciência que abrange a consciência e o mundo da personagem, que abrange e conclui
essa consciência da personagem com elementos por princípio transgredientes a ela mesma e
que, sendo imanentes, a tornariam falsa” (BAKHTIN, 2003, p.11). Essa voz discursiva
enxerga e conhece tudo relativamente a cada personagem em particular e a todas as
personagens juntas, mais que elas inclusive, naquilo que lhes é excedente, o que significa ter
em mãos o acabamento da obra, das personagens, do conjunto de suas vidas. Assim, a
consciência do personagem, seus desejos e sentimentos são constituídos pela consciência
concludente do autor-criador, o centro axiológico ao qual estão subordinados todos os valores
éticos e cognitivos, de tal forma que ele “conhece e enxerga mais não só no sentido para onde
a personagem olha e enxerga, mas também em outro sentido, que, por princípio, é inacessível
à personagem. É essa posição que ele deve ocupar em relação à personagem”
31
Para que se dê o acabamento da obra, então, é preciso que se constitua uma gradação
de aproximação ou de afastamento entre o autor-criador e seus personagens, uma distância
tensionada entre esses elementos da narrativa, no espaço, no tempo, nos valores e nos
sentidos,
Dessa forma, a voz discursiva que se constitui como autor-criador não é a voz direta
de um escritor, “mas um ato de apropriação refratada de uma voz social qualquer de modo a
ordenar um todo estético” (FARACO, 2014, p.40). Isso significa que a voz de um autor-
pessoa não leva a si para a obra, mas imagens artísticas das ideias, de forma que é uma voz
social “que cria e mantém a unidade de um todo artístico, [sendo] um modo de ver o mundo,
um princípio ativo de ver que guia a construção do objeto estético e direciona o olhar do
leitor” (FARACO, 2014, p.42). Assim, o autor-criador é uma função constitutiva da obra.
No bojo dessas suas reflexões acerca das figuras do autor-pessoa e autor-escritor, há
ampliações feitas pelo pensador russo, entre elas, o conceito de plurilinguismo, que traz à tona
a orquestração estética de línguas sociais por meio do autor-criador: as representações do
discurso do autor-pessoa, do discurso do narrador, do discurso dos personagens, dos gêneros
textuais presentes, tudo o que compõe um mosaico de vozes constituintes do discurso
proposto pela obra:
todas elas podem penetrar no plano único do romance, o qual pode reunir em si as
estilizações paródicas das linguagens de gêneros, os diferentes aspectos da
estilização e de apresentação das linguagens profissionais, das linguagens
orientadas, das linguagens de gerações, dos grupos sociais, etc. [...]. Todas elas
podem ser invocadas pelo romancista para orquestrar os seus temas e refratar
indiretamente as expressões das suas intenções e julgamentos de valor (BAKHTIN,
1988, p.98-99).
O plurilinguismo se revela (e revela as) nas figuras das pessoas que falam, nas vozes
discursivas que se manifestam no romance — autor-pessoa, autor-criador, narrador,
personagem —, sendo, então, uma característica estilística primordial do gênero apresentar o
homem que fala e sua palavra (BAKHTIN, 1988, p.135), o qual tem uma posição ideológica
definida, “que é a única possível e que, por isso, é contestável” (BAKHTIN, 1988, p.136). A
ação do autor-criador, figura recortada pelo autor-pessoa, é a de
perspectiva implica que o escritor é uma pessoa cuja função está entranhada em uma tarefa de
comprometimento estético associado ao histórico — melhor dizendo, de comprometimento
histórico associado ao estético —, com defesa de opiniões traduzidas na construção de suas
obras. Há, então, uma utilidade na função do escritor, aqui um ser partícipe da História, cujas
opiniões não são importantes se “não tornam úteis aqueles que a defendem. A melhor
tendência é falsa quando não prescreve a atitude que o escritor deve adotar para concretizar
essa tendência. E o escritor só pode prescrever essa atitude em seu próprio trabalho:
escrevendo” (BENJAMIN, 1987, p.131).
Esse brevíssimo apanhado de considerações de Benjamin tem a finalidade de
esclarecer a função que ele delega à autoria, configurando-a como uma pessoa, um ser
biográfico, cujas ações se inserem na política e na sociedade e são, portanto, compromissadas.
Nessa mesma esteira se dão estudos sobre o narrador, cuja relação com o escritor/autor muito
nos interessa. Em seu artigo “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, ele
discute sobre como se conjugam modos de narrar e configurações sociais. Nessa reflexão, usa
o termo narrativa para referir-se à tradição oral, e o termo narrador, a fim de, paralelamente,
referir-se ao contador de histórias da tradição oral. Essa narrativa e esse narrador foram,
segundo o estudioso, construídos por uma sociedade agrária e comunitária e com ela
comungam. Sendo assim, o objeto da narrativa não é o próprio narrador, mas a experiência
vivida, posta objetivamente pelo narrador diante do leitor. Como, ainda de acordo com o
teórico, a sociedade capitalista, burguesa, em seu perfil individualista e desumanizador, desfaz
essa comunhão que constitui a sociedade agrária, “a experiência da arte de narrar está em vias
de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente”
(BENJAMIN, 1987, p.197). Isso se daria porque as ações da experiência estariam em baixa, o
que significa que a faculdade de as intercambiar estaria em processo de morte, e “o primeiro
indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no
início do período moderno” (BENJAMIN, 1987, p.201), que se materializa no formato livro,
possível graças à invenção da imprensa. Percebe-se que aqui a nomenclatura dada à voz que
se manifesta no romance não é a que se presta à voz que se manifesta na narrativa oral — o
narrador. Tendo isso em vista, no romance, há a morte do narrador, para que tenha lugar um
porta-voz que convida o leitor a refletir sobre o sentido de uma vida e que se encontra em
profunda solidão, pois não tem a companhia do narrador, o qual trataria do mesmo destino do
leitor, destinos conservados pelo que é narrado, sobre os quais há interesse de conservação,
constituindo-se, portanto, como uma tradição.
34
condenado à observação e sensação dessa voz discursiva, postas, então, em sua forma de
linguagem de subjetivação.
Ora, em um mundo onde há “a reificação de todas as relações entre os indivíduos, que
transforma suas qualidades humanas em lubrificante para o andamento macio da maquinaria”
(ADORNO, 2003, p. 57), o romancista é impedido de potencializar seu narrador para narrar
sua relação com a realidade. Aqui Adorno parece delimitar papéis importantes para nossos
estudos: o do autor, o do romancista e o do narrador. Para ilustrar essa sua consideração, cita
Proust, cuja obra, segundo o filósofo, pertence à tradição do romance realista e psicológico
(ADORNO, 2003, p.58), em que, “quanto mais firme o apego ao realismo da exterioridade, ao
gesto do ‘foi assim’, tanto mais cada palavra se torna um mero ‘como se’, aumentando ainda
mais a contradição entre a sua pretensão e o fato de não ter sido assim” (ADORNO, 2003,
p.58-59). Esse “como se” traduz a impossibilidade de narrar tratada por Adorno: trata-se dessa
dificuldade enfrentada pelo autor de promover condições a seu narrador de assumir
realisticamente a narrativa.
De acordo com o filósofo, a negação dessa capacidade se dá esteticamente, como “um
mandamento da própria forma, um dos meios mais eficazes para atravessar o contexto do
primeiro plano e expressar o que lhe é subjacente, a negatividade do positivo” (ADORNO,
2003, p.61-62), conforme, ainda segundo ele, faz Proust ao constituir sua obra de um
monólogo interior, estratégia avassaladora para o leitor, porque o coloca em um redemoinho
de sensações intimistas, subjetivas, do qual não consegue sair, porque o narrador também não
o consegue. Assim, o narrador, denominado, nessa conferência, sujeito literário,
Sob a orientação dessas reflexões de Adorno sobre o ato de narrar em Proust, sobre o
problema que se dá na relação objetividade e subjetividade, pode-se inferir a diferenciação
feita entre o autor — aquele que assume a escrita do romance — e o narrador — uma voz
discursiva que é um elemento estético que traduz a linguagem da subjetividade e nela se
traduz.
Silviano Santiago, em seu artigo “O narrador pós-moderno” (SANTIAGO, 1989,
p.38), faz reflexões que usufruem de Benjamin e de Adorno, deslocando, com novos
36
enfoques, o narrador tratado por esses teóricos para a pós-modernidade. Faz isso perseguindo
a resposta para a questão: “Quem narra uma história é quem a experimenta, ou quem a vê? Ou
seja: é aquele que narra ações a partir de um conhecimento que passou a ter delas por tê-las
observado em outro?” (SANTIAGO, 1989, p.38).
Esclarece o estudioso que, “no primeiro caso, o narrador transmite uma vivência”
(SANTIAGO, 1989, p.38). Isso significa que há um tom de autenticidade naquilo que é
narrado. No segundo caso, o narrador “passa uma informação sobre outra pessoa”
(SANTIAGO, 1989, p.38), havendo repasses de experiência, não a transmissão dela. Afirma
Santiago que aquilo que está em jogo é, portanto, a noção de autenticidade que perpassa essas
vozes discursivas, para o que ele estabelece uma primeira hipótese:
Essa perspectiva teórica segue na contramão dos estudos de Benjamin no que se refere
à posição do narrador: no lugar da proximidade do objeto narrado, fazer valer um narrador
constituinte da beleza clássica (vivenciando-o e fazendo dele objeto utilitário, de sabedoria,
um ensinamento moral, por exemplo), “é o movimento de rechaço e de distanciamento que
torna o narrador pós-moderno” (SANTIAGO, 1989, p.39).
A partir desse entendimento, Santiago propõe uma segunda hipótese: “O narrador pós-
moderno é o que transmite uma ‘sabedoria’ que é decorrência da observação de uma vivência
alheia a ele, visto que a ação que narra não foi tecida na substância viva da sua experiência”
(SANTIAGO, 1989, p.40). Isso faria dele um verdadeiro ficcionista, já que sua tarefa seria a
de dar verossimilhança à autenticidade, de forma a construir, esteticamente, o real e o
autêntico.
Para dar sustentação a suas hipóteses sobre o narrador pós-moderno, o crítico analisa
alguns contos de Ediberto Coutinho, deixando claro que elas não recobrem todas as nuances
dessa categoria nessa condição de pós-modernidade. Assim, tomemos as reflexões sobre
“Sangue na praça” (COUTINHO, 1979, p.93-108), cujo narrador é também personagem. Ele é
um jornalista que se encontra com um romancista, Ernest Hemingway, para uma entrevista. O
conto faz do encontro e entrevista uma forma de problematizar a oscilação entre as duas
profissões e entre as formas de narrar peculiares de cada uma. Segundo relata Santiago, o
conto narra como o personagem Hemingway sofre pela duplicidade que vive entre ser
37
Todos se compõem textualmente, seres que o leitor encontra nos discursos presentes na trama.
Trata-se de perfis literários, que podem (ou não) ser o sujeito da enunciação, que podem (ou
não) desdobrar-se em personagem, passando a sujeito do enunciado, ou havendo um eu que
narra e um eu que é narrado; que pode ser multiplicado ainda caso a narração ocorra em
tempo diferente do tempo narrado... No mundo da ficção (“lembrando que ficção não é
sinônimo de falsidade, mas de suspensão do limite que separa os conceitos de falso e
verdadeiro”), “essas categorias manifestam-se como máscaras que se trocam, criações
mutáveis de nossos desejos. Narrativas de nós mesmos” (SANTOS; OLIVEIRA, 2001, p.19)
Na contemporaneidade, elas buscam traduzir uma espécie de realismo do ser, “em que
a palavra realismo designa não mais a descrição objetiva do universo externo ao sujeito, mas
o esboço da maneira como esse universo se transforma em subjetividade” (SANTOS;
OLIVEIRA, 2001, p. 29).
Como as suas possibilidades de atuação ganham novas formas nas obras que são
objeto deste estudo, a nomenclatura usada relativamente às vozes discursivas tentará
acompanhar essas novas formas. Tentaremos refletir sobre as funções que ocupam autor,
escritor, narrador e personagem, de acordo com a forma como se revestem no decorrer das
tramas, usufruindo de conceitos presentes nos estudos teóricos aqui apresentados, embora sem
que esses mesmos conceitos bastem, pois há contornos para essas categorias que fazem
movimentos de aproximação, mas também de afastamento. Como se verá, as fronteiras em
que se delineiam esses papéis não são bem definidas, pelo contrário, encenam-se
esteticamente como movediças e escorregadias, o que se refletirá em sua descrição ao longo
das análises das obras.
[...] o tempo tem história, tem história por causa de sua “capacidade de carga”,
perpetuamente em expansão — o alongamento dos trechos do espaço que unidades
de tempo permitem “passar”, “atravessar”, “cobrir” — ou conquistar. O tempo
adquire história uma vez que a velocidade do movimento através do espaço
(diferentemente do espaço eminentemente flexível, que não pode ser esticado e que
não encolhe) se torna uma questão do engenho, da imaginação e da capacidade
humanas (BAUMAN, 2001, p.15-16).
movediças. Alguns dos habitantes do mundo estão em movimento; para os demais, é o mundo
que se recusa a ficar parado” (BAUMAN, 2001, p. 70).
Metaforizando a questão, o autor compara passageiros do navio “Capitalismo pesado”
com passageiros do navio “Capitalismo leve”. Os primeiros confiavam nos membros da
tripulação e no destino certo, por isso aprendiam as regras que lhes eram impostas, com
reclamações pontuais apenas relativamente ao comandante, responsável por toda a viagem.
Em contrapartida, os segundos descobrem que não há piloto, que não há informações sobre o
caminho a ser percorrido. Seu estado é de horror, portanto. Eles são seres solitários em sua
rota, o que se confirma pela frase de Margaret Thatcher, “não existe essa coisa de sociedade”
(BAUMAN, 2001, p. 76). Assim, tudo é produzido pelo indivíduo e de sua responsabilidade,
o que resulta nas preocupações de âmbito privado, individual, e não nas de âmbito coletivo.
Acentua-se, então, a valorização do prazer, e não do direito e do dever.
Várias são as decorrências dessas novas perspectivas. Podemos ilustrá-las pela relação
exemplo-autoridade, em que o exemplo é mais importante que a autoridade. Isso é notório
quanto às celebridades: poucas delas têm autoridade suficiente para que seu discurso seja
digno de atenção, no entanto, estrelam programas de entrevistas compulsivamente vistos por
pessoas ávidas de aconselhamento. No âmbito coletivo, elas não exercem nenhuma influência,
mas, no pessoal, parecem dar conta das necessidades. No processo, muito do que seria
indizível, porque vergonhoso, passa a ser motivador e algo de que se orgulhar. Dramas
privados são encenados, expostos e assistidos publicamente; os dramas públicos, de direito do
público, perdem, assim, valor. Exemplos ganham força, e lideranças a perdem: “um lugar sob
os refletores é um modo de ser por si mesmo, que estrelas do cinema, jogadores de futebol e
ministros de governo compartilham em igual medida” (BAUMAN, 2001, p. 84-85), de tal
forma que “o modo como as pessoas individuais definem individualmente seus problemas
individuais e os enfrentam com habilidades e recursos individuais é a única ‘questão pública’
remanescente e o único objeto de ‘interesse público’” (BAUMAN, 2001, p. 74).
“Procurar exemplos, conselho e orientação é um vício: quanto mais se procura, mais
se precisa e mais se sofre quando privado de novas doses da droga procurada. Como meio de
aplacar a sede, todos os vícios são autodestrutivos; destroem a possibilidade de se chegar à
satisfação” (BAUMAN, 2001, p. 85). Assim, o consumismo de modelos vai tomando corpo e
apresentando novas formas. Cresce algo, então, que melhor o substancializa: a atividade de
comprar, que esquadrinha possibilidades, permite sentir, tocar, comparar custos, escolher. A
compulsão, dessa forma, se agrava porque, pelo ato de comprar, a competência pessoal
continua sendo exercitada e assegurada:
44
[...] vamos às compras pelas habilidades necessárias ao nosso sustento e pelos meios
de convencer nossos possíveis empregadores de que as temos; [...] pelos meios de
extrair mais satisfação do amor e pelos meios de evitar nossa ‘dependência’ do
parceiro amado ou amante; pelos modos de obter o amor do amado e o modo menos
custoso de acabar com uma união quando o amor desapareceu e a relação deixou de
agradar; [...] pelos mais poderosos sistemas de som e as melhores pílulas contra a
dor de cabeça (BAUMAN, 2001, p. 87-88).
Tudo isso de forma a, mais que expressar o desejo, expressar o próprio indivíduo por
meio de suas posses. E a crescente rapidez com que isso se faz torna a palavra “desejo”
obsoleta, substituída por “querer”, vocábulo que ilustra o extremo da libertação do princípio
do prazer, porque o imediato é resolvido. O desejo implica um processo; o querer implica a
relação concomitante entre oferta e demanda, com toda a infantilidade que a situação sugere.
Bauman cita Jeremy Seabrook para dar conta de demonstrar a obsolescência imediata
que tem acometido o mundo contemporâneo:
Tudo isso é compatível com um mundo em que as coisas instáveis são a matéria-prima
das identidades, essas que são instáveis porque são orientadas pela sedução e, portanto, pela
oscilação promovida pela gama de escolhas à volta, que não levam à satisfação, mas apenas
ao imediatismo que exige o querer. Esse excesso de oportunidades promove desestruturação e
desarticulação, porque despreza qualquer ato processual, que instigue construção e conexão e,
portanto, tempo.
É em meio a esse contexto que obras foram produzidas no Brasil, com vozes que o
revelam e que se revelam por meio dele. Seu discurso e sua trajetória explicam um tempo e
são explicadas por ele.
Gilles Lipovetsky, um tanto divergente de Bauman, faz descrição de fenômenos
paradoxais, de forma a refutar posições apocalípticas (mas também as idílicas) sobre esse
mesmo tempo histórico, e põe em xeque a expressão pós-modernidade.
Defendendo o uso de outra denominação, hipermodernidade, o filósofo faz ecoar a
imagem de uma balança cujos pesos que a equilibram são os paradoxos. Assim, ele
contrapõe-se à ideia que designava como pós-modernidade “ora o abalo dos alicerces
absolutos da racionalidade e o fracasso das grandes ideologias da história, ora a poderosa
45
Ajusta-se a isso uma visão temporal presentista, uma postura determinada menos pelos
insucessos da modernidade político-econômica, como as duas guerras mundiais, que pelo
simultâneo surgimento de novas paixões e sonhos:
Por que o amor permaneceria um ideal, uma aspiração de massa, se não, ao menos
em parte, por causa do valor conferido à duração que associam a ele? E como
compreender a vontade de ter filhos, tudo menos caduca, sem supor o investimento
emocional de longo prazo? Fica evidente que o instante puro está longe de ter
colonizado por completo as existências privadas, pois a sociedade hipermoderna dá
nova vida à exigência de permanência como contrapeso ao reinado do efêmero, tão
causador de ansiedades (LIPOVETSKY, 2004, p. 74).
O último entre os pensadores que elegemos como fonte para nossas reflexões sobre as
vozes discursivas que se manifestam na literatura contemporânea é Giorgio Agamben, que,
em O que é o contemporâneo? E outros ensaios, produção de 2007, parte de duas questões
para desenvolver suas considerações: “De quem e do que somos contemporâneos? E, antes de
tudo, o que significa ser contemporâneo?” (AGAMBEN, 2007, p.57). O filósofo italiano
instrui sobre uma norma para que sejam respondidas essas perguntas: a leitura de um texto, de
qualquer texto, exige que o leitor se coloque contemporaneamente ao texto lido. Essa
instrução tem a ver com o fato de que, no decorrer de sua explanação, ele passará por alguns
49
autores e, para entendê-los, convida para uma equiparação a eles, no tempo em que sua
produção se inscreve. Ou seja, é preciso ser contemporâneo deles para entendê-los.
Entre aqueles dos quais usufrui, está Nietzsche, que, ao final do século XIX, fazendo
estudos sobre o nascimento da tragédia grega, publica as “Considerações intempestivas”,
“com as quais quer acertar contas com o seu tempo, tomar posição em relação ao presente”
(AGAMBEN, 2007, p. 57). Na fala do filósofo alemão, “o contemporâneo é o intempestivo”
(AGAMBEN, 2007, p.58), afirmativa que consiste numa tomada de posição em relação ao seu
tempo presente, porque “procura compreender como um mal, um inconveniente e um defeito,
algo do qual a época justamente se orgulha, isto é, a sua cultura histórica, porque eu penso
que somos todos devorados pela febre da história e deveremos ao menos disso nos dar conta”
(AGAMBEN, 2007, p.58). Sua posição é a de trilhar uma desconexão e uma dissociação, pois
contemporâneo é o que não coincide, não se harmoniza com o seu tempo, sendo, assim,
anacrônico; e, concomitante a isso, por esse movimento de inatualidade, é alguém capaz de
sentir e apreender seu tempo porque dele toma certa distância que o habilita a essa
capacidade. Aderência e descolagem são os fatores que permitem que, pertencendo
irrevogavelmente a um tempo, seja possível tomar dele distância, para, assim, ser possível
analisá-lo.
Seguindo essa trilha nietzschiana, e, cremos, dando-lhe mais intempestividade,
Agamben (2007) propõe outra definição para o contemporâneo, especialmente associada ao
poeta, construída pela noção de comprometimento que este deve ter com seu tempo. O poeta é
“aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”
(AGAMBEN, 2007, p.62). Para estar em meio às trevas, o poeta exige de si a ação de
neutralizar as luzes, que, em verdade, não iluminam, mas cegam, impedindo o indivíduo de
ver a vida como ela é, ou seja, aquilo que está nas sombras, oculto sob o excesso de luzes.
Isso é o que cabe ao poeta, o que é de sua função; sua singularidade, o que o diferencia de
outros orientados por uma luz que cega é vasculhar a escuridão e dela tirar sua matéria de
carpintaria.
Para compor esse pensamento, Agamben (2007) bebe na neurofisiologia, cujos estudos
demonstram que o escuro não é ausência de luz, mas a desinibição de células periféricas
existentes na retina. Portanto, assim como a luz, a escuridão está condicionada ao indivíduo,
potencializada de acordo com a ação desse indivíduo para percebê-la e apreendê-la.
Na sequência do caminho de reflexão, o professor italiano faz analogias tomando
como referência a percepção física das trevas, da noite, com seus corpos luminosos: “No
universo em expansão, as galáxias mais remotas se distanciam de nós a uma velocidade tão
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grande, que sua luz não consegue nos alcançar. Aquilo que percebemos como o escuro do céu
é essa luz que viaja velocíssima até nós e, no entanto, não pode nos alcançar, porque as
galáxias das quais provém se distanciam a uma velocidade superior àquela luz (AGAMBEN,
2007, p. 65). E continua: “Perceber no escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e
não poder fazê-lo, isso significa ser contemporâneo. Por isso os contemporâneos são raros”
(AGAMBEN, 2007, p. 65).
Então, a luz com a qual lida o poeta não é aquela que ilumina, mas a que foge à
iluminação, aquela que tem um presente inapreensível, pois, sendo meta, vem do passado e se
projeta para um presente que se situa em um futuro. Ao se materializar, de imediato, vira
passado, um novo passado. Assim, como as galáxias, o presente tem origem em um passado,
no imemorial, um histórico que o projeta. O contemporâneo está, portanto, em um presente
que não existe.
Isso significa que o contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o escuro
do presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele que, dividindo e
interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com
os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de citá-la segundo uma
necessidade que não provém de maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma
exigência à qual ele não pode responder (AGAMBEN, 2007, p. 72).
essa compreensão. Assim, desalojado de seu tempo, tem a missão de desalojar outros homens,
fazê-los rejeitar as fraturas de seu tempo e enxergar a luz que se esconde nas trevas. E isso
ainda retomando os desalojados de outros tempos, para os quais viaja e para cuja
compreensão precisa também neles se sentir desalojado, forma de compreender seu presente.
O tempo contemporâneo, sendo cronológico, se faz escapar dessa cronologia, tal qual
um estilista (outra analogia do Agamben) que, em lapso de percepção, apreende um lance
estético e, em um lapso de tempo, lança um lapso de moda, lança algo que deverá estar na
moda, mas nunca é da moda, porque sua construção se dá em um milésimo de um tempo não
delimitado, impermanente. É de espasmos que se define o novo estilo: aquele em que o
desenhista concretiza a ideia, aquele em que a alfaiataria confecciona o desenho, aquele em
que se dá o momento do desfile, aquele em que se dá a aceitação efêmera da plateia do que
está posto como na moda. Nesses espasmos, aquilo que será passa a ser um presente
inapreensível.
A epígrafe acima abre as cortinas da obra A passagem tensa dos corpos, de Carlos de
Brito e Mello (2009).
Pistas do estranhamento que fará a composição do romance são dadas pela voz de
Lúcio Cardoso: 1) alguém regressa; o uso da palavra “regresso” permite deduzir que alguém
estava fora; no entanto, esse que regressa está no mundo que o rodeia; 2) o gesto de regressar
é associado à fome; 3) essa fome é adjetivada: quase criminosa; 4) não importa que o regresso
seja um ato quase criminoso.
Ao adentrar na obra, quando então se depara com um enredo carregado de
estranhamentos esteticamente postos e que vão ao encontro da epígrafe, o leitor toma contato
com um narrador que é um ser quase incorpóreo. Ele almeja retornar à vida, e, para isso, há
uma condição, que não se sabe imposta por quem (por si mesmo?): tomar para si a tarefa de
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exemplo, o funcionário da prefeitura, apenas citado, em uma trama, nada que lhes dê enredos.
Também o plural, “em surpreendidos ocupantes”, e o artigo indefinido, na própria expressão
“um funcionário”, ilustram essa generalização. Não há nomes, ações, nada que lhes dê forma.
Na mesma esteira, ou seja, dentro de uma construção oral e para refutar a possibilidade
de se tornar definitivamente um narrador, permanecendo para sempre um ser de papel, a voz
discursiva não se dispõe a construir formalmente uma única trama. Por vezes, vários registros
de mortes com pouco detalhamento se acumulam em um só capítulo, demonstrando a
ansiedade do narrador para apenas alcançar o número de mortes necessário, sem associar os
nomes arrolados, colocando-os em diálogo de discursos e/ou de experiências. Essa falta de
entrecruzamento se ajusta à intenção do narrador de não querer se estender no ato de narrar
para não se comprometer com esse exercício, a exemplo do capítulo 69:
Em Claro dos Poções, um poeta que cuidava da métrica de seu último verso
foi perfurado nas costas por um instrumento de capinar, retendo-o nas vértebras
enquanto rastejava pela rua principal.
54
Assim, ele procede à catalogação de mortes, e o inventário não se configura como uma
narrativa, conforme mesmo a intenção do narrador. Todavia, ao realizar o procedimento,
acaba por narrar uma história, a própria história, aquela de alguém que já teve vida e,
deixando de tê-la, deixa de ser um personagem da vida real e passa a ser apenas um narrador
que registra óbitos oralmente. Entretanto, não se trata de algo à Brás Cubas, que, estando em
uma situação pós-vida, em morte, confortavelmente, conta sua vida e atua, portanto, como um
narrador que, distanciado, onisciente, domina a narrativa e se permite usufruir disso. Nosso
narrador, diferentemente, é apenas uma língua, parte de um morto, desconfortado na posição
que agora ocupa, ansioso por retomar a vida. Seu estado anterior, de vida, equivalia à
realidade, de ser humano; seu estado atual, de morte, equivale a seu estado ficcional, de
narrador. Narrar é, então, uma ação em estado de morte. Acentua-se, porém, a impotência do
narrador e sua manutenção nesse estado indesejável, pois, negando-se a ser um narrador, é-lhe
55
autônomas delas, que se negam a dar-lhe o almejado, comandando, assim, tanto a voz
discursiva quanto o ritmo de uma narrativa que ele rejeita fazer, mas que acaba por fazer.
Dessa forma, o narrador, que anseia por apenas registrar um último óbito (de alguém que
parece ter sido assassinado, mas cuja família não faz um movimento sequer para dar conta ao
mundo de tal fato), acaba por relatar não o que deseja — um breve registro de morte —, senão
aquilo que os personagens lhe permitem:
narrativa sem que o narrador consiga sequer identificá-lo: fica trancafiado por longo tempo
em seu quarto, sai dali enquanto o narrador não está a vigiá-lo, retorna quando o narrador
menos espera. Isso na expectativa de momentaneamente conseguir o registro almejado. No
entanto, submetido a essa vigilância, vai se submetendo a eles — mãe, filha e filho — que,
embora sem palavra, imperam sobre o narrador, tripudiam dele, escancaram a existência de
uma situação incongruente de alguém que se quer um ausente sujeito da enunciação, mas que
não o consegue, o que resulta na configuração de um elemento que fica dando voltas, perdido
em um circuito fechado. Verifica-se, assim, uma impotência quanto à decisão de não narrar:
ele quer isso, mas não consegue se desvencilhar da narração, preso a ela como única senha de
libertação.
Contribui para isso o fato de os personagens assumirem ares de realidade com
autonomia. Suas ações apresentam-se como reais (conversam trivialidades, saem à rua,
dormem...), revelam-nos seres sobre cuja vida não há domínio (decidem, à revelia do
narrador, não registrar o óbito de um familiar), pois não atua sobre eles algum ser cuja função
exerça autoridade, que submeta as ações a seus desejos, a quem caberia a sujeição desses
seres à observação, à manipulação e à admissão da realidade da narrativa. Tudo isso compõe
um cenário esdrúxulo, com um narrador inusitado, porque é impotente (não quer ser narrador,
é uma língua, mas acaba por precisar ser narrador, entretanto, não consegue nem tirar dos
personagens aquilo que deseja, um óbito), e um grupo de personagens inusitados, porque têm
potência (embora pareçam corriqueiros, vivam cenas que poderiam estar sob a égide de um
narrador — estão em uma casa, exercem funções sociais corriqueiras de mãe, filha e filho —
vivem coordenados por si mesmos, com decisões próprias, a ponto de conviverem com o
corpo do pai, optando por não se darem conta de sua morte, sem atender à demanda do
narrador, um registro de óbito).
Essa mistura faz do narrador um ser desarvorado, ilustrando uma forma de discutir a
função de narrar: ele é partícipe de um mundo ficcional que ele rejeita (pois é (seria) um
narrador); deve alimentar uma lista com o registro de um óbito, transformada em uma
narrativa (o que ele rejeita, mas no que se envolve, imbuído do desejode deixar de ser um
narrador e ganhar vida), para dela alimentar-se (sendo, então, um narrador, mas participando
de algo que é a única chance de deixar de ser um narrador). Tudo isso constitui um aflitivo
enredamento do qual essa voz discursiva não consegue se desvencilhar. Há, assim, um eu
duplamente passivo: aquele que, não desejando ser o sujeito da enunciação, acaba por precisar
exercer essa função, mas é impedido de realizá-la por força das personagens; esse eu
condicionado pelas ações das personagens o leva à narrativa involuntária desse seu
58
Fico só
com o cadáver, mas o silêncio não é completo na casa. No terceiro quarto,
ouve-se
que alguém não repousa.
[...]
O que faz esse filho em seu cômodo privado eu ainda não sei. Pelo que
consigo ouvir, acredito que se mova com impaciência, acredito que não tenha paz.
Acredito que esteja a dizer algo, secretamente
e que seu segredo comece a se manifestar por meio de um sibilar de difícil
escuta. Permaneço atento, mas as palavras que o filho diz eu não consigo entender
(BRITO E MELLO, 2009, p. 44).
Lembre-se de que, por força da morte de seu pai insepulto, você ainda carece
de nome, respondendo, até este momento, como filho de C., e que somente a partir
dessa condição é que posso mencioná-lo. Você não é mais que
filho, e isso é pouco (BRITO E MELLO, 2009, p. 70).
Toda essa semelhança mais evidencia o desconforto da voz discursiva, pois traz à tona
o estado de abandono do narrador, desolado em meio àquilo que narra:
O que revelam ao leitor todas essas estratégias que compõem o narrador na obra A
passagem tensa dos corpos? Como entender a encenação de um narrador que se sabe uma
construção, que se sabe preso dentro de uma teia ficcional e que rejeita isso? Se toda essa
cilada de estratégias é, como é pertinente à ficção, um conjunto de escolhas técnicas que se
61
vinculam à experiência humana concreta, se a voz do texto, conforme afirma Tezza (2012), é
a voz de alguém com quem o leitor negocia significados emocionalmente carregados, que
significados estão em transação no passeio por esse des(enredo) de Brito e Mello?
Foi legado a seu interlocutor um discurso invertebrado, de alguém que, embora
narrador, não consegue narrar algo factualmente coerente, pois está diante de uma cena
inexplicável de um provável crime, sem indicação precisa do assassino, sem que alguém
assuma a morte. Ocorre que o narrador não quer narrar a cena, mas ele precisa fazer isso,
inclusive não se interessa pelos detalhes que esclareceriam o fato, pois só lhe vale o registro
dessa morte.
Há, assim, uma situação nonsense. Primeiramente, porque encena um consistente
ceticismo em relação ao valor da escrita, algo a princípio irrelevante e principalmente
rejeitável, comparativamente inferior ao necessário rol de óbitos. Em segundo lugar, porque
encena também a escrita como algo inevitável, pois, por mais que se negue a ela, o narrador
acaba por ficar-lhe preso. A arquitetura da obra põe em questão o sujeito que escreve,
recusando a escrita e, ao mesmo tempo, necessitando dela, sem conseguir polarizá-la,
provocando grave sensação de desconforto, agravada pela estabilidade de que vai sendo
revestida essa sensação.
Percebe-se isso, porque o enfrentamento da escrita é obstaculizado pela constante
sensação de desbaratamento, refletido em questões fundamentais quanto à escritura: o que se
narra quando se é impotente para narrar? Quem se narra quando se é impotente para narrar?
Quem narra quando não há potência para narrar? Que enredo pode ser desenvolvido quando a
própria escrita é negada? As respostas são, respectivamente: a impotência; uma voz
desgovernada; uma voz impelida à narração; o próprio discurso de impotência, uma
impotência transformada em trama.
A obra se põe, então, como uma metáfora do processo de escritura, das incertezas e
questionamentos quanto à condição narrativa, que os faz encenados na dificuldade do
narrador ante a narração, do receio de se instalar nessa incômoda situação, com a
peculiaridade de fazer do incômodo ante a escrita o cerne da narrativa, fazendo dele a própria
trama, a ponto de revestir o narrador de um ser tensionado. Essa obra delineia esteticamente a
falta de lugar da narrativa.
E, como ela, outras obras ficcionais formam um segmento da ficção contemporânea
que se desenvolveu sob esse viés. Nela, o leitor não fica preso a uma narração na primeira ou
na terceira pessoas, porque essas pessoas apresentam-se frágeis nessas posições.
62
W. G. Sebald afirma a James Wood que, para ele, “a literatura que não admite a
incerteza do narrador é uma forma de impostura muito, muito difícil de tolerar”. O crítico
achava inaceitável “qualquer forma de escrita em que um narrador se estabelece como um
operário, diretor, juiz e testamenteiro” (SEBALD apud WOOD, 2012, p. 18). Pois bem, temos
narradores que não confiam em si mesmos, não se ajustam sequer na posição de narradores
pura e simplesmente. Não se trata de uma manobra em que o narrador nos avisa de sua
inconfiabilidade, mas uma inconfiabilidade intrínseca, que não está apenas no modus
operandi da construção narrativa, mas, sim, no cerne da construção da narrativa, na voz que
se encarrega de levar adiante a empreitada de contar uma história. No caso dessas vozes, o
leitor não tem como habitar a onisciência ou a parcialidade propositais. Diante de um narrador
que não sabe do outro porque não sabe de si, resta ao leitor somente buscar compreender esse
des-saber e, assim, assenhorar-se desse (des)conhecimento.
A epígrafe que se apresenta neste segmento faz jus à primeira frase de Procura do
romance, de Julián Fuks, na qual se encerra toda a trama: “¿Trajiste la llave?” (FUKS, 2011,
p. 7). Trata-se de uma pergunta que manifesta uma trivialidade (reproduz a simples tentativa
de uma porteira de inteirar-se de algo sobre um visitante). Trata-se de uma interrogação que
encerra uma inquietude (promove a sensação de autoquestionamento, de cunho filosófico).
Trata-se de uma indagação que acena para uma questão da ordem da literatura (faz referência
a uma reflexão sobre a composição literária). Múltipla, transitando entre o real, o filosófico e
o poético, entre a corriqueira personagem porteira e a rara voz de Carlos Drummond de
63
Andrade, sendo utilizada para novas produções de sentido, a frase interrogativa coloca em
cena, na obra do autor paulistano, os enfrentamentos que se dão na construção do profissional
da escrita, socialmente reconhecido no papel, na construção da prosa junto às categorias
pertinentes a ela, como narrador e personagem, e na relação entre ambos.
A interrogação, nesse romance, se ancora em uma lógica manifesta pelo narrador, um
sujeito ficcional, um ser de papel, portanto, que, formalizado em um ponto de vista em
terceira pessoa, orienta quanto ao trajeto da pergunta, de onde ela parte e a quem ela atingirá
(se de uma personagem, a porteira para um outro, um personagem cuja função social
encenada é a de um escritor; se de Drummond para esse personagem-escritor — e vice-versa;
se desse próprio personagem-escritor para si mesmo; se do narrador para esse personagem-
escritor — e vice-versa; se da trama para um leitor), formando uma rede de diálogos que
colocará em discussão as categorias autor/escritor/romancista e narrador, postas ambas em
papéis ficcionais. “¿Trajiste la llave?” funciona como uma senha para que todos adentrem no
enredo duplo: sensações, reflexões e comportamentos do protagonista Sebastián, um
brasileiro filho de argentinos, em busca de sua identidade como autor de romances, e, como
tal, com domínio da poética, mas fragilizado, perdido, sem saber quais decisões tomar e quais
caminhos trilhar quanto ao trabalho como romancista, quanto a essa escrita e quanto à sua
vida pessoal; sensações, reflexões e comportamentos de um narrador que narra a situação de
crise vivida por Sebastián.
Assim, concomitantemente, por essa mesma ancoragem, o leitor acompanhará, além
da trajetória de Sebastián, um personagem-escritor tomado de dúvidas quanto à sua função, a
trajetória do próprio narrador, que encarna um ser dotado de sofisticado domínio sobre a
poética do romance (à maneira de um autor, à maneira de um Sebastián), tem certa soberania
sobre a construção da obra, portanto, sobre si mesmo, mas que faz isso sob certo conflito.
Sendo assim, ocorre perturbada inversão nas ações que seriam pertinentes aos atores.
Primeiramente, o narrador da obra — uma criação, um ser de papel, cuja função é levar o
enredo até o leitor, com o subjetivismo de quem “não tolera mais nenhuma matéria sem
transformá-la” (ADORNO, 2003, p.55), afigura-se como alguém que tem o domínio da
criação literária. Isso ocorre a ponto de, expondo reflexões do personagem-escritor pertinentes
à teoria da literatura e à criação da literatura, tecer comentários concernentes ao campo dessa
poética. Por outro lado, Sebastián — um escritor, é tirado do campo da extratextualidade, de
quem exerce socialmente a autoria, e é inserido na narrativa, tornando-se, portanto, uma
categoria, passando a um ser de papel.
64
─ ¿Trajiste la llave?
Pergunta-se a porteira, mantendo o tronco rijo e apressando as pequeninas pernas na
direção do sujeito que vai se encerrar, taciturno, no elevador. Incapaz de antever a
chegada dela e de adivinhar a iminência da pergunta, o sujeito, de mala a tiracolo,
iniciou o movimento repetido de fechar as grades do elevador antigo e só vai lhe dar
atenção mais tarde, quando terminado o procedimento bruto que empreendeu e
dissipado seu ruído intrusivo. Tendo estabelecido entre eles uma barreira dupla de
metal, que só não se assemelha à de uma prisão por se constituir de ferros
entrelaçados, e não paralelos, ele por fim pode responder: mas não responde. Limita-
se a mover a cabeça de cima a baixo uma única vez e, sem entender a própria pressa
e a habilidade com que põe a máquina a funcionar, pressiona com força exata o
botão do quinto andar.
A expressão de susto que, no rosto dela, antes se deixou divisar dá lugar aos poucos
a um intrincado franzir de peles que apenas pode indicar um acréscimo de foco e
concentração. A testa estremece com a aproximação das sobrancelhas, um olho se
aperta promovendo cortes superiores e inferiores nas curvas da íris, os lábios
decolados sutilmente se enrijecem (FUKS, 2011, p. 7).
Por que particularizar tanto? Dois podem ser os motivos dessa generosidade
descritiva: o primeiro, o narrador demarca seu papel, assumindo o domínio sobre a cena; o
segundo, associado a essa demarcação de espaço, o narrador anuncia que o personagem (mais
à frente, o leitor toma conhecimento de que se trata de um romancista) encena alguém sem
capacidade para potencializar a condição da onisciência em uma narrativa, o que pode ser
irrelevante para qualquer personagem, mas não o é para quem é escritor.
Assim, a descrição revela mais do que a cena em si mesma, estratégia repetida ao
longo dos capítulos. Neles, os passos e os pensamentos do protagonista são acompanhados em
profundidade, com distinção para a sua impotência quanto ao ato da escrita. Temos, assim,
um homem sempre titubeante nas suas ações; temos, ainda, um narrador que insiste em nos
contar isso, demarcando seu espaço, agindo com um excesso de segurança que se nos afigura
como algo estratégico. Vejamos.
As ações do protagonista são postas metaforicamente em constante associação com o
discurso poético, situado concomitantemente no campo de domínio do personagem e do
narrador, este que dá ao outro notável indicação de ineficiência, conforme o trecho:
Quando volta a apertar o botão do quinto andar, a indecisão o toma por completo e
lhe exige um grande esforço na busca por soluções, que ele empreende com os olhos
fechados e a mão esquerda cobrindo a testa numa posição um tanto artificial, que o
impossibilita de assistir ao espetáculo geométrico do elevador e de rememorar toda a
reflexão. Como se obedecessem à inércia, suas pálpebras se levantam no exato
instante em que o movimento ascendente se interrompe, e ele tem à frente acesso
direto ao apartamento, pois ao sair deixou a porta aberta sabendo que retornaria
minutos depois. Enquanto transpõe o batente, empunha a maçaneta e fecha a porta,
nenhum pensamento lhe sobrevém, e Sebastián não sabe que está trancando para
fora a lembrança de mais um raciocínio que poderia julgar interessante para o livro
que quer escrever (FUKS, 2011, p. 18, grifo nosso).
1
Informação nossa.
67
a esses seres perdidos, sem rumo, que se ajustem aos cenários e a tudo que os circunde, sob
pena de pertencerem a um modelo de espécie ficcional tão lugar comum, que enfastia
qualquer leitor. Entretanto, o leitor também distingue que não há, por parte do personagem-
autor, a percepção de que ele próprio é essa construção literária sobre a qual ele próprio tece
certa ironia, por representar a mesmice no mercado de livros.
Assim, Sebastián é o pivô de suas próprias reflexões sobre a escrita literária, pois, ao
serem reveladas discursivamente, vão revelando as dificuldades que ele enfrenta. Às vezes,
sua voz é nítida. Porém, predominantemente, o discurso do personagem-escritor e o discurso
do narrador se cruzam, sobrepõem-se. E há um momento em que se quebra o jogo de vozes, e
o personagem assume seu papel mesmo de escritor. Tudo isso pondo em discussão o fazer
literário.
Um exemplo do primeiro caso ocorre quando se manifesta um vocabulário mais usual
em língua espanhola do que em portuguesa: “e se dá conta do submetido que está à condição
de inominado e sequer fantasmagórico estrangeiro a caminhar pelas ruas de Buenos Aires,
atravessando estranhos que se olvidam dele segundos depois...” (FUKS, 2011, p. 32, grifo
nosso).
“Olvidam” é um vocábulo que alude às suas experiências de infância. Trata-se de uma
variação no léxico que remete ao idioma espanhol e que, assim, distingue sua voz, porque faz
parte da sua experiência pessoal, como vivente na Argentina.
Essa nitidez, no entanto, é rara. Predominantemente, ocorre um movimento entre
narrador e protagonista, de forma que o primeiro dê passagem à voz do segundo, um ser
tomado de reflexões, sem ações, sem nada que signifique um andamento para o enredo. O teor
desse discurso traduz, então, o desconforto ante a posição de cada elemento, sem que cada um
dê conta de si: nem o personagem-escritor consegue expor de forma independente seu próprio
texto e construir a substância do enredo, haja vista estar em questão a legitimidade de sua
condição de escritor; nem o narrador consegue, pelo seu próprio discurso, dar conta da
narrativa, haja vista que não há peripécias, fatos, situações que possam fazer o enredo tomar
impulso, como se pode constatar pelo seguinte segmento:
O tempo que tarda para chegar a essa conclusão, ponderando cada variação de teor e
formulação, é suficiente para que se afaste do edifício o bastante para duvidar de sua
veracidade. Que pretensão querer adivinhar os pensamentos da porteira, tentar
visualizá-la perdendo a noite em claro, num dormitório tão diminuto quanto seu
corpo, a revirar os interstícios da memória em busca do mirrado rapazinho brasileiro
que morou no quinto andar mais de quinze anos antes e, pior ainda, que pretensão
julgar-se capaz de interpretar melhor que ela mesma seus interditos inconscientes em
cada um dos momentos separados por poucas horas. Pelo contrário, se algum deles
69
[...] e, antes de gaguejar a primeira frase, o menino sentiu que daquele instante abria-
se outro, como uma boneca que sai do ventre de outra boneca, com a diferença de
que os instantes não eram idênticos, e sim, quem sabe, completamente opostos.
Desanuviava-se o tempo, silenciavam as gotas que já não escorriam pela janela,
desaparecia a janela e se franqueava um amplo campo de pasto rasteiro, delimitado
por um bosque remoto e árvores imponentes, cujo verde se deixava dourar pelo sol
que as escaldava (FUKS, 2011, p. 49).
Mas também essa metamorfose deu lugar a outra, o rosto da professora foi
esvaecendo na névoa imaginária, e logo o menino pôde ver a face muito real da mãe
singrada por dois traços quase transparentes, ambos tendo início em um ponto
diferente do mesmo olho e se unindo até desaparecerem sob a risca do maxilar. O
menino, a princípio, não quis entender o que acontecia e olhou a janela para
averiguar se, numa remota possibilidade, aqueles traços não passavam de sombras
no rosto alheio das gotas de chuva que escorriam pelos vidros. Depois voltou a
baixar os olhos, procurou os dedos de outra mão para tentar entrelaçá-las e soube
que a mãe, por fim, chorava (FUKS, 2011, p. 51).
70
Entretanto, mais que o sentimento do adulto que retoma cenas de infância, ocorre a
criação literária mesma, pois a distância temporal entre a experiência e a escrita faz com que
ele não apenas recomponha a sepultada e merencória infância, mas que, contemplando as
palavras, deixe-as arranjadas ao leitor, para que as imagens não percam força. Isso se dá por
um exercício que ultrapassa a ação discursiva do narrador, pois uma criação estética de cena
vai tomando lugar. Verifica-se, então, que uma voz narrativa nova, diferentemente lírica e
terna, toma corpo, uma voz não condizente com o tom narrativo até então.
Garante o arranjo estético o fato de que “o menino nunca vira a mãe chorar, e nunca
voltaria a ver” (FUKS, 2011, p. 51), segundo informação passada pelo narrador, que deixa
explícito ao leitor que a realidade da literatura não é a realidade vivida e que ela também
nunca se repete. Ressalte-se que a informação foi transmitida pelo narrador, não pelo
personagem-escritor, o que significa que aquele trouxe a chave, a ponto de inclusive
manifestar, em sua voz, a voz do outro, no questionamento ambiguamente profissional e
existencial:
Com essa instrução, o narrador, mais uma vez, demarca seu poder de ascendência
sobre o protagonista. Todo o discurso ficcionalmente rememorativo faz parte de um
movimento de entrega do personagem-escritor a um duplo mental: ele, um ser com história, e
ele, um ser com estilo. Ocorre que quem se posiciona com consciência sobre esse duplo é o
narrador. Sebastián ainda não sabe deixar a autonomia da ficção tomar corpo, não a separa de
si. Quem dá conta do fingimento poético é o narrador, condição anunciada no trecho: “Além
disso, essa imagem que tanto o tocou, que deveria estar cravada em sua memória, mas não se
cravou, essa imagem perde grande parte de sua força se o leitor não está informado de que o
menino nunca vira a mãe chorar, e nunca voltaria a ver” (FUKS, 2011, p. 51).
É por meio do lembrete que o leitor é acordado do enleio no qual estava enquanto lia
as reminiscências, tomado pela poesia do momento, tomado, portanto, pela construção
estética que o personagem-escritor fazia. Assim, o narrador permite que a voz do Sebastián
autor se manifeste, sem, no entanto, deixar que ele tome as rédeas da narrativa (ação ratificada
71
pelo próprio Sebastián, que não se dá essa permissão, tendo em vista estar preso à dúvida
quanto à legitimidade do discurso literário, conforme ilustra a citação).
E essa não é a única forma de o narrador delimitar seu espaço nesse jogo de vozes. Ele
não faz isso apenas pelos arranjos literários que vão se delineando no decorrer dos parágrafos,
mas também pela forte carga de considerações do campo da literatura retiradas das reflexões
do personagem-escritor, que, igualmente, são objeto de reflexão do narrador, de forma que
ambos se sobrepõem, como ilustra a seguinte passagem:
sobre elas, lamentou-se pela incapacidade de concentração. Apesar delas (ou por causa delas),
a única ação que importaria — escrever um livro — não acontece.
Dois capítulos fazem um corte nessa constância de discurso indireto-livre. São
momentos que quebram essa matrioska de vozes, e o personagem assume seu papel mesmo, o
de escritor. Trata-se dos capítulos 6 e 11, dois oásis — pura primeira pessoa em meio a
alternâncias, permissões, retomadas, sobreposições e subposições.
No primeiro deles, Sebastián parece contrariar Drummond (1983) acerca do fazer
poético, em seu Procura da poesia, pois usufrui de uma cena tão pessoal, tão íntima, que
parece apenas revelar os sentimentos de quem tenta uma longa viagem à procura do romance,
na qual prevalecem o pensamento e o sentimento.
No entanto, há uma penetração no reino das palavras, que, frescamente, emergem na
narrativa e promovem um novo sentido para o título da obra: até então, romance, o gênero
narrativo, a busca do romancista; a partir de então, romance, o amor:
Nem a luz desvencilhada da cortina que você entreabriu, nem o som do seu sussurro
acariciando meus ouvidos, nem o toque suave dos seus dedos sobre a minha tez,
nenhum pedaço de gengibre assomando a meu nariz, nenhum morango invasor
pousado dentro da minha boca. O que me acorda é a desaparição dos sentidos.
Imersa no breu e no silêncio, minha mão toma a forma do seu ombro e teima em
vasculhar o vazio sem encontrar vestígio de um pedaço seu. Alheia aos odores
indiferentes que emanam dos lençóis, minha boca abre e fecha sem recobrar
qualquer resquício do último beijo que você me deu.
Acordo e sinto meus pés presos entre os lençóis como se alguém acabasse de
envolvê-los na mortalha que um dia me será destinada: você não esteve aqui para
desencravar os panos de sob o colchão e me livrar de um improvável medo da
morte. Também não foi deixando pelo chão, como uma Maria, mas sem João,
cabelos que eu pudesse ir recolhendo cômodo trás cômodo até me defrontar com seu
calor. Este você nunca habitou. Como no meu rosto, não há nas paredes a impressão
de qualquer um dos seus dedos. Como no meu peito, não há no piso nenhum indício
de uma pegada sua (FUKS, 2011, p.54).
acariciando meus ouvidos” (audição), “nenhum pedaço de gengibre assomando meu nariz”
(olfato), “nenhum morango invasor pousado dentro de minha boca” (paladar), “minha mão
toma a forma do seu ombro e teima em vasculhar o vazio sem encontrar vestígio de um
pedaço seu” (tato). A experiência vivida é a da ausência, revelada pelas palavras nos efeitos
que promovem, transformando-a em uma experiência estética. A princípio, cotidianamente, o
que aciona o acordar de alguém é o estímulo a algum sentido: a luz teimosa em fazer os olhos
se abrirem, um sussurro em meio ao sono, um cheiro perturbador, uma intromissão na boca
fechada em sono, um movimento de corpo invasor do espaço da cama... Na descrição
sensitiva de Sebastián, ocorre o contrário: a ausência de sensações é o que desperta. Essa bela
inversão entre o cotidiano da vida e a percepção literária do momento compõe a cena, que,
num ápice lírico, se recobre de saudade — “minha boca abre e fecha sem recobrar qualquer
vestígio do último beijo que você me deu”. No trecho, há um efeito de prolongamento
temporal, configurado por meio de uma metonímia que denuncia a avidez por um beijo, que
nada mais é que qualquer indício, portanto, algo muito distante.
Além da cena sinestésica, toda a sensação erótica e amorosa descrita se faz por meio
de figuração: uma comparação entre a ausência da amada e a morte (“[...] meus pés presos
como se alguém acabasse de envolvê-los na mortalha que um dia me será destinada [...]”);
uma analogia entre a história infantil João e Maria, invertida nas ações, pois quem deixaria
pegadas, mas opta por não as deixar, é Maria, e quem se desespera sem elas é João, porque
assim não encontra o caminho de volta, o lar, enfim. As pistas, de miolinhos de pão, passam a
ser fios de cabelos longos, que, como os de Rapunzel, são guias que deveriam estar
espalhados pelos cômodos para o encontro do calor, do erotismo. Essa ausência dos cabelos
presentifica uma ausência remota, e o corpo e a casa se ajustam, um é o outro: rosto e paredes,
sem o toque dos dedos da amada; peito e chão, sem marcas dos passos da amada.
Toda a experiência se recobre, assim, de palavras.
Ora, onde está o personagem-escritor titubeante? Onde está o homem cujas reflexões
são o bojo do romance que ele procura? Nesse momento, fica desaparecido. Atua um
personagem que protagoniza não a si mesmo, não uma cena, mas o próprio dizer poético. O
movimento é tão claro, que ele narra um momento de criação, salientando o que está “entre”
elementos da realidade, nada nos extremos, na realidade, nas coisas, mas no vácuo das
palavras, em que os romances esperam ser escritos:
Tranco-me no banheiro e me deparo com dois abismos muito reais: o que se cria
entre o espelho e o brilho refletor dos meus olhos, e o que se prolonga entre os meus
olhos e os olhos refletidos no espelho. Você há de pensar que assim se confirma
74
Observa-se, no trecho, o esforço imaginativo dando lugar à invenção, algo que se cria
e que se prolonga. Impressiona como o escritor percebe onde ela está, onde está a invenção,
localizada entre: espaço impalpável, abismal. Ali ele situa a imagem da amada, que se
multiplica e da qual ele usufrui por um instante, fugidia que é, mas que consegue retomar,
para tecer mais imagens associadas ao amor de ambos. Corporifica-se, então, a voz de um
sujeito criador, trazendo à tona uma voz discursiva constitutiva da realidade da obra e não da
realidade documental.
Ora, vale também perguntar: onde está o narrador, dono da narrativa? Nesses
momentos, não há intervenção desse ser de papel, que não faz o discurso de Sebastián
irromper nem o interrompe, não lhe toma a palavra, não lhe cede a palavra. Tem, ou dá a si
mesmo, um descanso em sua função distorcida. Tem um momento de sossego ou permite-se
respirar aliviado do exercício daquela transmutação de vozes. São ocasiões de arroubo, que
registram algo em que o narrador não se atreve a intervir — ou não pode intervir —, a palavra
criadora, sob pena de um desconforto irrecobrável: acompanhar o personagem-autor na sua
procura do romance é constrangedor, mas viável; acompanhar o autor na busca do amor seria
uma intromissão.
No capítulo11, ocorre a mesma ausência do narrador em terceira pessoa e presença
exclusiva da voz do escritor em sua exposição à amada. A figuração é outra: o personagem-
autor, transmudado em palavras esteticamente postas, vê a si como um inseto em um casulo,
prestes a rebentar-se para a vida, ao encontro de um outro, a amada, também em um casulo:
se vê na situação relatada, percebe a busca que ele próprio empreende pela amada. Convive
com a cena, consigo mesmo, e expõe essa convivência metaforicamente, aproximando-se da
cena e a contemplando. Personagem de si mesmo, o escritor é tomado de autonomia à procura
do romance e do amor. E é dessa procura que ele fala, considerando estranhíssimo o fato de a
metáfora que lhe fora destinada como escritor ser aquela que lhe está sendo destinada como
amante. A pergunta que subjaz a essa cena é: a vida imitaria a literatura? Ao observar a
palavra que parece criar vida, ele entrevê suas mil faces ocultas.
Somam-se a essa metáfora elementos de sonoridade, como a aliteração dos sons /r/ e
/s/ (“Arrastava-se pela superfície cimentada e era como se se arrastasse pela superfície dos
meus olhos, atravessando as pupilas estupefatas [...]”) e a repetição de palavras (“Arrastava-se
pela superfície cimentada e era como se se arrastasse pela superfície dos meus olhos,
atravessando as pupilas estupefatas [...]”), que faz prolongar-se a metamorfose e o processo de
encontro da vida.
Os recursos são criados por alguém que busca, na face neutra da palavra, a face que
melhor o traduz.
Assim, os dois instantes de voz cristalina desabrocham em meio aos outros momentos.
São circunstâncias em que o narrador parece desligar-se da tarefa de trazer à tona as reflexões
do personagem-escritor. A sensação de alívio que é passada faz descobrir o quanto pesa ao
narrador o trabalho de escoltá-lo nessa procura do romance, como se fosse uma empreitada
não da sua competência, mas uma aptidão de uma voz autoral.
Nesses momentos de fôlego, vem à luz o escritor que subjaz à encenação do
personagem-escritor. Sebastián deixa de ser encenado como o objeto narrado, para encenar
ser o agente criador da narração, um escritor, utilizando recursos estéticos para dizer de sua
procura pelo romance concomitantemente à sua procura pelo amor.
O desconforto de ambos fica evidente, então, já que a sensação aliviante ocorre,
quando os papéis são assumidos: o narrador que acompanha um personagem que é escritor,
relatando seus passos e reflexões, sai de cena para que seja encenado o exercício do escritor.
Mas essas encenações são esporádicas, pois, se Sebastián está em busca de sua
identidade autoral, se ele está em busca da sua condição de ficcionista, temos
predominantemente alguém que não consegue escrever, narrar, construir um enredo; temos
alguém que não tem a chave para abrir a obra, dar início a ela. Daí que o narrador reconta o
discurso alheio — o discurso de alguém que fica girando em torno de suas próprias ausências,
e, sendo assim, de alguém que acaba por não ter o que narrar. É fatal, então, a pergunta:
76
Existe uma história? Se a inefável instância da experiência tão logo se dilui em nada,
turva lágrima e densa névoa, antes mesmo de se deixar perceber, compreender,
concatenar a outros domínios igualmente evanescentes. Existe uma história? Se o
tempo, com tal empenho e desfaçatez, cuida de dissolver também as marcas físicas
dos acontecimentos antológicos ou corriqueiros, legando ao universo um passado
rarefeito e a imutabilidade paradoxal das coisas sempiternas. Existe uma história? Se
não há conflito, não há enredo, se a realidade concede apenas uma linhagem vaga de
eventos, sem sucessões lógicas a cerzir ou emaranhados míticos a descosturar.
Existe uma história, se toda metáfora e toda memória são insatisfatórias? (FUKS,
2011, p.77).
papel de escritor anônimo, como se fosse uma profissão de respeitabilidade. Casado com
Vanda, pai de um filho, cidadão do Rio de Janeiro, com vida financeira estabilizada, mantida
pelo rentável trabalho anônimo que exerce em tarefas nas quais transforma seu domínio da
língua portuguesa em empreendimento, o narrador-protagonista tem, ao mesmo tempo, uma
segunda vida em Budapeste, cujo início se deu quando sofreu um pouso acidental ao retornar
de um inusitado Encontro de Escritores Anônimos em Istambul. Esse acaso faz emergir uma
outra face do personagem: José Costa é também um estrangeiro, Zsoze Kósta, que se
relaciona amorosamente com Kriska e que não tem vida financeira estabilizada, nem domina
o idioma húngaro.
Entre as peculiaridades da obra, a que nos interessa é o fato de que não há conflito em
José Costa ante a opção de não assinar as obras que escreve, estabelecendo para si mesmo sua
condição de anônimo. Sua aflição se dá ante a perspectiva de sua assinatura ser exigida ou de
a fraude ser denunciada, condição que acusa um desconforto quanto ao ato de escrever, pois
se trata de algo que deseja fazer, mas não quer assumir. Não há nele nenhum anseio por
inscrever seu nome naquilo que é seu. Pelo contrário, conforme afirma Flávio Carneiro
(2005), o narrador de Budapeste não sente no anonimato uma maldição, pelo contrário, tem
nisso a meta a atingir. Acrescenta o crítico que “[...] Chico Buarque criou um ótimo
personagem a partir de uma inversão inicial, seguida por outras que dela surgem, dialogando
com a primeira, de tal forma que, ao final, o que sobra é só mesmo um relato multipartido,
[...]” (CARNEIRO, 2005, p. 209).
Dessa forma, o delineamento do narrador-personagem se dá pela composição de uma
incoerência entre o querer fazer/não querer assumir o feito, prezando, assim, a obra, mas
desprezando o estrelato. Essa tática promove desconfiança no leitor, levado a perceber a
duplicidade do narrador, que, concomitantemente, parece desprezar a si mesmo, mas ovaciona
a obra, o que, automaticamente, ovaciona o autor. Mas somente ele mesmo promove para si
essa ovação, não lhe importando, e até lhe dando prazer, que os louros públicos sejam para
outro. Basta a ele dar a si mesmo esses louros. Essas inversões são a tônica do romance, e por
elas postam-se questões como autoria, apresentada como mero fetiche, e literatura, como
apenas mercadoria, o que contribui para a revelação do desconforto da voz narrativa que se
apresenta na ficção em estudo. Não é mero acaso, por exemplo, o fato de o narrador ser o
próprio protagonista e não se esconder sob a voz de um outro. Assumido, descarado, o ghost-
writer não se faz de rogado quanto a escancarar seu desejo de se esconder, de não ser
percebido, de não se dar a conhecer, de não receber os créditos por sua obra. Talvez, mais que
o desejo de anonimato, esse jogo contraditório seja seu alimento.
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Tomando esse sentido, consegue-se compreender por que José Costa coloca a função
de escritor e a de copista em graus diferentes. O que, aos olhos do protagonista, as diferencia
é o fato de que há trabalhos para cuja atuação se faz necessária muito mais que uma prática
mecânica (como a de copista), algo vindo de alguém, por exemplo, “apto a redigir discursos
para qualquer circunstância, a partir de um rascunho ou de uma entrevista breve”
(BUARQUE, 2003, p. 16). Assim, o trabalho de autoria seria ancorado em uma realidade, esta
modificada por alguma circunstância, o que sugere haver condições sociais de produção,
80
como autor e leitor, e, então, estratégias pertinentes a elas. Há nessas considerações de José
Costa reflexões acerca do status da literatura e do escritor, pois ele anuncia uma discussão
quanto ao nivelamento de um discurso de político, uma monografia à ficção, segmento até
então nem citado ou comentado.
Apesar dessa concepção de escritor (ou por causa dela), o ghost-writer vive certo
incômodo. Ele se sente insatisfeito em especial quanto aos discursos elaborados para
políticos, pois eles se apropriam da mercadoria e a alteram a seu bel-prazer. Claramente,
então, o protagonista deseja que, embora não assinando o material, ele permaneça da forma
como o construiu, em outras palavras, é material dele. Alterados, passariam a ser outro
produto. José Costa deseja que seja cumprido um acordo de aceitabilidade que não se
cumpria. Ocorre que essa insatisfação, embora sentida, é indevida, pois, na verdade, o gênero
discurso de político prescinde do acordo, tendo em vista que, corriqueiramente, exige o tom
teatral do momento bem como ajustes de ocasião.
Ante essa insatisfação, passa a produzir artigos publicados em jornais de grande
circulação, os quais não seriam passíveis de sofrer alterações, pois o pacto de leitura se ancora
em um suporte que não sofre as intempéries das circunstâncias. Quanto a esses textos, tinha
grande prazer e vaidade ao vê-los circulando inalterados e com outra rubrica: “Naquelas
horas, ver minhas obras assinadas por estranhos me dava um prazer nervoso, um tipo de
ciúme ao contrário. Porque, para mim, não era o sujeito quem se apossava da minha escrita,
era como se eu escrevesse no caderno dele” (BUARQUE, 2003, p. 18).
Verifica-se que o trecho dá destaque à autoria, mas sob um ângulo distinto, pois ela
desloca-se de lugar, estando onde a obra está. Dessa forma, realmente não importa a
assinatura, porque a assinatura é a obra, inalterável, consistente em si mesma. José Costa faz
sair de cena o autor, para deixar permanecer a obra, inclusive em tom divertido,
ridicularizando o deslumbre pela autoria, não pela obra, sentindo o prazer que o oculto
promove, comparado ao que um homem sente “tendo um caso com a mulher alheia”
(BUARQUE, 2003, p. 18).
A obra, então, é o elemento vital, e não a assinatura. Assim, na prática de escrita de
artigos, José Costa vai reconceituando a figura do escritor, demonstrando seu desconforto em
relação não exatamente ao exercício que configura esse papel, mas à exibição dele. O
interessante é que pensa dessa forma, mesmo encarando a obra apenas como material
rentável, dizendo estar à procura de uma seara em que houvesse “recompensa profissional
para valer” (BUARQUE, 2003, p. 16).
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[...] Pegava a esmo uma das vinte fitas cassete que o alemão deixara gravadas, ouvia
vagamente sua voz, pousava os dedos no teclado, e eu era um homem louro e cor-
de-rosa sete anos atrás, quando zarpei de Hamburgo e adentrei a baía de Guanabara.
Eu nada sabia desta cidade nem pretendia aprender o idioma nativo, fui enviado para
pôr ordem na Companhia, e na Companhia só se falava alemão. Não contava
conhecer Teresa, que me introduziu ao Chamego do Gambá, boteco onde se tomava
cerveja e se cantavam sambas a noite inteira. Ali me iniciei na língua em que me
arrojo a escrever este livro de próprio punho, o que seria inimaginável sete anos
atrás, quando zarpei de Hamburgo e adentrei a baía de Guanabara. Ao primeiro
contato, o idioma, o clima, a alimentação, a cidade, as pessoas, tudo, tudo me
pareceu tão absurdo e hostil que caí de cama, e ao me levantar dias mais tarde, vi
horrorizado meu corpo pelado e meus pêlos soltos no lençol. Depois conheci Teresa
e fui me enfronhando no país, fui ao boteco, fui à favela, fui ao futebol, à praia
custei a ir porque tinha vergonha. [...] Uma morena como Teresa seria inimaginável
sete anos atrás, quando zarpei de Hamburgo. [...] Esqueci Teresa como já tinha
esquecido Hamburgo, e larguei a Companhia para fundar uma ONG, ou melhor,para
catar mulher na praia, o que seria inimaginável sete anos atrás, quando adentrei a
baía de Guanabara, e extasiado perdi todos os pelos [...] (BUARQUE, 2003, p.29-
30).
O trecho ilustra o trabalho do escritor, a começar pelo uso do pronome “eu”, que
escorre em meio às palavras, passando automaticamente da referência a José Costa e daí para
a primeira pessoa da autobiografia, ambas reproduzindo eventos da vida. O resultado disso
não o satisfazia, pois o texto, aos seus olhos, “estava viciado, patinava, não evoluía”
(BUARQUE, 2003, p. 30). Claro está que as reproduções do original não promoviam efeito
82
nos poemas e volta à tona distorcida em sons e ritmos, contorcida em conotações sensuais. O
percurso da obra se enviesa para o fingimento alcançado por técnicas de apropriação. Trata-se
de uma experiência na qual linguagens comentam outras linguagens, promovendo a diferença
que alimenta a prosa de José Costa, agora um escritor de ficção.
Como tal, constrói um “emaranhado de memória individual e memória coletiva”
(ECO, 1994, p. 93), fazendo a literatura (e, portanto, a vida), por meio das vozes líricas,
prolongar-se ao mesmo tempo em que recua no tempo, de tal forma que renasce a Teresa de
Castro Alves, incorporada à Teresa de Manuel Bandeira. É essa a Teresa entregue a um
executivo alemão, que, na realidade, jamais poderia tê-la, mas que, em palavras, recebe-a e
toma-a totalmente para si.
Essa farsa, na composição da voz autobiográfica de Kaspar Krabbe, acontece não
apenas porque não é esse alemão quem está escrevendo, mas porque a voz que ali se narra não
reproduz as experiências registradas nas fitas, mas, sim, eventos estéticos, arrumações
linguageiras, colocando a Teresa de Castro Alves na vida, não do alemão, mas na vida da voz
da ficção em que se constitui a autobiografia, uma voz que se apresenta mediada por José
Costa. Ocorre uma intromissão em meio às vozes líricas do poeta moderno e do poeta
modernista e a emersão de uma outra voz saída daquele diálogo: a de um estrangeiro que
chega ao Rio de Janeiro e se apaixona por uma Teresa carioca, cujas pernas — antes estúpidas
e objeto apenas de olhar — são sensuais espaços de exploração das palavras.
José Costa ultrapassou os limites da autobiografia. Ele usufrui das informações dadas
pelo alemão, mas elas se perdem de vista, pois o protagonista acrescenta-lhes e sobrepõe-lhes
novos elementos, a ponto de fazer um apagamento das gravações. O plurilinguismo é o vetor
desse apagamento, pelos traços semanticamente distintos, pela produção de efeitos inusitados.
Trata-se do que Tezza denomina “substância ventríloqua”(TEZZA, 2012, p. 20). Quando José
Costa se apropria de Castro Alves e Bandeira, constrói um estilo, por meio de uma voz que
não é de ninguém, nem dos poetas, nem de Kaspar Krabbe, nem sua, mas um entrecruzamento
de vozes concomitantes, de todos. Trata-se de uma outra, em leque, de um novo alemão,
personagem de linguagem criativa, de percepção sensorial aguçada, que promove aquele
“efeito de beleza que parece animar toda ideia artística” (TEZZA, 2012, p. 41), distinto da
vida medíocre relatada nas gravações.
Não é à toa que José Costa, exercendo de forma redimensionada pela ficção o
exercício de escritor, sinta apego pelo livro, o que se revela não só pelo fato de ele afirmar
isso em seu discurso, mas principalmente por se deixar ainda dominar pelo estilo que
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neleapresentou, pois o poema de Castro Alves continua ecoando pelas frases tonalizadas de
Romantismo, pálidas, murmurando-lhe “adeus!”:
Mas o livro do alemão, talvez por ter sido escrito assim num jorro, eu nem
conseguia desfrutá-lo, as palavras me escapavam à vista. Palavras recém-escritas,
com a mesma rapidez com que haviam sido escritas, iam deixando de me pertencer.
Eu via minhas palavras soltas na tela, e, horrorizado, imaginava que elas me
abandonavam como o alemão perdia pêlos. Imprimi o livro, folheei-o pela última
vez, e por ter a sensação de que era meu livro derradeiro, já não o queria vender por
dinheiro algum. Cheguei a guardar os originais na gaveta, tranquei-a, depois pensei
na cara do Álvaro, abri a gaveta. Enfiei o maço num envelope pardo, escrevi na
etiqueta, à mão, o título O Ginógrafo, e as letras saíram pálidas, parecia que ali se
esgotava minha própria tinta (BUARQUE, 2003, p. 41).
Não é à toa também que Kaspar Krabbe teme que José Costa decida por assumir
publicamente a autoria da obra. A qualidade do que lhe fora entregue produziu sobre ele um
efeito que suas “vinte fitas cassete com sua voz gravada nos lados A e B, vinte horas de
histórias mal contadas, imprestáveis”, não causariam. Prova disso é o tom desdenhoso de
quem quer comprar algo usado após a assinatura da escritura que lhe dava a legalidade da
autoria da sua obra (situação de completo nonsense, levando-se em conta que o alemão dirigia
seu discurso à pessoa que acaba de registrar a fraude obra/autor):
Retribuiu-me com um exemplar de seu, para não dizer de meu livro, que autografou
no ato, com letras garrafais e firmes: ao Sr. José Costa, estes despretensiosos
escritos, cordialmente, K.K. Desculpou-se por aquela sua obra de estreia que,
malgrado o caloroso acolhimento, estava longe de satisfazer suas ambições literárias
(BUARQUE, 2003, p. 92).
Ora, conforme nos afiança Leyla Perrone-Moisés (1990), dois polos cercam a criação
literária: o escritor e o leitor, que recria a obra pela leitura, tão ativamente quanto o autor, este
um desencadeador da interpretação, mas também o que lhe impõe limites. Assim como os
políticos fizeram com os discursos escritos por José Costa, Kaspar Krabbe poderia alterar a
obra se dela constasse a reprodução de suas fitas: aqueles, porque nem necessitavam de uma
voz discursiva que os representasse, relativamente a interesses da ordem de seu
empreendimento; este, porque veria em sua história de vida algo que mereceria estar na
publicação e não estava. Encontrando no material que lhe fora entregue o inusitado e o belo
da ficção, o contratante entendeu que suas intenções foram superadas por algo que circula
apenas no reino da linguagem. Nada assim a retirar ou pôr, porque, na verdade, nada é dele.
Ele receou perder o que não é seu: “Mas quando afinal o aceitou, se tornou avaro dele,
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estremecia de um dia o perder, não admitia sequer o dividir comigo” (BUARQUE, 2003, p.
89).
Por um ápice, José Costa deixa de estar a serviço do outro, para estar a serviço da
linguagem literária. Porém, mesmo se encontrando nessa construção em que a vida faltosa
(porque medíocre) do alemão dá lugar a um fingimento encantatório, em que o mundo sempre
a desejar é suprido pelo arranjo de palavras, sedutor para si e seu leitor, José Costa não
sucumbe à tentação de pôr ali sua assinatura, de maneira a continuar errando pelas vias da
escrita, como um vigarista de si mesmo. Ressalta-se que ele se silencia, não é silenciado, pois
sabe que literatura é “das artes a única que não precisa se exibir” (BUARQUE, 2003, p. 117).
A obra tem, assim, um lugar seguro em si mesma, prescindindo da autoria.
Ao invés de a construção de uma obra ficcional dar ao narrador uma estabilidade pelo
reconhecimento público de sua qualificação como escritor, ela acentua a inadequação de José
Costa, porque nem ela o faz deixar de ser um despudorado vendedor de textos sob
encomenda, sempre a serviço de um outro. Ele continua sentindo-se confortável apenas nessa
condição de fugitivo de si mesmo. É momentâneo seu apego à obra entregue para o executivo,
embora reconheça seu próprio valor. O que ele deixa persistir é a sensação de que o autor
existe, não na assinatura, mas em sua trama, em seus personagens: “Porque minha mão seria
sempre a minha mão, quem escrevia por outros eram como luvas minhas, da mesma forma
que o ator se transveste em mil personagens, para poder ser mil vezes ele mesmo”
(BUARQUE, 2003, p. 23).
Assim, um avesso se anuncia: um Madame Bovary deixa de ser um eu, para que um eu
seja um Madame Bovary, de tal forma que a assinatura realmente se torne dispensável, e a
trama fale por si mesma, na autonomia de seus personagens e narradores.
Em gradação dentro do processo de escritas (monografia, discurso de político,
autobiografia, narrativa ficcional), outra tipologia estética que singularmente põe em reflexão
a categoria escritor é a lírica, na composição do que José Costa considera como poesia. Dessa
vez, estando em Budapeste, empreendendo com grande interesse o aprendizado do idioma
húngaro, resolve pôr anúncios para o mesmo ofício que exercia no Brasil, ou seja, redator de
monografias, teses, discursos, agora com o acréscimo de peças de ficção. Rejeita uma
proposta, a da construção de uma poesia, porque é coisa que nunca escrevera. Além do
motivo, incomoda-o o fato de a contratante ser “uma desavisada [que] pretendia ser
destinatária do poema, em papel timbrado com a chancela do Clube das Belas-Letras”
(BUARQUE, 2003, p. 131). Interessante e engraçado o aborrecimento de José Costa pela
fraude que cometeria a mulher, mas sem jamais se aborrecer com sua própria postura, como
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se fosse uma impropriedade ser falso destinador e falso destinatário de si próprio, mas não ser
uma impropriedade promover o mercado paralelo de textos, criando um falso destinador e,
portanto, falsos destinatários. A união entre o enunciador e o enunciatário, postos em
simultaneidade, aflige-o, talvez porque ponha em xeque algo que ele mesmo faz — ser, de
certa maneira, o único leitor de si mesmo, já que os outros leitores não leem a ele, mas a um
outro. Essa linha que costura autor e obra só é visível para José Costa, e é isso o que lhe apraz.
Um novo estímulo acontece e encaminha o narrador para a produção de poemas.
Trabalhando com dificuldades na construção de uma dissertação sobre o dialeto húngaro
székely, praticado na Transilvânia, José Costa, agora Zsoze Kósta, começa a dedicar-se à
construção de algo que lhe pareceu completamente novo e lhe causou surpresa e prazer:
As frases eram minhas, mas não eram frases. As palavras eram minhas, mas com
outro peso. Eu escrevia como se andasse em minha casa, porém dentro d’água. Era
como se meu texto em prosa tomasse forma de poesia. Eu não sabia escrever poesia,
e todavia estava escrevendo um poema sobre andorinhas (BUARQUE, 2003, p.
133).
A forma como o narrador tenta traduzir o movimento lírico que o toma se reproduz
também com um quase lirismo: “não eram frases”; “com outro peso”; “em casa, mas “dentro
d’água”. O trecho, em prosa, tonaliza-se de poesia. Trata-se de imagens que tentam explicar
objetivamente o subjetivo. E como ele sabia tratar-se de poesia? Porque sabia que eram
intraduzíveis... Agora ele era algo diferente de um escritor, ele tornara-se um poeta, de posse,
inclusive, de seu único poema sobre uma andorinha, em uma língua que não era a sua, e, mais
que em uma língua estrangeira, era escrito em um dialeto de uma língua estrangeira. Nada é
seu, portanto. A poesia veio-lhe, então, no máximo de estranhamento, abrindo um gomo no
leque dos questionamentos: um escritor é um outro, se produz poemas?
Desse primeiro poema, parte para mais construções, em nome, desta vez, de Kocsis
Ferenc, um poeta em decadência. O processo também é semelhante ao que ocorreu quando da
escrita de O ginógrafo.
Primeiramente, uma situação atípica é o gatilho para a escrita: o decadente poeta bate à
sua porta, dominado por uma inspiração; pede um papel; recebe um caderno comprado para
ser preenchido com poesias; posiciona-se para escrever; fixa com um ponto a caneta no papel;
perde a inspiração; vai-se embora. Esse ponto inaugura o fluxo de poesias que passam a ser
escritas pelo protagonista. Em segundo lugar, há um deslizamento do estilo do poeta
fracassado para um estilo inédito: José Costa escreve em seu próprio caderno aquilo que o
poeta perseguia anos a fio, resultando nos três versos iniciais. Depois, cria outros versos, que
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o poeta também gostaria de ter escrito. Posteriormente, vieram outros versos, “de um nível
mais elevado, conquanto lembrassem, longinquamente, o estilo de Kocsis Ferenc”
(BUARQUE, 2003, p. 137, grifo nosso). Por fim lhe ocorriam estrofes melhores que as
anteriores, cujos versos nunca teriam sido escritos por Kocsis Ferenc.
Essa cruzada de produção lírica dá extremo prazer a Zsoze Kósta, que, como sempre,
nega-se a assumir a autoria: ele presenteia o autor com a obra, numa situação totalmente
corriqueira — enquanto os dois usavam o mesmo banheiro. Demonstração da ordinária
condição em que se coloca como escritor, a cena prosaica não conota um desmerecimento da
literatura, mas sua desmitificação, considerada um simples resultado de um ofício, de um
exercício.
“Háromsoros Versszakok”, ou “Tercetos Secretos”, numa tradução sibilante, trouxe de
volta a Kocsis Ferenc o tratamento reverenciado de outrora. Da mesma forma que Kaspar
Krabbe, o poeta autografou a obra com o temor de perder a autoria: “Depositei na mesa meu
livro, que ele custava a assinar, a mão tremendo rente à página branca” (BUARQUE, 2003, p.
139).
Ocorre que Kriska, a amada de Zsoze Kósta, não encontrou no poema a essência do
idioma húngaro, considerando-o exótico:
É que o poema não parece húngaro, Kóska. O que dizes? Parece que não é húngaro
o poema, Kóska. Não me ofenderam tanto as palavras, quanto a cândida maneira
com que Kriska as pronunciou. E disse mais: é como se fosse escrito com acento
estrangeiro, Kóska. Esta sentença ela emitiu quase a cantar, e foi o que me fez
perder a cabeça (BUARQUE, 2003, p. 141).
A reação de José Costa é veemente. Aparentemente, seu incômodo não está mesmo na
autoria, mas na forma da obra. Mas outra causa de desconforto se apresenta. Diferentemente
do que ocorreu com a autobiografia, quando a reprodução mesquinha das fitas era o
obstáculo, aqui o que incomoda é o fato de os versos estarem muito longe de algo
fundamental para a alma da poesia de qualquer povo, a língua. O acento, a prosódia, portanto,
não revelava um poeta húngaro, porque língua e pátria não se irmanavam nas estrofes.
Essa distinção se dá porque, pertencendo ao gênero lírico, os versos deveriam
amalgamar obra e autor. Sendo assim, dessa vez, esses dois elementos estão postos em
questão, porque são inseparáveis, não há como o narrador-escritor produzir algo para alguém
assumir a autoria no caso do gênero lírico. Se a obra não faz reconhecer a voz que nela se
manifesta, ela não é aceita. Por isso, no Candido comentário de Kriska, subjazem as
perguntas: Quem disse que a obra é uma obra? Quem disse que o escritor é um escritor?
88
Essa percepção de Kriska é de ordem bakhtiniana. Ela sabe que a leitura de um poema
pressupõe um encontro entre uma voz lírica e uma autoria, interpenetradas, esta deixando
naquela um grau zero de autonomia. E, por isso, seria preciso que os versos de Kocsis Ferenc
trouxessem a limpidez da língua do poeta. Segundo Bakhtin,
algo revelador e que, portanto, torna sua assinatura imprescindível. Há risco, inclusive, de que
publicamente o poeta húngaro seja desmascarado por alguém como Kriska.
Ambas as reações de José Costa — quanto à escrita da prosa e à escrita da poesia —
denotam alguém ansioso por se manter oculto da notabilidade da escrita e sem pejo quanto a
isso. Fingir-se de outro (ou permitir que um outro finja) é aquilo a que aspira, o que lhe dá
prazer e o que quer manter. Essa face dupla se replica na prosa e no verso, encontrando nas
duas modalidades um eu que se processa como autêntico escritor, que se oferece para a
retirada da máscara, movimento prazeroso do leitor.
Para José Costa, há algo significativamente negativo na exposição do escritor, por isso
procura evitá-la. Entretanto, o desconforto que essa posição promove também é significativo,
pois, durante todo o tempo, é preciso lutar contra o estrelato, evitar que se reconheça a
autoria. Sendo assim, nenhuma posição existe a pleno deleite. Trata-se de um duplo nãolugar:
aquele do autor, porque, sem a assinatura, o autor não existe — meta de José Costa; o
nãolugar do anônimo — vivência de José Costa, sempre em risco de ser descoberto.
Porém, essa pessoa desnorteada que é José Costa, errante pelas obras que produz,
constitui o enredo da narrativa. Trata-se de um narrador que conta, sem pejo e com certo
humor, suas fragilidades. Não é confiável, portanto, essa postura de desejar ser anônimo,
porque o que faz é alardear esse desejo, construindo e desconstruindo esse desejo. Não se
prende a mulheres, nem a filhos, nem a obras. Sem âncora, põe-se à deriva das palavras que se
desdobram diante dele em tipos e gêneros; que lhe oferecem as trilhas da ficção e do lirismo;
que se personificam nele, dúbio, dúplice.
Ele expõe suas leituras e se espelha nelas, apresentando-se, então, como um leitor-narrador-
escritor.
Essa posição tríplice se desenvolve no texto por alguns recursos estéticos; entre eles, e
associados, estão o excesso e a autoexplicitação. Ao ler a obra, o leitor de Fux vai sendo
tomado por uma sensação de volume e intensidade agregados à exposição que o narrador faz
de si mesmo, sem rodeios nem subterfúgios. São excessivos os nomes, as circunstâncias, as
citações, as alusões, as referências e as reflexões sobre o fazer literário, envolvidos com
religião, cinema, história, filosofia, pintura, linguagem. Em demasia, os elementos põem em
cena uma voz que parece não existir por si, frágil na sua própria condição, necessitando de
outras vozes para compor a sua mesma e fortalecida pelo seu arquivo cultural, parte do qual o
arquivo literário interessa-nos especialmente.
Enquanto se ancora nos muitos discursos, entre eles os literários, o narrador vai,
também excessivamente, fazendo questionamentos acerca da escrita: de si mesmo como
leitor, de si mesmo como narrador que se narra, de si mesmo como escritor, bem como acerca
do valor da literatura. Diferentemente então do narrador de Chico Buarque, que esconde seu
desconforto como escritor divertidamente transvestido de ghost-writer, tentando esconder-se
em sua própria voz, este se exibe, fazendo isso por meio da associação a outras vozes, num
diálogo intenso, como se sua existência dependesse da existência de outras; como se a
existência de sua narrativa dependesse da existência de outras narrativas, autores, enredos,
narradores e personagens. Segundo Compagnon,
O sujeito da citação é uma personagem equívoca que tem ao mesmo tempo algo de
Narciso e de Pilatos. É um delator, um vendido — aponta o dedo publicamente para
outros discursos e para outros sujeitos —, mas sua denúncia, sua convocação são
também um chamado e uma solicitação: um pedido de reconhecimento
(COMPAGNON, 1996, p. 50).
Uma semana depois, cortaram o meu prepúcio. Brit-milá, meu pacto com o povo
escolhido e minha imunidade em relação à maldosa Lilith. Se é que Deus e Lilith
existem. Ou será que a circuncisão é realizada para se ter a certeza de estar sempre
incompleto? Aqui a incompletude já é física, não há mais nada a fazer [...]. Eu não
sei de nada, mas desconfio de muita coisa. Não me lembro de nada. Aqui já me
inseria na História. Na História de Abraão e seu pacto com deus. Na literatura
medieval judaica, com a invenção de Lilith e dos dibouks. A minha própria história
começava a copiar a literatura. Podia encontrar em mim os primeiros sintomas do
Complexo de Portnoy. Fascinante. Que a história tivesse copiado a história já era
suficientemente assombroso; que a história copiasse a literatura era inconcebível.
Mas, mesmo assim, a minha história continuava (FUX, 2012, p. 13).
Quando me sentia inapto a extrair de minha própria substância o que quer que
fosse que merecesse ser colocado sobre o papel, copiava voluntariamente textos.
Colava artigos ou ilustrações recortadas de periódicos nas páginas virgens de
cadernos ou de blocos (COMPAGNON, 1996, p. 38, grifo nosso).
A mesma inaptidão que Leiris assume ter é perceptível no narrador de Fux, que une
elementos separados e descontínuos em um todo que é só seu, a ponto de a colagem, o
remendo e a bricolagem resultarem em alta costura. A quantidade de citações é tão grande,
que, durante toda a obra, a cada gesto de escrita, ele demonstra o quanto se sentia inapto a
extrair de sua própria substância o que quer que fosse suficiente em si mesmo para ser
considerado e posto no papel. Por isso, tomando posse de discursos outros, torna-os objeto de
“re-leitura” de si mesmo, tanto para si quanto para seu leitor.
É o que ocorre, por exemplo, na passagem em que o narrador absorve o lirismo de
Cecília Meireles, pinçando palavras e tonalidades de “Elegia” — “No dia seguinte, estavas
imóvel, na tua forma definitiva / modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos”
(MEIRELES, 1986, p. 302) — ajustando os versos à sua intenção de ressaltar a existência da
literatura, cuja fantasia permite a sensação de vida — “As nossas histórias, muitas vezes, são
falaciosas, modeladas pelo tempo, pela mente, pelo desejo e pelas frustrações. Mas posso, a
partir da literatura, fantasiar minha vida” (FUX, 2012, p. 16). O narrador faz com que se
oponham, nesse trecho, a vida — modelada pela morte — e a literatura — modelada pela
fantasia —, sob o comando da poetisa. A leitura do poema deu-lhe a forma — estética — de
escapar da angústia frente aos limites impostos à existência. É na fonte literária que ele bebe a
água da vida.
93
Nessa esteira, inúmeras experiências estão sob o viés literário, como a descrição do
relacionamento entre o narrador e Silvinha, em que, entre outras citações, encontramos
Drummond e Pessoa, ambos a dar àquela circunstância trivial ares de beleza inestimável: com
o poeta brasileiro, o inevitável encontro do amor — “Que pode uma criatura senão, entre as
criaturas, amar? Amar e esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar?” — e com o poeta
português, o receio de enfrentar o sentimento inevitável — “O amor é a exposição ao que
você próprio julga ridículo. Como todas as cartas de amor”.
Repetindo o “gesto arcaico do recortar-colar” (COMPAGNON, 1996, p. 41), o
narrador faz de sua experiência com o papel, tanto no ato da leitura quanto no da escrita, uma
forma de significação de si mesmo, garantia de ser ouvido e lido. Assim, a citação revela um
sujeito diferente daquele que a produziu em origem, o sujeito que usufrui da citação e a
transforma, identificável por esses recortes e os novos sentidos que a colagem produz. Além
disso, no caso do narrador de Antiterapias, evidencia-se alguém que, tendo no seu arquivo de
leituras literárias sua forma de reconhecimento e sendo um escritor, torna a literatura um
objeto de reflexão e de produção, como ilustra a passagem:
A poesia era o canto dos anjos para alcançar o coração das amadas. Eu cantaria a
poesia. E o canto poético encanta. Ulisses, para se preservar da sedução e feitiço das
Sereias, tapou seus ouvidos com cera. O canto das Sereias atravessava tudo, e os
homens apaixonavam-se perdidamente por elas. Menos Ulisses, o fiel. Acontece que
as sereias têm uma arma ainda mais terrível que seu canto. Seu silêncio. Na verdade,
nunca aconteceu. Mas é perfeitamente plausível imaginar que alguém se pudesse
salvar do seu canto. Do seu silêncio, certamente não. Nada de terreno pode resistir à
sensação de tê-las vencido com as próprias forças. À arrogância que, na sequência,
tudo derruba. A poesia muitas vezes é o silêncio. A falta da qual vem o desejo.
Através da minha poesia e, mais sabiamente, do meu silêncio, conquistaria (FUX,
2012, p. 48).
silêncio, que preenche seu estado pelas inúmeras referências e suas relações impossíveis de
serem desfeitas em seus novos sentidos.
No entanto, porque é preenchida com o registro de outras vozes, a verdade do narrador
é posta em xeque. E, como ele é um escritor, a verdade da literatura que escreve também se
torna questionável, pois, se a vida narrada é corriqueira, a ponto de ser recusada como valor
em si mesma, como poderia ser especial uma vida literária cujo teor renuncia ao seu próprio
dizer e se apropria do dizer de outros? Se toda e qualquer experiência é relatada pelo
espelhamento em obras, citadas em um turbilhão incessante, há que se questionar, não a
Literatura, mas o fazer literário do narrador que só é narrador-escritor porque foi/é leitor. Ele
mesmo põe em dúvida essa sua função:
Ainda outro útero me protegia. Ou deveria me proteger. Era bem maior, mais
amedrontador e compartilhado com muitas outras pessoas: a escola judaica. Todos
os alunos eram judeus e parcialmente gêmeos, já que tinham criações semelhantes.
Eu vivia numa proteção sempre exagerada e tinha esse sentimento de ser o escolhido
e o especial. Será que todos somos assim quando crianças ou só os jovens
judeuzinhos? As relações entre Stephen Dedalus e o seu colégio eram justamente o
oposto da minha relação com meu colégio. Mas ambos viraríamos artistas (talvez)
(FUX, 2012, p. 14).
A frase final do trecho deixa claro que o ofício do narrador é o de escritor. Entretanto,
o advérbio de dúvida, acentuado pela sua posição entre parênteses, enuncia certa falta de
convicção quanto ao seu exercício. A associação desse uso linguístico à intensa quantidade de
citações, ao excessivo amparo da escrita em outras obras, ratifica o perfil desconfortado do
narrador quanto à sua escrita.
Em outra circunstância, essa questão é ainda mais explicitada e ampliada, quando o
leitor-narrador-escritor de Antiterapias questiona se “a conversa de Riobaldo com Seu
Quelémem é verdadeira ou fantasiosa” (FUX, 2012, p. 52) e responde que se trata “de tentar
transmitir algo do impossível, de uma experiência atravessada de ponta a ponta, aproximando-
se de uma escrita ficcional” (FUX, 2012, p. 52). Como a citação é uma manobra de linguagem
feita pela própria linguagem, a pergunta e a resposta dadas constituem-se como uma operação
que une o gesto de leitura ao gesto de escrita, de modo que o narrador, como leitor, sujeite a
obra rosiana à sua reflexão, perscrutando-se quanto a seu papel de ouvinte de Riobaldo e “re-
escrevente” de Riobaldo. Dessa forma, exige que os leitores tanto de Rosa quando os dele
mesmo embrenhem-se na floresta da leitura literária, ampliando a pergunta para toda e
qualquer obra literária, inclusive a sua própria: seria a literatura algo verdadeiro ou
fantasioso?
95
faz parte do real? Transpor o lido para o escrito afasta o real? Escrever literatura é um ato de
falsário?
Essas perguntas desconfortantes, emergentes na obra, encontram resposta no fato de
que o narrador-escritor captura, “através do imaginário, verdades do real que não se dão a ver
fora de uma ordem simbólica”, de forma que a linguagem ficcional medeie o seu desconforto
diante da vida e diante da escrita:
O homem é assim mesmo. Vive com seu esquecer e lembrar. Com seus traumas e
alegrias. Com sua crueldade e poesia. Se Raskólnikov aqui chegasse, se ajoelharia. E
não seria para Sônia. Nem para o primo Levi. Ou para Himmler. Ele não se
ajoelharia para ti. Ele se ajoelharia para toda a miséria humana. É isso, sim, um
homem (FUX, 2012, p.53).
Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todos são parte do continente,
uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a
Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de
teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou
parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles
dobram por ti (DONNE, 2007).
O diálogo, do qual também faz parte Ernest Hemingway, com sua obra Por quem os
sinos dobram, contribui para o delineamento desse sujeito “citante”, que se alimenta da
literatura para sobreviver ante um mundo de agruras, um mundo não satisfatório, insuportável,
especialmente para o nosso narrador, por sua condição de judeu, sem conseguir se harmonizar
com a religião e sem encontrar nos desígnios da providência um conforto. Esse homem
desconfortado encontra na ficção a fuga, a compensação pelo que falta no mundo. Ocorre que
o desconforto persiste, pois a construção do mundo pelas palavras, uma reconstrução,
“empreende dizer as coisas como são, faltantes, ou como deveriam ser, completas. Trágica ou
epifânica, negativa ou positiva, ela está sempre dizendo que o real não satisfaz” (PERRONE-
MOISÉS, 1990, p. 104), questão anunciada nas epígrafes (“A arte existe porque só a vida não
basta”, de Ferreira Gullar; “A literatura não diz nada aos seres humanos satisfeitos com seu
destino, de todo contentes com o modo como vivem a vida. A literatura é alimento dos
espíritos indóceis e propagadora da inconformidade...”, de Mário Vargas Llosa, por exemplo).
Sendo assim, a literatura lida conseguiu preencher no narrador aquilo que precisaria ser
esquecido e, simultaneamente, tornou-se motivação para as lembranças virem à tona sendo
outras. Trata-se de um falseamento que lhe permitiu, como homem, esquecer-se de Aninha e
97
substituí-la por Silvinha, sem, no entanto, deixar de se sentir e “re-sentir” a dor e a doçura do
amor e do desencontro amoroso:
Talvez criar e referenciar os clássicos seja mais belo do que narrar somente minha
própria experiência. Não há crime aqui. Há resgate. O meu resgate. O falso resgate.
O único e possível resgate. Por isso me lembro. E rememoro com certa dor, pois de
fato minha memória engana: Silvinha, meu amor juvenil, que defendi dos dibouks
infantis, não era verdadeiramente Silvinha. Chamava-se Aninha (FUX, 2012, p. 53-
54).
Assim, o que o narrador anuncia, nas epígrafes, e o que constrói, no decorrer de seus
capítulos, é um apelo. Ele apela para as obras, em busca de amparo. Apela para o leitor, em
busca de aceitação. Inseguro na vida, inseguro na escrita, ele se ampara na palavra alheia para
assegurar o domínio da sua. Todavia, ao se apropriar do discurso alheio em estado intenso e
permanente, perturba o significado das citações e deixa seu próprio discurso perturbado,
perdendo-se nas fontes, sem conseguir discernir o que é seu e o que é do outro, conforme
ilustra a passagem:
Para fugir da dor, resolvi ser filósofo existencialista. Grande besteira. Essa pedra que
havia no meu caminho me derrubou. Eu não sabia que todos estes que aí estavam
atravancando meu caminho, eles passarão, eu passarinho. Eu ainda não era um
passarinho, mas passaria (FUX, 2012, p. 113).
em fuga do passado, exerce uma função além daquela de quem registra experiências, a de
escritor. Sob essa condição, ele faz das experiências um objeto estético.
O discurso do avô é o de quem viveu a Segunda Grande Guerra, vítima do nazismo
alemão. Após ser prisioneiro em Auschwitz, somente perambulou pela vida. Para esse
sobreviver apenas, e para suportar ter de viver, escreveu um diário de composição inusitada,
em forma de verbetes. Os verbetes parecem compactuar com a objetividade e a denotação
pertinentes ao gênero, pontos de inversão ao que seria condizente com um diário: “O verbete
leite, por exemplo, fala de um alimento líquido e de textura cremosa que, além de conter
cálcio e outras substâncias essenciais ao organismo, tem a vantagem de ser muito pouco
suscetível ao desenvolvimento de bactérias” (LAUB, 2011, p. 24).
No entanto, seu conteúdo promove desconfiança porque é algo inesperado, diferente
do que haveria nos registros de um imigrante — eles nada trazem que faça qualquer referência
ao fato de o avô ter vivido uma guerra, situação tão marcante, que dificilmente estaria fora das
memórias de alguém no decorrer de sua vida pós-campo de concentração, a exemplo de tudo
o que dramaticamente escreveu Primo Levi, em É isso um homem?, ou em qualquer outra
obra desse autor que se encarregou de denunciar, enquanto pôde, as atrocidades praticadas nos
campos de concentração da Alemanha nazista. Também nada trazem, nem uma referência
sequer, do cenário com que se depara ao chegar ao Brasil:
As primeiras anotações nos cadernos do meu avô são sobre o dia em que ele
desembarcou no Brasil. Já li dezenas desses relatos de imigrantes, e a estranheza de
quem chega costuma ser o calor, a umidade, o uniforme dos agentes do governo, o
exército de pequenos golpistas que se reúne no porto, a cor da pele de alguém
dormindo sobre uma pilha de serragem, mas no caso do meu avô a frase inicial é
sobre um copo de leite.
Aparentemente meu avô queria escrever uma espécie de enciclopédia, um
amontoado de verbetes sem relação clara entre si, termos seguidos por textos curtos
ou longos, sempre com uma característica peculiar(LAUB, 2011, p. 24).
[...] meu avô descreve que não há notícias de doenças causadas pela ingestão de
leite, que o porto é o local onde se reúne o comércio ambulante que trabalha sob
regras estritas de controle fiscal e higiene, e não é difícil imaginá-lo no cais, depois
de ter comido os últimos pedaços do pão endurecido que foi seu único alimento
durante a viagem, tomando seu primeiro copo de leite em anos, o leite do novo
mundo e da nova vida, saído de um jarro conservado não se sabe onde, como, por
quanto tempo, e em poucas semanas ele quase morreria por causa disso (LAUB,
2011, p. 25).
É possível assim entender o quanto a vida para o avô era algo muito mais que
desconfortável, era uma verdadeira tortura. A escrita às avessas ilustra isso: sem ironia, como
que trivialmente, ele vai relatando um cotidiano morno, com adjetivações exaustivamente
repetitivas, persistindo em ressaltar a higiene dos espaços, desde a pensão onde se hospedara
até o hospital em que seu filho nascera. Também em ressaltar a gentileza e a organização das
pessoas que transitavam nesses mesmos espaços. Essa hiperbólica persistência traduz um
intenso sofrimento no ato de escrever, uma tentativa inútil de se desviar das lembranças.
Trata-se de uma escrita falsa, dolorosamente falsa, desconfortável, de alguém que quer ser um
bom fingidor, mas só consegue fingir minimamente; ele sente, mesmo, a dor que deveras
sente. Por isso não convence, conforme reflete o narrador-escritor: “As memórias do meu avô
podem ser resumidas na frase como o mundo deveria ser” (LAUB, 2011,p.146). Por isso,
relata:
Meu avô não gostava de falar do passado. O que não é de estranhar, ao menos em
relação ao que interessa: o fato de ele ser judeu, de ter chegado ao Brasil num
daqueles navios apinhados, o gado para quem a história parece ter acabado aos vinte
anos, ou trinta, ou quarenta, não importa, e resta apenas um tipo de lembrança que
vem e volta e pode ser uma prisão ainda pior que aquela onde você esteve(LAUB,
2011, p. 8).
21.
É tentador dizer que a reação do meu pai ao ler os cadernos influenciou a maneira
como ele passou a tratar não só do judaísmo como de todas as outras coisas: a
memória do meu avô, o casamento com a minha mãe, o convívio comigo em casa, e
como não cheguei a conhecê-lo de outro jeito, porque ele nunca se mostrou para
mim de outro jeito, é claro que também acabei arrastado por essa história(LAUB,
2011, p. 32-33).
[...]
12.
Meu avô nunca falou sobre Auschwitz, e restou ao meu pai mergulhar naquilo que
Primo Levi escreve a respeito: os homens que mijam enquanto correm porque não
há permissão para ir ao banheiro durante o expediente em Auschwitz [...] (LAUB,
2011, p. 80-81).
102
Digna de compaixão é a cena em que se verifica a comoção que sentiu o filho desse
autor primeiro de diários inversos, quando, aos 14 anos, ouviu o estampido do tiro suicida do
pai; arrebentou a porta do escritório onde estava o prisioneiro da vida (desde a Segunda
Grande Guerra), das palavras (desde que começou seu diário); correu em direção à mesa onde
o corpo estava caído; encontrou o mesmo silêncio sepulcral que ouvia do pai desde sempre.
Digna de compaixão é a cena em que se agrava a comoção que sentiu ao ler, mais tarde, o
diário às avessas do pai, em cujas linhas constava esse leitor:
Meu avô segue discorrendo sobre o bebê ideal, os cuidados com o bebê ideal, a
relação de um pai com o bebê ideal, uma criatura pequena e autônoma que não
chora no meio da noite e não tem doenças tais como hepatite e resfriados, e o
espanto da leitura é pensar que o volume escrito chega a dezesseis cadernos, cada
um com cerca de cem páginas, cada página com trinta e uma linhas, vinte e oito de
altura por dezenove de largura, preenchidos por uma prosa que não deixa dúvidas
sobre como o meu avô lidava com suas memórias (LAUB, 2011, p. 46-47).
O impacto sofrido ante o suicídio do pai, a leitura dos diários inversos, o desamor que
perpassou as relações parentais, tudo isso determinou os rumos que o jovem tomaria: ele seria
um judeu comprometido com o passado sofrido de seu povo e seria um pai que ensinaria seu
filho a ser um judeu comprometido com o passado sofrido de seu povo. Para entender o lado
direito dos diários que estavam sobre a escrivaninha do escritório, leu É isto um homem?, de
Primo Levi, que passaria a ser sua orientação de vida, situação narrada pelo narrador-escritor:
Lembro de um apenas, É isto um homem?, que ele leu numa edição importada,
porque ele vivia repetindo as descrições sobre o funcionamento de um campo de
concentração, as noites em que Primo Levi dormia dividindo a cama com um
relojoeiro, as histórias sobre números altos e baixos, tarefas, uniformes,
sopa(LAUB, 2011, p. 41).
mesmo que não concomitantemente aos fatos. Uma dessas circunstâncias foi a percepção de
que seu filho, apesar de ter sido criado sob a égide da história do holocausto, foi capaz (como
seria capaz qualquer outro homem) de cometer uma atrocidade — cometer a crueldade de
deixar um colega quedar-se ao chão — de nível tão miserável quanto teria feito um nazista.
Oriunda disso, também a percepção de que ele mesmo (como qualquer outro homem) seria
capaz de cometer atrocidades de nível tão miserável quanto teria feito um nazista — bater em
um filho violentamente. Outra circunstância foi a que lhe dimensionou a força inexorável do
tempo. Tendo sido diagnosticado com Alzheimer, entendeu que precisaria de algo premente
que desfizesse a aliança com a o diário encontrado sobre a escrivaninha, que fosse o retrato ao
contrário da obra de Primo Levi, algo que fosse o elo para a vida, entre si e seu filho, uma
forma de dizer o nunca dito, ser a interdição do silêncio e dos mal-entendidos:
Quanto tempo falta para esse dia chegar? O dia em que ele não comerá mais
sozinho. E não tomará banho sem ajuda. E não saberá mais a hora de ir ao banheiro.
E precisará ser limpo, e vestido, e sentado numa poltrona, e posto na cama, e passará
o tempo balbuciando o nada para que ninguém ouça, e se ninguém pode dizer com
certeza quando isso vai acontecer é possível que para o meu pai o alarme tenha
soado, e ele saiba que é hora de fazer o que precisa ser feito e dizer o que precisa ser
dito, e eu credito a isso o fato de ele ter me enviado o primeiro arquivo com as
memórias (LAUB, 2011, p. 144).
Para que se entenda essa questão, é preciso que nos voltemos para a vida do narrador-
escritor.
O discurso agora em estudo é, a princípio, duplamente qualificado. Trata-se de um
neto-filho, genealogia da qual ele não consegue escapar: é fruto da desolação do avô e da
obstinação do pai, rejeitando a história vivida pelo primeiro e absorvida pelo segundo,
entendendo-se um outro (ou o outro) em relação a eles. E isso é o que é encenado: um escritor
que atua como narrador em primeira pessoa, narrando sua antissaga. Assim, são encenados, de
forma entrelaçada, o relato de uma experiência pessoal e de experiência estética.
Tentando dar conta de sua tarefa, o narrador-escritor nos apresenta a trama em blocos
cuja estrutura revelaria, a princípio, apenas uma hierarquia familiar. Porém, a leitura dos
segmentos prova que há mais que isso, há uma ascendência de ações e sentimentos, do avô ao
neto. Isso se dá sob uma organização formal em três partes: Algumas coisas que sei sobre o
meu avô, Algumas coisas que sei sobre o meu pai, Algumas coisas que sei sobre mim, Notas
(1), capítulo que fecharia uma primeira parte e abriria a segunda; Mais algumas coisas que sei
sobre o meu avô, Mais algumas coisas que sei sobre o meu pai, Mais algumas coisas que sei
sobre mim, parte encerrada com Notas (2), Notas (3), que também anunciam a terceira; A
104
queda e O diário, que fecham a obra, retomando o título, separando as palavras que o
compõem e invertendo-as significativamente. Essa estrutura permite perceber uma tentativa
árdua do narrador-escritor de pôr sob domínio, de racionalizar, ter sob controle não só o ato
de narrar, mas o ato de narrar as condições de três existências conturbadas e excessivamente
dolorosas, todas necessitando da escrita, no entanto, concomitantemente, questionando o valor
da sua matéria de escrita. Ocorre que, no caso do protagonista, a suspeição sobre a escrita
alcança um campo onde os outros personagens não transitam, o da própria produção literária:
Eu também não gostaria de falar desse tema. Se há uma coisa que o mundo não
precisa é ouvir minhas observações a respeito. O cinema já se encarregou disso. Os
livros já se encarregaram disso. As testemunhas já narraram isso detalhe por detalhe,
e há sessenta anos de reportagens e ensaios e análises, gerações de historiadores e
filósofos e artistas que dedicaram suas vidas a acrescentar notas de pé de página a
esse material, um esforço para renovar mais uma vez a opinião que o mundo tem
sobre o assunto, a reação de qualquer pessoa à menção da palavra Auschwitz, então
nem por um segundo me ocorreria repetir essas ideias se elas não fossem, em algum
ponto, essenciais para que eu possa também falar do meu avô, e por consequência do
meu pai, e por consequência de mim (LAUB, 2011, p. 9).
Dessa forma, embora nada haja nas experiências que valha ser narrado, o protagonista
narra, alinhavando aquilo que em existência já é alinhavado, a história do avô à do pai e à de
si mesmo, entretanto, usando, como fio, sua própria palavra estética, que abarca e incorpora as
outras duas encontradas em dois diários. Com elas, arranja um outro texto, o seu, este
assumidamente um diário desde o título da obra. Sendo assim, a separação indicada pelos
títulos do que seriam capítulos é algo enganoso para o próprio narrador-escritor, pois, por
mais que queira segmentar as experiências, não consegue fazê-lo, pois elas são
interdependentes. A exemplo, em “Algumas coisas que sei sobre meu avô”, há “coisas”— e
muitas e importantes —sobre as duas gerações subsequentes, literal e metaforicamente
consanguíneas, que dizem respeito uma à outra. São existências subordinadas, cujo elemento
conector é a experiência do próprio narrador, um fio de remorso que alinha desencontros e
encontros.
O discurso do filho, nosso narrador, é o de quem escreve sobre seu avô, seu pai e sobre
si mesmo, refazendo os trajetos dos personagens para fazer o seu, em um processo de escrita
desconfortante e desconfortável. Cada um deles teve um terrível leitmotiv de vida, de leitura e
de escrita: para o avô, a vivência da Guerra e a chegada ao Brasil propiciam os verbetes, seu
modo de ir morrendo, ante a impossibilidade de se viver pós-guerra; para o pai, uma verdade,
proporcionada pelo comportamento transgressivo de seu próprio filho e de si mesmo e ainda
pela certeza da demência, desvia-o do rumo direcionado pela leitura dos verbetes do seu pai e
105
da obra É isto um homem?, de Primo Levi, promovendo nele uma nova visão de mundo, um
modo de viver e não morrer; para o narrador-escritor, a leitura (observação, entendimento,
compreensão, interpretação, comparações, associações, inferências) de tudo isso associada à
participação em um grave delito propicia sua escrita, apenas um modo de viver. As
experiências de vida e de escrita do avô e do pai são carregadas de sofrimento e incidem
intensamente sobre o narrador-escritor, arrastando-o para uma situação de consciência da
existência dominada pela consciência da escrita. Escrever tomado por tantas dores é um ato de
muita dor.
História sobre histórias e dentro de histórias, a narrativa de si mesmo pauta-se na
seguinte pergunta: como um indivíduo se torna aquilo que é? Em se tratando de um escritor, a
pergunta se ajusta: como um escritor se torna aquilo que é, um escritor? Em se tratando de um
narrador-escritor, a pergunta se amplia: qual é a matéria narrativa digna de ser narrada?
A resposta que o narrador nos dá às duas primeiras perguntas é a de que um escritor
assim se torna mediado por toda uma herança de experiências, pela memória dolorosa daquilo
que arrasta a pessoa para a escrita. Ele nada é sem essas experiências, que são a causa e o fim
de sua condição de escritor. Na página 146, capítulo “O Diário”, o narrador nos afiança:
As memórias do meu avô podem ser resumidas na frase como o mundo deveria ser,
e daria até para dizer que as do meu pai são algo do tipo como as coisas foram de
fato, e se ambos são como que textos complementares que partem do mesmo tema, a
inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e lugares, o meu avô,
imobilizado por isso, o meu pai conseguindo ir adiante apesar disso, e se é
impossível falar sobre os dois sem ter de também firmar uma posição a respeito, o
fato é que desde o início escrevo este texto como justificativa para essa posição
(LAUB, 2011, p. 146).
A terceira pergunta tem como resposta a própria experiência, matéria posta em xeque,
tendo em vista que o que conta envergonha, é uma sombra que não o abandona — a queda de
um colega planejada por ele e outros da mesma turma:
vértebra, teve de ficar de cama dois meses, usar colete ortopédico por mais
alguns meses e fazer fisioterapia durante todo esse tempo, tudo depois de ter
sido levado para o hospital e a festa ter se encerrado numa atmosfera geral de
perplexidade, ao menos entre os adultos presentes, e um dos que deveriam ter
segurado esse colega era eu (LAUB, 2011, p. 10-11).
Contar essa história é recair num enredo de novela, idas e vindas, brigas e
reconciliações por motivos que hoje parecem difíceis de acreditar, eu no fim da
oitava série achando que João era o responsável pelos desenhos de Hitler, o traço em
si ou a ordem para que alguém os fizesse... (LAUB, 2011, p. 86).
que escreve com uma finalidade pessoal, burlando verbetes e realidades, para fugir da falta
que foi sua vida. Não há nessa fraude nenhum afeto ou encantamento. Seu olhar é o de quem
passou a enxergar a miséria humana, sofrendo por deixar ao mundo o legado de sua miséria; o
pai é a figura que reconstrói a autoria, como aquele que leu, soube como as coisas foram de
fato, assumiu como herança os efeitos desse conhecimento e escolheu da escrita uma forma de
reflexão. O filho é a figura que conta essas “histórias de reavaliação da própria vida numa
situação-limite, como se a perspectiva do fim de alguém próximo nos fizesse ver o quanto
tudo o mais é desimportante” (LAUB, 2011, p. 32), incomodado com seu estatuto de escritor.
Ele, sua vida, desconcertados, porque, além de ter vindo a um mundo desconcertado,
contribuiu para o desconcerto. Escrever/narrar isso torna-se algo também desconcertante.
As cinco obras estudadas neste capítulo nos permitem ouvir vozes com
intencionalidades e estratégias estéticas diferentes daquelas que pertencem ao corpus da
tradição, conforme exemplos brevemente tratados por nós no capítulo inicial — Dom
Casmurro, de Machado de Assis; São Bernardo, de Graciliano Ramos; Grande sertão:
veredas, de Guimarães Rosa; e Água viva, de Clarice Lispector.
Em Fuks (2011), Brito e Mello (2009), Buarque (2003), Fux (2012), Laub (2011),
vimos que as maneiras de compor essas vozes ilustram um novo tratamento dos sujeitos que
falam na ficção, o que exige novas reflexões. Estamos encontrando nessas obras um
movimento estético na literatura contemporânea cujos narradores: a) põem em cena a escrita
literária; b) tratam da função de escrever, almejando ou rejeitando o papel de escritor e/ou
sendo o próprio escritor e/ou acompanhando-o, com aderência; c) são constituídos no campo
do conflito, insatisfeitos especialmente consigo mesmos nessa condição de sujeitos partícipes
da encenação da escrita.
Assim, com variações comportamentais, os narradores têm dois aspectos em comum:
são desconcertados, e é da sua relação com a escrita que emana esse desconcerto. Assim, essa
composição encena a desestabilização da autoria e, por conseguinte, da voz narrativa.
Trata-se, assim, de construções scriptocêntricas, protagonizadas pelas relações entre
as vozes discursivas narrador e escritor, em movimentos narrativos que promovem
questionamentos sobre a escrita, a narrativa e a (des)vinculação entre esses papéis, também
108
configurados em personagens. Nas obras, o narrador, por vezes, deseja não fazer movimentos
nem tomar posições que lhe permitam atuar como gerenciador da narrativa, insistindo em não
querer fazer os movimentos, mas acabando por não controlar a si próprio (é o caso do
narrador de A passagem tensa dos corpos e de José Costa, em Budapeste), ou não consegue
fazê-los (é o caso do narrador de Procura do romance, impedido de dar continuidade ao
enredo pela impotência do personagem-escritor), ou sobrevivendo às custas de discursos
outros (é o caso do narrador de Antiterapias), ou escrevendo sobre algo que rejeita (é o caso
do narrador de Diário da queda). Com inclinações diferentes daquelas que ocorrem nas obras
clássicas brasileiras analisadas inicialmente, cujos narradores, embora expressando
desconforto, demonstram sentir que têm o que contar, nessas quatro obras paira a pergunta: o
que narrar? Em virtude dessa questão é que a figura do autor se manifesta também
desconfortada.
Comportamentos assim presentes e com feições distintas entre si consolidam um perfil
da categoria narrador com outras propensões, porque o contado se dá sob o prisma do
desordenamento, traduzido por doses de instabilidade, ora em primeira, ora em terceira
pessoa, ora também sem que estejam delimitadas essas pessoas do discurso, sem que
nenhuma delas atue confortavelmente. São vozes preocupadas com seu fazer literário,
duvidosas de sua eficiência, receosas de sua capacidade, insatisfeitas nessa sua condição.
Tudo isso revela a existência da sensação de desalojamento tanto dessa entidade social
encenada nas obras, o escritor, quanto dessa entidade ficcional, o narrador.
Benjamin, em seu ensaio “O autor como produtor”, faz reflexões sobre a autonomia do
autor, “sua liberdade de escrever o que quiser” (BENJAMIN, 1987, p. 120). Afirma que a
situação social contemporânea [a Benjamin] forçaria o autor a decidir em favor de alguma
causa em função da qual ele colocaria sua atividade, o que se manifestaria por uma tendência
compromissada com a correção de algum viés político, mas sobremaneira com essa correção
sob o ponto de vista literário. O escritor teria um lugar na luta de classes, determinado em
função de sua posição no processo produtivo. Essa associação entre sistema social e autoria
qualificaria o exercício do autor e o engajaria em seu tempo, por exatamente questionar o que
esse tempo trazia como norma. Essa posição solidificava a autoria, dando-lhe uma condição
social inestimável.
Ora, o processo produtivo do final do século XX e início do século XXI se orienta
para rumos muito diferentes, dominado pela massificação, de maneira que os sujeitos não dão
importância ao fluxo da história, e nem a história dá lugar a sujeitos para que atuem no
sistema social significativamente. Ocorre a promoção de um deslocamento para sua condição
109
individual, sem grandes significâncias, no que se enquadrariam também o escritor e sua área
de discurso, a literatura. Essa situação está presente nas obras em estudo, sem que, no entanto,
haja uma simples acomodação a ela. Expressões de desconforto dão novo enquadramento aos
sujeitos literários.
Schøllhammer, em sua obra Ficção brasileira contemporânea, afirma que
Sob esse prisma é que se colocam as vozes discursivas das obras em estudo. A
estratégia dominante de estarem voltadas para si mesmas desconfortavelmente é o ângulo pelo
qual expressam algo que nega essa lógica do tempo presente.
A discussão sobre a autoria emerge então sob novos vieses estéticos. O conjunto de
obras que estamos estudando, por exemplo, formalmente, expõe um novo olhar, desviado de
grandes projetos e explicitando-se pouco confortável em meio a isso. Não há, é certo (e
conforme convém a esse tempo “pós-utópico”) (CAMPOS, 1997, p. 243-269), o tom da
denúncia, nem da angústia, nem da ironia rascante, entretanto, os exemplos até aqui estudados
revelam ações de desconcerto, passando pelo aflitivo desnorteamento de um narrador que é
uma língua até um outro cuja existência é constituída de vozes alheias. Essa peculiaridade se
apresenta em doses e amostragens diferentes de conflito.
Trata-se, por meio de variações de técnicas narrativas, da intencionalidade de
tematizar o estatuto do escritor e o do narrador. A atuação dessas categorias, nas obras em
estudo, revela que, nas suas respectivas realidades, a da vida e a do papel, elas não se
sustentam, sendo algo afiançado pela realidade do mundo contemporâneo, mas não avalizado
na ficção. A forma de expressar isso é a construção desses sujeitos desestruturados, incapazes
de saber o que narrar, que ilustram e põem em questão, portanto, essa incapacidade em
relação a si mesmos e à literatura. Não se percebe, assim, que estejam acomodados a essa
situação, que estejam ajustados a esse desvalor. Embora não se mostrem inconformados,
revoltados ou dilacerados, são inadaptados a essa condição. E é essa inadaptação que se
realiza nesses papéis, sem que haja, no entanto, uma reação a isso de forma a desviar esse
curso.
110
Conforme vimos no segmento inicial deste capítulo, o século anterior mata a sensação
do devir que acompanhou o homem moderno. Antes, as obras simulavam esse devir. Nas
obras contemporâneas em estudo, simula-se aquilo que o mundo contemporâneo oferece:
inseguranças e fragilidades. Não é estranho, portanto, que essa insegurança e fragilidade se
verifiquem quanto ao reconhecimento social da literatura e do escritor. Entretanto,
esteticamente, há um discurso sobre isso, de tal forma que fica evidente haver aí uma
problematização.
Segundo José Castello,
[...] afastados até mesmo de suas mais íntimas certezas, os narradores do século XXI
se veem obrigados a repensar seu poder de narrar. Fragmentado e fluido, o mundo
contemporâneo os tirou do centro do palco e os empurrou para um recanto obscuro e
marginal. Já não conseguem nem ver direito nem descrever em paz. Tudo o que lhes
resta é recolher as sobras de um mundo que acabou e, a partir delas, inventar, como
for possível, um novo presente (CASTELLO, 2012, p. 17).
[...] os discursos “literários” já não podem ser recebidos se não forem dotados da
função autor: perguntar-se-á a qualquer texto de poesia ou de ficção de onde é que
veio, quem o escreveu, em que data, em que circunstâncias ou a partir de que
projecto. O sentido que lhe conferirmos, o estatuto ou o valor que lhe
reconhecermos dependem da forma como respondermos a estas questões. [...] O
anonimato literário não nos é suportável, apenas o aceitamos a título de enigma
(FOUCAULT, 2012, p. 49-50).
111
insegura autoria. São vozes, enfim, que cumprem o papel de forma que “é a fragilidade, e não
a consumação de uma plenitude ou a superação de limites, que se apresenta como base da
necessidade de um discurso narrativo” (GINZBURG, 2012, p. 210).
Essas vozes desconcertadas assim se manifestam em outros aspectos, como na
necessidade de errância e de discursar sobre a (im)potência para (des)construir/(des)envolver
a trama, conforme veremos nessas mesmas obras e em outras que vão compondo nossa
matéria de estudos. E os aspectos constituem um todo autorreferencial, um processo
metaficcional, sobre o qual nos deteremos no quarto capítulo.
113
3 ERRÂNCIA, UM ESTADO
fuga intencional para descobrir-se, em espacialidades, nos (des)caminhos que lhe são postos
discursiva e esteticamente. Apropriando-nos da fala da estudiosa, é possível dizer que as
vozes presentes nas obras em estudo expõem a estranheza que há em si mesmas, por vezes
reconhecendo-a, por vezes não as reconhecendo, mas com a coragem de se mostrarem ou se
dizerem desintegradas sem se perseguirem, de forma a ser essa a forma encontrada para se
acolherem nesse estranhamento de si (KRISTEVA, 1994, p.201).
Tratando do quadro, faremos a descrição das andanças dos atores nos romances em
estudo, de forma a revelar, trazer à tona, as relações que o detalhamento dessas andanças
promove.
Franco Moretti, em sua obra Atlas do romance europeu (2003), estuda obras europeias
que lhe permitiram perceber duas funções exercidas pelo espaço. A primeira delas realça
oortgebunden— “literalmente traduzido por preso, ligado ou vinculado ao lugar” —
(MORETTI, 2003, p.15,nota de rodapé), que seria “a natureza espacial das formas literárias:
cada uma delas com sua geometria peculiar, suas fronteiras, seus tabus espaciais e rotas
favoritas” (MORETTI, 2003, p.15). A segunda traz “à luz a lógica interna da narrativa: o
domínio semiótico em torno do qual um enredo se aglutina e se organiza” (MORETTI, 2003,
p.15). Isso significa que uma força externa e outra interna dão a forma literária ao texto, o que
põe em evidência a interação entre sociedade e literatura. Assim Moretti nos ensina que a
percepção da geografia pela qual transitam as vozes estéticas muda nossa maneira de
apreender o objeto literário.
Usufruindo ainda das reflexões do ensaísta, com base na fala dos cartógrafos, de que
um mapa vale mais que mil palavras (MORETTI, 2003, p. 14), é por meio do mapeamento
que vamos acompanhar o estado de pensamento das vozes discursivas. Não se trata de
protagonistas cujo percurso é apenas decorativo. Pelo contrário, seus movimentos externos
ilustram seu interior, havendo motivações para a construção do onde, do por onde,do aonde.
A busca dessas motivações nos leva a perceber como os espaços configuram-se como
estratégia reveladora de um segmento da literatura contemporânea brasileira, cuja forma se
alicerça no deslocamento, na impossibilidade da fixidez, mais uma marca de desconforto. Nos
trajetos há ainda detalhes que contribuem para a revelação das sensações por eles vividas.
É assim que ocorre, esteticamente, o que parece ser uma incongruência: a geografia
que constitui o alicerce da forma narrativa dessas obras se apresenta errante, perdida,
desestabilizada, diferentemente do alicerçamento das personagens nas obras sobre as quais
tratamos no capítulo 1 deste trabalho: em São Bernardo, o latifúndio, fixo, determinado, fixa
e determina a modelagem de Paulo Honório; em Dom Casmurro, construir uma casa nos
115
“O espaço constitui uma das mais importantes categorias da narrativa, não só pelas
articulações funcionais que estabelece com as restantes categorias, mas também pelas
incidências semânticas que o caracterizam”. Assim se inicia a conceituação do verbete
“espaço”, no Dicionário de narratologia (REIS; LOPES, 1987, p.129), anunciando a
relevância da categoria para os efeitos de sentido gerados na construção da obra literária.
Georg Wink (2015), em seu artigo “Topografias literárias e mapas mentais: a sugestão
de espaços geográficos e sociais na literatura”, entende que o espaço acolhe a ação e o
116
Uma consideração sobre isso, apontada por Brandão e que interessa a nossos estudos,
está nas ciências sociais, com a proposição de Edward W. Soja, que põe em questão “a
primazia derivada do preceito de que o espaço é mero cenário para o desenrolar do tempo”.
Conforme o autor, a pós-modernidade se caracteriza pelo projeto de “abrir e recompor o
território da imaginação histórica através da espacialização crítica”, projeto que corresponde à
reversão da tendência, dominante nas análises sociais em vigor no século XIX, “de privilegiar
o tempo e a história em detrimento do espaço e da geografia” (BRANDÃO, 2013, p.20).
Percorrendo esse viés, Brandão faz alguns estudos nos quais insere o conceito de
espacialidade distinto de espaço, ou seja, que não diz respeito
[...] pode ser abordado não como uma categoria de base, determinante de outras
categorias, mas como resultante, como um efeito; a momentânea cristalização de
processos em estados (que podem se revelar em graus de incerteza maiores ou
menores) (BRANDÃO, 2013, p. 180).
Por serem conceituados como efeitos de deslocamentos, em seu cerne estão as noções
de movimento e de tempo.
Os três modelos se cruzam, sobrepõem-se, acoplam-se, de tal forma que “o espaço tátil
pode tender a se desmaterializar, tornando-se impalpável, preferencialmente só movimento”
(BRANDÃO, 2013, p.181), o que não significa algo em harmonia, pois o terceiro modelo
coloca em questão a própria noção de matéria:
Ainda nessas considerações sobre espacialidade, Luís Alberto Brandão reflete sobre
espaços extratextuais, que são aqueles geograficamente postos, de existência comprovada ou
não, os quais se manifestam sob a égide da transgressão. Para tecer essas considerações,
Brandão usufrui das ideias de Foucault, que indaga “pela vocação ‘heterotópica’ da literatura,
ou seja, [a perguntar] em que medida, na operação representativa — e mantendo um horizonte
de reconhecimento — os espaços extratextuais podem ser transfigurados, reordenados,
transgredidos” (BRANDÃO, 2013, p. 66). Essas estereotipias, Brandão cita o filósofo francês,
“impossibilitam o ‘lugar-comum’, dessecam o propósito, estancam as palavras nelas próprias,
contestam, desde a raiz, toda possibilidade de gramática; desfazem os mitos e imprimem
esterilidade ao lirismo das frases” (FOUCAULT apud BRANDÃO, 2013, p. 66).
Isso significa que o relevante não é a descrição de espaços pela autoria e assim
captados pelo leitor, mas a construção da “proposição”(BRANDÃO, 2013, p. 66) deles, da
demonstração da finalidade a que eles vêm, que quadro delineiam, o que pode se dar por meio
de estratégias que destoam, subvertendo o espaço em sua condição tradicional:
O prisma com que se analisa a espacialidade sai, por essa condição de análise
foucaultiana, de sua cristalização, e ela fica perceptível sob outras condições, agora
tensionadas pela transposição feita pela autoria do espaço real para o espaço de representação.
Essa representação se desloca do ordenado, constituindo sua existência no espaço da
linguagem. Trata-se de uma construção desconfortável porque não está no real (costumeiro,
previsível) nem na utopia (consoladora porque está no limiar do maravilhoso). Está nas
heterotopias, espaços de não acolhimento, desviantes da linha definida da linguagem:
Como?
Quem usa é porque perdeu a inocência. Igual à história da maçã.
Penso um pouco. Entendo o que ela quer dizer com a maçã. Tudo muda depois que
se experimenta (LUNARDI, 2011, p. 9).
O diálogo inicial entre uma voz mais infantilizada, orientada por uma outra mais
experiente, significativamente anuncia o alojamento da narrativa na discussão sobre espaço,
revelando a correspondência entre essa categoria e uma sensação de estranheza, deflagrada na
infância, perpetuada por uma vida de errância orientada pela figura paterna. Esse trajeto
instável e esse sentimento de rompimento norteiam a vida das narradoras, que tentarão se
desvencilhar deles — inutilmente, porque as circunstâncias (o que faz mudar a vida, segundo
a irmã mais velha) as perseguirão, de tal forma que a busca pela estabilidade propiciada pela
permanênciaem um espaço, a busca pela impressão de segurança, será algo sempre e também
à deriva. Suas tentativas vãs de lançar raízes funcionam como pinçadas de espaços nos
espaços mutantes: um quarto, uma barra de ferro, uma oficina mecânica, um recorte na
paisagem, uma biblioteca, um livro... A questão é belamente exposta pela reflexão linguística,
quando a irmã mais velha reveste de existência o valor semântico da classe gramatical que
explicita as circunstâncias:
Vou atrás. Preciso descobrir o momento exato em que a infância termina. Tanto
peço, tanto insisto, que ela acaba revelando.
Os advérbios.
Como?
Quem usa é porque perdeu a inocência. Igual à história da maçã (LUNARDI, 2011,
p.9).
Como se pode perceber, a narradora mais nova toma conhecimento de sua estranheza e
da estranheza de sua família a partir da percepção da primeira mudança de cidade, uma
circunstância que relaciona tempo e espaço. E, embora a protagonistanegue a relação entre
mudar de cidade e passar a ter esse entendimento, ela acaba por se contradizer, pois é no uso
próprio do advérbio com feição dupla — uma oração adverbial temporal, cuja composição
tem a ver a questão espacial (“ao mudar de cidade, da primeira cidade, quero dizer”
(LUNARDI, 2011, p.9)) — que se constitui a explicação para a caçula: quando alguém usa
essa classe gramatical, a dascircunstâncias, é sinal de que passa a ter consciência dos fatos,
saindo, então, da infância. A compreensão da vida conforme as particularidades, revivida
pelas palavras, é o que, segundo a irmã mais velha, promove a consciência da situação vivida,
ou seja, promove a maturidade. O uso dos advérbios é comparado então ao mítico ato de
122
[...] de resto, só o presente contava. E o presente era uma biblioteca por arrumar, o
trabalho de remover livro a livro pela lombada, abrir a capa e soprar um pouco de ar
no miolo. O presente era quebrar a cabeça em como acomodar Dom Quixote e O
últimoleitor no mesmo espaço... (LUNARDI, 2011, p.13).
123
O dimmer, até então regulado para abrandar a intensidade das lembranças, andava
agora no sentido anti-horário, doido para chegar ao início dos tempos, antes do Fiat
lux separar escuridão e claridade, a nebulosa com a qual, confesso, mantive
intimidades bastante perversas, dessas difíceis de enjeitar depois que se experimenta.
O único passado que me interessava, porém, estava naquelas páginas escritas há
cem, duzentos, quinhentos anos, pelas quais tenho o respeito das coisas que não
mudam, que não precisam mudar (LUNARDI, 2011, p.13).
a capacidade de ver o tempo, de ler o tempo no todo espacial do mundo e, por outro
lado, de perceber o preenchimento do espaço não como um fundo imóvel e um dado
acabado de uma vez por todas, mas como um todo em formação, como
acontecimento; é a capacidade de ler os indícios do curso do tempo em tudo,
começando pela natureza e terminando pelas regras e ideias humanas (até conceitos
abstratos) (BAKHTIN, 2006, p. 225).
tempo, mas por algum motivo guarda similitude com o cenário caótico dos romances mal
empilhados que coalham o chão” (LUNARDI, 2011, p.14).
O primeiro espaço — um quarto de livros em arrumação, portanto, a representação de
uma tentativa de cosmo — é substituído por uma romaria de espaços, todos trazidos pela
memória, puxados por aquele telefonema. A construção desse fio de espaços se dará em
movimentos de flashback, mas por uma memória que não é só sua, vindo à tona pela voz da
irmã mais nova, o que é um recurso estético para demonstrar a instabilidade das narradoras.
Constrói-se um ir-e-vir, com a presença de um passado itinerante e um consequente presente
sempre em busca da estabilidade. A voz narrativa enunciada no presente se entrelaça à voz
narrativa da irmã mais nova, com quem experienciou o passado, de tal forma que o olhar
sobre o espaço vivido pareça ser uma ação presente, um “agora eu era...” buarqueano. Trata-
se da observação, emocionada, dos movimentos espaciais vividos em compartilhamento entre
irmãs, um horizonte no sentido contrário. O olhar presente se guiará, desconfortavelmente,
involuntariamente, mas de maneira premente, pela infância e adolescência sempre em
trânsito, junto com o olhar de sua mana, de tal forma que ambas se reintegrarão aos cenários,
promovendo um filme narrado de acordo com as circunstâncias, às vezes em tom infantil, às
vezes em tom adolescente,de uma outra voz discursiva carregada de uma dor que transpõe sua
própria experiência para ser acoplada à da protagonista, de tal forma que somente sutilezas
permitem distingui-las. Os olhares de ambas, as experiências por vezes assemelhadas, faz os
espaços revisitados por ambas.
A protagonista, então, sai daquele cenário quarto de livros-ilha e se leva, acoplada à
voz discursiva da irmã, para cenários do passado. O primeiro deles, onde ocorre um diálogo
entre elas, uma discussão sobre a cor de um espaço, um quarto: verde?, cinza?. Ele fora antes
branco, rosa, lilás, areia. Essa mutação de cores está inserida (e é reveladora de) em outra
mudança, de uma cidade para outra, agora Antares, agora Rio Rasinho, agora de novo
Antares, espaços onde, como em quaisquer outros, se verificará uma matrioska de espaços,
insistentemente descritos: cidades, ruas, casas, cômodos, escolas, paisagens, em detalhes
obstinadamente apresentados em formas.
Assim, dentro da cidade, há uma casa, dentro da qual há uma cozinha, um quarto e
uma sala. Nos subespaços, há minúcias, apresentadas como em uma fotografia em cujo
interior estranhamente tudo se movimenta: os mesmos móveis, tapete e utensílios adquirem
novo perfil a cada mudança, encolhendo-se ou tomando dimensões maiores, de acordo com a
provisoriedade espacial, de maneira que a aparência das coisas fica subvertida, embora elas
sejam as mesmas, o que impede a sensação de equilíbrio:
125
O melhor de trocar de cidade era ver a posição dos móveis na nova casa. As
poltronas, que antes faziam os joelhos tocarem nos joelhos de quem estava à frente,
acomodam confortavelmente agora as pernas espichadas de um mamulengo. O sofá
perdera o jeitão de cafajeste espaçoso a meter os ombros sobre as frágeis mesinhas
de apoio para se transformar numa morsa isolada e sem presas. O tapete,
infelizmente, parecia ter encolhido na lavagem. Porque mudávamos muito, era bom
evitar tudo que necessitasse de pregos. Uma parede lisa, imaculada, consiste no ideal
doméstico de uma família mutante [...] Objetos, sim, são o melhor amigo que se
pode ter, de preferência portáteis, dobradiços, que caibam em malas e, melhor
ainda, na palma da mão (LUNARDI, 2011, p.17, grifo nosso),
Ocorre dessa forma uma dinâmica no desenrolar da vida, de lugar em lugar, mas isso
se dá de forma paradoxal, pois, embora haja uma dinâmica, ela é estática porque se repete.
Traduzem isso os móveis cujo novo perfil era apenas aparente. Na verdade, trata-se apenas de
uma adequação, pois aquilo que parecia ser um novo perfil, novas dimensões e distribuições,
não existia por si, mas por situações de movimento alheias aos próprios móveis. Móveis e
família redimensionavam-se na aparência, de acordo com a nova cidade, a nova casa, o novo
cômodo, mas, sendo os mesmos, continuavam como antes em essência. Ou seja, mudavam-se
os tempos, mas não as vontades, não o ser, não a falta de confiança. E, apesar desse mudar-se
a cada dia, algo acontecia de maior espanto para as narradoras: eraum mudar-se repetitivo,
igual, constante.
Dolorosamente, resta à irmã mais nova ter tido como mascote, durante anos, um
chaveiro do Garfield como “o mais perfeito do universo” e que “descansa em paz numa caixa
de sapatos” (LUNARDI, 2011, p.17). Trata-se da referência a um ser vivo, um gato, que, real
(quente e peludo e assim fazendo parte dos elementos proibitivos, porque fazem parte do
mundo da estabilidade, do permanente), é relegado à forma de um objeto, posto em um
espaço minúsculo, um chaveiro, transportável na palma da mão, de tal maneira que se ajustam
conteúdo e continente, chaveiro de gato e palma da mão — apenas uma forma tristemente
adaptada ao tato. O chaveiro, objeto portátil, ilustra, então, essa portabilidade constante,
porque cabe, porque é adequado, porque não pesa, não atrasa, não atrapalha. Enfim, ajusta-se
à errância.
Assim, dentro de uma cidade, há uma escola, dentro da qual há pessoas, entre essas
pessoas, a irmã caçula. Junta-se a ela uma companheira de instabilidade espacial/emocional.
Ambas, sofrendo as experiências adverbiais, tentam não se deixar sufocar. Seu nome é
Nietsche, uma entre os personagens que foram importantes nesse percurso de instabilidades.
Ela vivia na cidade de Antares e foi com ela que surgiu a oportunidade de experimentar uma
situação em que tivesse domínio do espaço, que não fosse como um móvel, sendo adaptado às
126
circunstâncias. Claro então tratar-se de uma situação transgressora. Colega de sala, Nietsche
ensina-a a voar, permite-lhe encontrar um local que poderia chamar de seu, um espaço de
perigo e liberdade:
Então, imitando Nietsche, estiquei os braços e tirei uma das mãos da barra. Num
instante, senti apenas o ar debaixo dos pés. Meu corpo levantou voo, com fúria,
primeiro, exigindo que eu aprendesse a controlar as correntes de imediato, até poder
pairar na crista de ondas invisíveis sem deixar-me arrastar pelo movimento
desembestado de ar que mudava de ideia a todo instante. Depois de conquistar o
equilíbrio, virando à esquerda e à direita a uma simples troca de mão, desejei que
aquilo nunca mais parasse. Eu podia morar num furacão. Tinha descoberto o meu
lugar na cidade (LUNARDI, 2011, p.30-31).
[...] aproveitava o horário para percorrer as cinco avenidas e as dezoito ruas que
fatiavam Rio Rasinho. As ruas mais distantes ainda estavam desencapadas, e o
barro, depois de seco, formava bossas que serviam de rampa para as rodas de minha
bicicleta levantarem voo. Enquanto eu corria, juntava parede com parede, muro com
muro, terrenos baldios e jardins particulares, criando uma ordem alternativa para o
lugar. Com a força dos pedais, removia a fixidez tumular das casas e inventava,
dentro da cidade, uma cidade que só eu conhecia (LUNARDI, 2011, p.71-72).
Não era, não podia ser uma simples relação dos objetos esquecidos nas prateleiras,
ainda que se pudesse ler assim. A cada fuga, já disse, minha irmã voltava diferente”
(LUNARDI, 20011, p. 59).
Era a primeira vez que eu recebia flores, botões amarelos. Um buquê compacto que
os cabos curtos tornavam mais elegante. Um admirador?, quis saber o barbudo ao
fechar a cortina de isolamento (éramos três na enfermaria) numa desenvoltura de
quem recolhe roupas no varal. Minha, eu devia responder mas virei o rosto,
aproveitando o fato de que nada que eu dissesse ia parecer normal (LUNARDI,
2011.p. 98)
Não é por acaso, então, que, nesse desnorteamento, a caçula encontra Cirineu, um
jovem dono de uma oficina mecânica. Também não é por acaso que ele a apelida de
“estrangeira”. Vejamos.
Se usufruirmos do potencial significado do nome, o amigo reconhece nela uma
estrangeira porque ele também o é. Seu nome é o mesmo de Simão Cirineu, um personagem
presente nos evangelhos de Marcos e Lucas. Ele teria sido o homem encarregado pelos
romanos de ajudar Jesus Cristo a carregar sua cruz. Cirineu não é indicativo de sobrenome,
mas de seu lugar de origem, uma colônia na Líbia, localizada dentro dos limites atuais de
Tunis. Chegou ali para os festejos de páscoa. Ele era, portanto, um estrangeiro. Da mesma
forma, Cirineu era um solitário em Rio Rasinho, uma minúscula vila conservadora, do que
escapava por meio das drogas, usadas em espaços abertos, amplos, distantes, os quais
apresentou à então adolescente narradora. Foi uma viagem em que foram acordados os
sentidos, dando ao espaço nova configuração:
Debaixo dos pés de colza podia-se ver a terra que, de tão vermelha, parecia estar em
brasas. Era uma combinação bonita, o verde com a argila: uma cor fazia contraste
para a outra ficar mais intensa. E por cima, o infinito, que na hora me pareceu a
parede de uma caverna azul.
129
Fiquei parada por um tempo, ouvindo a tarde de sábado chegar ao fim. Um carro,
uma panela arranhando o fogão, o som distante de um rádio. Meu pé, que estava
apoiado na mureta, adormeceu. Desci da bicicleta e olhei para nossa casa. Nunca
tinha reparado no desenho do portão, duas letras s de frente uma para a outra, como
siamesas unidas pela barriga. O quadrado das cores já perdera a nitidez, mas ainda
parecia um par de óculos que melhorava minha visão (LUNARDI, 2011, p.81).
O percurso pela memória que relata uma vida dispersiva e com a aprendizagem da
dispersão é, como já vimos, entremeado de retornos a espaços do presente feitos de forma tão
exacerbada, como uma tentativa de sair do devaneio, a ponto de a protagonista, retomando sua
voz ede volta ao agora do seu apartamento onde se situa seu quarto de livros, deleitar-se ante
cenários inusitados de arranjamento: “Ovos. Caixas de leite e sucos. Garrafas deitadas. Frios
nas bandejas. Legumes numa gaveta. Invejo esse mundo em que as coisas estão sempre onde
se espera. Uma ordenação que leva ao repouso só de se olhar” (LUNARDI, 2011, p.33).
Caminhar pelo passado é algo tenso, exigente, trabalhoso. É preciso haver descanso em
espaços de estabilidade, com coisas firmes, fixas, cada uma em seu lugar.
Mas a urgência de caminhar pelo passado persiste. E caminhar pelo passado é estar em
lugares sufocantes, como a cena em que a irmã mais nova, após ter sido internada em uma
clínica psiquiátrica, numa reprodução da loucura familiar, em conversa com um terapeuta,
para explicar sua angústia, traz à baila o conto “O gato”, de Edgar Allan Poe. Ela identifica-se
com o gato personagem da narrativa que, tendo sido emparedado junto com um cadáver, sofre
pelo mau cheiro exalado. Temos aqui uma espetacular transposição e ampliação espacial
visiva, tátil, olfativa. O espaço de realidade da jovem se materializa pelos sentidos oriundos
de uma analogia com a espacialidade ficcional: o que está matando o gato da ficção é o que a
está matando em sua realidade. A impossibilidade de relatar o que sente encontra vazão na
130
E aprende, também com a irmã, que a literatura arranja outros espaços, libertadores,
escapes da realidade sufocante, física e espacial, em que elas viviam. A irmã lhe apresenta
Proust, considerando que o escritor, também um asmático, seria um exemplo de como a
escrita lhe permitiria tudo. Proust, em No caminho de Swann, condiciona as duas categorias
ao conhecimento do próprio eu, buscando a si mesmo no perdido. Várias cenas da obra
ilustram esse nexo, como:
Quanto a mim, no entanto, bastava que estivesse a dormir no meu próprio leito e que
o sono fosse bastante profundo para relaxar-se a tensão de meu espírito, o qual
perdia então a planta do local onde eu adormecera; assim, quando acordava no meio
da noite, e como ignorasse onde me achava no primeiro instante nem mesmo sabia
quem eu era (PROUST, 1982, p. 8).
Sob perspectiva diferente daquela apresentada pelo autor clássico, emA vendedora de
fósforos, as relações de tempo e espaço são condicionadas pela imposição do telefonema para
que ela saia do lugar onde está, o momento que vive, e busque os lugares disseminados ao
longo da sua vida, para saber de si. É dessa espacialidade errante que a narradora quer se
desgarrar. Entretanto, fazendo dela seu objeto de narração, acaba por, verbalmente, agarrar-se
a ela, magnetizada pelo discurso companheiro da irmã mais nova. Dessa forma, a escrita ao
encontro da caçula, que se costura à escrita ao encontro do seu passado, não se constitui um
enredo de grande aventura, não é uma viagem ao fundo do mar, nem aquilo que ela via na
literatura e repassava à mais nova— “Fui eu que falei primeiro de livros. Que eles duplicavam
o mundo” (LUNARDI, 2011, p.32) —, mas uma narrativa de alguém em busca de eira e beira,
empenhando-se pelo domínio do espaço. Tratardisso figura como algo antiproustiano, pois
não há uma cena retomada que se assemelhe a um toque de madalena nos lábios, nada há que
a estremeça com um prazer delicioso, que lhe dê a sensação de si mesma. O retorno verbal à
vida errante faz com que sua imagem se recoste nessa errância tão incômoda. Fuga dos
espaços ao encontro deles, disso se compõe a espacialidade dessa narrativa de Adriana
Lunardi.
A obra Berkeley em Bellagio, de João Gilberto Noll, em sua perigrafia, traz duas
especialidades: na dedicatória, curva-se diante da cidade de Porto Alegre (“à cidade de Porto
Alegre”); em um conjunto de epígrafes, ressalta esse mesmo centro urbano, sua cidade de
origem, por meio da apropriação da fala de Carpinejar — “A morada em que nasci me habita”
(NOLL, 2002,p. 5, 7).
Essa interessante personificação delimita o espaço como elemento fundamental da
narrativa, que se desenvolverá em Berkeley, um campus universitário da Califórnia, nos
Estados Unidos, onde o protagonista atua como professor de obras e escritores brasileiros, e
em Bellagio, onde fará parte de um grupo de escritores de vários países, participantes de uma
oficina de criação literária. Os espaços são intermediados pela presença constante de Porto
Alegre, da qual foge o narrador-protagonista, mas que, na verdade, é seu porto seguro, a
morada que o habita. Essa inversão de agentes anunciada na epígrafe — o espaço habitando o
narrador, no lugar de o narrador habitar o espaço, revela-se na sensação de saudade que se
manifesta ao longo do enredo. Porto Alegre é uma Pasárgada, um devir.
Três aspectos relativos à espacialidade desenvolvidos durante a narrativa comprovam
sua importância. Um deles é o movimento feito quase imperceptivelmente entre Berkeley e
Bellagio, como se fossem encaixados um no outro, conforme já anuncia o título. O segundo é
a flutuação entre as pessoas do discurso. E o terceiro é o insistente dimensionamento dos
espaços, aflorados em sentidos e sensações que ressoam de idiomas, corpos e outros
elementos, que, alocados, tratam de produzir efeitos de sentido de subjetivação. Sendo assim,
mapear esse trânsito fluido entre esses espaços e a recorrência de sua inusitada consistência
presta-se como uma estratégia para configurar também o mapeamento de uma voz discursiva
sem lugar, desassossegada. A começar pelo título.
Conotativo, o título Berkeley em Bellagio traz em seu bojo o anúncio da construção
espacial da obra. É possível considerar, por exemplo, que a preposição “em” promove um
efeito de entalhe de um espaço em outro. Assim, Berkeley, uma universidade da Califórnia,
estaria dentro de Bellagio, ao norte da Itália, onde se situa uma casa de escritores. Essa
inserção é perceptível ao longo do romance na medida em que os lugares são postos sem
fronteiras que os delimitem no decorrer da narrativa. As descrições dos dois, das ações que
neles acontecem, dos personagens que neles atuam são colocadas em sobreposição, sem
sequer haver aspectos formais que os separem, por exemplo, sem pontuação, paragrafação ou
uso de conjunções. Nenhum aspecto linguístico ou textual permite separar cada lugar em seu
133
lugar ou perceber o trânsito entre eles, de forma que tudo parece misturado, contaminado
pelas experiências de um narrador a princípio em terceira pessoa, mas que, sem fronteiras,
passa à primeira e retorna à terceira e novamente à primeira, um ser atópico, portanto.
Outra sugestão promovida pelo título está na palavra Berkeley, que, além de nomear
um lugar, um campus universitário, também é nome do filósofo irlandês, estratégia
interpretada por Vanessa Soares de Paiva como um deslocamento do topônimo para a
apresentação de “um sujeito em um lugar”(PAIVA, 2015, p. 8), o que ratifica a atopia
apontada no parágrafo anterior, de forma que o sujeito assumido pelo narrador como ele
próprio se amalgama ao espaço:
[...] por um segundo, como quem acorda, lhe acendeu a dúvida se estava ali
chegando do Brasil, ou, ao contrário, se já estava voltando ao Sul do planeta, para
aquela falta de trabalho ou de aceno de qualquer coisa que lhe restituísse a prática do
convívio em volta de uma refeição, sob um endereço seguro (NOLL,2002, p.10).
Quando ele chegou aos Estados Unidos, tinha menos de cem dólares. A chefe do
Departamento de Espanhol e Português em Berkeley o esperava no aeroporto de San
Francisco toda de preto, loira, sorrindo meio culpada por tantas atribulações que o
consulado americano em São Paulo tinha me causado por não ser um cara de altas
formações acadêmicas, por estar desempregado, sem endereço fixo, penso eu, por
tudo isso relutaram — duas, três vezes meu passaporte voltara a Porto Alegre sem o
visto — temendo com certeza que euquisesse imigrar como tantos patrícios.
Lembro... (NOLL, 2002, p. 16, grifo nosso).
trata da sua terra de origem, coloca-se nela. Parece haver um vínculo indissociável com o
útero materno, embora tenha fugido dele. Entretanto, em outros trechos em que a mesma
estratégia se apresenta, já não há espaços de origem nem de chegada, o que faz dele um
semlugar perene. A voz discursiva alterna a si mesma em terceira e primeira pessoa,
transitando perdidamente entre Bellagio e Berkeley, ou entre outros espaços:
Simulavam então diante de mim um interesse mais que suficiente para lhes render
êxitos a mais em seus currículos de agentes não importa de que instituições, secreta
ou não, agentes da bandeira que fingiam amar sobre todas as coisas, mesmo que
tentassem às vezes molestá-la em minha presença, afetando visão crítica para me
mimar. Ele não queria lembrar, queria tão-só estarnos bosques de Berkeley diante da
brasileira que o fez pela primeira vez vibrar com uma fêmea na cama eternamente
redemoinhada de cobertores, travesseiros, lençóis... (NOLL, 2002, p.19, grifo
nosso).
2
Cf. http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/estrangeiridade-e-experimentacao-uma-conversa-com-paloma-vidal.
137
[...] esse não ter, não conseguir aderir, é essa falta de adesão, esse distanciamento,
esse olhar de fora o tempo todo, é o nunca conseguir estar dentro da situação, como
se de algum modo você sempre estivesse olhando a situação de fora, como se você
fosse uma espécie de espectador (VIDAL, 2016).
Mas, não, agora se coçava todo, na certa esconjurando uma espécie de dívida que
nunca quis largá-lo — porra, ele dizia, mas porra para o quê ou quem? Falava com o
Brasil ou com aquela porção sombria de natureza a lhe servir então como uma
espécie de refúgio contra a língua inglesa? (NOLL, 2002, p.10).
Quem seria esse homem um tanto taciturno a encontrar estátuas, quadros clássicos
pela frente para impressionar americanos, colunas obeliscos, homens seminus,
mulheres fartas, gestos largos, quem era mesmo esse homem nascido em abril em
Porto Alegre, no hospital Beneficência Portuguesa, às seis da manhã, criado no
139
bairro Floresta, sem poder imaginar que um dia estaria aqui nesse castelo, ao norte
da Itália, perto de Milão, na chamada — jocosamente ou com sarcasmo —
“Catedral” americana; quem era esse homem que já se cansava da noite tão cedo,
louco para dormir, sonhar, regenerar-se para ao longo do dia seguinte cair no mesmo
enfado... [...] (NOLL, 2002, p. 26-27).
e olfativa — o escorrer de um jato de urina sobre um objeto de arte. Descrito pelas sensações,
o espaço em que se insere a cena não tem consistência nem durabilidade e, por isso, não
captura o protagonista, que se recusa a entregar-se a qualquer espaço de perenidade,
empenhando-se em ficar no trânsito das sensações e das lembranças vividas entre espaços,
entre Berkeley e Bellagio, ambos a serviço da composição desse personagem em fuga na
tentativa de encontrar a si mesmo:
Ouço por perto agora pingar uma água insistente, duvido por um instante de que a
Fundação não tivesse tomado providências diante de um vazamento ou de um lençol
geológico aqui se derramando, mas já não tenho dúvidas, me levanto com a lanterna
em punho, vou ao encontro do som para que as gotas não se tornem uma tortura que
me devolva aos vivos... Com uma mão tateio que tateio, sinto a pele de um tecido,
vejo ser negro, macio, meio sorrateiro, levanto o foco para o rosto, é ele, o ragazzo
italiano, o mordomo com quem fui atrás de uma cortina e que agora já não quero;
ele pingava a sobra do mijo na superfície daquele século XI ali tão apertado no
porão dos mortos... Eu me afastei, já não quero nada nem ninguém, sou santo, é na
Itália que me vem a iluminação, não poderia ser na profana Califórnia, agora nem
precisarei mais do meu desejo incalculável por todos os homens e por aquela única
mulher, a brasileira em Berkeley, a que me fez suar em frêmitos com seu pênis
submerso [...] (NOLL, 2002, p.49-50).
A tese presente nesse conceito 3 defende que a vivência humana se faz em polos
alternados, em eterna repetição, de forma que tudo faz o movimento de ir e de retornar, sem
que haja entre esses polos uma relação de oposição, mas sim de complementaridade para a
composição de uma só realidade carregada de ciclos. Esses ciclos não são idênticos, mas
semelhantes em suas variações. Sendo assim, a vida é reafirmada constantemente, de tal
forma que, para haver crescimento, é preciso haver declínio; para haver alegria, é preciso
haver tristeza. O revezamento é um dizer à vida que seja tudo mais uma vez.
O estudioso Juliano Neves(2015), em seu artigo “O eterno retorno hoje”, publicado
nos Cadernos Nietzsche, afirma que “pensamento elevado, o eterno retorno também é o mais
profundo, o mais abissal, pois conduz à visão da eterna repetição sem sentido ou fim de tudo”,
ideia que, segundo ele, foi ratificada por Nietzsche no seguinte fragmento póstumo,
E sabeis sequer o que é para mim “o mundo”? [...] Este mundo: uma monstruosidade
de força, sem início, sem fim, uma firme, brônzea grandeza de força, que não se
torna maior, nem menor, [...] jogo de forças e ondas de forças ao mesmo tempo um e
múltiplo, [...] afirmando ainda a si próprio, nessa igualdade de suas trilhas e anos,
3
Cf. http://www.eternoretorno.com/sobre/.
142
Por essa perspectiva, o retorno do narrador-personagem a sua Porto Alegre faz parte
de um movimento que não o tira da instabilidade instaurada em sua vida. Por isso, na ida para
o Brasil, não se encerra a flutuação entre as pessoas do discurso nem o insistente
dimensionamento dos espaços, por exemplo, pela relação entre a voz discursiva e o idioma.
Este segmento que relata o movimento de retorno ao Brasil repete a alternância da voz
discursiva que se deu quando do movimento de ida para a Califórnia:
[...] quando chegar a Porto Alegre vou ver se a minha casa não está sendo habitada
por algum sem-teto, há tantos por lá, tantos, eu mesmo já fui um deles — só aí verei
como me safar da situação sem contar com o meu velho português, hoje apenas um
fantasma arrancado do meu instrumental fonético; deverá por certo estar perdido por
aí, sofrendo, sem ter onde encarnar, ninguém o quer lá pras bandas onde deverá estar
vagando, ah, faço o check-in, digo pra moça que estou voltando pra casa, sempre
que for a Porto Alegre me avise, estarei no aeroporto na hora combinada, quero
prestar favores nem se os impor à forma, não faz mal, sou um serviçal, além das
minhas próprias malas, quero carregar o mundo inteiro às costas, um Atlas
desvalido, tudo bem, mas com uma boa vontade que lhe assoma tão forte de repente
que ele só tem tempo mesmo de tentar levar o mundo às costas, entende? Mostra o
passaporte, passa pelo detector de metais ou até quem sabe o de mentiras, olha mais
uma vez no painel eletrônico a confirmação da hora do seu voo, tudo ok, em cima,
agora é só sentar em torno de hordas de árabes, ou assemelhados com suas mulheres
silenciosas, algumas de lenço na cabeça —, eles cheiram à fuga, hindus agora
chegam, são todos fugitivos? penso eu, o que aconteceu no mundo nesse tempo em
que vivi na Fundação americana sem TV[...] (NOLL, 2002, p. 77-78, grifo nosso).
[...] que estava definitivamente na estrada certa, que não havia o que temer, que uma
certa paz que se procura não morde, é mansa, já chegou; eu era um brasileiro a
pensar em inglês o tempo todo, eu era outro em mim, não tinha importância —,
quando chegasse a Porto Alegre iria para um curso de português para estrangeiros
no meu próprio torrão natal, isso acontece nesses dias... (NOLL, 2002, p.82-83).
[...] que eu ansioso esteja a caminho de uma terra santa como era o caso agora,
mesmo assim eu precisava sentar por um tempo, e, olhando o imediato a mim,
apenas pensar se a coisa era como eu via de fato, se não estava vendo tudo
deformado ou do avesso, embora ali parecesse que não, que estava definitivamente
na estrada certa, que não havia o que temer, que uma certa paz que se procura não
morde, é mansa; já chegou; eu era um brasileiro a pensar em inglês o tempo todo, eu
era outro em mim, não tinha importância — quando chegasse a Porto Alegre iria
para um curso de Português para estrangeiros no meu próprio torrão natal [...]
(NOLL, 2002, p.82-83)
[...] mas nesse instante não posso deixar de largar a escrita do meu livro em curso, ir
para a rua, nem sei por quê, ou para quê; eu saio, encontro um vizinho na portaria do
prédio, a tentação que tenho é a de ignorá-lo, não lhe responder o cumprimento, me
confundir com as coisas, ser apenas mais uma entre todas, não dar um passo
preciso, não ser visto, apenas flutuar num espaço que o olho humano não
alcança(NOLL, 2002, p. 94-95, grifo nosso).
144
Assim, reflete, ante as situações sociais às quais deve se submeter, caso queira ter a
sensação de pertencimento, ciente de que lhe domina a sensação de que não pertence a lugar
nenhum, mas a um hiato, estando sempre fora de uma sequência narrativa:
[...] parece que vivo nesse hiato, ao ocorrer a coisa ainda não a tenho o suficiente
para socorrer-me em sua identidade, e depois é como se eu nunca pegasse o tempo a
tempo, sempre é tarde para tanto, ele já mergulhou nas águas da memória, e aquilo
que o complementará depois já estou vivendo sem saber, sempre achando que errei
de capítulo, que estou fora de hora (NOLL, 2002, p. 95, grifo nosso).
Eu caminhava conduzindo Sarita por minha mão esquerda, no meu lado direito tudo
atuava em franca pantomima: diante das pessoas, principalmente das crianças, o que
eu dizia com os meus gestos espalhafatosos e a face em rebordosa não era muito,
nem sei se comunicava mesmo alguma coisa, eu queria tão-só tentar dar um curso
benevolente aos nossos passos tortuosos entre crianças, cachorros, galinhas, velhos
—, afirmar que a minha visita junto da criança era só um pouco dura pra ser sonho
mesmo, não chegava porém a ter nem substância clara já que vivíamos em eterno
deslocamento, em fortuita expansão por entre os acampamentos dos sobreviventes;
os nossos sapatos embarrados queriam dizer que nos movimentávamos pelo mesmo
terreno que eles e que isso ia passar, e eu fazia expressões doidivanas que pareciam
querer desbravar a ferro e foice o sentido da nossa aparição no meio daquele povo
em inquietude, se é que algum sentido concluído havia— não, não conseguiam rir
com minhas micagens, nem tampouco se assustar nem nada, e era com Sarita apenas
a convicção de que ainda havia o que seguir em alguma direção, nós íamos (NOLL,
2002, p. 102, grifo nosso).
Desejando apenas flutuar num espaço que o olho humano não alcança, sempre
achando que errou de capítulo, sonhando em estar novamente lá em Bellagio, ou ainda
desbravando a ferro e foice o sentido da sua inquietude, o narrador-personagem de Berkeley
em Bellagio se mostra alguém que, estando aportado, está em permanente trânsito. Não é
pouco significativo o fato de que, embora estando em Porto Alegre, se sinta bem em um
145
Pouco depois de chegarmos a São Paulo meu irmão mudou-se para o quarto dos
fundos, separado da casa por um quintal de cimento. Dentro, ficamos eu, a mãe e
uma tia que viera ajudar no trabalho doméstico, naqueles dias em que o nome do pai
era impronunciável entre as nossas paredes (MARTINS, 2005, p.13).
dessa área externa entre os campos é dura — não há grama nem flores, mas cimento. O
arranjo estético de elementos componentes do espaço retrata um arranjo familiar, para o qual
se faz necessário o distanciamento de um dos elementos da família, o que se dará em outras
proposições espaciais no decorrer da narrativa. O espaço, desde o início da narrativa, é, então
problematizado.
Quem se encarrega desse início da obra é uma voz discursiva em uma primeira pessoa.
Ela descreve o cenário físico/familiar, com detalhes visuais e táteis tradutores de sentimentos
e posicionamentos e apresenta um personagem como sendo um irmão. A estratégia para
indicar o parentesco é o uso do possessivo “meu”, o que gera um tom de pessoalidade: “Pouco
depois de chegarmos a São Paulo, meu irmão mudou-se para o quarto dos fundos, separado da
casa por um quintal de cimento” (MARTINS, 2005, p.13, grifo nosso).
Mas, logo em seguida, no terceiro parágrafo, o mesmo narrador, em referência ao
mesmo personagem, faz uso do artigo definido, promovendo o afastamento entre si e o irmão
e acionando um deslocamento da proximidade que parecia haver a princípio: “O irmão não se
importou com nada daquilo. Deitou um tampo de porta sobre os dois cavaletes e passava
horas escrevendo” (MARTINS, 2005, p.13, grifo nosso). O distanciamento feito pelo usufruto
de um elemento linguístico é acentuado por outros, como o uso do pronome demonstrativo
“aquele”: “No início, todos achamos que aquele rapaz desregrado, que trocava com
frequência o dia pela noite, não aguentaria a rotina do emprego fixo” (MARTINS, 2005, p.14,
grifo nosso). Assim, o personagem, de começo tratado como um personagem-irmão do
narrador, passará a ser tratado apenas como um personagem, em uma tentativa de
distanciamento físico e parental. Os motivos que permeiam essa tentativa vão se enumerando
ao longo da narrativa: a aflitiva demência do irmão, a também aflitiva invocação do pai que
essa demência traz; uma inconsciente tentativa de distanciar-se das aflições por meio da
escrita. Entretanto, um deles em especial pode ser considerado: empreender o afastamento
pelo viés gramatical e pelo isolamento físico retrata a necessidade de distanciamento daquilo
que irmana narrador e personagem, a própria demência, que, embora pertencente a este, está
também à espreita daquele, e nela se inscreve o potencial de escritor do irmão.
Ocorre que essas estratégias iniciais não têm potência suficiente para fazer valer o
empreendimento. Isso porque, no que tange à posição das atuações do narrador e do
personagem irmão, bem como aos usos linguísticos, o distanciamento não se consolida. Pelo
contrário, a aproximação entre eles é tão visceral, que o lugar de um é assimilado pelo outro,
pois o discurso literário e desvairado que, com urgência, toma conta do irmão, acaba por
tomar conta do narrador. E isso se evidencia pelo trânsito entre eles, pelos espaços onde se
147
localizam, por onde passam, para onde vão, de forma que o isolamento que vive o irmão, pelo
qual passa e para onde vai é perseguido pelo narrador, como se o caminho lhe fosse essencial.
Os movimentos do irmão são como um ímã, e seu percurso revela como o narrador é seu
cativo:
ao pé da escada. Essa restrição de proximidade é reveladora: assim como não há lugar na vida
familiar para o irmão, não há lugar na vida do irmão para a família, relegada, na figura do
narrador, ao pé da escada. Antagônicos, sótão e pé de escada compõem o cenário de
concretização do temor da mãe de que a atração desmedida pela literatura se consumasse, e
assim seu filho entrasse em estado total de loucura, configurada no fechamento do sótão de si
mesmo, dedicado a uma escrita febril, tendo como plateia um cão.
Essa distância vertical e emocional entre os irmãos é desfeita, no entanto, por um elo,
um elemento conector entre os espaços: trata-se de um corrimão, meio pelo qual o narrador
pode ouvir “cada sílaba que o irmão proferia, vibrando nas tábuas, saltando de degrau em
degrau” (MARTINS, 2005, p.17). Trata-se de uma mediação esdrúxula, por meio da qual se
tem a percepção do estado de excitação em que se encontra o produtor da peça teatral, tomado
pela escrita de “uma única página verdadeiramente viva” (MARTINS, 2005, p.14), após a
qual “a segunda parte de sua vida se cumpriria na mais absoluta, imprevisível e irremediável
liberdade” (MARTINS, 2005, p.14). O corrimão é tomado aqui de forma imprevisível, pois,
sendo um elemento fixo do espaço físico, cuja função é a de apoio e decoração, adquire outra
função, a de meio propagador de ondas sonoras e visuais, passando a uma imprevisível
relação matéria-objeto, deflagrada por um simples toque da orelha na madeira, que
desencadeia um fluxo febril de captação de sons e imagens:
cada som, cada gesto, cada risco que saía da voz do irmão” (MARTINS, 2005, p.16). Não se
trata aí de uma simples reprodução daquilo que o irmão proferia, pois transpor o que ouvia
para o papel exigiria do narrador habilidades de escritor; colocar gestos, sons e riscos da voz
de alguém em palavras é luta renhida, processo que se torna mais complexo ante a
impossibilidade de ver e ouvir com nitidez o que se passava no interior do escritório,
obstaculizado que estava pela porta.
Ao assumir, pela escrita, área que não é de seu domínio, tudo o que oral e
gestualmente fizera o irmão, o narrador redimensiona seu lugar, pois avoca o do irmão e
integra-o ao seu discurso ou integra seu discurso ao do irmão. Assim, o distanciamento
gramatical que se apresentara perde-se, torna-se vão, pois, inversamente ao que os usos
linguísticos pretendiam, não só o irmão continua sendo “meu” irmão, como também é
apreendido pelo narrador e vice-versa, pois este é apreendido por aquele. Coautores, ocupam
um só lugar, compõem um laço indissolúvel pela literatura, situados ambos agora na
conturbação mental. Tem-se, aí, desconfortada, a figura do “eu-irmão”. Trata-se de alguém
que diz não ter domínio da poética e dá provas de quem realmente não tem esse domínio, pois
ele se propõe a distanciar-se de um personagem, seu próprio irmão, mas acaba, esteticamente,
acoplado a ele. Trata-se de alguém que não se diz da área da literatura, mas que,
involuntariamente, tomado por um estado febril, assume o papel de um escritor, recriando um
material que não é de sua autoria, engastando-o em uma narrativa mais ampla, que é sua. O
produto final — um ensaio como parte de uma narrativa; uma narrativa que tem como parte
um ensaio — acaba por apresentar uma estética verbal “esquizofrênica”: o narrador insere em
sua narrativa o produto de um outro que está tomado pela demência, e, ao fazer isso, acaba
por revestir-se dessa demência, assemelhado que fica ao irmão: “Fiz isso sem contar a
ninguém por vários dias seguidos. Lembro que a certa altura não ouvi mais vozes. Juntei as
forças e toquei para casa. Exausto, passei o resto do dia feito um zumbi e no início da noite
tive febre” (MARTINS, 2005, p.16).
O narrador “eu-irmão”, desde sua tentativa linguageira de distanciamento, perseguindo
com a capa do equilíbrio os espaços percorridos pelo irmão, confrontava-se como autor,
narrador, personagem, o que, nos dizeres de Derrida, retrata haver ali uma “literatura [...]
[que] muito rapidamente se tornou a experiência de uma insatisfação ou de uma falta [...]”
(DERRIDA, 2014, p. 55).
3.5 Em travessia
151
Ribamar, de José Castello (2010),é mais uma obra cuja organização espacial
demonstra uma perene sensação de falta, com espaços lacunares ocupados, vividos e sentidos
pelo narrador, revelando um narrador descentrado. Não são espaços de apoio, pelo contrário,
tudo acontece em travessia, estratégia que denuncia um narrador inadaptado à sua história
familiar, desconfiado de sua posição de escritor, deslocado em relação a afetos. Essa travessia
se apresenta no processo da narração e na composição da narrativa, ambos entrelaçados.
No primeiro caso, a espacialidade se configura na sequência de uma pauta musical,
cujos andamentos alojam e associam reflexões, ações, sentimentos. Estes são relatados na
narrativa, cujo enredo é o desenrolar de uma viagem em busca do resgate de algo faltoso, a
compreensão da figura paterna. Ambas, pauta musical e viagem, elementos de travessia, são
representadas também em travessia, pois se estruturam em um intergênero: não se trata de
algo acabado, um gênero configurado, mas sim algo em trânsito, uma modelagem feita de: a)
notas preparatórias para a construção de um romance; b) entremeadas por uma carta; c) que se
orienta por uma outra carta. Temos então uma canção de ninar, em cujo compasso vai se
inscrevendo um enredo romanesco que conta uma viagem, assumido pelo narrador como um
registro de notas, cujo desenvolvimento está entrelaçado a uma carta, esta entrelaçada a uma
outra carta. Esse conjunto insólito de objetos que constituem um “estar em”, algo sem
arremate, intenciona problematizar a construção da obra literária (questão sobre a qual
trataremos mais detalhadamente em capítulo a seguir) atrelada à construção da espacialidade.
Esta, insólita, exige reflexões.
A pauta musical, tentativa de materialização do som, tornando-o visual e táctil, legível,
colocada como um percurso, modela, de forma singular, a espacialidade, conotando a
trajetória feita pelo narrador em busca de tornar legíveis, compreensíveis também os
incômodos eventos de sua vida filial, guardados na memória e deflagrados por essa canção de
ninar. O título dessa composição é “Cala a boca”, e seu verbo no imperativo deixa
transparecer um tom nervoso, uma ordem revestida de impaciência.
É significativo, então, que o primeiro objeto apresentado na obra seja a pauta musical
dessa canção de ninar, uma canção atordoante: “A repulsa me faz levantar. Esquecendo que o
152
ajudo a morrer, e não a nascer, assovio uma canção. Essa canção que, ainda hoje, me atordoa”
(CASTELLO, 2010,p.16). Ao colocá-la como prólogo, o narrador-escritor, cujo nome é José,
se anuncia por ela, prenunciando que tratará do sofrimento que a toada impõe sobre si,
indicando uma orientação de leitura e disponibilizando-a como algo a ser descodificado.
Atendendo a essas intenções, essa canção será subdividida em segmentos correlatos à
subdivisão da obra, em capítulos, compondo a estrutura em que se manifestarão as
experiências dolorosas vividas pelo narrador, embalado pelo sentimento de rejeição que
perpassa o canto: “Naquele momento, decido: o livro que escreverei, Ribamar, terá a estrutura
dessa canção. À frente, um emaranhado de palavras. Ao fundo, uma música que sopra”
(CASTELLO, 2010, p. 92).
Assim, os movimentos sonoros, visualizados na impressão dessa pauta, nortearão o
movimento, o ritmo, o andamento da narrativa, registrados em seus espaços de discurso, os
capítulos, ou seja, eles se constituem, na obra em estudo, como um espaço que delineia os
passos dados pelo narrador-escritor na viagem que empreende ao encontro do pai, ao encontro
de si como filho e ao encontro da escrita.
Assim, cada passo nas linhas musicais é conjugado a capítulos, cujos títulos se
compõem, de forma associada: a) da imagem de um trecho da pauta com seu respectivo
andamento; b) da expressão verbal desse andamento; c) de uma palavra que capture a essência
do capítulo; d) e ainda da indicação da unidade de tempo em que se dá o movimento.
Vejamos um exemplo sobre o qual nos deteremos a título de entendimento de como essa
pauta é transformada em um caminho de notas percorrido pelo narrador-escritor e a ser
percorrido pelo leitor. Sua horizontalidade ressignifica o espaço da narrativa, figurando uma
estrada de experiências e reflexões de José, o mesmo caminho de leitura a ser cumprido, com
pausas e durações equivalentes a pausas e durações que compõem a estrada da vida na qual
caminha.
Figura 1
Essa disposição que titula o primeiro capítulo vai se repetir mais sete vezes, isto é,
sempre que se anuncia uma interrupção na pauta musical, posta em um tempo de duração, o
tema tratado é “aves”. Os capítulos funcionam como uma liga de marcação importante no
ritmo da narrativa. Ou seja, esteticamente, entre os movimentos empreendidos pelo narrador,
há oito pausas, postas num tempo de duração, nas quais ele reflete sobre um elemento
plurissignificativo — as aves. Trata-se, como se pode observar, de um corpo com enlace
imprevisível no que se refere ao vínculo matéria-objeto: ao sonoro (um canto), configurado de
forma visual (pauta musical), posto em espaços vazios de tempo (a pausa, um compasso de
espera, de silêncio), é associado um elemento tangível, visível e audível, as aves. Dessa
forma, o capítulo que assim se anuncia evidencia duas funções: ele próprio é uma paragem,
um espaço no qual o discurso para; e esse estranho espaço deixa sob suspeita a noção de
espaço, haja vista os estranhamentos que o delineiam.
Gaston Bachelard (1988), em sua obra A poética do espaço, põe em relevância o
conceito de imaginação material, considerando que o espaço se apresenta materialmente,
oriundo de um princípio de ligação entre o imaginado e o vivido, o que daria certa
estabilidade ao ser quando se põe em busca do tempo perdido. Segundo o teórico: “É pelo
espaço, é no espaço que encontramos os belos fósseis de duração concretizados por longas
permanências” (BACHELARD, 1988, p. 29). Luís Alberto Brandão, para tratar da singular
espacialidade na obra de Rafael Courtoisier, usufrui dessas considerações de Gaston
Bachelard, mas dando-lhe nova configuração: segundo o estudioso, essa imaginação imaterial
pode alcançar o que é inalcançável, caso se quebre o círculo restrito formado pela relação
imaginado/vivido:
A percepção de Brandão sobre a obra do poeta uruguaio pode ser também levada em
conta para Ribamar, cuja espacialidade não comporta matérias com afinidade óbvia, ou seja:
há uma peculiaridade nessa junção de melodia materializada em pauta musical e associada ao
elemento aves, constituintes da imprevisibilidade do título e da consequente composição de
capítulos, fundindo elementos que servem, entre outras funções e associados a outros
elementos constituintes da obra, à configuração de um espaço revelador do estado de
instabilidade do narrador-escritor.
154
Isso começou quando eu era menino. Vi, em algum lugar, uma fotografia daqueles
olhos nervosos, que copiam os meus. Sempre vestido com cores escuras, como eu
mesmo me vestia. Uma sombra o envolve, e eu a sinto roçar minhas costas (ambos
se tocam). (CASTELLO, 2010, p.11).
nos eventos das cartas pessoais, onde se efetivam os contatos interpessoais entre
aqueles que se encontram distantes e têm entre si um laço de afetividade, os sujeitos
(tanto o remetente como o destinatário) trazem, à cena enunciativa, sistemas de
crenças, de valores e de saberes, filiados a quadros das atividades de uma formação
social, construídos no seio das práticas sociais reais da vida cotidiana, deixando
assim entrever o papel/identidade social assumido por cada um deles ou, em outros
termos, a posição identitária ali investida (QUINTILIANO, 2002, p.101, grifo
nosso).
Singularmente, a carta de Kafka a seu pai não se constitui como um evento entre
pessoas geograficamente à distância, mas, sim, emocionalmente. Embora fisicamente
próximos, mantinham uma relação de apartamento. Para tornar ainda mais singular essa cena
enunciativa, a missiva não chegou a seu destinatário, pois o jovem escritor tcheco a teria
entregue à mãe, que a teria escondido do pai para proteger o filho da austeridade paterna.
Sendo assim, o destino aparentemente proposto para a correspondência não se teria cumprido,
acabando ela por ficar com o próprio emissor, talvez seu verdadeiro destinatário, se levarmos
em conta, entre outros fatores, um falar monológico presente em suas linhas. Filipe Pereirinha
ressalta, em seu estudo “Uma leitura da Carta ao pai de Kafka” (PEREIRINHA, 2015), que o
156
Aquilo que se segue é uma objeção, ponto por ponto, ao raciocínio que Kafka
expusera em detalhe ao longo da carta. Uma objeção que desemboca no seguinte: “A
isso respondo que, antes de mais”, escreve Kafka, colocando-se de novo no papel de
emissor, “toda esta resposta […] não parte de ti, mas de mim”(PEREIRINHA,
2015).4
Ocorre ainda que a carta de Kafka ao pai tomou rumos inusitados, passando a ser
objeto de deleite e de análise para produtores distintos daqueles que
Peguei o livro, autografei-o e o larguei sobre sua mesa de cabeceira. Com esse
gesto, revidava às palavras que Franz ouviu de Hermann, quando lhe deu de
presente o primeiro exemplar de Um médico rural, único livro que dedicou a seu
pai.
4
Na edição que consta de nossas referências, lê-se: “Caso abarcasse com o olhar minha fundamentação do medo que tenho de
você, então você poderia responder:” [...] “A isso respondo que, em primeiro lugar, toda essa objeção...” (KAFKA, 1997, p.
71).
157
Com nova vida e por desforra, encontram-se José e Kafka, de forma que a história de
um se cruza com a história do outro, promovendo outros cruzamentos, como o vazio que
ambos sentiam ao escrever ou ainda a mesma dificuldade para falar com o pai, de forma que
os escritos do começo do século XX se perenizam na experiência do narrador:
Ao dirigir-se a seu pai, Hermann Kafka, Franz não só me roubava minhas palavras,
mas usurpava meu lugar de filho. As mesmas palavras que, em minha garganta,
provocavam feridas que me impediam de falar, ditas por Franz, descerravam a
verdade.
Eu não precisava mais buscar palavras para as coisas que tentava lhe dizer. As
palavras estavam ali, ainda que, em grande parte, me escapassem. Emitidas por um
grande escritor, o que não só as engrandecia, mas autenticava. Noventa e duas
páginas que resumiam o que, durante anos, eu tentei inutilmente expressar
(CASTELLO, 2010, p.22).
tcheco quanto a si mesmo, tirando-a daquele espaço discursivo para o seu. Por isso, as leituras
da Carta de Kafka por nosso narrador-escritor tornam-se cenas de sua narrativa. Isto é,
Ribamar apresenta um narrador que é um escritor, o qual conta sobre o protagonista da Carta
de Kafka ao pai e, ao fazê-lo, revela assumir para si as mesmas sensações e sentimentos do
autor alemão. José, então, encena dois papéis: um de narrador-escritor, porque narra suas
ações como José, alguém que pretende escrever uma obra; e um de narrador-leitor, porque
atua também como um leitor de Kafka. Trata-se de um leitor-escritor-narrador, que assume o
protagonismo de Kafka em sua vida, re-espacializando a Carta, fazendo-a sair de sua
condição inicial (uma missiva de um jovem nascido no ainda império austro-húngaro ao pai,
expondo uma angustiante relação parental) para ser: um objeto de leitura que converge para
uma outra vida de desajustes entre outros pai e filho de um outro tempo; um objeto-presente,
encaminhado desse leitor a esse outro pai; um alicerce para a escrita de uma obra a ser
construída por esse leitor, então um escritor; um elemento que obriga a inscrição desse
escritor a encenar-se como narrador-protagonista no enredo dessa obra, que empreende uma
viagem para deciframento de si.
Assim, em espelhamento, a carta do nosso leitor-escritor-narrador também não chega
ao seu destinatário, embora, por outro motivo, pois, como se verifica no decorrer do enredo, o
pai está morto. Trata-se de uma carta propositalmente anacrônica, porque é uma
correspondência em cujo momento de feitura já se configura para um destinatário
impossibilitado de lê-la e que, portanto, mantém-se no seu ponto de partida, onde se instaura.
Então, assim como Kafka, o missivista narrador-escritor faz do Outro sua própria imagem
invertida, dizendo a si o que parece dizer a ele, porém com estratégias distintas das usadas
pelo autor tcheco. Alguns elementos comprovam essa orientação da carta, a partir inclusive de
ela ter sido escrita após a morte do pai: “Por que escrevo essa carta? Você está morto, nunca a
lerá. Não passa, portanto, de um falso destinatário” (CASTELLO, 2010, p.65); também
porque o narrador-escritor, embora escreva sobre questões relacionadas ao pai, se permite
algumas falas que, se ditas ao pai, seriam grosserias (“Você parece (me perdoe) um primata.
Da espuma branca emerge um rosto pontudo, coberto por uma pele grossa, artificial. Não vou
adoçar nada: seu corpo, murcho e disforme, me enoja” (CASTELLO, 2010, p. 18)); ou ainda
porque insere nos dizeres reflexões muito intimistas (“Cada dor tem uma palavra que a
envolve, mas que não é aquela dor, e que por isso deixa de ser só uma palavra. [...] A frase me
aconselha a não separar palavra e dor. A não quebrar o mistério” (CASTELLO, 2010, p.107).
Todas são cenas que atingem e agridem, na verdade, o próprio narrador-escritor. “Busco
palavras que, arredias, me fogem. As ideias falham e começo a sentir medo, não de você e de
159
sua morte, mas de mim e de minha vida. Esquecendo-me de você, eu o abraço” (CASTELLO,
2010, p. 19).
O gesto de perambulação em torno de si mesmo do narrador-escritor ainda ocorre por
outra semelhança com a carta tcheca, no sentido de que também apresenta trajetória singular:
embora o pai tenha recebido a carta-presente, o filho não sabe se foi lida. Surpreso, ele a
recebe das mãos de um amigo que encontrou o livro, em um sebo, com a dedicatória, assinada
“amor do seu filho José” (CASTELLO, 2010, p.21). A angústia que o retorno provoca é
intensa. Sua reação é reler a carta, agora percorrendo as páginas com a intenção de descobrir
alguma anotação, algum sinal revelador de que o pai a tenha lido e, tendo lido, entendido que
seu emissor deixara de ser Kafka para ser José. Nessa releitura, depara-se com um sinal, um
trecho grifado:
Folheio a Carta ao pai em busca de algum sinal de que você a tenha lido. Nada
encontro. Nenhuma anotação, comentário, nada. Até que, para meu horror, no alto
da página 50, em grossas linhas vermelhas, deparo com a prova.
Está sublinhado: “Comigo não existia praticamente luta; minha derrota era quase
imediata; apenas subsistiam evasão, amargura, tristeza, conflito interior”
(CASTELLO, 2010, p.43).
A frase grifada levou José a levantar hipóteses: teria o pai lido a obra? Teria ele
grifado o trecho? Ou, tendo sido o livro emprestado ou vendido a um sebo, uma outra pessoa
teria feito a marcação? Outras perguntas emergem das reflexões de José: Teria o pai lido a
Carta de Kafka como uma obra daquele escritor de outro tempo e espaço? Teria grifado o
trecho como um leitor comum, sem algo que o levaria a reviver os dizeres ali postos, em sua
solidão de leitor, sem dimensionar a interioridade do ato de leitura proposta não só pela Carta
em si, mas por ela estar no estado de carta-presente?
Tantas perguntas não respondidas fazem acumular a sensação de desamparo do
narrador-escritor, desencontrado de si, enraizado em uma carta que não é sua, construindo
uma outra que já parte sem remetente externo a si mesmo, uma escrita fadada ao fracasso
desde seu início, entremeada a uma obra que narra uma viagem empreendida
semelhantemente à carta, com um destino socrático: um conhece-te a ti mesmo, em dificílima
dangerosíssima viagem. Simultaneamente às tentativas de paragens em uma pauta musical e
em uma carta in-transitada, o narrador continua deslocado de si. Ele dá início a uma viagem a
Parnaíba, em busca da história do pai, pretendendo, na compreensão daquele homem
esfíngico, a compreensão de si; pretendendo o mesmo na composição de uma obra que narra
espaços em travessia: uma viagem, uma carta, uma pauta: “Chego, enfim, a Parnaíba, a cidade
160
em que você cresceu. Trago o projeto insano de recuperar seu passado. Uma loucura, uma
estupidez — um livro” (CASTELLO, 2010, p. 47).
A empreitada emocional que significa essa viagem “até o miolo das coisas”
(CASTELLO, 2010, p. 101) se manifesta metaforicamente em expressões que conotam
espaços fluidos, frágeis, dolorosos. Nenhuma parte do percurso é feita sob o manto da
segurança, da convicção. Sempre um tatear no escuro, os contatos que estabelece com
personagens e coisas não são sequer um fio de Ariadne, conforme o narrador-escritor anuncia
em: “Tropecei no passado e o desprezei. A história que persigo é feita de fios delicados, que
minhas mãos grossas não conseguem repuxar” (CASTELLO, 2010, p. 81): tio Antônio “é só
um vulto em meu [seu] passado” (CASTELLO, 2010, p.23).
Vários elementos metonimicamente ilustram essa viagem tateante, em que o narrador-
escritor procura indícios que desvendariam o pai. Trata-se de objetos sempre ainda a
descortinar, impalpáveis, incompreensíveis: o velho Martins, “uma chama muito fraca, [que]
emite uma luz que mal consigo [consegue] divisar” (CASTELLO, 2010, p. 160); o dicionário
do avô, “uma caixa de dobradiças, em que as palavras oferecem não só a face ardente, mas
um reverso no escuro. Em que elas se desdobram e racham. No coração das palavras existe
uma fenda” (CASTELLO, 2010, p. 179); o menino que esmola uma “[...] pegada” do pai
(CASTELLO, 2010, p.186).
Desencontrado do pai, desencontrado de si, o narrador-escritor entremeia seu enredo
de peregrinação pelo passado do pai a retomadas de seu próprio passado costuradas por suas
reflexões, emolduradas pelos títulos que encabeçam outros capítulos que percorrem a pauta
musical “Cala a boca”: Infância, Angústia, Kafka, Família, Bichos, Nada. Um desassossego
perene, norteado pela relação pai-filho, transborda no decorrer dessa viagem: a sensação de
vazio aprendida na convivência com o pai: “Não sei o que você pretende, me limito a cumprir
ordens. Quando vê que me cansei, diz: ‘Você pode arrastá-lo para um lado, ou para o outro.
Não importa: ele estará sempre em algum lugar’.” “Você tem razão: nunca nos livramos do
vazio” (CASTELLO, 2010, p.28); a angústia do não pertencimento: “Então, eu entrava às
pressas (como um caixeiro-viajante, como um Samsa); alguém que está só de passagem por
um território que não lhe pertence e que lhe é adverso. Chegava movido pela necessidade —
de me lavar, de urinar. Empurrado” (CASTELLO, 2012, p.32); a consciência de que era um
ser kafkaniano: “Você nem sequer levanta os olhos. Sua indiferença me esmaga. Sou uma
barata que se esquiva pelo vão da porta. Sou Gregor Samsa, a rastejar em meu quarto”
(CASTELLO, 2012, p.71); a percepção do estranho que sempre o habitou: “A mulher morre,
ele sobrevive. Para homenageá-la, o marido, um Queiroz, adota o sobrenome da esposa. Dele
161
— como uma nave que se prende a um fio imaginário — descende toda a família no Brasil”
(CASTELLO, 2012, p.48); o entendimento da fuga por meio da metamorfose: “Nunca
entendeu que — imitando Gregor com sua casca e o tatu com sua armadura — foi o salto para
dentro que me salvou” (CASTELLO, 2010, p.181); a descoberta de que busca pela memória
do pai é a busca do nada: “Você bem que podia estar aqui, pai. Na verdade: você está aqui.
Reduzido a uma lembrança, agora sim eu o tenho. É uma posse precária, da qual o principal
(você mesmo) se exclui. Um consolo — como uma peruca ou uma perna ortopédica. Aposso-
me de sua sombra” (CASTELLO, 2010, p.200).
Todas essas andanças ilustram que a espacialidade que se configura na obra Ribamar
tem como ponto fixo o que o narrador denomina O Ponto de Gralha, apenas um fio que
comanda marionetes, títeres ao ar. Deslocada em uma pauta musical, em cartas suspensas de
seus destinos, em capítulos, a espacialidade é construída por uma voz narrativa
impossibilitada de se fixar nos lugares que lhe foram ofertados, como o ambiente familiar. Por
isso, essa voz discursiva passa a ser criadora de outros espaços, seus, sempre em mobilidade,
em travessia, sem âncora, conforme afirma: “Enigma que, aqui, não tenho a intenção de
decifrar, mas só de percorrer. Sim, porque este livro é uma travessia. Não escrevo sobre você.
Eu escrevo através de você” (CASTELLO, 2010, p.56).
A obra Divórcio, de Ricardo Lísias(2013), coloca sob suspeição essa relação entre ser
e estar, começando por um primeiro capítulo cujo foco narrativo, em primeira pessoa, encena
ver-se fora de si mesmo: representa não ser e, portanto, não estar, colocando-se como alguém
que não é um vivo e também não é um morto:
Depois de quatro dias sem dormir, achei que tivesse morrido. Meu corpo estava
deitado na cama que comprei quando saí de casa. Olhei-me de uma distância de dois
metros e, além dos olhos vidrados, tive coragem apenas para conferir a respiração.
Meu tórax não se movia, Esperei alguns segundos e conferi de novo.
A gente vive a morte acordado.
Nos momentos seguintes, não sei o que aconteceu. Tenho pontos obscuros na minha
vida entre agosto e dezembro de 2011. Neles, devo estar morto (LÍSIAS, 2013, p.7).
Esse narrador olha para seu corpo como se fosse um outro, alguém do lado de fora
dele, “a uma distância de dois metros”, vendo seus olhos de morto, percebendo-se sem
respiração, como um espírito desencarnado de seu corpo e observador de si mesmo,
simulando estar de fora. Situação nonsense, configura-se nela um personagem olhando para
um outro personagem que é ele próprio: ele mesmo é um outro, de tal forma dissociados e
indissociáveis. Tomado de forte sensorialidade, descreve-se como se as sensações fossem ao
mesmo tempo alheias e suas — sente seu corpo cair, estende o braço, choca-se com a cama e
sente ardência, porque seu “corpo estava sem pele” (LÍSIAS, 2013, p. 7). Assim desnudado,
sem pele, o narrador vê a complexidade de si mesmo, seu estado interior, sem roupagens,
desprotegido, morto. A imagem um tanto kafkaniana consolida um espaço de linguagem,
composto de uma descrição em frases curtas, instantâneas (“Não consegui. Meu estômago
encolheu. Senti falta de ar” (LÍSIAS, 2013, p. 8)), que comandam os movimentos do narrador
ante o personagem que é ele mesmo, como se ele estivesse dirigindo uma cena (“Agora,
distanciei-me um pouco” (LÍSIAS, 2013, p. 8)), aproximando ou distanciando sua câmera,
buscando o melhor ângulo de si, um convite para uma leitura a ser feita pela empatia de
sensações do leitor, que acompanha o trânsito de movimentos: enquanto o narrador-
personagem, com o braço direito, vira para conferir “se o caixão continuava no mesmo lugar”
(LÍSIAS, 2013, p. 8); enquanto se distancia um pouco e respira fundo; enquanto se apoia na
parede; a cada movimento do narrador-personagem, o leitor move os olhos, sente o ar
respirado, contata a parede fria. Então, o corpo, com suas reações atalhadas por outras (“Tive
dificuldade para abrir os olhos. Minhas mãos latejavam. Um clarão distante me deixou com
tontura. Um corpo em carne viva é quente” (LÍSIAS, 2013, p. 8)), entrecortadas pelo discurso
composto de frases curtas, estanques, é a base da percepção espacial em que se dá aquela
imagem de morte a se desfazer, reavivada pelos mesmos sentidos que, levados ao extremo na
163
sensação da loucura, lançam o narrador para a busca de um estado de vida, de estar e, então,
de ser:
Não me lembro das horas seguintes. Por volta da meia-noite, nervoso por ter
enlouquecido, saí para andar. Quando cheguei a uma avenida bastante movimentada,
fiz a primeira das muitas promessas que colocaria na cabeça nos meses
seguintes:Morro só mais uma vez (LÍSIAS, 2013, p.8).
A cena inicial ilustra aquilo que Brandão (2013) afirma ser uma problemática espacial
de alta complexidade, na qual se tensionam os significados de espaço disseminados e as
experiências espaciais usuais em âmbito literário, de forma que a categoria espaço é posta em
um deslimite. Trata-se de desfalimiliarizar elementos extratextuais que passam a ter
significações heterotópicas, com “ênfase naquilo que diferencia (ou melhor,discrimina) certos
lugares, naquilo que torna não trivial a sua condição” (BRANDÃO, 2013,p.248). São três as
localizações anunciadas nesse início de enredo, no que tange a espaços extratextuais: uma
casa da qual em algum momento o narrador-personagem saíra (“Meu corpo estava na cama
que comprei quando saí de casa” (LÍSIAS, 2013, p. 7)); o espaço onde ele está e de onde ele
sai para andar — o que dali a pouco será denominado “cafofo” (“Por volta da meia-noite,
nervoso por ter enlouquecido, saí para andar” (LÍSIAS, 2013, p. 8)); a rua (“Quando cheguei a
uma avenida bastante movimentada [...]” (LÍSIAS, 2013, p. 8)). Dois deles são espaços de
dentro — casa e cafofo; outro, espaço de fora — rua. Ocorre que nenhum desses espaços é
descrito, estão todos destituídos de sua função localizante e passando à função de representar
o estado de desestabilização do narrador. São, assim, áreas que quebram a estabilidade em
que, tradicionalmente, se situam, porque carregam elementos que ali se configuram também
de forma inusual — como espaços de atuação do narrador-personagem: na casa, a desproteção
imputada ao narrador pela leitura do diário; no cafofo, a exposição de um corpo desnudado;
na rua, ainda a centralidade do corpo, mas sendo reconstruído para ser o abrigo de si mesmo,
pela reconstrução de sua pele. Toda essa espacialidade se dá pela encenação de um narrador
que se personifica na função de um escritor. Sendo assim, trata-se de um escritor sem
coordenadas, perdido em sua vida pessoal e profissional, que, esteticamente, configura sua
descoordenação desdobrando espaços em outros espaços, assim revelando o modo como os
percebe, melhor dizendo, como se percebe neles.
A casa, vista por Bachelard como “o nosso canto do mundo [...] nosso primitivo
universo, [...] um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda acepção do termo”
(BACHELARD, 1988, p.24), é, na obra em estudo, o espaço promotor do caos. O enredo nos
164
Lembrei-me de uma conta que precisava pagar naquele dia. Abri a gaveta da minha
ex-mulher e vi o boleto no meio de um caderno. Li uma frase e minhas pernas
perderam a força. Sentei no lado dela da cama e por um instante lutei contra mim
mesmo para tomar a decisão mais difícil da minha vida. Resolvi por fim ler o diário
da primeira à última linha de uma vez só (LÍSIAS, 2013, p. 25).
O diário passa a fazer parte, assim, das representações vinculadas à espacialidade que
compõem a narrativa, pois ele será também um espaço percorrido: suas linhas serão
frequentadas insistentemente, repetidamente. O teor da primeira frase, por exemplo, detona a
saída do narrador de sua casa para o cafofo e para a rua, num atravessamento incessante entre
essas extensões. Os registros são um espaço de leitura (da mulher quanto a ele; dele,
memorialmente, quanto a si e a ela, quanto ao período em que estiveram casados; e quanto a
si mesmo como escritor) que traumatiza a vida do narrador, provocando a perda da sua pele,
tornando seu corpo um espaço de visível desproteção. Impulsiona-o para a rua, para
quilômetros a serem percorridos em uma corrida frenética; é, por fim, um objeto discursivo
que funciona como ponto de partida para que o narrador se destroce de si mesmo, construindo
165
um movimento que resulta em um outro espaço, materializado e discursivo: uma obra literária
intitulada Divórcio, que chega até o leitor.
Entre os efeitos da leitura do espaço discursivo diário, o primeiro é, então, a alteração
do espaço físico em que se encontra o narrador. O apartamento (domus) fica tomado pelo
silêncio e tensão, o que foi seguido por ações rápidas e encadeadas de recolha de um objeto
aqui, outro ali, ainda algum acolá, em um arranjo agitado, exaltado, de fuga, para, enfim, o
protagonista alcançar a rua. Em seguida e no mesmo ritmo, o retorno rápido a casa, apenas
para pegar o diário, xerocá-lo, devolvê-lo ao lugar de origem. A partir de então, o enredo
passa a se constituir de uma viagem aos seus quatro meses de casado, entremeada pela visita
constante a trechos do diário e ao passado.
Simultaneamente, o protagonista chega ao cafofo, onde se dá a cena inicial da
narrativa, momento em que ele se vê fora de seu corpo. Esse segundo espaço de dentro será
um substituto do primeiro no sentido físico de ocupação, entretanto, sem a ilusão da
estabilidade, pois ele é apenas um ponto geográfico de apoio, para onde o narrador vai, de
onde sai, para onde retorna. É nele que o narrador se descobre um outro, um corpo, e um
corpo sem pele, desprotegido. O cafofo é, assim, pouco descrito e vale mais como uma
referência para o narrador, para ter para onde voltar e de onde sair. Não se trata de um posto
de paragem:
Achei-a delicada e me emocionei. Na hora que saí, fiz questão de agradecer. Ela
talvez tenha achado um exagero. Voltando para o cafofo, procurei refazer na
memória o rosto da moça. É bonita, concluí.
Não sei o que aconteceu nesse intervalo. Agora, vejo-me de novo na avenida
movimentada (LÍSIAS, 2013, p. 12).
Seu espaço físico de maior constância será mesmo a rua, o lugar realmente seu,
entretanto, não em continuidade nem em fixação em nenhum dos pontos que pertencem à via
pública e frequentado sem disciplina, aleatoriamente, a serviço do estado emocional em que
se encontra. Mais uma vez, o espaço vai funcionar como condição de vivência subjetiva,
portanto, ele não tem valor em si mesmo, mas é algo que se projeta sobre o narrador-
personagem, permitindo que ele projete suas sensações e aprendizagens, estas que se dão de
forma intensa e dinâmica.
Não é por acaso, então, que os títulos dos capítulos da narrativa sejam encabeçados
pela expressão “Quilômetro um”, “Quilômetro dois”... até que o narrador tenha percorrido 15
quilômetros, o último, “Quilômetro quinze”. Essa travessia não é feita por um flâneur, um
apaixonado pelas ruas e que delas usufrui deleitosamente, descrevendo-as, tornando-as
166
Esses caras que leram demais são muito fechados. Meu marido é muito esquisito. O
Ricardo reclamou da fila da Broadway. Ele vai ficar dez dias em NY e não vai ver
um espetáculo da Broadway! Ele leu muito, mas não sabe que pela Broadway
passaram os grandes atores que começaram a vida lá. Ele quer andar na rua! O
Ricardo leu muito, mas não sabe nada (LÍSIAS, 2013, p.73).
Por isso é que, também não por acaso, um dos campos semânticos dominantes na
narrativa pertença ao espaço exterior, a rua. Primeiramente, os elementos citados para
demarcar o espaço são pertinentes a ela — metrô, plataforma, estação, vagão, avião,
aeroporto, ônibus, etc. — entretanto, não restritos ao período pelo qual passa o narrador. Os
casos que conta do seu passado, infância e juventude, carregados de situações extratextuais,
dinâmicas e agitadas, ratificam isso: “No caminho até o aeroporto da minha primeira viagem
de avião, percebi que a careca do meu avô tinha um machucado” (LÍSIAS, 2013, p. 31).
A pele ferida de um rosto e os trens estão na minha lembrança mais antiga. Foi em
1980 ou 81. Minha mãe não soube precisar. Consultar o resto da família seria muito
doloroso. Eu tinha por volta de cinco anos.
Da nossa casa até a dele, o caminho custava mais de duas horas e exigia um ônibus,
dois metrôs e por fim a única parte que eu gostava: uma viagem de trem entre a
estação Júlio Prestes e a de Osasco (LÍSIAS, 2013, p.41).
Em 2002, juntei dinheiro para visitar a Irlanda. Minha ideia era ficar uma semana
em Londres, para onde não tinha voltado desde o intercâmbio maluco anos antes, e
depois passar outros sete dias na cidade de Joyce e Beckett. Achei que seria mais
agradável evitar os aeroportos e resolvi tomar um ônibus até onde partem as balsas
da costa inglesa. Para não cansar muito, fiz uma parada na feia Birminghan. De lá,
tomei outro ônibus para amanhecer no porto e atravessar para a Irlanda (LÍSIAS,
2013, p.49).
Ainda as metáforas para ilustrar como se sente o narrador são também da mesma área
do movimento externo (“[...] como se um trem estivesse passando dentro de mim” (LÍSIAS,
2013, p. 29); “O mundo continua em silêncio, mas agora eu já não me sentia tranquilo.
Preciso atravessar dois cruzamentos” (LÍSIAS, 2013, p. 28)); e da necessidade de não estar
em espaços restritos. Tanto é assim que um dos trechos do diário mais visitados é a frase com
que a ex-mulher o descreve, restringindo-o a um ocupante de espaço exíguo: “Casei com um
homem que não viveu. O Ricardo ficou trancado dentro de um quarto lendo a vida toda”
(LÍSIAS, 2013, p. 15).
Todo o envolvimento com o externo traduz, então, um narrador que vive em trânsito
— entra em um casamento de solidez ilusória; sob forte impacto, sai desse casamento; sente-
se perdido, deslocado, sem coordenadas; tenta encontrar, nesse turbilhão, algo em que se
apoiar. Assim, no decorrer do primeiro quilômetro, a sensação é de enfraquecimento, ausência
de pele, dor ao menor toque, sensibilidade à flor do nada. Nos seguintes, ele caminha sem
168
saber exatamente os roteiros pelos quais passa. Contudo, gradualmente, vêm as mudanças,
sob efeito do caminhar, do andar mais rapidamente, do correr: sem pele, com um pouco de
pele, com pele. Ao longo do percurso, as ruas são lugar de perdição, de desencontro e
encontro consigo mesmo. Não há uma descrição de lojas, de praças, de letreiros que dê pistas
e roteiros. Não há paredes a serem pichadas. Só há ele, o narrador-protagonista, que sente seu
desvario, seu riso, seus passos, e, por fim, um corpo sob domínio, com percepção até de
braços:
Quem pensa sem ar: ninguém, por exemplo. Você pode chorar desesperadamente na
avenida mais importante da América Latina. Ninguém vai te ajudar. Ninguém me
perguntou nada quando entrei na linha errada do metrô e olhei confuso para o
letreiro. Eu precisava que um velho me dissesse algo, ou uma moça, mas ninguém
me olhou no metrô de São Paulo no pior dia da minha vida (LÍSIAS, 2013, p.9).
[...] Tomei um táxi e ele logo chegou. Olhou-me como apenas dois homens que se
conhecem muito bem são capazes e na mesma hora me abraçou e me emprestou um
pouco de pele. Me dá isso. Ele pegou a cocaína e jogou no bueiro. Agora,
Ricardinho, vamos pichar o Itaú! Pichar com o quê? Repeti aquela cena ridícula de
quem ri quando está chorando feito um doido. Meu primeiro dia fora de casa estava
nascendo (LÍSIAS, 2013, p. 39).
No final do espaço que a agenda separava para aquele dia, escrevi com letras
maiúsculas: NÃO MANDAR MAIS E-MAILS, SMS OU TELEFONAR PARA
ELA, NUNCA MAIS. Saí para andar um pouco e senti algum ânimo para apertar o
passo. Se ficasse cansado, ao menos tinha alguma esperança de dormir (LÍSIAS,
2013, p.66).
Mais cinquenta metros e essa subida acaba. Dá para ver o pessoal chegando lá em
cima. Eles se viram, alguns dão pequenos saltos e vários erguem os braços. Eu
mesmo estou a poucos metros. Seria um erro tentar chegar à situação do meu corpo
agora. Nada vai me impedir de subir correndo esses últimos dez metros. Prefiro
quebrar a perna ou desmaiar sem fôlego. A gente vira especialista em medições:
cinco, quatro. Sou um engenheiro com uma fita métrica. Na verdade, sou um atleta.
É como me sinto agora aqui em cima, olhando para trás. Meus braços também estão
para o alto.
Acabou (LÍSIAS, 2013, p.229).
para os transeuntes, tem seu gosto por andar transformado em compulsão. O diário, esse
agente de perturbação, passa a ser um lugar frequentado como forma de alimentar essa
perturbação, que se faz e se desfaz em um atravessamento de 15 quilômetros, num ascendente
esforço de correr, desafiando o próprio corpo.
Todos os espaços — casa, diário, cafofo, corpo, rua — em suas idas e vindas, inserem-
se em um outro espaço, uma obra literária, Divórcio, cuja construção está entremeada ao
enredo, produzida pelo narrador-personagem, um escritor, Ricardo Lísias. Todos eles
preenchem os capítulos ordenados por uma sequência espacial — “Quilômetro um”,
“Quilômetro dois”... até “Quilômetro quinze”. Há, dessa forma, uma projeção desses espaços
em uma condição espacial estendida em um enredo, no qual atuam narrador, personagens,
espaços, categorias esteticamente postas e amarradas a esse desnorteio do narrador-escritor: a
escrita da obra, alongada em capítulos-quilômetros, empreende a reconstrução de alguém
“despelado” pela leitura de um diário, um espaço discursivo em cujas páginas é alvo de
críticas; de alguém que, percorrendo espaços, tentando adquirir nova pele, escreve. Essa voz
coloca seu mérito de escritor em questão, o que é impulsionado novamente pela leitura do
diário, que desestrutura o personagem na sua função de marido e na sua função de escritor,
servindo como um troféu, como objeto promovedor de status:
Ele viveu aventuras e sabe que o cinema é igual jornalismo: é vida. E o Ricardo?
Por acaso o Ricardo foi para alguma guerra na África? O que ele sabe da vida? Ele
não me dá nenhuma das aventuras que eu preciso (LÍSIAS, 2013, p. 80-81).
O que deixou meu corpo morto, no entanto, não foi nada disso. A seguinte frase
tirou-me toda a pele: Casei com um homem que não viveu. O Ricardo ficou trancado
dentro de um quarto lendo a vida toda (LÍSIAS, 2013, p.122).
Para salvar-se do menosprezo, para entender como lhe fora possível ter dito sim a um
casamento com uma pessoa tão pouco afeita ao companheirismo e ao respeito, o narrador
escreve, mas não considera que essa prática surtirá o efeito pretendido, desconfiando de seu
próprio fazer literário: “Por que eu disse sim? Acho que nem esse livro vai me dizer. Poucas
coisas são mais ridículas, e de novo clichês, do que gente que subiu na vida trabalhando.
Aceitei casar com uma pessoa que progrediu com o próprio suor...” (LÍSIAS, 2013, p. 103).
Em suas tentativas de salvação ante a destruidora leitura do diário, o protagonista ironiza a ex-
170
mulher, transforma sua maneira de escrever na metonímia de sua mediocridade como pessoa,
ambas clichês, a má pessoa é a jornalista que escreve mal, uma pós-doutoranda em clichê.
Compara, para compor essa catarse, o seu próprio trabalho com o dela, demonstrando como a
escrita exige exercício: “Infelizmente, nunca conversei com a bem-sucedida sobre o tal
processo criativo. Este romance, portanto, tem um trecho incompleto. Não vou decepcioná-la,
porém: crio um plano e sempre prefiro cumpri-lo. Se as coisas dão errado, paro e o refaço”
(LÍSIAS, 2013, p. 105).
Entretanto, apesar de desconfiar de si, é por essa mesma escrita que o narrador-escritor
se encontra, equivalendo seu fazer literárioa seu processo existencial — momentos de
fracasso são fracassos que indiciam aprendizados; aprendizados que promovem esperança:
O capítulo fracassou. Meu plano inicial era lembrar tudo o que vivi de bom com
minha ex-mulher para entender por que resolvi me casar. Na economia do romance,
seria o momento de descrever o que ela fez por mim, os passeios, as conversas e
sobretudo como cultivei o amor que comecei a sentir no lançamento de O livro dos
mandarins(LÍSIAS, 2013, p.131).
Divórcio é um livro repetitivo. Já escrevi algumas vezes que o fato de concluir algo
que eu tenha planejado me faz bem. Mas como minha cabeça se desarranjou
completamente, cada confirmação é um sinal de esperança [...] Escrevo esse trecho
um ano depois de sair de casa. Minha pele já voltou. Está novinha. Não sou a mesma
pessoa, claro, mas superei quase tudo. Só tenho raiva de ser obrigado a levar essa
história pelo resto da vida. Um clichê: um jurado humanista do Festival de Cannes e
a Catedral de Notre Dame (LÍSIAS, 2013, p.173).
Assim vida e romance seguem em paralelo, nas mesmas ruas, pelos mesmos trajetos:
conflito, como uma ilustração de sua insatisfação especialmente consigo mesmos nessa
condição de sujeitos partícipes da encenação da escrita.
Assim, com variações comportamentais, os espaços têm em comum o fato de que se
constituem como elementos que ilustram a desestabilização da autoria e, por conseguinte, da
voz narrativa. Eles se oferecem como um amplo horizonte interpretativo, no qual se
instabilizam as referências de localização. A categoria é, assim, posta em questionamento,
quebrando a expectativa de ser um elemento que disciplina o enredo, ajusta seus atores,
dando-lhes um chão. Pelo contrário, é ruptura e, dessa forma, converge para o questionamento
da própria produção literária, cujos narradores encenam-se em des-lugares, numa inquietude
que põe em movimento as imagens, com deslocamentos que carregam consigo esses
narradores, ou com narradores que carregam consigo esses deslocamentos intrínsecos a si
mesmos. A exemplo, retomamos a narradora-escritora de A vendedora de fósforos, de Adriana
Lunardi (2011), a qual vive, durante a sua infância, à sua revelia, inúmeros deslocamentos, o
que lhe traz desequilíbrios. Tenta se fixar, para alcançar, assim, um equilíbrio, mas não o
consegue, impelida que é a viajar pelo passado itinerante, cosido em sua estrutura emocional.
A composição da espacialidade, nessas obras em estudo, nos levou a um exercício de
leitura de como se representam espaços extratextuais já não autoevidentes, tornados objetos
textuais de problematização reveladores de vozes discursivas que se autoproblematizam. São
construídos para dar passagem a narradores desconcertados, sendo, pois, fundamentais para os
efeitos de sentidos propostos. As cinco obras aqui estudadas se estruturam na linguagem, na
qual os discursos dos narradores são metaforizados em espaços que delineiam a narrativa.
Não se trata de espaços que produzem efeitos de real, mas efeitos de narrador, de
subjetividade.
Esses espaços podem se manifestar na forma de um percurso, um itinerário, como se
dá em A vendedora de fósforos(LUNARDI, 2001), mas que, geograficamente, perdem lugar
para uma peregrinação interna; são reveladores de uma alma que busca o equilíbrio da
estabilidade, sem nunca conseguir. Podem ser algo contínuo, como as ruas em Divórcio
(LÍSIAS, 2013), porém inominadas, sem detalhes, sem princípio, meio e fim, sem um roteiro
que lhes dê identidade. Podem ser trajetos de viagem, como em Ribamar (CASTELLO,
2010), contudo, transgredidos pela geografia da memória. Podem ser nomeados, como em
Berkeley em Bellagio(NOLL, 2002), entretanto, nessa própria titulação, metamorfoseados em
errância, em sobreposição um ao outro. Podem ser localizados, como o sótão, de A história
dos ossos (MARTINS,2005), mas tomados de desconforto, constituídos de desordenação.
173
Figura 2
no inventado da segunda, que exige do observador a disposição para descer degraus outros,
desconhecidos, abismais. Trata-se de uma obra que se constrói pela metalinguagem, em
consonância com o conceito apresentado por Ivete Walty: “[...] formada com o prefixo grego
meta, que expressa as ideias de comunidade ou participação, mistura ou intermediação e
sucessão, designa a linguagem que se debruça sobre si mesma” (WALTY, 2016).
Muitas obras literárias deixam à disposição do leitor, por meio de arranjos verbais,
essa escada avessada de Madoz, tratando de oferecer-lhe um trajeto de leitura que inverte o
que seria o sentido primeiro, o real a ser percorrido, levando-o para um outro lugar, o lugar
abismal da ficção. O fenômeno é denominado de metaficção e, conforme tratamos
brevemente no início de nossos estudos, não se trata de uma novidade.
Segundo Mário Avelar, em verbete publicado no E-Dicionário de termos literários,
organizado por Carlos Ceia, metaficção é a
Como vimos em nossas páginas iniciais, obras da tradição clássica universal e literária
brasileira, como Dom Casmurro, de Machado de Assis,São Bernardo, de Graciliano
Ramos,Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e Água Viva, de Clarice Lispector, já
desenhavam para o leitor essa escada de degraus inversos, cuja descida implica um
movimento de corpo que direciona o olhar para o interior da narrativa. A leitura dessas obras
se faz por caminhos que não estão exatamente apenas no enredo, mas em uma moldura que
deixa clara sua própria natureza e em veredas que elucidam sua engrenagem no que tange à
composição, entre outros elementos, de seus narradores, responsáveis, em alguma instância,
pela escritura. Seus sujeitos ficcionais desfilam, esteticamente, em sua narração, sua
desconfiança em si mesmos, pondo em questão a legitimidade de sua atuação como voz
discursiva encarregada da escrita, da contação, da declaração, de atos, enfim, vinculados à
produção estética da palavra, de forma que refletem a realidade, mas nos encaminham para
além dela, para um trajeto que projeta o processo da escrita. Esses autores clássicos nos
avisam, então, que não há novidade no desenvolvimento dessa proposta literária.
176
Seguindo nossa proposta, verifica-se, emA passagem tensa dos corpos (BRITO E
MELLO, 2009), um narrador que recusa o exercício dessa função. Entretanto, por meio dela,
maldizendo-se e maldizendo-a, aprisiona-se nela, enquanto almeja dela se livrar. Tudo o que
ocorre no desenvolvimento do enredo revela a rejeição a essa sua condição, de tal forma que a
obra acaba por ser constituída dessa rejeição. Trata-se, então, de um processo no qual se
desnuda o jogo em que se problematiza a escrita, o ato de escrever, ao qual subjaz uma
pergunta: quem sou eu?Essa questão se desdobra em outras, respondidas na mesma linha
estética que se observa no decorrer da obra: qual é o papel do escritor no mundo da literatura?
Escrever é viver ou morrer?
O que lhes responde é um projeto estético, algo realizado no plano da expressão, que
se compõe de índices formais, um deles já estudado no segundo capítulo — a
(des)configuração do narrador — ; outro, a geografia pela qual circula esse narrador; e ainda o
jogo composicional entre o texto não literário e o literário, duas forças em luta, que estão a
serviço do vivido pela voz discursiva, um embate interno em cujo decorrer vai-se fortalecendo
aquilo que ele se recusa a fazer: narrar. A resposta à questão quem sou eu? é, então, um
procedimento que se dá no plano da expressão e se desenrola no plano do conteúdo.
Por isso, a concepção do enredo se traduz em formas de a voz discursiva dizer a si
mesma que tratará de demonstrar como se sente com relação à escrita: como posso representar
essa impotência, esse algo que me move, esse processo narrativo inelutável? Entre as formas
encontradas, está a materialização da voz discursiva no feitio de uma língua.
Desconfigurada, então, essa voz discursiva que narra o conteúdo é a de um ser tirado
de sua inteireza, sendo apenas uma língua que encena situações em trânsito, ilustrativas dessa
incerteza do narrador quanto à sua própria natureza. Apesar de não ser um todo, mas um ser
parte de um todo — uma língua —, é capaz de pensar, agir, propor-se a, configurando-se
como um ser que transita entre o humano e o nada, apresentando-se apenas metonimicamente,
178
aspecto trabalhado no segundo capítulo deste estudo. Embora ele se assuma como um
narrador, rejeita essa função e, concomitantemente, sofre por ter suas condições confinadas a
registrar óbitos, sendo despotencializado das capacidades pertinentes à função de narrador.
Todavia, ao mesmo tempo, narra. Isso o coloca no trânsito de dois enredos cruzados: em um
deles, partícipe de uma cena que não é sua (a morte de um homem sem que se faça o registro
desse óbito), mas da qual necessita e sobre a qual, desesperadamente, não tem controle; em
um outro, partícipe de uma situação que é a sua (alguém que quer sair do mundo da ficção e
só conseguirá realizar seu intento sob a condição de realizar o registro de certo número de
óbitos), mas um partícipe que nada significa sem a primeira. Essa narrativa se afigura como
uma espiral, ela é urdida no formato de um redemoinho.
Nesse movimento de entrelaces, além de ficar dirigindo-se a espaços que lhe forneçam
óbitos, o narrador circula pelos cômodos da casa onde está o morto, potencial nome para seu
almejado último registro, mas sem que consiga obtê-lo. Por ser um espaço ininteligível para
ele, onde nada se resolve coerentemente como deveria na lógica com a qual ele conta, o
narrador desloca-se por ele em busca de compreendê-lo e alcançar seu objetivo. Essa é a
segunda situação encenada como algo em trânsito, que se manifesta no andamento do enredo,
andamento constituído de movimentos frenéticos que retratam o labirinto interior que vive
essa voz discursiva: irrequieta, impaciente, ela movimenta-se de lá para cá, de cá para lá,
nunca encontrando aquilo que busca, nunca se encontrando confortável, equilibrada,
sossegada. Assim desenha-se o painel da ficção: os fatos resultam na quebra de uma lógica
esperada; os índices estéticos são todos estranhezas, como o próprio movimento do narrador.
Este, querendo restringir sua produção à lógica dos registros de morte, tentando fugir da
condição da literatura de fazer com que as coisas aconteçam além dos desejos de um
registrador de óbitos, acaba por produzir o inusitado: a contação das próprias voltas em torno
de si mesmo, de tal forma que os fatos mais se intrincam que se desenrolam.
Essa procura interior conjuga-se, assim, com a terceira situação encenada, presente por
meio de um embate entre gêneros textuais que se sobrepõem na obra: registros de óbitos,
gênero que exige simples informações, e uma narrativa que exige a presença de uma voz
discursiva capaz de engendrar esteticamente a narrativa, sofrendo o que Umberto Eco (2003,
p. 20) descreve como o ato de “experimentar o calafrio do destino”, no caso, o destino de ser
um narrador. Trata-se, portanto, de um embate também interno à voz discursiva, entre ser
produtor de registros de óbitos e ser narrador. Aqui se engendra a metaficção, pois o
enfrentamento é demonstrado esteticamente, perceptível na arquitetura da obra, intrincado às
outras duas situações que demonstram o trânsito em que se desorienta o narrador. Vejamos.
179
Tenho liberdade para trafegar pelas cidades atento aos mortos. Poucas são minhas
restrições, desde que me empenhe em descrever, com concisão e objetividade, as
condições de passagem dos corpos que receberam tiros e tijolos de inimigos (BRITO
E MELLO, 2009, p.14, grifo nosso).
Tenho liberdade para trafegar pelas cidades atento aos mortos. Poucas são
minhas restrições, desde que me empenhe em descrever, com concisão e
objetividade, as condições de passagem dos corpos que receberam tiros e tijolos de
inimigos
corpos que caíram na cozinha ou nos rochedos
corpos transformados em gás pelos incêndios
corpos de náufragos de poço artesiano, que exigem
dos familiares o aprestamento do velório para o entorno d’água onde o ente perdeu o
pé (BRITO E MELLO, 2009, p.14).
Há, como o trecho deixa esculpido, contradições entre aquilo que o narrador diz ser
sua função e aquilo que ele faz: precisa ser conciso e objetivo no registro de óbitos, mas
incorpora ao seu produto torneios, sonoridades, jogos espaciais, figuras de linguagem,
tomados de subjetividade, de tons dramáticos, de dor, estratégias incongruentes para o gênero
que pretende adotar: há a anáfora da palavra “corpos”, com produções de sentido relativas à
reificação da morte e sua inexorabilidade; também a expressão “tiros e tijolos”, uma
somatória de aliteração, assonância e paranomásia, que denuncia a mesma inevitabilidade da
morte, intencional ou ao acaso; ainda a antítese entre o corriqueiro e o extravagante em
“caíram na cozinha ou nos rochedos”; ademais, a metáfora, em “corpos transformados em gás
pelos incêndios”, denunciante da efemeridade de tudo; e a dramaticidade, em “corpos de
náufragos de poço artesiano, que exigem dos familiares o aprestamento do velório para o
entorno d’água onde o ente perdeu o pé”, cena que, sendo descrita, revela o bizarro presente
no costumeiro.
A obra é carregada dessas formas desobedientes, que aguçam leituras, compondo
esculturas verbais à la escada de Chema Madoz. São visualidades estéticas que solicitam
180
Visitei cidades com o intuito de registrar as mortes mais recentes que nelas
ocorressem, permitindo-me, às vezes, narrar as condições que antecederam ou
sucederam o óbito, para que se compreendesse
que ao redor da morte não se permanece incólume (BRITO E MELLO,
2009, p.14).
Esse modo está à tona, explícito, na impressão inusitadada frase na página, o que
promove uma pergunta da ordem do estético: por que há a segmentação da frase — oração
principal (para que se compreendesse) separada espacialmente da subordinada (que ao redor
da morte não se permanece incólume)? Essa impressão desnuda a fala do narrador, ou seja,
quando ele diz que se dá permissão para narrar as condições que antecederam ou sucederam
um óbito, está se referindo ao conteúdo, pois ele pode escolher as mortes a registrar, mas
também ao modo de narrar, pois está se referindo a um procedimento estético.
Toda a frase é uma metáfora, no que tange a seu conteúdo e à sua forma, pois ambos
— conteúdo e forma — se ajustam, transpostos para a própria experiência narrativa: a própria
voz discursiva não está incólume ao redor da sua morte — a que deseja — como narrador; e a
que vive — como personagem de sua própria história. O narrado, afinal, é a sua
impossibilidade de ser inteiro, de ser invulnerável.
Dessa forma, a disposição, por exemplo, dos parágrafos, dos períodos, das orações, é
uma operação de produção discursiva que traduz a voz do narrador como aquele que prepara a
dimensão do seu dizer. Muito mais do que o registro de mortes, e ainda muito mais que uma
história, trata-se de uma ação ativa de quem tem algo a ser mostrado, manipulando o enredo
como um objeto formal. Sendo assim, o que está sendo principalmente contado é mais que o
enredo, são as circunstâncias em que se dá o processo narrativo, o modus operandi, as
intenções poéticas que a ele subjazem. Por isso, quando o próprio narrador assume uma outra
intenção, fazer com que as pessoas compreendam a morte, ressalta o poder da morte com
relação à narrativa e a si mesmo e faz, então, algo além daquela função de registrar óbitos. E,
para fazer esse destaque, utiliza-se de um recurso estético: segmenta o período, deslocando,
não sintaticamente, mas no espaço da página, a oração subordinada de sua principal. Há a
consciência da página como um espaço a ser usufruído, matéria na qual ele engasta a o
181
construção de um narrador que é uma língua. Ocorre, porém, um outro desvio: a sequência de
elementos se faz interligando-os pelo sentido do paladar, entretanto, há ainda um último, que,
inesperadamente, pertence a outro campo semântico, o do tato. Assim, a cadeia de palavras do
campo semântico do paladar — leite, ovos, açúcar — é rompida com a palavra “calor”. A
pouca familiaridade entre os três primeiros elementos e o último subjetiva a cena, orientando
a leitura para o sentimento sempre de inadequação do narrador, ao mesmo tempo fazendo com
que a estratégia linguageira de quebra de expectativa protagonize a cena.
Por fim, coopera para a discussão teórica a que se propõe o capítulo sua exiguidade.
Tão concisa, essa composição faz referência à própria composição de um capítulo, elucidando
sua natureza inventiva, expondo-se como um artifício, evidenciando a permissão que lhe dá
seu status ficcional. Isso significa que se mostra como uma autorreferência, exigindo do leitor
conhecimento sobre convenções artísticas. Essa brevidade metaforiza também a pouca
capacidade do narrador de se alongar para um lanche, dado ao fato de ele ser uma língua.
Ainda metaforiza sua inquietude, sempre desperto para qualquer sinal que lhe permita
registrar o óbito. E, sintomaticamente, revela essas intenções que subjazem ao produto.
Pronto, o capítulo não esconde suas condições de produção, não esconde as intenções
estéticas que o constituem, não esconde que sua dimensão tem a ver com os efeitos que
pretende produzir.
Seguindo na esteira desses índices reveladores de uma atitude metanarrativa, em uma
nítida perseguição da forma, temos várias cenas em que o narrador se expressa sobre sua
própria condição, mais uma vez deslocando a leitura da história contada para o fato de essa
história ser contada. Faz assimum movimento de descontinuidade, roteiro pelo qual o leitor se
desvia da rota da narrativa, para ficar em uma zona paralela, a rota da narração, na qual se
depara com a representação do processo criativo. Exemplo em que isso se faz presente são
trechos do capítulo 46, quando o narrador trata da sua impotência:
Perpassa o capítulo um tom desolado que denuncia um narrador com desejos: ele
precisa dar curso aos registros de óbitos, precisa que o corpo que está sentado na cadeira seja
reconhecido como morto. Mas o reconhecimento não está em suas mãos. Ele nada pode
contra suas antagonistas, mulher e filha do homem que ali jaz. Desejoso de dar
prosseguimento ao enredo, para que possa alçar um lugar que não o de narrador, como seria
se fosse um autor, invocaria as ninfas. Porém, tem a ciência de seu papel de nada e ninguém,
reconhece-se como alguém que não as merece. A referência às ninfas é referência ao próprio
escrever poético.
Claudia Amigo Pino, tratando da metaficção em Dom Quixote, de Cervantes, afirma
que
[...] é possível ler esta referência [no caso, à obra La Galatea, do próprio Cervantes]
como uma alusão ao próprio livro que se lê, ao seu inacabamento e,
consequentemente, à ideia de que o nosso objeto de leitura é um processo e não uma
obra acabada. Também podemos interpretá-la como uma referência à criação e à
existência de vários manuscritos no interior da trama (PINO, 2004, p. 37).
entremeadas por uma carta; c) que se orienta por uma outra carta, tudo compassado pela pauta
musical de uma canção de ninar.
Acrescentamos que, nesse andamento de música infantil, se inscreveum enredo
romanesco a que o narrador denomina´registro de notas`, desenvolvido em meio a uma carta,
esta entrelaçada a uma outra carta. O conjunto de objetos sem situação definida, algo sem
arremate, problematiza a construção da obra literária.
O narrador, então, assume sua escrita como uma metalinguagem, comentando seu
processo, discorrendo sobre ele. Duplica, assim, seu texto, justapondo uma história de si
mesmo às interrogações sobre a construção dessa história sobre si mesmo como escritor,
portanto, sobre a escrita, de forma a exigir um leitor que não lê apenas a narrativa, mas
também a narração, ambas no mesmo processo ficcional. Intrincado a essa duplicidade, há um
emaranhado de gêneros e de alusões que se somam a pensamentos sobre a escrita:
todas, ligadas pela problematização quem sou eu?. Usufruindo de Gustavo Bernardo,
podemos dizer que essa “ponte entre esses níveis diferentes de ficção tem o nome de
metaficção. É uma ponte interna, e nela se pensa a ficção dentro da ficção” (BERNARDO,
2010, p.37).
Ainda seguindo as reflexões do estudioso, afirma-se haver um contrato de ilusão
quebrado pela metaficção. No caso da obra em estudo, a quebra se dá pela pergunta-problema
que põe em dúvida o papel do narrador e o do escritor, enquanto problematiza o gênero, pois
o narrador-escritor diz mal saber o que escreve. Assim, o leitor tem que dar atenção a algo que
quebra a leitura fluida do enredo, o caminho de autoconhecimento do narrador na sua função
de escritor, caminho repleto de visitas a outros narradores e a outros gêneros. Ele deve
contemplar a metaficção.
O capítulo 11 é exemplar na constituição dessa metanarratividade em que se configura
a obra. Ele todo é uma reflexão sobre a escrita ficcional, sobre o que importa a ela ou não, e
atenta para os jogos de significados das palavras que promovem efeito na narrativa. Também
visita outras obras, fazendo intertextualidades, urdindo vozes. Essas ações deixam expostos os
bastidores e claras as reflexões metodológicas da construção ficcional.
Novamente, o narrador faz visita a Kafka, nome que provoca. Há, sob o véu de certo
desprezo e indiferença quanto aos significados das palavras, reflexões sobre o nome do
daquele escrito, tomado como um vocábulo de múltiplas figurações, desfeito em tons e
significados, ampliado em novas tessituras. A princípio, com os significados de “gralha” e
“perdiz”, o designativo tem uma sonoridade que leva, na língua alemã, sua origem, para
käferr, que significa besouro. Todas essas informações vêm do Professor Jobi, que está
absorvido pela obra de José e que fornece dicas, faz pesquisas, discute arranjos, auxiliando a
produção do romance, de tal forma a promover mais questionamento no narrador (que encena
desprezar essa ajuda), que assume:
Dessa fala do professor, num átimo, sem nenhuma ponte, sem nenhuma construção
coesiva (“Em um salto, minha mente ilumina a figura do Dr.Escabajo... (CASTELLO, 2010,
p. 38)), o narrador passa a dialogar com o pai (esse interlocutor que nunca receberá a carta-
188
romance objeto de nossos estudos) sobre um colega de repartição, cujo nome era Sr. Escabajo,
escaravelho, em espanhol. Então, desavisadamente, entra em cena um novo elemento que
parece não fazer parte da narrativa e não exercer nenhuma influência na sequência dos fatos e,
por isso, destoa de tudo que vinha compondo o enredo. No entanto, essa intromissão do Sr.
Escabajo não destoa da narração, pois ilustra como se dão os movimentos mentais de
associação, já que o personagem intruso complementa as reflexões sobre as palavras,
direcionando-as aos pensamentos sobre o pai, personagem de relevância. Assim, de nome de
um escritor com significados variados — gralha, inseto, besouro —, a palavra Kafka, tomada
de volteios sonoros e estruturais, viaja para outros sentidos, chegando ao nome de um amigo
do pai e à expressão mist-käfer. Esta traz um prefixo depreciativo com o qual a palavra
finalmente chega a mistkerl, cuja acepção é “cara de merda”. Ocorre, por meio desses
raciocínios, um movimento de reflexão sobre a própria linguagem, direcionada para si;
também para os movimentos de dispersão presentes no processo de produção de uma obra; e
ainda para as reflexões que o narrador faz sobre seu pai, figura da qual nunca se perde, de
forma que todos os pensamentos são caminhos até ele, algo explicitado no trecho: “Bato asas
em torno de você, meu pai, um homem em cujo peito nunca cheguei a pousar. É um voo
doloroso, mas insistente. Um destino intocado” (CASTELLO, 2010, p. 38).
Advém dessas reflexões linguageiras uma alusão ao mestre Machado de Assis,
quando, em A cartomante, usa a mesma imagem das asas em giros concêntricos, fazendo uma
metáfora para ilustrar que o personagem Camilo está acuado e não consegue enfrentar aquilo
que o domina: “Camilo [...] fez um gesto incrédulo: era a ideia de ouvir a cartomante, que lhe
passava aolonge, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a
esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas...” (ASSIS, 1979, p. 477).
A alusão a Machado vem como um corolário: todo o trânsito feito pela palavra Kafka
se dirige à reflexão sobre o pai. O raciocínio sobre o nome do escritor são asas que aparecem
e desaparecem e reaparecem, esvaem-se e concentram-se novamente, voam para lá e para cá,
em novas conotações, movimentos em torno da figura paterna.
Contribui para a percepção da voz machadiana a citação explícita, a seguir, dos versos
de Jorge de Lima:“Dá-me as penas para eu escrever minha vida / tão igual à ave em que me
vejo / mais do que me vejo em ti, meu pai”. Ambas, alusão e citação, em diálogo, tratam do
pai-“destino intocado” (CASTELLO, 2010,p. 38), centro em torno do qual o narrador sempre
viveu, prisão da qual quer se livrar, motivo pelo qual põe-se a escrever seu romance.
Essa intertextualidade, ora mais sugestiva, ora mais explícita, componente da
metaficção, tendo em vista que, dessa forma, a obra fala de si mesma, de sua construção e de
189
seus componentes, é presença recorrente na obra, por meio decitações, a exemplo da de Jorge
de Lima; alusões, a exemplo do Bruxo; e ganha mais corpo pelo diálogo com Kafka, pela
configuração de espacialidade que a Carta ao pai toma em Ribamar, algo já tratado em
capítulo anterior.O corpo fica ainda mais denso porque ultrapassa os limites da
intertextualidade para atingir o da metatextualidade, termo usado por Gérard Genette para
designar “a relação de comentário que une um texto ao texto do qual ele fala”
(GENETTEapud SAMOYAULT, 2008, p.30), conforme assume o próprio autor de
Ribamarem entrevista a Isabel Coutinho:
Ribamaré um livro fronteiriço, que fica a meio caminho entre o ensaio (sobre
Kafka), o livro de viagens (a Parnaíba, cidade onde meu pai passou infância e
juventude), o livro de sonhos (trabalhei com muitos sonhos verdadeiros e falsos), e
uma ficção clássica. Há muito tempo que deixei de acreditar nos gêneros literários: a
literatura que me interessa está sempre na fronteira. A marca do nosso mundo é a
transformação acelerada. Vivemos na época dos transgênicos, dos transexuais e do
transnacional.Ribamartalvez seja um romance “trans” (CASTELLO, 2012).
O entendimento do autor José Castello elucida que temos um outro exercício de escrita
inscrito na narração, aquele que põe em evidência o diálogo entre gêneros na composição da
obra como forma de pôr em questão também a forma romanesca.
Reflexões acerca disso já foram feitas anteriormente, quando estudamos os gêneros
carta e notas, por exemplo, em suas relações com a espacialidade. Continuaremos fazendo
coro ao raciocínio, escolhendo o ensaio entre os gêneros apontados por José Castello para
assumir a configuração fronteiriça de sua obra. Essa escolha não é aleatória,no sentido de que
o caráter “trans” que o autor atribui à sua composição é concernente a esse gênero, o ensaio,
este, em si mesmo, “trans”. Entretanto, nem ele, como veremos, terá configuração garantida
na obra em estudo, pois também é construído com peculiaridades. Vejamos.
Ribamar se alicerça um tanto em outra ficção, o romance A metamorfose, e muito no
texto que tem sido estudo para fins de análise biográfica, Carta ao pai, ambos de Kafka.
Essas duas produções são comentadas recorrentemente no âmbito de suas próprias
configurações, tomadas como um objeto de investigação, algo inclusive compartilhado com
um professor: “Encontro-me com o Prof. Jobi, meu vizinho do sétimo andar. Tem sido uma
de minhas testemunhas” (CASTELLO,2010,p.26).
Também o pai, personagem da Carta, é constante motivo de estudo, analisado em sua
personalidade: “Aquele homem metódico, Hermann Kafka, que passa seus dias debruçado
sobre um balcão de comércio a contabilizar encomendas e a reclamar dos fregueses, não tem,
provavelmente, a força que o filho lhe atribui” (CASTELLO,2010, p.131); bem como Gregor
190
Samsa, interpretado por meio da aliança com sua profissão: “Então, eu entrava às pressas
(como um caixeiro-viajante, como um Samsa); alguém que está só de passagem por um
território que não lhe pertence e que lhe é adverso” (CASTELLO,2010,p.32).
Entretanto, não se trata de um interesse simplesmente acadêmico pelas obras, pois a
paixão do narrador pelo escritor de língua alemã está na esfera de algo que permite
circunscrever, de certa forma, sua análise em uma modalidade cujo terreno de competência
não seja regulado — o ensaio.
Alguns aspectos do gênero ensaio postulados por Adorno corroboram a indicação da
presença do gênero para classificação da obra:
[...] não admite que seu âmbito de competência lhe seja prescrito. Em vez de
alcançar algo cientificamente ou criar artisticamente alguma coisa, seus esforços
ainda espelham a disponibilidade de quem, como uma criança, não tem vergonha de
se entusiasmar com o que os outros já fizeram. O ensaio reflete o que é amado e
odiado, em vez de conceber o espírito como uma criação a partir do nada, segundo o
modelo de uma irrestrita moral do trabalho. Felicidade e jogo lhe são essenciais. Ele
não começa com Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que deseja falar; diz o que a
respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais
resta a dizer: ocupa, desse modo, um lugar entre os despropósitos (ADORNO, 2003,
p.16).
Assim, sem constrangimentos, o narrador parte de uma obsessão (“Meu mal tem uma
origem precisa: sou obcecado por Franz Kafka” (CASTELLO,2010,p.11)) e fala sobre aquilo
que deseja falar — a sombra de Kafka que lhe roça as costas — sem discutir o material
kafkaniano com intenções de um estudo rigoroso acerca da composição estética da obra. Pelo
contrário, refina reflexões sobre os dois textos de Kafka pela maneira de reoperá-los na forma
que declara ser um ensaio, cuja autonomia estética permite à voz narrativa fazer da sua
subjetividade o motor para uma produção que trata esteticamente de um material estético.
O procedimento explicita um novo bordado na tessitura da obra, pois o narrador se
encaminha para odesvendamento tanto de Kafka quanto de si mesmo, em paralelo, de forma a
dar voz à voz que o comoveu sempre, proliferada em si mesmo, na encenação da sua condição
dupla, de narrador configurado como escritor. Trata-se da experiência de escrever uma leitura
individual de obras de Kafka, um ato iluminado por essas obras, ilustrando o conceito de
metatextualidade proposto por Ceia, um
[...] nível de reflexão de um texto com o comentário que dele se faz. Aquilo a que
chamamos comentário de texto faz-se ao nível dametatextualidade, porque unimos
um texto a outro por uma relaçãode afinidade interpretativa que se deduz pela
citação, nomeaçãoou mera sugestão do texto comentado. No limite, toda a
reflexãosobre o fenômeno literário é de natureza metatextual (CEIA, 2016).
191
O ensaio [...] não quer procurar o eterno no transitório, nem destilá-lo a partir deste,
mas sim eternizar o transitório. A sua fraqueza testemunha o excesso de intenção
sobre a coisa e, com isso, aquela utopia bloqueada pela divisão do mundo entre o
eterno e o transitório (ADORNO, 2003, p.27).
[...] o ensaio se aproxima de uma autonomia estética que pode ser facilmente
acusada de ter sido apenas tomada de empréstimo à arte, embora o ensaio se
diferencie da arte tanto por seu meio específico, os conceitos, quanto por sua
pretensão à verdade desprovida de aparência estética(ADORNO, 2003, p.18).
Essas citações que descrevem outras faces do gênero ensaio afastam a obra dessa
classificação, já que, numa linha distinta do que prega Adorno, ela se configura no campo da
arte exatamente porque a consciência da não identidade entre o modo de exposição e a coisa,
192
[...] que não me digam que não disse nada de novo: a disposição das matérias é
nova; quando não se joga péla, é com uma mesma bola que jogam um e outro, mas
um a coloca melhor. Gostaria tanto que me dissessem que me servi de palavras
antigas. E como se os mesmos pensamentos não formassem um outro corpo de
discurso, por uma disposição diferente, do mesmo modo que as mesmas palavras
formam outros pensamentos pela sua diferente disposição (PASCAL, s.d., p. 1.101
apud SAMOYAULT, 2008, p. 69-70).
Por isso a “Carta de Kafka” transmuda-se em uma carta de José ao pai, vista também
como um livro e ainda como um não livro, sobre o qual o narrador discorre belamente em seu
último capítulo, ainda se dirigindo ao pai: “Essa carta — que você nunca lerá — não é o
rascunho do livro que escreverei. Ao contrário: com ela, eu me livro do livro”
(CASTELLO,2010,p. 276).
Temos então um livro rascunho, um ensaio de livro, já um outro conceito de ensaio, o
de esboço, algo que nunca se configura, mas não porque isso seja pertinente ao gênero meio
acadêmico meio não acadêmico, mas porque se trata de um experimento — um exercício de
quem precisa escrever para livrar-se, um exercício romanesco. Temos um livro que não é, no
qual se atravessam atividade criadora e o exercício da reflexão teórica.
[...] ele pergunta sobre o que escrevo, vou lá filosofando em torno do meu
personagem de sempre que aparece a cada livro; ele pergunta meio irritado o que
acontece de fato nos meus livros, digo que não sei contar talvez porque nada
aconteça de fato nessas minhas histórias, mas conte, conte o que de fato acontece
nesse não-acontecer —, nada, para!, respondo no meu inglês irretocável, de um
golpe entendo na pele o mood americano para a ação, tá certo, fora da ação eles não
ficam muito tempo, querem sempre o movimento em progressão, mais e mais, e
mais ainda, não importa para quê, se para matar, dominar, construir, morrer, salvar,
amar, mas que se siga adiante; esse escritor americano por exemplo na minha frente
só tem um desafio a fazer a seus alunos na Universidade de Chicago, ele conta: não
quero saber do sentido dessas coisas que os personagens fazem, a pergunta é: o que
acontece, o que acontece, contem, contem, o resto é ninharia para enrolar a fome
intelectual dos povos subalternos; não adianta tentar arrancar à força sem anestesia o
estrato da morte ou de outra inércia menos grave; só o que transparece na sua
velocidade genuína é o que interessa para os outros. Eu quase que me encolho diante
das assertivas dele, os meus romances então não passam de sequelas do
subdesenvolvimento, esses personagens um tanto crônicos que faço, que não sabem
nem para onde ir, se for verdade que procuram algum caminho; ainda não
encontraram nem ao menos a técnica mais elementar da vida, ou seja, não sabem
como lançar a intenção num gesto claro, soberano, preciso — só assim, diz ele, o
cara se destaca da natureza e passa a cavar seu próprio enredo (NOLL,2002, p.57-
58).
identidade narrativa e/ou linguística” (apud NAVAS, 2012, p.15). Essa disposição para
assumir-se como alguém que não sabe, que divaga no seu ofício, essa falta de
constrangimento para comentar sobre a fragilidade de sua própria identidade narrativa
compõem o discurso metaficcional exposto na obra.
Não é pouco significativa, então, a seleção de um playwritter para fazer parte do
diálogo. Dramaturgo, seu ofício exige a elaboração de um texto a ser transposto para os
palcos, para a encen-ação executada por atores, que devem representar de forma a revelar na
trama um conflito central. Trata-se de uma figura social tomada de segurança, aparentando ter
domínio sobre sua arte, o que faz frente à insegurança do narrador em seu ofício de escritor: o
primeiro, convicto da necessidade de construir personagens, seres que agem, decidem, tomam
rumos e dão rumo à narrativa; o segundo, sem saber de seus personagens, seres que “ainda
não encontraram nem ao menos a técnica mais elementar da vida” (NOLL, 2002, p.58). Ora,
encontrar técnica não é bem uma expressão pertinente a personagens, mas, sim, a alguém
hábil no exercício da criação, o escritor, portanto. O narrador-escritor está perdido em sua
prática, estando ele sem saber “como lançar a intenção num gesto claro, soberano, preciso”
(NOLL, 2002, p.58), delegando equivocadamente a personagens o que deveria ser de sua
prática.
A condição da obra é esse “sem saber”, algo reconhecível no decorrer da leitura, pois
se apresenta em uma arquitetura desorganizada, mais tomada de pistas, sensações e elipses;
não se desenvolve em cronologia; traz um narrador vivente de experiências entre,
desnorteadas, quer seja em sua identidade pessoal, quer seja na profissional, quer seja nos
espaços que habita, questão já estudada no capítulo anterior. E essas experiências são postas
sem fronteiras com outros movimentos do enredo, inclusive tomando como estratégia a forma
de uma única paragrafação.
Exemplo dessa arquitetura desorganizada é um acidental encontro pelo campus,
quando o narrador se depara com “Maria, a moça brasileira que conhecera logo que chegara à
Califórnia” (NOLL, 2002, p. 14), e vem à tona a lembrança do relacionamento entre os dois,
havido
[...] numa intimidade tão independente de outros laços que se sentiam à beira de
tudo ou quase, até do gesto mais sinistro, a tal ponto, que preferiam enfim
aproximar-se, não exatamente um do outro, mas de um núcleo qualquer onde
pudessem reatar em paz o compromisso com as coisas (NOLL, 2002, p.15).
195
Nessa dimensão pessoal, como no caso de sua relação com Maria, o narrador sempre
indetermina suas práticas sexuais, aloja-as no fortuito, no nebuloso, no casual, sendo essa a
forma de conotar sua instabilidade, seu jeito de perguntar-se quem sou eu?, pondo em
evidência a dúvida que sempre o martela: “até quando ou isso ou aquilo...?” (NOLL, 2002, p.
13).
A construção desse “sem saber” continua sendo reconhecível pela desorganização do
comando narrativo, comportamento que manifesta também um entre, desta vez quanto ao
trânsito de pessoas do discurso, da primeira para a terceira, de forma que o narrador-escritor
fala de si e de um outro que é ele mesmo, sem que haja algum recurso sinalizador dessa
mudança, algo que faça coesão entre as passagens. Apenas há primeira e terceira pessoa;
apenas ele passa de uma a outra; apenas ele constrói modos verbais que servem a uma e a
outra voz, como em um discurso indireto livre. Ocorre que esse discurso indireto livre se
configura como algo muito estranho, já que não se trata da voz de um personagem que se
mistura à do narrador ou da voz de um narrador que dá lugar à de personagens. Ineditamente,
tem-se o discurso de um personagem, momentaneamente personagem, que se imiscui ao do
narrador, momentaneamente narrador, ambos simultaneamente o próprio narrador-escritor. É
como se a própria categoria narrativa, narrador-personagem, se desmembrasse em duas,
narrador e personagem, para dar voz ao duplo que há em si mesma. Os acenos são feitos sem
justificativas, sem previsibilidade, sem permissão:
Simulavam então diante de mim um interesse mais que suficiente para lhes render
êxitos a mais em seus currículos de agentes não importa de que instituição, secreta
ou não, agentes da bandeira que fingiam amar sobre todas as coisas, mesmo que
tentassem às vezes molestá-la em minha presença, afetando visão crítica para me
mimar. Ele não queria lembrar, queria tão-só estar nos bosques de Berkeley diante
da brasileira que o fez pela primeira vez vibrar com uma fêmea na cama eternamente
redemoinhada de cobertores, travesseiros, lençóis... Mais uma vez perguntava a si
mesmo se voltando a seu país teria teto, emprego, as famigeradas refeições ou
aquela mulher para acompanhá-lo na desdita(NOLL, 2002, p.19, grifo nosso).
Assim o narrador encena ser esse alguém dúbio e duplo, que não se sabe, destoando-se
da circunscrição que lhe é cabida como narrador, desautorando a si mesmo como voz
discursiva e assumindo esse “des-estado” em várias situações, como aquelas em que ele
reflete sobre como se relaciona com a oralidade e a escrita, difamando-se:
ao falar, expressava tão bem a forma daquilo que pensava ou sentia, e sim parecia
interpretar uma voz além das proporções, que assim o representava limpo,
estruturado, já muito, muito longe do caos a que ele pretendia aludir: esse mesmo —
o seu (NOLL, 2002, p.24-25).
Quem seria esse homem um tanto taciturno a encontrar estátuas, quadros clássicos
pela frente para impressionar americanos, colunas, obeliscos, homens seminus,
mulheres fartas, gestos largos, quem era mesmo esse homem nascido em abril em
Porto Alegre, no hospital Beneficência Portuguesa às seis da manhã, criado no
bairro Floresta, sem poder imaginar que um dia estaria aqui nesse castelo, ao norte
da Itália, perto de Milão, na chamada — jocosamente ou com sarcasmo —
“Catedral” americana; quem era esse homem que já se cansava da noite tão cedo,
louco pra dormir, sonhar, regenerar-se para ao longo do dia seguinte cair no mesmo
enfado — ansioso pra dormir em horário de criança, [...] (NOLL, 2002,p.27).
Espero aqui fugir do quê? De uma reviravolta, do desconcerto das nações que eu
perdi nos meus cochilos o quarto de Bellagio?Ah, foi o sertão que agora virou mar,
foi isso? [...] porque do contrário volto a Porto Alegre e vou morrer sozinho com
meu inglês saindo aos borbotões inutilmente; ninguém virá com tradutor em minha
casa, mesmo que eu esteja no meu leito de morte [...] (NOLL, 2002,p.78-79).
atrás...” (NOLL, 2002, p.9)); depois, perdido em várias línguas (“[...] estou aqui, só vejo o
monte, a noite que rola pela encosta e esconde de mim a imagem que nem sei se tenho ou tive,
se não fui um engano... it’s ok, it’s ok, me surpreendi parlando desse jeito num repente
(NOLL, 2002,p.55)); por fim, aprisionado ao inglês (“Virei-me, olhei para a ‘Catedral’
americana, vi que ela continuava ali com toda a sua pompa, não importa, o que importava de
fato naquele instante era que eu já pensava em inglês, já não conseguia processar um
pensamento que não fosse em inglês...” (NOLL, 2002,p.55)).
A insistência na apresentação de seus contatos e descontatos com idiomas ostenta o
caráter metaficcional da obra, porque ilustra a complexa relação entre ficção e realidade. As
questões que fazem parte do contexto extraliterário, como questionamentos do autor ante sua
própria criação artística, são deslocadas para o universo ficcional, e, nesse movimento,
infringem-se certas convenções, como a ação segura da categoria narrador e da função do
escritor. Na obra em estudo, o narrador-escritor afirma sequer ter domínio sobre o registro
linguístico com o qual ele instrumentalizaria seu ofício, de maneira que a matéria de sua obra
fica trôpega em seus próprios bastidores. É dessa forma que o autor, uma referência externa à
obra, passa a ser elemento do texto criado, apresentado, em sua intimidade, em suas
fragilidades, sendo ele mesmo o guia para que o leitor veja um outro movimento da obra, de
forma que ele acompanhe um autor textual, costurado ao texto, um recurso metaficcional.
Todas essas circunstâncias que encenam a desorganização na apresentação da obra são
sublinhadas pela ocorrência da paragrafação, que também denuncia a metaficção em Berkeley
em Bellagio. O parágrafo é uma unidade de composição que, associando-se a outras, constitui
o texto. Ocorre que na obra em estudo existe apenas um, funcionando como um novelo cuja
única linha vai puxando a narrativa, de maneira que há um continuum que obriga o leitor a
não respirar, a ler a obra ininterruptamente, como se impedido de tomar fôlego. Sem
interdição, o narrador vai de um espaço a outro, de uma cena a outra, de uma voz a outra, de
um assunto a outro. Essa falta de rigor formal, a composição por um único e extenso
parágrafo, associa-se aos demais recursos mencionados, de forma que as vozes em 1ª e 3ª
pessoas ficam bastante nítidas, assim como a dança entre elas, pois não há uma unidade
discursiva formal para cada uma delas. Também o trânsito entre os espaços, sem nada que o
torne coeso. São vozes e espaços que se atravessam no longo parágrafo, um caminho trilhado
em desmembramentos que se imbricam numa ansiedade confusa, materializada numa
sequência ininterrupta de ideias. Essa errância textual metaforiza uma errância pessoal, algo
visto, por exemplo, na passagem em que ele, vindo já para o Brasil, se encontra em um avião
de refugiados que parecem peregrinos: “Eu estava num avião de refugiados, mas para mim
198
pareciam peregrinos que encontrariam em Porto Alegre a terra prometida, o novo reino de Alá
ou de qualquer profeta menor, de alguma tribo” (NOLL, 2002,p.81).
É uma percepção em espelhamento, já que ele se mostra, ao longo do extenso
parágrafo, alguém em busca de uma língua prometida, de uma escrita prometida,
peregrinando por países, experiências, idiomas, até o retorno ao seu útero, seu desejo de
escrever:
Começo a compreender na alma onde estou, com quem estou, há quanto tempo, não
faz muito eu sei, alguns minutos, devagarinho vou ganhando a lembrança do meu
português, a língua sai de mim em pedacinhos, escorrega de repente, apanho-a
cansado, devolvo-a à minha boca, a palavra ecoa novamente, vibra mais alto agora,
o seu sentido como que sacode a cabeleira, me encolho para disfarçar esse momento,
penso que logo recomeçarei a trabalhar no meu romance [...] (NOLL, 2002,p.87).
A demonstração desse “não saber” que alinha a obra é o grito “o narrador-escritor está
nu!”, de si sobre si mesmo, denunciando o desordenamento interno, posto no formato de uma
escrita impulsiva, em um longo parágrafo.
Assim, o que, antes, eram apenas umas poucas coisas, torna-se algo cada vez mais
interessante. Em segundo lugar, vem a sensação de autossatisfação por conseguir, “sem
qualquer expectativa de alcançar uma meta externa”, ao contrário dos que nisso viam uma
tolice. Em terceiro, o efeito de privacidade e consequente liberdade de ter uma língua secreta
só para si. E ainda a sensação de que as próprias palavras não abandonam o usuário da língua,
experimentadas em seu poder e energia singular, a ponto de
[...] o dicionário do estudante aplicado, que se esforça por aprender outra língua, é
subitamente virado do avesso: tudo quer ser designado como o era antes, e
propriamente; a segunda língua, que agora se ouve todo o tempo, torna-se óbvia e
banal; a primeira, que se defende, ressurge sob uma luz particular (CANETTI, 1990,
p. 171).
elaborada, discutindo o próprio fazer poético, exige do leitor uma cooperação. Em Budapeste,
esse reavivamento exige um cotejamento de códigos que, na encenação de um narrador
perdido, mostram-se um desafio sobre a experiência da escrita, sobre a linguagem posta em
literatura. Trata-se de uma experiência da palavra.
Comecemos pelo primeiro capítulo da obra, particularmente o seguinte trecho:
haver a construção de signos, pela qual a cena pretendida fosse atrelada às palavras, ajustados
significante e significado, substituindo o vocábulo “quase” por outro correspondente em
húngaro, já que, naquela construção desviante, fora tomada por “pouco a pouco”. Mas isso,
raciocínio inverso, essa nova construção não seria viável em português, não haveria
consonância com o contexto. Daí o humor não ser deflagrado para o aprendiz do novo idioma,
pois ele se encontra nessa situação em que fica difícil enxergar através daquilo a que Eduardo
Ferreira denomina “névoa compacta das línguas”, quando afirma que a língua do outro se
ergue “como barreira a vedar-lhe acesso aos significados” (FERREIRA, 2016, p. 2).
Essa circunstância de usos linguísticos é presa ao denotativo, exigindo quase um grau
zero de distância entre duas línguas, sem imprecisões, com clara significação, mas exige,
nesse pequeno jogo de interpretações, uma sofisticada reflexão acerca desses usos, quando o
interlocutor ainda não tem sob seu domínio a língua do outro.
As reflexões sobre línguas continuam no capítulo que inaugura a obra e, não por
acaso, ele é assim dominado pela metalinguagem, pois, além de anunciar um plano dessa
ordem que se associará ao enredo, anuncia também que essa questão será um dos elementos
pelos quais se conhecerá o narrador, um homem que tinha “esse ouvido infantil que pega e
larga as línguas com facilidade, se perseverasse poderia aprender o grego, o coreano, até o
vasconço. Mas o húngaro, nunca sonhara aprender” (BUARQUE, 2003, p. 7).
Seu gosto por idiomas é o tema desde o início, algo que vai se proliferar pela narrativa,
substanciado na escritura de vários gêneros até o alcance do exercício máximo da palavra, a
literatura, em húngaro. A atuação de um personagem descompromissado com tudo, irrequieto
e perdido existencial e linguisticamente é um ludibrio, já que ali se encena alguém que situa
seu trabalho no labor da língua, a partir inclusive dos usos refinados que dela faz. Enquanto se
vão percorrendo os parágrafos e as cenas, as construções estéticas não se perdem de ouvido,
vão aparecendo num disfarçadamente, aqui e ali.
A exemplo, por meio da metáfora, quando tenta expressar o entendimento que tem da
composição do húngaro:
Entretanto, olhando a Vanda assim de repente e tão de perto, mais uma vez me
admirei; minha primeira dúvida sempre que vinha de viagem, era se a Vanda ganhara
viço na minha ausência, ou se em meus pensamentos ela desbotava (BUARQUE,
2003, p.27, grifo nosso).
Sem ser velho, tinha a pele do rosto ressequida, provável sequela do sol do Rio, sete
verões com a pele a se soltar da pele a se soltar da pele até chegar a essa, uma pele
com um quê de papel, uma casca provisória que foi ficando (BUARQUE, 2003,
p.28, grifo nosso).
Mas assim que ousei empurrar a porta, o consulado explodiu em aplausos. Ato
contínuo as cerca de cinquenta pessoas no salão, que estavam em pé, voltadas para a
janela, soltaram as costas, se remexeram, se viraram para os lados e começaram a
falar umas com as outras. Era a sonoridade do idioma húngaro que se abria para
mim ao passo que eu penetrava no salão. Vibravam as vozes húngaras ao meu redor,
sem suspeitar que expunham a um intruso seus segredos. E por ignorar os
significados, com mais nitidez eu percebia as inflexões da língua; estava atento a
cada reticência, a cada hesitação, à frase interrompida, à palavra partida ao meio
como fruta que eu pudesse espiar por dentro (BUARQUE, 2003, p.35).
Por isso me chamou a atenção o livro mais modesto, mas com um título legível:
Hungarian in 100 Lessons. Numa folheada entrevi alguns exercícios de conversação
[...] Então percebi a moça alta com uma mochila nas costas que olha o livro em
minhas mãos e abanava a cabeça. [...] E quando ela afirmou que a língua magiar não
se aprende nos livros, fiquei pasmo, porque a sentença me soou perfeitamente
inteligível. Ainda me perguntei se ela teria se expressado em português, ou em
203
inglês, ou mesmo em romeno, mas tanto era em húngaro que não distingui uma só
palavra. E, contudo, não me restava dúvida, ela afirmara que a língua magiar não se
aprende nos livros. [...]
E a caminho do hotel tive minha primeira e peripatética aula de húngaro, que
consistiu em ela dar nome às coisas que eu apontava: rua, patins, gota d´água, poça,
noite, pizzaria, discoteca, bar, galeria, vitrine, roupa, fotografia, esquina, mercado,
bombom, tabacaria, arco bizantino, balcão art nouveau, fachada neoclássica, estátua,
praça, ponte pênsil, rio, verde-musgo, ladeira, portaria, lobby, cafeteria, água
mineral e Kriska (BUARQUE, 2003, p.59-60).
[...] ele só está te imitando. Imitando o quê? Imitando você, que deu para falar
dormindo. Eu? Você. Eu? Você. Desde quando? Desde que chegou dessa viagem.
Pronto. Descobri naquele instante que em meus sonhos eu falava húngaro
(BUARQUE, 2003, p. 31).
Mas duas pessoas não se equilibram muito tempo lado a lado, cada qual com seu
silêncio; um dos silêncios acaba sugando o outro, e foi quando me voltei para ela,
que de mim não se apercebia. Segui observando seu silêncio, decerto mais profundo
que o meu, e de algum modo mais silencioso. E assim permanecemos outra meia
hora, ela dentro de si e eu imerso no silêncio dela, tentando ler seus pensamentos
depressa, antes que virassem palavras húngaras (BUARQUE, 2003, p. 31).
E parece não haver nenhuma situação relatada que não tenha mesmo a ver com um
comportamento linguístico, de forma que a narrativa se constrói em consonância com essas
reflexões, como se fosse ofertada ao leitor uma partitura para um outro entendimento, este
além das ações e pensamentos das personagens. Ou como se houvesse um fingimento nas
ações e pensamentos, sendo eles pretextos para a exibição de procedimentos linguísticos,
elucidando uma ficção que protagoniza as possibilidades de a linguagem atuar como elemento
da ficção, ou seja, temos uma obra metaficcional, cujo narrador preocupa-se em exibir sua
autoconsciência no processo narrativo, chamando a atenção recorrentemente para a forma
204
À queima-roupa, porém, olhando nos olhos de Kriska, suas mãos a escorregar das
minhas, a única palavra que me veio no idioma dela foi adeus. Não entendi, disse
Kriska, e repeti: viszontlátásra. Minha boca estava seca, a articulação hesitante, e ela
sorria sem graça: de novo!, só mais uma vez!, e eu: viszontlátásra!, viszontlátásra!.
Fiz-me compreender, finalmente, pois Kriska se aquietou por uns bons minutos. E
de repente deitou a falar uma enxurrada de palavras difíceis, e não sei se me
expulsava da sala ou pedia clemência, se me implorava uma bebida quente, se me
acusava de tê-la enfeitiçado, roubado algum objeto, talvez um relógio de ouro,
relógio?, ali eis relógio vosso evidente, eu me defendia desarvorado, apontando a
bugiganga no seu pulso, mas não era isso, e Kriska que já vinha nervosa por causa
do adeus, com minha ignorância exasperava. Então renunciei de vez a língua magiar,
deixei cair o rosto, os ombros, os braços, e ela se lançou sobre mim, se grudou em
mim e me fincou os dedos, como se pretendesse enterrá-los nas minhas costas,
porque eu era um homem cruel, ou formidável, ou pavoroso, porque eu estava
dissipando os instantes mais preciosos da sua vida (BUARQUE, 2003, p.72-73).
Essas várias cenas tornadas belas pela linguagem vêm de uma voz narrativa que se
nega a servir tanto José Costa quanto Zosze Kósta, na babel em que se encerram. Vêm de uma
205
outra, luxuriante, que faz estranhezas sonoras, que busca um pacto de leitura apreensor de um
veio que direciona a narrativa para os arranjos metafóricos de sua intenção estética. Seu
processo autorreflexivo expande a obra para uma leitura além de um enredo propositalmente
confuso, mas sedutor pelas belas construções que deixam clara a identidade daquele que finge
ser um ghost-writer, mas que acaba por ser a identidade de alguém que prima pelo exercício
da literatura, uma identidade erigida e manifesta pela linguagem, por procedimentos
metaliterários.
Mais uma obra que compõe esse corpus dedicado a metaficcionar é a dramática e bela
Diário da queda, aqui também retomada em alinhavo com estudos anteriores sobre suas vozes
discursivas. Uma das chaves do romance é como se instaura na narrativa o ato de leitura, o
que trataremos a partir dos registros feitos pelo personagem avô e, em cadeia, com registros
de seus descendentes,5 cujas âncoras referenciais e também indissociáveis são: a) o sistema de
torturas, manifesto nas ações contra judeus pelo nazismo, e na ação de judeus contra os góis,
os não judeus; b) os gêneros textuais verbete, relato de experiência e diário.
Segundo Wolfgan Iser,
[...] há no texto ficcional muita realidade que não só deve ser identificável como
realidade social, mas que também pode ser de ordem sentimental e emocional. Estas
realidades por certo diversas não são ficções, nem tampouco se transformam em tais
pelo fato de entrarem na apresentação de textos ficcionais. Por outro lado, também é
verdade que estas realidades, ao surgirem no texto ficcional, neles não se repetem
por efeito de si mesmas. Se o texto ficcional se refere à realidade sem se esgotar
nesta referência, então a repetição é um ato de fingir pelo qual aparecem finalidades
que não pertencem à realidade repetida. Se o fingir não pode ser deduzido da
5
A denominação dos personagens se fará de acordo com as relações familiares norteadas pelo protagonista: avô,
pai, neto. Isso não impede que seja necessário, muitas vezes, o acréscimo de termos que deixem claro de quem se
está falando, de acordo com a cena.
206
realidade repetida, nele então surge um imaginário que se relaciona com a realidade
retomada pelo texto. Assim o ato de fingir ganha a sua marca própria, que é de
provocar a repetição no texto da realidade vivencial, por esta repetição atribuindo
uma configuração ao imaginário, pela qual a realidade repetida se transforma em
signo e o imaginário em efeito do que é assim referido (ISER apud COSTA LIMA,
2002, p. 958).
Segundo meu avô, era muito comum que um homem rico e germanófilo e pai de
uma mulher bonita e solteira de Porto Alegre, 1945, diante de um imigrante judeu e
pobre recém-recuperado de uma febre tifoide e devendo dois meses de aluguel numa
pensão chamada Sesefredo, perguntasse a esse rapaz quais eram seus planos em
relação à filha. Era comum o rapaz responder que gostaria de retomar a carreira de
professor mas que por enquanto, dadas as suas dificuldades com o português, que
seriam logo superadas, e uma certa expectativa dos proprietários da Sesefredo,
sempre manifestada em modos compreensivos e cordiais, ele pensava em aceitar um
emprego de caixeiro-viajante oferecido por um agenciador, no qual percorreria
dezesseis cidades por semana vendendo máquinas de costura. Há diversos tipos de
máquinas, explica o rapaz, com diferentes usos e preços, e então o pai rico da
mulher bonita e solteira abre um sorriso e oferece mais uma taça de vinho, e também
um charuto, e comemorando o fim daquele jantar agradável os dois brindam ao fato
de que o rapaz levará a filha do homem rico e orgulhoso para morar num quarto e
sala próximo à Sesefredo, numa rua em que há um canil e um açougue onde se
abatem galinhas, estabelecimentos comerciais de reputação ilibada, num prédio que
sobreviveu a um incêndio, mas que é sólido e possui bons ângulos em relação ao
sol, um lugar para começar uma vida nova a ser comemorada numa cerimônia
poucos meses depois, um padre e um rabino para celebrar a união entre a filha
daquele homem rico e orgulhoso e o seu genro judeu e pobre que em breve lhe dará
o único neto (LAUB, 2011, p.28-29).
208
avô, que reorganiza os verbetes do seu pai de acordo com os sentidos por eles produzidos e a
partir dos quais organiza o próprio discurso também em verbetes, embora de outra ordem; e o
filho desse filho, o neto, que reorganiza o memorial do avô, lido de forma associada à
reorganização feita pelo pai, também um memorial, e, nesse processamento, organiza seu
próprio discurso em forma de diário, o Diário de uma queda. Resulta disso um romance
composto de anotações, verbetes, diários, memórias, enfim. Desse modo, o narrador — neto,
filho e escritor — constrói a obra, tramando sua leitura e sua escrita, subversivamente
atreladas a gêneros e discursos, ilustrando o conceito de metaficção posto por Mário Avelar,
aquele que perfaz um “jogo intelectual com a linguagem e com a memória literária e artística”
(AVELAR, 2016).
A organização dos fingimentos arquiteta a obra, o que exige o olhar atento aos modos
de narrar de cada personagem e aos diálogos entre elas, ou seja, à composição da obra como
um todo. Há, então, a encenação dessa organização, feita pelo narrador, que se multiplica nos
papéis indissociáveis de leitor e escritor. Eles aqui, no entanto, serão, em certa medida,
tratados separadamente, apenas para fins de estudo.
O primeiro papel é o de leitor dos verbetes do avô e dos efeitos de sentido que os
verbetes promoveram no pai. O segundo, como escritor das leituras que fez, no que elucida o
efeito delas sobre si mesmo, como neto, como filho e como escritor.
Assim, esse escritor deixa registrado que, entre os fingimentos, há o que não está, em
princípio, no âmbito da literatura, porque, intencionalmente, não pretendia apresentar um polo
artístico — aquele que “designa o texto criado pelo autor” — nem um polo estético — aquele
que se faz na “concretização produzida pelo leitor” (ISER, 1976/1996, p.50). São os escritos
do avô, verbetes íntimos, que não deveriam constituir-se na convergência entre texto e leitor,
na medida em que eram produzidos pelo avô para si mesmo, como forma de atender a uma
necessidade de que eles produzissem um efeito catártico, um livramento da existência terrível,
por meio da palavra, algo nunca alcançado, pois, à sua revelia, a realidade se repete, reafirma-
se, e tão fortemente, que o avô termina por se matar. Assim, seu ato de fingir deveria incidir
apenas sobre si próprio, não havia intenção de que os verbetes se relacionassem à natureza
literária, ele não queria repetir-transgredindo a realidade sob uma outra forma discursiva para
alcançar um outro. Queria, mesmo e apenas, afastar-se da realidade e tentou alcançar isso por
meio de uma outra forma discursiva. O avô não queria a realidade vivenciada como referência
para a sua produção, a realidade era outra coisa, um objeto a ser encoberto, deletado de sua
existência. Porém, o objetivo não é alcançado, considerando dois aspectos: aquilo que
pretende encobrir é algo tão enorme e sufocante, que é impossível ocultá-lo, tentativa que
210
acaba por escancarar a referência para si mesmo, de forma insuportável; suas anotações
chegam a outros, dois descendentes, seu filho e seu neto.
Tomadas em mãos por esses dois outros, suas estratégias de encobrimento paradoxal e
hiperbolicamente denunciadoras acabam por permitir leituras adversas, atos de desleituras. Os
recursos que compõem esses avessos são, independentemente do enunciador, aquilo que pode
ser experimentado na leitura, e, portanto, são elementos que não se cristalizam, o que permite
movimentos de acordo com o leitor. Podem, assim, ser denominados efeito, pois “designam
um lugar vazio na linguagem referencial” (ISER, 1976/1996,p. 52-53) e provocam a
interrogação sobre o que sucede com o leitor quando toma posse da narrativa.
Nessas duas desleituras contadas, o ato de fingir do avô, mais uma vez, à sua revelia,
continua repetindo a realidade detestada e agravada, porque não se esgota em si como
referência.
Primeiramente, o narrador nos revela como seu pai, o personagem filho desse judeu
produtor de verbetes, compreende, em cada movimento da narrativa, a sua própria história.
Como ele compreende o estranho silêncio sobre a guerra daquele homem vindo da guerra.
Como ele compreende não se tratar de um capricho, mas de uma capa de proteção que se
harmoniza com o que precisava aparentar ser diante da mulher, diante desse filho que agora o
lê, diante de todos. Os verbetes contam a esse primeiro leitor sobre a dor paterna e também
originam a sua própria dor, posto que a percepção de uma produção às avessas se fazia
reveladora da rejeição e do rancor que lhe eram devotados, o que se garante pelos
mecanismos discursivos estimulantes para a realização da leitura, operada a partir desses
recursos, desenvolvida a partir da experiência do leitor.
Ocorre que o narrador não apenas nos relata a leitura feita pelo pai, ele a altera sob seu
próprio olhar, sob o olhar daquele que, além de simples narrador, é neto e escritor, conforme o
segmento:
Meu pai mandou traduzir os cadernos do meu avô porque precisava ter um registro
dessas memórias, e ele era o único que se interessaria por elas, um filho que lê a
descrição do próprio nascimento nas palavras do pai, meu avô dizendo que o parto
coroa a decisão do marido de selar a união com a esposa, e que não há nada mais
feliz na vida de um homem que o dia que ele acompanha a esposa rumo ao hospital
para dar à luz um filho (LAUB, 2011, p. 45).
desencadeamento de sua própria dor —, o que suscita a também necessidade de fuga desse
filho-leitor diante do quadro de rejeição desenhado pelas anotações. Essa evasão,
contraditoriamente, se dará por um mergulho na referencialidade em que se ancoram os
verbetes de seu pai, ou seja, o filho de um judeu vítima do nazismo se dedicará a ler sobre
aquilo que seu pai havia tentado silenciar, as torturas em Auschwitz, especialmente pela obra
É isso um homem?, de Primo Levi. Conforme interpreta o narrador-escritor,
É tentador dizer que a reação do meu pai ao ler os cadernos influenciou a maneira
como ele passou a tratar não só do judaísmo como de todas as outras coisas: o
casamento com minha mãe, o convívio comigo em casa, e como não cheguei a
conhecê-lo de outro jeito [...] (LAUB, 2011,p.33).
O tratamento a tudo e a todos também será posto em registros anos mais tarde, quando
é informado de que está com Alzheimer. Seguir o caminho daquele que o gerou parece ser a
forma de resgatar o que não pôde ter havido, embora pairem dúvidas quanto à sua razão de
ser:
Seria inútil imaginar as razões dele àquela altura, e embora tudo fosse um pouco
mórbido eu não poderia me opor ao que virou a grande distração do meu pai: as
horas no escritório como o meu avô, um projeto mais ou menos como o do meu avô,
um livro de memórias com os lugares aonde meu pai foi, as coisas que ele viu, as
pessoas com quem falou, uma seleção dos fatos mais importantes da vida dele
durante mais de sessenta anos (LAUB, 2011,p.93).
Nossa família tinha uma casa na praia. Era uma casa grande. Quatro quartos, sala,
uma varanda boa. Um gramado grande na frente. As famílias sempre iam de manhã
para a praia, por volta de nove, e voltavam por volta de uma, duas horas. Ninguém
comia na areia. Não havia quiosques nem vendedores de milho. Não havia
bronzeador e a água era muito mais limpa (LAUB, 2011,p.94).
Além do tom ameno, sem hipérboles, mas também sem eufemismos, garante-nos o
lado direito da narração o testemunho do narrador como leitor das memórias de seu pai,
refletindo sobre elas, percebendo a semelhança entre o momento extremo vivido pelos
personagens que tanto determinam sua vida:
Meu pai começou a escrever as memórias logo depois que soube do Alzheimer. Eu
nunca perguntei a ele o motivo, não só porque não queria estragar uma distração
sempre saudável nesses casos, mas porque o significado daquilo, considerando a
forma como ele escrevia e as coisas que estavam ditas ali, era um tanto óbvio.
212
[...]
Talvez meu pai tenha imaginado que podia ser como um exercício, um equivalente
às palavras cruzadas, as frases servindo para estender a lembrança das coisas, como
quando você faz anotações em aula e depois estuda e tudo o que o professor disse
passa a ser o que você lê nessas anotações, mas, no fundo, eu não acredito nisso.
Ninguém escreve um livro de memórias por causa disso, sabendo que no futuro será
incapaz de ler por causa de uma doença, a não ser que tenha chegado ao ponto em
que meu avô chegou ao escrever o dele (LAUB, 2011,p.116).
Ainda dessa vez, não temos uma produção com intenções estéticas. A intenção parece
ser a de lidar com o insuportável, o medo de repetir o gesto às avessas do homem que o criara,
e, então, escrevendo não o reverso, mas o verso. Algo de si para si, em fuga do
aprofundamento a que se dedicara quanto à questão político-religiosa-ideológica, uma forma
catártica de tentar entender tudo o que projetou o dilaceramento daquele seu pai, um judeu em
fuga da realidade, e suas consequentes atitudes, uma forma de justificar esse dilaceramento e
essas atitudes e, assim, conseguir blindar-se da mesma tortura que fora repassada para si, uma
herança passada de judeu torturado para a geração subsequente.
Essa conduta se tornou uma obsessão, insistentemente repetida para mais uma
geração, a do neto, este que, então, herdeiro duplo das agruras da guerra, avalia:
Meu avô nunca falou sobre Auschwitz, e restou ao meu pai mergulhar naquilo que
Primo Levi escreve a respeito: os homens que roubam a sopa uns dos outros em
Auschwitz, os homens que mijam enquanto correm porque não há permissão para ir
ao banheiro durante o expediente em Auschwitz, os homens que dividem a cama
com outros homens e dormem com o rosto nos pés desses outros homens e torcem
para que eles não tenham pisado no chão por onde passam os que têm diarreia, e a
capacidade de Primo Levi em dar dimensão ao que era acordar e se vestir e olhar
para a neve no primeiro dia de um inverno de sete meses em que se trabalha em
jornadas de quinze horas com água pelos joelhos carregando sacos de material
químico ajudou meu pai a justificar os últimos anos do meu avô. É mais fácil culpar
Auschwitz do que aceitar o que aconteceu com o meu avô. É mais fácil culpar
Auschwitz do que se entregar a um exercício penoso, que qualquer criança na
situação do meu pai faria: enxergar o meu avô não como vítima, não como um grão
de areia submetido à história, o que automaticamente torna meu pai outro grão de
areia diante dessa história, e não há nada mais fácil do que sentir até orgulho por ser
esse grão, aquele que sobreviveu ao inferno e está entre nós para contar o que viu,
como se meu pai fosse o meu avô e meu avô fosse Primo Levi e o testemunho do
meu pai e do meu avô fosse o mesmo testemunho de Primo Levi — enxergar meu
avô não como vítima, mas como homem e marido e pai, que deve ser julgado como
qualquer outro homem e marido e pai (LAUB, 2011,p.81).
O trecho em destaque é uma leitura dos registros construídos pelo avô vítima do
nazismo e lidos por um pai que sofre as consequências dessa vitimização. Mas, além disso, o
trecho estampa que o narrador faz mais que o relato do efeito da leitura. Seu discurso se
compõe de considerações febris, reveladoras de um outro leitor, esse que lê as leituras de seu
pai e de seu avô, fazendo delas sua leitura-escrita, encenando um posicionamento de alguém
213
leitura que faz dos verbetes do avô, da leitura que faz da frenética reação do pai como leitor
desses verbetes e produtor de suas anotações a partir do momento em que se percebe com
Alzheimer, associado ao remorso que corrói, tudo isso que o põe em queda constitui a obra
desse narrador, um escritor.
Por isso, desta vez, a leitura se dá como um acontecimento transmitido pela voz do
narrador-escritor. A reação às leituras se faz como um acontecimento que se revela por meio
de estratégias estruturadas para que as percebamos, conforme afirma Iser, “uma perspectiva
para o mundo presente que não está nele contida” (ISER, 1976/1996, p.11), de forma que ele
“rompe as imagens dominantes do mundo real, os sistemas sociais e de sentido, as
interpretações e as estruturas” (ISER, 1976/1996, p.11). Os elementos selecionados pelo
narrador-escritor — a realidade extratextual da Segunda Grande Guerra, a tortura nazista e os
verbetes — combinados às leituras feitas e à sua condição de algoz, dão ao texto o que Iser
denomina de “desterritorialização semântica” (ISER, 1976/1996, p.12), pois saem de seu
campo histórico e de referencialidade para serem seu ato de leitura.
Diferentemente, então, das outras duas galerias de anotações, sua escrita,
[...] orientada pela estética do efeito, visa à função, que os textos desempenham em
contextos, à comunicação, por meio da qual os textos transmitem experiências que,
apesar de não familiares, são, contudo, compreensíveis, e à assimilação do texto,
através da qual se evidenciam a “prefiguração da recepção” do texto, bem como as
faculdades e competências do leitor por ela estimuladas (ISER, 1976/1996, p.11).
O acesso, assim como o do seu pai, aos verbetes do avô, à obra É isso um homem?, a
documentos e fotos das ações nazistas, tudo lhe fazia parecer que não havia mais nada a dizer
a respeito desse absurdo. Ele mesmo afirma, citando Adorno e Eyhuda Amichai e Hanna
Arendt, “que não há mais poesia depois de Auschwitz”, “que não há mais teologia depois de
Auschwitz”, “que Auschwitz revelou a existência de uma forma específica de mal” (LAUB,
2011,p.96). Entretanto, e apesar disso, escreve. Ele é o avô, saturado da vida vivida, que se
repete hereditariamente, agora saturado, além das leituras vividas, da vida vivida.
No entanto, quando os elementos são retirados da realidade de sua referência e
incorporados ao texto, eles experimentam, a partir daí,uma mudança de sua significação.
Nesse sentido, a seleção a partir da qual o narrador-escritor constrói o texto literário possui o
caráter de acontecimento, e isso porque ele, ao intervir em uma determinada organização,
elimina sua referência, tiraos elementos de uma subordinação e liberta-os para novos efeitos
de sentido. Assim, ele acaba por contar o que o avô não contava, em combinações com atos
de leitura encadeados e entrelaçados, de tal forma que põe em palavras “o que sabia do meu
215
[seu] pai, e tudo o que sabia do meu [seu avô] e consequentemente tudo o que sabia de mim
[si]” (LAUB, 2011,p.102). E tudo o que foi sabendo sobre si mesmo enquanto interpretava
leituras é que ele tinha um Auschwitz dentro de si.
Esse é o teor metanarrativo em estudo: o diário de alguém que tem em si um campo de
concentração e, sabendo disso, resolve enfrentar essa dor por meio da escrita esteticamente
construída, não uma escrita que engana ou que se dá na iminência da morte, vitimado pela
vida. Diferentemente, uma escrita de alguém que, tomado de remorso, precisa expurgar essa
queda vivencial da qual nasceu, na qual foi criado e na qual se envolveu e que parece não ter
fim. E faz isso contando sobre escritas catárticas, expondo-se, chicoteando-se por meio da
arquitetura de um efeito de sentido, expressando pela artea “inviabilidade da experiência
humana em todos os tempos e lugares” (LAUB, 2011,p.134), assim descrita, associada a
outros efeitos de sentido:
As memórias do meu avô podem ser resumidas na frase como o mundo deveria ser,
e daria até para dizer que as do meu pai são algo do tipo como as coisas foram de
fato, e se ambos são como que textos complementares que partem do mesmo tema, a
inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e lugares, o meu avô
imobilizado por isso, o meu pai conseguindo ir adiante apesar disso, e se é possível
falar sobre os dois sem ter de também firmar uma posição a respeito, o fato é que
desde o início escrevo este texto como justificativa para essa posição (LAUB,
2011,p.146).
Assim, desde o início da narrativa, seu traçado vem sendo feito, um traçado da
construção de uma obra de redenção, cujo final traz um claro endereçamento a um leitor, um
filho que será livre do encadeamento a que foi submetido o narrador-escritor, ciente de que ter
esse filho “é deixar para trás a inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e
lugares” (LAUB, 2011,p.150):
[...] e se pela última vez estou dizendo o que penso a respeito [de Auschwitz] é para
que no futuro você [o filho] leia e chegue às suas próprias conclusões. Porque não
vou atrapalhar sua infância insistindo no assunto. Não vou estragar sua vida fazendo
com que tudo gire em torno disso. [...] e há o patinho, a espuma, a buzina, o espelho,
a toalha felpuda, o colo e a pele da sua mãe, o cheiro dela, o toque das mãos
passando você para o meu colo, a roupa que estarei vestindo, a minha barba, o som
da minha voz, as palavras que direi e que ainda são incompreensíveis, mas você olha
para mim e sabe intuitivamente o que está por trás de cada uma delas, o que
significa a pessoa na sua frente, meu avô diante do meu pai, meu pai diante de mim,
eu agora e a sensação que acompanhará você enquanto os anos passam e também
começo a esquecer todo o resto, o que a esta altura não é mais alegre nem triste, bom
ou ruim, verdade ou mentira no passado que também não é nada diante daquilo que
sou e serei, quarenta anos, tudo ainda pela frente, a partir do dia em que você nascer
(LAUB, 2011,p.151).
216
Em Diário da queda, temos um sujeito gerado e construído pela leitura e pela escrita
de diários encadeados, escrita que estabiliza (e demonstra) as experiências, reorganizadas em
linguagem, dando sentido a tudo o que foi selecionado e posto em combinação, tudo visível
pela urdidura acessada pelo relato de um ato de leitura. A obra faz-se, assim, metaficcional,
jogando com possibilidades de forma e efeitos de sentido, descrevendo a autoconsciência do
narrador-escritor em relação à produção artística estritamente relacionada ao papel do leitor,
uma função que protagoniza a trama junto à de escritor.
Assim como as obras até aqui estudadas, também A história dos ossos, de Alberto
Martins, apresenta um trabalho metaficcional. Será especialmente tratado o segmento “O cão
no sótão”, considerando a ligação entre literatura e teatro, que se entrecruzam numa relação
complexa. Essa questão é posta na obra por meioda nomeação dos capítulos: “Prólogo”,
“Ensaio” e “Epílogo”, termos atribuíveis ao mundo do teatro, cuja conceituação expomos a
seguir.
Prólogo, segundo Maria Isabel Barbudo, é uma espécie de introdução que
tornou-se uma prática comum nas peças dos séculos XVII e XVIII, sendo por norma
escrita em verso. Neste espaço preliminar ao da representação, e pela voz de um dos
actores que integram o elenco da peça, o dramaturgo dirige-se ao seu público,
aproveitando para tecer comentários satíricos, convocar a indulgência dos
espectadores, ou especular sobre os temas da própria peça. [...] Aparece por vezes
também a anteceder o discurso romanesco e outras formas de narrativa, sendo disso
exemplo o famosoPrólogo dos Canterbury Talesde Chaucer (BARBUDO, 2017).
(encare assim, é ordem!). Daí que sintonias começam a se desenhar. Tão importante
nesse período é a sinergia que rola entre as pessoas. É um momento de
conhecimento das personagens e atmosfera a ser criada. [...] É uma viagem rumo ao
conhecido com percurso e destino desconhecidos. Ensaio é isso: um tema que
precisa ser esculturado para dar uma bela obra (CALAZANS, 2014).
É essa preocupação que leva a mãe a arranjar-lhe um emprego: “A mãe, que tinha
antecedentes, passou a ver com temor aquela atração desmedida do filho pela escrita. [...]
Você que gosta tanto de escrever, sua tia arranjou-lhe emprego em um escritório”
(MARTINS, 2005, p.14). No emprego, sai-se bem e consegue um espaço, um sótão, onde
poderia dedicar-se às tarefas sem sofrer incômodo. Essa mudança, conforme vimos nos
estudos sobre espacialidade, vão permitir ao personagem dedicar-se à literatura, o que faz
produzindo “um monólogo a muitas vozes” (MARTINS, 2005, p.14), executado como em um
estado de arrebatamento e visto como um estado de delírio. O monólogo é transcrito pelo
narrador, o outro irmão, em situação também de arrebatamento.
O que, então, deveria ser anunciado no prólogo? Diante do enredo, só podemos aceitar
o que nos diz o verbete de Maria Isabel Barbudo: um narrador que esteja a anteceder o
218
discurso romanesco, haja vista essa voz discursiva nos relatar, em prosa, a situação familiar
exposta acima, fazendo o papel simultâneo de narrador-irmão.
Ocorre, entretanto, que o material em seguida ao anúncio é um texto de representação,
um monólogo a muitas vozes, algo à parte da narrativa, um outro, o qual revelará um estado
de desvario. A função do segmento é peculiar, porque, apesar de ser o corpo da obra
anunciado pelo “Prólogo”, quebra a expectativa formal prevista pela composição em prosa, e
o que seria uma continuidade tem o lugar tomado por um texto de representação. Sobrevém,
então, uma digressão, e os fatos que antes vinham sendo contados e que propunham uma
continuidade — “Na tarde do dia seguinte, a mãe me despertou com a notícia” — têm,
também estranhamente, no “Epílogo”, seu prosseguimento.
Além dessa linha inusitada de composição da obra promovida pela inserção do
monólogo em meio a um conjunto de parágrafos em prosa, o material tem, em sua produção,
peculiaridades: a) é construído enquanto ensaiado; b) simultaneamente ao monólogo ensaiado,
ocorre sua transcrição, feita pelo narrador-irmão; c) no bojo dessa encenação-transcrição,
estão inscritas discussões sobre o fazer literário. Assim, há uma incorporação do encenado no
transcrito, cujo resultado é uma prática verdadeiramente viva, conforme sonhava realizar o
tresloucado personagem produtor do monólogo.
Retomando Calazans, no trecho construído pelo personagem-irmão, aquilo que é
“esculturado para dar uma bela obra” transmuda-se, pois o próprio esculturado é a bela obra.
Nada há cujo resultado seja uma bela obra, pois uma só situação encarna o processo e o
produto.
O trecho que antecipa a transcrição anuncia o grau de vivacidade e beleza que a
impregna:
Que motivos subjazem a essa impulsão? É possível dizer que o narrador, que tanto se
inquieta por esse irmão, tendo percebido que se dava a construção de uma peça e atentando
para o fato de que ele estaria realizando o ensejo de criar algo vivo, a partir do que viveria a
“mais absoluta, imprevisível e irremediável liberdade”, foi tomado de uma necessidade de
deixar registrada a encenação. A transcrição do monólogo já traz no cerne de sua
219
intencionalidade uma reflexão fundamental sobre o texto escrito — sua perenidade. Isso, pois,
caso a produção do monólogo atendesse às aspirações do irmão, como arte cênica que é,
ficaria restrita a uma única apresentação e, portanto, estaria perdida ante sua efemeridade.
O teatro é uma arte paradoxal, conforme afirma Anne Ubersfield (2010): é
simultaneamente representação concreta e produção literária; instantânea e eterna; para ser
vista em uma representação e objeto de leitura infinita:
O que o narrador faz é manter vivo o objeto de leitura infinita, fixá-lo para sempre, o
que se manifesta numa condição só plausível pela linguagem verbal. Dissemos acima que a
composição presente no segmento “Ensaio” é a encarnação de processo e produto, o que se dá
porque ocorrem três situações entrelaçadas e concomitantes: a construção desse monólogo, o
ensaio da representação desse monólogo e a transcrição desse ensaio, feita de maneira a ser
verdadeira representação, gestualizada. Assim, há uma absorção do encenado no transcrito,
cujo resultado é uma linguagem teatral, um metateatro, posto como metaficção no sentido que
já temos aprendido com Gustavo Bernardo: “momentos em que a ficção se duplica por dentro,
falando de si mesma ou contendo a si mesma” (BERNARDO, 2010, p.13), pois o monólogo
instaura a questão universal quem sou eu? mais uma vez, metaforizando as perguntas o que é
a literatura?e o que é e quem é o autor?.
Antonin Artaud (1999), nas “Cartas sobre a linguagem”, publicadas em O teatro e seu
duplo, responde a um interlocutor que o questionara sobre considerar a encenação uma arte
autônoma e a apresentação agir isoladamente e determinar-se de modo independente. Afirma-
lhe que:
[...] enquanto a encenação continuar sendo, mesmo no espírito dos diretores mais
livres, um simples meio de apresentação, um modo acessório de revelar obras, uma
espécie de intervalo espetacular sem significado próprio, ela só terá valor na medida
em que conseguir se dissimular por trás das obras a que pretende servir. E isso
durará enquanto o interesse maior de uma obra representada residir em seu texto,
enquanto no teatro, arte de representação, a literatura estiver acima da representação
impropriamente chamada de espetáculo, com tudo o que essa denominação tem de
pejorativo, de acessório, de efêmero e de exterior (ARTAUD, 1999, p.124).
220
extramonólogo, presente no sótão onde se instalara o irmão antes que o monólogo começasse
a ser ensaiado; ele aparece ali como algo insólito, em desacordo com o ambiente, um ser
esquisito, frágil, esquálido, mas vigilante, temerário: “As mãos giravam nervosas uma
barrinha de metal. Durante toda a visita, não se ergueu uma única vez. E volta e meia os olhos
derrapavam num canto da sala: lá, deitado num colchonete, as orelhas em pé, um cachorro
magricela seguia atentamente cada gesto do irmão” (MARTINS, 2005, p.16).
Apesar de ser o oposto de Cérbero, sem nada em sua aparência que seja monstruoso,
ele magnetiza o olhar do personagem-irmão, algo percebido pelo narrador e evidenciado pelo
uso da palavra “derrapavam”, que conota o descontrole, a subjugação ao animal.
Como elemento intramonólogo, numa ilustração do delírio que envolve o texto, o cão
atua como público da peça e também como se fosse o próprio personagem, o que acentua no
texto o caráter monologal. Várias passagens expressam esse duplo. Em uma delas, verifica-se
a quebra de expectativa no uso inverso da personificação: “Já não engasgo a cada sentença e
posso conduzir falas inteiras sem perder o osso do raciocínio”. Em outra, sendo o discurso um
monólogo, “o solilóquio de um sozinho”, o diálogo com o cão volta-se para o próprio
emissor: “Avante, animalzinho. Queres escutar o solilóquio de um sozinho? Ótimo. Alguém
que vive do ócio como tu será o melhor ouvinte à minha exposição. Afinal, não há nada que
estimule tanto um homem a falar quanto um discreto e dissimulado espectador” (MARTINS,
2005, p.20). Ao final da peça, é o cão-personagem quem traz os fósforos, o que anuncia o
incêndio, situação que se dará extramonólogo.
Ai língua da infância, muda de lembranças — o que é que tudo isso significa? Tanta
areia e cinzas... e um cão faminto que abana a cauda entre os escombros!... Ó, cão!...
Então sou eu esse que se move de quatro entre os despojos, o focinho rente ao chão,
farejando restos num festim de mortos!?... E meu este corpo!?... E serão meus estes
ossos!?... Mas suspende a pena um instante.
Traz os fósforos.
Quero examinar de perto as marcas (MARTINS, 2005, p.29).
[...] a mais elevada ideia de teatro é a que nos reconcilia filosoficamente com o
Devir, que nos sugere através de todos os tipos de situações objetivas a ideia furtiva
da passagem e da transmutação das ideias em coisa, muito mais que a transformação
e do choque dos sentimentos nas palavras (ARTAUD, 1999, p.123).
223
diário que leva ao divórcio, os primeiros tempos de sensação de derrota, a busca pelo
equilíbrio.
Nessa montanha-russa de emoções, a rua torna-se seu espaço de maior permanência,
mas, conformada ao narrador, não éobjeto de observação nem de estabilidade; é espaço onde
cabe alguém cujo perfil é o de o de um sujeito que vive no meio urbano, em meio às ruas, à
indiferença social. Os títulos dos capítulos ilustram isso: abaixo de cada um deles, há um
subtítulo que alude a algo desse narrador-personagem.
Esse narrador coloca-se explicitamente como um escritor, cuja peculiaridade éseu
estado de desnorteamento, condição constitutiva de uma estratégia performática pela qual se
manifestam temas de relevância para a teoria da literatura, como a discussão entre o que é
ficção e o que é realidade e, nesse bojo, a discussão sobre as condições da autoria bem como
do valor da literatura, matérias laboradas na própria trama.
Nesse movimento desorientado, são trançadas questões estéticas, de forma a serem
construídasa princípio duas faces narrativas, convidando o leitor a ater-se a uma delas, rixas
infantilizadas em um caso de divórcio, ou a percorrer um engendramento dessa face a uma
textura metanarrativa, voltada para si mesma.
Os procedimentos presentes no processo são diligenciados pelo narrador. Ele, entre
outras ações, trata de dar tons de realidade ao enredo, com fatos que retomam situações
extratexto, inclusive datadas, acontecidasex-centricamente, anteriores à narrativa em si, algo
periférico ao andamento dos fatos, como as anotações, que ele inclusive considera
autobiográficas, feitas em outras fases da vida distintas dessa que ele narra, sua situação de
divórcio:“Durante todo o segundo semestre de 2011, além de começar a correr seriamente,
preenchi muitas folhas com frases autobiográficas. Além disso, fiz mil outras anotações”
(LÍSIAS, 2013, p.14).
Nessa mesma linha de referências sobre si mesmo, ele se mostra como alguém que
atua em um outro papel, diferente do marido que está em fase de separação, diferente daquele
que faz anotações:
No sexto dia, com o corpo sem pele queimando apesar do frio, não me senti morto:
tive certeza de ter enlouquecido. Eu acabara de escrever um SMS chamando minha
ex-mulher de puta quando, na metade de uma frase autobiográfica, achei que estava
vivendo um dos meus contos.
Com certeza eu assinaria essa história (LÍSIAS, 2013, p.15).
Por mais que me esforce, não tenho nenhuma memória do sétimo dia. Uma semana
fora de casa. Não fiz nenhuma nota autobiográfica nessa data. Acho que sei a razão:
naquela noite saí de novo para andar. Agora, não perdi o fôlego. Minha vista
também não escureceu (LÍSIAS, 2013, p.17).
Essa encenação de alguém que faz anotações para uma autobiografia cabe bem ao
propósito de pôr em discussão as relações entre ficção e realidade, pois, como afirma Silviano
Santiago, em sua palestra Meditação sobre o ofício de criar, “o discurso autobiográfico per
se— na sua pureza — é tão proteiforme quanto camaleão e tão escorregadio quanto
mercúrio...” (SANTIAGO, 2008, p.174), e, por essa condição, passa a ser uma escolha
228
estética, um gênero que pode ser afetado pelo “direto, concentrado e imaginativo do discurso
ficcional” (SANTIAGO, 2008, p.174). A seleção do gênero como objeto de comentários
manifesta, portanto, uma intenção metaficcional. E, assim, o enredo sobre uma situação de
divórcio, carregado de citações do diário, vai cedendo lugar, cada vez mais, às reflexões sobre
a escrita ficcional e suas relações com a realidade, com as referências.
Nesse processo, a condição de escritor é exibida como aquela que tem, no discurso
autobiográfico, uma força motriz para tratar do discurso literário, o que se estende às
considerações que o narrador-escritor faz do discurso jornalístico, mais um elemento que põe
em discussão o fazer literário. Desprezível para ele, aquele discurso é encarnado na figura da
personagem ex-mulher e retirado do diário que ela escreveu e de suas ações; e comentado sob
a ótica do narrador, ente encarnado na figura de um escritor. Esses dois lados representativos
da escrita são postos como antagônicos entre os personagens. De um lado, a ex-mulher o
despreza por ele ser um escritor, reconhecendo apenas o status de que a profissão se reveste:
10 de julho: Nova York. Eu estou viajando em lua de mel, mas não estou
apaixonada. O Ricardo é legal, inteligente e às vezes me diverte, apesar de andar
muito. Mas apaixonada eu não estou. Gosto de ser casada com um escritor. É só
esconder certas coisas e pronto. Eu sou uma mulher atraente, não tenho dificuldades
para achar amantes, nunca tive. Quanto ao jornal, eu acho que vou sair mesmo. Sou
a maior jornalista de cultura do Brasil (LÍSIAS, 2013, p.35).
23 de julho. E o Ricardo? Por acaso o Ricardo foi para alguma guerra na África? O
que ele sabe da vida? Ele não me dá nenhuma das aventuras que eu quero. Eu não
tenho nada para sonhar com ele. Nunca o Ricardo me convidou para ir a um lugar
com meus vestidos. Em Cannes, na entrevista com o Brad Pitt, eu estava
deslumbrante. Se não fosse o dia do casamento, com o Ricardo eu só uso roupa
normal. Ele acabou de virar para o lado, deve estar com frio, coitado (LÍSIAS, 2013,
p.35).
Qualquer jornalista que não sejademasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que
está acontecendo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável. [...] Os
jornalistas justificam a própria traição de várias maneiras, de acordo com o
temperamento de cada um. Os mais pomposos falam de liberdade de expressão e do
“direito do público a saber”; os menos talentosos falam sobre a Arte; os decentes
murmuram algo sobre ganhar a vida (MALCOLMapud LÍSIAS, 2013, p.114-115).
231
Agora, por exemplo, estou me lembrando do episódio na fila da Notre Dame. Cinco
horas para entrar aí dentro? Mas, Ricardo, é um monumento da história humana. A
Notre Dame é um monumento da história humana! Joguei-me em um enorme clichê
e não percebi (LÍSIAS, 2013, p.31).
mim. Para isso, planejei colocar entre os parágrafos do novo conto trechos refeitos
(mas com o mesmo sentido) do diário (LÍSIAS, 2013, p.164).
Confesso que, logo que li o diário, tive o enorme impulso de mostrar para todo
mundo quem de fato é minha ex-mulher. Vejam que moça mais legal. No entanto,
logo depois me vi morto. Toda a minha energia então ficou voltada para me resgatar
do que me parecia ser a antessala de um necrotério. A conclusão é obrigatória: a
literatura é agora parte vital não apenas da minha vida simbólica, mas até do meu
corpo (LÍSIAS, 2013, p.166).
Você se dá ao direito de mentir sobre mim por todo lado, mas acha que pode
impedir-me de escrever um texto de ficção. Sempre querendo tudo![...]Tenho sim o
direito de elaborar ficcionalmente a violência a que fui submetido [...]. Faça alguma
coisa melhor do que escrever cartas anônimas para minha mãe (note como vou
assinar tudo o que estou dizendo) (LÍSIAS, 2013, p.234-235).
233
[...] se escreve com a lembrança daquilo que é, daquilo que foi. Ela a exprime,
movimentando sua memória e a inscrevendo nos textos por meio de um certo
número de procedimentos de retomadas, de lembranças e de re-escrituras, cujo
trabalho faz aparecer o intertexto (SAMOYAULT, 2008, p.47).
uma definição, a de infância (“A infância era quando a cerca não existia, entende?”; “Tudo
muda depois que se experimenta” (LUNARDI, 2011, p.9)) concatenada a uma referência à
Bíblia, ao livro de Gênesis (“Igual à história da maçã” (LUNARDI, 2008, p. 9)). Esse último
elemento se integra à narrativa por meio da sugestão, exigindo um emprego mais extenso do
conhecimento da protagonista (e também do leitor) bem como uma capacidade associativa
refinada: as palavras “maçã” e “inocência” e a frase “Tudo muda depois que se experimenta”
(LUNARDI, 2011, p. 9) sugerem a circunstância da tentação sofrida por Eva e repassada a
Adão, e, unidasao circunstancial pertinente à classe de palavras, redimensionam ambos os
usos, o linguístico e o literário: o paraíso, a infância, fica constatado, está definitivamente
perdido, depois que se percebem as circunstâncias.
Um mosaico de referências vai-se apresentando na narrativa, então revelando,
conforme afirma Leyla Perrone-Moisés, quando comenta sobre um conjunto de obras
literárias contemporâneas, “uma bagagem de cultura, alta e pop, para partilhar as referências
explícitas e implícitas” (PERRONE-MOISÉS, 2012, p.4), esculpindo a protagonista,
espelhando-a nas situações em que ela se insere. As construções culturais Robinson Crusoé,
Sur, Dom Quixote são exemplosdessa bagagem. Postas em uma biblioteca em arrumação,
configuram o único passado que interessa à narradora e um presente cuja finalidade era “adiar
o triunfo de traças e fungos, que de todo modo venceriam” (LUNARDI, 2011, p.13).
Na linha dessas múltiplas referências, explícitas ou implícitas, vêm muitas outras:
personagens dos quadrinhos (“Papai, o raivento, sapateava e espancava o ar, repetindo a
reação do Tio Patinhas ao descobrir que uma moeda de ouro lhe escapara das mãos”
(LUNARDI, 2011, p.53); “O corpo inteiro perdia as extremidades, transformava-me em uma
vela, dessas que têm numa ponta o Mickey ou o Batman e na outra uma espátula fina para ser
enfiada no colo” (LUNARDI, 2011, p.53)); um dito popular (“Ainda hoje parece-me
malicioso que o sentido de tudo se revele somente depois, quando não há nada a fazer senão
aceitar o novo tamanho e descobrir um lugar onde se caiba”(LUNARDI, 2011, p. 62)); um
músico refinado (“Volte ao menos para o Tom Jobim, diz no meu ouvido, depois canta uma
estrofe, dessas que não se repetem fora do contexto”(LUNARDI, 2011, p. 65)); um
personagem da literatura clássica brasileira (“Conversávamos sobre a miopia do Hubble —
acho que só eu falava, ele grunhia umas concordâncias. Era umpoema esse satélite com falhas
de visão, um Miguilim do espaço” (LUNARDI, 2011, p. 90)); uma produção nacional infantil
clássica (“Encontrado em Minas Gerais e na música-tema do Sítio do pica-pau-amarelo, ele
acrescentou, sem tirar os olhos da revista. Fiquei parada. Quantas letras? Ele negou com a
cabeça. Jabuticaba, respondi. Dez letras. O grafite pontudo obedeceu” (LUNARDI, 2011, p.
235
92)); um clássico infantil (“Sou mais velho do que você e devo estar mais bem informado,
papai bufava, repetindo noutras palavras o bordão do pássaro falante da Alice” (LUNARDI,
2011, p. 96)); um conto infantil da literatura universal (“Já disse, respondi, cortante, para me
esquivar das gavinhas que ele fazia crescer em minha direção. Reconheço de longe quando
querem me enredar. Tirei umas conclusões ao ler João e Maria” (LUNARDI, 2011, p. 102));
cineastas e literatos (“O cara não sabia quem era Zelda Fitzgerald e ainda queria que eu
falasse? Virei o rosto para ele não ver o riso de deboche. O fato é que eu sentia raiva de viver
num mundo onde havia pessoas que nunca tinham lido Zelda ou Clarice ou Hesse, nem visto
os filmes de Bergman” (LUNARDI, 2011, p. 102)); e a Bíblia novamente (“Será que
tínhamosde partir sempre do mesmo ponto, como se o mundo estivesse sendo criado hoje e a
gente fosse aquela dupla que experimentou a maçã pela primeira vez? E tudo o que já foi dito
em milhares de quilômetros de frases por gente mais sabida do que nós era para esquecer?”
(LUNARDI, 2011, p. 102)); um cientista (“Não há, posso afirmar então, entre esses 132
passageiros que viajam comigo, algo que os distinga para além do fato de estarmos nas mãos
do mesmo piloto, submetidos à fragilidade aplanadora dos que correm o mesmo risco. [...]
Não estou perdendo a chance de que um Einsteinaperte a minha mão durante o pouso”
(LUNARDI, 2011, p. 124)); uma obra clássica brasileira, que, por sua vez, remete à
tradicional fábula do macaco Simão e do gato Micefufe (“Dentro, tudo lembrava um cenário
de Clarissa. A mesma mãe com um filho adoentado, as quatro moças empregadas do
comércio a dividir beliches, o músico da orquestra municipal às voltas com o estojo magro do
violino, e até um gato sem dono que eu passe a chamar secretamente de
Micefufe”(LUNARDI, 2011, p. 138)); clássicos entre clássicos (“Móvel e instável, ele
brincou, me chamando de Quincas Borba, o filósofo” (LUNARDI, 2011, p. 36); “Pego um
exemplar de Esaú e Jacó cheio de anotações nas margens (a minha memória toda é por
escrito, não confio de outro jeito)” (LUNARDI, 2011, p.64), “Vá ler Proust, sua ignara,
respondeu, quando perguntei o motivo daquele apelido” (LUNARDI, 2011, p. 140); “Naquele
escuro de feitio subterrâneo, nossos inimigos interiores voltaram a roer mais forte”
(LUNARDI, 2011, p. 171)); filmes e cineastas e novamente a Bíblia (“Foi no meio da sessão.
É o que fazem as almas atormentadas. Vão ao cinema de tarde. Kane tinha chegado no jornal
e descoberto que falariam mal da peça de teatro que ele havia financiado. [...] Eu vi coisas que
vocês humanos não acreditariam. Uma frase de Blade runner, que eu tinha vista nove vezes
até então. [...] Quando Orson Welles reapareceu na parede foi um alívio. Estávamos de volta a
Xanadu, o caminho, a verdade e a vida” (LUNARDI, 2011, p. 170-171)); um comediante
(“Trajava uma capa de gabardina marrom e tinha um bigode que rivalizava com o de Groucho
236
Marx” (LUNARDI, 2011, p. 175)); e mais uma vez a Bíblia (“Se fosse pronunciá-lo, uma
coisa ia surgir no mundo” (LUNARDI, 2011, p. 181)).
Sobre referências como essas apresentadas por Lunardi, Samoyault se utiliza das
considerações de Annick Bouillaguet, que as conceitua como “empréstimo não literal
explícito” (BOUILLAGUET apudSAMOYAULT, 2008, p.50), e afirma que podem “[...]
acompanhar a citação para precisar as fontes do texto citado. Mas, com mais frequência,
quando aparece sozinha, a relação com o outro é muito mais sutil que no caso da citação, já
que a heterogeneidade do texto está quase ausente”(SAMOYAULT, 2008, p.50).
Nesse sentido, por vezes, deslizam para a alusão, remetendo
[...] a um texto anterior sem marcar a heterogeneidade tanto quanto a citação. [...]
Outras vezes, ela remete mais a uma constelação de textos do que a um texto
preciso. Ao escrever Ulysses, “a Helena de Argos, a jumenta de Tróia que não era de
madeira e que alojou tantos heróis nos seus flancos”, James Joyce fornece uma
alusão mitológica e alegórica que pode remeter tanto a Homero quanto a Eurípides
ou a qualquer outro autor que tenha retomado a epopeia troiana. Não plenamente
visível, ela pode permitir uma convivência entre o autor e o leitor que chega a
identificá-la. A alusão depende mais do efeito de leitura que as outras práticas
intertextuais: tanto pode não ser lida como pode também o ser onde não existe
(SAMOYAULT, 2008, p.50-51).
Outra, um detalhe que, conforme a irmã, fazia com se assemelhasse a Proust: ambos,
asmáticos, o que a levaria a ser escritora. A cena é posta sensorialmente, aconchegante, com
dupla inscrição: o passado retomado em lembrança — narrativa — posto no presente em
escrita — narração. É ofício de gente transformado em ofício de escritora:
Está vendo aqueles sete livros de capa verde? O autor, Marcel, sofria de asma desde
criança.
Minha irmã foi até as prateleiras de tábuas nuas sobre tijolos e tirou de lá um
exemplar antigo que eu nunca tinha aberto.
Quer ouvir o comecinho? Ele conta como era naquela idade.
E na voz mais gentil e quente que podia, minha irmã leu o primeiro parágrafo do
livro:
Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Às vezes, mal apagava a vela e meus olhos se fechavam
tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: adormeço. E, meia hora depois, despertava-me a ideia de
que já era tempo de procurar dormir; queria largar o volume que imaginava ter ainda nas mãos e soprar a
vela; durante o sono não havia cessado de refletir sobre o que acabara de ler.
Mais uma referênciaque expõe a memória de leitura e ainda sutilmente concorre para
seu anúncio como escritora, dessa vez, enquanto ocorre a descriçãodas rudezas familiares,é a
fábula “A cigarra e a formiga”. A moral da história preenche o tom de melancolia com que é
feita a leitura, tom que pode estar em uso para representar o sentenciando para si do
distanciamento da literatura, mas também a feição que veio a ser típica da voz autoral:
A expectativa quanto ao que minhairmã faria, aonde ia chegar com aquilo, tornou-se
para mim uma obsessão. A prova de fogo foi dizer que eu tinha decidido estudar
letras. E eu, e eu? Ela foi perguntando, nervosa, como se eu estivesse lhe passando a
perna. Você é a escritora, eu vou ser apenas uma professora, tratei de minimizar,
despistando o ciúme que ela não escondia. O interesse frouxo que eu aparentava pela
faculdade dava mesmo a entender que eu escolhera aquele curso por falta de
vocação. Ficou ainda menos suspeito quando comecei a revisar textos e copidescar
teses de mestrado. Era um trabalho palpável, instrumental, que me afastava daquele
campo de interesses comuns no qual minha irmã tinha mais qualificação para
transformar em ofício. Eu seria somente uma operária, ela, a artista (LUNARDI,
2011, p.35).
Nesse celeiro de alusões, mais uma que merece destaque é a apropriação do nome
Nietzsche para batizar, com uma variação na grafia (Nietsche), a personagem que é uma
grande amiga da narradora. Trata-se de uma referência, não por acaso, a um filósofo alemão,
cuja biografia e obra descrevem um homem em angústia perene, o que se exemplifica pelo
conselho nietzscheniano parafraseado por Pelbart: “ao olhar o passado a partir da mais alta
238
força do presente – único ponto a partir do qual é legítimo interpretar o passado –, é o de ler,
por exemplo na vida dos grandes homens, a injunção suprema à qual obedeceram – a de
escapar à coleira do tempo. Por conseguinte, não cabe relacionar Fulano e se tempo, mas
considerar Fulano como um lutador contra seu tempo –...”(NIETZSCHEapudPELBART,
2003, p.190). Essa fala ilustra como se ajustam o filósofo, a personagem moradora de Antares
e a relação entre as amigas. Sendo assim, o destaque à escolha se dá pela sua
representatividade na vida da narradora-escritora, simbolizando o percurso feito para sua
libertação e sensibilização, bem aos moldes daqueles que se insurgem, de alguma forma,
contra seu tempo. Com essa colega de classe, a protagonista descobriu seu lugar na cidade,
dentro de um furacão, em pleno voo, a partir do que entendeu que havia se perdido da família.
Também por essa amiga descobriu o valor de ser sincera consigo mesma, compreendendo a
morte como uma opção. Liberdade, sensibilidade, morte, ingredientes imanentes à literatura:
Nietscheme ensinou a voar.O garfo de papai caiu sobre o prato. Meu irmão rolou os
olhos para dentro e mamãe bebeu mais um gole de Coca-Cola.Perdemos ela de vez,
foi o comentário de minha irmã, enquanto juntava o molho com um pedaço de
pão.Sim, eles tinham me perdido (LUNARDI, 2011, p.31).
Em dois passos cheguei ao portão e ouvi a porta ser fechada. Olhei para trás. Soube
então que nunca mais veria o pai da Nietsche, nem aquela casa, nem o suéter que
pertencia a ela. Não precisava. Comecei a ver por mim, a entender por mim. Era
como se até então os dentes perdidos fossem todos de leite e se tratasse, agora, de
um definitivo. As lágrimas desceram por aquele pai que perdera a filha, e porque eu
tinha uma vida minúscula, falhada, para carregar pelo resto dos meus dias. Foi aí
que começou o que veio em seguida.
O que eu não pude dizer ao pai de Nietscheé que uma coisa no meio de tudo fazia
sentido. Uma coisa que eu não podia falar, mas que era fundamental para eu seguir
sendo sincera comigo. Não foi a doença cardíaca prévia, não foi por descuido. Ela só
fez o que fazia com o vento. Um mergulho. E isso eu podia aceitar. E aceito
(LUNARDI, 2011, p.120-122).
Vale ainda a referência a uma constelação de textos literários, todos vinculados à irmã,
essa personagem que tanto contribuiu para a formação cultural da protagonista, e com quem
tanto partilhou e sofreu as dores familiares, “[...] a única pessoa com quem compartilha[o]
uma história desde o início. É ela que está no banco de trás de todas as viagens, enjoando com
ela [comigo], porque a paisagem passa depressa, depressa demais pela janela” (LUNARDI,
2011, p.183). Foi ela, a irmã, quem expôs a narradora a toda a sensação do incompreensível, o
que as coloca em uma simbiose alinhavada pela literatura eo que domina as duas como
leitoras e vem a se manifestar na mana caçula quando já é uma escritora. Essa convivência se
manifesta, então, por uma reprodução/apropriação de uma beleza ímpar:
239
Não há ainda como deixar de falar de Poe, referência que compõe as cenas mais fortes
de incorporação da literatura à escritora, posta em uma sessão de terapia, com alarmantes
índices de dor, elucidando um arquivo expandido, renovado:
Por quê?
Porque seria insuportável carregá-las pelo resto da vida.
Naquela hora, eu já sabia que tinha apagado o fato de minha irmã ter começado a
usar roupas de vitrina e sapatos de salto, mas isso foi mais tarde. Deve ter havido um
momento em que tudo começou, uma primeira grande canalhice que ela fez comigo
e que foi sutil demais para eu perceber na hora. A mudança física era só a parte
visível do que se operava nela. Você não é assim, lembro de ter avisado quando ela
cortou o cabelo até as orelhas. Não pode cair nesse conto (LUNARDI, 2011, p. 105-
107).
dor. Portanto, nada havia de intenção solidária em seus palitos de fósforos: não há família
para ajudar, apenas há família a temer, no que se centra a falta de coragem de retornar para
casa. A voz discursiva que narra essa versão opõe-se àquela do conto tradicional,
desvencilhando-se da intenção dramática original, atualizando-o de forma brutal demandada
de uma realidade também brutal, na qual não se permite sequer o sonho ou avós carinhosas ou
elementos mágicos. Não há alívio nem ajuda. Não há nem bondade nem recompensa pela
bondade. Especialmente o “final feliz” para a protagonista foge do discurso religioso cristão,
em que a transcendência é a salvação total e absoluta. Dessa vez, a situação restringe-se à vida
terrena, aos fogos de artifício do réveillon, à indiferença humana. Não se faz presente a morte
como rito de passagem para uma vida melhor junto a Deus, do que se infere a total ausência
divina. Não há discussão sobre a morte, porque não há discussão sobre a vida, ocorre apenas
uma crueza na existência, nas personagens, no espaço, no tempo, no enredo. As mazelas são a
condição humana inescapável.
A intertextualidade com o conto se pauta então num dialogismo que se mostra no fio
do discurso e que é constitutivo do sujeito, postando-se em sua heterogeneidade. Segundo
Faraco, tratando da conceituação de Bakhtin sobre autor-pessoa e autor-criador, afirma que
Isso posto, o discurso religioso cristão presente no conto tradicional perde força para a
visão dolorosa da contadora irmã, tão ferida em sua latência de morte, necessitada de
vingança diante da falta de um mínimo de transcendência em sua vida, da total ausência de
uma tábua na qual pudesse se agarrar. Ela não se desloca de si para recontar, ela constrói sua
realidade em seu discurso com a agudeza do mesmo punhal que a feria e transfere essa
agudeza para os ouvidos de sua interlocutora, à qual resta rebater, trêmula, cada passo dado,
cada transformação, tentando se defender da violência que a assolava:
Com neve é mais bonito. [...] Lanchonete? [...] Não se furam as bolhas, elas devem
secar sozinhas [...] Tinha anoitecido! [...] Ele também devia estar com bolhas a essa
altura [...] Que nojo! [...] Podia ter deixado ela entrar pela porta de trás [...] E a avó?
[...] Quando entra a parte da avó? [...] Está tudo errado [...] Essa não é a vendedora
de fósforos. Não é assim que está escrito [...] Dá pra mudar a história dos livros? [...]
Não gostei do seu jeito [...] Sem neve não teve graça. Não parece um conto de Natal
243
[...] Hum. Não fiquei com pena da menina. Ela destrói a cidade [...] No seu não dá
vontade de chorar [...] A gente não sente assim, que é mais justo [...] Que está
errado, que a história não funciona [...] Quando ela morre, eu sinto que o mundo é
injusto. Sinto de verdade [...] Tem razão. Mas não é para resolver, acho. Não é para
isso (LUNARDI, 2011, p. 185-188).
Começo este segmento sobre Antiterapias, de Jacques Fux, pelos trechos com os quais
fechei as reflexões sobre a obra, relativamente às vozes discursivas, no segundo capítulo
destes estudos, segmento “Diz-me se lês e te direi se és”:
Para fugir da dor, resolvi ser filósofo existencialista. Grande besteira. Essa pedra que
havia no meu caminho me derrubou. Eu não sabia que todos estes que aí estavam
atravancando meu caminho, eles passarão, eu passarinho. Eu ainda não era um
passarinho, mas passaria (FUX, 2012, p. 113).
Naquele momento, concluía que o narrador atua como leitor e como escritor. Com
suas leituras, demonstra como tem lidado com o rol de obras que o cercam, fazendo emergir
delas novos sentidos. O rol revela um leitor consistente, mas um frágil escritor, cuja matéria
de trabalho está sempre no que é de outro.
245
É essa mesma linha de reflexão que será retomada, o que se explica a seguir. Nas
outras obras estudadas até aqui, foi possível selecionar, com certo cuidado e risco, algumas
condições poéticas que, embora associadas à pesquisa sobre as vozes discursivas e a
espacialidade, apresentam outros nichos passíveis de observação entre vários que serviriam à
tentativa de analisar, investigar, examinar trabalhos que,nos parece, compõem uma vertente
preocupada em ilustrar o escritor como objeto de si. Entretanto, quanto à obra do autor
mineiro, fazer esse movimento de pinça é tarefa hercúlea, tão calcada ela é na estratégia
metaliterária, que discursa em sua inteireza sobre a relação entre vida e literatura, as lacunas
daquela sendo preenchidas por esta.Tantas são as lacunas, que a obra é tomada de veredas.
Ratificando o conceito de metaliteratura, tomamos a palavra deSchøllhammer:
[...] é a literatura que fala de si mesma, que fala da literatura, da leitura ou da escrita,
do processo de diálogo e interação com outras literaturas, de livros com livros, em
um mundo-biblioteca bem ao gosto de Borges. Como se o mundo devesse ser lido
como uma biblioteca, e a biblioteca, qualquer livro, em realidade, vivido como se
fosse um mundo (SCHØLLHAMMER, 2011, p.131).
Do que se trata o personagem literário que ele afirma ser? Desse que, tendo lido
Pessoa, assume essa voz literária para expor seus sentimentos universais? Desse que se vê
como um personagem dentro da narrativa que nos é narrada, ou seja, o próprio narrador?
Desse que entende seus sentimentos como algo pertencente ao mundo da literatura?
É no emaranhado entre o que é referência e o que é ficção que se instaura a reflexão
sobre o que é literário e o que não é, toque tão belo e falseado de que se recorda. Nesse
deslimite,a realidade a ser mostrada é a do fazer literário, colocado no centro da obra, de
maneira a buscar a participação do leitor que “co-opera”, sob o risco de perder a construção
da obra como tema, percebendo que a coisa narrada é a forma.
O enredo que se vai construindo, sobre as relações judaicas familiares e escolares,
profissionais e amorosas, todas, poder-se-ia dizer, vêm entrecruzadas de citações, forma
preponderante de sentir, interpretar, viver a vida. Assim como em A vendedora de fósforos,
misturam-se as fontes, com referências à cultura alta e pop, porém, nesta obra de Fux,
infinitamente:uma produção de massa (“[...] até pensava que o Show da Xuxa era um
programa kasher”(FUX, 2012, p. 13)); o livro sagrado (“Se é que Deus e Lilith
existem”(FUX, 2012, p. 13)); um clássico contemporâneo (“As relações entre Stephen
Dedalus e seu colégio eram justamente o oposto da minha relação com meu colégio”(FUX,
2012, p. 14)); um clássico atrelado a um pop (“Posso recontá-la como Dom Quixote ou como
Forrest Gamp” (FUX, 2012, p. 16)), ou o mesmo clássico isolado em sua grandeza (“Aqui eu
era um cavaleiro cuja batalha era proteger minha Dulcinéia com honra” (FUX, 2012, p. 17));
ilustres brasileiros, como Drummond, Bandeira, Guimarães Rosa... (“Descansar de minha
seriedade. Meus ombros não suportariam mais o mundo” (FUX, 2012, p. 29); “Andorinha do
Bandeira que passou o dia à toa. À toa! Muito menos queria passar a vida à toa, à toa”; “Eu
era pactário de Deus ou de Riobaldo. Mas será que Riobaldo fez o pacto?”(FUX, 2012, p.
27)); um memorialista (“Só o testemunho de Levi faz esta criança ter existido”(FUX, 2012, p.
27)); um autor contemporâneo brasileiro, Laub (“Tive a minha imponderável queda” (FUX,
2012, p. 47)); a filósofa Hanna Arendt (“Foi enforcado com a banalização do mal”(FUX,
2012, p. 49), “É, de fato, a banalização do mal. Será que os malditos estavam somente
cumprindo ordens?”(FUX, 2012, p. 23)); uma fala popular paródica (“Todos nós desejamos a
247
mulher do próximo, desde que esse próximo não esteja ou seja tão próximo assim”, (FUX,
2012, p. 24)); um dicionário associado a um personagem da literatura clássica infantil
(“Espaço exato descrito no Dicionário de Lugares Imaginários, onde se situava também a
Terra do Nunca”(FUX, 2012, p. 31)); personagens de filmes de massa misturados aos
clássicos (“Talvez um Hannibal Lecter ou um Corleone, mais inteligente e refinado”(FUX,
2012, p. 30)); um filósofo também clássico, Platão (“Um amor mais platônico, daqueles do
mundo das ideias. Que está num plano superior às ideias” (FUX, 2012, p. 23));todos numa
rede imensurável, postos a cada termo, a cada frase, a cada parágrafo, com uma única trégua:
um relato feito à margem dessa biblioteca de inspiração borgeana.
Trata-se de uma voz discursiva, um judeu perseguido pelos nazistas, atormentado por
essa tortura. À parte do emaranhado de citações, essa voz é apresentada em itálico. Darlan
Roberto dos Santos a descreve como sendo “um outro que fala, através do garoto, do
adolescente e do jovem, que está apenas começando a trilhar os caminhos de um “judeu pós-
moderno” (SANTOS, 2013, p. 87). Essas falas funcionam como “uma história dentro da
história”, que podem ser consideradas uma forma paralela de demonstrar um fazer literário
que tenta um estado de pureza, sem as interferências de outras vozes discursivas, alguém que
não se perca do roteiro, uma personagem posta num eixo, em equilíbrio, distinta dde um outro
“afinado com sua época fragmentada, multicultural, híbrida e desmemoriada” (SANTOS,
2013, p. 87). Por conseguinte, promove uma leitura em comparação, deixando claro para o
leitor um outro modo de operar.
Prepondera, no entanto, um mesclado de citações, ao qual está intrincado o
pensamento literário: ora acoplado mesmo à referência implícita ou explícita,ora separado, em
tom mais teórico, faz parte de uma orgia de operações que coloca no centro do texto a sua
dimensão metaliterária. Em ambas as circunstâncias, exibe-se a consciência da criação de
novos sentidos, convergindo a obra para o centro de si mesma, o próprio mundo literário.
A exemplo, tomemos o seguinte parágrafo:
Ver os bolinhos em formato de concha não havia lhe aguçado a lembrança, o que,
segundo o narrador, talvez tenha se dado
[...] porque, como depois tinha visto muitas, sem as comer, nas confeitarias, a sua
imagem deixara aqueles dias de Combray para se ligar a outros mais recentes; talvez
porque, daquelas lembranças abandonadas por tanto tempo fora da memória, nada
sobrevivia, tudo se desagregara; as formas — e também a daquela conchinha de
pastelaria, tão generosamente sensual sob a sua plissagem severa e devota — se
haviam anulado ou então, adormecidas, tenham perdido a força de expansão que
lhes permitiria alcançarem a consciência. Mas quando mais nada subsistisse de um
passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas — sozinhos,
mais frágeis, porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis — o
odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando,
aguardando,esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em
sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação (PROUST, 1913/1982,
p.32).
experiência de leitura. Anuncia isso a adjetivação negativa quanto ao sabor do salgado, que
não caberia em “sensações mais perfeitas. As mais suaves, lindas e inebriadas possíveis”,
estas outras que levam a pôr em reflexão “Ficção. Literatura. Plágio”.
O narrador de Antiterapias assume,por meio desses movimentos interdiscursivos, seu
fazer literário como um exercício meio de plagiar, meio de recriar, meio de criar, repetindo,
renovando, inovando, com Proust, o conceito de distância, de tal forma que as suas sensações
são as do autor clássico, apropriadas, ampliadas. De madalenas a coxinhas, da delicadeza da
tia Leôncia ao serviço de um clube judaico, há um processo parodiante, desmitificante do
papel do narrador. Ao mesmo tempo, edifica-se o poder da ficção, que transpõe tempos e
espaços, provendo algo de extraordinário, a necessidade, urgente, de escrever: “E eu preciso
escrever. Eu tenho que escrever. Escrevo e me lembro. Lembro-me de flutuar nos sábados no
Dror, nas Machanot. Je me souviens...” (FUX, 2012, p.32). Usando essa expressão em
francês, o narrador assume ser um escritor absorvido por outras obras, experiência imitando
experiência, num cruzamento entre ficção e referências, expondo a sua captura do outro, num
espelhamento do ato de escrever. Assim, o narrador desenha-se calcado em outros,
metaficcionalizando-se, tratando, esteticamente, por meio do diálogo com outras literaturas,
da própria literatura, considerando-se parte de uma biblioteca borgeana e assim considerando
o fazer literário. Reescreve-se dessa forma a história da literatura, renovando a leitura dos
clássicos pela revivência de encenações de personagens e suas sensações e experiências.
Plágio, literatura, ficção, enfim.
Além do recurso intertextual, há reflexões da ordem do teórico postas de forma mais
explícita, sempre em função de desenvolver o tema sobre o qual a obra se debruça, a própria
literatura, o que é ou não é literatura, como se dá o fazer literário, metanarrativa, portanto, o
que pode ser exemplificado em:
Aqui seleciono e classifico meus momentos. Aqui elejo o que quero contar e
registrar, separando-o do que não desejo contar, do que não posso contar ou do que
não rememoro para poder contar. Aqui escolho os momentos que quero mudar,
embelezar, comparar, idealizar. Escolho a literatura e a ficção. Cânone. Acredito que
no campo da memória atua a seleção dos momentos do passado e não o seu total
arquivamento. Seleciono alguns momentos do meu passado e os classifico, por mais
absurda que seja qualquer forma de classificação (FUX, 2012, p. 73).
consegue verificar essa determinação de campos. Inclusive porque, logo a seguir, o narrador
se recusa a qualquer classificação. Argumenta sobre isso usufruindo da classificação de um
ornitorrinco, reflexão tirada de outra busca no arquivo de leituras do narrador. Umberto Eco,
em seu texto “Chamem-no Platypus ou Ornitorrinco, o fato é que ele é muito popular”e
também em sua obra Kant e o ornitorrinco, publicada pelo autor em 1997 e editada em
português pela Editora Record (Rio de Janeiro), em 1998, trata dos estranhamentos que há no
animal e tece reflexões de variada ordem de forma a fazer analogias com outros pensamentos.
Nessa trilha, vêm as apreciações do nosso narrador quanto ao que é literatura. Ele retoma
Perec e Kuhn, o primeiro, em seu cadastro aleatório de eventos durante certo tempo em uma
praça; o segundo, em sua classificação de animais. Ambos, entre o sui generis e o espanto,
servem para tratar do fenômeno literário, analogamente ao ornitorrinco, todos equiparáveis a
uma “metamorfose ambulante” (FUX, 2012, p.74), opção do narrador de não ser aquela
opinião formada sobre tudo. Inclassificáveis as matérias da literatura — a lembrança, a
memória, o ser, a percepção, a possibilidade, o esquecimento —, inclassificável é a literatura.
É desse composto de reflexões metapoéticas que se faz a narrativa, de maneira que
tanto a dose de referências quanto as observações e as ponderações são elementos com os
quais o narrador tece uma obra literária de teor ensaístico, que, não abrindo mão da teoria, faz
prevalecero estético, sem, contudo, adentrar a um aspecto da literatura, a uma categoria
especificamente. Tudo é dito em dispersão, forma compatível a uma obra feita sob uma
abóbada livresca, para a qual o narrador olha, embasbacado. Ilustram essa composição alguns
trechos a seguir.
Neste, estabelece-se a relação entre a literatura e o imaginado e o sonhado, em
oposição à verdade, o factual:
E foram tantos desencontros. Acho que todas as minhas cartas eram cartas de amor.
Mas todas as que recebi, não o eram. Meu amor era tanto que imaginava ser capaz
de amar todas. Profundamente. Elas, um pouco mais maduras ou maliciosas,
declaravam amizade. E aquilo me bastava. Bastava-me o romance imaginado. A
literatura (FUX, 2012, p.77).
Esta foto que me aparece na mente me faz lembrar da primeira vez. Da minha
primeira vez. Já tinha possuído milhares de mulheres em sonho. Na ficção. Nunca de
verdade. E a verdade, qual seria? O encontro carnal. O sexo. [...] Nela doeu no
corpo. Em mim doeu na alma. [...] Não havia amor. O amor é compartilhar. Não
sabíamos compartilhar, trocar, curtir. Cada um sofria o confronto entre a ficção e a
realidade. Entre o sonho e o fato (FUX, 2012, p.82).
Já no próximo trecho, comenta-se a relação entre autor e narrador, deixando claro que
as duas categorias atuam como apenas uma, embora a primeira seja aquela que
251
O povo escolhido é o escolhido por terem sido eles mesmos — nós — que
escreveram o livro sagrado. Raciocínio lógico. Simples. Direto. Aqui também eu sou
o escolhido pelo autor (apesar de alguns problemas acerca da posição do autor na
literatura,não deixo de ser eu o autor dessa obra). De uma forma ou de outra, eu seria
o autor(FUX, 2012, p.87).
Esta passagem também serve de exemplo, pois, nela, as reflexões teóricas passam
também pela discussão das funções da literatura, distintas daquelas a que uma autoajuda se
propõe, cujas estratégias nunca poderiam ser compreendidas como literatura, tão rasteiro seria
o embuste:
Nossos estudos sobre vozes discursivas no que tange à obra Procura do romance, de
Julián Fuks, se deram a partir da primeira frase, na qual se encerra toda a trama: “Trajiste la
llave?” (FUKS, 2011, p. 7). Segundo vimos, a pergunta manifesta uma trivialidade, traduz
uma inquietude, é uma indagação que acena para uma questão da ordem da literatura. Naquele
primeiro momento, então, fizemos reflexões sobre o texto já sob o prisma da metaficção, pois,
novamente retomando Gustavo Bernardo, a obra ilustra “um fenômeno estético autorreferente
através do qual a ficção duplica-se por dentro, falando de si mesma ou contendo a si mesma”
(BERNARDO, 2010, p.9), conforme se viu no fértil diálogo entre as vozes discursivas que
nela se apresentam, narrador, personagem-escritor. Nele, a metaficção aparece como uma
necessidade, uma demanda, uma procura — a procura da forma romanesca, feita
metaforicamente por meio de um personagem-escritor que sente a responsabilidade de se
situar em um mundo em que se questiona o fazer poético, a ausência de renovação estética, a
morte do autor. Fuks ampara a danação do momento, construindo um personagem em
desamparo, tateante, em busca de respostas.
A obra é uma metáfora do tatear, do não saber, uma exibição do rastreamento em
busca do romance dentro de um próprio romance. Esse trilhar se manifesta, entre outros
aspectos, em gestos de adiamento, como se o personagem ficasse andando em círculos,
perdido no seu percurso. Entretanto, concomitantemente, a narração caminha, num processo
que desafia os próprios passos não dados, promovendo a andadura que o narrador tem
dificuldade de cumprir, como se houvesse uma incoerência entre aquilo a que se propõe o
narrador e aquilo que consegue fazer o personagem-escritor. Trata-se de um desvelamento
desse processo encenado por esse mesmo processo, uma metanarrativa, portanto.
Obcecado, o personagem-escritor vive todas as situações, tem todos os pensamentos
voltados para o fazer poético, como se vê pelas estratégias apresentadas, como: a) no
tratamento das categorias, b) na presença da intertextualidade, c) no diálogo com a realidade,
cuja amostragem revela que o meditado é o vivido e o materializado nas palavras.
A exemplo, no que se refere ao enredo, podemos considerar trechos dos dois capítulos
iniciais: o primeiro, a trama em desenvolvimento, a narrativa engendrando-se; o segundo, a
narração, o processo de construção do primeiro capítulo. O produto, então, vem atrelado à
253
produção, de maneira que a metanarrativa vai sendo exposta, condição de existência da obra,
que, dessa forma espelhada, entre outras, constitui-se.
Assim, enquanto, no segundo capítulo, ocorre a reflexão sobre a forma mais adequada
de dar início à narrativa —
Sim, as palavras trajiste la llave lhe parecem significativas o bastante para serem as
primeiras de sua história, sobretudo pela curiosa referência a Drummond, adaptada
com justiça ao espanhol e sem dúvida isenta de qualquer intenção da pessoa que a
operou. Pergunta-se, todavia, se tal remissão não viria a ser óbvia demais para o
leitor erudito, que de partida teria à sua disposição um argumento inconsistente
sobre a pobreza criativa do autor, ou mesmo sobre a escassez de seu repertório de
leituras(FUKS, 2011, p.17-18).
Quando volta a apertar o botão do quinto andar, a indecisão o toma por completo e
lhe exige um grande esforço na busca por soluções, que ele empreende com os olhos
fechados e a mão esquerda cobrindo a testa numa posição um tanto artificial, que o
impossibilita de assistir ao espetáculo geométrico do elevador e de rememorar toda a
reflexão (FUKS, 2011, p. 17-18).
— no primeiro, ocorre a encenação dessa falta de destreza, sendo, portanto, ele mesmo aquele
que reflete e constrói e aquele que é construído, um duplo de si mesmo — é personagem que é
um escritor que reflete, titubeantemente, sobre a construção de um enredo, em processo de
254
Tendo estabelecido entre eles uma barreira dupla de metal, que só não se assemelha
à de uma prisão por se constituir de ferros entrelaçados, e não paralelos, ele por fim
pode responder: mas não responde. Limita-se a mover a cabeça de cima a baixo uma
única vez e, sem entender a própria pressa e a habilidade com que põe a máquina a
funcionar, pressiona com força exata o botão do quinto andar(FUKS, 2011, p.7).
que o teórico discute o “Problema da filosofia histórica das formas”, especificamente sobre a
constituição da totalidade que seria ou não possível em uma obra literária:
Tendo em si uma memória livresca que ele teme ter sido desencadeada pela imagem
do casulo, o personagem-escritor preocupa-se com a cópia, o plágio, pois “sente que palavras
lhe surgem já empacotadas, com uma cadência predefinida e o conjunto pronto demais para
que nelas possa confiar”. Ou seja, ele não reconhece, nas palavras de Lukács, as suas. Por
isso, “sabe bem: o melhor a fazer é tratar de olvidá-las, sem qualquer remorso, e deixar que,
se verdadeiras, ressurjam em contexto diverso, explícitas em sua procedência” (FUKS, 2011,
p.34). O curioso é que temos em mãos exatamente o contrário, ou seja, as palavras não foram
olvidadas e estão sendo, sem qualquer remorso, realocadas em contexto diverso, sem que
esteja explícita sua procedência, o que já vem justificado:
Mas da boa imagem sem dúvida pode se valer, pois, dada sua carência de variações
em um mundo tomado pela mercadológica mania da reprodução, não há mal
nenhum na intenção e no efeito de se aproveitar do que outros narraram, com tão
diferentes termos e tons(FUKS, 2011, p.34).
[...] mas não se trata disso; o caso é que há tempos sua história tem se desenvolvido
na mente e já quase passa da hora de começar a averiguar a possibilidade de um
segundo personagem, para desentranhar uma série de reflexões e situações que só
poderiam decorrer do contraste e até para livrar os leitores do calculável estado de
prostração de que poderiam ser acometidos. Talvez fosse tempo, considerando
também a necessidade de concisão que a nova época lhe exige, de deixar seu
Stephen Dedalus ser sucedido por algum candidato a Leopold Bloom ou então, para
não perder de vista a ideia encerrada no casulo, de, por fim, fazer entreabrir a porta
do quarto de seu Gregor Samsa, para o ingresso desestabilizante de uma irmã
desesperançosa, de pais que sejam mais do que meros espectros travestidos em
lençóis puídos, de um chefe que amealhe em sua face toda a opressão que o trabalho
sempre lhe provou, mesmo estando ele no exórdio de sua vida laboral.
“Rá”, ri alto da própria presunção. Como se atreve, ainda que na imensidão
incontida dos pensamentos, à grandiloquência de comparar seu inominado sujeito,
carente de rosto, de voz, de existência, carente de qualquer palavra escrita, com
personagens tão x, tão y, tão maiores do que qualquer adjetivo que lhes possa
atribuir? (FUKS, 2011, p.35).
Vai dar com ela, certificando sua realidade, quando a pequena cabeça morena ainda
se pressiona, olhos e nariz escondidos contra uma barriga saliente que tenta se
disfarçar em listras verticais de camisa escura, encimada por um rosto igualmente
gordo que se faz mais redondo à medida que o queixo se aproxima do peito. A
papada semicircunferente que então oculta o pomo de adão vai aos poucos se
desfazendo — como uma lua minguante em suas últimas noites — e Sebastián vai se
tornando capaz de reconhecer um e outro traço no rosto alheio, algo no nariz e nas
sobrancelhas, esforçando-se para ignorar seu tom grisalho e os talhos que socavam a
pele e o baixo dos olhos, assimetrias e simetrias em relação à papada desaparecida
(FUKS, 2011, p.36, grifo nosso).
257
Não, Sebastián está cansado de repetir seus vícios. A cada vez que despeja sobre o
outro sua pesada carga de juízos, a cada vez que vasculha seu repertório depreciativo
em busca de cismas plausíveis, o que faz é ausentar-se da condição de alvo principal
das críticas, é furtar-se à verdade mais dolorida. Tanto melhor resumir o processo e
questionar-se: será ele próprio um expoente da alienação e do descompromisso? [...]
Bastaria observar a arbitrariedade com que enquadra e domestica seus sentidos para
compreender quão pouco lhe interessa o mundo, a esquina, o outro, se contrastados
consigo mesmo, com seus próprios domínios (FUKS, 2011, p.124-125).
Otros, ellos, antes, podían, parece indicar uma insegurança, uma propensão ao
titubeio. Mas seu rosto logo adquireo fervor que marcara seu prelúdio contundente.
Nos estafaban, nos subyugaban, nos explotaban, nos relegaban al silencio. Esto ya es
pasado, no el presente y no el futuro. No los estafamos y no los estafaremos, no los
subyugaremosm no los explotamos y no los explotaremos, pero tendrán que oír
nuestras protestas, tendrán que escuchar y aguantarse como puedan, porque, esto si,
de ellos será la impotência, de ellos será la confusión, El aturdimiento, la
intermitencia, de ellos será el silencio (FUKS, 2011, p.128).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essa reencenação se deu, por exemplo, pela desacomodação das pessoas ao limite de
sua individualidade, o que as fez sentir a necessidade de se reacomodarem, passarem a “viver
‘de acordo’ (não ficar atrás dos outros), de conformar-se ativamente aos emergentes tipos
sociais de classe e modelos de conduta, de imitar, de seguir o padrão, de aculturar-se, não sair
da linha nem se desviar da norma” (BAUMAN, 2001, p. 49), promovendo a necessidade da
sensação de pertencimento. No seguimento, as classes menos favorecidas foram
impulsionadas a tratar de si coletivamente, sendo essa uma outra reacomodação, agora
oriunda das privações a que os indivíduos estavam sendo submetidos e incapacitados para se
autoafirmar nessa condição, pois estavam cerceados pelos seus próprios e limitados recursos
individuais.
Nos tempos de “modernidade reflexiva” ou “segunda modernidade”, conforme nomeia
Bauman, retomando a conceituação de Ulrick Beck (BAUMAN, 2001, p. 42), não têm sido
fornecidos “lugares” para a reacomodação, “e os lugares que podem ser postulados e
perseguidos mostram-se frágeis e frequentemente desaparecem antes que o trabalho de
‘reacomodação’ seja completado”. Pessimistamente, o filósofo afirma que, “na terra da
liberdade individual de escolher, a opção de escapar à individualização e de se recusar a
participar do jogo da individualização está decididamente fora da jogada” (BAUMAN, 2001,
p. 43).
No percurso dessas reflexões iniciais, chegamos às considerações baumanianas sobre
as relações entre primeira modernidade e segunda modernidade, associadas à metáfora de dois
navios, denominados, conforme vimos, de Capitalismo Pesado e Capitalismo Leve: aquele,
cujos passageiros confiavam no comando da tripulação a alcançar um destino; este, cujos
262
passageiros descobrem que não há piloto nem roteiro de bordo nem regras que permitam a
salvação. No momento, então, não há sociedade, não há conjunto, de tal forma que o
individualismo passa a ser cada vez mais a única tábua em que se pode segurar (exemplar é a
frase de Margaret Thatcher: “Não existe esse negócio de sociedade”). E a isso o filósofo
também acaba por associar a relação entre a esfera pública e a privada, a primeira dominada
pela segunda, a ponto de os problemas privados de pessoas públicas serem mais relevantes
que os problemas públicos das pessoas privadas, de tal forma que se vive avidamente em
busca de receitas de vida oriundas de pessoas públicas, vendo nelas uma forma de realização,
que é objeto de querer do indivíduo que as recebe. O imediatismo dessas receitas são
exemplos de bens promovidos pelo capitalismo, que nutrem o hedonismo, algo que caminha
na via contrária de tudo o que demanda dedicação e, portanto, tempo.
As ideias de Bauman aqui selecionadas, sintetizadas e relacionadas possibilitam
compreender o desconforto das vozes discursivas estudadas. Vimos, em cada uma delas, um
cunho extremamente subjetivo. São voltadas profundamente para si mesmas, portanto, são
seres praticantes desse individualismo, construídas em um tempo em que a vida se organiza
com fins de produção, em torno do consumo, “orientada pela sedução, por desejos voláteis”,
nada sólidos e permanentes, em que “as coisas deliberadamente instáveis são a matéria-prima
das identidades”. Entretanto, as narrativas não se constituem como “meramente ensaios de
retórica pública montados pelos meios públicos de comunicação para “representar verdades
subjetivas’” (BAUMAN, 2001, p. 101). Diferentemente disso, as obras simulam essa
conjuntura e, nessa representação estética, escancaram essa condição contemporânea. Seu
desajuste se engasta na pele desse movimento temporal, entretanto,exibindo ali uma crosta,
palpável, visível, sensível, destoante. Por conseguinte, embora não se caracterizem como
textos de intenção denunciante, com vozes discursivas carregadas de engajamento, são
desconfortantes, revolvem-se nessa condição profundamente subjetivada, porém de forma a
refleti-la como fazem os espelhos de antigos parques de diversão, de tal maneira que aquilo
que deles emerge não se alinha à comodidade que parece estar assegurada pelo imediatismo.
Fazem um movimento contrário ao recorrente: Se o princípio do prazer parece ser o
lenitivo para esses tempos de instabilidade, as obras o mostram sufocante e tornam-se elas o
lenitivo. São produções que parecem ser empurradas pelo movimento histórico, mas que usam
o freio e fazem curvas de deslocamento. Temos, então, vozes discursivas contemporâneas no
sentido proposto por Agamben: mostrando-se instáveis, descentradas — como convém a seu
tempo—, não se harmonizam com ele; incomodadas com essa sua constituição, aproximam-se
dele e dele se distanciam, analogamente ao estilista utilizado como metáfora pelo filósofo
263
italiano: em um lapso de tempo, em um lapso de moda, lança algo que deverá estar na moda,
mas nunca é da moda.
O jogo de aproximação e afastamento é instaurado pela inovadora linguagem do
narrador, um metanarrador por excelência, transmudado em vozes discursivas que: dialogam
metaficcionalmente entre si e com teorias que têm tratado de sua condição, evocando-as e
questionando-as; desprendem-se de um espaço, extrapolando essa desamarração em detalhes
espacializantes; são scriptocêntricos, manifestos em vários sujeitos, por vezes associados—
escritor, leitor, personagem, ghost-writer, outro narrador, uma língua...
A metaficcionalidade é o manto que recobre o desenvolvimento das narrativas,
porque, para a exposição do seu fazer poético, em tempos de liquefação dos sólidos, as obras
esteticizam duas outras ocorrências — vozes discursivas e espacialidade— encenando-as
melindradas e desalojadas. Assim, atreladas à metaficcionalidade, ambas são postas em
discussão de forma a evidenciar a engrenagem das narrativas, fazendo da ficção uma espécie
de teoria da literatura.
Em Divórcio, de Ricardo Lísias (2013), vimos que o narrador se apresenta como um
escritor em fase de intensa instabilidade, desnorteado porque encontra considerações
negativas sobre ele no diário da esposa. Falando exaustivamente sobre si, o metanarrador
relata sua passagem por estágios emocionais. Primeiramente, sente-se dissolver, ficando sem
pele, sem proteção. Aos poucos, recupera-se nas corridas pelas ruas, tão sem identidade
quanto ele. Entre a sua quase morte e o seu revigoramento, discute sobre a morte e o
revigoramento da literatura. Trata-se de uma metaficção. Ele discorre sobre os efeitos do
divórcio sobre si, sobre a dificuldade de reerguer-se, sobre sua recomposição. Enquanto corre
pelas ruas, vai também compondo uma discussão sobre o fazer literário, sobre sua relação
com a realidade, sobre o domínio do autor sobre a construção da obra:
Nas minhas anotações, a segunda semana depois de sair de casa foi tomada por
ruídos caóticos e pelo enorme medo de ter enlouquecido: tive mesmo certeza de
estar vivendo um dos meus textos. Cheguei a me concentrar para mudar o enredo,
refazendo folhas de rascunho, remanejando esquemas e sobretudo mudando as
personagens. No final do capítulo, porém, voltava sempre o Festival de Cannes de
2011, Lars Von Trier dizendo que compreende Hitler, as guerras da libertação da
África e o diário (LÍSIAS, 2013, p.46).
para a São Silvestre, já tinha percebido que na verdade minha ex-mulher é apenas uma versão
malfeita e ansiosa da classe alta brasileira. Ela adora dizer que teve a infância pobre: subi na
vida trabalhando” (LÍSIAS, 2013, p. 54).
Transeunte inquieto de um espaço de anônimos, as ruas, o narrador-escritorvai
cabendo nesse não lugar contemporâneo, indo a ele recorrentemente, topando com estranhos,
presenças meramente físicas, uma neutralidade individualizante, que atende a essa condição
contemporânea e a ilustra:
Penso em gritar: alguém está me vendo? Mas, por algum motivo, apuro os ouvidos.
Tudo continua silencioso, como sempre gostei. Estranho, devo ter raciocinado, é o
pior momento da minha vida e o mundo me oferece o que sempre procurei. Sinto
uma tranquilidade esquisita (LÍSIAS, 2013, p. 27).
Andar, correr, percorrer para criar pele, por causa da raiva, para se acalmar. De mil e
uma utilidades, a rua passa a ser também espaço de escrita:
Eu nunca tinha escrito um texto na rua e com tanta gente perto. Quando fixei meus
treinos em meia hora de corrida e uma de caminhada, já tinha o primeiro rascunho
do conto “Divórcio”. Durante a revisão, em um dos dias em que a Ramona não
apareceu, percebi que estava muito vulnerável. É o assunto do texto (LÍSIAS, 2013,
p. 106).
fora da discussão metaliterária, são propostas sutis de um diálogo com a poética, sob o qual
uma voz discursiva desassossegada circula. O primeiro parágrafo deste trecho, por exemplo,
possibilita que se pense a respeito das relações entre escritor e leitor, do trajeto entre eles. Sua
sequência adentra na discussão, mostrando os desvios da leitura, o poder do leitor, a autoria,
os efeitos de sentido:
às palavras que Franz ouviu de Hermann, quando lhe deu de presente o primeiro exemplar de
Um médico rural, único livro que dedicou ao pai”).
Essas questões retratam ao mesmo tempo a forte sensação de deslocamento do
narrador. Primeiramente, ele, um escritor, vê-se como leitor de um outro em quem deseja se
espelhar. Além disso, uma carta, que não é sua, mas a qual assina, é um gênero de intensa
participação no seu romance, neste que, como vimos anteriormente, o narrador sequer
acreditava. Também o trânsito geográfico desviado da carta (antes A Carta de Kafka, agora a
sua) revela o trânsito emocional em que se encontra o narrador, em desvio. E tudo isso ainda
se harmoniza com outras travessias vividasna relação com o pai, na partitura de uma canção
de ninar e na viagem em busca de um passado, entalhes da ficção na metaficcão que
desnudam o mundo contemporâneo.
Em outro perfil, na dramática A história dos ossos (2005), de Alberto Martins, a
ilustração desconfortável da contemporaneidade se dá, de acordo com os estudos realizados,
por uma intercalação de duas áreas — teatro e literatura — com duas atuações, a do
personagem-irmão e a do narrador-irmão, ambos interligados pela palavra, assumida como
representação por um e como registro verbal por outro. O desconforto do narrador é nítido,
porque o que ele escreve, aliás, transcreve, é o representado e não é de sua autoria. Ao final, a
palavra que lavra não é a sua. Mais uma obra, então, que, apresentando lugares destituídos, o
faz sem aceitação, pois tudo ali soa a estorvo: um irmão louco; um monólogo (des)encaixado
na narrativa; um auditório composto por um cão; um narrador posto em segundo plano, sem
onisciência, mas com febril sensibilidade; uma transcrição simultânea à representação; uma
autoria ambígua; um incêndio que põe término a tudo.
O narrador, uma terceira pessoa, um ser que narra sobre o outro, mostra certa
fragilidade nessa condição, pois descumpre o papel que lhe caberia, o de onisciente, já que
precisa colar a orelha a um corrimão para ouvir o que se dá do outro lado da parede; ao
mesmo tempo e incongruentemente, é capaz de captar cenas, sons e silêncios. Entretanto, isso
não é feito pela onisciência, mas algo além de seu controle, por impulso e febre:
Frágil, essa terceira pessoa age “sem querer”, fica alquebrado ante o esforço feito.
Expõe-se, dessa forma,a condição do narrador, cuja linguagem é um tanto a sua, um tantoa do
irmão; um tanto a da literatura, um tanto a do teatro, em deslizamento de vozes de narrador,
de personagem, de autor, de ator, de dramaturgo. Tematiza-se, então, a tênue delimitação de
categorias e papéis, uma produção perturbada, mais um desalinhamento aos tempos de vazio.
Berkeley em Bellagio (2002), de João Gilberto Noll, afigura-se também nessa vertente
de obras que ilustram a contemporaneidade, reagindo a ela, por meio da construção
metaficcional entranhada à imagem de vozes discursivas em deslocamento.
Vimos que essa voz discursiva se constrói com um perfil desorientado, expondo-se em
um fluxo ininterrupto, posto, como se viu no terceiro capítulo de nossos estudos, em espaços
embaralhados. Mais um metanarrador que cumpre papéis diversos sem cumprir nenhum: é
professor em terra estrangeira, estagnado porque não domina a língua; é escritor que teme
extraviar-se da própria língua “sem ter por consequência o que contar”; é narrador, atuando
em primeira pessoa e também em terceira, olhando para si e olhando para um outro, perdido
nessas figuras de papel. Assim ele se autoproblematiza, mal-engendrado em uma narrativa,
mal-engendrado em atos de narração.
Sem conseguir se valorizar, mostra-se um sem lugar de muitas formas, por exemplo,
sendo alguém que não consegue falar português nem inglês nem algo misturado, portunhol,
sentindo necessidade de que essa mundialização idiomática arrume “um jeito de acabar com
as línguas em troca de uma comunicação imediata, sem intermediação fonética, ou seja, pura
expressão virtual” (NOLL, 2002, p.26), numa clara demonstração de não pertencimento ao
mundo. Considera o ofício de escritor um castigo e assume o exercício motivado por um
déficit linguístico (“Falei que era só por esse déficit linguístico que me tornara escritor —
aliás, não poderia chamar isso de escolha, melhor diria se chamasse o meu ofício de castigo,
que jeito?” (NOLL, 2002, p.27)).
Em meio a essa inconsistência de papéis, há um hedonismo que emerge envolvido
com certo desprezo e impaciência ante os compromissos e situações sociais, o que se elucida
em cenas eróticas. A exemplo, aquela em meio a uma reunião enfastiante, quando “o escritor
brasileiro ouvia calado como sempre, louco para o último gole do café para então subir até o
quarto, adentrar depressa em seu estúdio ao lado e esquecer do mundo em sua escrita que
alguns críticos chamavam de rara” (NOLL. 2002, p. 29), adjetivo que remete de imediato à
figura de um ragazzo
268
[...] para quem ele olha e diz: sim, Deus baixou aqui, é vivo. De imediato tocou na
espádua arcaica do peninsular divino, mesmo que o ragazzo não soubesse, não
importa, era Deus que ele continha no seu peito arfante, não o Deus que não saía das
igrejas, mas o Deus que pulsava atrás da calça apertadado ragazzo, o Deus que se
aplumava e se punha rígido colosso! (NOLL, 2002, p. 29).
Essa dedicação ao prazer sobre todas as outras coisas não se mantém, todavia, de tal
modo que predomina a inconstância, a ponto de ele sempre estar ansiando pelo seu Éden, sua
Porto Alegre, onde está a pessoa amada, alguém de quem fugiu, mas com quem almeja estar.
A obra simula, assim, uma inconsistência de papéis e uma instabilidade espacial
constante, o que a aproxima da contemporaneidade. Entretanto, ambas são feitas de modo a
promover o efeito de algo inconveniente, perturbador, o que distancia essa mesma obra desse
mesmo tempo.
Em mais uma configuração dessa vertente literária que problematiza a escritura sob
novas condições estéticas, temos A vendedora de fósforos, de Adriana Lunardi(2011), vista
por nós em algumas de suas peculiaridades.
O enredo, simples, se desenvolve por meio de um jogo complexo de vozes que se
misturam, embaralham-se de forma que não é possível discernir muitas vezes quem é quem
num duo de vozes reflexas, que deixam à mostra a proposta nessa construção de vozes
discursivas encarregadas de trazer até o leitor o enredo. Ao confundir os papéis, ao impedir
que se configure com clareza quem narra, quem é personagem, quem protagoniza a trama, a
categoria narrador é posta como objeto de leitura, num convite a seu desvendamento. Isso
posto, não se lê a relação entre duas irmãs pertencentes a uma família em que a loucura é um
registro. Lê-se a relação entre vozes posicionadas na narração, num jogo de gato e rato, em
que o leitor deve se prender a detalhes de cenário, pormenores nos discursos, minúcias de
lembranças. Há tanto em comum entre as personagens-narradoras — a loucura, o gosto pela
literatura, a potencialidade para a escrita literária, o parceiro — que fica difícil discerni-las. O
grau máximo desse irmanamento discursivo está na qualidade estética presente em trechos
que, não parecendo serem comuns às duas, têm em comum a qualidade dos arranjos estéticos,
tirando o leitor da ilusão de existir unicidade de voz narrativa, nunca uma primeira, nunca
uma terceira pessoa:
Tomei um último gole e pensei que tinha algo de lavoura em um livro. As palavras a
formar linhas, as linhas a cumprir o mesmo espaçamento entre as plantas, as páginas
a formar uma grande paisagem que o leitor atravessa, sozinho. De vez em quando,
alguma coisa cintila (LUNARDI, 2011, p. 83).
continuava no lugar, desencorajada a achar um nome para o que me fora levado tão
cedo. Desencorajada a enfrentar esse mistério tão infantil, tão pequeno.
Desencorajada a voltar para o dia lá fora (LUNARDI, 2011, p. 172).
Assim a obra de Lunardi faz, então,a colagem de um enredo que conta uma viagem ao
encontro de uma irmã suicida, a uma reflexão sobre o fazer poético. O tom da narrativa,
entretanto, é o do desencontro, um deserto de afetos com alguns oásis, tomado de competições
entre as irmãs, inclusive no que se refere à literatura.
A (des)conjugação dessas vozes em busca de estabilidade ilustra a mesma postura de
aderência e rechaço proposta por Agamben, segundo o qual a contemporaneidade é “uma
singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma
distâncias, mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma
dissociação e um anacronismo” (AGAMBEN, 2010, p.59). Prova disso é a desconfiguração
da estabilidade da voz narrativa posta em uma falsa aderência entre as personagens. Assim, há
certa renúncia à sensação de instabilidade contemporânea A ilusão de haver duas vozes
discursivas, a ilusão de haver uma voz. Tudo lido em desconforto.
A mesma sensação se desenvolve de forma vigorosa em A passagem tensa dos corpus,
de Carlos Brito e Mello(2009), na qual a metaficção também convida a decifrar uma voz
discursiva de formato esdrúxulo — uma língua que nega sua condição de narrador. Ajustada a
um enredo fantástico, tomada de suspense, desenvolve-se uma outra ficção, uma linguagem
sobre a linguagem literária. Não estão em questão, consoante nossa investigação, apenas as
peripécias de enredo, mas as peripécias pertinentes à produção de personagens, narrador,
espaço, gêneros.
A errância que acomete o narrador quando à procura de um morto para registrar
descortina a sua errância como voz discursiva sem lugar, acossada em uma condição que
rejeita. Sua andança em círculos, girando sobre si mesmo, esse quase nada duplica a narrativa,
colocando-se como um enigma em pauta na poética, a discussão em torno do autor, do
narrador, das suas especificidades.
Gustavo Bernardo afirma que,
[...] confrontado com as ameaças de fora (do mundo) e de dentro (de si mesmo), o
ser humano reage fabulando: atribui sentido ao que se lhe apresenta sem sentido.
Essa reação fabuladora é que constrói a civilização e as suas instituições. A ficção é
menos uma diversão do que um escudo contra as ameaças externas e internas,
obrigando-nos a narrar uma luta interminável: o drama que nos constitui
(BERNARDO, 2010, p. 20).
270
Ora, menos uma obra de entretenimento pelo suspense, A passagem tensa dos corpus
deixa em suspensão a condição do narrador, essa figura estética de circulação social à deriva,
num momento histórico em que a literatura, sua formulação, é posta em xeque. Trata-se da
literatura representando, de forma frenética, a busca de identidade, sua e do ser humano—
ficção espelhando referencialidade, conforme este trecho:
A crença no projeto único e pessoal, algo tão contemporâneo, é vista como algo inútil,
de tal forma que a obra se instaura como uma reação a essa condição que nos avassala. É
assim que a obra nos propõe uma literatura com a outra (in)utilidade, a de contar pássaros do
céu, uma ação de alma, que se situa acima dos acontecimentos visíveis, prenhe de vida e que
preenche de vida os seres faltosos.
Essa sensação faltosa também se faz presente na obra Procura do romance, de Julián
Fuks(2011), também em uma tessitura que se engendra em metaficção. Encena-se uma voz
narrativa que se arvora da função de escritor, tendo em vista que este, perdido, não consegue
assumir seu papel, vagueante por ruas de Buenos Aires e por questões intimistas, numa
procura de si atrelada à do romance. Prolonga, nessas andanças, reflexões sobre o fazer
poético, promovendo uma letargia que enerva o narrador e empata o encadeamento de ações
que constituiriam um romance. No entanto, é mesmo embargo que será a composição do
enredo.
As posições do narrador e do personagem-escritor são ambas desconfortadas, os dois
estão insatisfeitos em seus lugares, o primeiro tomando para si, por vezes, de forma irritada,
as atitudes pertinentes à função do segundo, este impotente, um tanto desanimado dessa sua
condição. Essa dose de permuta encena o questionamento sobre a legitimação da autoria,
propõe uma revisão do papel do escritor — se engajado, se alienado; se dominante no
271
A capa furta-cor, eu não entendia a cor daquela capa, o título Budapeste, eu não
entendia o nome Zsoze Kósta ali impresso, eu não tinha escrito aquele livro. Eu não
sabia o que estava acontecendo, aquela gente à minha volta, eu não tinha nada a ver
com aquilo. Eu queria devolver o livro, mas não sabia a quem, eu o recebera de
Lantos, Lorant & Budai e fiquei cego (BUARQUE, 2003,p. 167).
Figura 3
religião... Encena-se, dessa forma, um narrador-escritor que se constitui assimpor sua avidez
como leitor, com um arquivo cultural louvável, mas também alguém pouco confortável na sua
condição própria de escritor, correndo o risco de se perder de si para funcionar como um
ventríloquo, como se houvesse um leitor maduro, mas um escritor ainda grudado às saias de
outras vozes. Esse excesso provoca interrogações: existe o escritor? De que se forma um
escritor? Qual é o papel da intertextualidade na estética literária? O que separa o plágio do
inédito? Qual é a matéria do romance? Há o gênero romance?
Essas inquietações percorrem a obra, tornando-a um quase romance, um quase ensaio:
Assim que a obra acaba, acaba-se com ela um autor. Esse autor que a escreveu. Que
nela colocou sua emoção. Que sofreu e sorriu. Criou mistérios, encantos, problemas
e soluções. O autor budista. Entregue à escrita e à elaboração de algo belo. Artístico.
E que, ao chegar ao fim, libertou-se de seu trabalho. O livro passa a existir em outra
dimensão. Outro plano, outro autor, outro leitor(FUX, 2012, p. 158, grifo do autor).
[...] se Auschwitz é a tragédia que concentra em sua natureza todas essas outras
tragédias também — não deixa de ser uma espécie de prova da inviabilidade da
experiência humana em todos os tempos e lugares — diante da qual não há o que
274
fazer, o que pensar, nenhum desvio possível do caminho que meu avô seguiu
naqueles anos, o mesmo período em que meu pai nasceu e cresceu e jamais poderia
ter mudado essa certeza (LAUB, 2011, p.134).
[...] e se pela última vez estou dizendo o que penso a respeito [da tortura nazista e
seus efeitos] é para que no futuro você leia e chegue às suas próprias conclusões.
275
[...] e que há [...]o som da minha voz, as palavras que direi e que ainda são
incompreensíveis, mas você olha para mim e sabe intuitivamente o que está por trás
de cada uma delas, o que significa a pessoa na sua frente, meu avô diante do meu
pai, meu pai diante de mim, eu agora e a sensação que acompanhará você enquanto
os anos passam[...](LAUB, 2011, p.151).
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