Vera Lopes Da Silva_Tese

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Instituto de Letras

Vera Lopes da Silva

O escritor como objeto de si:


uma vertente na literatura contemporânea

Rio de Janeiro
2017
Vera Lopes da Silva

O escritor como objeto de si:


uma vertente na literatura contemporânea

Tese apresentada como requisito parcial à


obtenção do título de Doutor, ao Programa de
Pós-Graduação em Literatura, da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Área de
concentração: Literatura Comparada.

Orientador: Prof. Dr. Flávio Carneiro

Rio de Janeiro
2017
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/B

S586 Silva, Vera Lopes da.


O escritor como objeto de si : uma vertente na literatura contemporanêa
/ Vera Lopes da Silva. – 2017.
285 f.

Orientador: Flávio Carneiro.


Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de
Letras.

1. Escritores brasileiros - Teses. 2. Espaço e tempo na literatura – Teses.


3. Metaficção – Teses. 4. Literatura moderna – Séc. XXI - Teses. I. Carneiro,
Flávio Martins, 1962-. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto
de Letras. III. Título.

CDU 869.0(81)-051

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese,
desde que citada a fonte.

__________________________________ ____________________
Assinatura Data
Vera Lopes da Silva

O escritor como objeto de si:


uma vertente na literatura contemporânea

Tese apresentada como requisito parcial à


obtenção do título de Doutor, ao Programa de
Pós-Graduação em Literatura, da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Área de
concentração: Literatura Comparada.

Aprovada em 30 de março de 2017.


Orientador:
Prof. Dr. Flávio Carneiro
Instituto de Letras - UERJ

Banca examinadora:
______________________________________
Prof.ª Dra. Ana Cláudia Coutinho Viegas
Instituto de Letras – UERJ

______________________________________
Prof.ª Dra. Fátima Cristina Dias da Rocha
Instituto de Letras – UERJ

_______________________________________
Prof.ª Dra. Ivete Lara Camargos Walty
Pontifícia Universidade Católica de Mina Gerais

_____________________________________
Prof. Dr. Wilberth Claython Ferreira Salgueiro
Universidade Federal do Espírito Santo

Rio de Janeiro
2017
DEDICATÓRIA

Para Pedro, meu filho e também meu companheiro de biblioteca.


Para Samantha, minha filha e também minha companheira de ser mulher.
AGRADECIMENTOS

A meus pais, sempre.


A Daniel, pela vida cum panis.
À Valdi, uma amiga de palavra.
Às minhas professoras Dona Maura, Vera Arsi, Ivete Walty, Suely Maria de Paula e
Silva Lobo e ao meu professor Luís Alberto Brandão: cada um deles, a seu tempo e a seu
modo, fez crescer em mim o amor pela literatura.
Ao Prof. Dr. Flávio Carneiro, pelo acolhimento como orientanda, sem nunca, sequer,
ter-me visto, e pela confiança no meu trabalho, norteando-o e enriquecendo-o.
À Prof. Leyla Perrone-Moisés, guia de muitas e muitas leituras.
À UERJ, uma universidade que assume seu papel de universidade pública.
Anne-Marie fez-me sentar à sua frente, em minha cadeirinha; inclinou-se, baixou as pálpebras
e adormeceu. Daquele rosto de estátua saiu uma voz de gesso. Perdi a cabeça: quem estava
contando? o quê? e a quem? Minha mãe ausentara-se: nenhum sorriso, nenhum sinal de
conivência, eu estava no exílio. Além disso não reconhecia sua linguagem. Onde é que
arranjava aquela segurança? Ao cabo de um instante, compreendi: era o livro que falava.
Jean-Paul Sartre
RESUMO

SILVA, Vera Lopes da. O escritor como objeto de si:uma vertente na literatura
contemporânea. 2017. 285 f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) - Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

Esta tese de doutorado apresenta um estudo das vozes discursivas presentes em 10


obras literárias brasileiras contemporâneas que manifestam certa desconfiança quanto ao
próprio trabalho de escritor de literatura, desconfiança evidenciada por meio de um recurso
estético relativo ao elemento composicional da narrativa: o espaço. Inquietas, as vozes
discursivas, que se encarnam, de alguma forma, no narrador, não se fixam, sempre em
deslocamentos físicos ou mentais, como se fossem impulsionadas para o entendimento de si.
Sendo assim, pela impermanência em que se colocam, é revelado um embaraço, um dilema,
um mal-estar quanto à sua existência, problema que se apresenta sob certa aura de fascínio,
cuja resolução se dá na e pela construção da escrita, revelando o tempo em que se inscrevem.
Como têm em seu bojo esses atributos comuns, embora cada uma delas com sua marca
autoral, duplo movimento instigante à pesquisa e passível de estudos comparativos, essas
obras são tomadas como componentes de uma vertente reveladora dessa contemporaneidade.
São elas A história dos ossos, de Alberto Martins; A passagem tensa dos corpos, de Carlos de
Brito e Mello; A vendedora de fósforos, de Adriana Lunardi; Antiterapias, de Jacques Fux;
Berkeley em Bellagio, de João Gilberto Noll; Budapeste,de Chico Buarque; Diário da
queda,de Michel Laub;Divórcio, de Ricardo Lísias;; Procura do romance, de Julián Fuks;
Ribamar, de José Castello.

Palavras-chave: Vozes discursivas. Narrador. Escritor. Espacialidade. Ficção contemporânea.


Metaficção.
ABSTRACT

SILVA, Vera Lopes da. The writer as an object of himself: a strand in contemporary
literature.2017. 285 f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) - Universidade do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

This work presents a study of the discursive voices present in 10


contemporaryBrazilian literary works that manifest a certain distrust regarding the work of
theliterature writer. Such distrust is evidenced by means of an aesthetic resource relative tothe
compositional element of the narrative: space. Restless, the discursive voices that insome way
embody the narrator do not settle down. They are always in physical ormental dislocations, as
if driven towards their own understanding. Thus, due to theirimpermanence, an
embarrassment, a dilemma, a malaise regarding their existence isrevealed, a problem that
presents itself with a certain aura of fascination, and whoseresolution occurs in and through
the construction of writing,revealing the time in whichthey are inscribed.As they have these
common attributes in their core, although each of them with its ownauthorial mark, that is, a
double movement instigating to the research and capable ofcomparative studies, these works
are taken as components of a revealing aspect of thiscontemporaneity. Namely: A história dos
ossos, by Alberto Martins; A passagemtensa dos corpos, by Carlos de Brito e Mello; A
vendedora de fósforos, by Adriana Lunardi; Antiterapias,by Jacques Fux; Berkeley em
Bellagio, by João Gilberto Noll; Budapeste, by ChicoBuarque; Diário da queda, by Michel
Laub; Divórcio, by Ricardo Lísias; Procura do romance, by Julián Fuks; Ribamar, by José
Castello.

Keywords: Discursive voices. Narrator. Literature writer. Spaciality. Contemporaneity fiction.


Metafiction.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO......................................................................................... 10

1 O NARRADOR TITUBEANTE: UMA VOZ SEMPRE PRESENTE. 15

2 VOZES DISCURSIVAS E CONTEMPORANEIDADE...................... 28

2.1 Considerações sobre vozes discursivas.................................................... 29

2.2 Considerações sobre um tempo.............................................................. 39

2.3 A construção tensa do narrador.............................................................. 51

2.4 “¿Trajiste la llave?”.................................................................................. 62

2.5 O avesso do avesso do avesso................................................................... 77

2.6 Diz-me se lês e te direi se és...................................................................... 89

2.7 Escrita e salvação...................................................................................... 98

2.8 Um corpus de vozes estranhas, exóticas vozes........................................ 107

3 ERRÂNCIA, UM ESTADO..................................................................... 113

3.1 Considerações sobre espaço..................................................................... 115

3.2 Por onde se vendem fósforos.................................................................... 119

3.3 “à cidade de Porto Alegre”....................................................................... 131

3.4 Dois em trânsito e solidão......................................................................... 145

3.5 Em travessia.............................................................................................. 150

3.6 Uma maratona........................................................................................... 161

3.7 Um corpus que encena o desassossego..................................................... 171

4 TECENDO POR CIMA DOS PANOS................................................... 174

4.1 Considerações sobre metaficção.............................................................. 174

4.2 Escrever, um labirinto.............................................................................. 177

4.3 Um livro a ser escrito................................................................................ 185


4.4 A apresentação de um sem saber............................................................. 192

4.5 Gostando de ser e de estar........................................................................ 198

4.6 Narrar (in)significâncias......................................................................... 205

4.7 Um monólogo ensaiado............................................................................. 216

4.8 O eu, um outro........................................................................................... 223

4.9 Um mosaico de referências....................................................................... 233

4.10 Minha voz, muitas vozes........................................................................... 244

4.11 Perseguindo a poética............................................................................... 251

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................... 260

REFERÊNCIAS........................................................................................ 277
10

INTRODUÇÃO

Meu interesse pela caracterização das vozes discursivas pertence a um tempo bem
anterior ao que tem se manifestado durante minha vida acadêmica. Minhas impressões partem
de lembranças da infância: noites sem luz elétrica, meu pai contando casos recheados de
suspense, drama e humor. A exemplo, a cena em que fora expulso de casa, aos 12 anos,
levando apenas um embrulhozinho feito de jornal; dentro, uma única muda de roupa, carinho
angustiado da irmã mais velha.Outra, contada com fins educativos, sobre seus dias de fome,
quando,já estando nas ruas de Santos, no litoral paulista, roubava pratos de comida postos nas
janelas das casas para esfriar, um hábito de então. Narrava mais uma, agora de sua juventude,
circunstância em que conseguiu uma máquina para falsificar dinheiro (atividade narrada com
requintes), por meio do que fez grandes negócios. Ou, já adulto, quando armou uma cilada
para minha mãe: desmanchou um namoro de nove meses, alegando ser muito jovem para ter
compromissos (ele então tinha 31 anos); fez isso na expectativa de deixá-la triste e promover
grande surpresa com o envio, no dia seguinte, de um ramalhete de violetas com duas alianças.
E, ainda, famoso piadista, criando vozes femininas, infantis, idosas, representava não só os
personagens, mas os narradores; a encenação incrementava o humor. Já idoso, contou-me
sobre o tempo que passa. Apontando para o céu, encerrou a narrativa: “aquele que está lá em
cima está lendo um livro de Saramago e nem liga pra gente”. Pura autoficção: ele era ateu!
Vendo e ouvindo aquele homem sóbrio e honesto, um rígido pai-educador como convinha à
época, um leitor primoroso, eu ficava sempre em dúvidasobre a verdade daquelas
narrativas,das quais sobrevinham os efeitos providos pela sua estética: choro, encantamento,
risos, sempre sedução, sem saber com a clareza de hoje quetudo era oriundo das vozes que ali
se manifestavam.
Essas primeiras impressões de leitora perscrutando narradores foram sendo tomadas
pelos estudos teóricos. No decorrer dos tempos de graduação, as obras lidas sempre
impressionavam por esse aspecto, como Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell, cujos
narradores transmudam a si e a seus enredos, trocando fatos por meio de vozes alternantes e
cruzantes.No decorrer do período de mestrado, tomei como objeto de estudo a obra História
do Cerco de Lisboa, de José Saramago, porque ali me deparei com um narrador intrigante, um
“narrador em esfinge”, nomeação motivada pelo fato de que a obra oferta ao leitor um
narrador para deciframento. O desejo de estudar esse ser incógnito foi, de certa forma,
satisfeito naquela instância acadêmica, mas o interesse foi-se intensificando ante o acesso a
11

várias obras de autores contemporâneos, nas quais se podem detectar vozes narrativas com
perfil inovador, singular.
Sendo assim, a escolha do corpus desta investigação é resultado de leituras, a princípio
sem o interesse acadêmico, apenas pela percepção de que,em muitas obrascontemporâneas, há
construções de narradores feitas de forma inédita, carregadas de estranhamento, o que ia
incrementando meu gosto pelos estudos sobre esse ser de papel, que me parecia tomado de
múltiplos perfis. Essas primeiras impressões encontraram estímulo na leitura de um artigo de
Leyla Perrone-Moisés (2012), “A literatura exigente”, publicado no jornal Folha de S.Paulo,
no caderno “Ilustríssima”, no qual a professora lista e comenta obras contemporâneas que
trazem peculiaridades em correspondência com o que já se anunciava para mim.
A tese que me propus a desenvolver, então,é a de que há um segmento da literatura
contemporânea brasileira que manifesta certa desconfiança quanto ao próprio trabalho de
escritor de literatura, desconfiança evidenciada por meio de um recurso estético relativo ao
elemento composicional da narrativa: o espaço. Inquietas, as vozes discursivas que se
encarnam no narrador não se fixam, sempre em deslocamentos físicos ou mentais, como se
fossem impulsionados para o entendimento de si. Por isso, pela impermanência em que se
colocam, é revelado um embaraço, um dilema, um mal-estar quanto à sua existência,
problema que se apresenta sob certa aura de fascínio, cuja resolução talvez se dê na e pela
construção da escrita, revelando o tempo que se inscrevem.
Como têm em seu bojo esses atributos comuns, embora cada uma delas com sua marca
autoral, duplo movimento atrativo à pesquisa e passível de estudos comparativos, essas obras
são tomadas como componentes de uma vertente reveladora dessa contemporaneidade. São
elas A história dos ossos, de Alberto Martins; A passagem tensa dos corpos, de Carlos de
Brito e Mello; A vendedora de fósforos, de Adriana Lunardi; Antiterapias, de Jacques Fux;
Berkeley em Bellagio, de João Gilberto Noll; Budapeste, de Chico Buarque; Diário da queda,
de Michel Laub; Divórcio, de Ricardo Lísias; Procura do romance, de Julián Fuks; Ribamar,
de José Castello.
A investigação incide em alguns de seus traços distintivos que ilustram a
contemporaneidade, especialmente: a) a presença de vozes discursivas ligadas de alguma
forma ao fazer literário — escritor, ghost-writer, narrador; b) a desconfiança desses sujeitos
quanto a si mesmos, relativamente a essa ligação com o próprio fazer literário; c) o
deslocamento, físico ou mental, desses seres discursivos, como aventura (in)voluntária para o
deciframento de si; d) a metalinguagem intricada ao discurso dessas vozes, como linguagem-
objeto.
12

Em procedimentos são singulares e há, em todas essas narrativas, discursos que


cooperam para uma cessão escorregadia de lugares. Nossas observações revelam um
entabulamento entre vozes que não permitiria a concentração discursiva em uma delas, quer
na de um narrador, quer na de uma personagem, por exemplo. Apesar disso, ocorre a
elucidação interativa de uma função social, a de escritor (ou algo que a ele se assemelhe,
como veremos em uma ou outra obra), embora sempre desconfiando dessa sua função.
Trata-se de um terreno movediço esse em que se elucida a construção das vozes
discursivas, concentradas no ato de escrever, de inscrever a si mesmas, como produtoras de
escrita, primeiro tema que nos parece pertencer a uma vertente cujo intuito é o de encontrar
modos de dizer apropriados ao século XXI.
Todas elas são ensimesmadas, e parecem, a princípio, desengajadas; também refletem
sobre sua condição de escritores, centralizadas em uma autoprocura nessa/dessa função social.
Como se encontram nesse processo de procura identitária, desconfiam de si mesmas, colocam
em xeque sua função e a verdade de sua escritura. A aporia em que se encontram faz delas
seres desconcertantes: manifestam-se instáveis, ambíguos, deslizantes. Nesse percurso, as
obras se materializam como o próprio objeto de reflexão das vozes que nelas próprias se
manifestam.
Tendo em vista essa proposta e na tentativa de levá-la a bom termo,nosso estudo toma
como base a palavra de filósofos que discutem a contemporaneidade e a palavra de teóricos
que discutem narrador, espacialidade e metaficção,cujos nomes e ideias serão explicitados no
início de cada capítulo. Outros estudiosos são incorporados às considerações, à medida que
elas vão se desenvolvendo.
Uma reflexão antecipa e fomenta a construção dos capítulos que se aprofundam nos
estudos de obras atuais. Trata-se de certo mapeamento da presença, em obras consideradas
clássicas na nossa literatura, das características que são objeto desta investigação, para, assim,
serem já anunciadas as singularidades presentes nas contemporâneas. Ao primeiro capítulo,
denominamos “O narrador titubeante: uma voz sempre presente”.
Os dois capítulos seguintes— “Vozes discursivas e contemporaneidade” e “Errância,
um estado” — se debruçam mais verticalmente sobre um grupo de cinco entre as dez obras
pertencentes ao corpus. Esse segundo segmento discorre sobre o deslocamento entre as vozes
discursivas em suas funções e exercícios e sensações. Piglia (2001), para elucidar o papel
desse tipo de deslocamento, referindo-se ao escritor Robert Walsh, afirma:
13

Walsh faz ver de que maneira podemos mostrar o que parece quase impossível de
dizer. Poderemos dizê-lo se encontrarmos outra voz, outra enunciação que ajude a
narrar. São sujeitos anônimos que aparecem para assinalar e fazer ver. A verdade
tem a estrutura de uma ficção em que outro fala. Fazer na linguagem um lugar para
que o outro possa falar. A literatura seria o lugar em que é sempre outro quem vem
dizer. “Eu sou outro”, como dizia Rimbaud. Sempre há outro aí. Esse outro é o que
se deve saber ouvir para que aquilo que se conta não seja mera informação, mas
tenha a forma da experiência (PIGLIA, 2001).

Sendo assim, esse elemento deslizante se desloca em atribuições com, inclusive,


outros perfis, como as leituras feitas para o capítulo comprovam. Nesse deslizamento, as
vozes corroboram para sua existência. Por exemplo, o narrador fala pelo escritor; o narrador,
pelo personagem; o personagem, pelo escritor; o escritor, pelo narrador; o escritor, pelo
personagem.
O terceiro capítulo, por sua vez, trata de como a espacialidade se integra a essas vozes
deslizantes, performadas em um outro tipo de deslocamento, o geográfico. Parafraseando
Kristeva em suas reflexões inspiradas por Freud, é possível dizer que as vozes presentes nas
obras em estudo detectam a estranheza que há em si mesmas e pretendem não se acossar do
lado de fora. Por isso, de formas diferentes, nas obras em estudo, sucede a coragem de cada
voz discursiva se dizer desintegrada para não se perseguir, para se acolher nesse
estranhamento de si (KRISTEVA, 1994, p. 201).Desnudar-se em um movimento de saída de
si para, por percepções exteriores, encontrarem-se: essa insistência em percursos espaciais é o
material desse terceiro segmento.
Se a figura migra, erra, busca-se, comprometida consigo em seu tempo, se confia sua
condição deslizante ao deciframento, se esse ideário compõe o tema das narrativas, claro fica
que um caráter metalinguístico as domina. Em outras palavras, esses aspectos discutem um
modo de fazer literário que recobre cada uma dessas obras. Elas se constituem como uma
estética do fazer literário, apontando para algo parente de uma crítica literária. Walty e Cury,
citando Mark Currie, afirmam haver um romance que tem consciência de si mesmo, a que se
denomina metaficção, no qual se relativizam e dramatizam as fronteiras entre ficção e crítica:
“O romance autoconsciente tem, assim, o poder de explorar não apenas as condições de sua
própria produção, mas as implicações da explanação narrativa e da reconstrução histórica em
geral” (CURRIE, 1995, p. 14 apud WALTY; CURY, 1999, p. 37). Isso é tratado no quarto
capítulo — “Tecendo por cima dos panos” — que assume essa reflexão em todas as 10 obras.
Os três segmentos, segundo, terceiro e quarto capítulos, se constroem, assim, de
maneira a ressaltar o que as obras trazem para a composição de uma literatura que apresenta
uma maneira de dizer apropriada ao século XXI: formas de atuação das vozes discursivas
14

contemporâneas; uso estratégico do espaço como forma de ilustrar o desconforto dessas


vozes; metalinguagem como condição para a existência dessas vozes.
15

1 O NARRADOR TITUBEANTE: UMA VOZ SEMPRE PRESENTE

As vozes discursivas — autor, narrador, personagem — que se manifestam na


produção literária, ao longo dos séculos, têm sido relevante objeto de estudo, porque criam e
intercambiam formas, retratando momentos históricos e estéticos distintos. Trata-se de seres
intrigantes, cuja intenção estética promove efeitos de real em níveis variados e constituem-se
como eventos, como tradutores de um tempo e construtores de outros, repercutindo,
anunciando e prenunciando produções literárias, atuando em uma rede dialógica.
Jacyntho Lins Brandão (2005), em A invenção do romance, ao estudar o conceito de
romance, trata de algumas categorias, entre elas, a voz discursiva que se encarrega de trazer a
história até o leitor, o narrador, sobre a qual nosso estudo se debruçará especialmente.
Tomando clássicos literários gregos e latinos como material de estudo, o autor
diferencia dois grupos de produções: as narrativas míticas e as narrativas literárias. Considera
que a função do narrador é o que marca a passagem de um conjunto para o outro, pois, para
que a narrativa seja mítica, o narrador deve ser ocultado de forma que o narrado seja a
categoria em evidência. Assim, o discurso impessoal e coletivo manter-se-ia, sem que
houvesse riscos, dúvidas ou objeções quanto ao narrado. Não havendo quem avoque a
orientação, a composição, a arquitetura da obra, ela assume a força da presentificação perene,
repetindo, inquestionavelmente, os discursos fundadores do mundo, de instituições, de grupos
sociais, etc. Brandão segue seus estudos, afirmando que: “Antes de tudo, o romance é
narrativa literária. Mais que gênero literário, a questão da definição do que é narrativa deve
levar em conta tratar-se de um gênero de discurso” (BRANDÃO, 2005, p. 32). Desse modo,
na constituição desse discurso (o que é feito por um autor), está a presença de um narrador, de
uma narração e de um destinatário, sendo o narrador “o elemento mais definidor da narrativa”
(BRANDÃO, 2005, p. 93), o que se evidencia pelo “uso de certas estratégias discursivas,
visando realçar a responsabilidade do narrador pelo narrado e o distanciamento do recebedor
com relação a este” (BRANDÃO, 2005, p. 93). Nesses estudos, Brandão teoriza, então, como
essa categoria reflete o mundo de que emerge, pois revela modos de pensar e de produzir a
arte da palavra em situações históricas, acabando por privilegiar o atemporal e o universal,
com a peculiaridade de que pretende demonstrar “ter consciência do seu papel e [de que] quer
fazer isso transparecer para o recebedor” (BRANDÃO, 2005, p. 98).
Os modos de construção do narrador tratados pelo estudioso no que tange a obras
clássicas universais — realce de responsabilidade dos narradores, reflexo do mundo de que
16

emergem, transparência no modo de produção — resultam em efeitos de real singulares que


se manifestam em outros momentos da produção da palavra literária, porém tomando novos
ares.
Ian Watt (1990), em A ascensão do romance, quando trata das obras produzidas a
partir do século XVIII, brinda-nos com uma discussão sobre esses “novos ares”, considerando
que procuram “retratar [diferentemente do que ocorre em obras anteriores] todo tipo de
experiência humana e não só as que se prestavam a determinada perspectiva literária: seu
realismo não está na espécie de vida apresentada, e sim na maneira como a apresenta”
(WATT, 1990, p. 13).
Assim, o teórico inglês discute o fato de que os escritores gregos e romanos, bem
como clássicos do Renascimento, a exemplo de Shakespeare, para situar o narrador,

[...] em geral, utilizaram enredos tradicionais; e, em última análise, o fizeram porque


aceitavam a premissa comum de sua época, segundo a qual, sendo a Natureza
essencialmente completa e imutável, seus relatos bíblicos, lendários ou históricos —
constituem um repertório definitivo da experiência humana [...] (WATT, 1990, p.
15).

o que foi contraposto pelos modernos, que substituíram aquela “tradição coletiva pela
experiência individual como árbitro decisivo da realidade” (WATT, 1990, p. 16). O autor
associa então suas reflexões sobre narrador às variações de tempo e espaço para a composição
do romance moderno.
Tal associação demonstra que passa a haver uma tendência de vinculação do enredo à
memória biográfica do narrador, com a preferência, então, pela experiência individual, com
ênfase nos índices particulares, o que vincula o narrador a um modo de realismo. Essa
inclinação interessa-nos sobremaneira, porque permanece até os dias contemporâneos, embora
também orientada por outros novos ares, como se pretende tratar neste estudo.
Segundo Watt (1990), o tom do que se chamava realismo, para o mundo literário
anterior ao século XVIII, muda com a abordagem particularizante do sujeito ficcional, que “se
traduz no problema de definir a pessoa individual” (WATT, 1990, p. 19), por exemplo,
tomada por um nome de batismo que tenha a ver com a sua personalidade, em suas
particularidades, posta em determinado tempo e espaço que contribuam para a expressão de
sua identidade. Sendo assim, essas vozes discursivas que assumem o papel de narrador são
reveladas porque há um espaço e um tempo que as revelam. Não há, então, verdades
universais, incontestáveis. Pelo contrário, a experiência de um narrador, seu passado,
portanto, revela o seu presente; é causa do seu presente. Ainda segundo Watt, “o exemplo
17

mais evidente e extremo é o romance de fluxo de consciência, que se propõe a apresentar uma
citação direta do que ocorre na mente do indivíduo sob o impacto do fluxo temporal” (WATT,
1990, p. 23).
Essa perspectiva temporal se alia à perspectiva espacial, pois a primeira se instaura na
segunda, pretendendo assegurar o narrador em sua atuação, porque, tentando firmar-se no
espaço, tenta fixar-se em seu posto de quem controla a narrativa. E é dessa forma que fica
autenticada sua atuação, registrada em tempo e em espaço.
Esse pequeno apanhado de reflexões teóricas sobre a categoria narrador — tanto no
que elucida Jacyntho Lins Brandão sobre o narrador nas obras clássicas greco-latinas
universais (realce de responsabilidade dos narradores, reflexo do mundo de que emergem,
transparência no modo de produção) quanto no que trata Ian Watt sobre essa mesma categoria
nas obras modernas universais (o realismo que se volta para as minúcias do indivíduo em
contraposição ao universal, a associação da voz que narra ao tempo e ao espaço como forma
de garantir-lhe a subjetividade e a segura demarcação de suas funções, entre elas a de escritor)
— será tomado aqui como fonte para estudos aplicados à tradição literária brasileira, de forma
a demonstrar que o tema sobre o qual nos debruçaremos não é algo inédito na literatura
brasileira, mas um aspecto que assume novos perfis na contemporaneidade, sempre em sua
complexidade.
Podemos observar que, na trajetória da tradição literária brasileira, o leitor tem podido
se defrontar pontualmente com vozes discursivas que, estrategicamente no papel de
narradores: a) têm alta responsabilidade sobre o fazer literário, a ponto de deixar claro ao
leitor o modo de produção desse fazer; b) refletem o mundo de que emergem, encenados em
alguma função ligada à produção literária, refletindo sobre essa sua função; c) constroem-se
em um tempo e em um espaço que lhe dão uma perspectiva biográfica convincente; d)
impingem ao texto sua assinatura, sua subjetividade.
O traço dessa assinatura que nos interessa é a peculiaridade de encenar a desconfiança
do seu fazer prosaico de maneira a tematizar esse fazer, todavia colocando-se em um espaço
que lhe dá uma perspectiva biográfica segura.
Exemplos desses narradores são Bentinho, de Dom Casmurro, de Machado de Assis;
Paulo Honório, de São Bernardo, de Graciliano Ramos; Riobaldo, de Grande sertão: veredas,
de Guimarães Rosa; o narrador inominado de Água viva, de Clarice Lispector. Trataremos
aqui de tecer breves considerações sobre a presença desse narrador desconfiado, em cada um
desses romances (tão diversos entre si quanto a seu tempo histórico, formas estéticas e público
leitor), para ilustrar como já era presente, mas de forma isolada, pontual, até se tornar uma
18

vertente na literatura brasileira contemporânea, cujo corpus consiste de peculiaridades que


redimensionam essa categoria literária sempre tão intrincada. Em Dom Casmurro,nossas
breves reflexões se deterão em seus dois primeiros capítulos. Neles, temos Bentinho já se
apresentando como autor com certo desconforto, quando explica o título:

Não consultes os dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão,
mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por
ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não
achei melhor título para minha narração; se não tiver outro daqui até o fim do livro,
vai este mesmo (ASSIS, 1997, p. 15).

Essa dificuldade em escolher um nome condizente com a obra norteia a leitura das
especificidades do texto machadiano sob dois aspectos: o conselho para que não se consulte o
dicionário e o tom de descomprometimento com a escolha do título da obra. Se o leitor
obedecer ao conselho, cairá nas malhas do narrador que se apresenta como escritor e aceitará
o despretensioso de sua voz. Se o leitor desobedecer, fugirá ao erro de cálculo que
sarcasticamente lhe é proposto. Isso porque, na verdade, os dicionários oferecem o mesmo
significado que essa voz discursiva afirma ter-lhe posto o vulgo — homem calado e metido
consigo, ou seja, “que ou aquele que é ensimesmado, sorumbático, triste” (FERREIRA, 2009,
p. 419) —, nada havendo de equivocado, portanto, nas considerações tecidas sobre esse
sujeito ficcional. Ocorrem aí indícios que determinam os lugares na interlocução, com um
fingimento que, propositalmente, encena tirar do narrador sua total autoridade de escritor e
ceder uma credencial ao leitor.
Em seguida, no segundo capítulo, Bentinho expõe, com clareza, o motivo da sua
escrita: “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a
adolescência” (ASSIS, 1997, p. 16). A ideia contida nessa frase, seguida da exposição de fatos
que demonstram a monotonia e consequente frustração no intento, acaba por se completar no
seguinte trecho:

Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar, e
lembrou-me escrever um livro. Jurisprudência, filosofia e política acudiram-me, mas
não me acudiram as forças necessárias. Depois, pensei em fazer uma “História dos
subúrbios”, menos seca que as memórias do padre Luís Gonçalves dos Santos,
relativas à cidade; era obra modesta, mas exigia documentos e datas, como
preliminares, tudo árido e longo. Foi então que os bustos pintados nas paredes
entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-
me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse a
ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o
do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras?...
Fiquei tão alegre com esta ideia, que ainda agora me treme a pena na mão. Sim,
Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande César, que me incitas a fazer os meus
19

comentários, agradeço-vos o conselho, e vou deitar ao papel as reminiscências que


me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para alguma
obra de maior tomo. Eia, comecemos a evocação por uma célebre tarde de
novembro, que nunca me esqueceu. Tive outras muitas, melhores, e piores, mas
aquela nunca se me apagou do espírito. É o que vais entender, lendo (ASSIS, 1997,
p. 17-18).

Os parágrafos revelam um narrador que assume sua escrita com a finalidade de


reinventar um passado. Essa intenção, tão profunda, vai sendo posta, porém, como: a) uma
trivialidade, algo meio banal, corriqueiro (“Quis variar”); b) uma prática selecionada como
para não ter muito trabalho (“[...] era obra modesta, mas exigia documentos e datas, como
preliminares, tudo árido e longo.”); c) mais uma indicação de outrem do que uma opção (“Foi
então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que
eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns.”); d)
e, finalmente, a retomada do propósito posto inicialmente de atar as duas pontas da vida (“[...]
e vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que
vivi.”), que, no entanto, é feita tratando ainda a escrita com certo menosprezo, afirmando que,
com a escrita de sua vida, assentaria “a mão para alguma obra de maior tomo”.
Trata-se, então, de uma voz que se apresenta como a de um escritor em formação, que
se propõe a escrever sua primeira obra, orientando a leitura com ares de modéstia, com
considerações aparentemente fortuitas. Vê-se aí um recurso estético também deslizante, ou
seja, temos a criação de certo descomprometimento com a escrita, mas algo posto como um
artifício, um propósito metalinguístico, estratégico, para que se entre no jogo de fingimento
dessa voz autoral. Trata-se de colocar, em um embate sem tréguas, o Bento já maduro, que
reflete sobre o que recorda dolorosamente ter visto, ouvido, vivido, com o jovem Bentinho.
Esse jogo de fingimento sugere a participação do leitor, ao qual cabe confiar no narrador ou
dele desconfiar.
Contribui também para essa sugestão a ambientação da narrativa, assim posta pelo
próprio Bentinho:

Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito,
levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há
bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na
antiga rua de Mata-Cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra,
que desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem as indicações que lhes fiz: é o
mesmo prédio assobradado, três janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas
alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do teto e das paredes é mais ou menos
igual, umas grinaldas de flores miúdas e grandes pássaros que as tomam nos bicos,
de espaço a espaço. Nos quatro cantos do teto, as figuras das estações e, ao centro
das paredes, os medalhões de César Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por
baixo... [...] O mais é também análogo e parecido. Tenho chacarinha, flores, legume,
20

uma casuarina, um poço e lavadouro. Uso louça velha e mobília velha. Enfim, agora,
como outrora, há aqui o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a
exterior, que é ruidosa (ASSIS, 1997, p. 16).

Tempo, espaço e subjetividade tecem a narrativa. A existência, na descrição do


cenário, de numerosos detalhes, assegura a realidade do intento do narrador, que escreve para
si mesmo e para o leitor: é por meio do cenário da casa, é dentro desse cenário, é pela
construção desse cenário, que ele tentará atar as extremidades de um tempo — “as duas
pontas da vida” —, empreendendo entender o que lhe aconteceu, expondo sua identidade
continuamente através das lembranças, de seus pensamentos, presos indubitavelmente à casa
construída, destruída, reconstruída. Isso se remete ao princípio da individuação, proposto por
Locke, citado por Watt (1990, p. 22): “a existência num local particular do espaço e tempo”
que torna individualizadas as personagens, no caso de Bentinho, alguém que narra sua
existência, no presente, mas preso ao passado, ambos os tempos incrustados em uma casa.
Dessa forma, o leitor agirá, como sugere Brandão, comungando com o narrador-
escritor “as limitações da falta de onisciência, exploradas intencionalmente na representação
do discurso narrativo...” (BRANDÃO, 2005, p. 145). E faz-se, dessa forma, o enquadramento
do discurso problematizante de Bentinho: ele se coloca como um narrador que se propõe a ser
um escritor e que, nesse papel, constrói o conflito de si como personagem, como narrador e
como escritor, já que considera que nada nele seria de maior tomo — nem a vida, nem a
escrita. Seu desconforto, portanto, em relação à escrita traduz um desconforto em relação à
própria vida. Anuncia-se, dessa forma, o mal-estar quanto à posição de escritor por meio
dessa voz discursiva, descrita por John Gledson, como “notoriamente não confiável, uma
consciência muito sofisticada e cética da estrutura do romance, uma tendência para digressões
de relevância duvidosa para o enredo, uma preocupação com o tempo e a memória, e um
relativismo abrangente...” (GLEDSON, 2006, p.281).
Essa mesma sensação pode ser encontrada em Paulo Honório, narrador da obra São
Bernardo, de Graciliano Ramos, sobre a qual faremos algumas considerações, centralizadas
no capítulo XXXVI, o último da narrativa. Nele, o narrador repassa toda a sua vida e retoma o
início de sua escritura, quando anunciara seu desejo de escrever e as dificuldades de fazê-lo a
muitas mãos: “[...] a ideia esquisita de, com o auxílio de pessoas mais entendidas que eu,
compor esta história. A ideia gorou, o que já declarei” (RAMOS, 2008, p. 215).
Quebrando a sequência narrativa, elucida o tempo em que se dá o início do enunciado
e sua motivação, fazendo-o dentro da própria enunciação:
21

Há cerca de quatro meses, porém, enquanto escrevia a certo sujeito de Minas,


recusando um negócio confuso de porcos e gado zebu, ouvi um grito de coruja e
sobressaltei-me.
Era necessário mandar no dia seguinte Marciano ao forro da igreja.
De repente voltou-me a ideia de construir o livro. Assinei a carta ao homem dos
porcos e, depois de vacilar um instante, porque nem sabia começar a tarefa, redigi
um capítulo.
Desde então procuro descascar fatos, aqui sentado à mesa da sala de jantar, fumando
cachimbo e bebendo café [...] (RAMOS, 2008, p. 217).

No momento final (que delimita o início), o narrador se diz convencido de que


nenhum de seus ofícios lhe “daria os recursos intelectuais necessários para engendrar esta
narrativa” (RAMOS, 2008, p. 218). Adjetiva-a como “magra”, mas acrescenta que, “em
momentos de otimismo, suponho que há nela pedaços melhores que a literatura do Godim”
(RAMOS, 2008, p. 218). Percebem-se, nesses trechos, o reconhecimento de sua inabilidade
para a escrita e o menosprezo que tem por ela, sob uma crueza característica desse duro
senhor de terras: “Considerando, porém, que os enfeites do meu espírito se reduzem a
farrapos de conhecimentos apanhados sem escolha e mal cosidos, devo confessar que a
superioridade que me envaidece é bem mesquinha” (RAMOS, 2008, p. 218).
O mal-estar de que padece como escritor — escrever é descascar — segue em paralelo
ao mal-estar do qual se queixa como pessoa, sendo o narrador-personagem e o narrador-
escritor imagens espelhadas. Dessa forma, não parece haver aqui um jogo de fingimentos,
uma forma de trazer o leitor para um desvendamento do narrador. Trata-se de um “real” e
doloroso desvendamento do narrador pela escrita, que o leitor acompanha em sintonia de
sentimentos e sensações. O protagonista, ao narrar sua história, desconfia de si mesmo como
homem — com ofícios rudes — e, assim, desconfia de si mesmo como escritor — com
recursos intelectuais rudes. Ambos, estando em situação desconfortável, procuram conforto
no ajuste ao espaço — o latifúndio São Bernardo.
Paulo Honório se solidifica como personagem, agregando-se ao espaço, construindo-o
à medida que se constrói (construindo-se à medida que o constrói), fazendo dele seu retrato,
sua configuração. Firmando esse espaço, expandindo-o, legitimando-o, firma a si mesmo,
expande-se, legitima-se: conforme empurra cercas, corrompe, ameaça, vai sendo tomado de
poder nesse espaço e por ele. A cada movimento feito pelo protagonista para (re)dimensionar
o espaço em que se insere, vai-se desenvolvendo uma implicação entre ambos.
Ocorre que, paradoxalmente, torna-se vítima desse poder do qual se reveste, pois o
espaço, ampliado, promove a ampliação de sua solidão e do seu desgoverno sobre os outros e
sobre si mesmo. Ele se estabiliza em um espaço que lhe parece ser o seu chão firme, mas que
22

é, na verdade, uma areia movediça que o absorve. E o claro desconforto humano, como
homem dono de terra, situação sem remédio, se traduz na sua escrita como desalento:

Levanto-me, procuro uma vela, que a luz vai apagar-se. Não tenho sono. Deitar-me,
rolar no colchão até a madrugada, é uma tortura. Prefiro ficar sentado, concluindo
isto. Amanhã não terei como me entreter.
[...]
De longe em longe, sento-me fatigado e escrevo uma linha (RAMOS, 2008, p. 220).

Ao final, sozinho, sem governança, embora estando em um latifúndio, fica restrito a


uma mesa, já sem escrever porque a luz das velas se apagou: “E eu vou ficar aqui, às escuras,
até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns
minutos” (RAMOS, 2008, p. 221).
Assim, ao especificar as particularidades do espaço, Paulo Honório explicita a si
mesmo e a sua escrita, vai-se moldando pela dimensão do mundo físico, amplo e restrito,
posto em palavras, questão que ilustra o que Watt afirma em seus estudos: a busca pela
verossimilhança leva autores “a iniciar aquele poder de ‘colocar o homem inteiramente em
seu cenário físico’” (WATT, 1990, p. 27).
Em Grande sertão: veredas, temos um narrador, Riobaldo, que constrói uma longa
narrativa, composta de muitas e entrelaçadas histórias e reflexões, fiadas pela oralidade,
durante as quais comprova uma tese: “O diabo não há! É o que digo, se for... Existe é homem
humano. Travessia” (ROSA, 2006, p. 429).
Segundo Marli Fantini,

[...] o relato do narrador Riobaldo mescla “história” com “estória”, as duas mais
emblemáticas espécies narrativas. Ainda que ambas tenham prestígio diferenciado,
ao colocá-las em relação litigante, o escritor repete o procedimento fronteiriço
adotado em outras categorias temáticas e estruturantes de sua poética. Nesta obra, o
escritor encena um depoimento, que Riobaldo, um fazendeiro “quase barranqueiro”,
concede a um senhor culto que vem da “cidade” para conhecer de perto o universo
sertanejo, sua cultura, seus mitos e mais diretamente a história de apogeu e
decadência da jagunçagem (FANTINI, 2003, p. 274).

A apresentação que faz de si já aponta para o mal-estar que o acomete nessa função de
interlocutor: afirma-se como “só um sertanejo” que, “nessas altas ideias”, navega mal. E
acrescenta:

[...] sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com
toda leitura e suma doutoração. Não é que eu esteja analfabeto. Soletrei, anos e
meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mestre, Mestre Lucas, no
23

Curralinho, decorei gramática, as operações, regra-de-três, até geografia e estudo


pátrio (ROSA, 2006, p. 14).

A comparação que o narrador estabelece entre seu interlocutor (e aqueles que a ele se
assemelham) e si mesmo é um fator constante na narrativa, destacando sempre a própria
inferioridade, embora isso não o impeça de narrar de forma singular os fatos, pois, em um
labirinto de acontecimentos e impressões, enquanto filosofa, faz questionamentos, indaga-se.
Ainda de acordo com Fantini, “não possuindo a autoridade da narrativa épica ou da crônica
oficial, o testemunho oral do ex-jagunço só se tornará exemplar e só terá assegurado sua aura,
caso entre em interlocução com alguém cujo (suposto) saber seja capaz de conferir-lhe
legitimidade e assegurar-lhe a difusão” (FANTINI, 2003, p. 275).
Assim, tomada pelo tom da oralidade, como ocorre em “contações de causos”, a
narrativa perde-se e acha-se em movimentos não lineares, retrato estético da alma
perdidamente sofrida do homem que conta e que, no contar, sempre põe em questão sua
habilidade como depoente. Vamos nos ater ao seguinte trecho, que bem ilustra essa condição
titubeante e que possibilita que se entenda a imbricação entre o discurso e o personagem-
narrador:

Que tal, o que o senhor acha? Pois mire e veja: isto mesmo narrei a um rapaz de
cidade grande, muito inteligente vindo com outros num caminhão, para pescarem no
rio. Sabe o que o moço me disse? Que era assunto de valor, para se compor uma
estória em livro. Mas que precisava de um final sustante, caprichado. O final que ele
daí imaginou, foi um: que, um dia, o Faustino pegava também a ter medo, queria
revogar o ajuste! Devolvia o dinheiro. Mas o Davidão não aceitava, não queria, por
forma nenhuma. Do discutir, ferveram nisso, ferravam numa luta corporal. A fino, o
Faustino se provia na faca, investia, os dois rolavam no chão, embolados. Mas, no
confuso, por sua própria mão dele, a faca cravava no coração do Faustino, que
falecia...
Apreciei demais essa continuação inventada. A quanta coisa limpa verdadeira uma
pessoa de alta instrução não concebe! Aí podem encher este mundo de outros
movimentos, sem os erros e volteios da vida em sua lerdeza de sarrafaçar. A vida
disfarça? Por exemplo. Disse isso ao rapaz pescador, a quem sincero louvei. E ele
me indagou qual tinha sido o fim, na verdade de realidade, de Davidão e Faustino. O
fim? Quem sei. Soube somente só que o Davidão resolveu deixar a jagunçagem —
deu baixo do bando, e, com certas promessas, de ceder uns alqueires de terra, e
outras vantagens de mais pagar, conseguiu do Faustino dar baixa também, e viesse
morar perto dele, sempre. Mais deles, ignoro. No real da vida, as coisas acabam com
menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a
gente. Não se queira. Viver é muito perigoso... (ROSA, 2006, p. 63).

O tema da conversa é a escritura, sua forma, seu final; a verdade da ficção e a verdade
da realidade. Segundo essa voz discursiva, como a história contada é real, ela não tem o
tratamento que teria caso fosse ficção, tratamento que merece apreciação e de cuja feitura o
próprio narrador, Riobaldo, não é capaz. Só alguém de alta instrução conceberia um final
24

limpo e verdadeiro. A um mero contador, como ele, só resta a verdade da vida, com menos
formato e que nem tem acabamento (palavra que pode promover o sentido de “final” e
“qualidade na execução”).
Verifica-se que Riobaldo, apesar da modéstia, da percepção que tem do valor do
estudo e da instrução, conhece bem as técnicas de narração oral. Sua posição pode ser
considerada, portanto, um logro, pois, embora sabendo disso e contando com qualidade
estética incontestável sua história, encena o desconforto ante o exercício da contação.
Sendo “só um sertanejo” (considera-se na expressão a presença de um advérbio de
intensidade e de um artigo indefinido que promovem o sentido de desmerecimento), não
assume a posição de um produtor de textos capaz de apresentar algo de valor estético, mas
conta, porque há um apelo irresistível que o obriga a contar (assim como ocorre com os
contadores da ficção): ele tem uma necessidade veemente de entender as veredas da vida.
Riobaldo, como qualquer escritor, vivencia a experiência da dor, mas diz saber que não
conseguirá dar a essa experiência a forma verbal cósmica, harmoniosa e perfeita. “Encarnação
da condição ambígua de jagunço e letrado” (FANTINI,2003, p.277), tem a experiência da dor,
sente-se um ser inadequado na vida e sofre também como relator dessa experiência vivida,
contada em vertigem.
Nota-se que a comparação entre o que sugere o rapaz da cidade e o que Riobaldo é
capaz de contar põe em conflito dois espaços, a cidade e o sertão. Verifica-se o incômodo do
personagem-contador, assim, quanto ao fato de que, sendo alguém pertencente ao sertão, não
tem domínio do ato de narrar. Isso porque, para ele, no “real da vida, as coisas acabam com
menos formato, nem acabam”, e o real da vida está na narrativa do sertanejo, que se dá no
sertão, em um grande sertão, no qual o protagonista está ancorado. Trata-se de seu espaço de
permanência existencial, filosófica. Até seu nome é composto por um elemento do sertão — o
rio — detalhe que demonstra como estão incorporados. Ambientação também aparentemente
firme, o sertão de Riobaldo é, na verdade, tomado de veredas. De qualquer forma, é nele que
o protagonista se arvora, em seus objetos móveis, do mundo físico. É nele que divaga, que
reflete, que existe, enfim, sendo uma vereda mesmo desse espaço, titubeante e exuberante em
sua capacidade de narrador, gerando “a desconfiança de que estamos sendo provocados por
insuspeitados protocolos discursivos a nos ameaçar por uma estética que corremos o risco de
não compreender” (FANTINI,2003,p. 276).
Por fim, vamos nos deter em Água viva, de Clarice Lispector (1990), obra que oferece
ao leitor uma declaração de amor, feita em uma situação de embate com as palavras. Algumas
25

condições determinam essa luta, entre elas, o fato de a narradora ser uma pintora, não uma
escritora, e o fato de ela dirigir-se a um amado que pertence à área da escrita.
Essa dificuldade se materializa na obra desde as frases iniciais, ineditamente
inacabadas, quando já se revela a procura vã do sentido mais pleno nas palavras: “É com uma
alegria tão profunda. É uma tal aleluia” (LISPECTOR, 1990, p. 13). Vê-se o inacabamento
sintático e semântico, que retrata impossibilidades, incapacidades, impedimentos. A narradora
considera-se inábil na composição dessas frases, não sabe como compor o início de seu
discurso, como introduzir, com palavras, seus sentimentos, ideias e sensações. Não saberá
fazê-lo também ao longo dos parágrafos.
Tal impotência se dá porque ela vive uma experiência transitória: é uma pintora que se
lança ao estado de escritora, e isso é algo que a angustia, a ponto de antecipar, com temor, a
reação negativa do amado quanto a esse estado, bem como imaginar a própria explicação:
“Quando vires a me ler, perguntarás por que não me restrinjo à pintura e às minhas
exposições, já que escrevo tosco e sem ordem” (LISPECTOR, 1990, p. 14). E ela mesma se
esclarece, como que a dizer a si: “É que agora sinto necessidade de palavra — e é novo para
mim o que escrevo porque minha verdadeira palavra foi até agora intocada” (LISPECTOR,
1990, p. 14). E é esse “amadorismo” que a impele a, mais à frente, questionar-se: “o que
pintei nessa tela é passível de ser fraseado em palavras?” (LISPECTOR, 1990, p. 15).
Agrava essa sensação de mal-estar o fato de o amado ser da área da escritura, o que a
faz pôr em xeque a qualidade das frases, a sua intensidade, o gênero, a composição do enredo:

Também tenho que te escrever porque tua seara é a das palavras discursivas e não o
direto de minha pintura. Sei que são primárias as minhas frases, escrevo com amor
demais por elas e esse amor supre as faltas, mas amor demais prejudica os trabalhos.
Este não é um livro porque não é assim que se escreve. O que escrevo é um só
clímax? Meus dias são um só clímax: vivo à beira (LISPECTOR, 1990, p. 16).

Assim, no desconforto assumido — “Não é confortável o que te escrevo”


(LISPECTOR, 1990, p. 20) —, segue a narrativa, que se constitui como um “não dar conta
de” perpetuado ao longo do texto. A atuação de um aprendiz — “Quero escrever-te como
quem aprende” (LISPECTOR, 1990, p. 18), como quem faz experimentos — “Escrevo-te
como exercício de esboços antes de pintar. Vejo palavras.” —, é dominante (LISPECTOR,
1990, p. 22).
Nessa situação de tanto sofrimento, há um elemento ao qual a narradora pensa ter-se
agarrado, como a uma tábua de salvação: pensa encontrar no pronome de língua inglesa it
uma forma de lidar com a escrita, acreditando que o pronome, em outro idioma, distanciado e
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impessoal, seria um obstáculo ao risco que a sua pessoalidade corre de se corromper e


apodrecer, porque está atuando em algo libertador, a escrita. No entanto, a escolha do it em
nada alivia o tributo que deve pagar ao passar para o lado da escrita. Ele é presença perene,
permeando os parágrafos e acentuando o desconforto de viver a escrita. A narradora deixa ao
leitor a sensação de que o que escreve é sempre um improviso, um momento, em continuum:
“O que te escrevo é um ‘isto’. Não vai parar: continua” (LISPECTOR, 1990, p. 101).
Singularmente, o espaço da narrativa, nessa obra de Lispector, é a própria linguagem,
como “uma citação direta do que ocorre na mente do indivíduo sob o impacto do fluxo
temporal” (WATT, 1990, p. 23). Nela se instaura o enredo, a identidade da narradora, a perda
da identidade da narradora. Ela própria torna palpável essa construção espacial: “Entro
lentamente na escrita, assim como já entrei na pintura. É um mundo emaranhado de cipós,
sílabas, madressilvas, cores e palavras — limiar de entrada de ancestral caverna que é o útero
do mundo e dele vou nascer?” (LISPECTOR, 1990, p. 19).
Desesperadamente perdida nesse espaço, é nele, no entanto, que a protagonista vai
deixar desenrolar seu novelo de anseios e sensações. É no espaço que ela se encontra, é nele
que ela paira durante todos os parágrafos que produz, sem dele querer sair. Em desconforto,
permanece ali, irredutível: “O mundo: um emaranhado de fios telegráficos em eriçamento. E a
luminosidade, no entanto, obscura: esta sou eu diante do mundo” (LISPECTOR, 1990, p. 28).
Esses breves comentários tratam de quatro obras cujos autores, ao longo da tradição
literária brasileira, debruçaram-se sobre a engrenagem da narrativa no que tange à composição
de seus narradores responsáveis em alguma instância pela escritura, traduzindo-os, de certa
forma, como seres em desconforto. Encenam sujeitos ficcionais sofisticadamente
desconfiados e inconfiáveis quanto a si próprios, sua narração, sua legitimidade como voz
discursiva encarregada da escrita, da contação, da declaração, de atos, enfim, vinculados à
produção estética da palavra. A seleção dos autores evidencia que não há novidade no
desenvolvimento dessa temática. Também evidencia outra regularidade: as vozes estudadas,
embora demonstrando certo logro em suas funções, se asseguram, em sua individualidade,
acopladas a um espaço em que existem, com primazia na valorização da experiência pessoal
— Bentinho, Paulo Honório, Riobaldo e a narradora inominada de Lispector, todos fazem da
sua experiência seu arbítrio. Sendo assim, essas vozes fazem coro com os narradores
estudados por Ian Watt, que afirma serem situados numa perspectiva literária em que “o
enredo envolveria pessoas específicas em circunstâncias específicas, e não, como fora usual
no passado, tipos humanos genéricos atuando num cenário basicamente determinado pela
convenção literária adequada” (WATT, 1990, p. 17).
27

Ocorre-nos, entretanto, que o tema, com ênfase na particularidade do narrador que


problematiza a escritura, embora presente (e presente em obras que constituíram a tradição
literária brasileira), não foi uma recorrência nem no tempo, nem no espaço, embora o tenha
sido no conjunto da obra de um ou outro autor, diferentemente do que ocorre
contemporaneamente, quando passa a ser objeto significativo de produções, a ponto de
constituir-se uma vertente que dele trata sob novas condições estéticas, motivo pelo qual se
torna também intrigante, passível de ser estudado e compreendido. Este estudo apontará
motivos para que essa manifestação literária com novas peculiaridades tome um fôlego
diverso do que aconteceu no decorrer de nossa tradição literária, tomando como objeto de
análise um corpus delineado contemporaneamente, com características técnicas das quais essa
coletânea comunga. Tratar-se-á de uma reflexão teórica sobre os modos de atuação do
narrador em certo segmento da literatura contemporânea, modos esses construídos
estrategicamente, o que exige um leitor atento às propostas estéticas ali ofertadas.
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2 VOZES DISCURSIVAS E CONTEMPORANEIDADE

É por ser mais poeta


Que gente que sou louco?
Ou é por ter completa
A noção de ser pouco?
Álvaro de Campos

Eu tenho muitos corações


É um privilégio intelectual.
[...]
Eu que me aguente com os comigos de mim.
Álvaro de Campos

O processo de leitura se dá mediante habilidades, como a de comparar. A leitura de


obras contemporâneas resgata leituras anteriores e permite a percepção de outros modos de
construção, com tratamento estético acoplado a outras demandas. Jaime Ginzburg, em seu
artigo “O narrador na literatura brasileira contemporânea”, considera a hipótese de que a
contemporaneidade é um período “em que parte da produção literária decidiu confrontar com
vigor tradições conservadoras no país, em favor de perspectivas renovadoras” (GINZBURG,
2012, p. 201). Essa produção é ilustrada por “obras que lidam com temas socialmente
complexos e, em alguns casos, controversos” (GINZBURG, 2012, p. 199). O teórico
exemplifica essa afirmativa, apontando temáticas variadas: o confinamento no espaço
prisional brasileiro, a vulnerabilidade paterna, a escravidão sob uma perspectiva não
eurocêntrica, a homoafetividade, etc. Acrescenta que a elevada diversidade em estilos,
vocabulários e ênfases temáticas impede a constituição de um corpus que delimite um estilo
de época, conforme faz a periodização tradicional, sob o risco de se reduzir o valor dessas
obras.
Essas considerações de Ginzburg levam-nos a elaborar duas ponderações importantes.
A primeira é a de que, para a compreensão da diversidade que domina a ficção
contemporânea é necessário buscar a relação entre este tempo e a expressão estética literária
29

que ora se manifesta. A segunda ponderação é a de que isso possa ser feito por meio de
estudos de corpus representativos.
Torna-se provocativo, então, estudar obras produzidas nos tempos atuais, cuja
composição se faria por elementos peculiares e reveladores desse tempo e, portanto, seriam
promotoras de uma nova estética. Como um dos pressupostos para que uma narrativa seja
assim considerada é que apresente, em sua composição, vozes capazes de instaurar um
enredo, este estudo optou por buscar, nessas vozes, aspectos peculiares que ilustrem a
contemporaneidade, em especial, a voz do sujeito ficcional narrador, em suas relações com
autoria e personagem.
Sendo assim, é preciso que, primeiramente, sejam apresentadas algumas considerações
sobre essas vozes, pois, embora haja uma corrente de reflexões teóricas sobre elas, há que se
considerar que, assim como os estudos de Brandão e Watt, parte significativa delas já não
opera com o modo de representação desses sujeitos na contemporaneidade.
E, já que nossas reflexões se dão sobre algo produzido no contemporâneo e, portanto,
promovido pelo contemporâneo, há que se tratar dele também, pois esse tempo, por sua vez e
da mesma forma, é configurado pelas vozes estéticas que nele se manifestam.

2.1 Considerações sobre vozes discursivas

As reflexões acerca do fazer literário são de grande complexidade. Nosso papel aqui
não é discuti-las nem fazer uma revisão bibliográfica a seu respeito, mas apenas selecionar um
corpo de conceitos que viabilizem nossos estudos acerca de como esse fazer é tematizado e
desenvolvido em obras que nos parecem configurar uma vertente na literatura contemporânea,
com perspectivas teóricas, portanto, distintas daquelas apresentadas por Jacyntho Lins
Brandão e Ian Watt, concentradas em outros momentos históricos e estéticos, como
demonstramos nas obras referenciadas no primeiro capítulo.
São caras a este estudo questões relativas a autoria, narrador e personagem, que,
ficcionalmente, se constroem imbricados, a ponto de se configurarem como fatos literários,
como efeitos de sentido produzidos no e pelo texto. Para tratar dessas categorias, tomaremos
algumas considerações de Mikhail Bakhtin, em Estética da criação verbal (2003) e em
Questões de literatura e de estética (estudos vários reunidos em edição brasileira de 1988);
também de Walter Benjamin, “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”,
30

presente em Magia, técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura,
publicado em 1940; ainda de Theodor Adorno, em Notas de Literatura I, coletâneas de
ensaios publicadas a partir de 1958, especialmente o ensaio “Posição do narrador no romance
contemporâneo”; de Michel Foucault, em O que é um autor?, comunicação apresentada à
Societé Française de Philosophie, em 1969; e, por fim, de Silviano Santiago, especialmente
seu artigo “O narrador pós-moderno”, presente em Nas malhas da letra, publicado em 1989.
Ainda usufruiremos de reflexões de Antônio Candido e Anatol Rosenfeld, encontradas na
obra A personagem de ficção, de 1981, bem como as de Luís Alberto Brandão Santos e
Silvana Pessôa de Oliveira, em Sujeito, tempo e espaço ficcionais, de 2001.
Mikhail Bakhtin afirma ser necessário dimensionar as instâncias do que tem se
denominado como autor, dentro daquilo que ele considera a estrutura criativa em que se
instaura a obra. Segundo ele, há o autor-pessoa e o autor-criador. Este “é o agente da unidade
tensamente ativa do todo acabado, do todo da personagem e do todo da obra, e é
transgrediente [ou seja, ‘elemento externo em relação à composição interna do mundo do
herói’ (BAKHTIN, 2003, p. 426)] a cada elemento particular [da obra]” (BAKHTIN, 2003, p.
10).
Sendo assim, o autor-criador funciona como um componente da obra; não se trata,
diferentemente de um autor-pessoa, de alguém que assina a autoria da obra, reconhecido
socialmente como quem escreveu certo livro, um artista. Não se trata, também, daquela
instância encarregada de levar o enredo até o leitor, o narrador, uma instância gramatical do
texto.
Seguindo essa proposta teórica, tem-se o autor-criador como alguém que se revela por
uma “consciência que abrange a consciência e o mundo da personagem, que abrange e conclui
essa consciência da personagem com elementos por princípio transgredientes a ela mesma e
que, sendo imanentes, a tornariam falsa” (BAKHTIN, 2003, p.11). Essa voz discursiva
enxerga e conhece tudo relativamente a cada personagem em particular e a todas as
personagens juntas, mais que elas inclusive, naquilo que lhes é excedente, o que significa ter
em mãos o acabamento da obra, das personagens, do conjunto de suas vidas. Assim, a
consciência do personagem, seus desejos e sentimentos são constituídos pela consciência
concludente do autor-criador, o centro axiológico ao qual estão subordinados todos os valores
éticos e cognitivos, de tal forma que ele “conhece e enxerga mais não só no sentido para onde
a personagem olha e enxerga, mas também em outro sentido, que, por princípio, é inacessível
à personagem. É essa posição que ele deve ocupar em relação à personagem”
31

(BAKHTIN,2003, p. 12), que é passiva, então, relativamente ao autor-criador. Cristóvão


Tezza afirma, refletindo sobre o conceito de autoria em BAKHTIN, que

o autor-criador está à frente, espacialmente de fora e temporalmente mais tarde do


que o herói [...]. É o excedente de visão, no tempo e no espaço, que dá sentido
estético à consciência do outro, dá-lhe forma e acabamento, uma forma e um
acabamento que jamais podemos ter por conta própria, na estrita solidão de nossa
voz (TEZZA, 2001).

Para que se dê o acabamento da obra, então, é preciso que se constitua uma gradação
de aproximação ou de afastamento entre o autor-criador e seus personagens, uma distância
tensionada entre esses elementos da narrativa, no espaço, no tempo, nos valores e nos
sentidos,

[...] que permite abarcar integralmente a personagem, difusa de dentro de si mesma e


dispersa no mundo preestabelecido do conhecimento e no acontecimento aberto do
ato ético, abarcar a ela e sua vida e completá-la até fazer dela um todo com os
mesmos elementos que de certo modo são inacessíveis a ela mesma e nela mesma
(BAKHTIN, 2003, p.11).

Dessa forma, a voz discursiva que se constitui como autor-criador não é a voz direta
de um escritor, “mas um ato de apropriação refratada de uma voz social qualquer de modo a
ordenar um todo estético” (FARACO, 2014, p.40). Isso significa que a voz de um autor-
pessoa não leva a si para a obra, mas imagens artísticas das ideias, de forma que é uma voz
social “que cria e mantém a unidade de um todo artístico, [sendo] um modo de ver o mundo,
um princípio ativo de ver que guia a construção do objeto estético e direciona o olhar do
leitor” (FARACO, 2014, p.42). Assim, o autor-criador é uma função constitutiva da obra.
No bojo dessas suas reflexões acerca das figuras do autor-pessoa e autor-escritor, há
ampliações feitas pelo pensador russo, entre elas, o conceito de plurilinguismo, que traz à tona
a orquestração estética de línguas sociais por meio do autor-criador: as representações do
discurso do autor-pessoa, do discurso do narrador, do discurso dos personagens, dos gêneros
textuais presentes, tudo o que compõe um mosaico de vozes constituintes do discurso
proposto pela obra:

[...] todas as linguagens do plurilinguismo, qualquer que seja o princípio básico de


seu isolamento, são pontos de vista específicos sobre o mundo, formas da sua
interpretação verbal, perspectivas objetais, semânticas e axiológicas. Como tais,
todas elas podem ser confrontadas, podem servir de complemento mútuo entre si,
opor-se umas às outras e se corresponder dialogicamente. Como tais, elas se
encontram e coexistem na consciência criadora do romancista. Como tais, ainda,
elas vivem verdadeiramente, lutam e evoluem no plurilinguismo social. Portanto,
32

todas elas podem penetrar no plano único do romance, o qual pode reunir em si as
estilizações paródicas das linguagens de gêneros, os diferentes aspectos da
estilização e de apresentação das linguagens profissionais, das linguagens
orientadas, das linguagens de gerações, dos grupos sociais, etc. [...]. Todas elas
podem ser invocadas pelo romancista para orquestrar os seus temas e refratar
indiretamente as expressões das suas intenções e julgamentos de valor (BAKHTIN,
1988, p.98-99).

O plurilinguismo se revela (e revela as) nas figuras das pessoas que falam, nas vozes
discursivas que se manifestam no romance — autor-pessoa, autor-criador, narrador,
personagem —, sendo, então, uma característica estilística primordial do gênero apresentar o
homem que fala e sua palavra (BAKHTIN, 1988, p.135), o qual tem uma posição ideológica
definida, “que é a única possível e que, por isso, é contestável” (BAKHTIN, 1988, p.136). A
ação do autor-criador, figura recortada pelo autor-pessoa, é a de

[...] representa[r] e enquadra[r] o discurso de outrem, cria[r] uma perspectiva para


ele, distribui[r] suas sombras e luzes, cria[r] uma situação e todas as condições para
sua ressonância, enfim, penetra[r] nele de dentro, introduz[ir] nele seus acentos e
suas expressões, cria[r] para ele um fundo dialógico (BAKHTIN, 1988, p. 156).

Ou seja, o autor-criador manifesta um diálogo de linguagens, o estabelecimento do


“discurso de outrem na linguagem de outrem” (BAKHTIN, 1988, p.127).
Essas questões propostas por BAKHTIN aqui sintetizadas serão demasiado
importantes nas análises que faremos no corpus de obras selecionado, junto a outras, como as
de Walter Benjamin.
Em sua conferência “O autor como produtor”, pronunciada no Instituto para o Estudo
do Fascismo, em 27 de abril de 1934 (BENJAMIN, 1987, p.120), o estudioso alemão intitula
sua palestra com o conceito de que se revestirá essa categoria. As ideias apresentadas situam-
se no quadro histórico-social de forte resistência à mentalidade burguesa, em cujo seio se
manifesta o gênero romance como forma específica de representação de classe. Daí decorre a
reflexão crítica da autoria como a de um produtor, alguém inserido nos meios de produção.
Embora esteja na esteira de questões da ordem do político, o pensamento do filósofo nos
interessa porque ele situa o autor na sua condição de pessoa, como alguém cujas decisões
estão no campo da luta de classes, designadas por aquilo que ele denomina tendência, sendo
que “a tendência de uma obra literária só pode ser correta do ponto de vista político quando
for também correta do ponto de vista literário. Isso significa que a tendência politicamente
correta inclui uma tendência literária” (BENJAMIN, 1987, p. 121). Acrescenta que “é essa
tendência literária, e nenhuma outra, contida implícita ou explicitamente em toda tendência
política correta, que determina a qualidade da obra” (BENJAMIN, 1987, p.121). Essa
33

perspectiva implica que o escritor é uma pessoa cuja função está entranhada em uma tarefa de
comprometimento estético associado ao histórico — melhor dizendo, de comprometimento
histórico associado ao estético —, com defesa de opiniões traduzidas na construção de suas
obras. Há, então, uma utilidade na função do escritor, aqui um ser partícipe da História, cujas
opiniões não são importantes se “não tornam úteis aqueles que a defendem. A melhor
tendência é falsa quando não prescreve a atitude que o escritor deve adotar para concretizar
essa tendência. E o escritor só pode prescrever essa atitude em seu próprio trabalho:
escrevendo” (BENJAMIN, 1987, p.131).
Esse brevíssimo apanhado de considerações de Benjamin tem a finalidade de
esclarecer a função que ele delega à autoria, configurando-a como uma pessoa, um ser
biográfico, cujas ações se inserem na política e na sociedade e são, portanto, compromissadas.
Nessa mesma esteira se dão estudos sobre o narrador, cuja relação com o escritor/autor muito
nos interessa. Em seu artigo “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, ele
discute sobre como se conjugam modos de narrar e configurações sociais. Nessa reflexão, usa
o termo narrativa para referir-se à tradição oral, e o termo narrador, a fim de, paralelamente,
referir-se ao contador de histórias da tradição oral. Essa narrativa e esse narrador foram,
segundo o estudioso, construídos por uma sociedade agrária e comunitária e com ela
comungam. Sendo assim, o objeto da narrativa não é o próprio narrador, mas a experiência
vivida, posta objetivamente pelo narrador diante do leitor. Como, ainda de acordo com o
teórico, a sociedade capitalista, burguesa, em seu perfil individualista e desumanizador, desfaz
essa comunhão que constitui a sociedade agrária, “a experiência da arte de narrar está em vias
de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente”
(BENJAMIN, 1987, p.197). Isso se daria porque as ações da experiência estariam em baixa, o
que significa que a faculdade de as intercambiar estaria em processo de morte, e “o primeiro
indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no
início do período moderno” (BENJAMIN, 1987, p.201), que se materializa no formato livro,
possível graças à invenção da imprensa. Percebe-se que aqui a nomenclatura dada à voz que
se manifesta no romance não é a que se presta à voz que se manifesta na narrativa oral — o
narrador. Tendo isso em vista, no romance, há a morte do narrador, para que tenha lugar um
porta-voz que convida o leitor a refletir sobre o sentido de uma vida e que se encontra em
profunda solidão, pois não tem a companhia do narrador, o qual trataria do mesmo destino do
leitor, destinos conservados pelo que é narrado, sobre os quais há interesse de conservação,
constituindo-se, portanto, como uma tradição.
34

Dessa forma, Benjamin aprecia o narrador clássico, “aquele imbuído da capacidade de


intercambiar com o leitor uma experiência, interessado em conservar o que foi narrado”
(BENJAMIN, 1987, p. 210), por meio da memória, “a mais épica de todas as faculdades”
(BENJAMIN, 1987, p. 210), voz discursiva validada pela autoridade do saber que vem de
longe, porque traz ensinamentos ao ouvinte, tendo, assim, uma função utilitária. Coerente com
essa posição, o filósofo, de certa forma, desaprecia o narrador do romance, o qual, tomado de
subjetividade, não consegue fazer o intercâmbio, porque não mantém distância suficiente do
objeto narrado, entremeando-o com suas impressões que retiram dele a legitimidade e o
impedem de ter a autoridade suficiente para transmitir sabedoria. Na mesma direção, o teórico
deprecia também o narrador que é o jornalista, que até então não havia influenciado a forma
épica de narrar, mas que passa a exercer grande influência sobre o status da narrativa,
entretanto exercendo seu discurso de forma muito estranha ao narrado, inclusive ameaçando
esse status, porque narra acontecimentos muito próximos do leitor, fazendo perder, portanto, a
autoridade que seria inerente ao narrador, pois o narrado, além de dever ser plausível, é
passível de verificação imediata: “Nisso, ela [a informação] é incompatível com o espírito da
narrativa. Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente
responsável por esse declínio” (BENJAMIN, 1987, p.203). Vê-se que a posição do teórico se
vincula a reflexões sobre as forças produtivas, geradoras de problematizações inexistentes nas
obras clássicas, nas quais se localizaria a arte, veiculada por um narrador que perenizava uma
experiência.
Ginzburg (2012) esclarece sobre essa nomenclatura benjaminiana, em “O narrador na
literatura contemporânea”, apontando para a diferença de nomeação dessa categoria em
Adorno, para quem o narrador é um dos elementos da construção estrutural da ficção e não
um elemento da narrativa oral ao qual estaria condicionada a potencialidade realista e
qualificadora da obra. Assim, embora o também filósofo alemão discuta algo semelhante a
Benjamin no que se refere à impossibilidade de narrar, ele não o faz sob o prisma da narrativa
oral, mas sob a ótica da condição da ficção escrita.
Segundo Adorno, essa impossibilidade seria mais conflitante porque “a forma do
romance exige narração” (ADORNO, 2003, p.55), e, como fazê-la, sem uma voz discursiva
que nela proceda? Esse paradoxo se explicita na correlação entre romance e subjetivismo
(estranha ao caráter épico da narrativa, objetivamente vinculada à representação de uma dada
realidade), materializada no discurso do narrador, ao qual cabe transformar a realidade sob
sua condição de narrador, portanto, sob seu olhar e existência, emancipando-se do objeto, este
35

condenado à observação e sensação dessa voz discursiva, postas, então, em sua forma de
linguagem de subjetivação.
Ora, em um mundo onde há “a reificação de todas as relações entre os indivíduos, que
transforma suas qualidades humanas em lubrificante para o andamento macio da maquinaria”
(ADORNO, 2003, p. 57), o romancista é impedido de potencializar seu narrador para narrar
sua relação com a realidade. Aqui Adorno parece delimitar papéis importantes para nossos
estudos: o do autor, o do romancista e o do narrador. Para ilustrar essa sua consideração, cita
Proust, cuja obra, segundo o filósofo, pertence à tradição do romance realista e psicológico
(ADORNO, 2003, p.58), em que, “quanto mais firme o apego ao realismo da exterioridade, ao
gesto do ‘foi assim’, tanto mais cada palavra se torna um mero ‘como se’, aumentando ainda
mais a contradição entre a sua pretensão e o fato de não ter sido assim” (ADORNO, 2003,
p.58-59). Esse “como se” traduz a impossibilidade de narrar tratada por Adorno: trata-se dessa
dificuldade enfrentada pelo autor de promover condições a seu narrador de assumir
realisticamente a narrativa.
De acordo com o filósofo, a negação dessa capacidade se dá esteticamente, como “um
mandamento da própria forma, um dos meios mais eficazes para atravessar o contexto do
primeiro plano e expressar o que lhe é subjacente, a negatividade do positivo” (ADORNO,
2003, p.61-62), conforme, ainda segundo ele, faz Proust ao constituir sua obra de um
monólogo interior, estratégia avassaladora para o leitor, porque o coloca em um redemoinho
de sensações intimistas, subjetivas, do qual não consegue sair, porque o narrador também não
o consegue. Assim, o narrador, denominado, nessa conferência, sujeito literário,

[...] quando se declara livre das convenções da representação do objeto, reconhece


ao mesmo tempo a própria impotência, a supremacia do mundo das coisas, que
reaparece em meio ao monólogo. É assim que se prepara uma segunda linguagem,
destilada de várias maneiras do refugo da primeira, uma linguagem de coisa,
deterioradamente associativa, como a que entremeia o monólogo não apenas do
romancista, mas também dos inúmeros alienados da linguagem primeira, que
constituem a massa (ADORNO, 2003, p.62).

Sob a orientação dessas reflexões de Adorno sobre o ato de narrar em Proust, sobre o
problema que se dá na relação objetividade e subjetividade, pode-se inferir a diferenciação
feita entre o autor — aquele que assume a escrita do romance — e o narrador — uma voz
discursiva que é um elemento estético que traduz a linguagem da subjetividade e nela se
traduz.
Silviano Santiago, em seu artigo “O narrador pós-moderno” (SANTIAGO, 1989,
p.38), faz reflexões que usufruem de Benjamin e de Adorno, deslocando, com novos
36

enfoques, o narrador tratado por esses teóricos para a pós-modernidade. Faz isso perseguindo
a resposta para a questão: “Quem narra uma história é quem a experimenta, ou quem a vê? Ou
seja: é aquele que narra ações a partir de um conhecimento que passou a ter delas por tê-las
observado em outro?” (SANTIAGO, 1989, p.38).
Esclarece o estudioso que, “no primeiro caso, o narrador transmite uma vivência”
(SANTIAGO, 1989, p.38). Isso significa que há um tom de autenticidade naquilo que é
narrado. No segundo caso, o narrador “passa uma informação sobre outra pessoa”
(SANTIAGO, 1989, p.38), havendo repasses de experiência, não a transmissão dela. Afirma
Santiago que aquilo que está em jogo é, portanto, a noção de autenticidade que perpassa essas
vozes discursivas, para o que ele estabelece uma primeira hipótese:

O narrador pós-moderno é aquele que quer extrair a si a ação narrada, em atitude


semelhante à de um repórter ou de um espectador. Ele narra a ação enquanto
espetáculo a que assiste (literalmente ou não) da plateia, da arquibancada ou de uma
poltrona na sala de estar ou na biblioteca; ele não narra enquanto atuante
(SANTIAGO, 1989, p. 39).

Essa perspectiva teórica segue na contramão dos estudos de Benjamin no que se refere
à posição do narrador: no lugar da proximidade do objeto narrado, fazer valer um narrador
constituinte da beleza clássica (vivenciando-o e fazendo dele objeto utilitário, de sabedoria,
um ensinamento moral, por exemplo), “é o movimento de rechaço e de distanciamento que
torna o narrador pós-moderno” (SANTIAGO, 1989, p.39).
A partir desse entendimento, Santiago propõe uma segunda hipótese: “O narrador pós-
moderno é o que transmite uma ‘sabedoria’ que é decorrência da observação de uma vivência
alheia a ele, visto que a ação que narra não foi tecida na substância viva da sua experiência”
(SANTIAGO, 1989, p.40). Isso faria dele um verdadeiro ficcionista, já que sua tarefa seria a
de dar verossimilhança à autenticidade, de forma a construir, esteticamente, o real e o
autêntico.
Para dar sustentação a suas hipóteses sobre o narrador pós-moderno, o crítico analisa
alguns contos de Ediberto Coutinho, deixando claro que elas não recobrem todas as nuances
dessa categoria nessa condição de pós-modernidade. Assim, tomemos as reflexões sobre
“Sangue na praça” (COUTINHO, 1979, p.93-108), cujo narrador é também personagem. Ele é
um jornalista que se encontra com um romancista, Ernest Hemingway, para uma entrevista. O
conto faz do encontro e entrevista uma forma de problematizar a oscilação entre as duas
profissões e entre as formas de narrar peculiares de cada uma. Segundo relata Santiago, o
conto narra como o personagem Hemingway sofre pela duplicidade que vive entre ser
37

romancista e repórter, e o enredo, composto de uma entrevista, revela, paralelamente, a


mesma experiência de sofrimento, agora vivida pelo narrador que se quer repórter. Configura-
se ali um narrador interessado no outro, alguém que capta o mundo ao seu redor, uma câmera
que “filma” seres, comportamentos, experiências (de outros). E essa captação, assim, revela o
olhar do narrador e o revela, portanto, não em si mesmo, mas quanto ao seu fazer, quanto ao
ato de narrar, entretanto, um ato que evita a narração da própria vida, que faz isso por trás da
narração de outra vida. Essa é uma questão intrigante, porque ocorre a subtração da ação
narrada, de forma a criar “um espaço para a ficção dramatizar a experiência de alguém que é
observado e muitas vezes desprovido de palavra” (SANTIAGO, 1989, p. 44). Essa
consideração atrai uma outra, que, segundo Santiago, demonstra o mistério que envolve a
figura do narrador contemporâneo:

Subtraindo-se à ação narrada pelo conto, o narrador identifica-se com um segundo


observador — o leitor. Ambos se encontram privados da exposição da própria
experiência na ficção e são observadores atentos da experiência alheia. Na pobreza
da experiência de ambos se revela a importância do personagem na ficção pós-
moderna: narrador e leitor se definem como espectadores de uma ação alheia que os
empolga, emociona, seduz, etc. (SANTIAGO, 1989, p. 44).

Há, assim, um diálogo entre um narrador inexperiente e um leitor sobre a


incomunicabilidade da experiência de ambos, mediado pela palavra expressiva. O enredo
constitui-se de um pretexto para nele se traduzir a “experiência muda do olhar [que] torna
possível a narrativa” (SANTIAGO, 1989, p.45). Como o narrador não tem experiência como
tal, ele tateia nessa condição, sendo-lhe impossível impor-se como um ser de sabedoria.
Junto às performances de autoria e narrador, elucidadas até aqui nesse compêndio,
estão as de personagem, sobre as quais discorreremos, considerando sua formação estética e
sua contribuição para a composição da narrativa, seu papel por vezes acoplado à função de
narrador, sem adentrarmos em classificações por pouco contribuírem para nossos estudos.
Brandão e Pessoa (2001) definem as personagens como seres de ficção, um produto
puramente verbal que está “subordinado à voz do narrador, é uma miragem projetada pelo
olhar daquele que narra” (SANTOS; OLIVEIRA, 2001, p.30). Sendo então um ser de papel,
sua autonomia depende dessa outra voz discursiva, a do narrador, a quem cabe pôr em cena o
discurso das personagens, que, então, “vivem no enredo”, conforme palavras de Antônio
Candido (CANDIDO et al., 1981, p.53) Nessa vivência na trama, vão se definindo pela
distensão temporal do evento ou da ação, o que afirma Anatol Rosenfeld, ratificando que, com
elas, “a camada imaginária da ficção se adensa e se cristaliza” (CANDIDO et al., 1981, p.21).
38

Sobre o adensamento, Rosenfeld considera, referindo-se ao que ele denomina “grande


obra de arte”, que esta é “o lugar em que nos defrontamos com seres humanos de contornos
definidos e definitivos, em ampla medida transparentes, vivendo situações exemplares de um
modo exemplar (exemplar também no sentido negativo)” (CANDIDO et al., 1981, p.45).
Esses seres de papel encontram-se, como os humanos, em situações de valor moral, ético,
religioso, etc. Assim como os seres que não são de papel, entram em debates internos, vivem
a essencialidade da vida humana, do sublime ao grotesco. Ocorre que se apresentam assim de
forma a tornar transparente, evidente, essa essencialidade, atingindo uma validade universal
por meio da experiência estética em que estão dispostos, de forma que, por seu discurso e
ações, “o valor estético suspende o peso real dos outros valores (embora os faça ‘aparecer’ em
toda a sua seriedade e força); integra-os no reino lúdico da ficção, transforma-os em parte da
organização estética, assimila-os e lhes dá certo papel no todo” (CANDIDO et al., 1981,
p.47). Sendo assim, a personagem pode fugir a quaisquer estereótipos, pode deformar essas
moldagens, formá-las, problematizá-las, “resultado de um processo no qual se imagina um ser
que transita nas fronteiras do não-ser” (SANTOS; OLIVEIRA, 2001, p.28).
Reconhecidas em seu estado de semelhança e estranhamento, atuando no tempo e no
espaço, as personagens contribuem para a verossimilhança da narrativa, coerente e lógica em
suas condições de produção. O percurso pode ser feito sob a orientação de um narrador alheio
à personagem ou acoplado a ela, ou seja, o discurso enunciado pode ser articulado por uma
outra voz discursiva, ou essa voz pode se autoarticular, o que faz com que varie o campo
perceptivo de impressão da subjetividade quanto à matéria narrada.
Assim, de acordo com os papéis representados, a personagem ora é alguma figura
secundária, ora uma testemunha discreta, ou, ainda, o protagonista. Em qualquer dessas
funções, pode corresponder à voz do narrador. Essas relações personagem/narrador estão no
bojo da problematização sobre o sujeito da narração, seu modo de narrar, sua capacidade de
intervenção, de deter o controle da narrativa. Pensando o texto como

[...] a superfície de encontros e cruzamentos em que todas as vozes são simuladas —


livres e nômades —, assiste-se à agonia da linguagem idealizada e à dissolução
daquele que tem a pretensão de detê-la. Não são estáveis nem o que é dito, nem
aquele que diz: a subjetividade é uma forma de imaginação (SANTOS; OLIVEIRA,
2001, p. 10).

Essas pequenas amostragens de estudos teóricos permitem concluir que (guardando-se


as aproximações e os distanciamentos entre essas reflexões) autor, escritor, narrador e
personagem são sujeitos ficcionais, categorias cujo fio delimitador pode ser bastante tênue.
39

Todos se compõem textualmente, seres que o leitor encontra nos discursos presentes na trama.
Trata-se de perfis literários, que podem (ou não) ser o sujeito da enunciação, que podem (ou
não) desdobrar-se em personagem, passando a sujeito do enunciado, ou havendo um eu que
narra e um eu que é narrado; que pode ser multiplicado ainda caso a narração ocorra em
tempo diferente do tempo narrado... No mundo da ficção (“lembrando que ficção não é
sinônimo de falsidade, mas de suspensão do limite que separa os conceitos de falso e
verdadeiro”), “essas categorias manifestam-se como máscaras que se trocam, criações
mutáveis de nossos desejos. Narrativas de nós mesmos” (SANTOS; OLIVEIRA, 2001, p.19)
Na contemporaneidade, elas buscam traduzir uma espécie de realismo do ser, “em que
a palavra realismo designa não mais a descrição objetiva do universo externo ao sujeito, mas
o esboço da maneira como esse universo se transforma em subjetividade” (SANTOS;
OLIVEIRA, 2001, p. 29).
Como as suas possibilidades de atuação ganham novas formas nas obras que são
objeto deste estudo, a nomenclatura usada relativamente às vozes discursivas tentará
acompanhar essas novas formas. Tentaremos refletir sobre as funções que ocupam autor,
escritor, narrador e personagem, de acordo com a forma como se revestem no decorrer das
tramas, usufruindo de conceitos presentes nos estudos teóricos aqui apresentados, embora sem
que esses mesmos conceitos bastem, pois há contornos para essas categorias que fazem
movimentos de aproximação, mas também de afastamento. Como se verá, as fronteiras em
que se delineiam esses papéis não são bem definidas, pelo contrário, encenam-se
esteticamente como movediças e escorregadias, o que se refletirá em sua descrição ao longo
das análises das obras.

2.2 Considerações sobre um tempo

E, afora este mudar-se cada dia,


Outra mudança faz de mor
espanto:
Que não se muda já como soía.
Camões
40

O mundo contemporâneo tem sido objeto de reflexão de vários filósofos, divergentes e


confluentes em vários aspectos. Faremos aqui um breve cotejo entre algumas ideias de quatro
deles —Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-modernidade, escrito em 1992; Zygmunt
Bauman, em Modernidade líquida, de 2000; Lipovetsky, em Os tempos hipermodernos,
publicação de 2004; e Giorgio Agamben, em O que é o contemporâneo? E outros ensaios,
produção de 2007 —, fundamentais para a análise das vozes presentes em narrativas
contemporâneas, tendo em vista que elas estão sendo construídas acopladas a certas condições
sócio-históricas.
Stuart Hall (2006) escreve sua obra A identidade cultural na pós-modernidade na
última década do século XX, trazendo-nos informações que concorrem para a compreensão da
contemporaneidade. O autor faz um passeio pela modernidade, apresentando seu histórico,
sua configuração, de modo a, comparativamente, demonstrar os aspectos que caracterizam a
pós-modernidade ou a modernidade tardia, expressões que funcionam como uma tentativa de
nomear esse momento histórico e, assim, dar-lhe uma representação.
Hall (2006) apresenta três concepções que norteiam sua pesquisa e descrevem a
trajetória do homem nos últimos séculos: a ideia de sujeito do Iluminismo, a de sujeito
sociológico e a de sujeito pós-moderno.
A primeira delas concebe o homem como um ser centrado, dotado de razão, orientado
pelo individualismo. É resultado “do colapso da ordem social, econômica e religiosa
medieval. No movimento geral contra o feudalismo, houve uma nova ênfase na existência
pessoal do homem, acima e além de seu lugar e sua função numa rígida sociedade
hierárquica” (WILLIAMS apud HALL, 2006, p. 28). Trata-se do sujeito cartesiano.
A segunda reflete uma interação entre o homem e a sociedade, transitando entre o seu
interior e o seu exterior, entre o mundo pessoal e o público, de forma que significados e
valores alinham esse homem ao mundo cultural em que se inseria, estabilizando-o. Ele é fruto
do fato de que as sociedades modernas foram se tornando mais complexas, com
comportamentos de formato mais coletivo e social, construindo um sujeito estruturado, com
forte sensação do devir, algo presente até a segunda metade do século XX. Trata-se do sujeito
sociológico.
No entanto, conflitando com esse homem social, começa a surgir uma figura
inadaptada à estrutura, um “sujeito isolado, exilado ou alienado, colocado como pano-de-
fundo da multidão ou da metrópole anônima e impessoal” (HALL, 2006, p. 32). Emerge a
terceira concepção apresentada por Hall, a de um ser que foi se tornando fragmentado,
“resultado de mudanças estruturais e institucionais” (HALL, 2006, p. 12). Fruto de uma série
41

de rupturas — o pensamento marxista; a descoberta do inconsciente por Freud; os estudos da


linguística estruturalista, com Ferdinand de Saussure; os estudos sobre a genealogia do sujeito
moderno, de Foucault; o feminismo —, esse novo homem se indispôs com o mundo de
origem e adentrou com seu próprio deslocamento a conjuntura vigente. Não se trata de
ideários lineares, pelo contrário, os movimentos colocavam: em oposição, a política liberal
capitalista e a estalinista; sob suspeita, tanto as dimensões objetivas quanto as subjetivas; em
questão, as formas burocráticas de organização; mas, em defesa, a espontaneidade política.
Também refletiam o enfraquecimento da classe política e as associações de massa a ela
vinculadas e apelavam para a identidade social dos segmentos que existiam — o feminismo,
às mulheres; a política social, aos gays e lésbicas; as lutas raciais, aos negros; etc. Além disso,
colocavam em discussão tanto a distinção entre o público e o privado quanto as noções de
família, sexualidade, divisão doméstica de trabalho. Enfim, politizaram a subjetividade, a
identidade e o processo de identificação nas relações de gênero, de família, de trabalho, entre
outros.
A complexidade do quadro amplia-se, caso se levem em consideração as relações de
espaço, entre o regional e o globalizado, que geram consequências diretas na formação das
identidades. Ainda segundo o sociólogo, as identidades nacionais foram construídas
discursivamente, não como categorias biológicas, etnográficas ou genéticas, por exemplo.
Esse fato possibilitou que essas representações entrassem em colapso no decorrer do século
XX, com o advento da globalização, cujos processos atravessaram as fronteiras nacionais,
“integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-
tempo, tornando o mundo, em realidade e em experiência, mais interconectado” (HALL,
2006, p. 67). As implicações disso são o distanciamento da concepção sociológica clássica da
sociedade que havia sido construída, a compressão das distâncias e de escalas de tempo, o que
incide sobre os conceitos e manifestações de identidades culturais: as nacionais, em
desintegração; as locais, em reforço; novas, híbridas, em ascensão. Nesse novo contexto, os
lugares permanecem fixos, mas podem ser percorridos rapidamente, promovendo um
entrecruzamento de culturas. Isso significa a fragmentação de códigos culturais e a
concomitante tendência à homogeneização cultural.
Se fronteiras são dissolvidas e continuidades, rompidas, tradições e hierarquias da
identidade são questionadas. É no contexto que se faz presente um homem fragmentado,
deslocado, descentrado.
42

Esse intrincado conjunto Zygmunt Bauman (2001) denomina de “modernidade


líquida”, título de sua obra publicada em 2000. Segundo ele, o período se contrapõe à
modernidade, período em que

[...] o tempo tem história, tem história por causa de sua “capacidade de carga”,
perpetuamente em expansão — o alongamento dos trechos do espaço que unidades
de tempo permitem “passar”, “atravessar”, “cobrir” — ou conquistar. O tempo
adquire história uma vez que a velocidade do movimento através do espaço
(diferentemente do espaço eminentemente flexível, que não pode ser esticado e que
não encolhe) se torna uma questão do engenho, da imaginação e da capacidade
humanas (BAUMAN, 2001, p.15-16).

Bauman (2001) afirma ter havido um traço permanente na modernidade, o


derretimento dos sólidos, expressão que metaforiza a tarefa de construir uma nova ordem para
substituir velhas ordens, já não aceitas. Esse traço tomou nova direção, sendo ela “a
dissolução das forças que poderiam ter mantido a questão da ordem e do sistema da agenda
política” (BAUMAN, 2001, p. 12). Derretem-se agora “os elos que entrelaçam as escolhas
individuais em projetos e ações coletivas — os padrões de comunicação e coordenação entre
as políticas de vida conduzidas individualmente, de um lado, e as ações políticas de
coletividade humanas, de outro” (BAUMAN, 2001, p. 12).
Cinco importantes categorias são objeto de reflexão do autor para demonstrar o
“derretimento”, associando-as sempre ao capitalismo: emancipação, individualidade,
tempo/espaço, trabalho e comunidade. Interessa-nos sobremaneira para nossos estudos a
individualidade.
Para ilustrar o momento do modernismo, o polonês escolhe discorrer sobre o fordismo,
considerando-o a autoconsciência da sociedade moderna em sua fase “pesada”, “volumosa”,
ou “imóvel” e “enraizada”, “sólida”. Esse modo de capitalismo eficiente conseguiu criar
defensores e também conseguiu mantê-los dentro de seus muros, por meio de alguns
artifícios, por exemplo, com discursos de promessa que, em verdade, não se cumpriria na
realidade, mas os manteria na ilusão. A notável frase de Ford, “quero que meus trabalhadores
sejam pagos suficientemente bem para comprar meus carros”, conseguiu fazer com que a
rotatividade da força de trabalho enfrentada pela empresa se fixasse à linha de produção,
prendendo-os a uma corrente invisível física, emocional, geográfica. São, portanto, seres
ancorados na inteireza, no centramento, na fixidez.
Hoje, no entanto, “o capital viaja leve”, e o trabalho, embora permaneça tão
imobilizado quanto no passado, “o lugar em que ele imaginava estar fixado de uma vez por
todas perdeu sua solidez de outrora; buscando rochas, as âncoras encontraram areias
43

movediças. Alguns dos habitantes do mundo estão em movimento; para os demais, é o mundo
que se recusa a ficar parado” (BAUMAN, 2001, p. 70).
Metaforizando a questão, o autor compara passageiros do navio “Capitalismo pesado”
com passageiros do navio “Capitalismo leve”. Os primeiros confiavam nos membros da
tripulação e no destino certo, por isso aprendiam as regras que lhes eram impostas, com
reclamações pontuais apenas relativamente ao comandante, responsável por toda a viagem.
Em contrapartida, os segundos descobrem que não há piloto, que não há informações sobre o
caminho a ser percorrido. Seu estado é de horror, portanto. Eles são seres solitários em sua
rota, o que se confirma pela frase de Margaret Thatcher, “não existe essa coisa de sociedade”
(BAUMAN, 2001, p. 76). Assim, tudo é produzido pelo indivíduo e de sua responsabilidade,
o que resulta nas preocupações de âmbito privado, individual, e não nas de âmbito coletivo.
Acentua-se, então, a valorização do prazer, e não do direito e do dever.
Várias são as decorrências dessas novas perspectivas. Podemos ilustrá-las pela relação
exemplo-autoridade, em que o exemplo é mais importante que a autoridade. Isso é notório
quanto às celebridades: poucas delas têm autoridade suficiente para que seu discurso seja
digno de atenção, no entanto, estrelam programas de entrevistas compulsivamente vistos por
pessoas ávidas de aconselhamento. No âmbito coletivo, elas não exercem nenhuma influência,
mas, no pessoal, parecem dar conta das necessidades. No processo, muito do que seria
indizível, porque vergonhoso, passa a ser motivador e algo de que se orgulhar. Dramas
privados são encenados, expostos e assistidos publicamente; os dramas públicos, de direito do
público, perdem, assim, valor. Exemplos ganham força, e lideranças a perdem: “um lugar sob
os refletores é um modo de ser por si mesmo, que estrelas do cinema, jogadores de futebol e
ministros de governo compartilham em igual medida” (BAUMAN, 2001, p. 84-85), de tal
forma que “o modo como as pessoas individuais definem individualmente seus problemas
individuais e os enfrentam com habilidades e recursos individuais é a única ‘questão pública’
remanescente e o único objeto de ‘interesse público’” (BAUMAN, 2001, p. 74).
“Procurar exemplos, conselho e orientação é um vício: quanto mais se procura, mais
se precisa e mais se sofre quando privado de novas doses da droga procurada. Como meio de
aplacar a sede, todos os vícios são autodestrutivos; destroem a possibilidade de se chegar à
satisfação” (BAUMAN, 2001, p. 85). Assim, o consumismo de modelos vai tomando corpo e
apresentando novas formas. Cresce algo, então, que melhor o substancializa: a atividade de
comprar, que esquadrinha possibilidades, permite sentir, tocar, comparar custos, escolher. A
compulsão, dessa forma, se agrava porque, pelo ato de comprar, a competência pessoal
continua sendo exercitada e assegurada:
44

[...] vamos às compras pelas habilidades necessárias ao nosso sustento e pelos meios
de convencer nossos possíveis empregadores de que as temos; [...] pelos meios de
extrair mais satisfação do amor e pelos meios de evitar nossa ‘dependência’ do
parceiro amado ou amante; pelos modos de obter o amor do amado e o modo menos
custoso de acabar com uma união quando o amor desapareceu e a relação deixou de
agradar; [...] pelos mais poderosos sistemas de som e as melhores pílulas contra a
dor de cabeça (BAUMAN, 2001, p. 87-88).

Tudo isso de forma a, mais que expressar o desejo, expressar o próprio indivíduo por
meio de suas posses. E a crescente rapidez com que isso se faz torna a palavra “desejo”
obsoleta, substituída por “querer”, vocábulo que ilustra o extremo da libertação do princípio
do prazer, porque o imediato é resolvido. O desejo implica um processo; o querer implica a
relação concomitante entre oferta e demanda, com toda a infantilidade que a situação sugere.
Bauman cita Jeremy Seabrook para dar conta de demonstrar a obsolescência imediata
que tem acometido o mundo contemporâneo:

O capitalismo não entregou os bens às pessoas; as pessoas foram crescentemente


entregues aos bens; o que quer dizer que o próprio caráter e sensibilidade das
pessoas foi reelaborado, reformulado, de tal forma que elas se agrupam
aproximadamente... com as mercadorias, experiências e sensações... cuja venda é o
que dá forma e significado à sua vida (SEABROOK apud BAUMAN, 2001, p. 100).

Tudo isso é compatível com um mundo em que as coisas instáveis são a matéria-prima
das identidades, essas que são instáveis porque são orientadas pela sedução e, portanto, pela
oscilação promovida pela gama de escolhas à volta, que não levam à satisfação, mas apenas
ao imediatismo que exige o querer. Esse excesso de oportunidades promove desestruturação e
desarticulação, porque despreza qualquer ato processual, que instigue construção e conexão e,
portanto, tempo.
É em meio a esse contexto que obras foram produzidas no Brasil, com vozes que o
revelam e que se revelam por meio dele. Seu discurso e sua trajetória explicam um tempo e
são explicadas por ele.
Gilles Lipovetsky, um tanto divergente de Bauman, faz descrição de fenômenos
paradoxais, de forma a refutar posições apocalípticas (mas também as idílicas) sobre esse
mesmo tempo histórico, e põe em xeque a expressão pós-modernidade.
Defendendo o uso de outra denominação, hipermodernidade, o filósofo faz ecoar a
imagem de uma balança cujos pesos que a equilibram são os paradoxos. Assim, ele
contrapõe-se à ideia que designava como pós-modernidade “ora o abalo dos alicerces
absolutos da racionalidade e o fracasso das grandes ideologias da história, ora a poderosa
45

dinâmica de individualização e de pluralização de nossas sociedades” (LIPOVETSKY, 2004,


p. 51), contestando a ideia de que “estávamos diante de uma sociedade mais diversa, mais
facultativa, menos carregada de expectativas em relação ao futuro” (LIPOVETSKY, 2004,
p.51), o que se vinculava à percepção de uma temporalidade dominada pelo precário, pelo
efêmero, pelo aqui-agora. Os elementos promotores dessa compreensão de mundo tratavam
da expansão do consumo e da comunicação de massa; do enfraquecimento das hierarquias; do
domínio da individualização; do hedonismo e do psicologismo; da perda da crença em um
futuro ideal e revolucionário; do descontentamento ante a política.
De onde vem, então, o incômodo ante o uso da denominação pós-modernidade, se
esses fundamentos são perfeitamente detectáveis? Lipovetsky responde a essa questão,
afirmando que eles não traduzem uma superação da modernidade (a ponto de situarem algo
como pós-modernidade), mas anunciam uma modernidade de novo formato, de novo gênero,
tomada por extremos, do que daria mais conta a terminologia “hipermodernidade’, cujo
significado se materializa em um movimento de fuga para adiante, em um desenfreamento da
modernidade, em uma proliferação da mercantilização junto a uma desregulamentação
econômica, tudo dominado pelo que o filósofo chama de “ímpeto técnico-científico”
(LIPOVETSKY, 2004, p.53).
Dá-se, assim, a compreensão do momento como o auge da modernidade, concretizada
“no liberalismo generalizado, na mercantilização quase generalizada dos modos de vida, na
exploração da razão instrumental até a ‘morte’ desta, numa individualização galopante”
(LIPOVETSKY, 2004, p.53). A situação é tão culminante, que, inclusive, as classes e as
culturas de classes se animam em benefício do princípio da individualidade autônoma, de
maneira que a modernidade moderniza a si própria, de forma a, permanecendo nas lógicas
modernas do mercado, reformulá-las. O Estado recua; a religião e a família se privatizam; e a
sociedade de mercado se impõe: “para disputa, resta apenas o culto à concorrência econômica
e democrática, a ambição técnica, os direitos do indivíduo” (LIPOVETSKY, 2004, p.54). Se,
antes, na modernidade, já vivíamos sob a diretriz do excesso, na hipermodernidade, o excesso
se exacerbou, algo verificável, por exemplo, na arquitetura de consumo, os shoppings e os
hipermercados, que promovem a sensação de necessidade excessiva. Também o comprovam
as atitudes individuais, como o doping, os esportes radicais, os assassinos em série, a bulimia
— todas calcadas no extremo. Entretanto, segundo o autor, esses exemplos também
apresentam outra condição, não se trata de uma extremidade, mas de duas, paradoxais — o
esporte radical, por exemplo, algo pró-saúde, se dá concomitantemente ao uso de
anabolizantes.
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Ajusta-se a isso uma visão temporal presentista, uma postura determinada menos pelos
insucessos da modernidade político-econômica, como as duas guerras mundiais, que pelo
simultâneo surgimento de novas paixões e sonhos:

No cerne do novo arranjo do regime do tempo social, temos: (1) a passagem do


capitalismo de produção para uma economia de consumo e de comunicação de
massa; e (2) a substituição de uma sociedade rigorístico-disciplinar por uma
“sociedade de moda” completamente reestruturada pelas técnicas do efêmero, da
renovação e da sedução permanentes. Dos objetos industriais ao ócio, dos esportes
aos passatempos, da publicidade à informação, da higiene à educação, da beleza à
alimentação, em toda a parte se exigem tanto a obsolescência acelerada dos modelos
e produtos ofertados quanto os mecanismos multiformes da sedução (novidade,
hiperescolha, self-service, mais bem-estar, humor, entretenimento, desvelo,
erotismo, viagens, lazeres) (LIPOVETSKY, 2004, p.60).

Esses condicionantes da hipermodernidade são vistos pelo filósofo como altamente


positivos, pois revelam estados de sedução, de júbilo, em virtude da neofilia. O êxtase do
presente não se daria, então, pela ausência de sentido ou de valores, mas pelo excesso de
hedonismo, contra a atomização e a despolitização, contra o conformismo e a passividade
consumistas, num otimismo vinculado ao pessoal, ao subjetivo, sem preocupações com o
devir.
Vários fatores contribuem para essa hipermodernidade. Um deles é a tecnologia:
informações em tempo real tornam obsoletas a espera e a lentidão, dando lugar à urgência.
Em contrapartida, essa emergência de tudo trouxe a sensação de insegurança: notícias do
terrorismo, de guerras, de epidemias são trazidas rapidamente para dentro das casas e assim
presentificadas. Consequentemente, “uma exigência generalizada de proteção”
(LIPOVETSKY, 2004, p.64) passa a dominar a sociedade. Ilustra isso a obsessão pela saúde,
pela defesa das conquistas sociais, pela necessidade de preservação do planeta. Por outro lado,
o sentimento de descontração, associado ao de autonomia, demonstrado nas atitudes de
individualização da vida, do culto ao eu, resultado do desconcerto moderno, é, por causa da
sensação de insegurança, substituído pelo fardo de temer as sujeições do presente. Trata-se de
um “composto paradoxal de frivolidade e ansiedade, de euforia e vulnerabilidade”
(LIPOVETSKY, 2004, p. 65).
De acordo ainda com Lipovetsky (2004), no presentismo, essa exigência generalizada
de proteção se articula a um tipo de futurismo, de “uma cultura da prevenção e de uma ética
do futuro” (LIPOVETSKY, 2004, p.68), pois, tão ávidos do presente, os cidadãos tomam
consciência dos problemas vigentes, alimentam-se de um alerta que os condiciona para o
futuro, cujos exemplos podem ser a necessidade de haver o ecodesenvolvimento, a
47

preocupação com as aposentadorias e com a velhice. Assim, elementos antitéticos, como


individualidade e coletividade, consumismo e preservação, o instantâneo e o projetivo, o
usufruto e a prevenção, são conciliados em um paradoxo que garante o presente e preserva o
futuro, mesmo que esse futuro seja “conjugado na primeira pessoa” (LIPOVETSKY, 2004,
p.74). E nada disso, segundo o estudioso, tem a ver com desesperança, o que ele comprova
por meio da indicação de um rol de práticas do cotidiano: “a persistência da instituição do
matrimônio, a revalorização da fidelidade, a vontade de contar com relações estáveis na vida
amorosa”, seguido de uma indagação:

Por que o amor permaneceria um ideal, uma aspiração de massa, se não, ao menos
em parte, por causa do valor conferido à duração que associam a ele? E como
compreender a vontade de ter filhos, tudo menos caduca, sem supor o investimento
emocional de longo prazo? Fica evidente que o instante puro está longe de ter
colonizado por completo as existências privadas, pois a sociedade hipermoderna dá
nova vida à exigência de permanência como contrapeso ao reinado do efêmero, tão
causador de ansiedades (LIPOVETSKY, 2004, p. 74).

Essas experiências ocorrem, entretanto, sob pressão temporal: desfrutar o presente?


Privilegiar o futuro? Assegurar a longevidade por meio de sacrifícios no presente? Carreira ou
filhos? E o que fazer ante a promoção acentuada da efemeridade pela mídia? Tem havido
exigências “de resultados a curto prazo, uma corrida pela competição à custa do importante,
da ação imediata à custa da reflexão, do acessório à custa do essencial” (LIPOVETSKY,
2004, p.77), o que resulta em uma sensação de estresse recorrente, com a presença acentuada
de distúrbios psicossomáticos. Novos paradoxos se apresentam no cenário, a exemplo: se uns
não têm tempo suficiente, outros o têm de sobra; se há o indivíduo empreendedor, há também
o esmagado, à sua revelia, pela ociosidade. Essa amostra pode parecer revelar uma
desigualdade social, entretanto, afirma Lipovetsky, o que ocorre é um poder maior de
organização individual da vida, porque ela põe em evidência a “destradicionalização-
desinstituicionalização-individualização da relação com o tempo, fenômeno geral que,
transcendendo as diferenças de classes ou de grupos, extrapola em muito o mundo dos
‘vencedores’” (LIPOVETSKY, 2004, p.78). O que move essa extrapolação é o desejo de
renovação constante tanto do sujeito quanto do tempo em que ele se insere.
Assim, o que se tem visto não é, por exemplo, uma resposta de aceite à mídia que
submete, ao tempo do prazer apenas, nem o encerramento no presente ou do próprio indivíduo
em si mesmo. Diferentemente, de forma paradoxal, se o sujeito pretende garantir a
longevidade, não o faz (e nem tem como fazê-lo) apenas para si, mas para todos, à medida
que a pesquisa científica, para garanti-la, por exemplo, é solidarizada. Ocorre, assim, uma
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crescente conscientização dos indivíduos, uma “crono-reflexividade” (LIPOVETSKY, 2004,


p.77), que traduz um desejo intenso de mudança.
Várias práticas são apresentadas como ilustrações desse desejo de renovação, entre
elas o consumismo, o sensualismo, a revisitação ao passado, as espiritualidades. A primeira,
por exemplo, revela uma recusa à repetitividade, à rotina das sensações: “É menos a negação
da morte e da finitude do que a angústia de se fossilizar, de repetir, de não mais sentir”
(LIPOVETSKY, 2004, p.80). A última revela, vista pelo paradoxo entre o processo de
racionalização — a queda da ascendência da religião sobre a vida social —e a exigência de
uma religiosidade — o pertencimento a uma linhagem crente. Os exemplos brotam do próprio
cosmo hipermoderno: gerador de insegurança, de confusão quanto à referência em que se
pautaria o indivíduo, da extinção de utopias, da ruptura do sujeito com seu meio social,
provoca a necessidade de instalar-se no tempo, nem que seja pela compra de um produto que
assim o determine; também a necessidade de segurança, de identidade comunitária, para o que
as religiões servem muito bem.
A hipermodernidade se configura no desejo humano de uma condição de liberdade e
igualdade, tendo o sujeito o direito ao reconhecimento pelas suas diferenças individuais,
sociais e históricas, no nível do hiper-reconhecimento. Nesse campo de recognição,
Lipovetsky insiste em que nada há de apocalíptico na composição paradoxal em que se
instaura o momento presente, pois nem todo

[...] patrimônio ético-político foi erradicado: permanecem válvulas de escape


axiológicas que nos impedem de endossar a interpretação radical do niilismo
moderno. Disso são testemunho, em especial, os protestos e compromissos éticos, a
nova consagração dos direitos humanos, que os erige em centro de gravidade
ideológica e em norma organizadora onipresente das ações coletivas. Não é verdade
que o dinheiro e a eficiência se tornaram os princípios e os fins últimos de todas as
relações sociais. Do contrário, como entender o valor conferido ao amor e à
amizade? Como explicar as reações de indignação em face das novas formas de
escravidão e de barbárie? (LIPOVETSKY, 2004, p. 99).

O último entre os pensadores que elegemos como fonte para nossas reflexões sobre as
vozes discursivas que se manifestam na literatura contemporânea é Giorgio Agamben, que,
em O que é o contemporâneo? E outros ensaios, produção de 2007, parte de duas questões
para desenvolver suas considerações: “De quem e do que somos contemporâneos? E, antes de
tudo, o que significa ser contemporâneo?” (AGAMBEN, 2007, p.57). O filósofo italiano
instrui sobre uma norma para que sejam respondidas essas perguntas: a leitura de um texto, de
qualquer texto, exige que o leitor se coloque contemporaneamente ao texto lido. Essa
instrução tem a ver com o fato de que, no decorrer de sua explanação, ele passará por alguns
49

autores e, para entendê-los, convida para uma equiparação a eles, no tempo em que sua
produção se inscreve. Ou seja, é preciso ser contemporâneo deles para entendê-los.
Entre aqueles dos quais usufrui, está Nietzsche, que, ao final do século XIX, fazendo
estudos sobre o nascimento da tragédia grega, publica as “Considerações intempestivas”,
“com as quais quer acertar contas com o seu tempo, tomar posição em relação ao presente”
(AGAMBEN, 2007, p. 57). Na fala do filósofo alemão, “o contemporâneo é o intempestivo”
(AGAMBEN, 2007, p.58), afirmativa que consiste numa tomada de posição em relação ao seu
tempo presente, porque “procura compreender como um mal, um inconveniente e um defeito,
algo do qual a época justamente se orgulha, isto é, a sua cultura histórica, porque eu penso
que somos todos devorados pela febre da história e deveremos ao menos disso nos dar conta”
(AGAMBEN, 2007, p.58). Sua posição é a de trilhar uma desconexão e uma dissociação, pois
contemporâneo é o que não coincide, não se harmoniza com o seu tempo, sendo, assim,
anacrônico; e, concomitante a isso, por esse movimento de inatualidade, é alguém capaz de
sentir e apreender seu tempo porque dele toma certa distância que o habilita a essa
capacidade. Aderência e descolagem são os fatores que permitem que, pertencendo
irrevogavelmente a um tempo, seja possível tomar dele distância, para, assim, ser possível
analisá-lo.
Seguindo essa trilha nietzschiana, e, cremos, dando-lhe mais intempestividade,
Agamben (2007) propõe outra definição para o contemporâneo, especialmente associada ao
poeta, construída pela noção de comprometimento que este deve ter com seu tempo. O poeta é
“aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”
(AGAMBEN, 2007, p.62). Para estar em meio às trevas, o poeta exige de si a ação de
neutralizar as luzes, que, em verdade, não iluminam, mas cegam, impedindo o indivíduo de
ver a vida como ela é, ou seja, aquilo que está nas sombras, oculto sob o excesso de luzes.
Isso é o que cabe ao poeta, o que é de sua função; sua singularidade, o que o diferencia de
outros orientados por uma luz que cega é vasculhar a escuridão e dela tirar sua matéria de
carpintaria.
Para compor esse pensamento, Agamben (2007) bebe na neurofisiologia, cujos estudos
demonstram que o escuro não é ausência de luz, mas a desinibição de células periféricas
existentes na retina. Portanto, assim como a luz, a escuridão está condicionada ao indivíduo,
potencializada de acordo com a ação desse indivíduo para percebê-la e apreendê-la.
Na sequência do caminho de reflexão, o professor italiano faz analogias tomando
como referência a percepção física das trevas, da noite, com seus corpos luminosos: “No
universo em expansão, as galáxias mais remotas se distanciam de nós a uma velocidade tão
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grande, que sua luz não consegue nos alcançar. Aquilo que percebemos como o escuro do céu
é essa luz que viaja velocíssima até nós e, no entanto, não pode nos alcançar, porque as
galáxias das quais provém se distanciam a uma velocidade superior àquela luz (AGAMBEN,
2007, p. 65). E continua: “Perceber no escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e
não poder fazê-lo, isso significa ser contemporâneo. Por isso os contemporâneos são raros”
(AGAMBEN, 2007, p. 65).
Então, a luz com a qual lida o poeta não é aquela que ilumina, mas a que foge à
iluminação, aquela que tem um presente inapreensível, pois, sendo meta, vem do passado e se
projeta para um presente que se situa em um futuro. Ao se materializar, de imediato, vira
passado, um novo passado. Assim, como as galáxias, o presente tem origem em um passado,
no imemorial, um histórico que o projeta. O contemporâneo está, portanto, em um presente
que não existe.

Isso significa que o contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o escuro
do presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele que, dividindo e
interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com
os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de citá-la segundo uma
necessidade que não provém de maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma
exigência à qual ele não pode responder (AGAMBEN, 2007, p. 72).

Desconfortado, inquirindo um presente projetado pelo passado e que é inapreensível, o


contemporâneo não pode se ver livre do desconforto. Ele é tomado pela exigência de assim se
postar, há uma imposição para que ele perceba o escuro do presente; nesse escuro, não lhe
escapa a luz já dissolvida. Também lhe é imposto entender a segmentação crítica do tempo e
entender essas segmentações transpondo-se para cada uma delas, estando dentro de cada
tempo, percebendo em cada um deles o seu escuro e a luz que é invisível para os olhos. É-lhe
intrínseco ler meticulosamente as trevas do passado, de forma a captar o relance de luz que
dali se projeta, eternamente escapável.
Dessa forma, são raros os poetas, seres de coragem, segundo Agamben, porque, além
de atuarem mantendo fixo seu olhar no escuro da época, também devem perceber nesse
escuro uma luz, mas essa luz, fugaz, foge ao seu tempo, distanciando-se infinitamente. A
sensação do poeta é, então, a da constante falta — seu presente é inalcançável, porque sua
condição é a da inexistência. Isso se agrava porque a luminosidade que o cerca, essa em
relação à qual o poeta é anacrônico, é tomada de fraturas, situações que aniquilam a própria
época. Entretanto, não lhe é possível fugir do tempo e seus incômodos, porque, em sua
função, faz-se preciso paradoxalmente rejeitá-los, porém compreendê-los e ainda repassar
51

essa compreensão. Assim, desalojado de seu tempo, tem a missão de desalojar outros homens,
fazê-los rejeitar as fraturas de seu tempo e enxergar a luz que se esconde nas trevas. E isso
ainda retomando os desalojados de outros tempos, para os quais viaja e para cuja
compreensão precisa também neles se sentir desalojado, forma de compreender seu presente.
O tempo contemporâneo, sendo cronológico, se faz escapar dessa cronologia, tal qual
um estilista (outra analogia do Agamben) que, em lapso de percepção, apreende um lance
estético e, em um lapso de tempo, lança um lapso de moda, lança algo que deverá estar na
moda, mas nunca é da moda, porque sua construção se dá em um milésimo de um tempo não
delimitado, impermanente. É de espasmos que se define o novo estilo: aquele em que o
desenhista concretiza a ideia, aquele em que a alfaiataria confecciona o desenho, aquele em
que se dá o momento do desfile, aquele em que se dá a aceitação efêmera da plateia do que
está posto como na moda. Nesses espasmos, aquilo que será passa a ser um presente
inapreensível.

2.3 A construção tensa do narrador

Mas regresso devagar ao mundo que me rodeia.


Sei que há uma fome quase criminosa no meu gesto, mas que importa?
Lúcio Cardoso

A epígrafe acima abre as cortinas da obra A passagem tensa dos corpos, de Carlos de
Brito e Mello (2009).
Pistas do estranhamento que fará a composição do romance são dadas pela voz de
Lúcio Cardoso: 1) alguém regressa; o uso da palavra “regresso” permite deduzir que alguém
estava fora; no entanto, esse que regressa está no mundo que o rodeia; 2) o gesto de regressar
é associado à fome; 3) essa fome é adjetivada: quase criminosa; 4) não importa que o regresso
seja um ato quase criminoso.
Ao adentrar na obra, quando então se depara com um enredo carregado de
estranhamentos esteticamente postos e que vão ao encontro da epígrafe, o leitor toma contato
com um narrador que é um ser quase incorpóreo. Ele almeja retornar à vida, e, para isso, há
uma condição, que não se sabe imposta por quem (por si mesmo?): tomar para si a tarefa de
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contabilizar os mortos de Minas Gerais. Um último registro de um óbito dará a ele a


corporeidade almejada, o que significa que ele deixará de ser um narrador, cuja função
(maldita, uma condenação, segundo Adorno (2003), — de transformar a realidade sob sua
condição de narrador, portanto, sob seu olhar e existência, emancipando-se do objeto), ele
teme ser obrigado a assumir para sempre, conforme, em certa ocasião, ele avisa a um
personagem: “Mais um pouco de reclusão e abstinência de alimento, e você estará condenado
a se tornar um narrador” (BRITO E MELLO, 2009, p. 101).
A descrição dessa voz discursiva “quase incorpórea” deve-se, de início, ao fato de que
ela se constitui de apenas uma língua, forma metonímica que lhe permite, como única ação, a
emissão da fala: “Eu reuni os mortos em uma longa listagem que, por inaptidão minha, não
foi à página. Sou impedido de escrever. Oral, minha listagem mantém o registro de todas as
mortes que acompanhei” (BRITO E MELLO, 2009, p. 20). O depoimento implica a existência
de alguém que se nega a potencializar o narrador para narrar sua relação com a realidade, que
o impede, como afirma o próprio narrador, de escrever. Conforme trata Adorno, a negação
dessa capacidade se dá pela categoria autor, que o faz esteticamente, como “um mandamento
da própria forma, um dos meios mais eficazes para atravessar o contexto do primeiro plano e
expressar o que lhe é subjacente, a negatividade do positivo” (ADORNO, 2003, p. 61-62).
Temos aqui anunciado o propósito da obra — narrar a impotência de instrumentalizar o
narrador para assumir as coordenadas da obra —, cuja encenação se dá pela configuração de
uma narrativa à revelia da autoria e do próprio narrador, conforme passamos a ver.
Essa estética vai aparelhando os vários capítulos, como os que se constituem dos
registros que o narrador arrola, na forma de uma composição oral, conforme ele nos conta no
trecho acima destacado. São anotações curtas e adequadas à oralidade pertinente a um ser que
é apenas uma língua — são tão curtas quanto se faz necessário para o cumprimento da função
de apenas registrar; e estrategicamente tão curtas, a ponto de colocarem em evidência a fuga
do ato de narrar, função que ele exerce, mas que é por ele tão rejeitada e temida. Sendo assim,
os registros se apresentam sem detalhes que se estendam no tempo e no espaço, tentativa por
parte do narrador de não dar substância a personagens e, consequentemente, não levar a cabo
uma narrativa, tentando também assim não se substanciar na função de narrador, portanto,
como se pode comprovar pelos capítulos 11 e 24: “Em Monte Santo de Minas, uma
construção desabou sobre seus surpreendidos ocupantes, que sofreram lesões múltiplas no
tórax e no crânio” (BRITO E MELLO, 2009, p. 27). “Em Ervália, um funcionário da
prefeitura morreu com fratura na coluna cervical” (BRITO E MELLO, 2009, p. 45). Nessas
informações, há imprecisões, indefinições, generalizações, nada que coloque personagens, por
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exemplo, o funcionário da prefeitura, apenas citado, em uma trama, nada que lhes dê enredos.
Também o plural, “em surpreendidos ocupantes”, e o artigo indefinido, na própria expressão
“um funcionário”, ilustram essa generalização. Não há nomes, ações, nada que lhes dê forma.
Na mesma esteira, ou seja, dentro de uma construção oral e para refutar a possibilidade
de se tornar definitivamente um narrador, permanecendo para sempre um ser de papel, a voz
discursiva não se dispõe a construir formalmente uma única trama. Por vezes, vários registros
de mortes com pouco detalhamento se acumulam em um só capítulo, demonstrando a
ansiedade do narrador para apenas alcançar o número de mortes necessário, sem associar os
nomes arrolados, colocando-os em diálogo de discursos e/ou de experiências. Essa falta de
entrecruzamento se ajusta à intenção do narrador de não querer se estender no ato de narrar
para não se comprometer com esse exercício, a exemplo do capítulo 69:

Mortes por adoecimento de variados órgãos ocorreram em Alvorada de


Minas, Baependi, Cachoeira Dourada, Engenheiro Caldas, Ferros, Inconfidentes,
Itamarati de Minas, Lagoa Formosa, Poços de Caldas, Santana de Cataguases,
Santana do Jacaré, São João do Paraíso, São Miguel do Anta, Senador Firmino,
Tapiraí e Unaporanga.

Moradores de Divisa Nova, Morro do Pila e Piedade dos Gerais tiveram


partes do corpo descarnadas. Moradores de Jacinto, Ladainha e Pimeyta tiveram os
nervos desfiados com agulhas.

Mortes por desossa ocorreram em Açucena, Bela Vista de Minas, Monte


Alegre de Minas, Santana do Riacho, Santo Antônio do Itambé, Serro e Turmalina
(BRITO E MELLO, 2009, p. 121).

Em outros momentos, o narrador acumula ritmicamente inúmeros registros de mortes,


de forma a acelerar e dinamizar o rol de nomes, o que acentua mais uma vez e fortemente a
representação da oralidade, sua única maneira de comunicação. Nesse caso, há certa
uniformidade quanto ao teor do assentamento (mortes e causas das mortes), porém seu efeito
é a mesma generalização já apontada. Algumas vezes, entretanto, há um detalhamento das
circunstâncias em que se deram. Ocorre que esse detalhamento é apenas aparente, pois é
desmentido pelo descuido na organização das informações espalhadas em linhas, quando
deveriam estar na sequência de uma só; ou colocam-se aflitivamente no mesmo parágrafo
dados que deveriam estar regularmente distribuídos em dois ou mais. Dá-se, assim, mais uma
vez, a garantia de uma recusa à elaboração de um enredo, conforme o capítulo 4:

Em Claro dos Poções, um poeta que cuidava da métrica de seu último verso
foi perfurado nas costas por um instrumento de capinar, retendo-o nas vértebras
enquanto rastejava pela rua principal.
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Em Dores de Campos, dois namorados decidiram comemorar o reatamento


copulando nas águas sensuais de uma cachoeira
afogando-se em seguida. Em Santana do Garambéu um capataz morre por
conta de uma infecção que lhe tomou as duas pernas.

Em Salto da Divisa, duas mulheres atearam fogo na pele. Uma auxiliar de


enfermagem caiu do coreto em Luminárias, fraturando ossos diversos do tronco e
morrendo. Em Turvolândia, o dono do armazém levou um tiro no esterno.

Uma senhora de Conceição da Aparecida morreu porque tinha muita


maldade. Um senhor de São João Evangelista morreu porque tinha muito medo. Um
jovem de Jesuânia morreu porque tinha muito amor.

Uma morte tola, em decorrência de fratura do úmero, ocorreu em Ubá. Uma


morte lenta, em decorrência do esmagamento da cintura pélvica, ocorreu em
Guiricema. Uma morte risonha, em decorrência de rasgamento das bochechas,
ocorreu em Coimbra (BRITO E MELLO, 2009, p. 16-17).

Conjugadas, essas estratégias encenam o desejo de afastamento do exercício efetivo de


dominar a construção da narrativa e denunciam também a febril necessidade do narrador de
alcançar a aspiração de deixar de ser somente um narrador, somente uma língua, ambos
sinônimos de morte:

Com meu trabalho de relatar óbitos, pretendo eu passar


de morto a vivo. Concluindo-o, abandonarei a palavra narradora que tenho
utilizado de modo obsessivo até agora
e receberei o primeiro prêmio para meus esforços, a saber
a eleição, o resgate e a consagração de minha carne até agora relegada a
depositário de perda, carne desaparecida
que poderá retornar, gloriosa, à maneira de homem (BRITO E MELLO,
2009, p. 91).

Assim, ele procede à catalogação de mortes, e o inventário não se configura como uma
narrativa, conforme mesmo a intenção do narrador. Todavia, ao realizar o procedimento,
acaba por narrar uma história, a própria história, aquela de alguém que já teve vida e,
deixando de tê-la, deixa de ser um personagem da vida real e passa a ser apenas um narrador
que registra óbitos oralmente. Entretanto, não se trata de algo à Brás Cubas, que, estando em
uma situação pós-vida, em morte, confortavelmente, conta sua vida e atua, portanto, como um
narrador que, distanciado, onisciente, domina a narrativa e se permite usufruir disso. Nosso
narrador, diferentemente, é apenas uma língua, parte de um morto, desconfortado na posição
que agora ocupa, ansioso por retomar a vida. Seu estado anterior, de vida, equivalia à
realidade, de ser humano; seu estado atual, de morte, equivale a seu estado ficcional, de
narrador. Narrar é, então, uma ação em estado de morte. Acentua-se, porém, a impotência do
narrador e sua manutenção nesse estado indesejável, pois, negando-se a ser um narrador, é-lhe
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impossível deixar de exercer essa prática de papel. Paradoxalmente, impedido de narrar, é


impelido a narrar.
Tem-se aí uma encenação para que seja posto em discussão um evento da literatura, o
narrador, e, consequentemente, a própria literatura, a própria criação literária. Simulam-se,
dessa forma, várias outras questões: O que é a narrativa? O que é um narrador? Qual é a
importância do narrador? O que é narrar? Narrar é motivo de temor? Qual é o valor da
literatura? Qual é a pertinência da escrita? Tem existência quem se propõe a pegar da pena?
Escrever é um ato de morte? O que é um autor? São perguntas reveladoras do desconforto
ante a escrita.
Essas interrogações desconfortantes são exibidas esteticamente, em um mosaico de
incongruências constituídas pela composição inédita do narrador, pois a diegese que chega até
o leitor apresenta-se por meio do apassivamento do sujeito ficcional, no lugar do seu
ativamento como tradicionalmente ocorre, quer ele esteja em primeira ou em terceira pessoa.
O que ele narra (sua tentativa de buscar um último registro de morte, as peripécias que
compõem essa tentativa, os personagens que a constituem, os espaços e a cronologia em que
ela se desenrola) é narrado à revelia de seu desejo: ele não quer narrar nada disso, quer apenas
registrar um último óbito, para, dessa forma, alcançar a vida fora do papel.Pode-se ver, então,
uma atuação semelhante à de um Édipo que, a cada passo, na tentativa de fugir de seu próprio
destino, vai ao encontro daquilo de que foge, vai, portanto, ao encontro da morte. Daí estar
anunciada sua morte, pois, fugindo da narração, nela se estabelece. Ele será para sempre um
ser de papel. Vejamos.
O relato é apresentado por uma voz que não aceita sua própria existência, que repele a
si mesma no papel de narrador, que se recusa a construir uma narrativa, dispondo-se a apenas
fazer registros de óbitos. Associa-se a isso sua constituição ser metaforizada em um ser quase
incorpóreo, uma existência precária cuja única manifestação é oral, mantida, então, pela
memória: “Dou uma volta pela rua. Enquanto isso, repasso meu acervo, repetindo para mim
mesmo alguns dos óbitos já observados” (BRITO E MELLO, 2009, p. 25). No entanto, uma
narrativa vai sendo construída; um enredo, com personagens, postos em espaços e tempo, vai
chegando ao leitor, por meio dessa língua que tenta se estabelecer no campo da oralidade com
apenas uma listagem, um gênero que dispensa as categorias que vão se apresentando.
O desconcerto se ilustra pelo fato de essa voz não ter o domínio da narrativa, não
conseguir assumir as rédeas pertinentes a esse exercício, algo que lhe é contraditoriamente
odioso e, ao mesmo tempo, caro. Ocorre, assim, que, no lugar de estar à testa das ações das
personagens, do movimento e do tempo dessas personagens, ele depende das decisões
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autônomas delas, que se negam a dar-lhe o almejado, comandando, assim, tanto a voz
discursiva quanto o ritmo de uma narrativa que ele rejeita fazer, mas que acaba por fazer.
Dessa forma, o narrador, que anseia por apenas registrar um último óbito (de alguém que
parece ter sido assassinado, mas cuja família não faz um movimento sequer para dar conta ao
mundo de tal fato), acaba por relatar não o que deseja — um breve registro de morte —, senão
aquilo que os personagens lhe permitem:

O nome da cidade onde estou é feito de quatro termos e guarda nobreza.


Sou impedido, por ora, de nomeá-la porque lhe faltam um corpo vestido de
fúnebre, um velório e um sepultamento que confirmariam o
desaparecimento como destino inevitável de nossas bobagens (BRITO E MELLO,
2009, p. 25, grifo nosso).

A porta permanece fechada, mas eu tenho paciência


de portas fechadas, de continuar postado junto à madeira,
perscrutando o que lá dentro transcorre
de esperar que os sinais sonoros resultantes das atividades
secretas do rapaz permitam-me compreender o que se passa no isolamento.

Aguardo (BRITO E MELLO, 2009, p. 65-66, grifo nosso).

Esses papéis invertidos entre as duas categorias promovem dois movimentos: a) as


ações soberanas dos personagens são reveladas por meio do discurso do narrador. Ele,
impossibilitado de apenas registrar o óbito que a família se recusa a admitir, acaba por narrar
essa impossibilidade, o que significa que ele acaba por narrar a si mesmo — sua história de
impossibilidades; b) as ações soberanas dos personagens vão revelando aspectos e questões
também pertinentes ao narrador, de forma que narrador e personagens espelham-se, então,
sem que aquele dê conta disso.
Como as cenas das quais ele necessita (clareza quanto ao assassinato, registro da
morte, etc.) não se desenrolam, não têm sob suas rédeas sequência e rota, fica presente, de
forma predominante, um discurso desfocado, sem rumo, voltado para a incapacidade, quase
um solilóquio, que dá lugar a outros discursos. Tal solidão discursiva é esteticamente
representada pela ausência de progressão do enredo, pela repetição e circularidade de fatos.
Trata-se de uma voz tateante, desesperadamente in-existente, que precisa apenas de um
registro para livrar-se dessa condição incômoda de narrador, mas que não consegue sair dessa
condição. Assim, ele ocupa-se de observar as ações fúteis, banais, da mãe e da filha, que,
parece, propositalmente, não tomam atitudes que promovam aquilo que deseja o narrador —
apenas o registro de um óbito —, e que acabam por promover o indesejado continuar de uma
narrativa. Também se ocupa de tentar saber do filho, um ser sub-reptício, que desliza pela
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narrativa sem que o narrador consiga sequer identificá-lo: fica trancafiado por longo tempo
em seu quarto, sai dali enquanto o narrador não está a vigiá-lo, retorna quando o narrador
menos espera. Isso na expectativa de momentaneamente conseguir o registro almejado. No
entanto, submetido a essa vigilância, vai se submetendo a eles — mãe, filha e filho — que,
embora sem palavra, imperam sobre o narrador, tripudiam dele, escancaram a existência de
uma situação incongruente de alguém que se quer um ausente sujeito da enunciação, mas que
não o consegue, o que resulta na configuração de um elemento que fica dando voltas, perdido
em um circuito fechado. Verifica-se, assim, uma impotência quanto à decisão de não narrar:
ele quer isso, mas não consegue se desvencilhar da narração, preso a ela como única senha de
libertação.
Contribui para isso o fato de os personagens assumirem ares de realidade com
autonomia. Suas ações apresentam-se como reais (conversam trivialidades, saem à rua,
dormem...), revelam-nos seres sobre cuja vida não há domínio (decidem, à revelia do
narrador, não registrar o óbito de um familiar), pois não atua sobre eles algum ser cuja função
exerça autoridade, que submeta as ações a seus desejos, a quem caberia a sujeição desses
seres à observação, à manipulação e à admissão da realidade da narrativa. Tudo isso compõe
um cenário esdrúxulo, com um narrador inusitado, porque é impotente (não quer ser narrador,
é uma língua, mas acaba por precisar ser narrador, entretanto, não consegue nem tirar dos
personagens aquilo que deseja, um óbito), e um grupo de personagens inusitados, porque têm
potência (embora pareçam corriqueiros, vivam cenas que poderiam estar sob a égide de um
narrador — estão em uma casa, exercem funções sociais corriqueiras de mãe, filha e filho —
vivem coordenados por si mesmos, com decisões próprias, a ponto de conviverem com o
corpo do pai, optando por não se darem conta de sua morte, sem atender à demanda do
narrador, um registro de óbito).
Essa mistura faz do narrador um ser desarvorado, ilustrando uma forma de discutir a
função de narrar: ele é partícipe de um mundo ficcional que ele rejeita (pois é (seria) um
narrador); deve alimentar uma lista com o registro de um óbito, transformada em uma
narrativa (o que ele rejeita, mas no que se envolve, imbuído do desejode deixar de ser um
narrador e ganhar vida), para dela alimentar-se (sendo, então, um narrador, mas participando
de algo que é a única chance de deixar de ser um narrador). Tudo isso constitui um aflitivo
enredamento do qual essa voz discursiva não consegue se desvencilhar. Há, assim, um eu
duplamente passivo: aquele que, não desejando ser o sujeito da enunciação, acaba por precisar
exercer essa função, mas é impedido de realizá-la por força das personagens; esse eu
condicionado pelas ações das personagens o leva à narrativa involuntária desse seu
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impedimento. Essa duplicidade o relega a um impotente e insólito papel de sujeito da


enunciação, um sujeito que se constrói à sua própria revelia, um sujeito em falta.
O leitor, então, ao perceber a atuação em falta do narrador, depara-se com a produção
de um enredo também faltoso. Entretanto, essas faltas são dotadas de significado, o que
promove uma leitura aderente. Trata-se de uma diegese que se mantém pelo suspense, porque
o narrador está suspenso, em suspense por uma ausência de trama da qual ele precisa (não
porque a quer em si, pois deseja apenas o resultado dela — o registro de um óbito) e que, no
entanto, lhe fornece força dramática. Assim, como o narrador não quer se reconhecer na sua
própria produção, cabe ao leitor tomar certas rédeas (não da narrativa, mas da leitura),
procurando decifrar esse narrador que não se decifra e se devora.
O ponto de partida para o deciframento são os personagens, já que deles parte a
(alguma) direção possível para que se construa o perfil do narrador, em cuja função é
manipulado pelos atores mãe, filha e filho, que, embora na condição de sujeitos do enunciado,
têm, como já se viu, certo controle sobre si mesmos e sobre o narrador. Por meio de suas
ações — mãe e filha, fúteis e banais, que desconsideram a presença de um morto à mesa; e
um filho, fugitivo de si mesmo —, sabemos das limitações do narrador, pois cada passo de
cada um deles é um enigma que prevalece sobre o narrador, e por esse mecanismo há o
controle da existência dessa voz discursiva e de sua capacidade de determinar um sentido para
a narrativa, para os personagens e para si mesma. Por isso, narrar é mesmo a morte, a
encenação de alguém que não passa de um sujeito literário, subjugado pela “supremacia do
mundo das coisas”, conforme afirma Adorno (2003, p.62).
Acompanhando o discurso dessa voz narrativa que se submete ao ritmo do discurso ou
das ações das personagens, como se houvesse uma comunicação ventríloqua entre eles, o
leitor caminha pela ficção, atendendo, conforme anuncia Tezza, “a essa ideia absolutamente
inescapável do romance, que é a do homem inacabado. Como Sherlock Holmes, temos apenas
algumas pistas para interpretá-lo, pistas que a narrativa põe no caminho de quem lê e que não
são um mero jogo de armar” (TEZZA, 2012, p. 77), exigindo resposta e complementação.
Assim, encontra cenas intrigantes tanto para si quanto para a voz que se apresenta a ele (na
verdade, porque as cenas são intrigantes para o narrador é que elas se tornam intrigantes para
o leitor), o que deixa claro o sentimento de inadequação do narrador:

Em torno de C., a esposa e a filha terminaram de pôr comida em seu prato.


Há mais uma cadeira à mesa
pertencente a um integrante da família que não se apresentou à canja noturna.
Terá fugido o filho ou prefere manter-se recluso em seu quarto? (BRITO E MELLO,
2009, p. 30).
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A negligência da família durante a agonia de C. fora, sem dúvida, cruel. O


que agora me perturba, entretanto, é que a morte foi seguida do hábito, e a
manutenção do hábito diante do óbito cheira a dissimulação, e a dissimulação pode
rapidamente trans-formar-se
em uma recusa obsessiva, estúpida e inamovível em admitir que, a um
envenenado, dá-se o título de cadáver (BRITO E MELLO, 2009, p. 33).

O mesmo ocorre quando a intolerância vem à tona, revelando a impotência do


narrador, que não tem como se desfazer dos personagens:

[...] Minha perturbação com a presença infame de C.


justo quando já deveria estar em meio à geologia do cemitério de sua cidade,
é somada ao incômodo que sinto agora com o barulho que vem da mastigação das
mulheres. Não tolero arremedos de pocilga (BRITO E MELLO, 2009, p. 35).

Essas situações atordoantes ainda mais se acentuam à medida que ocorrem


espelhamentos entre o narrador e os personagens pai e filho, cujas ações desenham o perfil do
primeiro, pondo em risco a sua já frágil personalidade. Sendo assim, por vezes, há ocorrências
que põem em reflexo filho e narrador, intrincados em suas estranhezas, bem como pai e
narrador, intrincados em seu estado de morte.
Quanto ao primeiro espelhamento, filho e narrador não têm rosto, são desconhecidos,
andam entre si em círculos, como em um jogo de gato e rato, em um labirinto do qual não
saem. Assemelham-se, portanto, conforme nos indicam os capítulos 23 e 36:

Fico só
com o cadáver, mas o silêncio não é completo na casa. No terceiro quarto,
ouve-se
que alguém não repousa.
[...]
O que faz esse filho em seu cômodo privado eu ainda não sei. Pelo que
consigo ouvir, acredito que se mova com impaciência, acredito que não tenha paz.
Acredito que esteja a dizer algo, secretamente
e que seu segredo comece a se manifestar por meio de um sibilar de difícil
escuta. Permaneço atento, mas as palavras que o filho diz eu não consigo entender
(BRITO E MELLO, 2009, p. 44).

Lembre-se de que, por força da morte de seu pai insepulto, você ainda carece
de nome, respondendo, até este momento, como filho de C., e que somente a partir
dessa condição é que posso mencioná-lo. Você não é mais que
filho, e isso é pouco (BRITO E MELLO, 2009, p. 70).

Os trechos ilustram a solidão, a impaciência, a falta de paz, um desejo de dizer algo


não dizível e não dito, uma inabilidade para lidar com o mundo que rodeia, uma ausência de
nomeação, aspectos comuns ao filho e ao narrador. Ambos se condenam e são condenados à
reclusão; protegem-se contra convites para saírem de sua situação; negam-se a qualquer
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chamamento; tentam impedir qualquer invasão. Realça o emparelhamento de posturas o tom


solidário e conivente que o narrador apresenta em seu discurso:

Não nos enganemos em considerar que o filho de C. foi condenado ao quarto


senão por uma condenação impetrada por
ele mesmo. Todo recluso demora a ceder em sua reclusão. Ele a prefere e, quando
abandona seu quarto, não o faz sem um pouco de melancolia, sem remorso, sem
uma vontade irreprimível de retornar. A natureza de sua escolha pode ser doentia,
talvez seja, mas é uma escolha amorosa. É com ela que o recluso se protege contra
qualquer convite para sair, contra qualquer chamamento, contra qualquer
procedimento que julgue ameaçador, contra qualquer tentativa de invasão (BRITO E
MELLO, 2009, p. 77).

O mistério em que se insere todo o (des)enredo faz dobrarem-se os espelhamentos, de


tal modo que o narrador e o pai também são reflexos um do outro, porém, ao avesso, a ponto
de serem assemelhados em seu estado de morte:

C. é meu vizinho, C. é meu colega inoportuno, meu repudiável avesso. Como


eu, ele conhece a matéria e seu desfazimento, e o que dele se esvaiu com a ingestão
do veneno eu desejo obter. Enquanto C. passa de um lado a outro da constituição
tento passar eu também, com obstinação e com método (BRITO E MELLO,
2009, p. 92).

Toda essa semelhança mais evidencia o desconforto da voz discursiva, pois traz à tona
o estado de abandono do narrador, desolado em meio àquilo que narra:

Transcorre uma temporada de padecimentos, e os pássaros do céu podem voar até


gelar o cu, que não me voltarei um só instante à contagem de seu curso sobre minha
cabeça oca. Tenho pressa de acontecimentos de corpo visível, mas a casa que ocupo
ficou, subitamente, abandonada
agora somos os três ausentes que a habitam
o pai morto, o filho recluso e o narrador.

Lamentável tríade de faltosos em que


o pai nada pode fazer
o filho tudo faz apenas a si mesmo, em regime de privação
e todo o meu fazer, embora rico de desejo e energia, não se realiza por meio
de uma ação de corpo. Talvez devamos concluir, melancolicamente, que somos os
três juntos tão inúteis quanto os pássaros do céu e que fazemos bem se decidirmos
contá-los. Mas renunciarei a essa medida de derrota, estendendo minha permanência
aqui
crendo em meu projeto único e pessoal (BRITO E MELLO, 2009, p. 72-73).

O que revelam ao leitor todas essas estratégias que compõem o narrador na obra A
passagem tensa dos corpos? Como entender a encenação de um narrador que se sabe uma
construção, que se sabe preso dentro de uma teia ficcional e que rejeita isso? Se toda essa
cilada de estratégias é, como é pertinente à ficção, um conjunto de escolhas técnicas que se
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vinculam à experiência humana concreta, se a voz do texto, conforme afirma Tezza (2012), é
a voz de alguém com quem o leitor negocia significados emocionalmente carregados, que
significados estão em transação no passeio por esse des(enredo) de Brito e Mello?
Foi legado a seu interlocutor um discurso invertebrado, de alguém que, embora
narrador, não consegue narrar algo factualmente coerente, pois está diante de uma cena
inexplicável de um provável crime, sem indicação precisa do assassino, sem que alguém
assuma a morte. Ocorre que o narrador não quer narrar a cena, mas ele precisa fazer isso,
inclusive não se interessa pelos detalhes que esclareceriam o fato, pois só lhe vale o registro
dessa morte.
Há, assim, uma situação nonsense. Primeiramente, porque encena um consistente
ceticismo em relação ao valor da escrita, algo a princípio irrelevante e principalmente
rejeitável, comparativamente inferior ao necessário rol de óbitos. Em segundo lugar, porque
encena também a escrita como algo inevitável, pois, por mais que se negue a ela, o narrador
acaba por ficar-lhe preso. A arquitetura da obra põe em questão o sujeito que escreve,
recusando a escrita e, ao mesmo tempo, necessitando dela, sem conseguir polarizá-la,
provocando grave sensação de desconforto, agravada pela estabilidade de que vai sendo
revestida essa sensação.
Percebe-se isso, porque o enfrentamento da escrita é obstaculizado pela constante
sensação de desbaratamento, refletido em questões fundamentais quanto à escritura: o que se
narra quando se é impotente para narrar? Quem se narra quando se é impotente para narrar?
Quem narra quando não há potência para narrar? Que enredo pode ser desenvolvido quando a
própria escrita é negada? As respostas são, respectivamente: a impotência; uma voz
desgovernada; uma voz impelida à narração; o próprio discurso de impotência, uma
impotência transformada em trama.
A obra se põe, então, como uma metáfora do processo de escritura, das incertezas e
questionamentos quanto à condição narrativa, que os faz encenados na dificuldade do
narrador ante a narração, do receio de se instalar nessa incômoda situação, com a
peculiaridade de fazer do incômodo ante a escrita o cerne da narrativa, fazendo dele a própria
trama, a ponto de revestir o narrador de um ser tensionado. Essa obra delineia esteticamente a
falta de lugar da narrativa.
E, como ela, outras obras ficcionais formam um segmento da ficção contemporânea
que se desenvolveu sob esse viés. Nela, o leitor não fica preso a uma narração na primeira ou
na terceira pessoas, porque essas pessoas apresentam-se frágeis nessas posições.
62

W. G. Sebald afirma a James Wood que, para ele, “a literatura que não admite a
incerteza do narrador é uma forma de impostura muito, muito difícil de tolerar”. O crítico
achava inaceitável “qualquer forma de escrita em que um narrador se estabelece como um
operário, diretor, juiz e testamenteiro” (SEBALD apud WOOD, 2012, p. 18). Pois bem, temos
narradores que não confiam em si mesmos, não se ajustam sequer na posição de narradores
pura e simplesmente. Não se trata de uma manobra em que o narrador nos avisa de sua
inconfiabilidade, mas uma inconfiabilidade intrínseca, que não está apenas no modus
operandi da construção narrativa, mas, sim, no cerne da construção da narrativa, na voz que
se encarrega de levar adiante a empreitada de contar uma história. No caso dessas vozes, o
leitor não tem como habitar a onisciência ou a parcialidade propositais. Diante de um narrador
que não sabe do outro porque não sabe de si, resta ao leitor somente buscar compreender esse
des-saber e, assim, assenhorar-se desse (des)conhecimento.

2.4 “¿Trajiste la llave?”

A primeira frase escrita de um texto ficcional é uma âncora exigente


lançada entre o desejo de algo apenas intuído, uma sombra inquietante
de sentido, e o mundo brutal dos fatos, tudo aquilo que é produzido
pela linguagem alheia e nos envolve absurdamente. Esta primeira
frase, esta âncora narrativa, estabelece por si só uma lógica autônoma,
desde o princípio.
Cristovão Tezza

A epígrafe que se apresenta neste segmento faz jus à primeira frase de Procura do
romance, de Julián Fuks, na qual se encerra toda a trama: “¿Trajiste la llave?” (FUKS, 2011,
p. 7). Trata-se de uma pergunta que manifesta uma trivialidade (reproduz a simples tentativa
de uma porteira de inteirar-se de algo sobre um visitante). Trata-se de uma interrogação que
encerra uma inquietude (promove a sensação de autoquestionamento, de cunho filosófico).
Trata-se de uma indagação que acena para uma questão da ordem da literatura (faz referência
a uma reflexão sobre a composição literária). Múltipla, transitando entre o real, o filosófico e
o poético, entre a corriqueira personagem porteira e a rara voz de Carlos Drummond de
63

Andrade, sendo utilizada para novas produções de sentido, a frase interrogativa coloca em
cena, na obra do autor paulistano, os enfrentamentos que se dão na construção do profissional
da escrita, socialmente reconhecido no papel, na construção da prosa junto às categorias
pertinentes a ela, como narrador e personagem, e na relação entre ambos.
A interrogação, nesse romance, se ancora em uma lógica manifesta pelo narrador, um
sujeito ficcional, um ser de papel, portanto, que, formalizado em um ponto de vista em
terceira pessoa, orienta quanto ao trajeto da pergunta, de onde ela parte e a quem ela atingirá
(se de uma personagem, a porteira para um outro, um personagem cuja função social
encenada é a de um escritor; se de Drummond para esse personagem-escritor — e vice-versa;
se desse próprio personagem-escritor para si mesmo; se do narrador para esse personagem-
escritor — e vice-versa; se da trama para um leitor), formando uma rede de diálogos que
colocará em discussão as categorias autor/escritor/romancista e narrador, postas ambas em
papéis ficcionais. “¿Trajiste la llave?” funciona como uma senha para que todos adentrem no
enredo duplo: sensações, reflexões e comportamentos do protagonista Sebastián, um
brasileiro filho de argentinos, em busca de sua identidade como autor de romances, e, como
tal, com domínio da poética, mas fragilizado, perdido, sem saber quais decisões tomar e quais
caminhos trilhar quanto ao trabalho como romancista, quanto a essa escrita e quanto à sua
vida pessoal; sensações, reflexões e comportamentos de um narrador que narra a situação de
crise vivida por Sebastián.
Assim, concomitantemente, por essa mesma ancoragem, o leitor acompanhará, além
da trajetória de Sebastián, um personagem-escritor tomado de dúvidas quanto à sua função, a
trajetória do próprio narrador, que encarna um ser dotado de sofisticado domínio sobre a
poética do romance (à maneira de um autor, à maneira de um Sebastián), tem certa soberania
sobre a construção da obra, portanto, sobre si mesmo, mas que faz isso sob certo conflito.
Sendo assim, ocorre perturbada inversão nas ações que seriam pertinentes aos atores.
Primeiramente, o narrador da obra — uma criação, um ser de papel, cuja função é levar o
enredo até o leitor, com o subjetivismo de quem “não tolera mais nenhuma matéria sem
transformá-la” (ADORNO, 2003, p.55), afigura-se como alguém que tem o domínio da
criação literária. Isso ocorre a ponto de, expondo reflexões do personagem-escritor pertinentes
à teoria da literatura e à criação da literatura, tecer comentários concernentes ao campo dessa
poética. Por outro lado, Sebastián — um escritor, é tirado do campo da extratextualidade, de
quem exerce socialmente a autoria, e é inserido na narrativa, tornando-se, portanto, uma
categoria, passando a um ser de papel.
64

Essa transferência do papel de escritor para o papel de personagem-escritor faz emanar


uma sensação de desajuste, pois, quebrando as expectativas quanto ao perfil de um autor
(alguém que tem domínio sobre o fazer literário), as ações desse personagem ilustram um
escritor desencontrado de si mesmo. Ele, que teria a potência para desencadear a existência de
um narrador e de personagens, na obra, se constitui como um ser tateante, que não sabe como
agir nesse exercício, não consegue articular produções estéticas. Tão fragilizado, é incapaz de
traduzir toda essa sua inquietação em jogos estéticos, função exercida por outra voz
discursiva, a do narrador. Este sabe das fragilidades profissionais e existenciais do
protagonista, assume o domínio sobre seu campo de conhecimento e, sob essa condição, é
capaz de interpretar suas reflexões, inferir seus limites, prever suas ações. Mas, embora tenha
essas rédeas da narrativa, fazendo do personagem-escritor objeto de sua contemplação ou
ponderação, contorna seu discurso com tons de impaciência e de ironia. Por vezes,
parafraseando a voz do protagonista, ou, então, consentindo que aquela voz tome lugar, ou,
ainda, apresentando sua própria voz, o narrador permite, com algo de intolerância e embaraço,
que o descaminho do personagem-escritor seja o caminho da narrativa, de tal forma que o tom
de dúvida da pergunta inicial seja o mote do que se narra: o escritor não tem a chave da
narrativa, embora ela devesse, a princípio, ser seu instrumento.
Não se trata, assim, de uma relação em separado entre narrador e personagem-autor,
mas de uma relação intrincada, que põe em xeque as representações que se tem tanto de
escritor quanto de narrador: o primeiro, em crise por não conseguir ter autonomia sobre a
escritura, acaba por ter essa falta de autonomia apropriada pelo narrador e levada à condição
de enredo, nas suas relações com o tempo e o espaço (relações precárias, como se verá em
outro capítulo deste estudo); o segundo, tomando, desconfortavelmente para si, a produção e a
condução da escritura. Esse é o jogo encenado: um escritor desnorteado, que perde sua
condição de escritor e passa a objeto de narração sem disso ter conhecimento; um narrador
desconfortado, que assume sustentar aquilo que é da alçada da autoria — “a pretensão
imanente que o autor é obrigado a sustentar, de que sabe exatamente como as coisas
aconteceram” (ADORNO, 2003, p.59).
O narrador, então, narra não só as condições adversas pelas quais passa o personagem-
escritor, a crise vivida, mas sua própria condição de narrador que assume um papel que não é
exatamente o seu. Faz isso, anexando o discurso do elemento narrado ao seu próprio, de
maneira, inclusive, que o discurso daquele se manifeste sobreposto e também subposto ao seu,
com raros momentos de independência.
65

A leitura da obra promove, então, o encontro de um escritor desconfortável na sua


função social e dela desalojado com um narrador desacomodado na sua função estética. É
como se, não sendo este o elemento que deveria ter sob sua égide a delimitação da matéria
narrada, passasse a palavra ao outro recorrentemente, embora deixando claro que o
personagem está na função de personagem-escritor e não na função de escritor-personagem. O
leitor precisa, portanto, ter uma chave que lhe permita discernir sobre essa ascendência na
narrativa e compreendê-la, tentando decifrar continuamente de quem é a voz manifesta — se
do narrador; se do personagem-escritor; se de ambos, incorporados —, juntando-se ao
narrador e ao personagem no processo de procura do romance, o que, na obra em estudo, se
dá, entre outras formas, por essa estratégia de deslocamento e mistura de lugares e vozes.
Essa movimentação de vozes se enuncia desde a cena inicial do romance, quando o
narrador já informa sobre a incapacidade do escritor, a partir da pergunta drummondiana e o
que se segue a ela:

─ ¿Trajiste la llave?
Pergunta-se a porteira, mantendo o tronco rijo e apressando as pequeninas pernas na
direção do sujeito que vai se encerrar, taciturno, no elevador. Incapaz de antever a
chegada dela e de adivinhar a iminência da pergunta, o sujeito, de mala a tiracolo,
iniciou o movimento repetido de fechar as grades do elevador antigo e só vai lhe dar
atenção mais tarde, quando terminado o procedimento bruto que empreendeu e
dissipado seu ruído intrusivo. Tendo estabelecido entre eles uma barreira dupla de
metal, que só não se assemelha à de uma prisão por se constituir de ferros
entrelaçados, e não paralelos, ele por fim pode responder: mas não responde. Limita-
se a mover a cabeça de cima a baixo uma única vez e, sem entender a própria pressa
e a habilidade com que põe a máquina a funcionar, pressiona com força exata o
botão do quinto andar.
A expressão de susto que, no rosto dela, antes se deixou divisar dá lugar aos poucos
a um intrincado franzir de peles que apenas pode indicar um acréscimo de foco e
concentração. A testa estremece com a aproximação das sobrancelhas, um olho se
aperta promovendo cortes superiores e inferiores nas curvas da íris, os lábios
decolados sutilmente se enrijecem (FUKS, 2011, p. 7).

No primeiro momento, dois aspectos causam impressão — o nível de detalhamento e a


escolha do que é detalhado. Eles provocam o leitor para que desconfie e (re)leia o que está
diante de si, dado o caráter aparentemente irrelevante da cena que se apresenta a ele e a
desproporcional dedicação a ela conferida, com grau acentuado de realismo. Apesar de a
situação ser corriqueira, o narrador se presta a minúcias. Ele descreve, por exemplo, o jeito
apressado da porteira e o estremecimento de sua testa, delineando expressões físicas; também
realça a incapacidade do personagem de antever a chegada da profissional e de adivinhar a
imediata pergunta que ela lhe faria.
66

Por que particularizar tanto? Dois podem ser os motivos dessa generosidade
descritiva: o primeiro, o narrador demarca seu papel, assumindo o domínio sobre a cena; o
segundo, associado a essa demarcação de espaço, o narrador anuncia que o personagem (mais
à frente, o leitor toma conhecimento de que se trata de um romancista) encena alguém sem
capacidade para potencializar a condição da onisciência em uma narrativa, o que pode ser
irrelevante para qualquer personagem, mas não o é para quem é escritor.
Assim, a descrição revela mais do que a cena em si mesma, estratégia repetida ao
longo dos capítulos. Neles, os passos e os pensamentos do protagonista são acompanhados em
profundidade, com distinção para a sua impotência quanto ao ato da escrita. Temos, assim,
um homem sempre titubeante nas suas ações; temos, ainda, um narrador que insiste em nos
contar isso, demarcando seu espaço, agindo com um excesso de segurança que se nos afigura
como algo estratégico. Vejamos.
As ações do protagonista são postas metaforicamente em constante associação com o
discurso poético, situado concomitantemente no campo de domínio do personagem e do
narrador, este que dá ao outro notável indicação de ineficiência, conforme o trecho:

Quando volta a apertar o botão do quinto andar, a indecisão o toma por completo e
lhe exige um grande esforço na busca por soluções, que ele empreende com os olhos
fechados e a mão esquerda cobrindo a testa numa posição um tanto artificial, que o
impossibilita de assistir ao espetáculo geométrico do elevador e de rememorar toda a
reflexão. Como se obedecessem à inércia, suas pálpebras se levantam no exato
instante em que o movimento ascendente se interrompe, e ele tem à frente acesso
direto ao apartamento, pois ao sair deixou a porta aberta sabendo que retornaria
minutos depois. Enquanto transpõe o batente, empunha a maçaneta e fecha a porta,
nenhum pensamento lhe sobrevém, e Sebastián não sabe que está trancando para
fora a lembrança de mais um raciocínio que poderia julgar interessante para o livro
que quer escrever (FUKS, 2011, p. 18, grifo nosso).

Nessa cena, o personagem é apresentado como alguém que, teatralmente, reveste-se de


um homem indeciso, que empreende grande esforço na busca por soluções. Sendo assim,
embora seja um escritor, não consegue nem atuar no papel que desempenha, nem o ver, nem o
dirigir, nem o administrar, tanto é que “sente em si mesmo a duplicidade entre autor e
personagem” (FUKS, 2011, p. 18), entendendo-se na dubiedade de quem “tem a difícil tarefa
de decidir o rumo que seu protagonista [ele próprio]1 irá tomar e já descartou deixar que o
conduza qualquer impulso corporal” (FUKS, 2011, p. 18).
Os trechos citados trazem expressões típicas do discurso literário, e, portanto, do
discurso de um profissional da palavra, a exemplo das expressões “duplicidade entre autor e

1
Informação nossa.
67

personagem” e “rumo do protagonista”. Apesar de elas serem emitidas pelo narrador,


percebe-se aí um desvio dessa voz para a voz do personagem-autor, sem que, no entanto, este
as pronuncie autonomamente, um discurso indireto-livre. Ou seja, como o narrador não é um
escritor, o discurso da arte literária não lhe pertence, pois tudo o que é parte desse discurso,
embora venha ao mundo pela sua voz, advém de uma outra, a voz do protagonista, que é um
autor. Mas, apesar disso, as ideias são assumidas pelo narrador, cuja onisciência lhe dá
poderes para gerenciá-las, tendo em vista que o protagonista não tem condições para fazê-lo,
pois está fragilizado, em fase de embate consigo mesmo e com sua ocupação profissional de
autor. Portanto, o elemento motivador do jogo de vozes tem origem no escritor, em sua
inapetência para a escrita.
Exemplo disso está em um trecho no qual há uma continuidade de reflexões
pertencentes ao campo de atuação de quem lida com a escrita. Elas tratam do fazer literário,
portanto, algo da alçada do personagem-escritor, que censura a criação de personagens “lugar
comum”. No entanto, sob o comando do narrador, verifica-se que o elemento criticado pelo
protagonista é o próprio protagonista:

Deixar o sujeito inominado perambular com liberdade seria, portanto, demasiado


imprudente, para não dizer que consistiria numa primeira desatenção a seus
princípios, isto é, uma primeira concessão ao fracasso. A não ser que quisesse
caracterizar o personagem como um desses andarilhos errantes desdenhosos do
cenário e de tudo o que o circunda, dos quais, contudo, como se sabe e em
detrimento da vontade dos leitores, a criação ficcional parece saturada (FUKS, 2011,
p. 19).

O trecho “um desses andarilhos errantes, desdenhosos do cenário e de tudo o que o


circunda” refere-se tanto a qualquer personagem de qualquer obra (coisa de que o
personagem-autor tem ciência e sobre a qual discorre) quanto ao perfil do próprio
personagem-escritor, um andarilho pelas ruas bonaerenses tentando encontrar a si próprio
(coisa da qual o personagem-escritor não tem ciência, mas o narrador, sim), situação
metaliterária, desenvolvida pela duplicidade de vozes, em que se entremeiam narrador e
personagem-autor.
A estratégia exige uma refinada audição para que se capte o registro de vozes que
traduzem passos e ideias do protagonista, via ele mesmo, via narrador, via ambos. Isso faz
com que o leitor se entregue aos simultâneos recursos de separação e acoplagem das vozes e
ainda faz com que compreenda que são recursos expressivos do desconforto vivido no que
tange às funções de escritor e de narrador. Ouvindo-as, apreende a consciência autoral quanto
à seleção e ao modo de criar personagens. No exemplo acima, verifica-se que não é permitido
68

a esses seres perdidos, sem rumo, que se ajustem aos cenários e a tudo que os circunde, sob
pena de pertencerem a um modelo de espécie ficcional tão lugar comum, que enfastia
qualquer leitor. Entretanto, o leitor também distingue que não há, por parte do personagem-
autor, a percepção de que ele próprio é essa construção literária sobre a qual ele próprio tece
certa ironia, por representar a mesmice no mercado de livros.
Assim, Sebastián é o pivô de suas próprias reflexões sobre a escrita literária, pois, ao
serem reveladas discursivamente, vão revelando as dificuldades que ele enfrenta. Às vezes,
sua voz é nítida. Porém, predominantemente, o discurso do personagem-escritor e o discurso
do narrador se cruzam, sobrepõem-se. E há um momento em que se quebra o jogo de vozes, e
o personagem assume seu papel mesmo de escritor. Tudo isso pondo em discussão o fazer
literário.
Um exemplo do primeiro caso ocorre quando se manifesta um vocabulário mais usual
em língua espanhola do que em portuguesa: “e se dá conta do submetido que está à condição
de inominado e sequer fantasmagórico estrangeiro a caminhar pelas ruas de Buenos Aires,
atravessando estranhos que se olvidam dele segundos depois...” (FUKS, 2011, p. 32, grifo
nosso).
“Olvidam” é um vocábulo que alude às suas experiências de infância. Trata-se de uma
variação no léxico que remete ao idioma espanhol e que, assim, distingue sua voz, porque faz
parte da sua experiência pessoal, como vivente na Argentina.
Essa nitidez, no entanto, é rara. Predominantemente, ocorre um movimento entre
narrador e protagonista, de forma que o primeiro dê passagem à voz do segundo, um ser
tomado de reflexões, sem ações, sem nada que signifique um andamento para o enredo. O teor
desse discurso traduz, então, o desconforto ante a posição de cada elemento, sem que cada um
dê conta de si: nem o personagem-escritor consegue expor de forma independente seu próprio
texto e construir a substância do enredo, haja vista estar em questão a legitimidade de sua
condição de escritor; nem o narrador consegue, pelo seu próprio discurso, dar conta da
narrativa, haja vista que não há peripécias, fatos, situações que possam fazer o enredo tomar
impulso, como se pode constatar pelo seguinte segmento:

O tempo que tarda para chegar a essa conclusão, ponderando cada variação de teor e
formulação, é suficiente para que se afaste do edifício o bastante para duvidar de sua
veracidade. Que pretensão querer adivinhar os pensamentos da porteira, tentar
visualizá-la perdendo a noite em claro, num dormitório tão diminuto quanto seu
corpo, a revirar os interstícios da memória em busca do mirrado rapazinho brasileiro
que morou no quinto andar mais de quinze anos antes e, pior ainda, que pretensão
julgar-se capaz de interpretar melhor que ela mesma seus interditos inconscientes em
cada um dos momentos separados por poucas horas. Pelo contrário, se algum deles
69

se encontra apto a fazer inferências de ordem pessoal a respeito do estranho que


tinha diante de si, esse alguém é ela: se foi capaz de reconhecer-lhe o rosto
deformado pelos ossos que só há poucos anos pararam de crescer sob a pele, se foi
capaz de recordar-lhe o nome a partir de uma lista mental de todos os transeuntes
moradores daqueles seis andares, nada impede que tenha a sua disposição, livre para
resgate, uma nova série de informações sobre a personalidade do sujeito, e que esteja
sendo coerente em lhe dedicar o tom de familiaridade que deu à sua última
interjeição (FUKS, 2011, p. 25).

Temos aí um narrador onisciente, que sabe sobre a porteira e sobre o personagem-


escritor. Esses dois conhecimentos emergem simultaneamente da voz do narrador: ele conta o
que faz e pensa a porteira, escarnecendo da impotência do personagem-escritor. No entanto,
outra voz emerge em meio ao tom de escárnio, um discurso que se manifesta pelo leve toque
literário na composição da cena: vem pela sutileza da construção da metáfora “o rosto
deformado pelos ossos que só há poucos anos pararam de crescer sob a pele”; ou ainda pela
busca da palavra que daria vida à personagem porteira, quando faz saltar dela a expressão
opinativa “o mirrado rapazinho brasileiro”. Emerge, assim, o personagem-autor que, embora
se desqualifique, nesse movimento de desqualificação acaba por deixar seus traços de literato,
lançando mão da linguagem conotativa. Apesar de estar em crise, subleva-se sua capacidade
de produzir algo no plano da expressão.
Esses vestígios de literatura vão se realizando de permeio aos relatos do narrador. Há
trechos em que cenas líricas, de impacto, dominam. Os que se seguem, por exemplo, trazem o
belo relato de lembranças de infância do personagem-escritor, quando ele teria vivido o
nascimento da escrita literária, produzindo uma narrativa sobre uma experiência junto à mãe,
mas contada pela voz e sentimento do adulto, tomado de emoção:

[...] e, antes de gaguejar a primeira frase, o menino sentiu que daquele instante abria-
se outro, como uma boneca que sai do ventre de outra boneca, com a diferença de
que os instantes não eram idênticos, e sim, quem sabe, completamente opostos.
Desanuviava-se o tempo, silenciavam as gotas que já não escorriam pela janela,
desaparecia a janela e se franqueava um amplo campo de pasto rasteiro, delimitado
por um bosque remoto e árvores imponentes, cujo verde se deixava dourar pelo sol
que as escaldava (FUKS, 2011, p. 49).

Mas também essa metamorfose deu lugar a outra, o rosto da professora foi
esvaecendo na névoa imaginária, e logo o menino pôde ver a face muito real da mãe
singrada por dois traços quase transparentes, ambos tendo início em um ponto
diferente do mesmo olho e se unindo até desaparecerem sob a risca do maxilar. O
menino, a princípio, não quis entender o que acontecia e olhou a janela para
averiguar se, numa remota possibilidade, aqueles traços não passavam de sombras
no rosto alheio das gotas de chuva que escorriam pelos vidros. Depois voltou a
baixar os olhos, procurou os dedos de outra mão para tentar entrelaçá-las e soube
que a mãe, por fim, chorava (FUKS, 2011, p. 51).
70

Entretanto, mais que o sentimento do adulto que retoma cenas de infância, ocorre a
criação literária mesma, pois a distância temporal entre a experiência e a escrita faz com que
ele não apenas recomponha a sepultada e merencória infância, mas que, contemplando as
palavras, deixe-as arranjadas ao leitor, para que as imagens não percam força. Isso se dá por
um exercício que ultrapassa a ação discursiva do narrador, pois uma criação estética de cena
vai tomando lugar. Verifica-se, então, que uma voz narrativa nova, diferentemente lírica e
terna, toma corpo, uma voz não condizente com o tom narrativo até então.
Garante o arranjo estético o fato de que “o menino nunca vira a mãe chorar, e nunca
voltaria a ver” (FUKS, 2011, p. 51), segundo informação passada pelo narrador, que deixa
explícito ao leitor que a realidade da literatura não é a realidade vivida e que ela também
nunca se repete. Ressalte-se que a informação foi transmitida pelo narrador, não pelo
personagem-escritor, o que significa que aquele trouxe a chave, a ponto de inclusive
manifestar, em sua voz, a voz do outro, no questionamento ambiguamente profissional e
existencial:

Quanto de seu desempenho não estaria ausente de qualquer intuito literário,


reduzindo-se à mesquinha vontade de verter em palavras uma confissão inócua e
extemporânea? Quantos milhares de quilômetros de bosques foram derrubados,
árvore por árvore decepada com crueldade, milhões de páginas maculadas por
quantas piscinas de tinta negra, tudo de uma inutilidade atroz quando empregado em
irrelevantes e tão pessoais expiações de culpa? (FUKS, 2011, p. 53).

Com essa instrução, o narrador, mais uma vez, demarca seu poder de ascendência
sobre o protagonista. Todo o discurso ficcionalmente rememorativo faz parte de um
movimento de entrega do personagem-escritor a um duplo mental: ele, um ser com história, e
ele, um ser com estilo. Ocorre que quem se posiciona com consciência sobre esse duplo é o
narrador. Sebastián ainda não sabe deixar a autonomia da ficção tomar corpo, não a separa de
si. Quem dá conta do fingimento poético é o narrador, condição anunciada no trecho: “Além
disso, essa imagem que tanto o tocou, que deveria estar cravada em sua memória, mas não se
cravou, essa imagem perde grande parte de sua força se o leitor não está informado de que o
menino nunca vira a mãe chorar, e nunca voltaria a ver” (FUKS, 2011, p. 51).
É por meio do lembrete que o leitor é acordado do enleio no qual estava enquanto lia
as reminiscências, tomado pela poesia do momento, tomado, portanto, pela construção
estética que o personagem-escritor fazia. Assim, o narrador permite que a voz do Sebastián
autor se manifeste, sem, no entanto, deixar que ele tome as rédeas da narrativa (ação ratificada
71

pelo próprio Sebastián, que não se dá essa permissão, tendo em vista estar preso à dúvida
quanto à legitimidade do discurso literário, conforme ilustra a citação).
E essa não é a única forma de o narrador delimitar seu espaço nesse jogo de vozes. Ele
não faz isso apenas pelos arranjos literários que vão se delineando no decorrer dos parágrafos,
mas também pela forte carga de considerações do campo da literatura retiradas das reflexões
do personagem-escritor, que, igualmente, são objeto de reflexão do narrador, de forma que
ambos se sobrepõem, como ilustra a seguinte passagem:

Entretanto, embora tenha saído do apartamento revisando com antecedência as


expressões adequadas a um eventual encontro com a porteira, que não ocorreu,
embora tenha se obrigado a se abrigar da chuva no primeiro café que lhe apareceu e
tenha ponderado sobre a índole normativa de seu receio de receber sobre os ombros
inofensivos pingos, embora comido com prazer desmedido um par de medias lunhas
acompanhado de um submarino, embora a convivência em um ônibus abarrotado o
tenha brindado com sucessivos e numerosos diálogos que faziam o momento
contrastar com o laconismo que experimentara nesses últimos dias, embora tenha
julgado que naquele torvelinho de amenidades e frases feitas devia se esconder um
sem-número de verdades mundanas de indubitável valor para aqueles que se
propõem a abarcar o mundo em suas histórias, e tenha lamentado sua própria
incapacidade de prestar atenção nelas por mais de alguns mesquinhos segundos,
entretanto, é só no instante em que está agachado no último corredor de um sebo
estreito e extenso da calle Corrientes, invisível por trás de várias fileiras de altas
estantes, que volta a pensar em seu personagem (FUKS, 2011, p. 57).

No trecho, estratégias linguísticas expõem um só conteúdo, mas promovendo


duplicidade de vozes. Trata-se de sete concessivas, adicionadas entre si. Essa hiperbólica
construção retrata o quanto o personagem-narrador embaraça-se para pensar na construção de
uma obra literária. Elementos comezinhos, que poderiam ser mote para uma escrita, tornam-se
obstáculos. Quem enumera essas concessões? Quem mostra o torvelinho que acomete
Sebastián? Certo é que o narrador, onisciente, relata o que vive e sente seu personagem. Mas
também se vê nessa enumeração uma impaciência por parte do narrador, um tanto saturado
dessa incapacidade do outro de escrever, o que o torna impotente para fazer andar a narrativa.
Atrelado a isso também se vê o personagem-escritor sem dar conta de si, emaranhado em
pequenas situações aquém de um potencial literário. A dimensão do parágrafo, a repetição da
conjunção “embora” e do verbo “tenha”, seguido de vários particípios, sem nenhum limite
estabelecido por uma pontuação terminal, tudo isso promove a sensação de estado de
redemoinho interno ao personagem, mas um estado que se instaura no discurso, pois várias
ações, na prática, ocorreram: Sebastián saiu do apartamento, abrigou-se da chuva e ponderou
sobre ela, comeu algo, entrou em um ônibus lotado de passageiros, ouviu conversas e refletiu
72

sobre elas, lamentou-se pela incapacidade de concentração. Apesar delas (ou por causa delas),
a única ação que importaria — escrever um livro — não acontece.
Dois capítulos fazem um corte nessa constância de discurso indireto-livre. São
momentos que quebram essa matrioska de vozes, e o personagem assume seu papel mesmo, o
de escritor. Trata-se dos capítulos 6 e 11, dois oásis — pura primeira pessoa em meio a
alternâncias, permissões, retomadas, sobreposições e subposições.
No primeiro deles, Sebastián parece contrariar Drummond (1983) acerca do fazer
poético, em seu Procura da poesia, pois usufrui de uma cena tão pessoal, tão íntima, que
parece apenas revelar os sentimentos de quem tenta uma longa viagem à procura do romance,
na qual prevalecem o pensamento e o sentimento.
No entanto, há uma penetração no reino das palavras, que, frescamente, emergem na
narrativa e promovem um novo sentido para o título da obra: até então, romance, o gênero
narrativo, a busca do romancista; a partir de então, romance, o amor:

Nem a luz desvencilhada da cortina que você entreabriu, nem o som do seu sussurro
acariciando meus ouvidos, nem o toque suave dos seus dedos sobre a minha tez,
nenhum pedaço de gengibre assomando a meu nariz, nenhum morango invasor
pousado dentro da minha boca. O que me acorda é a desaparição dos sentidos.
Imersa no breu e no silêncio, minha mão toma a forma do seu ombro e teima em
vasculhar o vazio sem encontrar vestígio de um pedaço seu. Alheia aos odores
indiferentes que emanam dos lençóis, minha boca abre e fecha sem recobrar
qualquer resquício do último beijo que você me deu.
Acordo e sinto meus pés presos entre os lençóis como se alguém acabasse de
envolvê-los na mortalha que um dia me será destinada: você não esteve aqui para
desencravar os panos de sob o colchão e me livrar de um improvável medo da
morte. Também não foi deixando pelo chão, como uma Maria, mas sem João,
cabelos que eu pudesse ir recolhendo cômodo trás cômodo até me defrontar com seu
calor. Este você nunca habitou. Como no meu rosto, não há nas paredes a impressão
de qualquer um dos seus dedos. Como no meu peito, não há no piso nenhum indício
de uma pegada sua (FUKS, 2011, p.54).

Esses dois belos parágrafos iniciais do capítulo claramente tratam de revelar


sentimentos e sensações quanto a uma ausência feminina. É um relato de experiência, feito
pela voz de alguém que não é o personagem-escritor, que não é o narrador, mas apenas a voz
de um escritor que se deixa levar por si mesma. Límpida. Lírica. Envolvente. Sebastián passa
da encenação de um ser de papel à encenação de um ser de carne e osso, um escritor, não mais
um personagem-escritor, avivado que foi pelo discurso que emana de uma autoria
responsável, não por titubeamentos, mas por condicionar a narrativa ao exercício da palavra.
Nesse momento, o leitor é dominado, não pelos jogos de vozes que se entrelaçam, mas
pelas imagens constituídas pelas palavras e expressões sensoriais que vão se tecendo: “nem a
luz desvencilhada da cortina que você entreabriu” (visão), “nem o som do seu sussurro
73

acariciando meus ouvidos” (audição), “nenhum pedaço de gengibre assomando meu nariz”
(olfato), “nenhum morango invasor pousado dentro de minha boca” (paladar), “minha mão
toma a forma do seu ombro e teima em vasculhar o vazio sem encontrar vestígio de um
pedaço seu” (tato). A experiência vivida é a da ausência, revelada pelas palavras nos efeitos
que promovem, transformando-a em uma experiência estética. A princípio, cotidianamente, o
que aciona o acordar de alguém é o estímulo a algum sentido: a luz teimosa em fazer os olhos
se abrirem, um sussurro em meio ao sono, um cheiro perturbador, uma intromissão na boca
fechada em sono, um movimento de corpo invasor do espaço da cama... Na descrição
sensitiva de Sebastián, ocorre o contrário: a ausência de sensações é o que desperta. Essa bela
inversão entre o cotidiano da vida e a percepção literária do momento compõe a cena, que,
num ápice lírico, se recobre de saudade — “minha boca abre e fecha sem recobrar qualquer
vestígio do último beijo que você me deu”. No trecho, há um efeito de prolongamento
temporal, configurado por meio de uma metonímia que denuncia a avidez por um beijo, que
nada mais é que qualquer indício, portanto, algo muito distante.
Além da cena sinestésica, toda a sensação erótica e amorosa descrita se faz por meio
de figuração: uma comparação entre a ausência da amada e a morte (“[...] meus pés presos
como se alguém acabasse de envolvê-los na mortalha que um dia me será destinada [...]”);
uma analogia entre a história infantil João e Maria, invertida nas ações, pois quem deixaria
pegadas, mas opta por não as deixar, é Maria, e quem se desespera sem elas é João, porque
assim não encontra o caminho de volta, o lar, enfim. As pistas, de miolinhos de pão, passam a
ser fios de cabelos longos, que, como os de Rapunzel, são guias que deveriam estar
espalhados pelos cômodos para o encontro do calor, do erotismo. Essa ausência dos cabelos
presentifica uma ausência remota, e o corpo e a casa se ajustam, um é o outro: rosto e paredes,
sem o toque dos dedos da amada; peito e chão, sem marcas dos passos da amada.
Toda a experiência se recobre, assim, de palavras.
Ora, onde está o personagem-escritor titubeante? Onde está o homem cujas reflexões
são o bojo do romance que ele procura? Nesse momento, fica desaparecido. Atua um
personagem que protagoniza não a si mesmo, não uma cena, mas o próprio dizer poético. O
movimento é tão claro, que ele narra um momento de criação, salientando o que está “entre”
elementos da realidade, nada nos extremos, na realidade, nas coisas, mas no vácuo das
palavras, em que os romances esperam ser escritos:

Tranco-me no banheiro e me deparo com dois abismos muito reais: o que se cria
entre o espelho e o brilho refletor dos meus olhos, e o que se prolonga entre os meus
olhos e os olhos refletidos no espelho. Você há de pensar que assim se confirma
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aquilo de que me acusa; há de pensar que sou mesmo um sujeito autocentrado, um


ególatra. Livro-me da sua argumentação inventada com um esforço imaginativo:
situo a imagem do seu rosto, semitransparente como um espectro, entre os agentes
de ambos os abismos. Súbito, tenho você infinitas vezes e se desvanece a sua
ausência (FUKS, 2011, p. 55).

Observa-se, no trecho, o esforço imaginativo dando lugar à invenção, algo que se cria
e que se prolonga. Impressiona como o escritor percebe onde ela está, onde está a invenção,
localizada entre: espaço impalpável, abismal. Ali ele situa a imagem da amada, que se
multiplica e da qual ele usufrui por um instante, fugidia que é, mas que consegue retomar,
para tecer mais imagens associadas ao amor de ambos. Corporifica-se, então, a voz de um
sujeito criador, trazendo à tona uma voz discursiva constitutiva da realidade da obra e não da
realidade documental.
Ora, vale também perguntar: onde está o narrador, dono da narrativa? Nesses
momentos, não há intervenção desse ser de papel, que não faz o discurso de Sebastián
irromper nem o interrompe, não lhe toma a palavra, não lhe cede a palavra. Tem, ou dá a si
mesmo, um descanso em sua função distorcida. Tem um momento de sossego ou permite-se
respirar aliviado do exercício daquela transmutação de vozes. São ocasiões de arroubo, que
registram algo em que o narrador não se atreve a intervir — ou não pode intervir —, a palavra
criadora, sob pena de um desconforto irrecobrável: acompanhar o personagem-autor na sua
procura do romance é constrangedor, mas viável; acompanhar o autor na busca do amor seria
uma intromissão.
No capítulo11, ocorre a mesma ausência do narrador em terceira pessoa e presença
exclusiva da voz do escritor em sua exposição à amada. A figuração é outra: o personagem-
autor, transmudado em palavras esteticamente postas, vê a si como um inseto em um casulo,
prestes a rebentar-se para a vida, ao encontro de um outro, a amada, também em um casulo:

Arrastava-se pela superfície cimentada e era como se se arrastasse pela superfície


dos meus olhos, atravessando as pupilas estupefatas: contrariava a gravidade e se
dirigia, de fato, à crisálida menos delgada, à segunda parte da conveniente miragem,
à companheira imaginada que permanecia em seu claustro. Era absurdo que a
metáfora que antes lhe fora destinada se concretizasse; um despropósito da realidade
que subvertia significados, que renegava por iteração as identidades reivindicadas.
Estaria eu saindo do meu casulo para bater no casco do seu e chamar por seu nome?
Mas como poderia fazer isso se estava tomado pela passividade, se era representado
por alguém cujas vontades eu não controlava, se o ator que performava adiantava-se
a mim num ato improvável? (FUKS, 2011, p. 100).

De forma semelhante ao que acontece no capítulo 6, ainda no capítulo 11, o olhar do


escritor sobre si mesmo ocorre sem a intermediação do narrador: primeira pessoa absoluta, ele
75

se vê na situação relatada, percebe a busca que ele próprio empreende pela amada. Convive
com a cena, consigo mesmo, e expõe essa convivência metaforicamente, aproximando-se da
cena e a contemplando. Personagem de si mesmo, o escritor é tomado de autonomia à procura
do romance e do amor. E é dessa procura que ele fala, considerando estranhíssimo o fato de a
metáfora que lhe fora destinada como escritor ser aquela que lhe está sendo destinada como
amante. A pergunta que subjaz a essa cena é: a vida imitaria a literatura? Ao observar a
palavra que parece criar vida, ele entrevê suas mil faces ocultas.
Somam-se a essa metáfora elementos de sonoridade, como a aliteração dos sons /r/ e
/s/ (“Arrastava-se pela superfície cimentada e era como se se arrastasse pela superfície dos
meus olhos, atravessando as pupilas estupefatas [...]”) e a repetição de palavras (“Arrastava-se
pela superfície cimentada e era como se se arrastasse pela superfície dos meus olhos,
atravessando as pupilas estupefatas [...]”), que faz prolongar-se a metamorfose e o processo de
encontro da vida.
Os recursos são criados por alguém que busca, na face neutra da palavra, a face que
melhor o traduz.
Assim, os dois instantes de voz cristalina desabrocham em meio aos outros momentos.
São circunstâncias em que o narrador parece desligar-se da tarefa de trazer à tona as reflexões
do personagem-escritor. A sensação de alívio que é passada faz descobrir o quanto pesa ao
narrador o trabalho de escoltá-lo nessa procura do romance, como se fosse uma empreitada
não da sua competência, mas uma aptidão de uma voz autoral.
Nesses momentos de fôlego, vem à luz o escritor que subjaz à encenação do
personagem-escritor. Sebastián deixa de ser encenado como o objeto narrado, para encenar
ser o agente criador da narração, um escritor, utilizando recursos estéticos para dizer de sua
procura pelo romance concomitantemente à sua procura pelo amor.
O desconforto de ambos fica evidente, então, já que a sensação aliviante ocorre,
quando os papéis são assumidos: o narrador que acompanha um personagem que é escritor,
relatando seus passos e reflexões, sai de cena para que seja encenado o exercício do escritor.
Mas essas encenações são esporádicas, pois, se Sebastián está em busca de sua
identidade autoral, se ele está em busca da sua condição de ficcionista, temos
predominantemente alguém que não consegue escrever, narrar, construir um enredo; temos
alguém que não tem a chave para abrir a obra, dar início a ela. Daí que o narrador reconta o
discurso alheio — o discurso de alguém que fica girando em torno de suas próprias ausências,
e, sendo assim, de alguém que acaba por não ter o que narrar. É fatal, então, a pergunta:
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Existe uma história? Se a inefável instância da experiência tão logo se dilui em nada,
turva lágrima e densa névoa, antes mesmo de se deixar perceber, compreender,
concatenar a outros domínios igualmente evanescentes. Existe uma história? Se o
tempo, com tal empenho e desfaçatez, cuida de dissolver também as marcas físicas
dos acontecimentos antológicos ou corriqueiros, legando ao universo um passado
rarefeito e a imutabilidade paradoxal das coisas sempiternas. Existe uma história? Se
não há conflito, não há enredo, se a realidade concede apenas uma linhagem vaga de
eventos, sem sucessões lógicas a cerzir ou emaranhados míticos a descosturar.
Existe uma história, se toda metáfora e toda memória são insatisfatórias? (FUKS,
2011, p.77).

O trecho destaca um personagem-escritor que reflete sobre sua posição no processo de


construção de uma obra literária. Como ele se vê incapaz de narrar, não tem condições de
construir um personagem, colocá-lo em um espaço, situá-lo em um tempo, responsabilizá-lo
por peripécias, temos uma narrativa sem alguém que assuma sua escrita, privado, como
afirma Walter Benjamin, “de uma faculdade que [nos] pareceria segura e inalienável: a
faculdade de intercambiar experiências” (BENJAMIN, 1987, p.198).
A experiência de narrar está em estado de impedimento, mas sob uma curiosidade:
paradoxalmente, é essa mesma falta de experiência de narrar que se configura com
predominância, pois, pela visão de um narrador que paira onisciente sobre os pensamentos
daquele que deveria orientar a composição narrativa, é a busca intermitente do romance que
prevalece.
Assim, o narrador, que, a princípio, seria um personagem de papel construído por um
escritor, apropria-se de um discurso de autoridade pertinente à autoria, sem, contudo, se
apaziguar nessa função; e o autor, que, a princípio, seria aquele que promove a construção da
obra, desloca-se para a função de personagem, apresentado como um autor desarranjado, um
ser perdido em busca de uma linguagem que seja a sua.
Esses deslocamentos se dão de forma que os discursos de ambos se apresentem. Sendo
assim, o personagem-escritor não é silenciado nem ignorado nem abandonado na sua
condição estética, pois, com dificuldades em controlar a própria existência e em dar a ela um
sentido, tem essas limitações postas como enredo pela mão do narrador. Dessa forma, o
narrador descentra-se de si mesmo, dirige seu olhar para a trajetória do personagem-autor,
narrando os confrontos que o outro tem consigo mesmo. Dessa forma também, monólogos
parecem sair dessa condição e, sendo ouvidos pelo narrador, também são levados ao leitor.
Então, ocorrem diálogos, e o ponto de vista do autor fica acoplado ao narrador, que “deixa” o
autor relatar seu mal-estar em relação à escrita, sua desconfiança em si mesmo, num
dramático discurso-indireto. A problematização integra-se a ambos, de forma que nenhum dos
dois se constitui em si mesmo de forma plena. Pelo contrário, o personagem-autor só existe na
77

complementaridade do narrador. E o narrador só existe na complementaridade do


personagem-escritor. Essa complementaridade é permeada pelo desconforto de ambos. O
narrador, por vezes impaciente e enfastiado, porque vive a desenhar os passos do personagem-
escritor, se alimenta daquilo que pensa o personagem-escritor. O personagem-escritor, porque
não consegue construir seres de papel, indeciso, hesitante como está, no processo de procura
do romance.

2.5 O avesso do avesso do avesso

Sentir? Sinta quem lê.


Fernando Pessoa

Se o desconforto de vozes, em A passagem tensa dos corpos, se dá pela presença de


um narrador incorpóreo que almeja substanciar-se como narrador; se o desconforto de vozes,
em Procura do romance, é construído pelo compartilhamento de vozes para a procura do
romance, o que significa a procura da própria função de romancista, em Budapeste, de Chico
Buarque (2003), esse desconforto se constitui da disposição do narrador para renegar seu
papel de autor, alguém que opta pelo total apagamento, sem, no entanto, consegui-lo
totalmente. Trata-se de mais um perfil de voz que também põe em discussão a identidade do
sujeito e o valor da literatura, desta vez, sob o manto do anonimato.
Não há dúvida de que a literatura se faz pela alteração de identidades, começando pelo
escritor, passando pelo narrador, adentrando os personagens, chegando ao leitor, com
peculiaridades atreladas a contextos e autores. No caso de Budapeste, o veio que conduz a
trama é o da outridade. José Costa, narrador e protagonista da obra, é um ghost-writer,
denominação irônica para um autor anônimo, alguém que faz textos de diversas ordens sob
encomenda, repassando a autoria da obra a outro, assumindo não ser ninguém. Ele é sócio em
uma empresa, a Cunha & Costa Agência Cultural, cuja especialidade é exatamente a
construção de monografias, artigos de opinião, cartas pessoais, autobiografias e literatura que
serão assinados por outros. Embora realize trabalho de embusteiros, a empresa é considerada
confiável, pela qualidade e garantia dos serviços prestados, um paradoxo tratado com incrível
naturalidade. José Costa, especialista na farsa desde sua formatura em Letras, assume seu
78

papel de escritor anônimo, como se fosse uma profissão de respeitabilidade. Casado com
Vanda, pai de um filho, cidadão do Rio de Janeiro, com vida financeira estabilizada, mantida
pelo rentável trabalho anônimo que exerce em tarefas nas quais transforma seu domínio da
língua portuguesa em empreendimento, o narrador-protagonista tem, ao mesmo tempo, uma
segunda vida em Budapeste, cujo início se deu quando sofreu um pouso acidental ao retornar
de um inusitado Encontro de Escritores Anônimos em Istambul. Esse acaso faz emergir uma
outra face do personagem: José Costa é também um estrangeiro, Zsoze Kósta, que se
relaciona amorosamente com Kriska e que não tem vida financeira estabilizada, nem domina
o idioma húngaro.
Entre as peculiaridades da obra, a que nos interessa é o fato de que não há conflito em
José Costa ante a opção de não assinar as obras que escreve, estabelecendo para si mesmo sua
condição de anônimo. Sua aflição se dá ante a perspectiva de sua assinatura ser exigida ou de
a fraude ser denunciada, condição que acusa um desconforto quanto ao ato de escrever, pois
se trata de algo que deseja fazer, mas não quer assumir. Não há nele nenhum anseio por
inscrever seu nome naquilo que é seu. Pelo contrário, conforme afirma Flávio Carneiro
(2005), o narrador de Budapeste não sente no anonimato uma maldição, pelo contrário, tem
nisso a meta a atingir. Acrescenta o crítico que “[...] Chico Buarque criou um ótimo
personagem a partir de uma inversão inicial, seguida por outras que dela surgem, dialogando
com a primeira, de tal forma que, ao final, o que sobra é só mesmo um relato multipartido,
[...]” (CARNEIRO, 2005, p. 209).
Dessa forma, o delineamento do narrador-personagem se dá pela composição de uma
incoerência entre o querer fazer/não querer assumir o feito, prezando, assim, a obra, mas
desprezando o estrelato. Essa tática promove desconfiança no leitor, levado a perceber a
duplicidade do narrador, que, concomitantemente, parece desprezar a si mesmo, mas ovaciona
a obra, o que, automaticamente, ovaciona o autor. Mas somente ele mesmo promove para si
essa ovação, não lhe importando, e até lhe dando prazer, que os louros públicos sejam para
outro. Basta a ele dar a si mesmo esses louros. Essas inversões são a tônica do romance, e por
elas postam-se questões como autoria, apresentada como mero fetiche, e literatura, como
apenas mercadoria, o que contribui para a revelação do desconforto da voz narrativa que se
apresenta na ficção em estudo. Não é mero acaso, por exemplo, o fato de o narrador ser o
próprio protagonista e não se esconder sob a voz de um outro. Assumido, descarado, o ghost-
writer não se faz de rogado quanto a escancarar seu desejo de se esconder, de não ser
percebido, de não se dar a conhecer, de não receber os créditos por sua obra. Talvez, mais que
o desejo de anonimato, esse jogo contraditório seja seu alimento.
79

Para a realização do paradoxo, há uma conjunção de comportamentos traçados em tom


de total desprendimento, com aparente irrelevância, mas postos assim estrategicamente, de tal
forma que o manto do descaramento, ao cumprir a farsa da autoria, simultaneamente exponha
e esconda o desconforto quanto à função de escritor. Vamos nos ater a um desses traços — o
vínculo entre a produção de tipos e gêneros textuais e as reações do narrador a essa produção.
José Costa considera-se um escritor, conforme se autodenomina em várias passagens,
a exemplo de “Vanda nem sabia que tipo de escritor eu era...”, ou “Vanda não estava, deixei-
lhe um bilhete informando que partiria para o congresso mundial de escritores” (BUARQUE,
2003, p. 15, 19). Ele assim se reconhece, porque produz monografias, provas de Medicina,
petições, cartas de amor e de chantagem, bem como discursos de políticos, e entende que a
produção do material é típica de escritores. Confirma isso o fato de ele comparar a
insuficiência do pagamento recebido àquele feito a digitadores ou copiadores, como se
merecesse receber mais. Deduz-se então que o protagonista se coloca (e, portanto, o escritor)
em patamar acima desses profissionais, embora tenha ciência de que sua produção é apenas
“mercadoria”: “Pagavam em espécie mediante a entrega da mercadoria e partiam às pressas
[...]” (BUARQUE, 2003, p. 14).
Leyla Perrone-Moisés, em seu artigo “A criação do texto literário” (1990), discutindo
a nomenclatura ajustável (e sem pretender/conseguir chegar a uma adequada) ao fazer
literário, enumera palavras, comentando sobre sua pertinência, entre elas o vocábulo
produção, que se adequaria ao que leva José Costa a se autoclassificar como escritor.
Segundo a autora,

[...] essa é uma palavra marcadamente materialista. Em economia, produção é a


criação de bens e de serviços capazes de suprir as necessidades materiais do homem.
[...] É a [palavra] que se liga de modo mais homogêneo com a palavra texto,
compreendido este como objeto material e concreto. Inserido num processo de
produção, o texto fica equiparado a um produto do mundo industrial, como um
guarda-chuva ou uma máquina de costura (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 101).

Tomando esse sentido, consegue-se compreender por que José Costa coloca a função
de escritor e a de copista em graus diferentes. O que, aos olhos do protagonista, as diferencia
é o fato de que há trabalhos para cuja atuação se faz necessária muito mais que uma prática
mecânica (como a de copista), algo vindo de alguém, por exemplo, “apto a redigir discursos
para qualquer circunstância, a partir de um rascunho ou de uma entrevista breve”
(BUARQUE, 2003, p. 16). Assim, o trabalho de autoria seria ancorado em uma realidade, esta
modificada por alguma circunstância, o que sugere haver condições sociais de produção,
80

como autor e leitor, e, então, estratégias pertinentes a elas. Há nessas considerações de José
Costa reflexões acerca do status da literatura e do escritor, pois ele anuncia uma discussão
quanto ao nivelamento de um discurso de político, uma monografia à ficção, segmento até
então nem citado ou comentado.
Apesar dessa concepção de escritor (ou por causa dela), o ghost-writer vive certo
incômodo. Ele se sente insatisfeito em especial quanto aos discursos elaborados para
políticos, pois eles se apropriam da mercadoria e a alteram a seu bel-prazer. Claramente,
então, o protagonista deseja que, embora não assinando o material, ele permaneça da forma
como o construiu, em outras palavras, é material dele. Alterados, passariam a ser outro
produto. José Costa deseja que seja cumprido um acordo de aceitabilidade que não se
cumpria. Ocorre que essa insatisfação, embora sentida, é indevida, pois, na verdade, o gênero
discurso de político prescinde do acordo, tendo em vista que, corriqueiramente, exige o tom
teatral do momento bem como ajustes de ocasião.
Ante essa insatisfação, passa a produzir artigos publicados em jornais de grande
circulação, os quais não seriam passíveis de sofrer alterações, pois o pacto de leitura se ancora
em um suporte que não sofre as intempéries das circunstâncias. Quanto a esses textos, tinha
grande prazer e vaidade ao vê-los circulando inalterados e com outra rubrica: “Naquelas
horas, ver minhas obras assinadas por estranhos me dava um prazer nervoso, um tipo de
ciúme ao contrário. Porque, para mim, não era o sujeito quem se apossava da minha escrita,
era como se eu escrevesse no caderno dele” (BUARQUE, 2003, p. 18).
Verifica-se que o trecho dá destaque à autoria, mas sob um ângulo distinto, pois ela
desloca-se de lugar, estando onde a obra está. Dessa forma, realmente não importa a
assinatura, porque a assinatura é a obra, inalterável, consistente em si mesma. José Costa faz
sair de cena o autor, para deixar permanecer a obra, inclusive em tom divertido,
ridicularizando o deslumbre pela autoria, não pela obra, sentindo o prazer que o oculto
promove, comparado ao que um homem sente “tendo um caso com a mulher alheia”
(BUARQUE, 2003, p. 18).
A obra, então, é o elemento vital, e não a assinatura. Assim, na prática de escrita de
artigos, José Costa vai reconceituando a figura do escritor, demonstrando seu desconforto em
relação não exatamente ao exercício que configura esse papel, mas à exibição dele. O
interessante é que pensa dessa forma, mesmo encarando a obra apenas como material
rentável, dizendo estar à procura de uma seara em que houvesse “recompensa profissional
para valer” (BUARQUE, 2003, p. 16).
81

Do artigo para a autobiografia, foi, então, um pulo, entregando-se a mais um gênero


que não seria passível de alteração. Ocorre que, diferentemente do artigo, a estrutura de uma
autobiografia vincula-a a uma narrativa, com todos os elementos de uma trama, mesmo que
presa à reprodução do “real”, o que exige novas estratégias de construção. É nesse momento
que recebe a encomenda para escrever as aventuras cariocas de Kaspar Krabbe, um executivo
alemão. Ao ouvir as fitas gravadas que o contratante trouxera, começa a transcrever o que
ouvia, cumprindo a missão de construir uma biografia composta das experiências e da voz do
biografado, mantendo um acordo com a verdade ali apresentada. Ocorre que, aos poucos, vai
deixando esse composto de lado e passa a assumir uma voz que não é a do alto funcionário,
mas que também não é a sua, construída com cruzamentos inéditos, oriundos de seu próprio
arquivo cultural. Assim, um afastamento dos eventos da vida começa a se dar, sem com eles
haver embaralhamento, por meio de uma representação. Tomando como pano de fundo os
relatos enviados pelo executivo, José Costa acresce elementos ficcionais que corrigem aquele
mundo ordinário proposto, criando um enredo inédito, indiscutível e inalterável.
Nesse percurso, um sentimento de diferença linguística e estética domina a narrativa.
A princípio, o ghost-writer registra, com ajustes, o material enviado por Kaspar Krabbe:

[...] Pegava a esmo uma das vinte fitas cassete que o alemão deixara gravadas, ouvia
vagamente sua voz, pousava os dedos no teclado, e eu era um homem louro e cor-
de-rosa sete anos atrás, quando zarpei de Hamburgo e adentrei a baía de Guanabara.
Eu nada sabia desta cidade nem pretendia aprender o idioma nativo, fui enviado para
pôr ordem na Companhia, e na Companhia só se falava alemão. Não contava
conhecer Teresa, que me introduziu ao Chamego do Gambá, boteco onde se tomava
cerveja e se cantavam sambas a noite inteira. Ali me iniciei na língua em que me
arrojo a escrever este livro de próprio punho, o que seria inimaginável sete anos
atrás, quando zarpei de Hamburgo e adentrei a baía de Guanabara. Ao primeiro
contato, o idioma, o clima, a alimentação, a cidade, as pessoas, tudo, tudo me
pareceu tão absurdo e hostil que caí de cama, e ao me levantar dias mais tarde, vi
horrorizado meu corpo pelado e meus pêlos soltos no lençol. Depois conheci Teresa
e fui me enfronhando no país, fui ao boteco, fui à favela, fui ao futebol, à praia
custei a ir porque tinha vergonha. [...] Uma morena como Teresa seria inimaginável
sete anos atrás, quando zarpei de Hamburgo. [...] Esqueci Teresa como já tinha
esquecido Hamburgo, e larguei a Companhia para fundar uma ONG, ou melhor,para
catar mulher na praia, o que seria inimaginável sete anos atrás, quando adentrei a
baía de Guanabara, e extasiado perdi todos os pelos [...] (BUARQUE, 2003, p.29-
30).

O trecho ilustra o trabalho do escritor, a começar pelo uso do pronome “eu”, que
escorre em meio às palavras, passando automaticamente da referência a José Costa e daí para
a primeira pessoa da autobiografia, ambas reproduzindo eventos da vida. O resultado disso
não o satisfazia, pois o texto, aos seus olhos, “estava viciado, patinava, não evoluía”
(BUARQUE, 2003, p. 30). Claro está que as reproduções do original não promoviam efeito
82

estético e aproximavam-se em demasia do que a audição aleatória das fitas trazia.


Incomodado, José Costa sentia que alguma coisa o atrapalhava, palavras bizarras surgiam em
sua mente, ele “esfolava os dedos no teclado e no fim da noite jogava o trabalho fora”
(BUARQUE, 2003, p. 30). A experiência de vida do alemão compunha-se de um real
insatisfatório, nada compensador. Se reproduzisse o que as fitas apresentavam, não seria
“como se [ele] escrevesse no caderno [de outro]” (BUARQUE, 2003, p. 18).
Essa dificuldade o afastou da produção. Mas a retomada da autobiografia teria que se
dar, e se deu, forçadamente, pois o contratante passou a anunciar, publicamente, sua obra, e o
prazo de entrega começou a se estreitar. Assim o narrador protagonista nos revela o instante:

De qualquer modo, naquele instante, fechei o jogo, arregacei as mangas, pousei os


dedos no teclado, zarpei de Hamburgo, adentrei a baía de Guanabara e preferi nem
ouvir as fitas do alemão. Eu era um jovem louro e saudável, quando adentrei a baía
de Guanabara, errei pelas ruas do Rio de Janeiro e conheci Teresa. Ao ouvir cantar
Teresa, caí de amores pelo seu idioma, e após três meses embatucado, senti que
tinha a história do alemão nas pontas dos dedos. A escrita me saía espontânea, num
ritmo que não era o meu, e foi na batata da perna de Teresa que escrevi as primeiras
palavras na língua nativa. No princípio até que ela gostou, ficou lisonjeada quando
lhe disse que estava escrevendo um livro nela. Depois deu para ter ciúme, deu para
me recusar seu corpo, disse que eu só a procurava a fim de escrever nela, e o livro já
ia pelo sétimo capítulo quando ela me abandonou. Sem ela, perdi o fio do novelo,
voltei ao prefácio, meu conhecimento da língua regrediu, pensei até em largar tudo e
ir embora para Hamburgo. [...] Toquei na casa de Teresa, estava casada, chorei, ela
me deu a mão, permitiu que eu escrevesse umas breves palavras enquanto o marido
não vinha (BUARQUE, 2003, p. 38-39).

Os movimentos estéticos do segmento são deliciosamente metalinguísticos. A


ansiedade do narrador é posta no deslizamento entre a audição da vida do alemão e o ato de
produzir a obra: primeiras pessoas se misturam nos atos de zarpar, adentrar e preferir, de tal
forma que há um deslocamento do escritor para o biografado. Em seguida, surge uma outra
primeira pessoa, com vocabulário próprio, que erra pela cidade e que, pela primeira vez, vê
Teresa, fazendo compensar, pelo exercício da imaginação, a medíocre realidade de Kaspar
Krabbe. Essa realidade passa a ser reconstruída pelas palavras, de modo a inventar um mundo
mais pleno. Para isso, o narrador-personagem usufrui de alguns aspectos constantes das fitas,
faz outros se perderem, distanciando-se de quase tudo. A reinvenção ultrapassa a pequenez
das cenas vividas pelo alemão, dá-lhes a beleza que lhes faltava, elucidando a falta persistente
no real, à espera de ser preenchida pelo artifício das palavras.
O trabalho se harmoniza pela conjunção de vozes poéticas: o eu lírico de Castro Alves
em “A primeira vez que vi Teresa” e o de Manuel Bandeira em “Teresa”, com nova
roupagem, são associados e renovados. Teresa, personagem real das gravações, é mergulhada
83

nos poemas e volta à tona distorcida em sons e ritmos, contorcida em conotações sensuais. O
percurso da obra se enviesa para o fingimento alcançado por técnicas de apropriação. Trata-se
de uma experiência na qual linguagens comentam outras linguagens, promovendo a diferença
que alimenta a prosa de José Costa, agora um escritor de ficção.
Como tal, constrói um “emaranhado de memória individual e memória coletiva”
(ECO, 1994, p. 93), fazendo a literatura (e, portanto, a vida), por meio das vozes líricas,
prolongar-se ao mesmo tempo em que recua no tempo, de tal forma que renasce a Teresa de
Castro Alves, incorporada à Teresa de Manuel Bandeira. É essa a Teresa entregue a um
executivo alemão, que, na realidade, jamais poderia tê-la, mas que, em palavras, recebe-a e
toma-a totalmente para si.
Essa farsa, na composição da voz autobiográfica de Kaspar Krabbe, acontece não
apenas porque não é esse alemão quem está escrevendo, mas porque a voz que ali se narra não
reproduz as experiências registradas nas fitas, mas, sim, eventos estéticos, arrumações
linguageiras, colocando a Teresa de Castro Alves na vida, não do alemão, mas na vida da voz
da ficção em que se constitui a autobiografia, uma voz que se apresenta mediada por José
Costa. Ocorre uma intromissão em meio às vozes líricas do poeta moderno e do poeta
modernista e a emersão de uma outra voz saída daquele diálogo: a de um estrangeiro que
chega ao Rio de Janeiro e se apaixona por uma Teresa carioca, cujas pernas — antes estúpidas
e objeto apenas de olhar — são sensuais espaços de exploração das palavras.
José Costa ultrapassou os limites da autobiografia. Ele usufrui das informações dadas
pelo alemão, mas elas se perdem de vista, pois o protagonista acrescenta-lhes e sobrepõe-lhes
novos elementos, a ponto de fazer um apagamento das gravações. O plurilinguismo é o vetor
desse apagamento, pelos traços semanticamente distintos, pela produção de efeitos inusitados.
Trata-se do que Tezza denomina “substância ventríloqua”(TEZZA, 2012, p. 20). Quando José
Costa se apropria de Castro Alves e Bandeira, constrói um estilo, por meio de uma voz que
não é de ninguém, nem dos poetas, nem de Kaspar Krabbe, nem sua, mas um entrecruzamento
de vozes concomitantes, de todos. Trata-se de uma outra, em leque, de um novo alemão,
personagem de linguagem criativa, de percepção sensorial aguçada, que promove aquele
“efeito de beleza que parece animar toda ideia artística” (TEZZA, 2012, p. 41), distinto da
vida medíocre relatada nas gravações.
Não é à toa que José Costa, exercendo de forma redimensionada pela ficção o
exercício de escritor, sinta apego pelo livro, o que se revela não só pelo fato de ele afirmar
isso em seu discurso, mas principalmente por se deixar ainda dominar pelo estilo que
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neleapresentou, pois o poema de Castro Alves continua ecoando pelas frases tonalizadas de
Romantismo, pálidas, murmurando-lhe “adeus!”:

Mas o livro do alemão, talvez por ter sido escrito assim num jorro, eu nem
conseguia desfrutá-lo, as palavras me escapavam à vista. Palavras recém-escritas,
com a mesma rapidez com que haviam sido escritas, iam deixando de me pertencer.
Eu via minhas palavras soltas na tela, e, horrorizado, imaginava que elas me
abandonavam como o alemão perdia pêlos. Imprimi o livro, folheei-o pela última
vez, e por ter a sensação de que era meu livro derradeiro, já não o queria vender por
dinheiro algum. Cheguei a guardar os originais na gaveta, tranquei-a, depois pensei
na cara do Álvaro, abri a gaveta. Enfiei o maço num envelope pardo, escrevi na
etiqueta, à mão, o título O Ginógrafo, e as letras saíram pálidas, parecia que ali se
esgotava minha própria tinta (BUARQUE, 2003, p. 41).

Não é à toa também que Kaspar Krabbe teme que José Costa decida por assumir
publicamente a autoria da obra. A qualidade do que lhe fora entregue produziu sobre ele um
efeito que suas “vinte fitas cassete com sua voz gravada nos lados A e B, vinte horas de
histórias mal contadas, imprestáveis”, não causariam. Prova disso é o tom desdenhoso de
quem quer comprar algo usado após a assinatura da escritura que lhe dava a legalidade da
autoria da sua obra (situação de completo nonsense, levando-se em conta que o alemão dirigia
seu discurso à pessoa que acaba de registrar a fraude obra/autor):

Retribuiu-me com um exemplar de seu, para não dizer de meu livro, que autografou
no ato, com letras garrafais e firmes: ao Sr. José Costa, estes despretensiosos
escritos, cordialmente, K.K. Desculpou-se por aquela sua obra de estreia que,
malgrado o caloroso acolhimento, estava longe de satisfazer suas ambições literárias
(BUARQUE, 2003, p. 92).

Ora, conforme nos afiança Leyla Perrone-Moisés (1990), dois polos cercam a criação
literária: o escritor e o leitor, que recria a obra pela leitura, tão ativamente quanto o autor, este
um desencadeador da interpretação, mas também o que lhe impõe limites. Assim como os
políticos fizeram com os discursos escritos por José Costa, Kaspar Krabbe poderia alterar a
obra se dela constasse a reprodução de suas fitas: aqueles, porque nem necessitavam de uma
voz discursiva que os representasse, relativamente a interesses da ordem de seu
empreendimento; este, porque veria em sua história de vida algo que mereceria estar na
publicação e não estava. Encontrando no material que lhe fora entregue o inusitado e o belo
da ficção, o contratante entendeu que suas intenções foram superadas por algo que circula
apenas no reino da linguagem. Nada assim a retirar ou pôr, porque, na verdade, nada é dele.
Ele receou perder o que não é seu: “Mas quando afinal o aceitou, se tornou avaro dele,
85

estremecia de um dia o perder, não admitia sequer o dividir comigo” (BUARQUE, 2003, p.
89).
Por um ápice, José Costa deixa de estar a serviço do outro, para estar a serviço da
linguagem literária. Porém, mesmo se encontrando nessa construção em que a vida faltosa
(porque medíocre) do alemão dá lugar a um fingimento encantatório, em que o mundo sempre
a desejar é suprido pelo arranjo de palavras, sedutor para si e seu leitor, José Costa não
sucumbe à tentação de pôr ali sua assinatura, de maneira a continuar errando pelas vias da
escrita, como um vigarista de si mesmo. Ressalta-se que ele se silencia, não é silenciado, pois
sabe que literatura é “das artes a única que não precisa se exibir” (BUARQUE, 2003, p. 117).
A obra tem, assim, um lugar seguro em si mesma, prescindindo da autoria.
Ao invés de a construção de uma obra ficcional dar ao narrador uma estabilidade pelo
reconhecimento público de sua qualificação como escritor, ela acentua a inadequação de José
Costa, porque nem ela o faz deixar de ser um despudorado vendedor de textos sob
encomenda, sempre a serviço de um outro. Ele continua sentindo-se confortável apenas nessa
condição de fugitivo de si mesmo. É momentâneo seu apego à obra entregue para o executivo,
embora reconheça seu próprio valor. O que ele deixa persistir é a sensação de que o autor
existe, não na assinatura, mas em sua trama, em seus personagens: “Porque minha mão seria
sempre a minha mão, quem escrevia por outros eram como luvas minhas, da mesma forma
que o ator se transveste em mil personagens, para poder ser mil vezes ele mesmo”
(BUARQUE, 2003, p. 23).
Assim, um avesso se anuncia: um Madame Bovary deixa de ser um eu, para que um eu
seja um Madame Bovary, de tal forma que a assinatura realmente se torne dispensável, e a
trama fale por si mesma, na autonomia de seus personagens e narradores.
Em gradação dentro do processo de escritas (monografia, discurso de político,
autobiografia, narrativa ficcional), outra tipologia estética que singularmente põe em reflexão
a categoria escritor é a lírica, na composição do que José Costa considera como poesia. Dessa
vez, estando em Budapeste, empreendendo com grande interesse o aprendizado do idioma
húngaro, resolve pôr anúncios para o mesmo ofício que exercia no Brasil, ou seja, redator de
monografias, teses, discursos, agora com o acréscimo de peças de ficção. Rejeita uma
proposta, a da construção de uma poesia, porque é coisa que nunca escrevera. Além do
motivo, incomoda-o o fato de a contratante ser “uma desavisada [que] pretendia ser
destinatária do poema, em papel timbrado com a chancela do Clube das Belas-Letras”
(BUARQUE, 2003, p. 131). Interessante e engraçado o aborrecimento de José Costa pela
fraude que cometeria a mulher, mas sem jamais se aborrecer com sua própria postura, como
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se fosse uma impropriedade ser falso destinador e falso destinatário de si próprio, mas não ser
uma impropriedade promover o mercado paralelo de textos, criando um falso destinador e,
portanto, falsos destinatários. A união entre o enunciador e o enunciatário, postos em
simultaneidade, aflige-o, talvez porque ponha em xeque algo que ele mesmo faz — ser, de
certa maneira, o único leitor de si mesmo, já que os outros leitores não leem a ele, mas a um
outro. Essa linha que costura autor e obra só é visível para José Costa, e é isso o que lhe apraz.
Um novo estímulo acontece e encaminha o narrador para a produção de poemas.
Trabalhando com dificuldades na construção de uma dissertação sobre o dialeto húngaro
székely, praticado na Transilvânia, José Costa, agora Zsoze Kósta, começa a dedicar-se à
construção de algo que lhe pareceu completamente novo e lhe causou surpresa e prazer:

As frases eram minhas, mas não eram frases. As palavras eram minhas, mas com
outro peso. Eu escrevia como se andasse em minha casa, porém dentro d’água. Era
como se meu texto em prosa tomasse forma de poesia. Eu não sabia escrever poesia,
e todavia estava escrevendo um poema sobre andorinhas (BUARQUE, 2003, p.
133).

A forma como o narrador tenta traduzir o movimento lírico que o toma se reproduz
também com um quase lirismo: “não eram frases”; “com outro peso”; “em casa, mas “dentro
d’água”. O trecho, em prosa, tonaliza-se de poesia. Trata-se de imagens que tentam explicar
objetivamente o subjetivo. E como ele sabia tratar-se de poesia? Porque sabia que eram
intraduzíveis... Agora ele era algo diferente de um escritor, ele tornara-se um poeta, de posse,
inclusive, de seu único poema sobre uma andorinha, em uma língua que não era a sua, e, mais
que em uma língua estrangeira, era escrito em um dialeto de uma língua estrangeira. Nada é
seu, portanto. A poesia veio-lhe, então, no máximo de estranhamento, abrindo um gomo no
leque dos questionamentos: um escritor é um outro, se produz poemas?
Desse primeiro poema, parte para mais construções, em nome, desta vez, de Kocsis
Ferenc, um poeta em decadência. O processo também é semelhante ao que ocorreu quando da
escrita de O ginógrafo.
Primeiramente, uma situação atípica é o gatilho para a escrita: o decadente poeta bate à
sua porta, dominado por uma inspiração; pede um papel; recebe um caderno comprado para
ser preenchido com poesias; posiciona-se para escrever; fixa com um ponto a caneta no papel;
perde a inspiração; vai-se embora. Esse ponto inaugura o fluxo de poesias que passam a ser
escritas pelo protagonista. Em segundo lugar, há um deslizamento do estilo do poeta
fracassado para um estilo inédito: José Costa escreve em seu próprio caderno aquilo que o
poeta perseguia anos a fio, resultando nos três versos iniciais. Depois, cria outros versos, que
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o poeta também gostaria de ter escrito. Posteriormente, vieram outros versos, “de um nível
mais elevado, conquanto lembrassem, longinquamente, o estilo de Kocsis Ferenc”
(BUARQUE, 2003, p. 137, grifo nosso). Por fim lhe ocorriam estrofes melhores que as
anteriores, cujos versos nunca teriam sido escritos por Kocsis Ferenc.
Essa cruzada de produção lírica dá extremo prazer a Zsoze Kósta, que, como sempre,
nega-se a assumir a autoria: ele presenteia o autor com a obra, numa situação totalmente
corriqueira — enquanto os dois usavam o mesmo banheiro. Demonstração da ordinária
condição em que se coloca como escritor, a cena prosaica não conota um desmerecimento da
literatura, mas sua desmitificação, considerada um simples resultado de um ofício, de um
exercício.
“Háromsoros Versszakok”, ou “Tercetos Secretos”, numa tradução sibilante, trouxe de
volta a Kocsis Ferenc o tratamento reverenciado de outrora. Da mesma forma que Kaspar
Krabbe, o poeta autografou a obra com o temor de perder a autoria: “Depositei na mesa meu
livro, que ele custava a assinar, a mão tremendo rente à página branca” (BUARQUE, 2003, p.
139).
Ocorre que Kriska, a amada de Zsoze Kósta, não encontrou no poema a essência do
idioma húngaro, considerando-o exótico:

É que o poema não parece húngaro, Kóska. O que dizes? Parece que não é húngaro
o poema, Kóska. Não me ofenderam tanto as palavras, quanto a cândida maneira
com que Kriska as pronunciou. E disse mais: é como se fosse escrito com acento
estrangeiro, Kóska. Esta sentença ela emitiu quase a cantar, e foi o que me fez
perder a cabeça (BUARQUE, 2003, p. 141).

A reação de José Costa é veemente. Aparentemente, seu incômodo não está mesmo na
autoria, mas na forma da obra. Mas outra causa de desconforto se apresenta. Diferentemente
do que ocorreu com a autobiografia, quando a reprodução mesquinha das fitas era o
obstáculo, aqui o que incomoda é o fato de os versos estarem muito longe de algo
fundamental para a alma da poesia de qualquer povo, a língua. O acento, a prosódia, portanto,
não revelava um poeta húngaro, porque língua e pátria não se irmanavam nas estrofes.
Essa distinção se dá porque, pertencendo ao gênero lírico, os versos deveriam
amalgamar obra e autor. Sendo assim, dessa vez, esses dois elementos estão postos em
questão, porque são inseparáveis, não há como o narrador-escritor produzir algo para alguém
assumir a autoria no caso do gênero lírico. Se a obra não faz reconhecer a voz que nela se
manifesta, ela não é aceita. Por isso, no Candido comentário de Kriska, subjazem as
perguntas: Quem disse que a obra é uma obra? Quem disse que o escritor é um escritor?
88

Essa percepção de Kriska é de ordem bakhtiniana. Ela sabe que a leitura de um poema
pressupõe um encontro entre uma voz lírica e uma autoria, interpenetradas, esta deixando
naquela um grau zero de autonomia. E, por isso, seria preciso que os versos de Kocsis Ferenc
trouxessem a limpidez da língua do poeta. Segundo Bakhtin,

[...] a lírica exclui todos os elementos da expressividade e do esgotamento espacial


do homem, não restringe a personagem a um espaço nem a delimita por inteiro no
mundo exterior e, por conseguinte, não cria uma clara sensação de finitude do
homem no mundo [...]; a lírica não determina nem restringe o movimento vital da
personagem com um enredo preciso e acabado; por último a lírica não visa a criar
para a personagem um caráter acabado, não traça um limite nítido entre o conjunto,
a sua alma e toda a sua vida interior (opera apenas com um momento desse
conjunto, com um episódio da alma) (BAKHTIN, 2003, p. 154-155).

Essas palavras traduzidas do pensador russo determinam que, diferentemente da prosa,


não há na lírica aquela “substância ventríloqua” sugerida por Tezza (2012). Assim, embora as
estrofes de “Tercetos Secretos” sejam compostas de versos “que Kocsis Ferenc jamais
sonhara escrever” (BUARQUE, 2003, p. 137), não significa que sejam versos do poeta no
sentido preciso da construção lírica. Tanto é que foi necessário, para sua construção, um
treinamento linguístico exótico, um exercício do protagonista brasileiro para o aprendizado de
um dialeto, de tal maneira que a voz que se amalgamou aos versos seria a dele, a voz de um
escritor que não tinha domínio do idioma e, portanto, domínio da alma que revelasse o idioma
e por ele se revelasse. Kriska percebeu que não havia concentrado nos tercetos o sentido
imanentizado à vivência húngara. José Costa deixou neles espaço para a incoincidência entre
os versos e uma autoria genuinamente húngara, a ponto de não poder discernir se havia uma
identidade entre eles e si mesmo. Sua reação furiosa é resultado disso.
O que Kriska gostaria de ter ouvido é a vitória do autor sobre o eu lírico, de tal forma
que este ficasse, nas palavras de Bakhtin (2003), completamente esgotado. Naqueles versos,
tudo o que é interior não parece à personagem inteiramente voltado para um autor que
dominasse a língua, ritmicamente falando inclusive, pois a personagem ouve neles um acento
estrangeiro que perturba sua expectativa. Seguindo os passos do teórico, ela não ouve um
acabamento estético dos objetos e do sentido na vivência da voz poética que se manifestasse
em tons húngaros.
A recusa veemente e irritada de José Costa (também divertida e infantil, ao jogar um
prato de macarrão contra a parede) em aceitar o ponto de vista de Kriska é, portanto, a recusa
em aceitar que ele não escreveu algo dessa vez que o deixasse no anonimato, que escreveu
89

algo revelador e que, portanto, torna sua assinatura imprescindível. Há risco, inclusive, de que
publicamente o poeta húngaro seja desmascarado por alguém como Kriska.
Ambas as reações de José Costa — quanto à escrita da prosa e à escrita da poesia —
denotam alguém ansioso por se manter oculto da notabilidade da escrita e sem pejo quanto a
isso. Fingir-se de outro (ou permitir que um outro finja) é aquilo a que aspira, o que lhe dá
prazer e o que quer manter. Essa face dupla se replica na prosa e no verso, encontrando nas
duas modalidades um eu que se processa como autêntico escritor, que se oferece para a
retirada da máscara, movimento prazeroso do leitor.
Para José Costa, há algo significativamente negativo na exposição do escritor, por isso
procura evitá-la. Entretanto, o desconforto que essa posição promove também é significativo,
pois, durante todo o tempo, é preciso lutar contra o estrelato, evitar que se reconheça a
autoria. Sendo assim, nenhuma posição existe a pleno deleite. Trata-se de um duplo nãolugar:
aquele do autor, porque, sem a assinatura, o autor não existe — meta de José Costa; o
nãolugar do anônimo — vivência de José Costa, sempre em risco de ser descoberto.
Porém, essa pessoa desnorteada que é José Costa, errante pelas obras que produz,
constitui o enredo da narrativa. Trata-se de um narrador que conta, sem pejo e com certo
humor, suas fragilidades. Não é confiável, portanto, essa postura de desejar ser anônimo,
porque o que faz é alardear esse desejo, construindo e desconstruindo esse desejo. Não se
prende a mulheres, nem a filhos, nem a obras. Sem âncora, põe-se à deriva das palavras que se
desdobram diante dele em tipos e gêneros; que lhe oferecem as trilhas da ficção e do lirismo;
que se personificam nele, dúbio, dúplice.

2.6 Diz-me se lês e te direi se és

Aquele que contempla é um leitor, e


portanto precisa estar sozinho.
Ricardo Piglia

O narrador da ficção Antiterapias, de Jacques Fux, atua compondo-se de dois papéis: é


leitor e é ficcionista, com a peculiaridade de ser uma voz que se construiu como escritor,
mediado pelas leituras realizadas. Assim, o que narra é associado intrinsecamente ao que leu.
90

Ele expõe suas leituras e se espelha nelas, apresentando-se, então, como um leitor-narrador-
escritor.
Essa posição tríplice se desenvolve no texto por alguns recursos estéticos; entre eles, e
associados, estão o excesso e a autoexplicitação. Ao ler a obra, o leitor de Fux vai sendo
tomado por uma sensação de volume e intensidade agregados à exposição que o narrador faz
de si mesmo, sem rodeios nem subterfúgios. São excessivos os nomes, as circunstâncias, as
citações, as alusões, as referências e as reflexões sobre o fazer literário, envolvidos com
religião, cinema, história, filosofia, pintura, linguagem. Em demasia, os elementos põem em
cena uma voz que parece não existir por si, frágil na sua própria condição, necessitando de
outras vozes para compor a sua mesma e fortalecida pelo seu arquivo cultural, parte do qual o
arquivo literário interessa-nos especialmente.
Enquanto se ancora nos muitos discursos, entre eles os literários, o narrador vai,
também excessivamente, fazendo questionamentos acerca da escrita: de si mesmo como
leitor, de si mesmo como narrador que se narra, de si mesmo como escritor, bem como acerca
do valor da literatura. Diferentemente então do narrador de Chico Buarque, que esconde seu
desconforto como escritor divertidamente transvestido de ghost-writer, tentando esconder-se
em sua própria voz, este se exibe, fazendo isso por meio da associação a outras vozes, num
diálogo intenso, como se sua existência dependesse da existência de outras; como se a
existência de sua narrativa dependesse da existência de outras narrativas, autores, enredos,
narradores e personagens. Segundo Compagnon,

O sujeito da citação é uma personagem equívoca que tem ao mesmo tempo algo de
Narciso e de Pilatos. É um delator, um vendido — aponta o dedo publicamente para
outros discursos e para outros sujeitos —, mas sua denúncia, sua convocação são
também um chamado e uma solicitação: um pedido de reconhecimento
(COMPAGNON, 1996, p. 50).

Esse pedido de reconhecimento é o registro desse narrador, feito de forma gritante e


exaustiva. São as citações, alusões e referências que desencadeiam e fazem a montagem dessa
obra de Fux, numa combinação de retalhos retirados de várias leituras, de tal maneira que
tropeçamos nesses recursos, mais do que encontramos a palavra apenas do narrador. Verifica-
se isso também a partir da própria epígrafe, excessiva: são em número de 10, anteriormente ao
corpo da obra, e acrescidas de outras a cada capítulo, sempre com teor ligado à poética. O
primeiro sinal anuncia não só do que tratará o texto — literatura, autor e leitor —, mas
também a intensidade com que isso será feito. A colocação da primeira, de Marcel Proust —
“A verdadeira vida, a vida por fim esclarecida e descoberta, a única vida, pois, plenamente
91

vivida, é a literatura” —, tratando da relação entre a vida corriqueira do narrador e aquela da


literatura que ele leu e produz, poderia estar ali encabeçando as outras ou diferenciando-se das
outras. No entanto, não há hierarquia entre elas, pois são uma insistente réplica temática, com
variação de tons. O que se lê na primeira se manifesta nas outras com nuances diferentes,
anunciando um eixo: a vida do leitor-narrador-escritor é acoplada à literatura lida durante sua
vida. Ele existe atravessado pelas leituras que o foram formando.
Tomando as reflexões de Leyla Perrone-Moisés, segundo a qual “a literatura nasce de
uma dupla falta: uma falta sentida no mundo, que se pretende suprir pela linguagem, ela
própria sentida em seguida com falta” (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 103), vemos por que o
narrador de Fux foi-se apropriando daquilo que leu, instituindo, no seu ritmo de leitura e ao
longo de sua vida de leitor, o seu direito de olhar para o texto, localizando nele, visual e
materialmente, aquilo que lhe seria representativo e seria sua própria constituição e objeto de
escrita. Sua falta na condição de ser humano vai-se revelando nas leituras, literárias ou não.
Ele foi criando o que Mallarmé, citado por Compagnon, denomina de “fundo literário”
(COMPAGNON, 1996, p. 26) — “uma reunião de lutos excitados, de nostalgias solicitantes”
(COMPAGNON, 1996, p. 26). Por isso, ao citar, aludir, referenciar, o leitor-narrador vai
reconhecendo a si mesmo como leitor e fazendo seu pedido de reconhecimento como leitor-
narrador-escritor.
Logo no primeiro capítulo, ele se apresenta como judeu, tão cercado por essa cultura, a
ponto de até pensar “que o Show da Xuxa era um programa kasher” (FUX, 2012, p. 13).
Como pertencente a esse povo e sua religiosidade, seu vínculo com o “Antigo Testamento” é
forte, e várias referências são feitas a essa obra, posta em xeque como cabe a uma leitura de
obra não literária e de uma obra não dogmática. Essa postura de questionamento evidencia o
desconforto do narrador no campo religioso, pois quebra o pacto de leitura exigido:

Uma semana depois, cortaram o meu prepúcio. Brit-milá, meu pacto com o povo
escolhido e minha imunidade em relação à maldosa Lilith. Se é que Deus e Lilith
existem. Ou será que a circuncisão é realizada para se ter a certeza de estar sempre
incompleto? Aqui a incompletude já é física, não há mais nada a fazer [...]. Eu não
sei de nada, mas desconfio de muita coisa. Não me lembro de nada. Aqui já me
inseria na História. Na História de Abraão e seu pacto com deus. Na literatura
medieval judaica, com a invenção de Lilith e dos dibouks. A minha própria história
começava a copiar a literatura. Podia encontrar em mim os primeiros sintomas do
Complexo de Portnoy. Fascinante. Que a história tivesse copiado a história já era
suficientemente assombroso; que a história copiasse a literatura era inconcebível.
Mas, mesmo assim, a minha história continuava (FUX, 2012, p. 13).

O questionamento do texto bíblico se associa à ideia de falta apresentada por Leyla


Perrone-Moisés: uma sensação apresentada no mundo físico, que é insatisfatório, sendo um
92

descontentamento primário que se vai acentuando no decorrer da vida e ao qual “se


acrescentam as especulações racionais sobre como as coisas deveriam ser e não são”
(PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 103). Essa ratificação da falta primária é ilustrada no trecho
em destaque pela união da leitura do texto bíblico com a leitura da ficção O complexo de
Portnoy, obra de Philip Roth, cujo enredo é a longa confissão do jovem advogado Portnoy no
divã do psicanalista. Ambas as obras são reprisadas na vida do narrador e demonstram o nível
de desconforto vivido — e revivido na literatura —, tanto pela função às avessas da leitura do
texto bíblico (no lugar da confiança nos dogmas, a desconfiança) quanto pela autocolocação
do narrador em um divã (lugar privilegiado de exposição do desconforto).
Para ilustrar o desconforto, tomamos as palavras de Michel Leiris (também citado por
Compagnon), que afirma que a citação é “uma necessidade difundida” em sua existência:

Quando me sentia inapto a extrair de minha própria substância o que quer que
fosse que merecesse ser colocado sobre o papel, copiava voluntariamente textos.
Colava artigos ou ilustrações recortadas de periódicos nas páginas virgens de
cadernos ou de blocos (COMPAGNON, 1996, p. 38, grifo nosso).

A mesma inaptidão que Leiris assume ter é perceptível no narrador de Fux, que une
elementos separados e descontínuos em um todo que é só seu, a ponto de a colagem, o
remendo e a bricolagem resultarem em alta costura. A quantidade de citações é tão grande,
que, durante toda a obra, a cada gesto de escrita, ele demonstra o quanto se sentia inapto a
extrair de sua própria substância o que quer que fosse suficiente em si mesmo para ser
considerado e posto no papel. Por isso, tomando posse de discursos outros, torna-os objeto de
“re-leitura” de si mesmo, tanto para si quanto para seu leitor.
É o que ocorre, por exemplo, na passagem em que o narrador absorve o lirismo de
Cecília Meireles, pinçando palavras e tonalidades de “Elegia” — “No dia seguinte, estavas
imóvel, na tua forma definitiva / modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos”
(MEIRELES, 1986, p. 302) — ajustando os versos à sua intenção de ressaltar a existência da
literatura, cuja fantasia permite a sensação de vida — “As nossas histórias, muitas vezes, são
falaciosas, modeladas pelo tempo, pela mente, pelo desejo e pelas frustrações. Mas posso, a
partir da literatura, fantasiar minha vida” (FUX, 2012, p. 16). O narrador faz com que se
oponham, nesse trecho, a vida — modelada pela morte — e a literatura — modelada pela
fantasia —, sob o comando da poetisa. A leitura do poema deu-lhe a forma — estética — de
escapar da angústia frente aos limites impostos à existência. É na fonte literária que ele bebe a
água da vida.
93

Nessa esteira, inúmeras experiências estão sob o viés literário, como a descrição do
relacionamento entre o narrador e Silvinha, em que, entre outras citações, encontramos
Drummond e Pessoa, ambos a dar àquela circunstância trivial ares de beleza inestimável: com
o poeta brasileiro, o inevitável encontro do amor — “Que pode uma criatura senão, entre as
criaturas, amar? Amar e esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar?” — e com o poeta
português, o receio de enfrentar o sentimento inevitável — “O amor é a exposição ao que
você próprio julga ridículo. Como todas as cartas de amor”.
Repetindo o “gesto arcaico do recortar-colar” (COMPAGNON, 1996, p. 41), o
narrador faz de sua experiência com o papel, tanto no ato da leitura quanto no da escrita, uma
forma de significação de si mesmo, garantia de ser ouvido e lido. Assim, a citação revela um
sujeito diferente daquele que a produziu em origem, o sujeito que usufrui da citação e a
transforma, identificável por esses recortes e os novos sentidos que a colagem produz. Além
disso, no caso do narrador de Antiterapias, evidencia-se alguém que, tendo no seu arquivo de
leituras literárias sua forma de reconhecimento e sendo um escritor, torna a literatura um
objeto de reflexão e de produção, como ilustra a passagem:

A poesia era o canto dos anjos para alcançar o coração das amadas. Eu cantaria a
poesia. E o canto poético encanta. Ulisses, para se preservar da sedução e feitiço das
Sereias, tapou seus ouvidos com cera. O canto das Sereias atravessava tudo, e os
homens apaixonavam-se perdidamente por elas. Menos Ulisses, o fiel. Acontece que
as sereias têm uma arma ainda mais terrível que seu canto. Seu silêncio. Na verdade,
nunca aconteceu. Mas é perfeitamente plausível imaginar que alguém se pudesse
salvar do seu canto. Do seu silêncio, certamente não. Nada de terreno pode resistir à
sensação de tê-las vencido com as próprias forças. À arrogância que, na sequência,
tudo derruba. A poesia muitas vezes é o silêncio. A falta da qual vem o desejo.
Através da minha poesia e, mais sabiamente, do meu silêncio, conquistaria (FUX,
2012, p. 48).

“O texto, fenômeno ou trabalho da citação, é o produto da força pelo deslocamento”,


afirma Compagnon (1996, p. 48), ao discorrer sobre o que quer dizer uma palavra quando é
apoderada por alguém para ser aplicada a outra coisa. O trecho em destaque é um produto que
elucida como o sujeito da citação cruza força e deslocamento, usufruindo das relações
possíveis entre a poesia e a Odisseia, deslocando essas relações para sua autoprojeção: o
interesse do narrador de conquistar mulheres o faz sonhar que se apropriaria da poesia para
esse fim, mas não daquela poesia que vem pelo canto, e, sim, daquela que vem pelo silêncio.
Isso significa que o desvio do texto original segue a rota do desconforto do narrador, que não
consegue, pelo canto, alcançar nem a amada nem a produção estética. Então, pelo seu
silêncio, projeta-se em um Ulisses imaginário. Revela-se, assim, um sujeito em constante
94

silêncio, que preenche seu estado pelas inúmeras referências e suas relações impossíveis de
serem desfeitas em seus novos sentidos.
No entanto, porque é preenchida com o registro de outras vozes, a verdade do narrador
é posta em xeque. E, como ele é um escritor, a verdade da literatura que escreve também se
torna questionável, pois, se a vida narrada é corriqueira, a ponto de ser recusada como valor
em si mesma, como poderia ser especial uma vida literária cujo teor renuncia ao seu próprio
dizer e se apropria do dizer de outros? Se toda e qualquer experiência é relatada pelo
espelhamento em obras, citadas em um turbilhão incessante, há que se questionar, não a
Literatura, mas o fazer literário do narrador que só é narrador-escritor porque foi/é leitor. Ele
mesmo põe em dúvida essa sua função:

Ainda outro útero me protegia. Ou deveria me proteger. Era bem maior, mais
amedrontador e compartilhado com muitas outras pessoas: a escola judaica. Todos
os alunos eram judeus e parcialmente gêmeos, já que tinham criações semelhantes.
Eu vivia numa proteção sempre exagerada e tinha esse sentimento de ser o escolhido
e o especial. Será que todos somos assim quando crianças ou só os jovens
judeuzinhos? As relações entre Stephen Dedalus e o seu colégio eram justamente o
oposto da minha relação com meu colégio. Mas ambos viraríamos artistas (talvez)
(FUX, 2012, p. 14).

A frase final do trecho deixa claro que o ofício do narrador é o de escritor. Entretanto,
o advérbio de dúvida, acentuado pela sua posição entre parênteses, enuncia certa falta de
convicção quanto ao seu exercício. A associação desse uso linguístico à intensa quantidade de
citações, ao excessivo amparo da escrita em outras obras, ratifica o perfil desconfortado do
narrador quanto à sua escrita.
Em outra circunstância, essa questão é ainda mais explicitada e ampliada, quando o
leitor-narrador-escritor de Antiterapias questiona se “a conversa de Riobaldo com Seu
Quelémem é verdadeira ou fantasiosa” (FUX, 2012, p. 52) e responde que se trata “de tentar
transmitir algo do impossível, de uma experiência atravessada de ponta a ponta, aproximando-
se de uma escrita ficcional” (FUX, 2012, p. 52). Como a citação é uma manobra de linguagem
feita pela própria linguagem, a pergunta e a resposta dadas constituem-se como uma operação
que une o gesto de leitura ao gesto de escrita, de modo que o narrador, como leitor, sujeite a
obra rosiana à sua reflexão, perscrutando-se quanto a seu papel de ouvinte de Riobaldo e “re-
escrevente” de Riobaldo. Dessa forma, exige que os leitores tanto de Rosa quando os dele
mesmo embrenhem-se na floresta da leitura literária, ampliando a pergunta para toda e
qualquer obra literária, inclusive a sua própria: seria a literatura algo verdadeiro ou
fantasioso?
95

A essa questão, o leitor-narrador-escritor dedica um capítulo inteiro — “Falsário ou


Aquele que perjura a memória”. A partir do título, autoacusativo, o narrador assume seu mal-
estar ante a vida, pois ele a nega, perjurando a memória; e seu mal-estar como narrador, o
falsário. Para perjurar e ser falsário, busca uma verdade que difere da vida, motivo pelo qual
vai “[...] ficcionalizando através de uma infidelidade criadora e feliz” (FUX, 2012, p. 52). A
epígrafe de Borges que encabeça esse momento da obra ecoa pelos parágrafos, demonstrando
que, “à medida que transcorrem os anos, todo homem é obrigado a suportar o crescente peso
de sua memória” (FUX, 2012, p. 51). E, para o narrador, a forma de suportar é escrevendo,
sendo agora o que é “capaz de narrar agora” (FUX, 2012, p. 51).
As primeiras frases dessa parte da obra ostentam a recorrente necessidade de
reconhecimento por meio da literatura para esse leitor-narrador-escritor, cuja obra se constitui
de sua memória cultural. Porém essa ostentação não tem a função de demonstrar erudição, ou
promover ornamentação, ou invocar autoridade, ou, ainda, demonstrar capacidade de
amplificação das citações, embora acabe por alcançá-las. Esse ato discursivo, na obra, revela,
pela intensidade com que se manifesta, um investimento particular, com valores próprios,
talvez a única forma de alguém ser capaz de sobreviver ao mundo do qual faz parte, com
tantas situações que precisam ser esquecidas:

Estou me lembrando. Testemunho minhas lembranças. Preencho meus


esquecimentos com literatura. Com ficção. Acontecimentos que realmente
aconteceram? Onde estão eles? Se eu encontrar uma testemunha que deponha a
favor das minhas memórias, elas de fato terão ocorrido? E as diferenças?
Generalizações? E a verdadeira história? [...] Escrever é registrar. É atestar, pelo
menos nas páginas, que algo ocorreu (FUX, 2012, p. 51).

Registrar para esquecer é o modo de operar do narrador, e a modalidade escolhida para


fazer o registro é a ficção, porque, como escritor, considera plágio reproduzir a vida tal qual
ela é. Repetir a vida não traria a ele nenhuma possibilidade de evasão, pelo contrário, ele não
conseguiria fugir do papel de Atlas que lhe fora imposto, ao ter que viver e carregar a
memória dessa vivência tal qual ela fora, um plágio, portanto.
Mais uma vez, por meio de citações, e tematizando a literatura, o narrador se defende
do insuportável peso de sua memória, deixando sua memória literária em foco. Para isso,
diferencia plágio de literatura, considerando-o falso, dando a ela o trono da verdade. Mas, não
nos esqueçamos, ele se considera um falsário... De que verdade, então, fala o narrador? Em
que dimensão coloca a vida real? Em que dimensão coloca a literatura? A literatura lida não
96

faz parte do real? Transpor o lido para o escrito afasta o real? Escrever literatura é um ato de
falsário?
Essas perguntas desconfortantes, emergentes na obra, encontram resposta no fato de
que o narrador-escritor captura, “através do imaginário, verdades do real que não se dão a ver
fora de uma ordem simbólica”, de forma que a linguagem ficcional medeie o seu desconforto
diante da vida e diante da escrita:

O homem é assim mesmo. Vive com seu esquecer e lembrar. Com seus traumas e
alegrias. Com sua crueldade e poesia. Se Raskólnikov aqui chegasse, se ajoelharia. E
não seria para Sônia. Nem para o primo Levi. Ou para Himmler. Ele não se
ajoelharia para ti. Ele se ajoelharia para toda a miséria humana. É isso, sim, um
homem (FUX, 2012, p.53).

A bela passagem faz transbordar John Donne, com sua Meditações:

Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todos são parte do continente,
uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a
Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de
teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou
parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles
dobram por ti (DONNE, 2007).

O diálogo, do qual também faz parte Ernest Hemingway, com sua obra Por quem os
sinos dobram, contribui para o delineamento desse sujeito “citante”, que se alimenta da
literatura para sobreviver ante um mundo de agruras, um mundo não satisfatório, insuportável,
especialmente para o nosso narrador, por sua condição de judeu, sem conseguir se harmonizar
com a religião e sem encontrar nos desígnios da providência um conforto. Esse homem
desconfortado encontra na ficção a fuga, a compensação pelo que falta no mundo. Ocorre que
o desconforto persiste, pois a construção do mundo pelas palavras, uma reconstrução,
“empreende dizer as coisas como são, faltantes, ou como deveriam ser, completas. Trágica ou
epifânica, negativa ou positiva, ela está sempre dizendo que o real não satisfaz” (PERRONE-
MOISÉS, 1990, p. 104), questão anunciada nas epígrafes (“A arte existe porque só a vida não
basta”, de Ferreira Gullar; “A literatura não diz nada aos seres humanos satisfeitos com seu
destino, de todo contentes com o modo como vivem a vida. A literatura é alimento dos
espíritos indóceis e propagadora da inconformidade...”, de Mário Vargas Llosa, por exemplo).
Sendo assim, a literatura lida conseguiu preencher no narrador aquilo que precisaria ser
esquecido e, simultaneamente, tornou-se motivação para as lembranças virem à tona sendo
outras. Trata-se de um falseamento que lhe permitiu, como homem, esquecer-se de Aninha e
97

substituí-la por Silvinha, sem, no entanto, deixar de se sentir e “re-sentir” a dor e a doçura do
amor e do desencontro amoroso:

Talvez criar e referenciar os clássicos seja mais belo do que narrar somente minha
própria experiência. Não há crime aqui. Há resgate. O meu resgate. O falso resgate.
O único e possível resgate. Por isso me lembro. E rememoro com certa dor, pois de
fato minha memória engana: Silvinha, meu amor juvenil, que defendi dos dibouks
infantis, não era verdadeiramente Silvinha. Chamava-se Aninha (FUX, 2012, p. 53-
54).

Assim, o que o narrador anuncia, nas epígrafes, e o que constrói, no decorrer de seus
capítulos, é um apelo. Ele apela para as obras, em busca de amparo. Apela para o leitor, em
busca de aceitação. Inseguro na vida, inseguro na escrita, ele se ampara na palavra alheia para
assegurar o domínio da sua. Todavia, ao se apropriar do discurso alheio em estado intenso e
permanente, perturba o significado das citações e deixa seu próprio discurso perturbado,
perdendo-se nas fontes, sem conseguir discernir o que é seu e o que é do outro, conforme
ilustra a passagem:

Aqui, como no Famigerado, precisava de uma tradução. Famigerado é inóxio. Não


adiantava. Não entendia o sentido de inóxio. Muito menos do Asmodeus de Anna O.
Aí está, Borges, a história copiando a literatura. Minha história copiando minha
própria literatura! De onde será que essa mensagem veio? De algum círculo do
Inferno? Será que Anna O. está com Francesca? Será que Dante a encontrou? Ou
será que ela está fumando narguilé com a lagarta e o gato Cheshire? Sou eu ou Anna
O. o alienista? Perguntas e histórias sem respostas. Sem começo nem fim. Mas
tamanha beleza. Histórias e falácias de amor (FUX, 2012, p. 115).

O trecho apresenta um inventário de citações que estão de posse do narrador, e cuja


utilização faz perder-se a origem dos discursos, dispersos na realidade vivida e nas leituras
feitas, algo provocado pelo rol de enredos cruzados. Personagens e tramas saem de seu estado
universal, e seus significados são restaurados, transitando do Inferno de Dante ao poço de
Alice. Essa profanação de obras míticas é um retrato do deslimite do assenhoramento das
leituras, feito pela evocação das propriedades que elas têm, porém, retirando-lhes essas
mesmas propriedades. Assim, o narrador fica atado às duas pontas da literatura: é leitor e é
escritor. Escolheu uma vastidão de formas arranjadas de outros autores para entregar-se ao
empreendimento de escrever sobre como lidou e lida com o real que o cerca, promovendo
novos sentidos. Essa vastidão não esconde, pelo contrário, revela a fragilidade desse ser
escritor, pois, conforme este estudo propõe, sua substância se constitui dessas outras palavras:
98

Para fugir da dor, resolvi ser filósofo existencialista. Grande besteira. Essa pedra que
havia no meu caminho me derrubou. Eu não sabia que todos estes que aí estavam
atravancando meu caminho, eles passarão, eu passarinho. Eu ainda não era um
passarinho, mas passaria (FUX, 2012, p. 113).

2.7 Escrita e salvação

O livro foi escrito para satisfazer essa


necessidade em primeiro lugar, portanto,
com a finalidade de liberação interior.
Primo Levi

Ainda seguindo a linhagem do desconforto que se apresenta como um modo de


produção estética na ficção contemporânea, Diário da queda, de Michel Laub (2011),
apresenta um narrador protagonista que também encena o papel de escritor. A trama se
alinhava entre três discursos pertencentes a três gerações: avô, pai e neto. Este, sendo também
narrador, se encarrega de unir, pela sua escrita — trata-se de um escritor —, os dois primeiros
discursos ao seu — tarefa dolorosa, de descobertas dolorosas, embora com um final
promissor.
Há em comum, nas três vozes, o fato de que tentam escapar da experiência aflitiva que
viveram e/ou vivem e de que são precursores e herdeiros. O escape se dá por meio da escrita,
pela construção de diários. Trata-se de um gênero em que vivências são postas em palavras
como uma tentativa de catarse. Assim, o trio de homens tenta digerir pela escrita a dor que os
assola. Essa tarefa de escrever, como válvula de escape, transfigurando em palavras a própria
realidade vivida, e que se configura na forma de diário, é algo urgente para cada um deles,
imprescindível para suas sobrevivências. E se faz em composições distintas, motivadas por
contextos diferentes, mas entrecruzados pela própria vida que os une, pela influência que
exercem entre si e pela ação de um narrador-escritor, responsável pelo arranjo estético que os
associa.
Esse arranjo estético é perpassado por forte sensação de desconforto: os discursos que
o tecem revelam personagens desconfortados e desconfortáveis tanto na vida quanto na
escrita. Isso se dá porque a escrita integra algo paradoxal: a matéria de seus diários é
composta do que deve ser esquecido, entretanto, ao escrevê-la, essa substância fica registrada
99

e, portanto, não será esquecida, e ainda seguirá de geração a geração, em um percurso


torturante. Ela não se dá, portanto, em um processo de aceitação, pelo contrário, trata-se de
uma rejeição do autor de cada diário (com suas motivações e formas peculiares) a si próprio.
Assim, a trama se desenrola a partir da conjugação de leitmotivs que promoveram os
diários, um engatilhando o outro: o discurso do avô, arauto do discurso de duas gerações
subsequentes a ele, é motivado pela nefasta experiência como presidiário judeu em um campo
de concentração nazista, o que o condenou a uma existência vazia, um viver que anuncia a
morte; o discurso do filho desse genitor, arauto de um outro discurso, o de seu filho, uma
terceira geração, é motivado pela leitura terrificante do primeiro diário e pelo suicídio do pai,
o que o condenou a uma existência sofrida, aprisionada a uma história que não era exatamente
a sua; o discurso do neto, causado pela condenação de seus antecessores e ainda por um ato
cometido por ele, algo condenável. São três personagens, três judeus envolvidos pela dor de
pertencer a esse povo. Seus discursos os entrelaçam e se entrelaçam, resultando em um
produto narrativo cujo enredo evidencia o trajeto percorrido na formação de uma voz cujas
peculiaridades são ser um homem descendente de judeus que rejeita essa condição e ser um
escritor que também rejeita essa condição.
No quadro de rejeições de experiências terrificantes de vida e de escrita sobre essas
experiências, transitam perguntas: Essas experiências merecem ser postas no papel? Há algo
que mereça ser escrito? Há algo que precise ser escrito? Em outras palavras, há algo a ser
narrado?
Assim, temos três vozes discursivas que têm algo para contar, mas algo em descrédito
para si mesmas e/ou para o mundo. Há certa suspeição quanto ao valor do objeto, há certa
suspeição quanto ao efeito do objeto. Entretanto, é imperioso escrever. Esse paradoxo
consiste, então, à revelia da dúvida quanto ao valor de certa matéria — experiências que são
algozes da própria vida posta em diários — em escrever sobre ela.
O avô do narrador-escritor sente a urgência da escrita (dolorosa) e faz dela uma forma
de fuga da convivência com as lembranças nefastas, as torturas sofridas em
Auschwitz,portanto, algo na linha da experiência pessoal. O pai do narrador-escritor também
tem necessidade da escrita (dolorosa) e faz dela uma forma de deixar registrados os efeitos de
ser filho de alguém que sofreu torturas em Auschwitz,a entrega a essa herança e a fuga dela a
partir do momento em que passa a compreendê-la como uma maldição, portantoum percurso
seu. O narrador-escritor, assim como seu pai e avô, escreve (com dor), fugindo das
lembranças nefastas, as herdadas e as construídas, íntimas; mas agrega a essa primeira
conjuntura um novo elemento, uma intenção estética. Isso se dá porque ele, além do registro
100

em fuga do passado, exerce uma função além daquela de quem registra experiências, a de
escritor. Sob essa condição, ele faz das experiências um objeto estético.
O discurso do avô é o de quem viveu a Segunda Grande Guerra, vítima do nazismo
alemão. Após ser prisioneiro em Auschwitz, somente perambulou pela vida. Para esse
sobreviver apenas, e para suportar ter de viver, escreveu um diário de composição inusitada,
em forma de verbetes. Os verbetes parecem compactuar com a objetividade e a denotação
pertinentes ao gênero, pontos de inversão ao que seria condizente com um diário: “O verbete
leite, por exemplo, fala de um alimento líquido e de textura cremosa que, além de conter
cálcio e outras substâncias essenciais ao organismo, tem a vantagem de ser muito pouco
suscetível ao desenvolvimento de bactérias” (LAUB, 2011, p. 24).
No entanto, seu conteúdo promove desconfiança porque é algo inesperado, diferente
do que haveria nos registros de um imigrante — eles nada trazem que faça qualquer referência
ao fato de o avô ter vivido uma guerra, situação tão marcante, que dificilmente estaria fora das
memórias de alguém no decorrer de sua vida pós-campo de concentração, a exemplo de tudo
o que dramaticamente escreveu Primo Levi, em É isso um homem?, ou em qualquer outra
obra desse autor que se encarregou de denunciar, enquanto pôde, as atrocidades praticadas nos
campos de concentração da Alemanha nazista. Também nada trazem, nem uma referência
sequer, do cenário com que se depara ao chegar ao Brasil:

As primeiras anotações nos cadernos do meu avô são sobre o dia em que ele
desembarcou no Brasil. Já li dezenas desses relatos de imigrantes, e a estranheza de
quem chega costuma ser o calor, a umidade, o uniforme dos agentes do governo, o
exército de pequenos golpistas que se reúne no porto, a cor da pele de alguém
dormindo sobre uma pilha de serragem, mas no caso do meu avô a frase inicial é
sobre um copo de leite.
Aparentemente meu avô queria escrever uma espécie de enciclopédia, um
amontoado de verbetes sem relação clara entre si, termos seguidos por textos curtos
ou longos, sempre com uma característica peculiar(LAUB, 2011, p. 24).

Essa surpreendente descoberta fica ainda mais espantosa, quando o narrador,


percebendo a cronologia subjacente aos verbetes, também detectando a mentira que emanava
das palavras, tanto pelo seu teor quanto pelo seu tom grosseiramente otimista, deduz que tudo
ali revelava a negação da subjetividade sofrida. São descrições falsamente positivas para um
homem que está tomado pela experiência da guerra. Na verdade, deduz o narrador, são o
avesso da difícil realidade vivida tanto na Europa quanto na chegada ao Brasil. Essa escrita
foi a forma escolhida pelo avô para tentar se distanciar da experiência da guerra e também dos
problemas graves que viveu a partir do momento em que chegou ao país tropical:
101

[...] meu avô descreve que não há notícias de doenças causadas pela ingestão de
leite, que o porto é o local onde se reúne o comércio ambulante que trabalha sob
regras estritas de controle fiscal e higiene, e não é difícil imaginá-lo no cais, depois
de ter comido os últimos pedaços do pão endurecido que foi seu único alimento
durante a viagem, tomando seu primeiro copo de leite em anos, o leite do novo
mundo e da nova vida, saído de um jarro conservado não se sabe onde, como, por
quanto tempo, e em poucas semanas ele quase morreria por causa disso (LAUB,
2011, p. 25).

É possível assim entender o quanto a vida para o avô era algo muito mais que
desconfortável, era uma verdadeira tortura. A escrita às avessas ilustra isso: sem ironia, como
que trivialmente, ele vai relatando um cotidiano morno, com adjetivações exaustivamente
repetitivas, persistindo em ressaltar a higiene dos espaços, desde a pensão onde se hospedara
até o hospital em que seu filho nascera. Também em ressaltar a gentileza e a organização das
pessoas que transitavam nesses mesmos espaços. Essa hiperbólica persistência traduz um
intenso sofrimento no ato de escrever, uma tentativa inútil de se desviar das lembranças.
Trata-se de uma escrita falsa, dolorosamente falsa, desconfortável, de alguém que quer ser um
bom fingidor, mas só consegue fingir minimamente; ele sente, mesmo, a dor que deveras
sente. Por isso não convence, conforme reflete o narrador-escritor: “As memórias do meu avô
podem ser resumidas na frase como o mundo deveria ser” (LAUB, 2011,p.146). Por isso,
relata:

Meu avô não gostava de falar do passado. O que não é de estranhar, ao menos em
relação ao que interessa: o fato de ele ser judeu, de ter chegado ao Brasil num
daqueles navios apinhados, o gado para quem a história parece ter acabado aos vinte
anos, ou trinta, ou quarenta, não importa, e resta apenas um tipo de lembrança que
vem e volta e pode ser uma prisão ainda pior que aquela onde você esteve(LAUB,
2011, p. 8).

O discurso do pai do narrador-escritor é o de quem leu os verbetes e a obra É isto um


homem?, de Primo Levi, leituras determinantes para o indivíduo que se tornaria:

21.
É tentador dizer que a reação do meu pai ao ler os cadernos influenciou a maneira
como ele passou a tratar não só do judaísmo como de todas as outras coisas: a
memória do meu avô, o casamento com a minha mãe, o convívio comigo em casa, e
como não cheguei a conhecê-lo de outro jeito, porque ele nunca se mostrou para
mim de outro jeito, é claro que também acabei arrastado por essa história(LAUB,
2011, p. 32-33).
[...]
12.
Meu avô nunca falou sobre Auschwitz, e restou ao meu pai mergulhar naquilo que
Primo Levi escreve a respeito: os homens que mijam enquanto correm porque não
há permissão para ir ao banheiro durante o expediente em Auschwitz [...] (LAUB,
2011, p. 80-81).
102

Digna de compaixão é a cena em que se verifica a comoção que sentiu o filho desse
autor primeiro de diários inversos, quando, aos 14 anos, ouviu o estampido do tiro suicida do
pai; arrebentou a porta do escritório onde estava o prisioneiro da vida (desde a Segunda
Grande Guerra), das palavras (desde que começou seu diário); correu em direção à mesa onde
o corpo estava caído; encontrou o mesmo silêncio sepulcral que ouvia do pai desde sempre.
Digna de compaixão é a cena em que se agrava a comoção que sentiu ao ler, mais tarde, o
diário às avessas do pai, em cujas linhas constava esse leitor:

“Hospital — lugar com médicos pacienciosos que explicam à mulher grávida os


riscos da gravidez que são baixos e os riscos da operação de cesariana que são
baixos também, e os riscos de infecção depois do parto que são inexistentes dados os
procedimentos os mais rigorosos de higiene no edifício, que se estendem aos
banheiros onde corre água quente e privadas que são lavadas de hora em hora, e aos
funcionários que aplicam durante o dia procedimentos todos de esterilização,
quarentena também. No hospital não há problemas que possam perturbar a paz do
marido da esposa grávida, cujo filho irá selar a continuidade e doação amorosa dos
dois, quando ele deseja caminhar sozinho pelos corredores ou ir para casa e ficar
sozinho” (LAUB, 2011, p. 26).

Meu avô segue discorrendo sobre o bebê ideal, os cuidados com o bebê ideal, a
relação de um pai com o bebê ideal, uma criatura pequena e autônoma que não
chora no meio da noite e não tem doenças tais como hepatite e resfriados, e o
espanto da leitura é pensar que o volume escrito chega a dezesseis cadernos, cada
um com cerca de cem páginas, cada página com trinta e uma linhas, vinte e oito de
altura por dezenove de largura, preenchidos por uma prosa que não deixa dúvidas
sobre como o meu avô lidava com suas memórias (LAUB, 2011, p. 46-47).

O impacto sofrido ante o suicídio do pai, a leitura dos diários inversos, o desamor que
perpassou as relações parentais, tudo isso determinou os rumos que o jovem tomaria: ele seria
um judeu comprometido com o passado sofrido de seu povo e seria um pai que ensinaria seu
filho a ser um judeu comprometido com o passado sofrido de seu povo. Para entender o lado
direito dos diários que estavam sobre a escrivaninha do escritório, leu É isto um homem?, de
Primo Levi, que passaria a ser sua orientação de vida, situação narrada pelo narrador-escritor:

Lembro de um apenas, É isto um homem?, que ele leu numa edição importada,
porque ele vivia repetindo as descrições sobre o funcionamento de um campo de
concentração, as noites em que Primo Levi dormia dividindo a cama com um
relojoeiro, as histórias sobre números altos e baixos, tarefas, uniformes,
sopa(LAUB, 2011, p. 41).

Entretanto, diferentemente do que aconteceu ao avô, o pai não é transformado (não se


transforma) em um escravo das experiências da guerra. Apesar da herança forte que recebe,
outras circunstâncias vão mudar seu roteiro de vida. Também desconfortantes, elas se deram
pelo histórico que o havia alicerçado e que determinou a urgente produção de um diário,
103

mesmo que não concomitantemente aos fatos. Uma dessas circunstâncias foi a percepção de
que seu filho, apesar de ter sido criado sob a égide da história do holocausto, foi capaz (como
seria capaz qualquer outro homem) de cometer uma atrocidade — cometer a crueldade de
deixar um colega quedar-se ao chão — de nível tão miserável quanto teria feito um nazista.
Oriunda disso, também a percepção de que ele mesmo (como qualquer outro homem) seria
capaz de cometer atrocidades de nível tão miserável quanto teria feito um nazista — bater em
um filho violentamente. Outra circunstância foi a que lhe dimensionou a força inexorável do
tempo. Tendo sido diagnosticado com Alzheimer, entendeu que precisaria de algo premente
que desfizesse a aliança com a o diário encontrado sobre a escrivaninha, que fosse o retrato ao
contrário da obra de Primo Levi, algo que fosse o elo para a vida, entre si e seu filho, uma
forma de dizer o nunca dito, ser a interdição do silêncio e dos mal-entendidos:

Quanto tempo falta para esse dia chegar? O dia em que ele não comerá mais
sozinho. E não tomará banho sem ajuda. E não saberá mais a hora de ir ao banheiro.
E precisará ser limpo, e vestido, e sentado numa poltrona, e posto na cama, e passará
o tempo balbuciando o nada para que ninguém ouça, e se ninguém pode dizer com
certeza quando isso vai acontecer é possível que para o meu pai o alarme tenha
soado, e ele saiba que é hora de fazer o que precisa ser feito e dizer o que precisa ser
dito, e eu credito a isso o fato de ele ter me enviado o primeiro arquivo com as
memórias (LAUB, 2011, p. 144).

Para que se entenda essa questão, é preciso que nos voltemos para a vida do narrador-
escritor.
O discurso agora em estudo é, a princípio, duplamente qualificado. Trata-se de um
neto-filho, genealogia da qual ele não consegue escapar: é fruto da desolação do avô e da
obstinação do pai, rejeitando a história vivida pelo primeiro e absorvida pelo segundo,
entendendo-se um outro (ou o outro) em relação a eles. E isso é o que é encenado: um escritor
que atua como narrador em primeira pessoa, narrando sua antissaga. Assim, são encenados, de
forma entrelaçada, o relato de uma experiência pessoal e de experiência estética.
Tentando dar conta de sua tarefa, o narrador-escritor nos apresenta a trama em blocos
cuja estrutura revelaria, a princípio, apenas uma hierarquia familiar. Porém, a leitura dos
segmentos prova que há mais que isso, há uma ascendência de ações e sentimentos, do avô ao
neto. Isso se dá sob uma organização formal em três partes: Algumas coisas que sei sobre o
meu avô, Algumas coisas que sei sobre o meu pai, Algumas coisas que sei sobre mim, Notas
(1), capítulo que fecharia uma primeira parte e abriria a segunda; Mais algumas coisas que sei
sobre o meu avô, Mais algumas coisas que sei sobre o meu pai, Mais algumas coisas que sei
sobre mim, parte encerrada com Notas (2), Notas (3), que também anunciam a terceira; A
104

queda e O diário, que fecham a obra, retomando o título, separando as palavras que o
compõem e invertendo-as significativamente. Essa estrutura permite perceber uma tentativa
árdua do narrador-escritor de pôr sob domínio, de racionalizar, ter sob controle não só o ato
de narrar, mas o ato de narrar as condições de três existências conturbadas e excessivamente
dolorosas, todas necessitando da escrita, no entanto, concomitantemente, questionando o valor
da sua matéria de escrita. Ocorre que, no caso do protagonista, a suspeição sobre a escrita
alcança um campo onde os outros personagens não transitam, o da própria produção literária:

Eu também não gostaria de falar desse tema. Se há uma coisa que o mundo não
precisa é ouvir minhas observações a respeito. O cinema já se encarregou disso. Os
livros já se encarregaram disso. As testemunhas já narraram isso detalhe por detalhe,
e há sessenta anos de reportagens e ensaios e análises, gerações de historiadores e
filósofos e artistas que dedicaram suas vidas a acrescentar notas de pé de página a
esse material, um esforço para renovar mais uma vez a opinião que o mundo tem
sobre o assunto, a reação de qualquer pessoa à menção da palavra Auschwitz, então
nem por um segundo me ocorreria repetir essas ideias se elas não fossem, em algum
ponto, essenciais para que eu possa também falar do meu avô, e por consequência do
meu pai, e por consequência de mim (LAUB, 2011, p. 9).

Dessa forma, embora nada haja nas experiências que valha ser narrado, o protagonista
narra, alinhavando aquilo que em existência já é alinhavado, a história do avô à do pai e à de
si mesmo, entretanto, usando, como fio, sua própria palavra estética, que abarca e incorpora as
outras duas encontradas em dois diários. Com elas, arranja um outro texto, o seu, este
assumidamente um diário desde o título da obra. Sendo assim, a separação indicada pelos
títulos do que seriam capítulos é algo enganoso para o próprio narrador-escritor, pois, por
mais que queira segmentar as experiências, não consegue fazê-lo, pois elas são
interdependentes. A exemplo, em “Algumas coisas que sei sobre meu avô”, há “coisas”— e
muitas e importantes —sobre as duas gerações subsequentes, literal e metaforicamente
consanguíneas, que dizem respeito uma à outra. São existências subordinadas, cujo elemento
conector é a experiência do próprio narrador, um fio de remorso que alinha desencontros e
encontros.
O discurso do filho, nosso narrador, é o de quem escreve sobre seu avô, seu pai e sobre
si mesmo, refazendo os trajetos dos personagens para fazer o seu, em um processo de escrita
desconfortante e desconfortável. Cada um deles teve um terrível leitmotiv de vida, de leitura e
de escrita: para o avô, a vivência da Guerra e a chegada ao Brasil propiciam os verbetes, seu
modo de ir morrendo, ante a impossibilidade de se viver pós-guerra; para o pai, uma verdade,
proporcionada pelo comportamento transgressivo de seu próprio filho e de si mesmo e ainda
pela certeza da demência, desvia-o do rumo direcionado pela leitura dos verbetes do seu pai e
105

da obra É isto um homem?, de Primo Levi, promovendo nele uma nova visão de mundo, um
modo de viver e não morrer; para o narrador-escritor, a leitura (observação, entendimento,
compreensão, interpretação, comparações, associações, inferências) de tudo isso associada à
participação em um grave delito propicia sua escrita, apenas um modo de viver. As
experiências de vida e de escrita do avô e do pai são carregadas de sofrimento e incidem
intensamente sobre o narrador-escritor, arrastando-o para uma situação de consciência da
existência dominada pela consciência da escrita. Escrever tomado por tantas dores é um ato de
muita dor.
História sobre histórias e dentro de histórias, a narrativa de si mesmo pauta-se na
seguinte pergunta: como um indivíduo se torna aquilo que é? Em se tratando de um escritor, a
pergunta se ajusta: como um escritor se torna aquilo que é, um escritor? Em se tratando de um
narrador-escritor, a pergunta se amplia: qual é a matéria narrativa digna de ser narrada?
A resposta que o narrador nos dá às duas primeiras perguntas é a de que um escritor
assim se torna mediado por toda uma herança de experiências, pela memória dolorosa daquilo
que arrasta a pessoa para a escrita. Ele nada é sem essas experiências, que são a causa e o fim
de sua condição de escritor. Na página 146, capítulo “O Diário”, o narrador nos afiança:

As memórias do meu avô podem ser resumidas na frase como o mundo deveria ser,
e daria até para dizer que as do meu pai são algo do tipo como as coisas foram de
fato, e se ambos são como que textos complementares que partem do mesmo tema, a
inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e lugares, o meu avô,
imobilizado por isso, o meu pai conseguindo ir adiante apesar disso, e se é
impossível falar sobre os dois sem ter de também firmar uma posição a respeito, o
fato é que desde o início escrevo este texto como justificativa para essa posição
(LAUB, 2011, p. 146).

A terceira pergunta tem como resposta a própria experiência, matéria posta em xeque,
tendo em vista que o que conta envergonha, é uma sombra que não o abandona — a queda de
um colega planejada por ele e outros da mesma turma:

Praticamente todos os meus colegas fizeram Bar Mitzvah. A cerimônia era


aos sábados de manhã. [...] Depois havia almoço ou janta, em geral num hotel
de luxo, e uma das coisas que meus colegas gostavam era de passar graxa nas
maçanetas dos quartos. [...] Outra ainda, embora isso só tenha acontecido
uma vez, na hora do parabéns, e naquele ano era comum jogar o
aniversariante para o alto treze vezes, um grupo o segurando nas quedas,
como numa rede de bombeiros — nesse dia a rede abriu na décima terceira
queda e o aniversariante caiu de costas no chão.
[...]
A festa em que isso aconteceu não foi num hotel de luxo, e sim num salão de
festas, um prédio que não tinha elevador nem porteiro porque o
aniversariante era bolsista e filho de um cobrador de ônibus que já tinha sido
visto vendendo algodão-doce no parque. [...] Ao cair ele machucou uma
106

vértebra, teve de ficar de cama dois meses, usar colete ortopédico por mais
alguns meses e fazer fisioterapia durante todo esse tempo, tudo depois de ter
sido levado para o hospital e a festa ter se encerrado numa atmosfera geral de
perplexidade, ao menos entre os adultos presentes, e um dos que deveriam ter
segurado esse colega era eu (LAUB, 2011, p. 10-11).

Trata-se de algo mais que incômodo humanamente falando, porque a perversidade da


ação de promover a queda de um colega provocará sua própria queda, seu Auschwitz, no qual
é algoz e vítima. É esse o narrador que se apresenta nessa bela obra de Laub, redilacerado pela
escrita, repetindo pelas palavras o dilaceramento vivido como homem, um ser em falta para
consigo mesmo e para com o outro, com a sensação de uma culpa incrustada de quem vive —
e escreve — apesar do que fez:

O pedido, o mesmo que eu ouvia desde os catorze anos, em momentos diversos e da


boca das mais diversas pessoas, e não vem ao caso agora descrever cada uma dessas
circunstâncias porque elas não são diferentes do que sempre se espera nesses casos,
e de novo eu teria de falar de gente que foi embora por não aguentar assistir ao que
fiz durante essas quase três décadas, e é incrível como você pode construir uma
carreira e escrever livros e casar três vezes e acordar todas as manhãs apesar do que
reiteradamente fez durante essas quase três décadas, o pedido óbvio da minha
terceira mulher foi que eu parasse de beber (LAUB, 2011, p. 129).

Assim, ele retoma uma situação vivida na adolescência — a crueldade contra um


colega de escola não judeu, um dos leitmotivs da narrativa:

Contar essa história é recair num enredo de novela, idas e vindas, brigas e
reconciliações por motivos que hoje parecem difíceis de acreditar, eu no fim da
oitava série achando que João era o responsável pelos desenhos de Hitler, o traço em
si ou a ordem para que alguém os fizesse... (LAUB, 2011, p. 86).

Diferentemente do avô, para o narrador-escritor, escrever não são tentativas de


eufemismo, algo praticável para o avô, porque aquilo de que ele precisava fugir estava fora
dele e fizera dele uma vítima, escrever era uma tentativa de pôr para fora o que veio de fora e
nele penetrou. No caso do neto, driblar a existência é impossível, porque não se pode fugir do
que se é. Assim, para livrar-se da culpa, escreve sobre a culpa, chicoteando o algoz que há em
si mesmo.
Esse ato doloroso de escrever é seu ato doloroso de viver, que, nesta obra,
diferentemente das outras contemporâneas em estudo, não é renegado nem pavoneado. Trata-
se apenas da única condição a que poderia se submeter como ser faltoso que é. Quaisquer das
posições, do avô ou do pai e de si mesmo, sugerem, então, uma falta que nele se duplica por
suas funções de indivíduo e escritor. O avô é a figura que reconstrói a autoria como aquele
107

que escreve com uma finalidade pessoal, burlando verbetes e realidades, para fugir da falta
que foi sua vida. Não há nessa fraude nenhum afeto ou encantamento. Seu olhar é o de quem
passou a enxergar a miséria humana, sofrendo por deixar ao mundo o legado de sua miséria; o
pai é a figura que reconstrói a autoria, como aquele que leu, soube como as coisas foram de
fato, assumiu como herança os efeitos desse conhecimento e escolheu da escrita uma forma de
reflexão. O filho é a figura que conta essas “histórias de reavaliação da própria vida numa
situação-limite, como se a perspectiva do fim de alguém próximo nos fizesse ver o quanto
tudo o mais é desimportante” (LAUB, 2011, p. 32), incomodado com seu estatuto de escritor.
Ele, sua vida, desconcertados, porque, além de ter vindo a um mundo desconcertado,
contribuiu para o desconcerto. Escrever/narrar isso torna-se algo também desconcertante.

2.8 Um corpus de vozes estranhas, exóticas vozes

As cinco obras estudadas neste capítulo nos permitem ouvir vozes com
intencionalidades e estratégias estéticas diferentes daquelas que pertencem ao corpus da
tradição, conforme exemplos brevemente tratados por nós no capítulo inicial — Dom
Casmurro, de Machado de Assis; São Bernardo, de Graciliano Ramos; Grande sertão:
veredas, de Guimarães Rosa; e Água viva, de Clarice Lispector.
Em Fuks (2011), Brito e Mello (2009), Buarque (2003), Fux (2012), Laub (2011),
vimos que as maneiras de compor essas vozes ilustram um novo tratamento dos sujeitos que
falam na ficção, o que exige novas reflexões. Estamos encontrando nessas obras um
movimento estético na literatura contemporânea cujos narradores: a) põem em cena a escrita
literária; b) tratam da função de escrever, almejando ou rejeitando o papel de escritor e/ou
sendo o próprio escritor e/ou acompanhando-o, com aderência; c) são constituídos no campo
do conflito, insatisfeitos especialmente consigo mesmos nessa condição de sujeitos partícipes
da encenação da escrita.
Assim, com variações comportamentais, os narradores têm dois aspectos em comum:
são desconcertados, e é da sua relação com a escrita que emana esse desconcerto. Assim, essa
composição encena a desestabilização da autoria e, por conseguinte, da voz narrativa.
Trata-se, assim, de construções scriptocêntricas, protagonizadas pelas relações entre
as vozes discursivas narrador e escritor, em movimentos narrativos que promovem
questionamentos sobre a escrita, a narrativa e a (des)vinculação entre esses papéis, também
108

configurados em personagens. Nas obras, o narrador, por vezes, deseja não fazer movimentos
nem tomar posições que lhe permitam atuar como gerenciador da narrativa, insistindo em não
querer fazer os movimentos, mas acabando por não controlar a si próprio (é o caso do
narrador de A passagem tensa dos corpos e de José Costa, em Budapeste), ou não consegue
fazê-los (é o caso do narrador de Procura do romance, impedido de dar continuidade ao
enredo pela impotência do personagem-escritor), ou sobrevivendo às custas de discursos
outros (é o caso do narrador de Antiterapias), ou escrevendo sobre algo que rejeita (é o caso
do narrador de Diário da queda). Com inclinações diferentes daquelas que ocorrem nas obras
clássicas brasileiras analisadas inicialmente, cujos narradores, embora expressando
desconforto, demonstram sentir que têm o que contar, nessas quatro obras paira a pergunta: o
que narrar? Em virtude dessa questão é que a figura do autor se manifesta também
desconfortada.
Comportamentos assim presentes e com feições distintas entre si consolidam um perfil
da categoria narrador com outras propensões, porque o contado se dá sob o prisma do
desordenamento, traduzido por doses de instabilidade, ora em primeira, ora em terceira
pessoa, ora também sem que estejam delimitadas essas pessoas do discurso, sem que
nenhuma delas atue confortavelmente. São vozes preocupadas com seu fazer literário,
duvidosas de sua eficiência, receosas de sua capacidade, insatisfeitas nessa sua condição.
Tudo isso revela a existência da sensação de desalojamento tanto dessa entidade social
encenada nas obras, o escritor, quanto dessa entidade ficcional, o narrador.
Benjamin, em seu ensaio “O autor como produtor”, faz reflexões sobre a autonomia do
autor, “sua liberdade de escrever o que quiser” (BENJAMIN, 1987, p. 120). Afirma que a
situação social contemporânea [a Benjamin] forçaria o autor a decidir em favor de alguma
causa em função da qual ele colocaria sua atividade, o que se manifestaria por uma tendência
compromissada com a correção de algum viés político, mas sobremaneira com essa correção
sob o ponto de vista literário. O escritor teria um lugar na luta de classes, determinado em
função de sua posição no processo produtivo. Essa associação entre sistema social e autoria
qualificaria o exercício do autor e o engajaria em seu tempo, por exatamente questionar o que
esse tempo trazia como norma. Essa posição solidificava a autoria, dando-lhe uma condição
social inestimável.
Ora, o processo produtivo do final do século XX e início do século XXI se orienta
para rumos muito diferentes, dominado pela massificação, de maneira que os sujeitos não dão
importância ao fluxo da história, e nem a história dá lugar a sujeitos para que atuem no
sistema social significativamente. Ocorre a promoção de um deslocamento para sua condição
109

individual, sem grandes significâncias, no que se enquadrariam também o escritor e sua área
de discurso, a literatura. Essa situação está presente nas obras em estudo, sem que, no entanto,
haja uma simples acomodação a ela. Expressões de desconforto dão novo enquadramento aos
sujeitos literários.
Schøllhammer, em sua obra Ficção brasileira contemporânea, afirma que

O contemporâneo é aquele que, graças a uma diferença, uma defasagem ou um


anacronismo, é capaz de captar seu tempo e enxergá-lo. Por não se identificar, por
sentir-se em desconexão com o presente, cria um ângulo do qual é possível
expressá-lo. Assim, a literatura contemporânea não será necessariamente aquela que
representa a atualidade, a não ser por uma inadequação, uma estranheza histórica
que a faz perceber as zonas marginais e obscuras do presente, que se afastam da sua
lógica (SCHØLLHAMMER, 2011, p. 9-10).

Sob esse prisma é que se colocam as vozes discursivas das obras em estudo. A
estratégia dominante de estarem voltadas para si mesmas desconfortavelmente é o ângulo pelo
qual expressam algo que nega essa lógica do tempo presente.
A discussão sobre a autoria emerge então sob novos vieses estéticos. O conjunto de
obras que estamos estudando, por exemplo, formalmente, expõe um novo olhar, desviado de
grandes projetos e explicitando-se pouco confortável em meio a isso. Não há, é certo (e
conforme convém a esse tempo “pós-utópico”) (CAMPOS, 1997, p. 243-269), o tom da
denúncia, nem da angústia, nem da ironia rascante, entretanto, os exemplos até aqui estudados
revelam ações de desconcerto, passando pelo aflitivo desnorteamento de um narrador que é
uma língua até um outro cuja existência é constituída de vozes alheias. Essa peculiaridade se
apresenta em doses e amostragens diferentes de conflito.
Trata-se, por meio de variações de técnicas narrativas, da intencionalidade de
tematizar o estatuto do escritor e o do narrador. A atuação dessas categorias, nas obras em
estudo, revela que, nas suas respectivas realidades, a da vida e a do papel, elas não se
sustentam, sendo algo afiançado pela realidade do mundo contemporâneo, mas não avalizado
na ficção. A forma de expressar isso é a construção desses sujeitos desestruturados, incapazes
de saber o que narrar, que ilustram e põem em questão, portanto, essa incapacidade em
relação a si mesmos e à literatura. Não se percebe, assim, que estejam acomodados a essa
situação, que estejam ajustados a esse desvalor. Embora não se mostrem inconformados,
revoltados ou dilacerados, são inadaptados a essa condição. E é essa inadaptação que se
realiza nesses papéis, sem que haja, no entanto, uma reação a isso de forma a desviar esse
curso.
110

Conforme vimos no segmento inicial deste capítulo, o século anterior mata a sensação
do devir que acompanhou o homem moderno. Antes, as obras simulavam esse devir. Nas
obras contemporâneas em estudo, simula-se aquilo que o mundo contemporâneo oferece:
inseguranças e fragilidades. Não é estranho, portanto, que essa insegurança e fragilidade se
verifiquem quanto ao reconhecimento social da literatura e do escritor. Entretanto,
esteticamente, há um discurso sobre isso, de tal forma que fica evidente haver aí uma
problematização.
Segundo José Castello,

[...] afastados até mesmo de suas mais íntimas certezas, os narradores do século XXI
se veem obrigados a repensar seu poder de narrar. Fragmentado e fluido, o mundo
contemporâneo os tirou do centro do palco e os empurrou para um recanto obscuro e
marginal. Já não conseguem nem ver direito nem descrever em paz. Tudo o que lhes
resta é recolher as sobras de um mundo que acabou e, a partir delas, inventar, como
for possível, um novo presente (CASTELLO, 2012, p. 17).

A partir da desestabilização do mundo, da desestabilização do escritor e de sua obra e


das categorias que dela fazem parte, como é o caso do narrador, o novo presente inventado é o
da sensação de desconcerto.
Michel Foucault(2012), em sua conferência apresentada em 1969 sobre o que é o
autor, problematiza o sujeito e sua relação com a escrita como questão estética e forma de
experiência, demonstrando ser esse ponto bastante complexo. Suas reflexões contribuem para
esclarecer algumas das nossas, a partir do fato de que procedem da seguinte formulação (que
o filósofo toma emprestada de Beckett): “Que importa quem fala, disse alguém, que importa
quem fala” — esta que também perpassa as vozes discursivas presentes nas obras em estudo.
Há, nessa fala em tom de indiferença, o ingrediente básico da composição literária dos
narradores-escritores/personagens-escritores, inscritos em um momento histórico em que sua
importância é considerada menos relevante. O estudioso francês reflete sobre os domínios da
escrita e da autoria, afirmando, em determinado momento, que

[...] os discursos “literários” já não podem ser recebidos se não forem dotados da
função autor: perguntar-se-á a qualquer texto de poesia ou de ficção de onde é que
veio, quem o escreveu, em que data, em que circunstâncias ou a partir de que
projecto. O sentido que lhe conferirmos, o estatuto ou o valor que lhe
reconhecermos dependem da forma como respondermos a estas questões. [...] O
anonimato literário não nos é suportável, apenas o aceitamos a título de enigma
(FOUCAULT, 2012, p. 49-50).
111

O reconhecimento do desempenho da autoria está em xeque, de tal modo que as


técnicas de escrita, os objetos de construção que converteriam a obra naquilo a que o filósofo
chama de “fiabilidade” (FOUCAULT, 2012, p. 50) não são confiáveis para os próprios
autores, quer isso seja dado a conhecer por uma própria voz autoral, quer tenha sido delegado
a um narrador, ambos locutores fictícios, mas com representações do escritor em sua função
real. Esse é o modo estético de eliminar a distância entre aqueles e este, dotando o texto de
uma verdade literária constituída de um plurilinguismo que expõe sujeitos desconcertados.
No conjunto das obras em estudo, essa categoria literária bakhtiniana traz para as
páginas prosaicas a experiência de desconcerto vivida pelo sujeito na sua função de autor, de
tal forma que o discurso poético seja tomado pela intenção de expor-se na mesma situação de
deslegitimação que se dá no mundo real contemporâneo, entretanto, de formas reinventadas (a
exemplo: um narrador que não consegue dar rumo à narrativa, preso a um escritor frustrado,
paralisado, à procura de seu próprio eu, em Procura do romance; um narrador leitor-escritor-
narrador, cuja voz só existe mediada por outras vozes dos discursos fundadores, em
Antiterapias). Dessa maneira, o desconforto limitado pela realidade (ou ajustado a ela) fica
gritante, memorizado, posto em relevo, a ponto de a autoria, ficcionalizada nas suas relações
com o narrador, dar visibilidade a uma situação ordinária do mundo contemporâneo.
Assim, há uma fusão entre o discurso social sobre literatura e autoria, o discurso do
escritor, o discurso do narrador, o discurso implicado do leitor e o próprio discurso poético,
em prol de focalizar o desconforto da atividade performática do escritor contemporâneo de
ficção presentificado nas encenações feita por narradores. Essa fusão interroga todos esses
discursos, construídos como uma experiência crítica da literatura, revelando-se em um
conjunto de obras, a ponto de poder-se dizer da existência de um segmento da ficção que
manifesta a mesma intenção. No grupo, há uma oferta feita estrategicamente para a
observação de comportamentos de vozes que não dissimulam sua insatisfação consigo
mesmas, disponibilizando ao leitor verdades do escritor e do narrador quanto à sua
incapacidade de dar a exata medida de seu fazer.
Sendo assim, os estudos dessas cinco obras feitos até aqui — A passagem tensa dos
corpos, de Carlos Brito e Mello; Procura do romance, de Julián Fuks; Budapeste, de Chico
Buarque; Antiterapias, de Jacques Fux; Diário da queda, de Michel Laub— fizeram coro para
as reflexões acerca da construção de discursos do desconcerto. Por meio de estratégias
diferentes, essas obras singulares convergem quanto à intencionalidade de refletir sobre a
construção estética de vozes discursivas autorais. A consecução disso se dá pela construção de
narradores que não conseguem ter domínio sobre seu fazer, representação da débil, instável,
112

insegura autoria. São vozes, enfim, que cumprem o papel de forma que “é a fragilidade, e não
a consumação de uma plenitude ou a superação de limites, que se apresenta como base da
necessidade de um discurso narrativo” (GINZBURG, 2012, p. 210).
Essas vozes desconcertadas assim se manifestam em outros aspectos, como na
necessidade de errância e de discursar sobre a (im)potência para (des)construir/(des)envolver
a trama, conforme veremos nessas mesmas obras e em outras que vão compondo nossa
matéria de estudos. E os aspectos constituem um todo autorreferencial, um processo
metaficcional, sobre o qual nos deteremos no quarto capítulo.
113

3 ERRÂNCIA, UM ESTADO

Talvez seja mais fácil perecer


com terra à vista
Do que alcançar minha península azul
E de deleite me perder
Emily Dickinson

Este capítulo trata da construção de vozes na sua relação com o espaço da e na


narrativa em obras da ficção brasileira contemporânea. Peculiarmente, no corpus selecionado,
não ocorre a construção de vozes por meio da construção de um espaço onde se ancorem, mas
por meio da construção de um espaço de alguma forma faltoso. Professor, escritor, ghost-
writer, tradutor, jornalista, uma língua, essas vozes discursivas não permanecem nos espaços
em que estariam, poderiam estar, gostariam de estar salvaguardadas; por vezes, não olham
para esses espaços, não os reconhecem nem se reconhecem neles; por vezes, passar por eles é
sofrido, repassar por eles, uma catarse; dimensionar-se neles, um espelhamento na dor. Assim,
suas ações dirigem-se a espaços vários, sempre em deslocamentos físicos e/ou mentais, como
aventura (in)voluntária para o deciframento de si. São seres desajustados, que não olham para
o entorno porque não se veem nele ou não querem se ver nele. Não estão ancorados, mas à
deriva. Têm dificuldade no reconhecimento de si mesmos, estão embaraçados, sentindo um
mal-estar de si na sua existência, problema cuja lida perpassa a construção da escrita.
Essa instabilidade espacial, assim, ilustra esteticamente a instabilidade interna. A
dificuldade de centrar-se no espaço, de ter nele um apoio, traduz-se por meio de mecanismos
que retratam a desconfiança que têm de si, ou seja, formalmente, demonstram sentir-se
desalojados, sem lugar. Ocorre em cada obra uma procura identitária, quer dentro de uma
casa, nela locomovendo-se de cômodo a cômodo, ou no terreno de uma casa, com espaços
internos e externos a ela, ou dentro da mesma cidade, transitando de uma paisagem a outra, ou
deslocando-se de uma cidade a outra, ou indo de seu país a outro país... retornando para o
próprio país, para a cidade, para a casa, para o cômodo... Deslocados e deslocando-se, os seres
em discurso estão sempre em busca de si mesmos (por vezes, na fuga de si mesmos, como um
Édipo errante). Tomemos aqui, metaforicamente, a fala de Kristeva, “o estrangeiro habita em
nós” (KRISTEVA, 1994, p.9). Esse estado de estrangeiridade é o que leva o homem para uma
114

fuga intencional para descobrir-se, em espacialidades, nos (des)caminhos que lhe são postos
discursiva e esteticamente. Apropriando-nos da fala da estudiosa, é possível dizer que as
vozes presentes nas obras em estudo expõem a estranheza que há em si mesmas, por vezes
reconhecendo-a, por vezes não as reconhecendo, mas com a coragem de se mostrarem ou se
dizerem desintegradas sem se perseguirem, de forma a ser essa a forma encontrada para se
acolherem nesse estranhamento de si (KRISTEVA, 1994, p.201).
Tratando do quadro, faremos a descrição das andanças dos atores nos romances em
estudo, de forma a revelar, trazer à tona, as relações que o detalhamento dessas andanças
promove.
Franco Moretti, em sua obra Atlas do romance europeu (2003), estuda obras europeias
que lhe permitiram perceber duas funções exercidas pelo espaço. A primeira delas realça
oortgebunden— “literalmente traduzido por preso, ligado ou vinculado ao lugar” —
(MORETTI, 2003, p.15,nota de rodapé), que seria “a natureza espacial das formas literárias:
cada uma delas com sua geometria peculiar, suas fronteiras, seus tabus espaciais e rotas
favoritas” (MORETTI, 2003, p.15). A segunda traz “à luz a lógica interna da narrativa: o
domínio semiótico em torno do qual um enredo se aglutina e se organiza” (MORETTI, 2003,
p.15). Isso significa que uma força externa e outra interna dão a forma literária ao texto, o que
põe em evidência a interação entre sociedade e literatura. Assim Moretti nos ensina que a
percepção da geografia pela qual transitam as vozes estéticas muda nossa maneira de
apreender o objeto literário.
Usufruindo ainda das reflexões do ensaísta, com base na fala dos cartógrafos, de que
um mapa vale mais que mil palavras (MORETTI, 2003, p. 14), é por meio do mapeamento
que vamos acompanhar o estado de pensamento das vozes discursivas. Não se trata de
protagonistas cujo percurso é apenas decorativo. Pelo contrário, seus movimentos externos
ilustram seu interior, havendo motivações para a construção do onde, do por onde,do aonde.
A busca dessas motivações nos leva a perceber como os espaços configuram-se como
estratégia reveladora de um segmento da literatura contemporânea brasileira, cuja forma se
alicerça no deslocamento, na impossibilidade da fixidez, mais uma marca de desconforto. Nos
trajetos há ainda detalhes que contribuem para a revelação das sensações por eles vividas.
É assim que ocorre, esteticamente, o que parece ser uma incongruência: a geografia
que constitui o alicerce da forma narrativa dessas obras se apresenta errante, perdida,
desestabilizada, diferentemente do alicerçamento das personagens nas obras sobre as quais
tratamos no capítulo 1 deste trabalho: em São Bernardo, o latifúndio, fixo, determinado, fixa
e determina a modelagem de Paulo Honório; em Dom Casmurro, construir uma casa nos
115

moldes daquela em que havia se criado na rua de Mata-cavalos é a tentativa de Bentinho de


reconstruir-se e compreender-se— tentativa vã, mas que dá norte ao Casmurro; em Grande
sertão: veredas, os entremeios existenciais de Riobaldo e Diadorim entrecruzam-se pelo
sertão e suas veredas; em Água viva, a narradora se instaura na linguagem. Todos, embora
sofridos em suas circunstâncias, fazem parte de uma geografia que os ancora. São atores
emoldurados, de tal maneira que são assemelhados a essas molduras. Em outras palavras, não
há como entender Paulo Honório sem o latifúndio; nem Bentinho sem a casa; nem Riobaldo
sem o sertão; nem a pintora de Clarice sem seu exercício linguageiro. Essas pessoas são esses
lugares, seus universos, onde propagam suas dores.
Distintamente, as vozes sob nosso foco não têm asilo para promover, con-viver com
suas dores, são seres des-centrados. Sua geografia é cambiante, errante, como veremos nas
reflexões a seguir, não têm terra, casa, veredas nem palavra nua onde se encostarem. Para dar
conta dessa demonstração, faz-se necessário, primeiramente, um cotejo de alguns estudos
acerca da categoria espaço, esses que mais interessariam para a análise das obras que são
nosso objeto de trabalho.

3.1 Considerações sobre espaço

[...] a geografia não é um recipiente


inerte, não é uma caixa onde a história
cultural “ocorre”, mas uma força ativa,
que impregna o campo literário e o
conforma em profundidade.
Franco Moretti

“O espaço constitui uma das mais importantes categorias da narrativa, não só pelas
articulações funcionais que estabelece com as restantes categorias, mas também pelas
incidências semânticas que o caracterizam”. Assim se inicia a conceituação do verbete
“espaço”, no Dicionário de narratologia (REIS; LOPES, 1987, p.129), anunciando a
relevância da categoria para os efeitos de sentido gerados na construção da obra literária.
Georg Wink (2015), em seu artigo “Topografias literárias e mapas mentais: a sugestão
de espaços geográficos e sociais na literatura”, entende que o espaço acolhe a ação e o
116

movimento dos personagens, sendo amplo ou limitado; protagonista ou mero acessório;


inventado ou alusivo a uma geografia real. Em qualquer dessas situações, no entanto, o espaço
narrado, “geralmente, não é criado de forma ingênua ou coincidental, mas, sim, pertence às
estratégias narrativas e, portanto, cumpre uma função de relevância para a análise literária”
(WINK, 2015, p.21). Sendo assim, para empreender a compreensão de como o espaço se
desenha na obra literária, algumas perguntas devem ser feitas a ela: Onde se desenvolve e por
quê?Ou, mais precisamente: Como o espaço narrado é organizado e qual é a sua relação com
o espaço “real”? Qual é a função dessa organização em relação às estratégias narrativas? Os
espaços narrados trazem à tona lacunas e distorções, nos sentidos topográfico (proximidades,
distâncias, divisões) e político-social (segregação, assimetrias, representatividade), que podem
permitir reconsiderações sobre a função social da obra literária? E, mais adiante, a criação de
mapas, mentais ou reais, além de ser um efeito da produção e recepção do texto, também
poderia ser usufruída como uma ferramenta analítica na interpretação do texto? (WINK, 2015,
p.21-22).
Traçando um quadro mais abrangente da categoria espaço, Luís Alberto Brandão abre
sua obra Teorias do espaço literário (2013) de uma forma curiosa, interessante: ele põe em
destaque um trecho do livro de Georges Perec, Espèces d’espaces. O trecho é situado na obra
original anteriormente ao prólogo. Trata-se de uma lista de expressões em torno do vocábulo
espaço, que causa espécie tanto pela localização na obra (anterior ao prólogo), quanto pela
forma gráfica (a palavra espaço vem centralizada e em convivência com a distribuição
descontínua “à esquerda e à direita, dos demais vocábulos, cujo alto grau de variação
semântica sugere a imprecisão da categoria nuclear” (BRANDÃO, 2013, p.2)). Brandão
promove, ao fazer essa citação, o mesmo “efeito perturbador” de Perec.
O professor da UFMG tece ainda considerações sobre o trecho, elucidando a gama de
significados e de referências que a categoria ali apresenta, cada uma parecendo transformar o
espaço em um objeto distinto, múltiplo:

[...] as flexões da categoria espacial se observam não somente em decorrência da


diversidade de situações de interlocução ou dos campos de conhecimento nos quais
é utilizada, mas também no próprio cerne do espaço literário. Em tal expressão a
palavra espaço parece veicular tanto o pressuposto de autoevidência (espaço é noção
óbvia, dispensa definição) quanto a perplexidade diante da imprecisão (há pontos
comuns no emaranhado de definições distintas?) (BRANDÃO, 2013, p. 3).

O inventário de Perec também permite compreender que


117

[...] um breve exame da história da cartografia é suficiente para demonstrar que as


formas de representação espacial variam de acordo com a relação que cada época e
cada cultura possuem com o espaço, relação que abarca possibilidades de percepção
e uso, definidas por condicionantes econômicos, sociais e políticos (BRANDÃO,
2013, p.18).

Uma consideração sobre isso, apontada por Brandão e que interessa a nossos estudos,
está nas ciências sociais, com a proposição de Edward W. Soja, que põe em questão “a
primazia derivada do preceito de que o espaço é mero cenário para o desenrolar do tempo”.
Conforme o autor, a pós-modernidade se caracteriza pelo projeto de “abrir e recompor o
território da imaginação histórica através da espacialização crítica”, projeto que corresponde à
reversão da tendência, dominante nas análises sociais em vigor no século XIX, “de privilegiar
o tempo e a história em detrimento do espaço e da geografia” (BRANDÃO, 2013, p.20).
Percorrendo esse viés, Brandão faz alguns estudos nos quais insere o conceito de
espacialidade distinto de espaço, ou seja, que não diz respeito

[...] ao modo como o texto literário representa espaços extratextuais. Na verdade, o


termo atua na direção contrária, ou seja, tornando viável que, no âmbito da literatura,
se estimule e se vivencie a problematização do que é entendido como espaço. Isso
ocorre mediante a crítica ao próprio pressuposto de que a categoria espaço é
autoevidente, de que determina a si mesma, ou de que não passa de um dado
oferecido passivamente à percepção e à conceptualização (BRANDÃO, 2013, p.
175).

O estudioso apresenta três modelos de espacialidade, pautando-se em obras de Rafael


Courtoisie (Música para Sordos (1971), Umbría (1999), Estado sólido (1996)), sobre as quais
discorreremos brevemente, para que delas possamos usufruir nas reflexões que faremos sobre
as obras em estudo.
O primeiro modelo é o espaço tátil, em que se trata o espaço como categoria material.
Essa percepção, embora já seja conhecida na teoria estruturalista, nos estudos de Roland
Barthes, em Octavio Paz e em Gaston Bachelard, é agora apresentada com singularidade, pois
a materialidade não é considerada segundo qualidades ou estados físicos, mas comportando
matérias não afins ou cuja afinidade não é óbvia, com imprevisibilidades na relação matéria-
objeto, como se não houvesse mais a crença na estabilidade das coisas.
O segundo modelo é o espaço visivo, em que “o espaço configurado/apreendido pela
visão é aquele que, em princípio, exige a distância entre o observador e o observado. É essa
distância que define a própria nitidez da visibilidade resultante” (BRANDÃO, 2013, p.179).
Os objetos, no caso, perdem lugar para as formas, criando ambivalências “entre o tocado e o
118

formalizado, a proximidade e a distância, a percepção e a representação” (BRANDÃO, 2013,


p.179).
O terceiro modelo é o espaço dinâmico. No caso, o espaço

[...] pode ser abordado não como uma categoria de base, determinante de outras
categorias, mas como resultante, como um efeito; a momentânea cristalização de
processos em estados (que podem se revelar em graus de incerteza maiores ou
menores) (BRANDÃO, 2013, p. 180).

Por serem conceituados como efeitos de deslocamentos, em seu cerne estão as noções
de movimento e de tempo.
Os três modelos se cruzam, sobrepõem-se, acoplam-se, de tal forma que “o espaço tátil
pode tender a se desmaterializar, tornando-se impalpável, preferencialmente só movimento”
(BRANDÃO, 2013, p.181), o que não significa algo em harmonia, pois o terceiro modelo
coloca em questão a própria noção de matéria:

Se a mão, ao tocar, é capaz de fugir à propensão de tratar objetos e espaços de modo


escópico, visual, formal; as matérias tornam-se inatingíveis, pois que em constante
transformação — ou, mais propriamente, porque se tornam o próprio vetor que
determina a transformação (BRANDÃO, 2013, p. 181).

Ainda nessas considerações sobre espacialidade, Luís Alberto Brandão reflete sobre
espaços extratextuais, que são aqueles geograficamente postos, de existência comprovada ou
não, os quais se manifestam sob a égide da transgressão. Para tecer essas considerações,
Brandão usufrui das ideias de Foucault, que indaga “pela vocação ‘heterotópica’ da literatura,
ou seja, [a perguntar] em que medida, na operação representativa — e mantendo um horizonte
de reconhecimento — os espaços extratextuais podem ser transfigurados, reordenados,
transgredidos” (BRANDÃO, 2013, p. 66). Essas estereotipias, Brandão cita o filósofo francês,
“impossibilitam o ‘lugar-comum’, dessecam o propósito, estancam as palavras nelas próprias,
contestam, desde a raiz, toda possibilidade de gramática; desfazem os mitos e imprimem
esterilidade ao lirismo das frases” (FOUCAULT apud BRANDÃO, 2013, p. 66).
Isso significa que o relevante não é a descrição de espaços pela autoria e assim
captados pelo leitor, mas a construção da “proposição”(BRANDÃO, 2013, p. 66) deles, da
demonstração da finalidade a que eles vêm, que quadro delineiam, o que pode se dar por meio
de estratégias que destoam, subvertendo o espaço em sua condição tradicional:

Trata-se, por exemplo, não de detectar a mera inversão de polaridades espaciais


(alto/baixo, dentro/fora, etc.), mas de observar se tais polaridades são colocadas sob
119

perspectiva, mediante o emprego de algum elemento — também reconhecido como


espacial — que tensiona a estabilidade dos pares opositivos (BRANDÃO, 2013, p.
66).

Foucault, para desenvolver seus estudos, debruçou-se sobre a enciclopédia chinesa de


Borges, na qual estão listados e classificados animais da mais diversa ordem:

a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, [...] n) que de


longe parecem moscas. Segundo o filósofo, essa inédita enumeração faz circular
uma monstruosidade que não está exatamente nos seres listados, mas no fato de que
o próprio espaço comum dos encontros se acha arruinado. O impossível não é a
vizinhança das coisas, é o lugar mesmo onde elas poderiam avizinhar-se. Os animais
“i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito
fino de pelo de camelo” — onde poderiam eles jamais se encontrar, a não ser na voz
imaterial que pronuncia sua enumeração, a não ser na página que a transcreve? Onde
poderiam eles se justapor, senão no não-lugar da linguagem? Mas esta, ao desdobrá-
los, não abre mais que um espaço impensável (FOUCAULT, 1995, p. 6-7).

O prisma com que se analisa a espacialidade sai, por essa condição de análise
foucaultiana, de sua cristalização, e ela fica perceptível sob outras condições, agora
tensionadas pela transposição feita pela autoria do espaço real para o espaço de representação.
Essa representação se desloca do ordenado, constituindo sua existência no espaço da
linguagem. Trata-se de uma construção desconfortável porque não está no real (costumeiro,
previsível) nem na utopia (consoladora porque está no limiar do maravilhoso). Está nas
heterotopias, espaços de não acolhimento, desviantes da linha definida da linguagem:

O tensionamento da representação espacial — enfim, do efeito obtido pela aceitação


tácita de que espaços podem ser transpostos do mundo para o texto — se dá
precisamente pela radicalização do significado da ação de transpor, a qual passa a
ser entendida como de interferência, dinamização, provocação, desestabilização.
Trata-se, portanto, de uma ação política (BRANDÃO, 2013, p.67).

As considerações teóricas vistas neste segmento perpassarão nossos estudos sobre a as


vozes discursivas e seu modo de atuação, desta vez relacionadas à espacialidade, na tentativa
de demonstrar como o espaço aloja as obras em estudo ao tempo histórico contemporâneo e
como esse tempo histórico contemporâneo aloja essas obras em si, de maneira a configurar
uma tendência na literatura contemporânea.

3.2 Por onde se vendem fósforos


120

Eu podia morar num furacão. Tinha


descoberto o meu lugar na cidade.
De uma das narradoras em fuga

Para darmos conta da relação entre constituição de vozes narrativas desconfortadas e


espacialidade em uma corrente da literatura contemporânea, vamos primeiramente nos ater à
obra A vendedora de fósforos, de Adriana Lunardi (2011).
O estabelecimento dessa estratégia nessa composição de Lunardi se dá de forma
complexa, numa clara proposta de impedir que a leitura se faça com clareza, que tome fôlego,
sem labirintos. Isso se dá porque o arranjo entre as duas vozes discursivas que compõem
aquela que narra se dá em espelhamento, num entrelaçamento que confunde duas
personagens, irmãs. Nenhuma delas tem nome, o que parece ser mais um indicador do jogo
anárquico de vozes proposto pelo qual se dá uma tessitura amalgamada. Tentaremos fazer um
movimento nosso das peças desse jogo, sem, contudo, dar garantias de ser essa a única
dinâmica para percorrer o tabuleiro, carregado de “pule duas casas”, “permaneça nessa casa”,
“retorne para a primeira”, etc., etc., etc.
Dos 23 capítulos, parece, 18 são narrados pela personagem que chamaremos de ´irmã
mais nova`. Os outros cinco, parece, são narrados pela personagem que chamaremos de ´irmã
mais velha` e também de protagonista, haja vista que é ela quem norteia os outros trechos,
postando-os como matéria, uma viagem, do seu tempo.
Sendo assim, de acordo com essa execução de jogo escolhida por nós, no capítulo
inicial da narrativa, o narrador a irmã mais nova, ao se referir a um comportamento familiar,
direciona a leitura para a percepção da categoria espaço como algo que fundamenta a obra:

A minha hipótese é que nos tornamos estranhos ao mudar de cidade, da primeira


cidade, quero dizer. Até então ninguém reparava na gente. Não tínhamos nada de
especial, éramos o que éramos. Depois da mudança é que a fama começou, e quanto
mais trocávamos de cidade, mais esquisitos íamos ficando.
Minha irmã discorda, diz que essa sensação nada tem a ver com as cidades, foi a
minha infância que chegou ao fim. A estranheza, ela explica, é porque eu passei a
me enxergar de fora, como se, parada diante de uma casa conhecida, eu começasse a
espiar através de uma cerca.
A infância era quando a cerca não existia, entende?
Não entendi. Parei de escutar em minha infância que chegou ao fim.
Eu tenho nove anos! Tecnicamente ainda sou criança.
Ela revira os olhos. Não é a idade que define isso, resmunga, deixando o quarto.
Vou atrás. Preciso descobrir o momento exato em que a infância termina. Tanto
peço, tanto insisto, que ela acaba revelando.
Os advérbios.
121

Como?
Quem usa é porque perdeu a inocência. Igual à história da maçã.
Penso um pouco. Entendo o que ela quer dizer com a maçã. Tudo muda depois que
se experimenta (LUNARDI, 2011, p. 9).

O diálogo inicial entre uma voz mais infantilizada, orientada por uma outra mais
experiente, significativamente anuncia o alojamento da narrativa na discussão sobre espaço,
revelando a correspondência entre essa categoria e uma sensação de estranheza, deflagrada na
infância, perpetuada por uma vida de errância orientada pela figura paterna. Esse trajeto
instável e esse sentimento de rompimento norteiam a vida das narradoras, que tentarão se
desvencilhar deles — inutilmente, porque as circunstâncias (o que faz mudar a vida, segundo
a irmã mais velha) as perseguirão, de tal forma que a busca pela estabilidade propiciada pela
permanênciaem um espaço, a busca pela impressão de segurança, será algo sempre e também
à deriva. Suas tentativas vãs de lançar raízes funcionam como pinçadas de espaços nos
espaços mutantes: um quarto, uma barra de ferro, uma oficina mecânica, um recorte na
paisagem, uma biblioteca, um livro... A questão é belamente exposta pela reflexão linguística,
quando a irmã mais velha reveste de existência o valor semântico da classe gramatical que
explicita as circunstâncias:

Vou atrás. Preciso descobrir o momento exato em que a infância termina. Tanto
peço, tanto insisto, que ela acaba revelando.
Os advérbios.
Como?
Quem usa é porque perdeu a inocência. Igual à história da maçã (LUNARDI, 2011,
p.9).

Como se pode perceber, a narradora mais nova toma conhecimento de sua estranheza e
da estranheza de sua família a partir da percepção da primeira mudança de cidade, uma
circunstância que relaciona tempo e espaço. E, embora a protagonistanegue a relação entre
mudar de cidade e passar a ter esse entendimento, ela acaba por se contradizer, pois é no uso
próprio do advérbio com feição dupla — uma oração adverbial temporal, cuja composição
tem a ver a questão espacial (“ao mudar de cidade, da primeira cidade, quero dizer”
(LUNARDI, 2011, p.9)) — que se constitui a explicação para a caçula: quando alguém usa
essa classe gramatical, a dascircunstâncias, é sinal de que passa a ter consciência dos fatos,
saindo, então, da infância. A compreensão da vida conforme as particularidades, revivida
pelas palavras, é o que, segundo a irmã mais velha, promove a consciência da situação vivida,
ou seja, promove a maturidade. O uso dos advérbios é comparado então ao mítico ato de
122

comer a maçã, o fruto proibido, cuja consequência foi a deflagração da consciência e,


portanto, do sofrimento.
Essa ingerência da circunstância desestabilizadora é comum na vida das narradoras e
se consagra quando, já adulta, professora e escritora, a protagonista recebe a notícia de que a
outra fora hospitalizada, o que a forçará a retomar o hábito familiar, a tomar novamente a
estrada, a novamente mudar de espaço, a permanecer, portanto, na estranheza. A partir de
então, deslocando-se ao encontro da caçula, faz, paralelamente, um deslocamento ao seu
passado, este também um período repleto de deslocamentos. Em fuga, a protagonista delega
então a contação a essa voz caçula, fazendo das lembranças dela as suas. O resultado disso é
uma narrativa desconfortada, composta de um indesejável movimento no presente, que é a
obrigação de deslocar-se para ir ao encontro da irmã, endossado pelos indesejáveis
movimentos do passado vividos na parceria entre ambas. Encontrá-la é o mesmo que
encontrar-se com o passado que as (des)une. Então, o percurso para o encontro, a viagem, é
uma moldura dos percursos anteriores, viagens. Talvez seja essa moldura o espaço onde a
protagonista finalmente encontre a estabilidade que tanto procura, mesmo que para isso tenha
que repassar por espaços desconfortantes.
O quadro em que se insere a chegada da notícia descreve bem a tentativa da narradora
de construir uma estabilidade. A cena é doméstica (domus, casa, espaço de proteção): uma
personagem seleciona, limpa e organiza livros, abre aleatoriamente uma obra... E esta é um
exemplar de Robinson Crusoé. Limpeza, estante, livros, Robinson — a protagonista tenta
estar em uma ilha e organizá-la, tenta estar segura, cuidando de elementos estáveis. Ela
discorre sobre o tempo, como quem tem tempo, portanto, como quem está no espaço (e o
domina) em que se dá a duração do tempo: faz conjecturas, pergunta-se o motivo de ter
escolhido aquele hoje para fazer a faxina nos livros; pergunta-se por que não a deixou para o
outono... Sente, então, que possui um tempo longo pela frente; seguramente, à sua espera, um
outono está lá — essa estação de envelhecimentos, após primaveras e verões instantâneos... O
próprio dia se alonga naquela atividade caseira, “espichado pelo horário de verão”
(LUNARDI, 2011, p.12), enquanto ela folheia livros, em especial, um clássico, uma
permanência, onde está o único passado que lhe interessa,

[...] de resto, só o presente contava. E o presente era uma biblioteca por arrumar, o
trabalho de remover livro a livro pela lombada, abrir a capa e soprar um pouco de ar
no miolo. O presente era quebrar a cabeça em como acomodar Dom Quixote e O
últimoleitor no mesmo espaço... (LUNARDI, 2011, p.13).
123

O espaço é, assim, problematizado, metaforizado no tempo longo, afirmado na


relevância da materialidade do livro, um signo verbal tátil, sólido e, como se trata de
clássicos, de estabilidade permanente. Atribui-se a ele a condição da solidez, construindo uma
imagem afim entre o objeto livro e a espacialidade, ampliada no tempo, afirmando-se “a
relevância da matéria, mas, simultaneamente, a imprevisibilidade do vínculo matéria-objeto, o
que faz com que a própria noção de objeto seja colocada sob suspeita” (BRANDÃO, 2013,
p.177).
Um toque de telefone quebra essa frágil harmonia, trazendo a notícia da tentativa de
suicídio da irmã, um adiantamento no “crepúsculo da estação mais iluminada do ano”
(LUNARDI, 2011, p.13). Assim, a ânsia por não alterar o presente, o que significa a ânsia de
não deixar mover o espaço, de deixar assim fixados cronos e topos, se desfaz num cenário de
livros caoticamente jogados ao chão. A protagonista revela sua mão hesitante, como se não
pudesse crer em sua instância de estabilidade:

O dimmer, até então regulado para abrandar a intensidade das lembranças, andava
agora no sentido anti-horário, doido para chegar ao início dos tempos, antes do Fiat
lux separar escuridão e claridade, a nebulosa com a qual, confesso, mantive
intimidades bastante perversas, dessas difíceis de enjeitar depois que se experimenta.
O único passado que me interessava, porém, estava naquelas páginas escritas há
cem, duzentos, quinhentos anos, pelas quais tenho o respeito das coisas que não
mudam, que não precisam mudar (LUNARDI, 2011, p.13).

BAKHTIN, em seus estudos sobre “O tempo e o espaço nas obras de Goethe”


(BAKHTIN, 2006, p. 225), discorre sobre

a capacidade de ver o tempo, de ler o tempo no todo espacial do mundo e, por outro
lado, de perceber o preenchimento do espaço não como um fundo imóvel e um dado
acabado de uma vez por todas, mas como um todo em formação, como
acontecimento; é a capacidade de ler os indícios do curso do tempo em tudo,
começando pela natureza e terminando pelas regras e ideias humanas (até conceitos
abstratos) (BAKHTIN, 2006, p. 225).

Cremos que, em A vendedora de fósforos, há um desvio dessa estética bakhtiniana,


pois a obra propicia a capacidade de ver o espaço, de ler o espaçonotodo temporal do mundo,
exatamente porque, na obra de Lunardi, o espaço não é o fundo, mas a superfície móvel e
sempre inacabada. O tempo se materializa nos indícios que buscam uma permanência
espacial, ele está a serviço da estabilidade espacial buscada, como se vê relativamente ao
objeto livro na cena tratada há pouco. A protagonista vive em busca de um espaço perdido,
com o agravante de ser um espaço que nunca existiu. “Não é bem um lugar, não é bem um
124

tempo, mas por algum motivo guarda similitude com o cenário caótico dos romances mal
empilhados que coalham o chão” (LUNARDI, 2011, p.14).
O primeiro espaço — um quarto de livros em arrumação, portanto, a representação de
uma tentativa de cosmo — é substituído por uma romaria de espaços, todos trazidos pela
memória, puxados por aquele telefonema. A construção desse fio de espaços se dará em
movimentos de flashback, mas por uma memória que não é só sua, vindo à tona pela voz da
irmã mais nova, o que é um recurso estético para demonstrar a instabilidade das narradoras.
Constrói-se um ir-e-vir, com a presença de um passado itinerante e um consequente presente
sempre em busca da estabilidade. A voz narrativa enunciada no presente se entrelaça à voz
narrativa da irmã mais nova, com quem experienciou o passado, de tal forma que o olhar
sobre o espaço vivido pareça ser uma ação presente, um “agora eu era...” buarqueano. Trata-
se da observação, emocionada, dos movimentos espaciais vividos em compartilhamento entre
irmãs, um horizonte no sentido contrário. O olhar presente se guiará, desconfortavelmente,
involuntariamente, mas de maneira premente, pela infância e adolescência sempre em
trânsito, junto com o olhar de sua mana, de tal forma que ambas se reintegrarão aos cenários,
promovendo um filme narrado de acordo com as circunstâncias, às vezes em tom infantil, às
vezes em tom adolescente,de uma outra voz discursiva carregada de uma dor que transpõe sua
própria experiência para ser acoplada à da protagonista, de tal forma que somente sutilezas
permitem distingui-las. Os olhares de ambas, as experiências por vezes assemelhadas, faz os
espaços revisitados por ambas.
A protagonista, então, sai daquele cenário quarto de livros-ilha e se leva, acoplada à
voz discursiva da irmã, para cenários do passado. O primeiro deles, onde ocorre um diálogo
entre elas, uma discussão sobre a cor de um espaço, um quarto: verde?, cinza?. Ele fora antes
branco, rosa, lilás, areia. Essa mutação de cores está inserida (e é reveladora de) em outra
mudança, de uma cidade para outra, agora Antares, agora Rio Rasinho, agora de novo
Antares, espaços onde, como em quaisquer outros, se verificará uma matrioska de espaços,
insistentemente descritos: cidades, ruas, casas, cômodos, escolas, paisagens, em detalhes
obstinadamente apresentados em formas.
Assim, dentro da cidade, há uma casa, dentro da qual há uma cozinha, um quarto e
uma sala. Nos subespaços, há minúcias, apresentadas como em uma fotografia em cujo
interior estranhamente tudo se movimenta: os mesmos móveis, tapete e utensílios adquirem
novo perfil a cada mudança, encolhendo-se ou tomando dimensões maiores, de acordo com a
provisoriedade espacial, de maneira que a aparência das coisas fica subvertida, embora elas
sejam as mesmas, o que impede a sensação de equilíbrio:
125

O melhor de trocar de cidade era ver a posição dos móveis na nova casa. As
poltronas, que antes faziam os joelhos tocarem nos joelhos de quem estava à frente,
acomodam confortavelmente agora as pernas espichadas de um mamulengo. O sofá
perdera o jeitão de cafajeste espaçoso a meter os ombros sobre as frágeis mesinhas
de apoio para se transformar numa morsa isolada e sem presas. O tapete,
infelizmente, parecia ter encolhido na lavagem. Porque mudávamos muito, era bom
evitar tudo que necessitasse de pregos. Uma parede lisa, imaculada, consiste no ideal
doméstico de uma família mutante [...] Objetos, sim, são o melhor amigo que se
pode ter, de preferência portáteis, dobradiços, que caibam em malas e, melhor
ainda, na palma da mão (LUNARDI, 2011, p.17, grifo nosso),

Ocorre dessa forma uma dinâmica no desenrolar da vida, de lugar em lugar, mas isso
se dá de forma paradoxal, pois, embora haja uma dinâmica, ela é estática porque se repete.
Traduzem isso os móveis cujo novo perfil era apenas aparente. Na verdade, trata-se apenas de
uma adequação, pois aquilo que parecia ser um novo perfil, novas dimensões e distribuições,
não existia por si, mas por situações de movimento alheias aos próprios móveis. Móveis e
família redimensionavam-se na aparência, de acordo com a nova cidade, a nova casa, o novo
cômodo, mas, sendo os mesmos, continuavam como antes em essência. Ou seja, mudavam-se
os tempos, mas não as vontades, não o ser, não a falta de confiança. E, apesar desse mudar-se
a cada dia, algo acontecia de maior espanto para as narradoras: eraum mudar-se repetitivo,
igual, constante.
Dolorosamente, resta à irmã mais nova ter tido como mascote, durante anos, um
chaveiro do Garfield como “o mais perfeito do universo” e que “descansa em paz numa caixa
de sapatos” (LUNARDI, 2011, p.17). Trata-se da referência a um ser vivo, um gato, que, real
(quente e peludo e assim fazendo parte dos elementos proibitivos, porque fazem parte do
mundo da estabilidade, do permanente), é relegado à forma de um objeto, posto em um
espaço minúsculo, um chaveiro, transportável na palma da mão, de tal maneira que se ajustam
conteúdo e continente, chaveiro de gato e palma da mão — apenas uma forma tristemente
adaptada ao tato. O chaveiro, objeto portátil, ilustra, então, essa portabilidade constante,
porque cabe, porque é adequado, porque não pesa, não atrasa, não atrapalha. Enfim, ajusta-se
à errância.
Assim, dentro de uma cidade, há uma escola, dentro da qual há pessoas, entre essas
pessoas, a irmã caçula. Junta-se a ela uma companheira de instabilidade espacial/emocional.
Ambas, sofrendo as experiências adverbiais, tentam não se deixar sufocar. Seu nome é
Nietsche, uma entre os personagens que foram importantes nesse percurso de instabilidades.
Ela vivia na cidade de Antares e foi com ela que surgiu a oportunidade de experimentar uma
situação em que tivesse domínio do espaço, que não fosse como um móvel, sendo adaptado às
126

circunstâncias. Claro então tratar-se de uma situação transgressora. Colega de sala, Nietsche
ensina-a a voar, permite-lhe encontrar um local que poderia chamar de seu, um espaço de
perigo e liberdade:

Então, imitando Nietsche, estiquei os braços e tirei uma das mãos da barra. Num
instante, senti apenas o ar debaixo dos pés. Meu corpo levantou voo, com fúria,
primeiro, exigindo que eu aprendesse a controlar as correntes de imediato, até poder
pairar na crista de ondas invisíveis sem deixar-me arrastar pelo movimento
desembestado de ar que mudava de ideia a todo instante. Depois de conquistar o
equilíbrio, virando à esquerda e à direita a uma simples troca de mão, desejei que
aquilo nunca mais parasse. Eu podia morar num furacão. Tinha descoberto o meu
lugar na cidade (LUNARDI, 2011, p.30-31).

Toda a percepção do cenário é incongruente e insólita. Moradia e furacão não são


termos afins, haja vista a concretude e a estabilidade do primeiro, que se contrapõe ao
segundo, vertiginoso. No cenário, o imprevisível ajusta corpo e vento, a ponto de o olhar do
sujeito ficcional, que observa e narra, já adulto, dar lugar ao corpo que sente, ao seu corpo,
tomado pela força e pela fúria do vento. Quase solta no ar, presa apenas a uma barra pela mão,
a adolescente quebra a opressão de uma vida de rotineira e involuntária errância, trocando-a
por uma imagem livre, circense, de uma trapezista cujo trapézio é seu próprio corpo.
Assim, dentro de uma cidade, há um traçado geográfico, um mapa alterado pela
caçula, que:

[...] aproveitava o horário para percorrer as cinco avenidas e as dezoito ruas que
fatiavam Rio Rasinho. As ruas mais distantes ainda estavam desencapadas, e o
barro, depois de seco, formava bossas que serviam de rampa para as rodas de minha
bicicleta levantarem voo. Enquanto eu corria, juntava parede com parede, muro com
muro, terrenos baldios e jardins particulares, criando uma ordem alternativa para o
lugar. Com a força dos pedais, removia a fixidez tumular das casas e inventava,
dentro da cidade, uma cidade que só eu conhecia (LUNARDI, 2011, p.71-72).

Espaço vivido, o cenário promove o imaginário, transformando algo material e


monótono em formas livres para usufruto da personagem irmã mais nova. A idealização de
um lugar que só ela conhecia revela um ponto de fuga. O espaço visível e tátil — barro, barro
seco, parede, muro, terrenos baldios e jardins particulares — torna-se um elemento alternativo
para sua sobrevivência, desmaterializado em uma cena dinâmica, em que “o caráter efêmero
da matéria é levado ao extremo, a debilidade sobrepuja a condição supostamente substantiva”
(BRANDÃO, 2013, p.181), pois a velocidade com que atravessa as ruas dilui cada um dos
elementos tocados pelo seu olhar, misturando-os, sobrepondo-os, tirando-lhes uma fixidez
rejeitada pela protagonista, pois nele ela não poderá se fixar. As matérias tocadas pelo olhar,
127

quando postas em movimento, escapam ao olhar, tornam-se outras paisagens, em constante


transformação — “ou, mais propriamente, porque se tornam o próprio vetor que determina a
transformação” (BRANDÃO, 2013, p. 181).
Antares e Rio Rasinho são apenas duas entre as muitas cidades, com suas casas, seus
mapas, suas escolas, suas pessoas, e fazem parte de um roteiro da existência que não é bem-
vindo, pois não configuram nenhum sinal de estabilidade:

O fato é que depois de quitar os aluguéis em atraso, as contas na farmácia e o fiado


na padaria, nosso luxo era permanecer na mesma casa e na mesma cidade por mais
alguns meses. Caso fosse um abril medíocre, tínhamos de fazer as malas e mudar da
noite para o dia (LUNARDI, 2011, p.49).

Esse movimento impossibilita o reconhecimento de uma terra como sua,


principalmente porque havia um desterro antecipado dos lugares, anunciado por cada uma das
mudanças anteriores, num ciclo repetitivo:

Onde estávamos não era bom?, surgia a pergunta.


Não o bastante.
O lugar era pequeno demais para a profissão de papai ou estava esgotado pela
enorme concorrência. A mentalidade das pessoas ora mostrava-se tacanha, ora muito
permissiva, o que desclassificava o local como um ambiente para criar filhos. O
culpado podia também ser o clima muito frio ou já poluído, a poeira das ruas, a
especulação urbana, a crise da economia. Assim, os defeitos que tinham motivado a
mudança anterior encabeçavam as virtudes da próxima cidade, que meu pai
defenderia andando de um lado a outro da sala, num elogio crescente, interrompido
para olhar-nos direto nos olhos e adicionar o argumento final, definitivo, com que
ganharia a causa. (LUNARDI, 2011, p.49).

O fruto dessa dispersão é a formação de seres dispersos. Os integrantes da família,


concomitantemente aos desterros geográficos, desterravam-se ilusória ou realisticamente. O
irmão, perdendo-se nos espaços da linguagem, refugiando-se na ausência de si mesmo:

É que ele nunca, nunquinha, falava na primeira pessoa.


Não é difícil, se a gente pensar bem.
Embora não gostasse de argumentar, com frequência, ele era obrigado a dizer o
porquê de sua recusa em começar as frases usando o eu.
É antinatural, e, em grande parte, inútil. Esse pronome só é necessário ao
pensamento. Usar na frase é uma redundância, um tumor no idioma.
[...]
No início da adolescência, houve um agravamento do problema. Além de excluir a
primeira pessoa do singular da fala, meu irmão deixou de usar palavras no plural.
Vamos ao cinema virava que tal um filme?
[...]
Até o dia em que descobrimos que havia muito tempo ele não se chamava mais dos
Anjos. Renunciara o patronímico em favor do sobrenome da mãe, que não possuía
nenhum s (LUNARDI, 2011, p.37-39).
128

A protagonista, quando adolescente, vivendo em fugas, limítrofes da loucura;


quando adulta, já em certo equilíbrio, lutando pela estabilidade:

Não era, não podia ser uma simples relação dos objetos esquecidos nas prateleiras,
ainda que se pudesse ler assim. A cada fuga, já disse, minha irmã voltava diferente”
(LUNARDI, 20011, p. 59).

[ela] já passara a noite em um parque, fazendo companhia, segundo disse, a uma


criança perdida. Também havia tomado um ônibus para Macondo e se hospedado,
por dois dias, em uma casa cujos moradores tinham todos o mesmo nome. No último
verão, saiu para caminhar na praia e foi encontrada sob um guarda-sol duas cidades
distante daquela em que a esperávamos (LUNARDI, 2011, p. 52).

O único passado que me interessava, porém, estava naquelas páginas escritas há


cem, duzentos, quinhentos anos, pelas quais tenho o respeito das coisas que não
mudam, que não precisam mudar (LUNARDI, 2011, p. 13).

A irmã mais nova, disseminando-se em espaços de loucura e irmandade:

Era a primeira vez que eu recebia flores, botões amarelos. Um buquê compacto que
os cabos curtos tornavam mais elegante. Um admirador?, quis saber o barbudo ao
fechar a cortina de isolamento (éramos três na enfermaria) numa desenvoltura de
quem recolhe roupas no varal. Minha, eu devia responder mas virei o rosto,
aproveitando o fato de que nada que eu dissesse ia parecer normal (LUNARDI,
2011.p. 98)

Não é por acaso, então, que, nesse desnorteamento, a caçula encontra Cirineu, um
jovem dono de uma oficina mecânica. Também não é por acaso que ele a apelida de
“estrangeira”. Vejamos.
Se usufruirmos do potencial significado do nome, o amigo reconhece nela uma
estrangeira porque ele também o é. Seu nome é o mesmo de Simão Cirineu, um personagem
presente nos evangelhos de Marcos e Lucas. Ele teria sido o homem encarregado pelos
romanos de ajudar Jesus Cristo a carregar sua cruz. Cirineu não é indicativo de sobrenome,
mas de seu lugar de origem, uma colônia na Líbia, localizada dentro dos limites atuais de
Tunis. Chegou ali para os festejos de páscoa. Ele era, portanto, um estrangeiro. Da mesma
forma, Cirineu era um solitário em Rio Rasinho, uma minúscula vila conservadora, do que
escapava por meio das drogas, usadas em espaços abertos, amplos, distantes, os quais
apresentou à então adolescente narradora. Foi uma viagem em que foram acordados os
sentidos, dando ao espaço nova configuração:

Debaixo dos pés de colza podia-se ver a terra que, de tão vermelha, parecia estar em
brasas. Era uma combinação bonita, o verde com a argila: uma cor fazia contraste
para a outra ficar mais intensa. E por cima, o infinito, que na hora me pareceu a
parede de uma caverna azul.
129

Com as mãos, recortei um quadrado imaginário na horizontal, depois na vertical,


onde coubesse um pedaço de cada coisa.
Agora, não parecia mais uma plantação. Era mais uma bandeira de três listras —
vermelha, verde, anil — o que eu via. Por causa do tamanho reduzido, o pedaço que
eu havia recortado deixava os tons ainda mais vivos e brilhantes.
Quando baixei as mãos, o quadrado permaneceu no ar. Pisquei, ele continuou ali.
Desviei o olhar e o quadrado acompanhou. Era como uma janela, uma lente que
aumentava as cores de qualquer coisa que meus olhos enxergassem.
Estrangeira, você está viajando.
A voz de Cirineu era fina, ele disfarçava falando baixo (LUNARDI, 2011, p.78).

Também nessa cena a materialidade do cenário se desmaterializa, luz e cores se


equacionam em um quadro tátil e visivo, durável na imaginação da adolescente, um
instantâneo diante da paisagem estável e incômoda, porque faz parte de uma cidade que é
parte da vida em trânsito.

Fiquei parada por um tempo, ouvindo a tarde de sábado chegar ao fim. Um carro,
uma panela arranhando o fogão, o som distante de um rádio. Meu pé, que estava
apoiado na mureta, adormeceu. Desci da bicicleta e olhei para nossa casa. Nunca
tinha reparado no desenho do portão, duas letras s de frente uma para a outra, como
siamesas unidas pela barriga. O quadrado das cores já perdera a nitidez, mas ainda
parecia um par de óculos que melhorava minha visão (LUNARDI, 2011, p.81).

O percurso pela memória que relata uma vida dispersiva e com a aprendizagem da
dispersão é, como já vimos, entremeado de retornos a espaços do presente feitos de forma tão
exacerbada, como uma tentativa de sair do devaneio, a ponto de a protagonista, retomando sua
voz ede volta ao agora do seu apartamento onde se situa seu quarto de livros, deleitar-se ante
cenários inusitados de arranjamento: “Ovos. Caixas de leite e sucos. Garrafas deitadas. Frios
nas bandejas. Legumes numa gaveta. Invejo esse mundo em que as coisas estão sempre onde
se espera. Uma ordenação que leva ao repouso só de se olhar” (LUNARDI, 2011, p.33).
Caminhar pelo passado é algo tenso, exigente, trabalhoso. É preciso haver descanso em
espaços de estabilidade, com coisas firmes, fixas, cada uma em seu lugar.
Mas a urgência de caminhar pelo passado persiste. E caminhar pelo passado é estar em
lugares sufocantes, como a cena em que a irmã mais nova, após ter sido internada em uma
clínica psiquiátrica, numa reprodução da loucura familiar, em conversa com um terapeuta,
para explicar sua angústia, traz à baila o conto “O gato”, de Edgar Allan Poe. Ela identifica-se
com o gato personagem da narrativa que, tendo sido emparedado junto com um cadáver, sofre
pelo mau cheiro exalado. Temos aqui uma espetacular transposição e ampliação espacial
visiva, tátil, olfativa. O espaço de realidade da jovem se materializa pelos sentidos oriundos
de uma analogia com a espacialidade ficcional: o que está matando o gato da ficção é o que a
está matando em sua realidade. A impossibilidade de relatar o que sente encontra vazão na
130

sensitiva analogia com o espaço de Poe: o emparedamento tátil, gelado, e a mortevinda de


outra morte, do cheiro do cadáver, olfativa, ambos sufocantes, acabam por fazer o gato reagir,
miar; acabam por fazer a protagonista reagir, falar.
A viagem ao encontro da irmã mais nova torna-se, então, uma intimação a uma
viagem por espaços sempre dantes navegados, tirando a irmã mais velha de sua frágil
estabilidade e colocando-a involuntariamente em vários espaços de outrora, fazendo-a
redobrar esquinas e adentrar em cidades e casas pouco edificantes, numa parceria discursiva
que retrata ambas as personagens em sua instabilidade, proximidade pela loucura e pela
literatura. É desse processo que trata a obra, construída em uma arquitetura espacial,
percorrida verbalmente, uma aventura forçada e prevalente, que denuncia e registra o
desajuste com a vida, por uma sempre sensação de mal-estar. A instabilidade espacial agencia
a instabilidade interna dessas manas, o que é delineado esteticamente, por meio de um enredo
que se constitui na viagem pelos espaços pretéritos de uma outra voz, mas congruente com a
da protagonista, ambas com a sensação constante de estrangeiridade.
É essa sensação que se evidencia no vínculo com a profissão de escritora, algo
proposto para as duas durante seu período de convivência.
Ainda criança, a mais nova, em conversa com a outra, ambas no quarto cinza, ouve a
mais velha disparar: “Arranjei uma profissão para você” (LUNARDI, 2011, p. 20). Sua
imediata resposta se projeta em espaços: “Tem a ver com o mar?” (LUNARDI, 2011, p.20). A
resposta da irmã espalha lugares: “Tem a ver com mar, vulcões, montanhas, tudo o que você
gosta” (LUNARDI, 2011, p.20). Outra pergunta geográfica, com verbos de viagem, portanto,
de fuga: “Dá pra ir ao subterrâneo?” (LUNARDI, 2011, p.20). A resposta amplia espaços:
“Pra onde você quiser. Atlântida, Itália, China, o espaço sideral” (LUNARDI, 2011, p.20).
Essa possibilidade espacial, que quebra as paredes do quarto cinza, resulta em grande
satisfação: “Tive medo de perguntar que profissão era aquela, mas sorri de contentamento de
existir. Quer saber agora ou depois do sono? Agora. Escritora, minha irmã disse, espalhando
bem as sílabas. Você pode ser uma escritora. Que tal?” (LUNARDI, 2011, p. 20-21).A irmã
mais nova soube, então, através de sua irmã mais velha, que escritores viajam. E aprende,
também com a irmã, que a literatura arranja outros espaços, libertadores, escapes da realidade
sufocante, física e espacial, em que elas viviam. Por ela, conhece Proust, aprendendo que o
escritor, também um asmático, seria um exemplo de como a escrita lhe permitiria tudo.
Proust, em No caminho de Swann, condiciona as categorias tempo e espaço ao conhecimento
do próprio eu, buscando a si mesmo no perdido.
131

E aprende, também com a irmã, que a literatura arranja outros espaços, libertadores,
escapes da realidade sufocante, física e espacial, em que elas viviam. A irmã lhe apresenta
Proust, considerando que o escritor, também um asmático, seria um exemplo de como a
escrita lhe permitiria tudo. Proust, em No caminho de Swann, condiciona as duas categorias
ao conhecimento do próprio eu, buscando a si mesmo no perdido. Várias cenas da obra
ilustram esse nexo, como:

Quanto a mim, no entanto, bastava que estivesse a dormir no meu próprio leito e que
o sono fosse bastante profundo para relaxar-se a tensão de meu espírito, o qual
perdia então a planta do local onde eu adormecera; assim, quando acordava no meio
da noite, e como ignorasse onde me achava no primeiro instante nem mesmo sabia
quem eu era (PROUST, 1982, p. 8).

Sob perspectiva diferente daquela apresentada pelo autor clássico, emA vendedora de
fósforos, as relações de tempo e espaço são condicionadas pela imposição do telefonema para
que ela saia do lugar onde está, o momento que vive, e busque os lugares disseminados ao
longo da sua vida, para saber de si. É dessa espacialidade errante que a narradora quer se
desgarrar. Entretanto, fazendo dela seu objeto de narração, acaba por, verbalmente, agarrar-se
a ela, magnetizada pelo discurso companheiro da irmã mais nova. Dessa forma, a escrita ao
encontro da caçula, que se costura à escrita ao encontro do seu passado, não se constitui um
enredo de grande aventura, não é uma viagem ao fundo do mar, nem aquilo que ela via na
literatura e repassava à mais nova— “Fui eu que falei primeiro de livros. Que eles duplicavam
o mundo” (LUNARDI, 2011, p.32) —, mas uma narrativa de alguém em busca de eira e beira,
empenhando-se pelo domínio do espaço. Tratardisso figura como algo antiproustiano, pois
não há uma cena retomada que se assemelhe a um toque de madalena nos lábios, nada há que
a estremeça com um prazer delicioso, que lhe dê a sensação de si mesma. O retorno verbal à
vida errante faz com que sua imagem se recoste nessa errância tão incômoda. Fuga dos
espaços ao encontro deles, disso se compõe a espacialidade dessa narrativa de Adriana
Lunardi.

3.3 “à cidade de Porto Alegre”

Ah, foi o sertão que agora virou mar, foi isso


De um narrador em trânsito
132

A obra Berkeley em Bellagio, de João Gilberto Noll, em sua perigrafia, traz duas
especialidades: na dedicatória, curva-se diante da cidade de Porto Alegre (“à cidade de Porto
Alegre”); em um conjunto de epígrafes, ressalta esse mesmo centro urbano, sua cidade de
origem, por meio da apropriação da fala de Carpinejar — “A morada em que nasci me habita”
(NOLL, 2002,p. 5, 7).
Essa interessante personificação delimita o espaço como elemento fundamental da
narrativa, que se desenvolverá em Berkeley, um campus universitário da Califórnia, nos
Estados Unidos, onde o protagonista atua como professor de obras e escritores brasileiros, e
em Bellagio, onde fará parte de um grupo de escritores de vários países, participantes de uma
oficina de criação literária. Os espaços são intermediados pela presença constante de Porto
Alegre, da qual foge o narrador-protagonista, mas que, na verdade, é seu porto seguro, a
morada que o habita. Essa inversão de agentes anunciada na epígrafe — o espaço habitando o
narrador, no lugar de o narrador habitar o espaço, revela-se na sensação de saudade que se
manifesta ao longo do enredo. Porto Alegre é uma Pasárgada, um devir.
Três aspectos relativos à espacialidade desenvolvidos durante a narrativa comprovam
sua importância. Um deles é o movimento feito quase imperceptivelmente entre Berkeley e
Bellagio, como se fossem encaixados um no outro, conforme já anuncia o título. O segundo é
a flutuação entre as pessoas do discurso. E o terceiro é o insistente dimensionamento dos
espaços, aflorados em sentidos e sensações que ressoam de idiomas, corpos e outros
elementos, que, alocados, tratam de produzir efeitos de sentido de subjetivação. Sendo assim,
mapear esse trânsito fluido entre esses espaços e a recorrência de sua inusitada consistência
presta-se como uma estratégia para configurar também o mapeamento de uma voz discursiva
sem lugar, desassossegada. A começar pelo título.
Conotativo, o título Berkeley em Bellagio traz em seu bojo o anúncio da construção
espacial da obra. É possível considerar, por exemplo, que a preposição “em” promove um
efeito de entalhe de um espaço em outro. Assim, Berkeley, uma universidade da Califórnia,
estaria dentro de Bellagio, ao norte da Itália, onde se situa uma casa de escritores. Essa
inserção é perceptível ao longo do romance na medida em que os lugares são postos sem
fronteiras que os delimitem no decorrer da narrativa. As descrições dos dois, das ações que
neles acontecem, dos personagens que neles atuam são colocadas em sobreposição, sem
sequer haver aspectos formais que os separem, por exemplo, sem pontuação, paragrafação ou
uso de conjunções. Nenhum aspecto linguístico ou textual permite separar cada lugar em seu
133

lugar ou perceber o trânsito entre eles, de forma que tudo parece misturado, contaminado
pelas experiências de um narrador a princípio em terceira pessoa, mas que, sem fronteiras,
passa à primeira e retorna à terceira e novamente à primeira, um ser atópico, portanto.
Outra sugestão promovida pelo título está na palavra Berkeley, que, além de nomear
um lugar, um campus universitário, também é nome do filósofo irlandês, estratégia
interpretada por Vanessa Soares de Paiva como um deslocamento do topônimo para a
apresentação de “um sujeito em um lugar”(PAIVA, 2015, p. 8), o que ratifica a atopia
apontada no parágrafo anterior, de forma que o sujeito assumido pelo narrador como ele
próprio se amalgama ao espaço:

Faria parte com eles de um gracioso destacamento de estátuas, já que lá dentro na


Catedral discutia-se obliquamente a pax americana. Eu era Berkeley em Bellagio, o
bispo e filósofo irlandês em retiro pisando em folhas secas, me afastando da janela
atrás da qual um pianista moderno e uma mulher vestida de outrora talvez
ensaiassem alguma ópera... (NOLL, 2002, p. 35).

Ao atribuir-se esse personagem que se afasta da janela, o narrador-protagonista passa a


incorporar a identidade do pensador irlandês do século XVIII, cuja filosofia trata, entre outras,
da teoria imaterialista, pela qual afirma a existência de objetos na condição de objetos
percebidos. Ele nega, assim, sua substância material, algo já atingido independentemente do
sujeito, pois o que haveria de substância seria inerente ao objeto e passível da apreensão por
parte desse perceptor, que, por essa capacidade de apreensão, dá-lhe existência.
Essa máscara então assumida, tomada pela imaterialidade, permite-lhe vagar ainda
mais pelos espaços transgressores do tempo, em cenas tomadas por personagens
sincronizados romanticamente entre a literatura e a vida; permite-lhe adentrar em um vão,
espaço de total imaterialidade, passando de cenários mapeáveis — um campus universitário e
um centro de cultura — mesmo que sem limiares, para algo sem geografia:

Eu era Berkeley em Bellagio, o bispo e filósofo irlandês em retiro pisando em folhas


secas, me afastando da janela atrás da qual um pianista moderno e uma mulher
vestida de outrora talvez ensaiassem alguma ópera, talvez chamada “Fantasia quase
sonata depois de uma leitura de Dante”, em honra sim de Liszt que aqui vivera uma
paixão férvida, enquanto eu caminhava com cuidado, temendo escorregar no limo da
umidade, ouvindo Cosima quem sabe a cantar em seu leito de morte qual a Dama
das Camélias... [...] Eu era Berkeley, o célebre filósofo sensualista que acreditava,
dizem, que a subsistência das coisas dependeria da qualidade da percepção e não da
feitiçaria da linguagem — e qual percepção eu poderia ter de mim mesmo naquele
vão noturno que quase me engole num repente? Quem me responde, e já, se o fato
de eu estar aqui andando pelo bosque em plena madrugada me confere alguma
garantia de que eu não seja um outro que de fato sou, um estrangeiro de mim mesmo
entre norte-americanos (embora pisando em solo italiano)? Sou alguém que se
desloca para me manter fixo? (NOLL, 2002,p.36).
134

A mistura de personagens é pura sugestão, concernente à imaterialidade proposta pelo


filósofo Berkeley: assumindo ser um personagem do século XVIII, o narrador-protagonista,
em primeira pessoa, anda por Bellagio, a terra de Franz Liszt, ouvindo sua obra composta em
1849 — Fantasia quase sonataapós uma leitura de Dante —, ouvindo juntamente Cosima,
filha de Liszt, cantando como se fora a Dama das Camélias, heroína da obra de Alexandre
Dumas filho, datada de 1848. A Bellagio do século XX se ajusta ao século XVIII,
transposição feita percepção das coisas, do toque ao piano, da voz de outrora, deslocando o
narrador para lugares que não são os seus, em tempos outros, fixado, portanto, na sua
estrangeiridade, tanto de si quanto dos espaços por onde transita: ele torna-se alguém de
nenhum tempo e de nenhum lugar, perpassando todos sem fazer parte de nenhum, sem
identidade com nenhum.
Uma imagem singular fez com que uma personagem assumisse outra persona, fez com
que uma personagem se deslocasse para um entrelugar, e assim se revela uma voz discursiva
desconfortada, inadaptada aos locais onde se encontra, o que se agrava por ele ser ainda um
desterrado, fugitivo de sua terra natal, onde vivia mal economicamente, mal
profissionalmente, mal fisicamente, mal existencialmente, mal amorosamente. Trata-se de um
semlugar, alguém com dificuldade de se ancorar:

[...] por um segundo, como quem acorda, lhe acendeu a dúvida se estava ali
chegando do Brasil, ou, ao contrário, se já estava voltando ao Sul do planeta, para
aquela falta de trabalho ou de aceno de qualquer coisa que lhe restituísse a prática do
convívio em volta de uma refeição, sob um endereço seguro (NOLL,2002, p.10).

Essa perdição em lugares amalgamados também se manifesta (e é regida) pela errância


da voz discursiva no percurso de si mesma: de terceira pessoa passa à primeira e retorna à
terceira e retoma a primeira, nunca em unissonância, embora entranhadas:

Quando ele chegou aos Estados Unidos, tinha menos de cem dólares. A chefe do
Departamento de Espanhol e Português em Berkeley o esperava no aeroporto de San
Francisco toda de preto, loira, sorrindo meio culpada por tantas atribulações que o
consulado americano em São Paulo tinha me causado por não ser um cara de altas
formações acadêmicas, por estar desempregado, sem endereço fixo, penso eu, por
tudo isso relutaram — duas, três vezes meu passaporte voltara a Porto Alegre sem o
visto — temendo com certeza que euquisesse imigrar como tantos patrícios.
Lembro... (NOLL, 2002, p. 16, grifo nosso).

O trecho em destaque evidencia movimentos de deslugar, pois a voz discursiva,


quando trata de um espaço que não é a terra de origem, tenta colocar um outro nele; quando
135

trata da sua terra de origem, coloca-se nela. Parece haver um vínculo indissociável com o
útero materno, embora tenha fugido dele. Entretanto, em outros trechos em que a mesma
estratégia se apresenta, já não há espaços de origem nem de chegada, o que faz dele um
semlugar perene. A voz discursiva alterna a si mesma em terceira e primeira pessoa,
transitando perdidamente entre Bellagio e Berkeley, ou entre outros espaços:

Simulavam então diante de mim um interesse mais que suficiente para lhes render
êxitos a mais em seus currículos de agentes não importa de que instituições, secreta
ou não, agentes da bandeira que fingiam amar sobre todas as coisas, mesmo que
tentassem às vezes molestá-la em minha presença, afetando visão crítica para me
mimar. Ele não queria lembrar, queria tão-só estarnos bosques de Berkeley diante da
brasileira que o fez pela primeira vez vibrar com uma fêmea na cama eternamente
redemoinhada de cobertores, travesseiros, lençóis... (NOLL, 2002, p.19, grifo
nosso).

Domingo, tarde enevoada, alguém se dirige ao Museu Guggenheim, Quinta


Avenida, Nova Iorque; põe-se na fila, compra o ticket para me ver. Há sempre uma
mulher na frente dele, sim, a cega, a cega que parece querer vê-lo tanto e tanto que
levanta os braços, a bengala cai com estrondo, na ponta dos pés ela fica como a
dançar, gemendo, a guia filipina se aproxima, quer acudi-la mas não sabe ao certo o
que pode fazer, se pode, se a cega tornou a enxergar tamanho o espanto diante da
minha presença aquém do vidro, muito além da física, igual à presença fraudulenta
de um deus atrás da cortina do sacrário, sim, a cega torna a ver, é isso, a multidão a
se dispersar da fila parece confirmar o tal fenômeno, todos se põem a tagarelar em
volta daquele tabernáculo profano onde em vivia em meu resíduo agora muito além
dali, já de visita ao meu pobre corpo da Lombardia, desintegrando-se já no outono
frio, na cera amarelada em que a carne se transforma, meio esmaltada até, parece,
nas vésperas de perder enfim sua superfície e chegar aos ossos eles próprios em
ruínas: então mevejo aqui em Bellagio já sem saber o que fazer de mim, tenho a
intuição de que há muito não saio daqui de onde adivinho os meus despojos no pó
que se levanta misturado ao sol que não me anima mas me devora [...] (NOLL,
2002,p.54, grifonosso).

Esses elementos expressivos constituintes do desnorteamento do narrador destituem


topografias e tornam difusas proximidades e distâncias: falar do ele exige distanciamento;
falar do eu exige proximidade. E não há nem distanciamento nem proximidade. Encarnar-se
em si mesmo e, quase que simultaneamente, descarnar-se em outro e retornar ao primeiro são
movimentos discursivos que desfazem os limites dos espaços, pois aposição em relação a
desaparece, promovendo uma insustentável leveza de ser, de forma que parece salientar-se a
audição dessa voz discursiva em detrimento de sua visibilidade. Trata-se de um narrador que
não detém o controle de uma função e de um lugar no campo da narração: Quem narra quem?
Onde narra? De onde narra?
Essa voz discursiva se imprime como um sujeito incapaz de ter uma posição, incapaz
de ter um modo de se relacionar com as coisas, incapaz de ter o controle de seu campo
perceptivo, imprimindo à matéria narrada uma subjetividade distinta e peculiar, de maneira
136

que o ponto de vista da narrativa apresenta-se estrategicamente comprometido porque se faz


via desnorteamento. A exemplo, não se trata de uma voz discursiva onisciente, pois não há
possibilidade de haver intenção de domínio sobre os movimentos da narração, tendo em vista
um narrador em errância; também não se tem uma autodiegese, pois o relato de uma
experiência própria descai para a experiência de um outro, tendo em vista o mesmo motivo. O
que está em cena é a dissolução do domínio da narrativa, demonstrada, entre outros recursos
estéticos, pela impossibilidade de a voz discursiva alocar a si mesma.
É assim que se faz desfocada a autoevidência do espaço, cujos elementos dão à sua
composição outra complexidade, pois nada relativamente a ele diz respeito às estratégias por
meio das quais o texto literário muitas vezes representa espaços extratextuais. Diferentemente,
trata-se da espacialidade, algo que diz respeito a outras representações via locais em que as
cenas se desenvolvem, conforme afirma Brandão (2013, p.176), de modo a problematizar a
categoria. No caso da obra em estudo, o estado emocional do narrador promove essa
problematização por meio de alguns elementos vividos e/ou inseridos nos espaços. Um deles,
o idioma, que, a princípio, poderia delimitar espaços de inserção ou não do protagonista,
separando nações por onde transita, Estados Unidos, Itália e Brasil. Entretanto,
inusitadamente, esse elemento contribui para a composição do estado de insegurança do
narrador-protagonista.
Segundo o narrador (no momento deslocado de si mesmo, parecendo ser um outro)
“ele” estaria estagnado por não conseguir falar a língua local, o inglês (“[...] ele próprio
parecia estagnado desde que viera para um país do qual não falava a língua [...]”), e também
porque ninguém em seu entorno, “[...] no fundo, dava a impressão de estar em gozo com a
vida, aquela coisa que aquece: o tato no segredo de um outro, e este a relutar um pouco para
ter em dobro logo mais [...]” (NOLL,2002, p. 12). Essa peculiar definição de vida ressalta a
predominância da sensação de que “ele” estava em um espaço marcadamente desconhecido
pelo uso de uma língua que não a sua, esta de cujo abrigo “ele” temia sair, da qual “ele” temia
se extraviar, “sem ter por consequência o que contar” (NOLL, 2002, p.20). Essa barreira com
a língua, portanto, algo relacionado a espaços, conota, a princípio, uma inabilidade em se
adaptar a espaços que não o seu de origem e, assim, a outras culturas, um estado de
estrangeiridade.
Paloma Vidal, em entrevista a Patrícia Martinho Ferreira,2define estrangeiridade como

2
Cf. http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/estrangeiridade-e-experimentacao-uma-conversa-com-paloma-vidal.
137

[...] esse não ter, não conseguir aderir, é essa falta de adesão, esse distanciamento,
esse olhar de fora o tempo todo, é o nunca conseguir estar dentro da situação, como
se de algum modo você sempre estivesse olhando a situação de fora, como se você
fosse uma espécie de espectador (VIDAL, 2016).

A experiência vivida pelo narrador-personagem de Noll cabe nessas considerações da


escritora, o que é ilustrado na obra pela convivência com a língua inglesa em sua relação com
a língua materna.
Não é à toa que as primeiras frases do romance se referem a essa questão. Em terceira
pessoa, aquele que se apresenta, a princípio, apenas como narrador, diz o seguinte: “Ele não
falava inglês. Quando deu seu primeiro passeio pelo campus de Berkeley, viu não estar
motivado. Saberia voltar atrás?” (NOLL, 2002, p.9). Essa composição inicial produz efeitos
semânticos preciosos, porque, parecendo isolados, se juntam para o anúncio do estado de
estrangeiridade do personagem “ele”, cuja condição de não falante de língua estrangeira não
está isolada em si.
Prova disso está na constituição das frases, tanto no que se refere à sua relação
sintática quanto à presença de um adjetivo que exige complemento. As três frases, justapostas,
sem coesivos, são semanticamente coordenadas, e o complemento demandado não está
presente. Esse complemento vem em seguida, depois de algumas frases,regido pela palavra
“disposição”, que produz efeito de sentido equiparável a um sinônimo para “motivado”.
Trata-se da oração “para aprender mais uma língua além do seu português viciado” (NOLL,
2002, p.9). O leitor passa a saber, então, que “ele” não falava inglês e que, ao dar seu primeiro
passeio por Berkeley, percebeu não estar motivado para aprender outra língua que não a
materna, o português. Quanto à terceira frase, uma interrogação, ela pode promover a
interpretação de que “ele” estaria refletindo sobre repensar a questão do aprendizado da
língua.
Entretanto, essas considerações iniciais tomam mais corpo e assim ilustram o conceito
de Paloma Vidal, de forma que os detalhes formais anunciam outro grau de estrangeiridade,
um processo de inadaptação dentro do próprio personagem, ainda não assumido pelo narrador
como ele próprio. Assim, a pergunta “Saberia voltar atrás?” conota a preocupação com a falta
de vontade de aprender uma nova língua, porém também conota o fato de que “voltar atrás”
significa ter que manter-se no uso da língua portuguesa, prática viciada. É fixar-se em uma
língua que já não está sob domínio, é fazer parte de um espaço de onde fugira. Não “voltar
atrás” é aprender uma língua, para o que não tem disposição. Sem uma ou outra, com uma ou
outra, “ele” não tem lugar:
138

Mas, não, agora se coçava todo, na certa esconjurando uma espécie de dívida que
nunca quis largá-lo — porra, ele dizia, mas porra para o quê ou quem? Falava com o
Brasil ou com aquela porção sombria de natureza a lhe servir então como uma
espécie de refúgio contra a língua inglesa? (NOLL, 2002, p.10).

Trata-se de uma resistência em assumir um pertencimento. A adaptação é um


obstáculo, mas não exatamente a adaptação a um país que não o seu, a uma língua que não a
sua. Para ajustar-se a um ou outro lugar, é preciso entregar-se a esse lugar e sair do estado de
estrangeiridade, algo que, para o personagem ainda distanciado da voz narrativa, é um tanto
crônico, porque pouco tem a ver com a geografia. Acentua isso o fato de que o tom da
interrogação não se dá por essa voz em terceira pessoa, mas, sim, pela presença de uma outra,
algo como um discurso indireto livre, forma pela qual o narrador cede lugar a uma outra voz
discursiva. Entretanto, uma singularidade acontece, pois não se trata exatamente de um
discurso indireto livre, mas da cessão a uma outra voz de si mesmo, a voz do narrador em
uma outra condição, a de narrador-personagem. Temos uma voz discursiva extranarração,
adentrando na narração de si mesma (até que chega a usar explicitamente a primeira pessoa),
constituindo-se como uma voz discursiva cambiante. Assim, deixa subjacente na questão
“Saberia voltar atrás?” perguntas de sua própria errância: Quem narra quem? Onde narra? De
onde narra?. A incapacidade, então, de um outro para lidar com os idiomas vai se
evidenciando como sua própria incapacidade, e, dessa forma, acaba por mesclar-se à sua
incapacidade de posicionar-se sobre sua condição, de relacionar-se com as coisas, de ter o
controle de seu campo perceptivo.
Portanto, anunciando-se como permanentemente desalojado, o narrador-personagem
não apreende os espaços à sua volta, que se mostram por uma estabilidade infimamente
momentânea de elementos, os quais, embora desenhem os espaços geográficos onde ele está,
não conseguem fixá-lo, não promovem nele a sensação de pertencimento. Pelo contrário, o
que se verifica é um deslizamento de onde estão essas coisas para outras localizações,
subjetivas, a ponto de essas coisas fixas com as quais se depara serem desconsideradas. Elas
não conseguem cumprir sua função de convite para uma aderência. De forma que não são
tomadas como algo de valor e, sendo assim, diante delas, são feitos movimentos geográficos
mentais para outras paragens, como ilustra esta cena em um museu:

Quem seria esse homem um tanto taciturno a encontrar estátuas, quadros clássicos
pela frente para impressionar americanos, colunas obeliscos, homens seminus,
mulheres fartas, gestos largos, quem era mesmo esse homem nascido em abril em
Porto Alegre, no hospital Beneficência Portuguesa, às seis da manhã, criado no
139

bairro Floresta, sem poder imaginar que um dia estaria aqui nesse castelo, ao norte
da Itália, perto de Milão, na chamada — jocosamente ou com sarcasmo —
“Catedral” americana; quem era esse homem que já se cansava da noite tão cedo,
louco para dormir, sonhar, regenerar-se para ao longo do dia seguinte cair no mesmo
enfado... [...] (NOLL, 2002, p. 26-27).

No trecho em destaque, as obras de arte a que o narrador se refere são


estrategicamente apresentadas em sua substancialidade material e cultural. Ele ressalta que
elas são clássicas, e, portanto, ocupam espaços de tradição, promovendo, a cada olhar,
surpresa, admiração e deleite, o que as faz serem eternas. Ocorre que a reação do narrador é
contrária a essa expectativa, pois ele desvia seu olhar das obras para a imagem de “esse
homem um tanto taciturno”. A cultura clássica — perene, sem nunca cansar os olhos da
humanidade —, deixa de estar em foco. O narrador (cuja voz no momento é cambiante — sua
e de si como personagem, essa singular voz cambiante) descarta-lhes a meritória atenção e
dirige seu olhar para um homem que, diante do que é perpétuo, fincado no tempo e no espaço
da cultura, não reage. Assim, essa voz discursiva mentalmente vaga entre instâncias: a cidade,
o hospital, o bairro onde nasceu; Milão; Estados Unidos, este também deslocado
metonimicamente de espaço político-geográfico para a Fundação, espaço arquitetônico-
cultural. Dessa maneira, a solidez das formas das obras de arte e sua estabilidade se
desvanecem, perdem-se ante a reação do narrador que a elas não adere, nelas não se fixa e não
se ampara. Não há, então, um arranjo entre a evocação das obras clássicas e o efeito que
promoveriam sobre o personagem que está diante delas. Não há nessa circunstância nenhum
embate contra o clássico, com relação a ele há até indiferença, o que se vê pelo deslize do
museu para outros locais. O que fica em evidência é a negação da estabilidade das coisas,
sempre uma espacialidade que denuncia o desassossego vivido e sentido pelo narrador-
protagonista.
Nesse bojo, encontram-se os cenários captados pela voz discursiva por meio de
elementos sensoriais. A exemplo, a cena posta a seguir. Nela, puxando em novelo uma linha
de sentidos, os elementos do cenário vão-se diluindo e refazendo-se em outros, em uma
corrente de sensações. Assim, a audição de um som torturante do pingar de uma água exige
do narrador-personagem que procure a origem desse som, para o que faz-se necessário
acionar a visão, a fim de que o trajeto de busca possa ser percorrido, o que se conjuga com o
tato, para que o protagonista tenha apoio físico nessa procura, o que resulta no encontro de
algo não aquoso, mais tátil e consistente, o corpo de um homem, contato imediatamente
desfeito e substituído por uma nova cena, esta também ao mesmo tempo auditiva, visiva, tátil
140

e olfativa — o escorrer de um jato de urina sobre um objeto de arte. Descrito pelas sensações,
o espaço em que se insere a cena não tem consistência nem durabilidade e, por isso, não
captura o protagonista, que se recusa a entregar-se a qualquer espaço de perenidade,
empenhando-se em ficar no trânsito das sensações e das lembranças vividas entre espaços,
entre Berkeley e Bellagio, ambos a serviço da composição desse personagem em fuga na
tentativa de encontrar a si mesmo:

Ouço por perto agora pingar uma água insistente, duvido por um instante de que a
Fundação não tivesse tomado providências diante de um vazamento ou de um lençol
geológico aqui se derramando, mas já não tenho dúvidas, me levanto com a lanterna
em punho, vou ao encontro do som para que as gotas não se tornem uma tortura que
me devolva aos vivos... Com uma mão tateio que tateio, sinto a pele de um tecido,
vejo ser negro, macio, meio sorrateiro, levanto o foco para o rosto, é ele, o ragazzo
italiano, o mordomo com quem fui atrás de uma cortina e que agora já não quero;
ele pingava a sobra do mijo na superfície daquele século XI ali tão apertado no
porão dos mortos... Eu me afastei, já não quero nada nem ninguém, sou santo, é na
Itália que me vem a iluminação, não poderia ser na profana Califórnia, agora nem
precisarei mais do meu desejo incalculável por todos os homens e por aquela única
mulher, a brasileira em Berkeley, a que me fez suar em frêmitos com seu pênis
submerso [...] (NOLL, 2002, p.49-50).

As moradas pelas quais passa o narrador-personagem são, assim, moradas de


desassossego, o que se verifica pela sensação constante de que há algo de faltoso e
inapreensível nelas. Por isso os movimentos de passagem de um espaço a outro são feitos sem
uma linha que os costure, de forma que: a) cenas que pareceriam estar localizadas em certo
espaço acomodam-se em outro; b) uma realidade espacial do presente da narração perde essa
consideração; c) simultaneamente, essa realidade espacial aloja-se na lembrança de uma voz
discursiva dispersa em terceira e em primeira pessoa, um eu desmembrado e rejuntado
aleatoriamente, errante entre espaços, entre ações, entre funções. Solitário entre as gentes,
isolado pretextualmente pela língua, esse ora narrador ora narrador-protagonista está exilado
em si mesmo, perdido na busca de si mesmo.
Como se situa Porto Alegre em meio a essa espacialidade dispersa? A capital gaúcha
parece estar dentro do narrador-protagonista, é dele inseparável e, por isso, sempre emerge em
meio às várias situações e reflexões, inclusive na própria epígrafe, a quem ele oferece a obra.
Além disso, pode-se dizer que essa cidade promove no narrador-personagem uma sensação de
Pasárgada, um espaço para o qual ele pode ir-se embora, um espaço de promissão: “Agora
aqui, na frente desse espelho me vejo novamente ardente, quisera não sentir mais nada, voar
pra Porto Alegre e adentrar pelos umbrais daquela fase em que sabemos que já vimos tudo,
não há muito mais, nem mesmo em sonos” (NOLL, 2002, p.81).
141

Essa sensação escapista relacionada ao espaço brasileiro configura-se, entretanto,


como mais uma corroboração de seu estado perene de instabilidade, pois o narrador-
personagem havia fugido de lá, perseguido por “aquela falta de trabalho ou de aceno por
qualquer coisa que lhe restituísse a prática do convívio em volta de uma refeição, sob um
endereço seguro [...]” (NOLL, 2002, p. 10). Sua volta, portanto, pode-se afigurar como um
retorno eterno de Friedrich Nietzsche, cujo conceito o filósofo nos apresenta, em sua obra A
gaia ciência,escrita em 1882:

E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e


te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la
ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e
cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente
pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e
sequência — e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo
modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre
virada outra vez — e tu com ela, poeirinha da poeira!” Não te lançarias ao chão e
rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste
alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: “Tu és um deus e
nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim
como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de
cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?” pesaria como o mais
pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e
mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna
confirmação e chancela? (NIETZSCHE, 1882, aforismo 56).

A tese presente nesse conceito 3 defende que a vivência humana se faz em polos
alternados, em eterna repetição, de forma que tudo faz o movimento de ir e de retornar, sem
que haja entre esses polos uma relação de oposição, mas sim de complementaridade para a
composição de uma só realidade carregada de ciclos. Esses ciclos não são idênticos, mas
semelhantes em suas variações. Sendo assim, a vida é reafirmada constantemente, de tal
forma que, para haver crescimento, é preciso haver declínio; para haver alegria, é preciso
haver tristeza. O revezamento é um dizer à vida que seja tudo mais uma vez.
O estudioso Juliano Neves(2015), em seu artigo “O eterno retorno hoje”, publicado
nos Cadernos Nietzsche, afirma que “pensamento elevado, o eterno retorno também é o mais
profundo, o mais abissal, pois conduz à visão da eterna repetição sem sentido ou fim de tudo”,
ideia que, segundo ele, foi ratificada por Nietzsche no seguinte fragmento póstumo,

E sabeis sequer o que é para mim “o mundo”? [...] Este mundo: uma monstruosidade
de força, sem início, sem fim, uma firme, brônzea grandeza de força, que não se
torna maior, nem menor, [...] jogo de forças e ondas de forças ao mesmo tempo um e
múltiplo, [...] afirmando ainda a si próprio, nessa igualdade de suas trilhas e anos,

3
Cf. http://www.eternoretorno.com/sobre/.
142

abençoando a si próprio como Aquilo que eternamente tem de retornar


[...](NIETZSCHE apud NEVES, 2015).

Por essa perspectiva, o retorno do narrador-personagem a sua Porto Alegre faz parte
de um movimento que não o tira da instabilidade instaurada em sua vida. Por isso, na ida para
o Brasil, não se encerra a flutuação entre as pessoas do discurso nem o insistente
dimensionamento dos espaços, por exemplo, pela relação entre a voz discursiva e o idioma.
Este segmento que relata o movimento de retorno ao Brasil repete a alternância da voz
discursiva que se deu quando do movimento de ida para a Califórnia:

[...] quando chegar a Porto Alegre vou ver se a minha casa não está sendo habitada
por algum sem-teto, há tantos por lá, tantos, eu mesmo já fui um deles — só aí verei
como me safar da situação sem contar com o meu velho português, hoje apenas um
fantasma arrancado do meu instrumental fonético; deverá por certo estar perdido por
aí, sofrendo, sem ter onde encarnar, ninguém o quer lá pras bandas onde deverá estar
vagando, ah, faço o check-in, digo pra moça que estou voltando pra casa, sempre
que for a Porto Alegre me avise, estarei no aeroporto na hora combinada, quero
prestar favores nem se os impor à forma, não faz mal, sou um serviçal, além das
minhas próprias malas, quero carregar o mundo inteiro às costas, um Atlas
desvalido, tudo bem, mas com uma boa vontade que lhe assoma tão forte de repente
que ele só tem tempo mesmo de tentar levar o mundo às costas, entende? Mostra o
passaporte, passa pelo detector de metais ou até quem sabe o de mentiras, olha mais
uma vez no painel eletrônico a confirmação da hora do seu voo, tudo ok, em cima,
agora é só sentar em torno de hordas de árabes, ou assemelhados com suas mulheres
silenciosas, algumas de lenço na cabeça —, eles cheiram à fuga, hindus agora
chegam, são todos fugitivos? penso eu, o que aconteceu no mundo nesse tempo em
que vivi na Fundação americana sem TV[...] (NOLL, 2002, p. 77-78, grifo nosso).

Verifica-se a mesma flutuação entre as pessoas do discurso, de primeira para terceira,


de volta para a primeira, o mesmo movimento dessa voz discursiva em toda a obra. Sendo
assim, permanece o homem errante em si mesmo, embora sua direção já seja outra, a de
retorno. Nada muda essencialmente, apenas um ciclo espacial e subjetivo se desenvolve.
A voz discursiva vive, portanto, ainda seu estado de não lugar nessa volta ao útero
materno, com o qual parece ter um vínculo indissociável, embora dele tivesse fugido,
colocando-se como observador e como observado, a mesma estratégia presente no decorrer de
sua estada em outras paragens. O retorno que não seja eterno é uma ilusão, algo anunciado em
passagens, apenas comprovando que espaços de origem e de chegada situam o mesmo
narrador-personagem sem lugar. Sua tentativa de reordenar seu lugar no mundo é a mesma,
então, de quando chegou à Califórnia: ele depende de aprender uma língua, dessa vez precisa
fazer com que “a língua de Drummond lhe volte à cabeça” (NOLL, 2002, p.81). Verifica-se,
assim que o idioma, obstáculo no exterior, será também obstáculo em sua terra natal:
143

[...] que estava definitivamente na estrada certa, que não havia o que temer, que uma
certa paz que se procura não morde, é mansa, já chegou; eu era um brasileiro a
pensar em inglês o tempo todo, eu era outro em mim, não tinha importância —,
quando chegasse a Porto Alegre iria para um curso de português para estrangeiros
no meu próprio torrão natal, isso acontece nesses dias... (NOLL, 2002, p.82-83).

[...] que eu ansioso esteja a caminho de uma terra santa como era o caso agora,
mesmo assim eu precisava sentar por um tempo, e, olhando o imediato a mim,
apenas pensar se a coisa era como eu via de fato, se não estava vendo tudo
deformado ou do avesso, embora ali parecesse que não, que estava definitivamente
na estrada certa, que não havia o que temer, que uma certa paz que se procura não
morde, é mansa; já chegou; eu era um brasileiro a pensar em inglês o tempo todo, eu
era outro em mim, não tinha importância — quando chegasse a Porto Alegre iria
para um curso de Português para estrangeiros no meu próprio torrão natal [...]
(NOLL, 2002, p.82-83)

O desfecho — um clássico final feliz, a formação de uma família — não consegue


esconder que, apesar da presença do amor, está forjado nesse narrador-personagem sua
errância. O espaço Porto Alegre, onde se encontra com o homem amado e a filha que formará
o triângulo familiar, não dá a essa voz discursiva estabilidade, mas se constitui como espaço
de novas experiências, que também remetem a outros espaços, semanticamente múltiplos,
colocando esse ser em um porto alegre, mas apenas um porto, carregado de experiências e
sensações de errância.
Escolher um final de fixação em um cenário não impede que sejam marcados
esteticamente a instabilidade interna. Movendo-se nele, estabelecendo contatos, a voz
discursiva continua demonstrando sua existência desalojada. Sua procura identitária se dá na
locomoção dentro da própria cidade, transitando em experiências. Já não há o deslocamento
de uma cidade a outra, de seu país a outro país, retornando para o próprio país, para a cidade,
para a casa. Ele continua a busca da descoberta de si, desdobrada nos espaços externos, novos
caminhos que são postos discursiva e esteticamente.
Assim, transita pelas ruas querendo não ser um ser que por elas transita, desejando não
ter de assumir o compromisso de quem anda por elas, como olhar para os transeuntes,
cumprimentá-los, e ser alguém passível de ser visto e alvo de cumprimentos:

[...] mas nesse instante não posso deixar de largar a escrita do meu livro em curso, ir
para a rua, nem sei por quê, ou para quê; eu saio, encontro um vizinho na portaria do
prédio, a tentação que tenho é a de ignorá-lo, não lhe responder o cumprimento, me
confundir com as coisas, ser apenas mais uma entre todas, não dar um passo
preciso, não ser visto, apenas flutuar num espaço que o olho humano não
alcança(NOLL, 2002, p. 94-95, grifo nosso).
144

Assim, reflete, ante as situações sociais às quais deve se submeter, caso queira ter a
sensação de pertencimento, ciente de que lhe domina a sensação de que não pertence a lugar
nenhum, mas a um hiato, estando sempre fora de uma sequência narrativa:

[...] parece que vivo nesse hiato, ao ocorrer a coisa ainda não a tenho o suficiente
para socorrer-me em sua identidade, e depois é como se eu nunca pegasse o tempo a
tempo, sempre é tarde para tanto, ele já mergulhou nas águas da memória, e aquilo
que o complementará depois já estou vivendo sem saber, sempre achando que errei
de capítulo, que estou fora de hora (NOLL, 2002, p. 95, grifo nosso).

Assim, a retomada das experiências em outros países é pincelada aqui e ali. Um


detalhe remonta a outros lugares, e, então, estar arvorado em Porto Alegre não lhe tira o
desejo de retornar a mares antes navegados: “[...] é puro brilho meu sapato, com ele serei
recebido nos salões da corte novamente, lá em Bellagio, lá, para lá levarei esse engraxate,
sua mulher, seus filhos e com eles correrei pelos jardins da “Catedral” da Fundação
americana” (NOLL, 2002, p. 96, grifo nosso).
Dessa forma, assumindo a felicidade, percorre novos espaços, agora sociais,
substancializados em um campo de refugiados, onde o narrador-personagem pode-se abrigar
no amor e na fraternidade, determinado a expandir-se pela solidariedade, mas tendo a forte
convicção de que essa nova experiência só cabe porque ele é um ser em deslocamento, desta
vez pelas ruas da ideologia:

Eu caminhava conduzindo Sarita por minha mão esquerda, no meu lado direito tudo
atuava em franca pantomima: diante das pessoas, principalmente das crianças, o que
eu dizia com os meus gestos espalhafatosos e a face em rebordosa não era muito,
nem sei se comunicava mesmo alguma coisa, eu queria tão-só tentar dar um curso
benevolente aos nossos passos tortuosos entre crianças, cachorros, galinhas, velhos
—, afirmar que a minha visita junto da criança era só um pouco dura pra ser sonho
mesmo, não chegava porém a ter nem substância clara já que vivíamos em eterno
deslocamento, em fortuita expansão por entre os acampamentos dos sobreviventes;
os nossos sapatos embarrados queriam dizer que nos movimentávamos pelo mesmo
terreno que eles e que isso ia passar, e eu fazia expressões doidivanas que pareciam
querer desbravar a ferro e foice o sentido da nossa aparição no meio daquele povo
em inquietude, se é que algum sentido concluído havia— não, não conseguiam rir
com minhas micagens, nem tampouco se assustar nem nada, e era com Sarita apenas
a convicção de que ainda havia o que seguir em alguma direção, nós íamos (NOLL,
2002, p. 102, grifo nosso).

Desejando apenas flutuar num espaço que o olho humano não alcança, sempre
achando que errou de capítulo, sonhando em estar novamente lá em Bellagio, ou ainda
desbravando a ferro e foice o sentido da sua inquietude, o narrador-personagem de Berkeley
em Bellagio se mostra alguém que, estando aportado, está em permanente trânsito. Não é
pouco significativo o fato de que, embora estando em Porto Alegre, se sinta bem em um
145

campo de refugiados, seres a ele irmanados, seres em trânsito. Os quatro elementos


metafóricos acima — uma rua, um sapato, um capítulo, um símbolo ideológico — são formas
que ilustram sua inconstância frenética, detalhes que tornam o espaço ao qual ele retorna um
continente de movimentos.

3.4 Dois em trânsito e solidão

Tanta areia e cinzas... e um cão faminto que


abana a cauda entre os escombros!...
De um narrador em delírio

Também ilustrando o desconforto que se apresenta como um modo de produção


estética na ficção contemporânea, temos A história dos ossos, de Alberto Martins, composta
de dois segmentos — “O cão no sótão” e “A história dos ossos” —, que podem ser lidos de
forma complementar. Atentando aqui em especial para a primeira unidade, percebe-se a
composição da espacialidade na relação entre as personas que atuam na obra, em especial o
narrador-personagem e seu irmão, tanto sob a perspectiva do movimento de atuações entre
eles quanto sob a perspectiva linguístico-discursiva, ambas que se mostram esteticamente.
Não é insignificante que na primeira frase da obra o espaço seja o objeto de
consideração. Apartado em “dentro” e “fora”, o espaço denuncia o também aparte entre
familiares:

Pouco depois de chegarmos a São Paulo meu irmão mudou-se para o quarto dos
fundos, separado da casa por um quintal de cimento. Dentro, ficamos eu, a mãe e
uma tia que viera ajudar no trabalho doméstico, naqueles dias em que o nome do pai
era impronunciável entre as nossas paredes (MARTINS, 2005, p.13).

Comprova esse afastamento a composição da cena, cujos elementos promovem efeitos


semânticos de desaconchego e de rejeição: os campos são opostos — casa e quarto dos fundos
(grifo nosso); o número de ocupantes é oposto — plural para a casa (três) e singular para o
quarto dos fundos (um); a função da área entre as localizações é de negação de uma
continuidade que um pátio poderia representar — uso do adjetivo “separado”; a materialidade
146

dessa área externa entre os campos é dura — não há grama nem flores, mas cimento. O
arranjo estético de elementos componentes do espaço retrata um arranjo familiar, para o qual
se faz necessário o distanciamento de um dos elementos da família, o que se dará em outras
proposições espaciais no decorrer da narrativa. O espaço, desde o início da narrativa, é, então
problematizado.
Quem se encarrega desse início da obra é uma voz discursiva em uma primeira pessoa.
Ela descreve o cenário físico/familiar, com detalhes visuais e táteis tradutores de sentimentos
e posicionamentos e apresenta um personagem como sendo um irmão. A estratégia para
indicar o parentesco é o uso do possessivo “meu”, o que gera um tom de pessoalidade: “Pouco
depois de chegarmos a São Paulo, meu irmão mudou-se para o quarto dos fundos, separado da
casa por um quintal de cimento” (MARTINS, 2005, p.13, grifo nosso).
Mas, logo em seguida, no terceiro parágrafo, o mesmo narrador, em referência ao
mesmo personagem, faz uso do artigo definido, promovendo o afastamento entre si e o irmão
e acionando um deslocamento da proximidade que parecia haver a princípio: “O irmão não se
importou com nada daquilo. Deitou um tampo de porta sobre os dois cavaletes e passava
horas escrevendo” (MARTINS, 2005, p.13, grifo nosso). O distanciamento feito pelo usufruto
de um elemento linguístico é acentuado por outros, como o uso do pronome demonstrativo
“aquele”: “No início, todos achamos que aquele rapaz desregrado, que trocava com
frequência o dia pela noite, não aguentaria a rotina do emprego fixo” (MARTINS, 2005, p.14,
grifo nosso). Assim, o personagem, de começo tratado como um personagem-irmão do
narrador, passará a ser tratado apenas como um personagem, em uma tentativa de
distanciamento físico e parental. Os motivos que permeiam essa tentativa vão se enumerando
ao longo da narrativa: a aflitiva demência do irmão, a também aflitiva invocação do pai que
essa demência traz; uma inconsciente tentativa de distanciar-se das aflições por meio da
escrita. Entretanto, um deles em especial pode ser considerado: empreender o afastamento
pelo viés gramatical e pelo isolamento físico retrata a necessidade de distanciamento daquilo
que irmana narrador e personagem, a própria demência, que, embora pertencente a este, está
também à espreita daquele, e nela se inscreve o potencial de escritor do irmão.
Ocorre que essas estratégias iniciais não têm potência suficiente para fazer valer o
empreendimento. Isso porque, no que tange à posição das atuações do narrador e do
personagem irmão, bem como aos usos linguísticos, o distanciamento não se consolida. Pelo
contrário, a aproximação entre eles é tão visceral, que o lugar de um é assimilado pelo outro,
pois o discurso literário e desvairado que, com urgência, toma conta do irmão, acaba por
tomar conta do narrador. E isso se evidencia pelo trânsito entre eles, pelos espaços onde se
147

localizam, por onde passam, para onde vão, de forma que o isolamento que vive o irmão, pelo
qual passa e para onde vai é perseguido pelo narrador, como se o caminho lhe fosse essencial.
Os movimentos do irmão são como um ímã, e seu percurso revela como o narrador é seu
cativo:

Dois meses depois da mudança, o irmão deu de fazer as refeições sozinho, no


quarto. Fora esse momento em que lhe entregava o prato e entrevia seu vulto pelo
vão da porta, eu raramente o encontrava. Mas sua presença inundava a casa nos
gestos interrompidos da mãe e da tia, nas conversas que terminavam quase sempre
em interrogações vazias: “Já jantou?”, “Alguém falou com ele hoje?”.
Agora que tantos anos depois reviro outra vez estes papéis, lembro de encontrá-lo
também de madrugada, na mesa da cozinha. Mas então não falávamos quase nada.
Roíamos calados pedacinhos de pão borrachento enquanto os ruídos da geladeira
conversavam por nós (MARTINS, 2005, p.14).

O irmão é apresentado, então (diferentemente de como o narrador apresenta a si


mesmo), como alguém com desequilíbrios emocionais (hábitos noturnos, inadaptação às
regras) e como um apaixonado por literatura, um escritor, sem que essa seja a função que
gostaria de exercer a vida inteira. Assim demarcados — o narrador, um ser da casa, e o irmão,
alguém do quarto dos fundos —, há um quase nada que os mantém ligados. As conversas
sobre temas de literatura, de amplo conhecimento do irmão, mas apenas de “conhecimento de
orelha” do narrador, são uma forma de demonstrar a distância entre os dois. Essa diferença
situa a literatura na insanidade, lugar rejeitado pelo narrador, mas de liberdade para o irmão,
questão assim posta: “Se conseguisse escrever uma única página verdadeiramente viva — era
assim que ele se expressava — a segunda parte de sua vida se cumpriria na mais absoluta,
imprevisível e irremediável liberdade” (MARTINS, 2005, p.14).
Esse interesse especial pela escrita ligado à demência (“A mãe, que tinha antecedentes,
passou a ver com temor aquela atração desmedida do filho pela escrita” (MARTINS, 2005, p.
14)) promoveu o primeiro afastamento do filho para o quarto dos fundos e motivou que a mãe
e a tia lhe conseguissem um emprego em um escritório, o que significa mais um deslocamento
do personagem do ambiente doméstico para o empresarial, onde ele se dá bem
profissionalmente, passando de arquivista a redator de contratos, pareceres e petições.
Concentrado nessas atividades, é-lhe designado um cômodo onde ele poderia trabalhar mais
eficazmente e para onde ele resolve se mudar. Assim, faz mais um movimento no espaço:
transfere-se do quarto dos fundos da casa para o sótão da empresa. Então, da mesma maneira
como foi levado do espaço casa para o espaço quarto dos fundos, o personagem irmão é
levado do espaço empresa para o espaço sótão, de tal forma que muito mais do que fazer um
movimento entre lugares, ele é deslocado para isolamentos cada vez mais profundos.
148

A distância entre o narrador-personagem e o irmão parece assim ampliar-se, o que está


presente no próprio discurso do narrador, por meio de um advérbio que demonstra essa
ausência: “Quando finalmente o visitei no trabalho, constatei que aquela vida de escritório de
fato lhe caía bem” (MARTINS, 2005, p.15). Subjacente à palavra “finalmente”, encontra-se o
mapa nada decorativo que desenha o tempo levado para que visitasse o irmão, a dificuldade
de aproximação, o obstáculo para percorrer o quintal de cimento que se ampliara do pátio
entre a casa e o quarto dos fundos, para um entre bairros, de Pinheiros, passando pelo Sumaré,
chegando a Perdizes, trajeto de fiação de postes, esquinas caladas, casinha com luz brilhando,
sombras de árvores dançando. Trata-se de uma geografia que revela o estado de pensamento
do narrador.
Enquanto isso, naquele sótão, em isolamento mais acentuado, o irmão vai assumindo
sua personalidade de dominante do espaço que passa ocupar, distanciado da casa de onde
vinha o narrador para vê-lo: “Sem me dar muita atenção, perguntou o que eu fazia ali. Eu
vinha de casa. Trazia roupa lavada; podia vir algumas vezes por semana, se quisesse”
(MARTINS, 2005, p.15). Assim, parece que a oposição entre os dois, narrador e personagem,
se demarca cada vez mais: de um lado, o equilíbrio permanente e estável da casa, da roupa
lavada; de outro, o desequilíbrio do extracasa, para o quarto dos fundos, para o escritório, para
o sótão.
Entretanto, a mudança de cenário implica um mergulho do irmão na produção de uma
escrita e do narrador-personagem no fascínio que o irmão exerce. Assim, paralelamente,
enquanto o personagem irmão, passo a passo, vai fazendo da sua área de trabalho um espaço
que atenda a seu descontrole mental, o narrador vai-se mostrando um desalojado, cuja vida
passa a ser o adentramento no sótão, acompanhando insistentemente de perto todo o processo
de estranhezas que ali se passa. Faz isso, a princípio, exercendo o papel de irmão equilibrado:
levando-lhe comida e mudas de roupa e tentando manter com ele um diálogo que lhe seja
aprazível, mas, aos poucos, vai tomando para si o estado “tão só” vivido pelo irmão. O
movimento espacial percorrido traduz um movimento emocional; aproximar-se do espaço do
irmão é um aproximar-se do irmão, a ponto de incorporar seu discurso.
Certa feita, durante uma visita, duas ocorrências impressionam o narrador: ouve do
irmão que faria uma peça teatral, classificada como um monólogo a muitas vozes; vê que no
sótão há um cão. De início, vê no paradoxo e na presença insólita apenas a manifestação de
uma desordem mental, algo sem importância ante o histórico familiar tomado por essas
desorientações sem maiores consequências. Mas, na visita seguinte, há outra alteração
espacial que acentua os estranhamentos: impedido de entrar no sótão, cabe ao narrador ficar
149

ao pé da escada. Essa restrição de proximidade é reveladora: assim como não há lugar na vida
familiar para o irmão, não há lugar na vida do irmão para a família, relegada, na figura do
narrador, ao pé da escada. Antagônicos, sótão e pé de escada compõem o cenário de
concretização do temor da mãe de que a atração desmedida pela literatura se consumasse, e
assim seu filho entrasse em estado total de loucura, configurada no fechamento do sótão de si
mesmo, dedicado a uma escrita febril, tendo como plateia um cão.
Essa distância vertical e emocional entre os irmãos é desfeita, no entanto, por um elo,
um elemento conector entre os espaços: trata-se de um corrimão, meio pelo qual o narrador
pode ouvir “cada sílaba que o irmão proferia, vibrando nas tábuas, saltando de degrau em
degrau” (MARTINS, 2005, p.17). Trata-se de uma mediação esdrúxula, por meio da qual se
tem a percepção do estado de excitação em que se encontra o produtor da peça teatral, tomado
pela escrita de “uma única página verdadeiramente viva” (MARTINS, 2005, p.14), após a
qual “a segunda parte de sua vida se cumpriria na mais absoluta, imprevisível e irremediável
liberdade” (MARTINS, 2005, p.14). O corrimão é tomado aqui de forma imprevisível, pois,
sendo um elemento fixo do espaço físico, cuja função é a de apoio e decoração, adquire outra
função, a de meio propagador de ondas sonoras e visuais, passando a uma imprevisível
relação matéria-objeto, deflagrada por um simples toque da orelha na madeira, que
desencadeia um fluxo febril de captação de sons e imagens:

Numa tarde, ao me curvar para depor a muda de roupa no pé da escada, aproximei


sem querer o ouvido do corrimão. Com nitidez espantosa, ouvi cada sílaba que o
irmão proferia, vibrando nas tábuas, saltando de degrau em degrau. No impulso,
tomei o caderno de desenho que carregava comigo e, dobrado sobre o primeiro
degrau, me pus a transcrever cada som, cada gesto, cada risco que saía da voz do
irmão (MARTINS, 2005, p.17).

Usufruindo das reflexões de Brandão, a polaridade alto/baixo — sótão/pé da escada —


tem sua estabilidade tensionada pela nova configuração dada ao corrimão, mudando o
cenário, agora tensionado pela dinâmica que exige a anotação de um monólogo a muitas
vozes, tão intensa, que toma para seu corpo o estado emocional febril em que se encontrava o
irmão. Irmanam-se, afinal, pela assunção de papéis familiares sedimentados na loucura,
desaloja-se de si mesmo, por fim, o narrador.
Até que, impedido de adentrar ao escritório, o narrador passa a ouvir, colado à porta,
toda a produção exaltada do irmão, um “monólogo ensaiado”, com gestos e sons. Em um
impulso, toma o caderno de desenho que carregava consigo e reproduz aquilo que era
construído dentro da sala: “[...] dobrado sob o primeiro degrau, me pus [se pôs] a transcrever
150

cada som, cada gesto, cada risco que saía da voz do irmão” (MARTINS, 2005, p.16). Não se
trata aí de uma simples reprodução daquilo que o irmão proferia, pois transpor o que ouvia
para o papel exigiria do narrador habilidades de escritor; colocar gestos, sons e riscos da voz
de alguém em palavras é luta renhida, processo que se torna mais complexo ante a
impossibilidade de ver e ouvir com nitidez o que se passava no interior do escritório,
obstaculizado que estava pela porta.
Ao assumir, pela escrita, área que não é de seu domínio, tudo o que oral e
gestualmente fizera o irmão, o narrador redimensiona seu lugar, pois avoca o do irmão e
integra-o ao seu discurso ou integra seu discurso ao do irmão. Assim, o distanciamento
gramatical que se apresentara perde-se, torna-se vão, pois, inversamente ao que os usos
linguísticos pretendiam, não só o irmão continua sendo “meu” irmão, como também é
apreendido pelo narrador e vice-versa, pois este é apreendido por aquele. Coautores, ocupam
um só lugar, compõem um laço indissolúvel pela literatura, situados ambos agora na
conturbação mental. Tem-se, aí, desconfortada, a figura do “eu-irmão”. Trata-se de alguém
que diz não ter domínio da poética e dá provas de quem realmente não tem esse domínio, pois
ele se propõe a distanciar-se de um personagem, seu próprio irmão, mas acaba, esteticamente,
acoplado a ele. Trata-se de alguém que não se diz da área da literatura, mas que,
involuntariamente, tomado por um estado febril, assume o papel de um escritor, recriando um
material que não é de sua autoria, engastando-o em uma narrativa mais ampla, que é sua. O
produto final — um ensaio como parte de uma narrativa; uma narrativa que tem como parte
um ensaio — acaba por apresentar uma estética verbal “esquizofrênica”: o narrador insere em
sua narrativa o produto de um outro que está tomado pela demência, e, ao fazer isso, acaba
por revestir-se dessa demência, assemelhado que fica ao irmão: “Fiz isso sem contar a
ninguém por vários dias seguidos. Lembro que a certa altura não ouvi mais vozes. Juntei as
forças e toquei para casa. Exausto, passei o resto do dia feito um zumbi e no início da noite
tive febre” (MARTINS, 2005, p.16).
O narrador “eu-irmão”, desde sua tentativa linguageira de distanciamento, perseguindo
com a capa do equilíbrio os espaços percorridos pelo irmão, confrontava-se como autor,
narrador, personagem, o que, nos dizeres de Derrida, retrata haver ali uma “literatura [...]
[que] muito rapidamente se tornou a experiência de uma insatisfação ou de uma falta [...]”
(DERRIDA, 2014, p. 55).

3.5 Em travessia
151

Não se procura aquilo que se carrega.


De um narrador que se atravessa

Ribamar, de José Castello (2010),é mais uma obra cuja organização espacial
demonstra uma perene sensação de falta, com espaços lacunares ocupados, vividos e sentidos
pelo narrador, revelando um narrador descentrado. Não são espaços de apoio, pelo contrário,
tudo acontece em travessia, estratégia que denuncia um narrador inadaptado à sua história
familiar, desconfiado de sua posição de escritor, deslocado em relação a afetos. Essa travessia
se apresenta no processo da narração e na composição da narrativa, ambos entrelaçados.
No primeiro caso, a espacialidade se configura na sequência de uma pauta musical,
cujos andamentos alojam e associam reflexões, ações, sentimentos. Estes são relatados na
narrativa, cujo enredo é o desenrolar de uma viagem em busca do resgate de algo faltoso, a
compreensão da figura paterna. Ambas, pauta musical e viagem, elementos de travessia, são
representadas também em travessia, pois se estruturam em um intergênero: não se trata de
algo acabado, um gênero configurado, mas sim algo em trânsito, uma modelagem feita de: a)
notas preparatórias para a construção de um romance; b) entremeadas por uma carta; c) que se
orienta por uma outra carta. Temos então uma canção de ninar, em cujo compasso vai se
inscrevendo um enredo romanesco que conta uma viagem, assumido pelo narrador como um
registro de notas, cujo desenvolvimento está entrelaçado a uma carta, esta entrelaçada a uma
outra carta. Esse conjunto insólito de objetos que constituem um “estar em”, algo sem
arremate, intenciona problematizar a construção da obra literária (questão sobre a qual
trataremos mais detalhadamente em capítulo a seguir) atrelada à construção da espacialidade.
Esta, insólita, exige reflexões.
A pauta musical, tentativa de materialização do som, tornando-o visual e táctil, legível,
colocada como um percurso, modela, de forma singular, a espacialidade, conotando a
trajetória feita pelo narrador em busca de tornar legíveis, compreensíveis também os
incômodos eventos de sua vida filial, guardados na memória e deflagrados por essa canção de
ninar. O título dessa composição é “Cala a boca”, e seu verbo no imperativo deixa
transparecer um tom nervoso, uma ordem revestida de impaciência.
É significativo, então, que o primeiro objeto apresentado na obra seja a pauta musical
dessa canção de ninar, uma canção atordoante: “A repulsa me faz levantar. Esquecendo que o
152

ajudo a morrer, e não a nascer, assovio uma canção. Essa canção que, ainda hoje, me atordoa”
(CASTELLO, 2010,p.16). Ao colocá-la como prólogo, o narrador-escritor, cujo nome é José,
se anuncia por ela, prenunciando que tratará do sofrimento que a toada impõe sobre si,
indicando uma orientação de leitura e disponibilizando-a como algo a ser descodificado.
Atendendo a essas intenções, essa canção será subdividida em segmentos correlatos à
subdivisão da obra, em capítulos, compondo a estrutura em que se manifestarão as
experiências dolorosas vividas pelo narrador, embalado pelo sentimento de rejeição que
perpassa o canto: “Naquele momento, decido: o livro que escreverei, Ribamar, terá a estrutura
dessa canção. À frente, um emaranhado de palavras. Ao fundo, uma música que sopra”
(CASTELLO, 2010, p. 92).
Assim, os movimentos sonoros, visualizados na impressão dessa pauta, nortearão o
movimento, o ritmo, o andamento da narrativa, registrados em seus espaços de discurso, os
capítulos, ou seja, eles se constituem, na obra em estudo, como um espaço que delineia os
passos dados pelo narrador-escritor na viagem que empreende ao encontro do pai, ao encontro
de si como filho e ao encontro da escrita.
Assim, cada passo nas linhas musicais é conjugado a capítulos, cujos títulos se
compõem, de forma associada: a) da imagem de um trecho da pauta com seu respectivo
andamento; b) da expressão verbal desse andamento; c) de uma palavra que capture a essência
do capítulo; d) e ainda da indicação da unidade de tempo em que se dá o movimento.
Vejamos um exemplo sobre o qual nos deteremos a título de entendimento de como essa
pauta é transformada em um caminho de notas percorrido pelo narrador-escritor e a ser
percorrido pelo leitor. Sua horizontalidade ressignifica o espaço da narrativa, figurando uma
estrada de experiências e reflexões de José, o mesmo caminho de leitura a ser cumprido, com
pausas e durações equivalentes a pausas e durações que compõem a estrada da vida na qual
caminha.

Figura 1

Fonte: CASTELO, 2010, p. 11).


153

Essa disposição que titula o primeiro capítulo vai se repetir mais sete vezes, isto é,
sempre que se anuncia uma interrupção na pauta musical, posta em um tempo de duração, o
tema tratado é “aves”. Os capítulos funcionam como uma liga de marcação importante no
ritmo da narrativa. Ou seja, esteticamente, entre os movimentos empreendidos pelo narrador,
há oito pausas, postas num tempo de duração, nas quais ele reflete sobre um elemento
plurissignificativo — as aves. Trata-se, como se pode observar, de um corpo com enlace
imprevisível no que se refere ao vínculo matéria-objeto: ao sonoro (um canto), configurado de
forma visual (pauta musical), posto em espaços vazios de tempo (a pausa, um compasso de
espera, de silêncio), é associado um elemento tangível, visível e audível, as aves. Dessa
forma, o capítulo que assim se anuncia evidencia duas funções: ele próprio é uma paragem,
um espaço no qual o discurso para; e esse estranho espaço deixa sob suspeita a noção de
espaço, haja vista os estranhamentos que o delineiam.
Gaston Bachelard (1988), em sua obra A poética do espaço, põe em relevância o
conceito de imaginação material, considerando que o espaço se apresenta materialmente,
oriundo de um princípio de ligação entre o imaginado e o vivido, o que daria certa
estabilidade ao ser quando se põe em busca do tempo perdido. Segundo o teórico: “É pelo
espaço, é no espaço que encontramos os belos fósseis de duração concretizados por longas
permanências” (BACHELARD, 1988, p. 29). Luís Alberto Brandão, para tratar da singular
espacialidade na obra de Rafael Courtoisier, usufrui dessas considerações de Gaston
Bachelard, mas dando-lhe nova configuração: segundo o estudioso, essa imaginação imaterial
pode alcançar o que é inalcançável, caso se quebre o círculo restrito formado pela relação
imaginado/vivido:

[...] os materiais não são apresentados segundo qualidades supostamente intrínsecas,


determinantes de sua “materialidade”. Sem dúvida, objetos e eventos com
frequência são definidos por meio da atribuição de qualidades ou estados físicos [...]
Tais estados, no entanto, comportam matérias que, em princípio, não lhe são afins,
ou cuja afinidade não é óbvia (BRANDÃO, 2013, p.177).

A percepção de Brandão sobre a obra do poeta uruguaio pode ser também levada em
conta para Ribamar, cuja espacialidade não comporta matérias com afinidade óbvia, ou seja:
há uma peculiaridade nessa junção de melodia materializada em pauta musical e associada ao
elemento aves, constituintes da imprevisibilidade do título e da consequente composição de
capítulos, fundindo elementos que servem, entre outras funções e associados a outros
elementos constituintes da obra, à configuração de um espaço revelador do estado de
instabilidade do narrador-escritor.
154

Adentremos ao capítulo, entendendo-o como um espaço de pausa, um segmento no


espaço discursivo total. Penetrar nesse subespaço é se permitir acompanhar um trecho do
percurso realizado por José, que, enquanto faz uma viagem ao passado de seu pai, também
revisita suas experiências. Nele, lê-se como primeira frase: “Meu mal tem uma origem
precisa: sou obcecado por Franz Kafka”. A partir do enunciado é que se passa a transitar por
uma relação emocional e discursiva presente em um objeto, cujas linhas o narrador-escritor
também percorre, obsessivamente: a carta de Kafka ao pai, em cujo autor e em cujas palavras
se mira. Emaranhados aos dizeres da carta do autor nascido no ainda império austro-húngaro,
estão os dizeres do narrador de Ribamar, de tal forma que o caminho pessoal e discursivo
percorrido por um espelha o caminho pessoal e discursivo percorrido pelo outro. O reflexo
entre ambos é tão forte, que a relação entre os dois personagens chega a ser física:

Isso começou quando eu era menino. Vi, em algum lugar, uma fotografia daqueles
olhos nervosos, que copiam os meus. Sempre vestido com cores escuras, como eu
mesmo me vestia. Uma sombra o envolve, e eu a sinto roçar minhas costas (ambos
se tocam). (CASTELLO, 2010, p.11).

Interessante o jogo de lugares entre o autor de A metamorfose e o narrador sob nossos


estudos: aquele é o copista, como se houvesse um reconhecimento inverso, de maneira que o
alvo de todas as considerações seja o narrador. Esclarecendo: não é este quem copia Kafka,
nem usa as roupas que ele usa; não é sua sombra envolvente que roça a do outro, mas é o
outro quem se volta para o narrador, como se este fosse sua direção, seu alvo. Assim, o
narrador aloja sua vida no deslocamento da vida de um outro que traz para si.
Na esteira do jogo de posições, encaminham-se as reflexões que dominam esse
primeiro capítulo-pausa, espaço onde se apresentam essencialmente as semelhanças que unem
o famoso escritor tcheco ao narrador-escritor de Ribamar. Para compor essa correlação, a
personalidade de Kafka e seu nome são objeto de reflexão.
Primeiramente, o narrador nos conta que o escritor nascido em Praga era um homem
silencioso. Depois, informa que ao seu nome são atribuídos os significados de “gralha”,
denominação de uma ave que simboliza mau agouro, e também o de uma alcunha para
tagarelas. Associando essa característica aos significados, o narrador constrói uma imagem: o
silêncio que fazia parte da personalidade desse personagem do mundo da autoria literária
adquire tons conotativos, passando a ser ainda uma ilustração do seu perfil, alterado, então,
para “Franz Gralha”, com renovada significação — ao silêncio de Kafka correspondia um
“frenético tagarelar interior” extravasado em suas obras, como a Carta ao pai.
155

O mesmo movimento de associação e significação incide sobre o narrador, de tal


forma que, sendo ele, assim como Kafka, um homem silencioso, tem também um tagarelar
interior extravasado pelo discurso estético, que acaba igualmente por constituir seu discurso: a
narração de Ribamar é uma outra carta kafkaniana a um outro pai, pares assemelhados em
convivências de dor. Ambos estão, portanto, ligados “— como dois fantoches atados a um
mesmo fio — por um ponto de ebulição interno, que decido [o narrador decide] chamar de O
Ponto de Gralha” (CASTELLO, 2010, p.13).
Assim, após esse capítulo-pausa, espaço inscrito na estrutura total da obra e na pauta
musical da canção de ninar “Cala a boca”, José dá lugar ao relato da sequência de
acontecimentos, registrando-os em um objeto cuja configuração se dá em um movimento
espacial: produz uma carta para seu pai, esta fixada à carta de Kafka ao pai, esse Ponto de
Gralha.
A presença do gênero carta interfere significativamente na espacialidade que compõe a
obra. Primeiramente, é preciso considerar que as missivas são entidades sociodiscursivas que
só têm existência em movimento, em “inter-ação” à distância, não se sedimentando em lugar
nenhum, constituindo-se uma composição partícipe, em rede, de tal forma que uma carta
enviada se torna uma outra, a carta recebida, circunscrevendo-se na relação eu-tu, e não nos
lugares estanques eu e tu. Segundo a Professora Jane Quintiliano,

nos eventos das cartas pessoais, onde se efetivam os contatos interpessoais entre
aqueles que se encontram distantes e têm entre si um laço de afetividade, os sujeitos
(tanto o remetente como o destinatário) trazem, à cena enunciativa, sistemas de
crenças, de valores e de saberes, filiados a quadros das atividades de uma formação
social, construídos no seio das práticas sociais reais da vida cotidiana, deixando
assim entrever o papel/identidade social assumido por cada um deles ou, em outros
termos, a posição identitária ali investida (QUINTILIANO, 2002, p.101, grifo
nosso).

Singularmente, a carta de Kafka a seu pai não se constitui como um evento entre
pessoas geograficamente à distância, mas, sim, emocionalmente. Embora fisicamente
próximos, mantinham uma relação de apartamento. Para tornar ainda mais singular essa cena
enunciativa, a missiva não chegou a seu destinatário, pois o jovem escritor tcheco a teria
entregue à mãe, que a teria escondido do pai para proteger o filho da austeridade paterna.
Sendo assim, o destino aparentemente proposto para a correspondência não se teria cumprido,
acabando ela por ficar com o próprio emissor, talvez seu verdadeiro destinatário, se levarmos
em conta, entre outros fatores, um falar monológico presente em suas linhas. Filipe Pereirinha
ressalta, em seu estudo “Uma leitura da Carta ao pai de Kafka” (PEREIRINHA, 2015), que o
156

missivista, em determinado momento, fala “como se recebesse do Outro a sua própria


mensagem de forma invertida”, conforme o seguinte trecho: “Ao teres uma panorâmica geral
da justificação do medo que tenho de ti, podias responder o seguinte”.Continua o estudioso
português:

Aquilo que se segue é uma objeção, ponto por ponto, ao raciocínio que Kafka
expusera em detalhe ao longo da carta. Uma objeção que desemboca no seguinte: “A
isso respondo que, antes de mais”, escreve Kafka, colocando-se de novo no papel de
emissor, “toda esta resposta […] não parte de ti, mas de mim”(PEREIRINHA,
2015).4

Ocorre ainda que a carta de Kafka ao pai tomou rumos inusitados, passando a ser
objeto de deleite e de análise para produtores distintos daqueles que

[...] operam com o pressuposto de que, para que se estabeleça o espaço de


interlocução, o outro a quem eles se dirigem é projetado como um parceiro que
partilha um domínio de conhecimentos, dentre os quais está aquele que compreende
as representações que o destinatário tem da finalidade a que se presta a carta, para,
inclusive, tomar como pertinente e significar o que nela se diz [...] (QUINTILIANO,
2002, p. 101).

Assim, apesar de o destinatário ser o pai, os elementos de narrativa, as descrições, as


sensações passaram a não se limitar ao interesse de Hermann Kafka, antes tornam a carta um
espaço discursivo em extravio, ao qual adentram novos interlocutores, leitores que tomam
ciência de mais do que o pai saberia, recebendo em mãos uma carta que conta uma história
universal.
Um dos rumos é esteticamente construído em Ribamar. Na obra, a carta do jovem
escritor do século XX chega às mãos do narrador-escritor de nossos estudos, que, como
anunciamos anteriormente, toma-a como um espaço em cujas linhas adentra e as quais
percorre como se as experiências nelas relatadas fossem as suas próprias. José decifra o texto
de Kafka, uma produção que o deixa insone, porque a missiva traduz uma experiência de vida
que é a sua. Então, a carta de 1919 se reconfigura por essa nova leitura e torna-se uma carta-
presente de 1973, de um outro filho a um outro pai:

Peguei o livro, autografei-o e o larguei sobre sua mesa de cabeceira. Com esse
gesto, revidava às palavras que Franz ouviu de Hermann, quando lhe deu de
presente o primeiro exemplar de Um médico rural, único livro que dedicou a seu
pai.

4
Na edição que consta de nossas referências, lê-se: “Caso abarcasse com o olhar minha fundamentação do medo que tenho de
você, então você poderia responder:” [...] “A isso respondo que, em primeiro lugar, toda essa objeção...” (KAFKA, 1997, p.
71).
157

Ao receber o livro, Hermann se limitou a dizer: “Ponha-o sobre o criado mudo”.


Não sei se Franz seguiu ou não a recomendação; em seu lugar, e com outro livro, eu
agora a cumpria. E, no mesmo ato, me desforrava (CASTELLO, 2010, p.22, grifo
nosso).

Com nova vida e por desforra, encontram-se José e Kafka, de forma que a história de
um se cruza com a história do outro, promovendo outros cruzamentos, como o vazio que
ambos sentiam ao escrever ou ainda a mesma dificuldade para falar com o pai, de forma que
os escritos do começo do século XX se perenizam na experiência do narrador:

Ao dirigir-se a seu pai, Hermann Kafka, Franz não só me roubava minhas palavras,
mas usurpava meu lugar de filho. As mesmas palavras que, em minha garganta,
provocavam feridas que me impediam de falar, ditas por Franz, descerravam a
verdade.
Eu não precisava mais buscar palavras para as coisas que tentava lhe dizer. As
palavras estavam ali, ainda que, em grande parte, me escapassem. Emitidas por um
grande escritor, o que não só as engrandecia, mas autenticava. Noventa e duas
páginas que resumiam o que, durante anos, eu tentei inutilmente expressar
(CASTELLO, 2010, p.22).

De novo, os papéis parecem se inverter — não é nosso narrador quem usufrui de


Kafka, mas este é quem lhe roubava suas palavras, num atravessamento temporal, de forma
que a Carta vai se reapresentar na obra em estudo com configuração e trajeto semelhantes.
Ribamar é uma composição que se faz, entre outros gêneros, por uma carta nunca lida pelo
seu destinatário, na qual se desfaz a relação eu-tu, para se manter na relação eu-eu. Porém
assim direcionada, diferentemente de Kafka, com a ciência de um narrador que é escritor, este
que faz com que a carta seja parte, estrategicamente, de um múltiplo discursivo: uma missiva
monológica em meio a uma narrativa composta de notas que relata uma viagem, um
verdadeiro exercício de metalinguagem.
Nas palavras do próprio autor José Castello, trata-se de “uma carta abortada”
(CASTELLO, 2012) cujo destinatário é seu próprio remetente. Assim, a cena real, histórica,
de Kafka, reconstitui-se na realidade ficcional de José, em cujo universo romanesco, na forma
de uma outra, se dá o deciframento da primeira Carta e do próprio narrador-personagem.
Ricardo Piglia, em sua obra O último leitor (2006), referindo-se ao protagonista-leitor Cônsul,
da obra Under the Volc ano, de Malcom Lowry, afirma: “Não se trata de interpretar (porque
já se sabe tudo), mas de reviver. O romance — ou seja, a experiência do Cônsul — é o
contexto e o comentário daquilo que se lê. As palavras lhe dizem respeito pessoalmente, como
uma espécie de profecia realizada” (PIGLIA, 2006, p. 23). Assim é com José, com sua prática
da leitura da Carta de Kafka: ele a lê em suas zonas secretas, que ilustram tanto o escritor
158

tcheco quanto a si mesmo, tirando-a daquele espaço discursivo para o seu. Por isso, as leituras
da Carta de Kafka por nosso narrador-escritor tornam-se cenas de sua narrativa. Isto é,
Ribamar apresenta um narrador que é um escritor, o qual conta sobre o protagonista da Carta
de Kafka ao pai e, ao fazê-lo, revela assumir para si as mesmas sensações e sentimentos do
autor alemão. José, então, encena dois papéis: um de narrador-escritor, porque narra suas
ações como José, alguém que pretende escrever uma obra; e um de narrador-leitor, porque
atua também como um leitor de Kafka. Trata-se de um leitor-escritor-narrador, que assume o
protagonismo de Kafka em sua vida, re-espacializando a Carta, fazendo-a sair de sua
condição inicial (uma missiva de um jovem nascido no ainda império austro-húngaro ao pai,
expondo uma angustiante relação parental) para ser: um objeto de leitura que converge para
uma outra vida de desajustes entre outros pai e filho de um outro tempo; um objeto-presente,
encaminhado desse leitor a esse outro pai; um alicerce para a escrita de uma obra a ser
construída por esse leitor, então um escritor; um elemento que obriga a inscrição desse
escritor a encenar-se como narrador-protagonista no enredo dessa obra, que empreende uma
viagem para deciframento de si.
Assim, em espelhamento, a carta do nosso leitor-escritor-narrador também não chega
ao seu destinatário, embora, por outro motivo, pois, como se verifica no decorrer do enredo, o
pai está morto. Trata-se de uma carta propositalmente anacrônica, porque é uma
correspondência em cujo momento de feitura já se configura para um destinatário
impossibilitado de lê-la e que, portanto, mantém-se no seu ponto de partida, onde se instaura.
Então, assim como Kafka, o missivista narrador-escritor faz do Outro sua própria imagem
invertida, dizendo a si o que parece dizer a ele, porém com estratégias distintas das usadas
pelo autor tcheco. Alguns elementos comprovam essa orientação da carta, a partir inclusive de
ela ter sido escrita após a morte do pai: “Por que escrevo essa carta? Você está morto, nunca a
lerá. Não passa, portanto, de um falso destinatário” (CASTELLO, 2010, p.65); também
porque o narrador-escritor, embora escreva sobre questões relacionadas ao pai, se permite
algumas falas que, se ditas ao pai, seriam grosserias (“Você parece (me perdoe) um primata.
Da espuma branca emerge um rosto pontudo, coberto por uma pele grossa, artificial. Não vou
adoçar nada: seu corpo, murcho e disforme, me enoja” (CASTELLO, 2010, p. 18)); ou ainda
porque insere nos dizeres reflexões muito intimistas (“Cada dor tem uma palavra que a
envolve, mas que não é aquela dor, e que por isso deixa de ser só uma palavra. [...] A frase me
aconselha a não separar palavra e dor. A não quebrar o mistério” (CASTELLO, 2010, p.107).
Todas são cenas que atingem e agridem, na verdade, o próprio narrador-escritor. “Busco
palavras que, arredias, me fogem. As ideias falham e começo a sentir medo, não de você e de
159

sua morte, mas de mim e de minha vida. Esquecendo-me de você, eu o abraço” (CASTELLO,
2010, p. 19).
O gesto de perambulação em torno de si mesmo do narrador-escritor ainda ocorre por
outra semelhança com a carta tcheca, no sentido de que também apresenta trajetória singular:
embora o pai tenha recebido a carta-presente, o filho não sabe se foi lida. Surpreso, ele a
recebe das mãos de um amigo que encontrou o livro, em um sebo, com a dedicatória, assinada
“amor do seu filho José” (CASTELLO, 2010, p.21). A angústia que o retorno provoca é
intensa. Sua reação é reler a carta, agora percorrendo as páginas com a intenção de descobrir
alguma anotação, algum sinal revelador de que o pai a tenha lido e, tendo lido, entendido que
seu emissor deixara de ser Kafka para ser José. Nessa releitura, depara-se com um sinal, um
trecho grifado:

Folheio a Carta ao pai em busca de algum sinal de que você a tenha lido. Nada
encontro. Nenhuma anotação, comentário, nada. Até que, para meu horror, no alto
da página 50, em grossas linhas vermelhas, deparo com a prova.
Está sublinhado: “Comigo não existia praticamente luta; minha derrota era quase
imediata; apenas subsistiam evasão, amargura, tristeza, conflito interior”
(CASTELLO, 2010, p.43).

A frase grifada levou José a levantar hipóteses: teria o pai lido a obra? Teria ele
grifado o trecho? Ou, tendo sido o livro emprestado ou vendido a um sebo, uma outra pessoa
teria feito a marcação? Outras perguntas emergem das reflexões de José: Teria o pai lido a
Carta de Kafka como uma obra daquele escritor de outro tempo e espaço? Teria grifado o
trecho como um leitor comum, sem algo que o levaria a reviver os dizeres ali postos, em sua
solidão de leitor, sem dimensionar a interioridade do ato de leitura proposta não só pela Carta
em si, mas por ela estar no estado de carta-presente?
Tantas perguntas não respondidas fazem acumular a sensação de desamparo do
narrador-escritor, desencontrado de si, enraizado em uma carta que não é sua, construindo
uma outra que já parte sem remetente externo a si mesmo, uma escrita fadada ao fracasso
desde seu início, entremeada a uma obra que narra uma viagem empreendida
semelhantemente à carta, com um destino socrático: um conhece-te a ti mesmo, em dificílima
dangerosíssima viagem. Simultaneamente às tentativas de paragens em uma pauta musical e
em uma carta in-transitada, o narrador continua deslocado de si. Ele dá início a uma viagem a
Parnaíba, em busca da história do pai, pretendendo, na compreensão daquele homem
esfíngico, a compreensão de si; pretendendo o mesmo na composição de uma obra que narra
espaços em travessia: uma viagem, uma carta, uma pauta: “Chego, enfim, a Parnaíba, a cidade
160

em que você cresceu. Trago o projeto insano de recuperar seu passado. Uma loucura, uma
estupidez — um livro” (CASTELLO, 2010, p. 47).
A empreitada emocional que significa essa viagem “até o miolo das coisas”
(CASTELLO, 2010, p. 101) se manifesta metaforicamente em expressões que conotam
espaços fluidos, frágeis, dolorosos. Nenhuma parte do percurso é feita sob o manto da
segurança, da convicção. Sempre um tatear no escuro, os contatos que estabelece com
personagens e coisas não são sequer um fio de Ariadne, conforme o narrador-escritor anuncia
em: “Tropecei no passado e o desprezei. A história que persigo é feita de fios delicados, que
minhas mãos grossas não conseguem repuxar” (CASTELLO, 2010, p. 81): tio Antônio “é só
um vulto em meu [seu] passado” (CASTELLO, 2010, p.23).
Vários elementos metonimicamente ilustram essa viagem tateante, em que o narrador-
escritor procura indícios que desvendariam o pai. Trata-se de objetos sempre ainda a
descortinar, impalpáveis, incompreensíveis: o velho Martins, “uma chama muito fraca, [que]
emite uma luz que mal consigo [consegue] divisar” (CASTELLO, 2010, p. 160); o dicionário
do avô, “uma caixa de dobradiças, em que as palavras oferecem não só a face ardente, mas
um reverso no escuro. Em que elas se desdobram e racham. No coração das palavras existe
uma fenda” (CASTELLO, 2010, p. 179); o menino que esmola uma “[...] pegada” do pai
(CASTELLO, 2010, p.186).
Desencontrado do pai, desencontrado de si, o narrador-escritor entremeia seu enredo
de peregrinação pelo passado do pai a retomadas de seu próprio passado costuradas por suas
reflexões, emolduradas pelos títulos que encabeçam outros capítulos que percorrem a pauta
musical “Cala a boca”: Infância, Angústia, Kafka, Família, Bichos, Nada. Um desassossego
perene, norteado pela relação pai-filho, transborda no decorrer dessa viagem: a sensação de
vazio aprendida na convivência com o pai: “Não sei o que você pretende, me limito a cumprir
ordens. Quando vê que me cansei, diz: ‘Você pode arrastá-lo para um lado, ou para o outro.
Não importa: ele estará sempre em algum lugar’.” “Você tem razão: nunca nos livramos do
vazio” (CASTELLO, 2010, p.28); a angústia do não pertencimento: “Então, eu entrava às
pressas (como um caixeiro-viajante, como um Samsa); alguém que está só de passagem por
um território que não lhe pertence e que lhe é adverso. Chegava movido pela necessidade —
de me lavar, de urinar. Empurrado” (CASTELLO, 2012, p.32); a consciência de que era um
ser kafkaniano: “Você nem sequer levanta os olhos. Sua indiferença me esmaga. Sou uma
barata que se esquiva pelo vão da porta. Sou Gregor Samsa, a rastejar em meu quarto”
(CASTELLO, 2012, p.71); a percepção do estranho que sempre o habitou: “A mulher morre,
ele sobrevive. Para homenageá-la, o marido, um Queiroz, adota o sobrenome da esposa. Dele
161

— como uma nave que se prende a um fio imaginário — descende toda a família no Brasil”
(CASTELLO, 2012, p.48); o entendimento da fuga por meio da metamorfose: “Nunca
entendeu que — imitando Gregor com sua casca e o tatu com sua armadura — foi o salto para
dentro que me salvou” (CASTELLO, 2010, p.181); a descoberta de que busca pela memória
do pai é a busca do nada: “Você bem que podia estar aqui, pai. Na verdade: você está aqui.
Reduzido a uma lembrança, agora sim eu o tenho. É uma posse precária, da qual o principal
(você mesmo) se exclui. Um consolo — como uma peruca ou uma perna ortopédica. Aposso-
me de sua sombra” (CASTELLO, 2010, p.200).
Todas essas andanças ilustram que a espacialidade que se configura na obra Ribamar
tem como ponto fixo o que o narrador denomina O Ponto de Gralha, apenas um fio que
comanda marionetes, títeres ao ar. Deslocada em uma pauta musical, em cartas suspensas de
seus destinos, em capítulos, a espacialidade é construída por uma voz narrativa
impossibilitada de se fixar nos lugares que lhe foram ofertados, como o ambiente familiar. Por
isso, essa voz discursiva passa a ser criadora de outros espaços, seus, sempre em mobilidade,
em travessia, sem âncora, conforme afirma: “Enigma que, aqui, não tenho a intenção de
decifrar, mas só de percorrer. Sim, porque este livro é uma travessia. Não escrevo sobre você.
Eu escrevo através de você” (CASTELLO, 2010, p.56).

3.6 Uma maratona

Nunca mais paro de correr.


De um narrador desarvorado

Santos e Oliveira(2001), em suas reflexões na obra Sujeito, tempo e espaço ficcionais,


começam o capítulo “Espaço e Literatura”, com a seguinte pergunta: “É possível ser sem
estar?” E continuam:

De maneira geral, quando concebemos um determinado ente — seja humano ou não,


animado ou inanimado — criamos uma série de referências com as quais ele se
relaciona de algum modo. Ou seja: imaginamos uma forma de situá-lo, atribuímos
ao ser um certo estar. Ao realizarmos tal operação, estamos produzindo um espaço
para o ser (SANTOS; OLIVEIRA, 2001, p. 67).
162

A obra Divórcio, de Ricardo Lísias(2013), coloca sob suspeição essa relação entre ser
e estar, começando por um primeiro capítulo cujo foco narrativo, em primeira pessoa, encena
ver-se fora de si mesmo: representa não ser e, portanto, não estar, colocando-se como alguém
que não é um vivo e também não é um morto:

Depois de quatro dias sem dormir, achei que tivesse morrido. Meu corpo estava
deitado na cama que comprei quando saí de casa. Olhei-me de uma distância de dois
metros e, além dos olhos vidrados, tive coragem apenas para conferir a respiração.
Meu tórax não se movia, Esperei alguns segundos e conferi de novo.
A gente vive a morte acordado.
Nos momentos seguintes, não sei o que aconteceu. Tenho pontos obscuros na minha
vida entre agosto e dezembro de 2011. Neles, devo estar morto (LÍSIAS, 2013, p.7).

Esse narrador olha para seu corpo como se fosse um outro, alguém do lado de fora
dele, “a uma distância de dois metros”, vendo seus olhos de morto, percebendo-se sem
respiração, como um espírito desencarnado de seu corpo e observador de si mesmo,
simulando estar de fora. Situação nonsense, configura-se nela um personagem olhando para
um outro personagem que é ele próprio: ele mesmo é um outro, de tal forma dissociados e
indissociáveis. Tomado de forte sensorialidade, descreve-se como se as sensações fossem ao
mesmo tempo alheias e suas — sente seu corpo cair, estende o braço, choca-se com a cama e
sente ardência, porque seu “corpo estava sem pele” (LÍSIAS, 2013, p. 7). Assim desnudado,
sem pele, o narrador vê a complexidade de si mesmo, seu estado interior, sem roupagens,
desprotegido, morto. A imagem um tanto kafkaniana consolida um espaço de linguagem,
composto de uma descrição em frases curtas, instantâneas (“Não consegui. Meu estômago
encolheu. Senti falta de ar” (LÍSIAS, 2013, p. 8)), que comandam os movimentos do narrador
ante o personagem que é ele mesmo, como se ele estivesse dirigindo uma cena (“Agora,
distanciei-me um pouco” (LÍSIAS, 2013, p. 8)), aproximando ou distanciando sua câmera,
buscando o melhor ângulo de si, um convite para uma leitura a ser feita pela empatia de
sensações do leitor, que acompanha o trânsito de movimentos: enquanto o narrador-
personagem, com o braço direito, vira para conferir “se o caixão continuava no mesmo lugar”
(LÍSIAS, 2013, p. 8); enquanto se distancia um pouco e respira fundo; enquanto se apoia na
parede; a cada movimento do narrador-personagem, o leitor move os olhos, sente o ar
respirado, contata a parede fria. Então, o corpo, com suas reações atalhadas por outras (“Tive
dificuldade para abrir os olhos. Minhas mãos latejavam. Um clarão distante me deixou com
tontura. Um corpo em carne viva é quente” (LÍSIAS, 2013, p. 8)), entrecortadas pelo discurso
composto de frases curtas, estanques, é a base da percepção espacial em que se dá aquela
imagem de morte a se desfazer, reavivada pelos mesmos sentidos que, levados ao extremo na
163

sensação da loucura, lançam o narrador para a busca de um estado de vida, de estar e, então,
de ser:

Não me lembro das horas seguintes. Por volta da meia-noite, nervoso por ter
enlouquecido, saí para andar. Quando cheguei a uma avenida bastante movimentada,
fiz a primeira das muitas promessas que colocaria na cabeça nos meses
seguintes:Morro só mais uma vez (LÍSIAS, 2013, p.8).

A cena inicial ilustra aquilo que Brandão (2013) afirma ser uma problemática espacial
de alta complexidade, na qual se tensionam os significados de espaço disseminados e as
experiências espaciais usuais em âmbito literário, de forma que a categoria espaço é posta em
um deslimite. Trata-se de desfalimiliarizar elementos extratextuais que passam a ter
significações heterotópicas, com “ênfase naquilo que diferencia (ou melhor,discrimina) certos
lugares, naquilo que torna não trivial a sua condição” (BRANDÃO, 2013,p.248). São três as
localizações anunciadas nesse início de enredo, no que tange a espaços extratextuais: uma
casa da qual em algum momento o narrador-personagem saíra (“Meu corpo estava na cama
que comprei quando saí de casa” (LÍSIAS, 2013, p. 7)); o espaço onde ele está e de onde ele
sai para andar — o que dali a pouco será denominado “cafofo” (“Por volta da meia-noite,
nervoso por ter enlouquecido, saí para andar” (LÍSIAS, 2013, p. 8)); a rua (“Quando cheguei a
uma avenida bastante movimentada [...]” (LÍSIAS, 2013, p. 8)). Dois deles são espaços de
dentro — casa e cafofo; outro, espaço de fora — rua. Ocorre que nenhum desses espaços é
descrito, estão todos destituídos de sua função localizante e passando à função de representar
o estado de desestabilização do narrador. São, assim, áreas que quebram a estabilidade em
que, tradicionalmente, se situam, porque carregam elementos que ali se configuram também
de forma inusual — como espaços de atuação do narrador-personagem: na casa, a desproteção
imputada ao narrador pela leitura do diário; no cafofo, a exposição de um corpo desnudado;
na rua, ainda a centralidade do corpo, mas sendo reconstruído para ser o abrigo de si mesmo,
pela reconstrução de sua pele. Toda essa espacialidade se dá pela encenação de um narrador
que se personifica na função de um escritor. Sendo assim, trata-se de um escritor sem
coordenadas, perdido em sua vida pessoal e profissional, que, esteticamente, configura sua
descoordenação desdobrando espaços em outros espaços, assim revelando o modo como os
percebe, melhor dizendo, como se percebe neles.
A casa, vista por Bachelard como “o nosso canto do mundo [...] nosso primitivo
universo, [...] um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda acepção do termo”
(BACHELARD, 1988, p.24), é, na obra em estudo, o espaço promotor do caos. O enredo nos
164

conta de um narrador-personagem, cujo nome é Ricardo Lísias, também um escritor. Ele é


casado com uma jornalista há quatro meses, vivendo com ela sob o mesmo teto, onde,
circunstancialmente, encontra seu diário, no qual estão registrados comentários negativos
sobre ele. Essa leitura traumatizante altera o rumo de sua vida: tira-o da casa, colocando-o em
um movimento desgovernado: de casa para a rua, de volta a casa, de casa a um cafofo, do
cafofo para as ruas; e tira-lhe a pele, metáfora construída com efeito fortemente realista, ante a
sensação de calor e queimadura que emana de cada toque em um móvel, de cada recepção do
vento, do leve sinal de que alguém vai apenas lhe esbarrar.
Naquele espaço de casamento, antes de ler o diário, passavam-se cenas corriqueiras,
domésticas, como conversas sobre ter ou não ter filhos ou busca de boletos para pagamentos
de contas. Apesar de até então parecer um cosmos e ser assim considerado pelo narrador, a
casa já elucidava algo contrário ao seu caráter de abrigo: certa animosidade, certo
desconforto, mesmo que ainda não compreendido:“Perguntei, rindo e sentindo algum
acolhimento, se ela queria começar a fazer nosso filho naquele momento. Quando terminei a
frase, alguma coisa me emocionou. Outra vez, sem nenhuma hostilidade, ela me afastou.
Logo, adormeceu” (LÍSIAS, 2013, p. 24)
Desde sempre, então, esse cenário de trivialidades se desvirtuava para uma função de
desabrigo. Não é por acaso, então, que ali se dará o encontro do diário, a leitura casual de uma
linha, a decisão difícil de ler todas as linhas:

Lembrei-me de uma conta que precisava pagar naquele dia. Abri a gaveta da minha
ex-mulher e vi o boleto no meio de um caderno. Li uma frase e minhas pernas
perderam a força. Sentei no lado dela da cama e por um instante lutei contra mim
mesmo para tomar a decisão mais difícil da minha vida. Resolvi por fim ler o diário
da primeira à última linha de uma vez só (LÍSIAS, 2013, p. 25).

O diário passa a fazer parte, assim, das representações vinculadas à espacialidade que
compõem a narrativa, pois ele será também um espaço percorrido: suas linhas serão
frequentadas insistentemente, repetidamente. O teor da primeira frase, por exemplo, detona a
saída do narrador de sua casa para o cafofo e para a rua, num atravessamento incessante entre
essas extensões. Os registros são um espaço de leitura (da mulher quanto a ele; dele,
memorialmente, quanto a si e a ela, quanto ao período em que estiveram casados; e quanto a
si mesmo como escritor) que traumatiza a vida do narrador, provocando a perda da sua pele,
tornando seu corpo um espaço de visível desproteção. Impulsiona-o para a rua, para
quilômetros a serem percorridos em uma corrida frenética; é, por fim, um objeto discursivo
que funciona como ponto de partida para que o narrador se destroce de si mesmo, construindo
165

um movimento que resulta em um outro espaço, materializado e discursivo: uma obra literária
intitulada Divórcio, que chega até o leitor.
Entre os efeitos da leitura do espaço discursivo diário, o primeiro é, então, a alteração
do espaço físico em que se encontra o narrador. O apartamento (domus) fica tomado pelo
silêncio e tensão, o que foi seguido por ações rápidas e encadeadas de recolha de um objeto
aqui, outro ali, ainda algum acolá, em um arranjo agitado, exaltado, de fuga, para, enfim, o
protagonista alcançar a rua. Em seguida e no mesmo ritmo, o retorno rápido a casa, apenas
para pegar o diário, xerocá-lo, devolvê-lo ao lugar de origem. A partir de então, o enredo
passa a se constituir de uma viagem aos seus quatro meses de casado, entremeada pela visita
constante a trechos do diário e ao passado.
Simultaneamente, o protagonista chega ao cafofo, onde se dá a cena inicial da
narrativa, momento em que ele se vê fora de seu corpo. Esse segundo espaço de dentro será
um substituto do primeiro no sentido físico de ocupação, entretanto, sem a ilusão da
estabilidade, pois ele é apenas um ponto geográfico de apoio, para onde o narrador vai, de
onde sai, para onde retorna. É nele que o narrador se descobre um outro, um corpo, e um
corpo sem pele, desprotegido. O cafofo é, assim, pouco descrito e vale mais como uma
referência para o narrador, para ter para onde voltar e de onde sair. Não se trata de um posto
de paragem:

Achei-a delicada e me emocionei. Na hora que saí, fiz questão de agradecer. Ela
talvez tenha achado um exagero. Voltando para o cafofo, procurei refazer na
memória o rosto da moça. É bonita, concluí.
Não sei o que aconteceu nesse intervalo. Agora, vejo-me de novo na avenida
movimentada (LÍSIAS, 2013, p. 12).

Seu espaço físico de maior constância será mesmo a rua, o lugar realmente seu,
entretanto, não em continuidade nem em fixação em nenhum dos pontos que pertencem à via
pública e frequentado sem disciplina, aleatoriamente, a serviço do estado emocional em que
se encontra. Mais uma vez, o espaço vai funcionar como condição de vivência subjetiva,
portanto, ele não tem valor em si mesmo, mas é algo que se projeta sobre o narrador-
personagem, permitindo que ele projete suas sensações e aprendizagens, estas que se dão de
forma intensa e dinâmica.
Não é por acaso, então, que os títulos dos capítulos da narrativa sejam encabeçados
pela expressão “Quilômetro um”, “Quilômetro dois”... até que o narrador tenha percorrido 15
quilômetros, o último, “Quilômetro quinze”. Essa travessia não é feita por um flâneur, um
apaixonado pelas ruas e que delas usufrui deleitosamente, descrevendo-as, tornando-as
166

visíveis protagonistas em seu estado de urbanidade. Diferentemente, as ruas, em Divórcio, são


secundárias, não apresentam detalhes que as tornem reconhecidas como extratextuais: nem
uma árvore representativa, nem uma loja, nem uma esquina, nem um edifício, nada que
identifique por onde ele anda, nada que personifique o espaço. As ruas cedem sua relevância
como categoria na qual se inserem personagens e enredos para um protagonista perdido, sem
rumo, desprotegido, sem pele, que anda por elas como uma forma de expelir os pensamentos
sufocantes emanados da leitura do diário. A rua não é o objeto de observação nem o
deestabilidade, o verdadeiro objeto transita por ela: ele é o próprio narrador, sujeito do espaço
urbano carregado de indiferença. Por isso, abaixo de cada título de cada capítulo, há um
subtítulo que alude a algo desse narrador-personagem. Sob “Quilômetro dois”, por exemplo,
vem a expressão “um trem passando dentro de mim”, referindo-se ao narrador; sob
“Quilômetro cinco”, “não tenho dificuldades para achar amantes”, uma fala da ex-mulher
encontrada no diário, mas que reflete o estado do narrador, boquiaberto e sofrido ante a
declaração.
Sendo, assim, a expressão do narrador-personagem, a rua permite um passo a passo,
um quilômetro a quilômetro que lhe possibilita um itinerário próprio. Durante esse percurso
— e não nesse percurso —, a princípio, de desamparo, o protagonista encontrará em si mesmo
(grifo nosso) uma forma para ter um rumo, não um rumo geográfico, mas um rumo para sua
existência. Seu corpo é o espaço-instrumento com o qual ele percorre as ruas; é o espaço que
ele transforma. E faz isso pelo movimento desse mesmo corpo, por meio da prática da corrida.
Significativamente, o exercício físico conota o percurso interno do narrador: ao mesmo tempo
em que atende às necessidades de um ser irrequieto, conturbado, convulsionado, desvairado,
desnorteado, naquele momento, sem pele, coloca esse alguém em uma dinâmica que lhe
desenvolve a concentração em si mesmo, a resistência aos outros. Correndo, vai dando conta
de seu processo de reação à leitura do diário: estar sem pele, ir adquirindo nova pele, tornar-se
um homem com nova pele, um verdadeiro corpo-espaço em (re)construção. No entanto, essa
nova envoltura não é a de alguém com estabilidade, porque o protagonista é, em si mesmo,
um ser perenemente instável; o máximo que ele consegue é ter uma mínima rotina na vida, o
suficiente para ser ele mesmo e o que o diário lhe havia tirado. O casamento havia sido apenas
uma ilusão de estabilidade, pois, até no decorrer daqueles quatro meses, o narrador-
personagem não conseguia atender sequer às estabilidades triviais, conforme as próprias
palavras da esposa ilustram:
167

Esses caras que leram demais são muito fechados. Meu marido é muito esquisito. O
Ricardo reclamou da fila da Broadway. Ele vai ficar dez dias em NY e não vai ver
um espetáculo da Broadway! Ele leu muito, mas não sabe que pela Broadway
passaram os grandes atores que começaram a vida lá. Ele quer andar na rua! O
Ricardo leu muito, mas não sabe nada (LÍSIAS, 2013, p.73).

Por isso é que, também não por acaso, um dos campos semânticos dominantes na
narrativa pertença ao espaço exterior, a rua. Primeiramente, os elementos citados para
demarcar o espaço são pertinentes a ela — metrô, plataforma, estação, vagão, avião,
aeroporto, ônibus, etc. — entretanto, não restritos ao período pelo qual passa o narrador. Os
casos que conta do seu passado, infância e juventude, carregados de situações extratextuais,
dinâmicas e agitadas, ratificam isso: “No caminho até o aeroporto da minha primeira viagem
de avião, percebi que a careca do meu avô tinha um machucado” (LÍSIAS, 2013, p. 31).

A pele ferida de um rosto e os trens estão na minha lembrança mais antiga. Foi em
1980 ou 81. Minha mãe não soube precisar. Consultar o resto da família seria muito
doloroso. Eu tinha por volta de cinco anos.
Da nossa casa até a dele, o caminho custava mais de duas horas e exigia um ônibus,
dois metrôs e por fim a única parte que eu gostava: uma viagem de trem entre a
estação Júlio Prestes e a de Osasco (LÍSIAS, 2013, p.41).

Em 2002, juntei dinheiro para visitar a Irlanda. Minha ideia era ficar uma semana
em Londres, para onde não tinha voltado desde o intercâmbio maluco anos antes, e
depois passar outros sete dias na cidade de Joyce e Beckett. Achei que seria mais
agradável evitar os aeroportos e resolvi tomar um ônibus até onde partem as balsas
da costa inglesa. Para não cansar muito, fiz uma parada na feia Birminghan. De lá,
tomei outro ônibus para amanhecer no porto e atravessar para a Irlanda (LÍSIAS,
2013, p.49).

Ainda as metáforas para ilustrar como se sente o narrador são também da mesma área
do movimento externo (“[...] como se um trem estivesse passando dentro de mim” (LÍSIAS,
2013, p. 29); “O mundo continua em silêncio, mas agora eu já não me sentia tranquilo.
Preciso atravessar dois cruzamentos” (LÍSIAS, 2013, p. 28)); e da necessidade de não estar
em espaços restritos. Tanto é assim que um dos trechos do diário mais visitados é a frase com
que a ex-mulher o descreve, restringindo-o a um ocupante de espaço exíguo: “Casei com um
homem que não viveu. O Ricardo ficou trancado dentro de um quarto lendo a vida toda”
(LÍSIAS, 2013, p. 15).
Todo o envolvimento com o externo traduz, então, um narrador que vive em trânsito
— entra em um casamento de solidez ilusória; sob forte impacto, sai desse casamento; sente-
se perdido, deslocado, sem coordenadas; tenta encontrar, nesse turbilhão, algo em que se
apoiar. Assim, no decorrer do primeiro quilômetro, a sensação é de enfraquecimento, ausência
de pele, dor ao menor toque, sensibilidade à flor do nada. Nos seguintes, ele caminha sem
168

saber exatamente os roteiros pelos quais passa. Contudo, gradualmente, vêm as mudanças,
sob efeito do caminhar, do andar mais rapidamente, do correr: sem pele, com um pouco de
pele, com pele. Ao longo do percurso, as ruas são lugar de perdição, de desencontro e
encontro consigo mesmo. Não há uma descrição de lojas, de praças, de letreiros que dê pistas
e roteiros. Não há paredes a serem pichadas. Só há ele, o narrador-protagonista, que sente seu
desvario, seu riso, seus passos, e, por fim, um corpo sob domínio, com percepção até de
braços:

Quem pensa sem ar: ninguém, por exemplo. Você pode chorar desesperadamente na
avenida mais importante da América Latina. Ninguém vai te ajudar. Ninguém me
perguntou nada quando entrei na linha errada do metrô e olhei confuso para o
letreiro. Eu precisava que um velho me dissesse algo, ou uma moça, mas ninguém
me olhou no metrô de São Paulo no pior dia da minha vida (LÍSIAS, 2013, p.9).

Na estação seguinte, percebo que estou no caminho contrário do cafofo. Desço e


procuro o lugar certo. Não consigo encontrá-lo, mas, como a plataforma me parece
mais segura, resolvo andar. Não lembro quanto tempo fiquei vagando. Mas o
cansaço afastou o trem que estava passando dentro da minha cabeça (LÍSIAS, 2013,
p. 29).

[...] Tomei um táxi e ele logo chegou. Olhou-me como apenas dois homens que se
conhecem muito bem são capazes e na mesma hora me abraçou e me emprestou um
pouco de pele. Me dá isso. Ele pegou a cocaína e jogou no bueiro. Agora,
Ricardinho, vamos pichar o Itaú! Pichar com o quê? Repeti aquela cena ridícula de
quem ri quando está chorando feito um doido. Meu primeiro dia fora de casa estava
nascendo (LÍSIAS, 2013, p. 39).

No final do espaço que a agenda separava para aquele dia, escrevi com letras
maiúsculas: NÃO MANDAR MAIS E-MAILS, SMS OU TELEFONAR PARA
ELA, NUNCA MAIS. Saí para andar um pouco e senti algum ânimo para apertar o
passo. Se ficasse cansado, ao menos tinha alguma esperança de dormir (LÍSIAS,
2013, p.66).

Mais cinquenta metros e essa subida acaba. Dá para ver o pessoal chegando lá em
cima. Eles se viram, alguns dão pequenos saltos e vários erguem os braços. Eu
mesmo estou a poucos metros. Seria um erro tentar chegar à situação do meu corpo
agora. Nada vai me impedir de subir correndo esses últimos dez metros. Prefiro
quebrar a perna ou desmaiar sem fôlego. A gente vira especialista em medições:
cinco, quatro. Sou um engenheiro com uma fita métrica. Na verdade, sou um atleta.
É como me sinto agora aqui em cima, olhando para trás. Meus braços também estão
para o alto.
Acabou (LÍSIAS, 2013, p.229).

Ao contrário da casa, a rua é, então, um espaço de extensão onde o corpo atua. Os


títulos dos capítulos, sempre quilômetros, conotam o prolongamento, algo que permite a
dispersão de um narrador inquieto, cujo corpo não se posiciona fixamente em espaço nenhum,
e que, pelo contrário, expõe-se como um movimento mais que geográfico, é social e
filosófico; mais que social e filosófico, é intrínseco ao narrador-personagem. O desassossego
é sua condição, a qual, sob a impulsão do diário, torna-se desnorteamento. Sem pele, invisível
169

para os transeuntes, tem seu gosto por andar transformado em compulsão. O diário, esse
agente de perturbação, passa a ser um lugar frequentado como forma de alimentar essa
perturbação, que se faz e se desfaz em um atravessamento de 15 quilômetros, num ascendente
esforço de correr, desafiando o próprio corpo.
Todos os espaços — casa, diário, cafofo, corpo, rua — em suas idas e vindas, inserem-
se em um outro espaço, uma obra literária, Divórcio, cuja construção está entremeada ao
enredo, produzida pelo narrador-personagem, um escritor, Ricardo Lísias. Todos eles
preenchem os capítulos ordenados por uma sequência espacial — “Quilômetro um”,
“Quilômetro dois”... até “Quilômetro quinze”. Há, dessa forma, uma projeção desses espaços
em uma condição espacial estendida em um enredo, no qual atuam narrador, personagens,
espaços, categorias esteticamente postas e amarradas a esse desnorteio do narrador-escritor: a
escrita da obra, alongada em capítulos-quilômetros, empreende a reconstrução de alguém
“despelado” pela leitura de um diário, um espaço discursivo em cujas páginas é alvo de
críticas; de alguém que, percorrendo espaços, tentando adquirir nova pele, escreve. Essa voz
coloca seu mérito de escritor em questão, o que é impulsionado novamente pela leitura do
diário, que desestrutura o personagem na sua função de marido e na sua função de escritor,
servindo como um troféu, como objeto promovedor de status:

Ele viveu aventuras e sabe que o cinema é igual jornalismo: é vida. E o Ricardo?
Por acaso o Ricardo foi para alguma guerra na África? O que ele sabe da vida? Ele
não me dá nenhuma das aventuras que eu preciso (LÍSIAS, 2013, p. 80-81).

O Ricardo é legal, inteligente e às vezes me diverte, apesar de andar muito. Mas


apaixonada eu não estou. Eu não sei o que vai ser quando voltarmos ao Brasil. Eu
gosto de ser casada com um escritor. É só esconder certas coisas e pronto. [...] O
Ricardo é um retardado, não tenho dúvidas, mas mesmo assim é um escritor, o que
me preserva de certas coisas (LÍSIAS, 2013, p.90).

O que deixou meu corpo morto, no entanto, não foi nada disso. A seguinte frase
tirou-me toda a pele: Casei com um homem que não viveu. O Ricardo ficou trancado
dentro de um quarto lendo a vida toda (LÍSIAS, 2013, p.122).

Para salvar-se do menosprezo, para entender como lhe fora possível ter dito sim a um
casamento com uma pessoa tão pouco afeita ao companheirismo e ao respeito, o narrador
escreve, mas não considera que essa prática surtirá o efeito pretendido, desconfiando de seu
próprio fazer literário: “Por que eu disse sim? Acho que nem esse livro vai me dizer. Poucas
coisas são mais ridículas, e de novo clichês, do que gente que subiu na vida trabalhando.
Aceitei casar com uma pessoa que progrediu com o próprio suor...” (LÍSIAS, 2013, p. 103).
Em suas tentativas de salvação ante a destruidora leitura do diário, o protagonista ironiza a ex-
170

mulher, transforma sua maneira de escrever na metonímia de sua mediocridade como pessoa,
ambas clichês, a má pessoa é a jornalista que escreve mal, uma pós-doutoranda em clichê.
Compara, para compor essa catarse, o seu próprio trabalho com o dela, demonstrando como a
escrita exige exercício: “Infelizmente, nunca conversei com a bem-sucedida sobre o tal
processo criativo. Este romance, portanto, tem um trecho incompleto. Não vou decepcioná-la,
porém: crio um plano e sempre prefiro cumpri-lo. Se as coisas dão errado, paro e o refaço”
(LÍSIAS, 2013, p. 105).
Entretanto, apesar de desconfiar de si, é por essa mesma escrita que o narrador-escritor
se encontra, equivalendo seu fazer literárioa seu processo existencial — momentos de
fracasso são fracassos que indiciam aprendizados; aprendizados que promovem esperança:

O capítulo fracassou. Meu plano inicial era lembrar tudo o que vivi de bom com
minha ex-mulher para entender por que resolvi me casar. Na economia do romance,
seria o momento de descrever o que ela fez por mim, os passeios, as conversas e
sobretudo como cultivei o amor que comecei a sentir no lançamento de O livro dos
mandarins(LÍSIAS, 2013, p.131).

Divórcio é um livro repetitivo. Já escrevi algumas vezes que o fato de concluir algo
que eu tenha planejado me faz bem. Mas como minha cabeça se desarranjou
completamente, cada confirmação é um sinal de esperança [...] Escrevo esse trecho
um ano depois de sair de casa. Minha pele já voltou. Está novinha. Não sou a mesma
pessoa, claro, mas superei quase tudo. Só tenho raiva de ser obrigado a levar essa
história pelo resto da vida. Um clichê: um jurado humanista do Festival de Cannes e
a Catedral de Notre Dame (LÍSIAS, 2013, p.173).

Assim vida e romance seguem em paralelo, nas mesmas ruas, pelos mesmos trajetos:

A variação estilística do livro chama minha atenção. O começo é tenso e cheio de


incertezas. Treme, por assim dizer. Acho que representa bem a situação de enorme
angústia que vivi. Comecei a escrever exatamente depois da corrida que vou narrar
no próximo capítulo. Ela me trouxe pele nova (LÍSIAS, 2013, p. 212).

A obra Divórcio é, portanto, um espaço de linguagem que se revela em três instâncias.


A primeira é o espaço onde se estrutura a experiência vivida pelo narrador-escritor, sem
elementos de localização que definam o espaço, que o descrevam e assim lhe tragam
segurança, de forma que não há um onde, um por onde,um aonde. As ruas e avenidas
percorridas são apenas ruas e avenidas, sem diferenciadores, sem elementos distintivos, sem
pontos de partida ou de chegada (a lanchonete é uma lanchonete; o vagão de metrô é um
vagão; cruzamentos não têm nome; o cafofo, um pontículo onde paira o narrador-escritor, por
momentos, sem dele se apropriar, e fica próximo ao ponto principal de travestis de São Paulo;
a casa, distanciando-se do narrador a cada por ele quilômetro percorrido, algo remoto). Dessa
171

forma, a representação da categoria espaço é interrogada como valor em si, tornando-se um


arcabouço para a configuração da voz do narrador, a segunda instância em que o espaço se
revela. Ele figura, ritmando o movimento do texto de acordo com as suas necessidades: anda
mais rápido e dispara no trote para fugir de ouvir seu coração acelerar; caminha para aliviar a
raiva; faz percursos longos para sentir o corpo vivo. Assim a narrativa é frenética, acelerada,
quando emocionalmente o descontrole do narrador é maior, significativamente quando mais
próximo da descoberta do diário ou quando o frequenta; apresenta hiatos percebidos pelo
próprio narrador, que nos revela não saber onde esteve e o que fez em determinados
momentos; ou ainda calmo, conseguindo disciplinar uma passada depois da outra, quase todas
iguais, quando sente que já está vencendo a corrida contra a frustração vivida e já não
frequenta o diário. Nesse espaço de linguagem, então, dá-se a concretude da palavra, a
terceira instância, aquela que se mostra como re-ação à leitura do diário, palavra esteticamente
posta, entremeio entre literatura e experiência: “Repeti os capítulos anteriores. Quero muito
ser forte: preciso de mil repetições!” (LÍSIAS, 2013, p. 219). Palavra que diferencia
criticamente sua própria produção: “Pela primeira vez em seis meses, peguei a cópia do diário
da minha ex-mulher e, como tinha feito antes, li tudo de uma vez só. Nunca ninguém me
ofendeu tanto. Mas o texto é brega e mesquinho. Uma enorme e pretensiosa tolice. Joguei-o
no lixo” (LÍSIAS, 2013, p. 231).

3.7 Um corpus que encena o desassossego

As cinco obras estudadas neste capítulo nos permitem visualizar o tratamento do


espaço com intencionalidades e estratégias estéticas diferentes daquelas que pertencem ao
corpus da tradição, conforme exemplos brevemente tratados por nós no capítulo inicial —
Dom Casmurro, de Machado de Assis; São Bernardo, de Graciliano Ramos; Grande sertão:
veredas, de Guimarães Rosa; e Água viva, de Clarice Lispector.
Em Lunardi (2011), Noll (2002), Martins (2003), Castello (2010) e Lísias (2013),
vimos que as maneiras de composição dos espaços ilustram formas de tratamento dessa
categoria que exigem novas reflexões, instigando o exercício da pesquisa da linguagem
literária. Encontramos nesses autores um movimento estético na literatura contemporânea
cujos narradores: a) erram por espaços, sem fazer deles alguma paragem; b) colocam a
categoria espaço a serviço de sua subjetividade; c) fazem dos espaços a expressão do seu
172

conflito, como uma ilustração de sua insatisfação especialmente consigo mesmos nessa
condição de sujeitos partícipes da encenação da escrita.
Assim, com variações comportamentais, os espaços têm em comum o fato de que se
constituem como elementos que ilustram a desestabilização da autoria e, por conseguinte, da
voz narrativa. Eles se oferecem como um amplo horizonte interpretativo, no qual se
instabilizam as referências de localização. A categoria é, assim, posta em questionamento,
quebrando a expectativa de ser um elemento que disciplina o enredo, ajusta seus atores,
dando-lhes um chão. Pelo contrário, é ruptura e, dessa forma, converge para o questionamento
da própria produção literária, cujos narradores encenam-se em des-lugares, numa inquietude
que põe em movimento as imagens, com deslocamentos que carregam consigo esses
narradores, ou com narradores que carregam consigo esses deslocamentos intrínsecos a si
mesmos. A exemplo, retomamos a narradora-escritora de A vendedora de fósforos, de Adriana
Lunardi (2011), a qual vive, durante a sua infância, à sua revelia, inúmeros deslocamentos, o
que lhe traz desequilíbrios. Tenta se fixar, para alcançar, assim, um equilíbrio, mas não o
consegue, impelida que é a viajar pelo passado itinerante, cosido em sua estrutura emocional.
A composição da espacialidade, nessas obras em estudo, nos levou a um exercício de
leitura de como se representam espaços extratextuais já não autoevidentes, tornados objetos
textuais de problematização reveladores de vozes discursivas que se autoproblematizam. São
construídos para dar passagem a narradores desconcertados, sendo, pois, fundamentais para os
efeitos de sentidos propostos. As cinco obras aqui estudadas se estruturam na linguagem, na
qual os discursos dos narradores são metaforizados em espaços que delineiam a narrativa.
Não se trata de espaços que produzem efeitos de real, mas efeitos de narrador, de
subjetividade.
Esses espaços podem se manifestar na forma de um percurso, um itinerário, como se
dá em A vendedora de fósforos(LUNARDI, 2001), mas que, geograficamente, perdem lugar
para uma peregrinação interna; são reveladores de uma alma que busca o equilíbrio da
estabilidade, sem nunca conseguir. Podem ser algo contínuo, como as ruas em Divórcio
(LÍSIAS, 2013), porém inominadas, sem detalhes, sem princípio, meio e fim, sem um roteiro
que lhes dê identidade. Podem ser trajetos de viagem, como em Ribamar (CASTELLO,
2010), contudo, transgredidos pela geografia da memória. Podem ser nomeados, como em
Berkeley em Bellagio(NOLL, 2002), entretanto, nessa própria titulação, metamorfoseados em
errância, em sobreposição um ao outro. Podem ser localizados, como o sótão, de A história
dos ossos (MARTINS,2005), mas tomados de desconforto, constituídos de desordenação.
173

Trata-se de espaços de desassossego, com investidura na subjetividade, não na


localidade, nos quais se integra o narrador, ambos desintegrados, de forma a assim se
estruturarem na linguagem, não em um alongamento do tempo, mas em uma situação
espacial.
Brandão (2013, p. 238), em estudos sobre espacialidade, na obra A tragédia brasileira,
de Sérgio Sant’Anna, afirma que o autor joga com duas inevitabilidades: “Toda imagem
exclui aquele que olha; mas toda imagem aponta para o olhar que a veicula, olhar para o qual
ela é imagem.” Essa mesma consideração, sob certo prisma, pode ser aplicada às obras em
estudo, pois as vozes discursivas atuam como sujeitos da enunciação na própria cena que
enunciam, intrincando-se nela, com a peculiaridade, então, de encenar não serem oniscientes.
Entretanto, é essa encenação seu objeto. Tudo isso compõe um todo autorreferencial,
condição para a existência das obras sobre as quais nos debruçamos. O próximo passo será
tratar desse caráter metaficcional que orienta as obras e que abriga os estudos feitos até aqui
sobre narrador e espaço.
174

4 TECENDO POR CIMA DOS PANOS

O romance é esse grande combate que o escritor


trava consigo mesmo, porque existe nele todo um
mundo, todo um universo em que se debatem
jogos fundamentais do destino humano...
Julio Cortázar

4.1 Considerações sobre metaficção

Gustavo Bernardo dá início à sua obra O livro da metaficção (BERNARDO, 2010)


com reflexões sobre uma foto de Chema Madoz, datada de 1990, a qual traz a imagem de uma
escada que, encostada em um espelho, reflete-se nele, formulando,assim, um convite para que
o observador suba a escada e então desça seus degraus reflexos, em direção a algo não visto,
do outro lado do espelho.

Figura 2

Legenda: ¨Escada no espelho” (1990).


Foto de Chema Madoz.
Fonte: Disponível em:www.chemamadoz.com.

A peça compõe-se de duas escadas, portanto: uma real, na qual se ancora a


composição;outra, ficcional, na qual se desancora o leitor; ambas, juntas, redimensionam-se
175

no inventado da segunda, que exige do observador a disposição para descer degraus outros,
desconhecidos, abismais. Trata-se de uma obra que se constrói pela metalinguagem, em
consonância com o conceito apresentado por Ivete Walty: “[...] formada com o prefixo grego
meta, que expressa as ideias de comunidade ou participação, mistura ou intermediação e
sucessão, designa a linguagem que se debruça sobre si mesma” (WALTY, 2016).
Muitas obras literárias deixam à disposição do leitor, por meio de arranjos verbais,
essa escada avessada de Madoz, tratando de oferecer-lhe um trajeto de leitura que inverte o
que seria o sentido primeiro, o real a ser percorrido, levando-o para um outro lugar, o lugar
abismal da ficção. O fenômeno é denominado de metaficção e, conforme tratamos
brevemente no início de nossos estudos, não se trata de uma novidade.
Segundo Mário Avelar, em verbete publicado no E-Dicionário de termos literários,
organizado por Carlos Ceia, metaficção é a

[...] designação pela qual se tornou conhecido um conjunto de escritores americanos


do pós-II Guerra Mundial (John Hawkes, William Gadis, Vladimir Nabokov, John
Barth, Thomas Pynchon, Donald Barthelme, entre outros) que, apesar de possuírem
estilos distintos, convergiam quer numa dimensão experimental, quer na busca de
uma narrativa fundada numa metalinguagem, uma ficção fundada na elaboração de
ficções. A metaficção surge numa tentativa de superar o peso das tradições
regionalistas e realistas na literatura americana. Deste modo, conceberá como
objectivo imediato a subversão dos elementos narrativos canónicos — intriga,
personagens, acção —, tendo como estratégia final a elaboração de um jogo
intelectual com a linguagem e com a memória literária e artística (AVELAR, 2016).

Como vimos em nossas páginas iniciais, obras da tradição clássica universal e literária
brasileira, como Dom Casmurro, de Machado de Assis,São Bernardo, de Graciliano
Ramos,Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e Água Viva, de Clarice Lispector, já
desenhavam para o leitor essa escada de degraus inversos, cuja descida implica um
movimento de corpo que direciona o olhar para o interior da narrativa. A leitura dessas obras
se faz por caminhos que não estão exatamente apenas no enredo, mas em uma moldura que
deixa clara sua própria natureza e em veredas que elucidam sua engrenagem no que tange à
composição, entre outros elementos, de seus narradores, responsáveis, em alguma instância,
pela escritura. Seus sujeitos ficcionais desfilam, esteticamente, em sua narração, sua
desconfiança em si mesmos, pondo em questão a legitimidade de sua atuação como voz
discursiva encarregada da escrita, da contação, da declaração, de atos, enfim, vinculados à
produção estética da palavra, de forma que refletem a realidade, mas nos encaminham para
além dela, para um trajeto que projeta o processo da escrita. Esses autores clássicos nos
avisam, então, que não há novidade no desenvolvimento dessa proposta literária.
176

Ocorre-nos, entretanto, que essa condição estética metaficcional, particularmente


associada à atuação do narrador, embora presente em obras que constituíram a tradição
literária brasileira, não foi uma recorrência nem no tempo, nem no espaço, apesar de ter sido
presente no conjunto da obra de um ou outro autor. Isso, cremos, é diferente do que ocorre
contemporaneamente, quando a literatura que trata de si mesma, que tem a si como objeto de
reflexão, passa a acontecer em várias produções concomitantemente, o que nos leva ao
entendimento de que a metaficção se tem constituído comouma vertente — e sob novas
condições estéticas —, conforme estamos estudando nas obras A história dos ossos, de
Alberto Martins, A vendedora de fósforos, de Adriana Lunardi,Antiterapias, de Jacques Fux,
Berkeley em Bellagio, de João Gilberto Noll, Budapeste, de Chico Buarque, Diário da queda,
de Michel Laub, Divórcio, de Ricardo Lísias, A passagem tensa dos corpos, de Carlos de
Brito Mello,Procura do romance, de Julián Fuks, e Ribamar, de José Castello.
Nessas obras, as encenações feitas pelas vozes que se apresentam, trasvestidas de
narradores, de narradores-escritores, de narradores-personagens, de narradores-ghost-
writers,narrador-língua, objetivam refletir sobre sua condição. Esses narradores ponderam
sobre a construção de si mesmos, ostentando como estão desnorteados nela, intrincando a
narrativa a um julgamento sobre sua própria condição. Todos traçam, metanarrativamente, sua
dispersão como sujeitos, convidando o leitor a estar com eles nessa perdição discursiva e
espacial. Esses dois campos — vozes discursivas e espacialidade — em cada uma das obras,
fazem parte de um todo metaficcional, com peculiaridades que as distinguem, mas que as
fazem tomar uma vertente, sempre tratando a perene busca identitária. Assim, os estudos
feitos sobre essas duas categorias elucidam todo um processo investigativo sobre o modo de
operar a obra, de forma que vimos mais do que narradores atuando em espaços, vimos a ação
construtora dos narradores e dos espaços, observamos o ensaio de suas apresentações. Na
mesma linha de leitura se dará o exame de outros elementos presentes nessas narrativas, de
modo a, conforme conselho já apresentado por Virgínia Woolf, espiar mais um pouco por
cima dos ombros de seu construtor e “fitar através de seus olhos até, também,
compreendermos em que ordem ele dispõe os variados objetos comuns que os romancistas
estão fadados a observar: o homem e a humanidade” (WOOLF, 2007, p.43). O
esquadrinhamento, portanto, acaba por demonstrar que a nervura das obras é a metaficcção, e,
sendo assim, não será possível prescindir da associação entre os elementos que agora passam
a ser objeto de estudo e as reflexões sobre as duas categorias já tratadas, inclusive
resgatando,explícita ou implicitamente, várias considerações sem as quais não seria possível
prosseguir na análise.
177

4.2 Escrever, um labirinto

[...] morrer obseda a língua.


Do narrador em labirinto

Seguindo nossa proposta, verifica-se, emA passagem tensa dos corpos (BRITO E
MELLO, 2009), um narrador que recusa o exercício dessa função. Entretanto, por meio dela,
maldizendo-se e maldizendo-a, aprisiona-se nela, enquanto almeja dela se livrar. Tudo o que
ocorre no desenvolvimento do enredo revela a rejeição a essa sua condição, de tal forma que a
obra acaba por ser constituída dessa rejeição. Trata-se, então, de um processo no qual se
desnuda o jogo em que se problematiza a escrita, o ato de escrever, ao qual subjaz uma
pergunta: quem sou eu?Essa questão se desdobra em outras, respondidas na mesma linha
estética que se observa no decorrer da obra: qual é o papel do escritor no mundo da literatura?
Escrever é viver ou morrer?
O que lhes responde é um projeto estético, algo realizado no plano da expressão, que
se compõe de índices formais, um deles já estudado no segundo capítulo — a
(des)configuração do narrador — ; outro, a geografia pela qual circula esse narrador; e ainda o
jogo composicional entre o texto não literário e o literário, duas forças em luta, que estão a
serviço do vivido pela voz discursiva, um embate interno em cujo decorrer vai-se fortalecendo
aquilo que ele se recusa a fazer: narrar. A resposta à questão quem sou eu? é, então, um
procedimento que se dá no plano da expressão e se desenrola no plano do conteúdo.
Por isso, a concepção do enredo se traduz em formas de a voz discursiva dizer a si
mesma que tratará de demonstrar como se sente com relação à escrita: como posso representar
essa impotência, esse algo que me move, esse processo narrativo inelutável? Entre as formas
encontradas, está a materialização da voz discursiva no feitio de uma língua.
Desconfigurada, então, essa voz discursiva que narra o conteúdo é a de um ser tirado
de sua inteireza, sendo apenas uma língua que encena situações em trânsito, ilustrativas dessa
incerteza do narrador quanto à sua própria natureza. Apesar de não ser um todo, mas um ser
parte de um todo — uma língua —, é capaz de pensar, agir, propor-se a, configurando-se
como um ser que transita entre o humano e o nada, apresentando-se apenas metonimicamente,
178

aspecto trabalhado no segundo capítulo deste estudo. Embora ele se assuma como um
narrador, rejeita essa função e, concomitantemente, sofre por ter suas condições confinadas a
registrar óbitos, sendo despotencializado das capacidades pertinentes à função de narrador.
Todavia, ao mesmo tempo, narra. Isso o coloca no trânsito de dois enredos cruzados: em um
deles, partícipe de uma cena que não é sua (a morte de um homem sem que se faça o registro
desse óbito), mas da qual necessita e sobre a qual, desesperadamente, não tem controle; em
um outro, partícipe de uma situação que é a sua (alguém que quer sair do mundo da ficção e
só conseguirá realizar seu intento sob a condição de realizar o registro de certo número de
óbitos), mas um partícipe que nada significa sem a primeira. Essa narrativa se afigura como
uma espiral, ela é urdida no formato de um redemoinho.
Nesse movimento de entrelaces, além de ficar dirigindo-se a espaços que lhe forneçam
óbitos, o narrador circula pelos cômodos da casa onde está o morto, potencial nome para seu
almejado último registro, mas sem que consiga obtê-lo. Por ser um espaço ininteligível para
ele, onde nada se resolve coerentemente como deveria na lógica com a qual ele conta, o
narrador desloca-se por ele em busca de compreendê-lo e alcançar seu objetivo. Essa é a
segunda situação encenada como algo em trânsito, que se manifesta no andamento do enredo,
andamento constituído de movimentos frenéticos que retratam o labirinto interior que vive
essa voz discursiva: irrequieta, impaciente, ela movimenta-se de lá para cá, de cá para lá,
nunca encontrando aquilo que busca, nunca se encontrando confortável, equilibrada,
sossegada. Assim desenha-se o painel da ficção: os fatos resultam na quebra de uma lógica
esperada; os índices estéticos são todos estranhezas, como o próprio movimento do narrador.
Este, querendo restringir sua produção à lógica dos registros de morte, tentando fugir da
condição da literatura de fazer com que as coisas aconteçam além dos desejos de um
registrador de óbitos, acaba por produzir o inusitado: a contação das próprias voltas em torno
de si mesmo, de tal forma que os fatos mais se intrincam que se desenrolam.
Essa procura interior conjuga-se, assim, com a terceira situação encenada, presente por
meio de um embate entre gêneros textuais que se sobrepõem na obra: registros de óbitos,
gênero que exige simples informações, e uma narrativa que exige a presença de uma voz
discursiva capaz de engendrar esteticamente a narrativa, sofrendo o que Umberto Eco (2003,
p. 20) descreve como o ato de “experimentar o calafrio do destino”, no caso, o destino de ser
um narrador. Trata-se, portanto, de um embate também interno à voz discursiva, entre ser
produtor de registros de óbitos e ser narrador. Aqui se engendra a metaficção, pois o
enfrentamento é demonstrado esteticamente, perceptível na arquitetura da obra, intrincado às
outras duas situações que demonstram o trânsito em que se desorienta o narrador. Vejamos.
179

Registros de óbitos são objetivos e concisos. São a transposição da realidade em


palavras denotativas, precisas, informações exatas do acontecido. O tratamento do gênero é,
então, feito sob condições:

Tenho liberdade para trafegar pelas cidades atento aos mortos. Poucas são minhas
restrições, desde que me empenhe em descrever, com concisão e objetividade, as
condições de passagem dos corpos que receberam tiros e tijolos de inimigos (BRITO
E MELLO, 2009, p.14, grifo nosso).

Ocorre que essa construção denotativa e objetiva, parente daquela a que é


condicionado o narrador, desfaz-se esteticamente, deixando evidente um exercício muito
distinto daquele feito por um profissional de registros. É assim que o mesmo trecho citado
acima sai do formato que lhe seria imposto — objetivo e conciso — e configura-se como um
outro:

Tenho liberdade para trafegar pelas cidades atento aos mortos. Poucas são
minhas restrições, desde que me empenhe em descrever, com concisão e
objetividade, as condições de passagem dos corpos que receberam tiros e tijolos de
inimigos
corpos que caíram na cozinha ou nos rochedos
corpos transformados em gás pelos incêndios
corpos de náufragos de poço artesiano, que exigem
dos familiares o aprestamento do velório para o entorno d’água onde o ente perdeu o
pé (BRITO E MELLO, 2009, p.14).

Há, como o trecho deixa esculpido, contradições entre aquilo que o narrador diz ser
sua função e aquilo que ele faz: precisa ser conciso e objetivo no registro de óbitos, mas
incorpora ao seu produto torneios, sonoridades, jogos espaciais, figuras de linguagem,
tomados de subjetividade, de tons dramáticos, de dor, estratégias incongruentes para o gênero
que pretende adotar: há a anáfora da palavra “corpos”, com produções de sentido relativas à
reificação da morte e sua inexorabilidade; também a expressão “tiros e tijolos”, uma
somatória de aliteração, assonância e paranomásia, que denuncia a mesma inevitabilidade da
morte, intencional ou ao acaso; ainda a antítese entre o corriqueiro e o extravagante em
“caíram na cozinha ou nos rochedos”; ademais, a metáfora, em “corpos transformados em gás
pelos incêndios”, denunciante da efemeridade de tudo; e a dramaticidade, em “corpos de
náufragos de poço artesiano, que exigem dos familiares o aprestamento do velório para o
entorno d’água onde o ente perdeu o pé”, cena que, sendo descrita, revela o bizarro presente
no costumeiro.
A obra é carregada dessas formas desobedientes, que aguçam leituras, compondo
esculturas verbais à la escada de Chema Madoz. São visualidades estéticas que solicitam
180

leituras estéticas, portanto, questionamentos da ordem do poético. No trecho a seguir, o


próprio narrador assume fazer mais do que lhe é permitido na sua função de registrador de
óbitos, ele assume o exercício de narrar, de forma a tatuar nessa narração o modo como faz
isso:

Visitei cidades com o intuito de registrar as mortes mais recentes que nelas
ocorressem, permitindo-me, às vezes, narrar as condições que antecederam ou
sucederam o óbito, para que se compreendesse
que ao redor da morte não se permanece incólume (BRITO E MELLO,
2009, p.14).

Esse modo está à tona, explícito, na impressão inusitadada frase na página, o que
promove uma pergunta da ordem do estético: por que há a segmentação da frase — oração
principal (para que se compreendesse) separada espacialmente da subordinada (que ao redor
da morte não se permanece incólume)? Essa impressão desnuda a fala do narrador, ou seja,
quando ele diz que se dá permissão para narrar as condições que antecederam ou sucederam
um óbito, está se referindo ao conteúdo, pois ele pode escolher as mortes a registrar, mas
também ao modo de narrar, pois está se referindo a um procedimento estético.
Toda a frase é uma metáfora, no que tange a seu conteúdo e à sua forma, pois ambos
— conteúdo e forma — se ajustam, transpostos para a própria experiência narrativa: a própria
voz discursiva não está incólume ao redor da sua morte — a que deseja — como narrador; e a
que vive — como personagem de sua própria história. O narrado, afinal, é a sua
impossibilidade de ser inteiro, de ser invulnerável.
Dessa forma, a disposição, por exemplo, dos parágrafos, dos períodos, das orações, é
uma operação de produção discursiva que traduz a voz do narrador como aquele que prepara a
dimensão do seu dizer. Muito mais do que o registro de mortes, e ainda muito mais que uma
história, trata-se de uma ação ativa de quem tem algo a ser mostrado, manipulando o enredo
como um objeto formal. Sendo assim, o que está sendo principalmente contado é mais que o
enredo, são as circunstâncias em que se dá o processo narrativo, o modus operandi, as
intenções poéticas que a ele subjazem. Por isso, quando o próprio narrador assume uma outra
intenção, fazer com que as pessoas compreendam a morte, ressalta o poder da morte com
relação à narrativa e a si mesmo e faz, então, algo além daquela função de registrar óbitos. E,
para fazer esse destaque, utiliza-se de um recurso estético: segmenta o período, deslocando,
não sintaticamente, mas no espaço da página, a oração subordinada de sua principal. Há a
consciência da página como um espaço a ser usufruído, matéria na qual ele engasta a o
181

recurso que ilustra formalmente o deslocamento de intenções e, assim, explicita o plano da


expressão.
Outras são as flexões que registram o movimento da literatura à revelia das prioridades
do narrador. O capítulo 42, por exemplo: “Leite, ovos, açúcar e calor”, continuação das ideias
do anterior, apresenta-se como um instantâneo, um flagrante estético inusitado. No plano do
conteúdo, ele faz parte de uma sequência do enredo: o narrador persegue insistentemente o
personagem filho, com quem sequer consegue cruzar-se; esse personagem esteve na cozinha
para alimentar-se, deixando restos do que comeu; o narrador, sentindo fome, passa pelo
mesmo local e come as sobras ali deixadas.
No que tange à expressão, o que está em pauta, no exíguo capítulo, é o debate sobre a
própria narração e sobre o próprio narrador, que se dispersa da sua necessidade de registrar
um óbito, para pôr a si mesmo e à própria narração em errância. Para o efeito, concorrem três
fatores. O primeiro deles é o fato de uma outra narrativa, grandiosa, se intrometer na cena
narrada, a fim de submetê-la à pequenez. Isso se dá por meio de uma inversão valorativa em
que um elemento pertencente ao campo semântico do épico é deslocado para o do prosaico.
Trata-se do alimento que o narrador lambe, uma ambrosia, o manjar dos Deusesdo Olimpo,
um doce de magnífico sabor, que teria poder de cura, porém proibido para um mortal, sob
pena de perecimento imediato. Tradicionalmente degustado pelos deuses, o maná rebaixa-se a
sobras apenas lambidas, tornando-se algo da instância do trivial, do desimportante. A
interlocução entre o discurso mítico e o do narrador impregna a narrativa de valoração,
fazendo-a decair conjuntamente à depreciação do status antes impresso à iguaria bem como
àqueles que a saboreavam. O diálogo trazido pelo narrador ilustra e agrava a sensação de
desprestígio que o perpassa, pois, desconsiderado na sua composição de apenas uma língua,
almejando ser o que não será e fadado ao seu destino de narrador, é por meio de si mesmo, de
sua própria mão, que ele explicita sua condição marginal, descrevendo uma cena da qual é
partícipe, mas da qual está corporalmente ausente. A intertextualidade presente no capítulo
move um campo semântico da ficção para um outro campo semântico de uma outra ficção,
dentro desta constituindo-se como um desvio.
Ocorre ainda, na mesma cena, uma reflexão refinada sobre as circunstâncias dos usos
de elementos consagrados, de forma que, a cada situação ficcional, os elementos vão sendo
metaforicamente ajustados, pondo ainda em questão a literatura. No capítulo em estudo, o
alimento ambrosia, tomado tradicionalmente na sua totalidade e grandeza de maná dos
deuses, passa a ser decomposto em seus elementos ordinários — leite, ovos e açúcar,
perceptíveis um a um, em lambidas sensoriais, numa concretude palatal compatível com a
182

construção de um narrador que é uma língua. Ocorre, porém, um outro desvio: a sequência de
elementos se faz interligando-os pelo sentido do paladar, entretanto, há ainda um último, que,
inesperadamente, pertence a outro campo semântico, o do tato. Assim, a cadeia de palavras do
campo semântico do paladar — leite, ovos, açúcar — é rompida com a palavra “calor”. A
pouca familiaridade entre os três primeiros elementos e o último subjetiva a cena, orientando
a leitura para o sentimento sempre de inadequação do narrador, ao mesmo tempo fazendo com
que a estratégia linguageira de quebra de expectativa protagonize a cena.
Por fim, coopera para a discussão teórica a que se propõe o capítulo sua exiguidade.
Tão concisa, essa composição faz referência à própria composição de um capítulo, elucidando
sua natureza inventiva, expondo-se como um artifício, evidenciando a permissão que lhe dá
seu status ficcional. Isso significa que se mostra como uma autorreferência, exigindo do leitor
conhecimento sobre convenções artísticas. Essa brevidade metaforiza também a pouca
capacidade do narrador de se alongar para um lanche, dado ao fato de ele ser uma língua.
Ainda metaforiza sua inquietude, sempre desperto para qualquer sinal que lhe permita
registrar o óbito. E, sintomaticamente, revela essas intenções que subjazem ao produto.
Pronto, o capítulo não esconde suas condições de produção, não esconde as intenções
estéticas que o constituem, não esconde que sua dimensão tem a ver com os efeitos que
pretende produzir.
Seguindo na esteira desses índices reveladores de uma atitude metanarrativa, em uma
nítida perseguição da forma, temos várias cenas em que o narrador se expressa sobre sua
própria condição, mais uma vez deslocando a leitura da história contada para o fato de essa
história ser contada. Faz assimum movimento de descontinuidade, roteiro pelo qual o leitor se
desvia da rota da narrativa, para ficar em uma zona paralela, a rota da narração, na qual se
depara com a representação do processo criativo. Exemplo em que isso se faz presente são
trechos do capítulo 46, quando o narrador trata da sua impotência:

São evidentes os motivos pelos quais, nesta casa, revogam-se as horas de


um dia, com vistas a uma permanência ilusória e denegrida
porém, até agora, vitoriosa. Embora muito me desagrade essa condição, não tenho
poderes suficientes para subvertê-la, nem pernas para enxotar C. da cadeira, nem
mãos para cavar um buraco bem fundo onde o enterrar.
[...]
Tudo está calmo, mas acredito que a noite não seja ingrata comigo
nem inútil. Economizarei meus esforços. Não desperdiçarei a
atenção com eventos sem importância. Não invocarei as musas para ajudarem em
meu ofício de escrita
porque não tenho as musas à minha disposição, nem sou poeta para merecê-
las. Quem me dera tê-las sobre mim
que preparassem meu banho e esfregassem com suas mãos de sabonete meu
couro macio
183

couro que, de fato, não possuo (BRITO E MELLO, 2009, p. 87-88).

Perpassa o capítulo um tom desolado que denuncia um narrador com desejos: ele
precisa dar curso aos registros de óbitos, precisa que o corpo que está sentado na cadeira seja
reconhecido como morto. Mas o reconhecimento não está em suas mãos. Ele nada pode
contra suas antagonistas, mulher e filha do homem que ali jaz. Desejoso de dar
prosseguimento ao enredo, para que possa alçar um lugar que não o de narrador, como seria
se fosse um autor, invocaria as ninfas. Porém, tem a ciência de seu papel de nada e ninguém,
reconhece-se como alguém que não as merece. A referência às ninfas é referência ao próprio
escrever poético.
Claudia Amigo Pino, tratando da metaficção em Dom Quixote, de Cervantes, afirma
que

[...] é possível ler esta referência [no caso, à obra La Galatea, do próprio Cervantes]
como uma alusão ao próprio livro que se lê, ao seu inacabamento e,
consequentemente, à ideia de que o nosso objeto de leitura é um processo e não uma
obra acabada. Também podemos interpretá-la como uma referência à criação e à
existência de vários manuscritos no interior da trama (PINO, 2004, p. 37).

Semelhantemente, a reportação às musas, em A passagem tensa dos corpos é também


uma referência à criação e à existência de manuscritos no interior da trama, desta vez, às
musas das epopeias. Para ilustrar o diálogo, faremos associações com o texto de Camões, em
suas estrofes de Os Lusíadas, cuja voz poética invoca as Tágides, numa súplica diante da
importância do assunto de que irá tratar:

E vós, Tágides minhas, pois criado


Tendes em mim um novo engenho ardente,
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi de mim vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloquo e corrente,
Por que de vossas águas Febo ordene
Que não tenham inveja às de Hipocrene.

Dai-me uma fúria grande e sonorosa,


E não de agreste avena ou frauta ruda,
Mas de tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;
Que se espalhe e se cante no universo,
Se tão sublime preço cabe em verso(CAMÕES, 1966, p. 22).
184

Para o próprio Camões, a invocação às ninfas do Tejo, elementos pagãos, funcionava


como um recurso poético, haja vista que ele era um cristão. O pedido é um artifício para
engrandecer o herói, o que se daria por um som alto e sublimado, tarefa difícil, algo tão
sublime que talvez não caiba em verso (“Se tão sublime preço cabe em verso”).
Às avessas do poeta português, a voz poética em estudo sequer se atreve a invocar as
musas, tanto porque elas não estão à disposição (como estariam, se a empreitada de sua escrita
nada tem de grandioso?),quanto porque ele não se sente digno de merecê-las (como o seria,
sendo uma reles língua, um narrador que se rejeita?). Numa relação entre linguagem e
erotismo, contenta-se em apenas desejá-las, associando sua frustração pela condição de
ausência de potência de corpo à frustração de ausência de potência como escritor. Todavia, há
uma instância que é potente, a linguagem, configurada em “mãos de sabonete” e “couro
macio”, ambos inexistentes na percepção do narrador, mas tomados de vida e beleza pelas
metáforas.
A leitura do capítulo promove labirintos, exigindo uma interrupção na sequência do
enredo, que se bifurca, trifurca-se... São direções por outros lugares ficcionais, por outros
arranjos estéticos. Estrategicamente,o caminho onde o narrador se cruza com obras em cujo
bojo está a potência de quem tem as musas como parceiras aproxima-o da sua condição de ser
universal, inclusive de um leitor de obras universais, mas, simultaneamente, enxota-o dessa
mesma condição, pois evidencia sua condição de relegado, de renegado, de alguém que
deserta de seu estado de narrador. Falar de musas é fazer um apelo para leituras, ao qual o
leitor deve atender, sob o risco de perder a leitura de um propósito metaficcional, ou seja, no
caso da obra de Brito e Mello, a evidência formal do aproveitamento desses seres de
inspiração para que se discuta a condição do narrador.
Trata-se, portanto, de uma reflexão do texto sobre si mesmo, do narrador sobre sua
capacidade criadora, tão negada no decorrer do enredo, mas tão exposta na engenharia da
obra. Assim, essa voz discursiva vai tecendo a resposta à pergunta “quem sou eu?”, fazendo
dessa resposta o próprio caminhar do romance, compondo a poética de sua narratividade
metalinguisticamente, o que corresponde às palavras de Umberto Eco:

[...] um romance não é apenas um fato linguístico. Um romance (como


qualquer narração que fazemos todo dia, contando porque chegamos atrasados
naquela manhã ou como nos desembaraçamos de um importuno) usa um plano da
expressão (as palavras são, decerto, tão difíceis de traduzir em poesia porque nela
conta também o seu som) para restituir um plano do conteúdo, ou melhor, aquele
dos fatos narrativos (ECO, 2003, p. 285).
185

4.3 Um livro a ser escrito

Em algum canto do meu interior, no escuro, um


vira-lata, em vez de latir, se encolhe.
Do narrador sem obra

Engenhosamente também se compõe a obra Ribamar, de José Castello. Parte da


arquitetura da obra é bem explicitada no seu decorrer, na nítida tendência para a discussão
sobre a criação literária. Por exemplo, no seu primeiro capítulo, a voz discursiva informa que
seu texto é uma ficção, na qual afirma poder tudo: “Não confio no professor, adoto sua
tradução só porque ela me é conveniente. Vantagens da ficção: aqui eu posso tudo”
(CASTELLO, 2010, p.12). Também diz estar escrevendo um romance, sobre o que, no
entanto, tem dúvida: “Ainda não lhe disse, pai: escrevo um romance. Não sei se chegará a ser
isso. O mais correto é falar de notas para o livro que, um dia, escreverei. Ribamar, ele se
chamará. Eu o dedicarei a você” (CASTELLO, 2010, p.12). Ocorre que é nessa inusitada
proposição — um projeto que já está em consecução enquanto é anunciado no presente, mas
sem convicção de futuro — que consiste a narração. Assim, as observações, as memórias, as
situações vividas, as reflexões, os elementos, enfim, a serem anotados — as próprias notas —,
a seu cabo, formam a obra, de tal forma que o futuro anunciado duvidosamente (um livro que
talvez venha a ser escrito) é a presente construção. Tem-se, então, a história da feitura de uma
história. Dessa forma, a narração ganha corpo, na medida em que o narrador tem como seu
objeto mostrá-la, conforme afirma Lubbock, citado no Dicionário de Narratologia: “A arte da
ficção só começa quando o romancista entende a sua história como algo mostrado, exibido de
tal modo que a si mesmo se contará”(LUBBOCK, 1938, p. 62 apud REIS; LOPES, 1997, p.
240).
Essa exibição se dá de algumas formas já tratadas nos capítulos 2 e 3. No último, por
exemplo, refletimos sobre o quanto a questão do gênero é parte fundamental da
metanarratividade que constitui a obra de José Castello. Naquele segmento de nossos estudos,
vimos que a obra tem sua espacialidade traçada por intergêneros, pois ela, como já dissemos,
não é um produto acabado, não se configura em um gênero. Diferentemente disso, é uma
produção em trânsito feita de: a) notas preparatórias para a construção de um romance; b)
186

entremeadas por uma carta; c) que se orienta por uma outra carta, tudo compassado pela pauta
musical de uma canção de ninar.
Acrescentamos que, nesse andamento de música infantil, se inscreveum enredo
romanesco a que o narrador denomina´registro de notas`, desenvolvido em meio a uma carta,
esta entrelaçada a uma outra carta. O conjunto de objetos sem situação definida, algo sem
arremate, problematiza a construção da obra literária.
O narrador, então, assume sua escrita como uma metalinguagem, comentando seu
processo, discorrendo sobre ele. Duplica, assim, seu texto, justapondo uma história de si
mesmo às interrogações sobre a construção dessa história sobre si mesmo como escritor,
portanto, sobre a escrita, de forma a exigir um leitor que não lê apenas a narrativa, mas
também a narração, ambas no mesmo processo ficcional. Intrincado a essa duplicidade, há um
emaranhado de gêneros e de alusões que se somam a pensamentos sobre a escrita:

Enquanto escrevo, a angústia. A mesma dor sem nome que, em A metamorfose,


destrói Gregor Samsa. Fingir que sou Samsa, considerar que isso é verdade, poderá
me ajudar a escrever? É sempre assim: os livros que escrevo me esmagam.
Assemelham-se às chineladas com que nos livramos das baratas (CASTELLO,
2010, p.31).

Construir-se como um narrador produtor de um romance que tematiza essa sua


condição é problematizar essa condição. Ele faz isso, entre outras formas, aparentando-se a
uma barata, uma forma estética de subverter o valor canônico da condição de escritor, afinado
ao mais reles nível. No entanto, em efeito contrário, essa escolha de constituição
metaficcional faz com que a obra se avulte, alicerçando-se em dois movimentos.
Primeiramente, tem sua fonte em outra ficção, o romance A metamorfose, de Kafka, cujo
protagonista, Gregor Samsa, certa vez, acorda metamorfoseado em um inseto monstruoso,
algo parecido com uma barata gigante, forma metafórica de demonstrar a subjugação social,
econômica e familiar em que ele vivia. Assim, um caixeiro-viajante (o personagem da
literatura tcheca) e um escritor (personagem de Ribamar) se irmanam, ambos se sentindo
ninguém, esmagados em sua condição. Entretanto, o narrador contorna essa fonte ficcional e
busca uma outra, não ficcional, para fazer coro ainda com o jovem autor Kafka, cuja voz
biográfica e manifesta, na sua privada carta dirigida ao pai, é assimilada culturalmente e
tomada como algo público, transformada, então, na Carta ao pai. Temos, assim, escolhas
feitas para a arquitetura da obra — a ficção e a não ficção, o romance, a carta pessoal, a carta
pessoal transformada em carta pública; o protagonista de um e de outro; e as experiências que
se cruzam, de forma que o traçado vivido pelo narrador-escritor seja um entrecruzamento de
187

todas, ligadas pela problematização quem sou eu?. Usufruindo de Gustavo Bernardo,
podemos dizer que essa “ponte entre esses níveis diferentes de ficção tem o nome de
metaficção. É uma ponte interna, e nela se pensa a ficção dentro da ficção” (BERNARDO,
2010, p.37).
Ainda seguindo as reflexões do estudioso, afirma-se haver um contrato de ilusão
quebrado pela metaficção. No caso da obra em estudo, a quebra se dá pela pergunta-problema
que põe em dúvida o papel do narrador e o do escritor, enquanto problematiza o gênero, pois
o narrador-escritor diz mal saber o que escreve. Assim, o leitor tem que dar atenção a algo que
quebra a leitura fluida do enredo, o caminho de autoconhecimento do narrador na sua função
de escritor, caminho repleto de visitas a outros narradores e a outros gêneros. Ele deve
contemplar a metaficção.
O capítulo 11 é exemplar na constituição dessa metanarratividade em que se configura
a obra. Ele todo é uma reflexão sobre a escrita ficcional, sobre o que importa a ela ou não, e
atenta para os jogos de significados das palavras que promovem efeito na narrativa. Também
visita outras obras, fazendo intertextualidades, urdindo vozes. Essas ações deixam expostos os
bastidores e claras as reflexões metodológicas da construção ficcional.
Novamente, o narrador faz visita a Kafka, nome que provoca. Há, sob o véu de certo
desprezo e indiferença quanto aos significados das palavras, reflexões sobre o nome do
daquele escrito, tomado como um vocábulo de múltiplas figurações, desfeito em tons e
significados, ampliado em novas tessituras. A princípio, com os significados de “gralha” e
“perdiz”, o designativo tem uma sonoridade que leva, na língua alemã, sua origem, para
käferr, que significa besouro. Todas essas informações vêm do Professor Jobi, que está
absorvido pela obra de José e que fornece dicas, faz pesquisas, discute arranjos, auxiliando a
produção do romance, de tal forma a promover mais questionamento no narrador (que encena
desprezar essa ajuda), que assume:

O professor me ajuda a expandir minhas associações — e a me confundir. Se


“käfer” é “besouro”, argumenta, “mist-käfer” é escaravelho. Há algo de maligno nos
escaravelhos, nome mais específico para os besouros de hábitos coprófagos — isto
é, os comedores de fezes. Algo muito infeliz se guarda nesse sobrenome, o professor
resmunga. Melhor eu me cuidar. Por que não escolher outro escritor? Por que não
escrever, por exemplo, sobre Goethe? (CASTELLO, 2010, p. 38).

Dessa fala do professor, num átimo, sem nenhuma ponte, sem nenhuma construção
coesiva (“Em um salto, minha mente ilumina a figura do Dr.Escabajo... (CASTELLO, 2010,
p. 38)), o narrador passa a dialogar com o pai (esse interlocutor que nunca receberá a carta-
188

romance objeto de nossos estudos) sobre um colega de repartição, cujo nome era Sr. Escabajo,
escaravelho, em espanhol. Então, desavisadamente, entra em cena um novo elemento que
parece não fazer parte da narrativa e não exercer nenhuma influência na sequência dos fatos e,
por isso, destoa de tudo que vinha compondo o enredo. No entanto, essa intromissão do Sr.
Escabajo não destoa da narração, pois ilustra como se dão os movimentos mentais de
associação, já que o personagem intruso complementa as reflexões sobre as palavras,
direcionando-as aos pensamentos sobre o pai, personagem de relevância. Assim, de nome de
um escritor com significados variados — gralha, inseto, besouro —, a palavra Kafka, tomada
de volteios sonoros e estruturais, viaja para outros sentidos, chegando ao nome de um amigo
do pai e à expressão mist-käfer. Esta traz um prefixo depreciativo com o qual a palavra
finalmente chega a mistkerl, cuja acepção é “cara de merda”. Ocorre, por meio desses
raciocínios, um movimento de reflexão sobre a própria linguagem, direcionada para si;
também para os movimentos de dispersão presentes no processo de produção de uma obra; e
ainda para as reflexões que o narrador faz sobre seu pai, figura da qual nunca se perde, de
forma que todos os pensamentos são caminhos até ele, algo explicitado no trecho: “Bato asas
em torno de você, meu pai, um homem em cujo peito nunca cheguei a pousar. É um voo
doloroso, mas insistente. Um destino intocado” (CASTELLO, 2010, p. 38).
Advém dessas reflexões linguageiras uma alusão ao mestre Machado de Assis,
quando, em A cartomante, usa a mesma imagem das asas em giros concêntricos, fazendo uma
metáfora para ilustrar que o personagem Camilo está acuado e não consegue enfrentar aquilo
que o domina: “Camilo [...] fez um gesto incrédulo: era a ideia de ouvir a cartomante, que lhe
passava aolonge, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a
esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas...” (ASSIS, 1979, p. 477).
A alusão a Machado vem como um corolário: todo o trânsito feito pela palavra Kafka
se dirige à reflexão sobre o pai. O raciocínio sobre o nome do escritor são asas que aparecem
e desaparecem e reaparecem, esvaem-se e concentram-se novamente, voam para lá e para cá,
em novas conotações, movimentos em torno da figura paterna.
Contribui para a percepção da voz machadiana a citação explícita, a seguir, dos versos
de Jorge de Lima:“Dá-me as penas para eu escrever minha vida / tão igual à ave em que me
vejo / mais do que me vejo em ti, meu pai”. Ambas, alusão e citação, em diálogo, tratam do
pai-“destino intocado” (CASTELLO, 2010,p. 38), centro em torno do qual o narrador sempre
viveu, prisão da qual quer se livrar, motivo pelo qual põe-se a escrever seu romance.
Essa intertextualidade, ora mais sugestiva, ora mais explícita, componente da
metaficção, tendo em vista que, dessa forma, a obra fala de si mesma, de sua construção e de
189

seus componentes, é presença recorrente na obra, por meio decitações, a exemplo da de Jorge
de Lima; alusões, a exemplo do Bruxo; e ganha mais corpo pelo diálogo com Kafka, pela
configuração de espacialidade que a Carta ao pai toma em Ribamar, algo já tratado em
capítulo anterior.O corpo fica ainda mais denso porque ultrapassa os limites da
intertextualidade para atingir o da metatextualidade, termo usado por Gérard Genette para
designar “a relação de comentário que une um texto ao texto do qual ele fala”
(GENETTEapud SAMOYAULT, 2008, p.30), conforme assume o próprio autor de
Ribamarem entrevista a Isabel Coutinho:

Ribamaré um livro fronteiriço, que fica a meio caminho entre o ensaio (sobre
Kafka), o livro de viagens (a Parnaíba, cidade onde meu pai passou infância e
juventude), o livro de sonhos (trabalhei com muitos sonhos verdadeiros e falsos), e
uma ficção clássica. Há muito tempo que deixei de acreditar nos gêneros literários: a
literatura que me interessa está sempre na fronteira. A marca do nosso mundo é a
transformação acelerada. Vivemos na época dos transgênicos, dos transexuais e do
transnacional.Ribamartalvez seja um romance “trans” (CASTELLO, 2012).

O entendimento do autor José Castello elucida que temos um outro exercício de escrita
inscrito na narração, aquele que põe em evidência o diálogo entre gêneros na composição da
obra como forma de pôr em questão também a forma romanesca.
Reflexões acerca disso já foram feitas anteriormente, quando estudamos os gêneros
carta e notas, por exemplo, em suas relações com a espacialidade. Continuaremos fazendo
coro ao raciocínio, escolhendo o ensaio entre os gêneros apontados por José Castello para
assumir a configuração fronteiriça de sua obra. Essa escolha não é aleatória,no sentido de que
o caráter “trans” que o autor atribui à sua composição é concernente a esse gênero, o ensaio,
este, em si mesmo, “trans”. Entretanto, nem ele, como veremos, terá configuração garantida
na obra em estudo, pois também é construído com peculiaridades. Vejamos.
Ribamar se alicerça um tanto em outra ficção, o romance A metamorfose, e muito no
texto que tem sido estudo para fins de análise biográfica, Carta ao pai, ambos de Kafka.
Essas duas produções são comentadas recorrentemente no âmbito de suas próprias
configurações, tomadas como um objeto de investigação, algo inclusive compartilhado com
um professor: “Encontro-me com o Prof. Jobi, meu vizinho do sétimo andar. Tem sido uma
de minhas testemunhas” (CASTELLO,2010,p.26).
Também o pai, personagem da Carta, é constante motivo de estudo, analisado em sua
personalidade: “Aquele homem metódico, Hermann Kafka, que passa seus dias debruçado
sobre um balcão de comércio a contabilizar encomendas e a reclamar dos fregueses, não tem,
provavelmente, a força que o filho lhe atribui” (CASTELLO,2010, p.131); bem como Gregor
190

Samsa, interpretado por meio da aliança com sua profissão: “Então, eu entrava às pressas
(como um caixeiro-viajante, como um Samsa); alguém que está só de passagem por um
território que não lhe pertence e que lhe é adverso” (CASTELLO,2010,p.32).
Entretanto, não se trata de um interesse simplesmente acadêmico pelas obras, pois a
paixão do narrador pelo escritor de língua alemã está na esfera de algo que permite
circunscrever, de certa forma, sua análise em uma modalidade cujo terreno de competência
não seja regulado — o ensaio.
Alguns aspectos do gênero ensaio postulados por Adorno corroboram a indicação da
presença do gênero para classificação da obra:

[...] não admite que seu âmbito de competência lhe seja prescrito. Em vez de
alcançar algo cientificamente ou criar artisticamente alguma coisa, seus esforços
ainda espelham a disponibilidade de quem, como uma criança, não tem vergonha de
se entusiasmar com o que os outros já fizeram. O ensaio reflete o que é amado e
odiado, em vez de conceber o espírito como uma criação a partir do nada, segundo o
modelo de uma irrestrita moral do trabalho. Felicidade e jogo lhe são essenciais. Ele
não começa com Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que deseja falar; diz o que a
respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais
resta a dizer: ocupa, desse modo, um lugar entre os despropósitos (ADORNO, 2003,
p.16).

Assim, sem constrangimentos, o narrador parte de uma obsessão (“Meu mal tem uma
origem precisa: sou obcecado por Franz Kafka” (CASTELLO,2010,p.11)) e fala sobre aquilo
que deseja falar — a sombra de Kafka que lhe roça as costas — sem discutir o material
kafkaniano com intenções de um estudo rigoroso acerca da composição estética da obra. Pelo
contrário, refina reflexões sobre os dois textos de Kafka pela maneira de reoperá-los na forma
que declara ser um ensaio, cuja autonomia estética permite à voz narrativa fazer da sua
subjetividade o motor para uma produção que trata esteticamente de um material estético.
O procedimento explicita um novo bordado na tessitura da obra, pois o narrador se
encaminha para odesvendamento tanto de Kafka quanto de si mesmo, em paralelo, de forma a
dar voz à voz que o comoveu sempre, proliferada em si mesmo, na encenação da sua condição
dupla, de narrador configurado como escritor. Trata-se da experiência de escrever uma leitura
individual de obras de Kafka, um ato iluminado por essas obras, ilustrando o conceito de
metatextualidade proposto por Ceia, um

[...] nível de reflexão de um texto com o comentário que dele se faz. Aquilo a que
chamamos comentário de texto faz-se ao nível dametatextualidade, porque unimos
um texto a outro por uma relaçãode afinidade interpretativa que se deduz pela
citação, nomeaçãoou mera sugestão do texto comentado. No limite, toda a
reflexãosobre o fenômeno literário é de natureza metatextual (CEIA, 2016).
191

A intertextualidade presente nessa obra não se faz, então, de forma a materializar


somente a biblioteca que carrega a sua composição, as citações, referências e alusões a
principalmente obras de Kafka, mas urdindo um outro formato, híbrido, de forma a perverter
o gênero romance, rejeitando seu estado canônico. Conforma-se assim esse estado “trans” que
diz José Castello caracterizar sua obra, fixada em um nãolugar, sendo esse não lugar sua
própria linguagem, o que ainda garante a sintonia de Ribamar com o gênero ensaio,
ponderação também amparada por Adorno:

O ensaio [...] não quer procurar o eterno no transitório, nem destilá-lo a partir deste,
mas sim eternizar o transitório. A sua fraqueza testemunha o excesso de intenção
sobre a coisa e, com isso, aquela utopia bloqueada pela divisão do mundo entre o
eterno e o transitório (ADORNO, 2003, p.27).

O exercício de construção do transitório é exposto, demonstrado em uma experiência


intelectual e subjetiva, em que se verificam trajetos de leitura da obra de Kafka, também a
leitura do próprio Kafka, concomitantemente à leitura do narrador pelo próprio narrador, bem
como à leitura de como se dá o processo da escrita posto nas mãos de um narrador espelhado
no autor tcheco. Trata-se da construção inacabada de movimentos, sem resultado exato e
uniforme, o que sugere mesmo a relação com o gênero ensaio.
Entretanto, a obra declina da total subordinação a esse gênero, pois ele também se
conforma em aspectos dos quais Ribamar destoa. De acordo com o filósofo

[...] o ensaio se aproxima de uma autonomia estética que pode ser facilmente
acusada de ter sido apenas tomada de empréstimo à arte, embora o ensaio se
diferencie da arte tanto por seu meio específico, os conceitos, quanto por sua
pretensão à verdade desprovida de aparência estética(ADORNO, 2003, p.18).

E ele continua mais à frente em suas notas:

Mas o ensaio é também mais fechado, porque trabalha enfaticamente na forma de


expressão. A consciência da nãoidentidade entre o modo de exposição e a coisa
impõe à exposição um esforço sem limites. Apenas nisso o ensaio é semelhante à
arte; no resto, ele necessariamente se aproxima da teoria, em razão dos conceitos que
nele aparecem, trazendo de forma não só seus significados, mas também seus
referenciais teóricos (ADORNO, 2003, p.37).

Essas citações que descrevem outras faces do gênero ensaio afastam a obra dessa
classificação, já que, numa linha distinta do que prega Adorno, ela se configura no campo da
arte exatamente porque a consciência da não identidade entre o modo de exposição e a coisa,
192

impondo à exposição um esforço sem limites, é a tônica de todo o trabalho metaficcional


tecido na obra, especialmente aqui tratado no âmbito da metatextualidade e da
intertextualidade, cujo desenho estético dá um lugar próprio à obra. A memória de textos e
gêneros que se elucidam no decorrer dos capítulos faz o jogo entre deixá-los vivos pela
influência inestimável que exercem para a construção de uma obra e, ao mesmo tempo,
apagá-los na constituição daquela que influenciam.
Podemos tomar as palavras de Pascal, para nos referir ao trabalho metaficcional de
Ribamar:

[...] que não me digam que não disse nada de novo: a disposição das matérias é
nova; quando não se joga péla, é com uma mesma bola que jogam um e outro, mas
um a coloca melhor. Gostaria tanto que me dissessem que me servi de palavras
antigas. E como se os mesmos pensamentos não formassem um outro corpo de
discurso, por uma disposição diferente, do mesmo modo que as mesmas palavras
formam outros pensamentos pela sua diferente disposição (PASCAL, s.d., p. 1.101
apud SAMOYAULT, 2008, p. 69-70).

Por isso a “Carta de Kafka” transmuda-se em uma carta de José ao pai, vista também
como um livro e ainda como um não livro, sobre o qual o narrador discorre belamente em seu
último capítulo, ainda se dirigindo ao pai: “Essa carta — que você nunca lerá — não é o
rascunho do livro que escreverei. Ao contrário: com ela, eu me livro do livro”
(CASTELLO,2010,p. 276).
Temos então um livro rascunho, um ensaio de livro, já um outro conceito de ensaio, o
de esboço, algo que nunca se configura, mas não porque isso seja pertinente ao gênero meio
acadêmico meio não acadêmico, mas porque se trata de um experimento — um exercício de
quem precisa escrever para livrar-se, um exercício romanesco. Temos um livro que não é, no
qual se atravessam atividade criadora e o exercício da reflexão teórica.

4.4 A apresentação de um sem saber

por onde vou, meu Deus, com que


cuidados, se aqui por onde penso que
entro mais me fixo, gelado?
Do narrador sem território
193

Também segue o caminho metaficcional a obra de João Gilberto Noll, Berkeley em


Bellagio (2002), com a presença de vários gestos indicadores de que a obra se assume,
conforme conceitua Gustavo Bernardo, desde o princípio, equivocada e ambígua
(BERNARDO, 2010, p.11), com tomadas de metalinguagens e intertextualidades, tratando da
construção da obra, discutindo questões sobre a língua, promovendo o estilo decorativo da
obra.
Para ilustrar o processo de desnudamento da construção ficcional, tomamos certo
momento da obra em que o protagonista relata uma conversa com um playwritter sobre seu
objeto de escrita:

[...] ele pergunta sobre o que escrevo, vou lá filosofando em torno do meu
personagem de sempre que aparece a cada livro; ele pergunta meio irritado o que
acontece de fato nos meus livros, digo que não sei contar talvez porque nada
aconteça de fato nessas minhas histórias, mas conte, conte o que de fato acontece
nesse não-acontecer —, nada, para!, respondo no meu inglês irretocável, de um
golpe entendo na pele o mood americano para a ação, tá certo, fora da ação eles não
ficam muito tempo, querem sempre o movimento em progressão, mais e mais, e
mais ainda, não importa para quê, se para matar, dominar, construir, morrer, salvar,
amar, mas que se siga adiante; esse escritor americano por exemplo na minha frente
só tem um desafio a fazer a seus alunos na Universidade de Chicago, ele conta: não
quero saber do sentido dessas coisas que os personagens fazem, a pergunta é: o que
acontece, o que acontece, contem, contem, o resto é ninharia para enrolar a fome
intelectual dos povos subalternos; não adianta tentar arrancar à força sem anestesia o
estrato da morte ou de outra inércia menos grave; só o que transparece na sua
velocidade genuína é o que interessa para os outros. Eu quase que me encolho diante
das assertivas dele, os meus romances então não passam de sequelas do
subdesenvolvimento, esses personagens um tanto crônicos que faço, que não sabem
nem para onde ir, se for verdade que procuram algum caminho; ainda não
encontraram nem ao menos a técnica mais elementar da vida, ou seja, não sabem
como lançar a intenção num gesto claro, soberano, preciso — só assim, diz ele, o
cara se destaca da natureza e passa a cavar seu próprio enredo (NOLL,2002, p.57-
58).

O diálogo entre o narrador e o playwritter evidencia dúvidas que perpassam todo o


romance, entre elas quem sou eu?, do que se constitui um romance?. Assim, a conversa é uma
construção metafórica do debate interno do narrador, duvidoso de sua condição como escritor
e da condição de sua escrita. O narrador afirma não saber contar talvez porque nada aconteça
de fato nessas suas histórias. Ele se põe como alguém que não tem segurança do próprio
ofício e, ao versar sobre isso, tenta arrancar à força o estrato da sua inércia, não deixando
transparecer nada em velocidade genuína, deixa apenas transparecer o espelhamento do seu
“des-lugar”. Trata-se de um trecho que ilustra o todo da obra, uma metaficção, compreendida
por Hutcheon, como “uma ficção que inclui em si mesma, um comentário sobre sua própria
194

identidade narrativa e/ou linguística” (apud NAVAS, 2012, p.15). Essa disposição para
assumir-se como alguém que não sabe, que divaga no seu ofício, essa falta de
constrangimento para comentar sobre a fragilidade de sua própria identidade narrativa
compõem o discurso metaficcional exposto na obra.
Não é pouco significativa, então, a seleção de um playwritter para fazer parte do
diálogo. Dramaturgo, seu ofício exige a elaboração de um texto a ser transposto para os
palcos, para a encen-ação executada por atores, que devem representar de forma a revelar na
trama um conflito central. Trata-se de uma figura social tomada de segurança, aparentando ter
domínio sobre sua arte, o que faz frente à insegurança do narrador em seu ofício de escritor: o
primeiro, convicto da necessidade de construir personagens, seres que agem, decidem, tomam
rumos e dão rumo à narrativa; o segundo, sem saber de seus personagens, seres que “ainda
não encontraram nem ao menos a técnica mais elementar da vida” (NOLL, 2002, p.58). Ora,
encontrar técnica não é bem uma expressão pertinente a personagens, mas, sim, a alguém
hábil no exercício da criação, o escritor, portanto. O narrador-escritor está perdido em sua
prática, estando ele sem saber “como lançar a intenção num gesto claro, soberano, preciso”
(NOLL, 2002, p.58), delegando equivocadamente a personagens o que deveria ser de sua
prática.
A condição da obra é esse “sem saber”, algo reconhecível no decorrer da leitura, pois
se apresenta em uma arquitetura desorganizada, mais tomada de pistas, sensações e elipses;
não se desenvolve em cronologia; traz um narrador vivente de experiências entre,
desnorteadas, quer seja em sua identidade pessoal, quer seja na profissional, quer seja nos
espaços que habita, questão já estudada no capítulo anterior. E essas experiências são postas
sem fronteiras com outros movimentos do enredo, inclusive tomando como estratégia a forma
de uma única paragrafação.
Exemplo dessa arquitetura desorganizada é um acidental encontro pelo campus,
quando o narrador se depara com “Maria, a moça brasileira que conhecera logo que chegara à
Califórnia” (NOLL, 2002, p. 14), e vem à tona a lembrança do relacionamento entre os dois,
havido

[...] numa intimidade tão independente de outros laços que se sentiam à beira de
tudo ou quase, até do gesto mais sinistro, a tal ponto, que preferiam enfim
aproximar-se, não exatamente um do outro, mas de um núcleo qualquer onde
pudessem reatar em paz o compromisso com as coisas (NOLL, 2002, p.15).
195

Nessa dimensão pessoal, como no caso de sua relação com Maria, o narrador sempre
indetermina suas práticas sexuais, aloja-as no fortuito, no nebuloso, no casual, sendo essa a
forma de conotar sua instabilidade, seu jeito de perguntar-se quem sou eu?, pondo em
evidência a dúvida que sempre o martela: “até quando ou isso ou aquilo...?” (NOLL, 2002, p.
13).
A construção desse “sem saber” continua sendo reconhecível pela desorganização do
comando narrativo, comportamento que manifesta também um entre, desta vez quanto ao
trânsito de pessoas do discurso, da primeira para a terceira, de forma que o narrador-escritor
fala de si e de um outro que é ele mesmo, sem que haja algum recurso sinalizador dessa
mudança, algo que faça coesão entre as passagens. Apenas há primeira e terceira pessoa;
apenas ele passa de uma a outra; apenas ele constrói modos verbais que servem a uma e a
outra voz, como em um discurso indireto livre. Ocorre que esse discurso indireto livre se
configura como algo muito estranho, já que não se trata da voz de um personagem que se
mistura à do narrador ou da voz de um narrador que dá lugar à de personagens. Ineditamente,
tem-se o discurso de um personagem, momentaneamente personagem, que se imiscui ao do
narrador, momentaneamente narrador, ambos simultaneamente o próprio narrador-escritor. É
como se a própria categoria narrativa, narrador-personagem, se desmembrasse em duas,
narrador e personagem, para dar voz ao duplo que há em si mesma. Os acenos são feitos sem
justificativas, sem previsibilidade, sem permissão:

Simulavam então diante de mim um interesse mais que suficiente para lhes render
êxitos a mais em seus currículos de agentes não importa de que instituição, secreta
ou não, agentes da bandeira que fingiam amar sobre todas as coisas, mesmo que
tentassem às vezes molestá-la em minha presença, afetando visão crítica para me
mimar. Ele não queria lembrar, queria tão-só estar nos bosques de Berkeley diante
da brasileira que o fez pela primeira vez vibrar com uma fêmea na cama eternamente
redemoinhada de cobertores, travesseiros, lençóis... Mais uma vez perguntava a si
mesmo se voltando a seu país teria teto, emprego, as famigeradas refeições ou
aquela mulher para acompanhá-lo na desdita(NOLL, 2002, p.19, grifo nosso).

Assim o narrador encena ser esse alguém dúbio e duplo, que não se sabe, destoando-se
da circunscrição que lhe é cabida como narrador, desautorando a si mesmo como voz
discursiva e assumindo esse “des-estado” em várias situações, como aquelas em que ele
reflete sobre como se relaciona com a oralidade e a escrita, difamando-se:

[...] em pensamento continuaria disposto tão-só para aquele parágrafo do livro in


progress que teimava em não avançar, temendo talvez que o autor tivesse de dizer
ao fim e ao cabo o que nunca conseguira revelar antes nem nos livros nem na vida:
sua oralidade, mesmo em sua própria língua, não vinha de uma necessidade genuína:
196

ao falar, expressava tão bem a forma daquilo que pensava ou sentia, e sim parecia
interpretar uma voz além das proporções, que assim o representava limpo,
estruturado, já muito, muito longe do caos a que ele pretendia aludir: esse mesmo —
o seu (NOLL, 2002, p.24-25).

Ou ainda, quando, perdido ante o fato de ter grande dificuldade em se expressar


oralmente e ante o constrangimento de entender que escreve em resultado do seu déficit
linguístico, acaba por explicitar a pergunta filosófica quem sou eu?. No entanto, não basta
encaminhar-se para a pergunta, é importante colocá-la em um cenário que vá exaltar sua “des-
condição”, de forma a fazer com que uma circunstância metaforize seu desajuste. Sendo
assim, ele, um desnorteado, coloca-se dentro de um museu, em meio a estátuas eternas,
universais, em equilíbrio, de forma a promover sua imagem como uma antítese, algo
desajustado:

Quem seria esse homem um tanto taciturno a encontrar estátuas, quadros clássicos
pela frente para impressionar americanos, colunas, obeliscos, homens seminus,
mulheres fartas, gestos largos, quem era mesmo esse homem nascido em abril em
Porto Alegre, no hospital Beneficência Portuguesa às seis da manhã, criado no
bairro Floresta, sem poder imaginar que um dia estaria aqui nesse castelo, ao norte
da Itália, perto de Milão, na chamada — jocosamente ou com sarcasmo —
“Catedral” americana; quem era esse homem que já se cansava da noite tão cedo,
louco pra dormir, sonhar, regenerar-se para ao longo do dia seguinte cair no mesmo
enfado — ansioso pra dormir em horário de criança, [...] (NOLL, 2002,p.27).

Ou ainda na condição de expatriado de si mesmo, quando não se adapta a idiomas:


sem língua, sem pátria. Primeiro, um falante de português fugindo de si e do Brasil, tentando
encontrar-se em novo espaço. Depois, um falante de inglês fugindo de si e de outros países,
tentando encontrar-se no antigo espaço:

Espero aqui fugir do quê? De uma reviravolta, do desconcerto das nações que eu
perdi nos meus cochilos o quarto de Bellagio?Ah, foi o sertão que agora virou mar,
foi isso? [...] porque do contrário volto a Porto Alegre e vou morrer sozinho com
meu inglês saindo aos borbotões inutilmente; ninguém virá com tradutor em minha
casa, mesmo que eu esteja no meu leito de morte [...] (NOLL, 2002,p.78-79).

Essa contenda entre a interação do narrador-escritor com alguma língua, ou seja, do


seu pertencimento a uma língua, tem a ver com seus sentimentos mais do quecom sua relação
com esferas políticas ou sociais. São seus sentimentos de desconciliado com o mundo que
sedimentam a questão. Essa é a forma de exibir uma estrangeiridade permanente em si
mesmo, alguém, a princípio, encarcerado no português (“Ele não falava inglês e se perguntava
se algum dia arranjaria disposição para aprender mais uma língua além do seu português
viciado, com cujas palavras já não conseguia dizer metade do que alcançava até tempos
197

atrás...” (NOLL, 2002, p.9)); depois, perdido em várias línguas (“[...] estou aqui, só vejo o
monte, a noite que rola pela encosta e esconde de mim a imagem que nem sei se tenho ou tive,
se não fui um engano... it’s ok, it’s ok, me surpreendi parlando desse jeito num repente
(NOLL, 2002,p.55)); por fim, aprisionado ao inglês (“Virei-me, olhei para a ‘Catedral’
americana, vi que ela continuava ali com toda a sua pompa, não importa, o que importava de
fato naquele instante era que eu já pensava em inglês, já não conseguia processar um
pensamento que não fosse em inglês...” (NOLL, 2002,p.55)).
A insistência na apresentação de seus contatos e descontatos com idiomas ostenta o
caráter metaficcional da obra, porque ilustra a complexa relação entre ficção e realidade. As
questões que fazem parte do contexto extraliterário, como questionamentos do autor ante sua
própria criação artística, são deslocadas para o universo ficcional, e, nesse movimento,
infringem-se certas convenções, como a ação segura da categoria narrador e da função do
escritor. Na obra em estudo, o narrador-escritor afirma sequer ter domínio sobre o registro
linguístico com o qual ele instrumentalizaria seu ofício, de maneira que a matéria de sua obra
fica trôpega em seus próprios bastidores. É dessa forma que o autor, uma referência externa à
obra, passa a ser elemento do texto criado, apresentado, em sua intimidade, em suas
fragilidades, sendo ele mesmo o guia para que o leitor veja um outro movimento da obra, de
forma que ele acompanhe um autor textual, costurado ao texto, um recurso metaficcional.
Todas essas circunstâncias que encenam a desorganização na apresentação da obra são
sublinhadas pela ocorrência da paragrafação, que também denuncia a metaficção em Berkeley
em Bellagio. O parágrafo é uma unidade de composição que, associando-se a outras, constitui
o texto. Ocorre que na obra em estudo existe apenas um, funcionando como um novelo cuja
única linha vai puxando a narrativa, de maneira que há um continuum que obriga o leitor a
não respirar, a ler a obra ininterruptamente, como se impedido de tomar fôlego. Sem
interdição, o narrador vai de um espaço a outro, de uma cena a outra, de uma voz a outra, de
um assunto a outro. Essa falta de rigor formal, a composição por um único e extenso
parágrafo, associa-se aos demais recursos mencionados, de forma que as vozes em 1ª e 3ª
pessoas ficam bastante nítidas, assim como a dança entre elas, pois não há uma unidade
discursiva formal para cada uma delas. Também o trânsito entre os espaços, sem nada que o
torne coeso. São vozes e espaços que se atravessam no longo parágrafo, um caminho trilhado
em desmembramentos que se imbricam numa ansiedade confusa, materializada numa
sequência ininterrupta de ideias. Essa errância textual metaforiza uma errância pessoal, algo
visto, por exemplo, na passagem em que ele, vindo já para o Brasil, se encontra em um avião
de refugiados que parecem peregrinos: “Eu estava num avião de refugiados, mas para mim
198

pareciam peregrinos que encontrariam em Porto Alegre a terra prometida, o novo reino de Alá
ou de qualquer profeta menor, de alguma tribo” (NOLL, 2002,p.81).
É uma percepção em espelhamento, já que ele se mostra, ao longo do extenso
parágrafo, alguém em busca de uma língua prometida, de uma escrita prometida,
peregrinando por países, experiências, idiomas, até o retorno ao seu útero, seu desejo de
escrever:

Começo a compreender na alma onde estou, com quem estou, há quanto tempo, não
faz muito eu sei, alguns minutos, devagarinho vou ganhando a lembrança do meu
português, a língua sai de mim em pedacinhos, escorrega de repente, apanho-a
cansado, devolvo-a à minha boca, a palavra ecoa novamente, vibra mais alto agora,
o seu sentido como que sacode a cabeleira, me encolho para disfarçar esse momento,
penso que logo recomeçarei a trabalhar no meu romance [...] (NOLL, 2002,p.87).

A demonstração desse “não saber” que alinha a obra é o grito “o narrador-escritor está
nu!”, de si sobre si mesmo, denunciando o desordenamento interno, posto no formato de uma
escrita impulsiva, em um longo parágrafo.

4.5 Gostando de ser e de estar

[...] à palavra partida ao meio, como fruta


que eu pudesse espiar por dentro.
Do narrador ghost-writer

Para dar início às reflexões sobre a metaficção em Budapeste, de Chico


Buarque(2003), vamos usufruir da palestra de Elias Canetti, proferida na Academia de Belas-
Artes da Baviera, “Acessos de palavras” (CANETTI, 1990, p.169). No ensaio, trata da sua
experiência com o idioma alemão quando passa a viver na Inglaterra e quando, apesar disso,
opta por continuar escrevendo na língua germânica, esta que aprendeu a partir dos seus oito
anos. Do húngaro para o alemão, do alemão para o inglês, opta por ser usuário de uma língua
que não é a sua materna e nem aquela com a qual conviverá por muitos anos. Ele descreve
essa experiência, apontando certas fases. Primeiramente, ela torna-se objeto de curiosidade,
vista sob o prisma da comparação em seus usos cotidianos e também com relação à literatura.
199

Assim, o que, antes, eram apenas umas poucas coisas, torna-se algo cada vez mais
interessante. Em segundo lugar, vem a sensação de autossatisfação por conseguir, “sem
qualquer expectativa de alcançar uma meta externa”, ao contrário dos que nisso viam uma
tolice. Em terceiro, o efeito de privacidade e consequente liberdade de ter uma língua secreta
só para si. E ainda a sensação de que as próprias palavras não abandonam o usuário da língua,
experimentadas em seu poder e energia singular, a ponto de

[...] o dicionário do estudante aplicado, que se esforça por aprender outra língua, é
subitamente virado do avesso: tudo quer ser designado como o era antes, e
propriamente; a segunda língua, que agora se ouve todo o tempo, torna-se óbvia e
banal; a primeira, que se defende, ressurge sob uma luz particular (CANETTI, 1990,
p. 171).

Imaginemos um personagem que vive a experiência de Canetti duplamente, no campo


da sua língua materna mesmo e no campo da língua estrangeira, ambas viradas do avesso,
português e húngaro, acentuadamente pela produção da escrita literária. Essa é a situação que
nos é apresentada em Budapeste, de Chico Buarque, avesso estético que se anuncia desde a
conjugação da capa e contracapa, ambas em português, mas a contracapa encenando uma
outra língua por meio da escrita especular, de cabeça para baixo e em fonte diferente, com
indicação de uma autoria desconhecida. Os claros passos elencados pelo romancista húngaro
se confundem, passando a estar em cena uma babel.
Essa situação reversa foi tratada por nós anteriormente, refletindo em especial sobre o
delineamento de um narrador personagem que preza o fazer, mas rejeita assumir o feito. Essa
tática faz com que o leitor desconfie dele, pois tende a perceber a duplicidade do narrador, ao
mesmo tempo em que despreza a si, ovaciona a obra, o que, automaticamente, valoriza o
autor. Essas inversões tratam a autoria como fetiche e a literatura como mera mercadoria.
Assim, é estratégico que o narrador seja o próprio protagonista e não se esconda sob a voz de
um outro. Ele assume-se como um ghost-writer, sem que se envergonhe disso.
Essa condição atribuída ao narrador revela um tratamento metaficcional da obra, pois,
nos jogos de espelhamento dessa voz discursiva, estão envolvidos o ato de ler e o de escrever,
postos pelos jogos de cena elaborados pela própria função encenativa do ghost-writer,
exageradamente performático, que faz reflexões linguísticas. Elas serão o objeto demarcado
neste segmento de nossos estudos, consideradas como um gesto literário que, falando das
línguas, ilustra uma narrativa que se volta para sua construção.
Segundo Ivete Walty e Maria Zilda Cury (1999, p.12), a metalinguagem “reaviva o
código utilizado à língua e a seus elementos constitutivos”. Se ocorre de forma mais
200

elaborada, discutindo o próprio fazer poético, exige do leitor uma cooperação. Em Budapeste,
esse reavivamento exige um cotejamento de códigos que, na encenação de um narrador
perdido, mostram-se um desafio sobre a experiência da escrita, sobre a linguagem posta em
literatura. Trata-se de uma experiência da palavra.
Comecemos pelo primeiro capítulo da obra, particularmente o seguinte trecho:

Devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira. Certa


manhã, ao deixar o metrô por engano numa estação da casa dela, telefonei da rua e
disse: aí estou chegando quase. Desconfiei na mesma hora que tinha falado besteira,
porque a professora me pediu para repetir a sentença. [...] Ao me ver à sua porta teve
novo acesso, e quanto mais prendia o riso na boca, mais se sacudia de rir com o
corpo inteiro. Disse enfim ter entendido que eu chegaria pouco a pouco, primeiro o
nariz, depois uma orelha, depois um joelho, e a piada nem tinha essa graça toda
(BUARQUE, 2003, p.5).

O trecho é um preâmbulo de discussões sobre o exercício da língua que se dará


recorrentemente na produção literária em estudo, em especial, relacionando-se à tradução,
melhor dizendo, do que dá conta a tradução, quando o pensamento está conformado à língua
materna, embora a construção sintática seja uma tentativa de negar isso.
Vê-se que a ordem em que se apresentam os termos na sentença não corresponde a
como ela se daria em português (estou quase chegando aí); apesar do desvio, caso fosse
emitido em português, a composição atingiria determinado efeito de sentido, pois o uso de
´quase` teria a ver com tempo (falta pouco tempo para eu chegar aí) ou também a ver com
lugar (falta pouco espaço a ser percorrido para eu chegar aí) ou as duas circunstâncias
conjuntamente (porque falta pouco espaço a ser percorrido para eu chegar aí, farei isso em
pouco tempo).
Inusual em português, o desvio na sequência de termos sugere haver uma construção
da frase na tentativa de realizar uma sentença em húngaro. Porém, a reação da professora
demonstra que a composição do trecho não atende a uma interpretação plausível nesse
idioma. Portanto, essa formação promove sentido diverso do desejado pelo falante, porque ele
pensa em português.
Sendo assim, é interessante que, apesar da des-ordem da construção em língua latina,
não há promoção de um efeito des-ordenado, pelo contrário, mantém-se a correspondência
com o efeito de sentido pretendido pelo narrador, ou seja, o efeito de tempo relativamente ao
espaço a ser percorrido: ambos curtos. Apenas soaria estranha a sequência de termos.
Então, para José Costa compreender a interpretação feita por Kriska, seria preciso ele
fazer uma operação mental, não apenas algo mecânico de sequência de termos. Seria preciso
201

haver a construção de signos, pela qual a cena pretendida fosse atrelada às palavras, ajustados
significante e significado, substituindo o vocábulo “quase” por outro correspondente em
húngaro, já que, naquela construção desviante, fora tomada por “pouco a pouco”. Mas isso,
raciocínio inverso, essa nova construção não seria viável em português, não haveria
consonância com o contexto. Daí o humor não ser deflagrado para o aprendiz do novo idioma,
pois ele se encontra nessa situação em que fica difícil enxergar através daquilo a que Eduardo
Ferreira denomina “névoa compacta das línguas”, quando afirma que a língua do outro se
ergue “como barreira a vedar-lhe acesso aos significados” (FERREIRA, 2016, p. 2).
Essa circunstância de usos linguísticos é presa ao denotativo, exigindo quase um grau
zero de distância entre duas línguas, sem imprecisões, com clara significação, mas exige,
nesse pequeno jogo de interpretações, uma sofisticada reflexão acerca desses usos, quando o
interlocutor ainda não tem sob seu domínio a língua do outro.
As reflexões sobre línguas continuam no capítulo que inaugura a obra e, não por
acaso, ele é assim dominado pela metalinguagem, pois, além de anunciar um plano dessa
ordem que se associará ao enredo, anuncia também que essa questão será um dos elementos
pelos quais se conhecerá o narrador, um homem que tinha “esse ouvido infantil que pega e
larga as línguas com facilidade, se perseverasse poderia aprender o grego, o coreano, até o
vasconço. Mas o húngaro, nunca sonhara aprender” (BUARQUE, 2003, p. 7).
Seu gosto por idiomas é o tema desde o início, algo que vai se proliferar pela narrativa,
substanciado na escritura de vários gêneros até o alcance do exercício máximo da palavra, a
literatura, em húngaro. A atuação de um personagem descompromissado com tudo, irrequieto
e perdido existencial e linguisticamente é um ludibrio, já que ali se encena alguém que situa
seu trabalho no labor da língua, a partir inclusive dos usos refinados que dela faz. Enquanto se
vão percorrendo os parágrafos e as cenas, as construções estéticas não se perdem de ouvido,
vão aparecendo num disfarçadamente, aqui e ali.
A exemplo, por meio da metáfora, quando tenta expressar o entendimento que tem da
composição do húngaro:

Palavra? Sem a mínima noção do aspecto, da estrutura, do corpo mesmo das


palavras, eu não tinha como saber onde cada palavra começava ou até onde ia. Era
impossível destacar uma palavra da outra, seria como pretender cortar um rio a
faca. Aos meus ouvidos o húngaro poderia ser mesmo uma língua sem emendas, não
constituída de palavras, mas que se desse a conhecer só por inteiro (BUARQUE,
2003, p.8, grifo nosso).
202

Ou em arranjos de sonoridade postos em relatos de situações triviais que, compondo


paranomásias e aliterações e repetições, conotam um personagem para o qual o exercício da
palavra é usual, parte de sua cadeia cotidiana de pareceres, pensamentos e ações:

No aeroporto trocamos endereços e abraços, houve quem chorasse, todos garantiram


presença no próximo encontro em Casablanca, depois cada qual entrou num túnel.
Viajei trinta horas com o pensamento em branco [...] (BUARQUE, 2003, p.22, grifo
nosso).

Entretanto, olhando a Vanda assim de repente e tão de perto, mais uma vez me
admirei; minha primeira dúvida sempre que vinha de viagem, era se a Vanda ganhara
viço na minha ausência, ou se em meus pensamentos ela desbotava (BUARQUE,
2003, p.27, grifo nosso).

Sem ser velho, tinha a pele do rosto ressequida, provável sequela do sol do Rio, sete
verões com a pele a se soltar da pele a se soltar da pele até chegar a essa, uma pele
com um quê de papel, uma casca provisória que foi ficando (BUARQUE, 2003,
p.28, grifo nosso).

Interessante que essas riquezas resultantes de um trabalho metalinguístico fazem parte


de um discurso coloquial, informal, sem requintes, mas que não se apresentam
incoerentemente, brotam com uma naturalidade ímpar, como se fizessem parte de uma
linguagem comum, não havendo embate entre as formas emitidas. Sendo assim, o refinado em
meio ao corriqueiro denuncia um pensamento constante sobre a linguagem, algo que faz parte
da ordem dos dias no narrador.
Em meio ao exercício de linguagem em português, dão-se situações com relação ao
idioma húngaro, um estrangeiro aos ouvidos do ghost-writter, apreendido nas sonoridades e
aprendido na concretude das coisas, substantivadamente, fazendo do aprendizado da língua
algo tangível, como um bebê que recebe da mãe água acompanhada da repetição da palavra
água indicando o líquido:

Mas assim que ousei empurrar a porta, o consulado explodiu em aplausos. Ato
contínuo as cerca de cinquenta pessoas no salão, que estavam em pé, voltadas para a
janela, soltaram as costas, se remexeram, se viraram para os lados e começaram a
falar umas com as outras. Era a sonoridade do idioma húngaro que se abria para
mim ao passo que eu penetrava no salão. Vibravam as vozes húngaras ao meu redor,
sem suspeitar que expunham a um intruso seus segredos. E por ignorar os
significados, com mais nitidez eu percebia as inflexões da língua; estava atento a
cada reticência, a cada hesitação, à frase interrompida, à palavra partida ao meio
como fruta que eu pudesse espiar por dentro (BUARQUE, 2003, p.35).

Por isso me chamou a atenção o livro mais modesto, mas com um título legível:
Hungarian in 100 Lessons. Numa folheada entrevi alguns exercícios de conversação
[...] Então percebi a moça alta com uma mochila nas costas que olha o livro em
minhas mãos e abanava a cabeça. [...] E quando ela afirmou que a língua magiar não
se aprende nos livros, fiquei pasmo, porque a sentença me soou perfeitamente
inteligível. Ainda me perguntei se ela teria se expressado em português, ou em
203

inglês, ou mesmo em romeno, mas tanto era em húngaro que não distingui uma só
palavra. E, contudo, não me restava dúvida, ela afirmara que a língua magiar não se
aprende nos livros. [...]
E a caminho do hotel tive minha primeira e peripatética aula de húngaro, que
consistiu em ela dar nome às coisas que eu apontava: rua, patins, gota d´água, poça,
noite, pizzaria, discoteca, bar, galeria, vitrine, roupa, fotografia, esquina, mercado,
bombom, tabacaria, arco bizantino, balcão art nouveau, fachada neoclássica, estátua,
praça, ponte pênsil, rio, verde-musgo, ladeira, portaria, lobby, cafeteria, água
mineral e Kriska (BUARQUE, 2003, p.59-60).

O desenvolvimento do enredo — aulas particulares, vivência de relação amorosa,


entre Budapeste e Rio de Janeiro — e a aprendizagem do idioma vão ocorrendo de forma
intrincada, de maneira que o narrador fala português na cidade europeia e húngaro na cidade
sul-americana:

[...] ele só está te imitando. Imitando o quê? Imitando você, que deu para falar
dormindo. Eu? Você. Eu? Você. Desde quando? Desde que chegou dessa viagem.
Pronto. Descobri naquele instante que em meus sonhos eu falava húngaro
(BUARQUE, 2003, p. 31).

Mas duas pessoas não se equilibram muito tempo lado a lado, cada qual com seu
silêncio; um dos silêncios acaba sugando o outro, e foi quando me voltei para ela,
que de mim não se apercebia. Segui observando seu silêncio, decerto mais profundo
que o meu, e de algum modo mais silencioso. E assim permanecemos outra meia
hora, ela dentro de si e eu imerso no silêncio dela, tentando ler seus pensamentos
depressa, antes que virassem palavras húngaras (BUARQUE, 2003, p. 31).

Até que o narrador vai sendo acolhido pela língua magiar:

Assim, depois de um mês em Budapeste, já me soava quase familiar a cadência das


palavras húngaras, com a tônica sempre na primeira sílaba, mais ou menos como um
francês de trás para diante. [...] Num destes dias, tendo Kriska colada em meu peito
no vagão lotado, sem que ela me perguntasse nada, me deu na veneta pronunciar a
palavra szívem. Szívem quer dizer meu coração, e ao falar mirei seus olhos, para
saber se a pronúncia estava correta. Kriska porém olhou para baixo, para os lados,
para a janela, os anúncios, o túnel, seus olhos fugiram do assunto (BUARQUE,
2003, p.65).

E parece não haver nenhuma situação relatada que não tenha mesmo a ver com um
comportamento linguístico, de forma que a narrativa se constrói em consonância com essas
reflexões, como se fosse ofertada ao leitor uma partitura para um outro entendimento, este
além das ações e pensamentos das personagens. Ou como se houvesse um fingimento nas
ações e pensamentos, sendo eles pretextos para a exibição de procedimentos linguísticos,
elucidando uma ficção que protagoniza as possibilidades de a linguagem atuar como elemento
da ficção, ou seja, temos uma obra metaficcional, cujo narrador preocupa-se em exibir sua
autoconsciência no processo narrativo, chamando a atenção recorrentemente para a forma
204

como está acontecendo a produção da narrativa, coagindo o leitor a enfrentar os mecanismos


de língua ali presentes. Essa leitura exige o levantamento de conhecimentos acerca das
gramáticas da língua, chegando às suas possibilidades extremas, aquelas que se manifestam
na literatura. Assim, o engodo fica maior quando o narrador afirma: “Eu não sabia escrever
poesia, e todavia estava escrevendo um poema sobre andorinhas” (BUARQUE, 2003, p.133),
haja vista que, em muitas outras circunstâncias, a poesia, o lirismo se faz presente, deslizando
sentidos, transgredindo imagens, até em cenas cotidianas, como em: “Atravessei a sala dos
rapazes, e foi tamanho o silêncio deles que julguei escutar um ruído de olhos a me seguir”
(BUARQUE, 2003, p.41); “Mas ela ficou quieta, o olhar perdido, não sei se comovida pelo
meu olhar passeando no seu corpo, ou pelo meu falar pausado no idioma dela, branca, bela,
bela,branca, branca, bela, branca. E eu também me comovia, sabendo que em breve
conheceria suas intimidades e, com igual ou maior volúpia, o nome delas” (BUARQUE,
2003, p.46); “E comecei a abusar daquilo, e falei Pão de Açúcar, falei marimbondo, bagunça,
adstringência, Guanabara, falei palavras ao acaso, somente para ouvi-las de volta”
(BUARQUE, 2003, p.71). No primeiro exemplo, a sinestesia dá ao silêncio intensidade
impressionante; no segundo, a aliteração e a repetição erotizam cena e linguagem; no último,
a seleção embelezadora de palavras em eco.
Ou, em um trecho maior, a dramaticidade que antecede uma bela despedida atrás da
porta, em que o narrador insiste em dizer e desdizer que Kriska não entendia o adeus, numa
súplica “sem graça” da repetição e num, por fim, inevitável assentimento, em que a força
sonora da palavra húngara carrega de dor a cena:

À queima-roupa, porém, olhando nos olhos de Kriska, suas mãos a escorregar das
minhas, a única palavra que me veio no idioma dela foi adeus. Não entendi, disse
Kriska, e repeti: viszontlátásra. Minha boca estava seca, a articulação hesitante, e ela
sorria sem graça: de novo!, só mais uma vez!, e eu: viszontlátásra!, viszontlátásra!.
Fiz-me compreender, finalmente, pois Kriska se aquietou por uns bons minutos. E
de repente deitou a falar uma enxurrada de palavras difíceis, e não sei se me
expulsava da sala ou pedia clemência, se me implorava uma bebida quente, se me
acusava de tê-la enfeitiçado, roubado algum objeto, talvez um relógio de ouro,
relógio?, ali eis relógio vosso evidente, eu me defendia desarvorado, apontando a
bugiganga no seu pulso, mas não era isso, e Kriska que já vinha nervosa por causa
do adeus, com minha ignorância exasperava. Então renunciei de vez a língua magiar,
deixei cair o rosto, os ombros, os braços, e ela se lançou sobre mim, se grudou em
mim e me fincou os dedos, como se pretendesse enterrá-los nas minhas costas,
porque eu era um homem cruel, ou formidável, ou pavoroso, porque eu estava
dissipando os instantes mais preciosos da sua vida (BUARQUE, 2003, p.72-73).

Essas várias cenas tornadas belas pela linguagem vêm de uma voz narrativa que se
nega a servir tanto José Costa quanto Zosze Kósta, na babel em que se encerram. Vêm de uma
205

outra, luxuriante, que faz estranhezas sonoras, que busca um pacto de leitura apreensor de um
veio que direciona a narrativa para os arranjos metafóricos de sua intenção estética. Seu
processo autorreflexivo expande a obra para uma leitura além de um enredo propositalmente
confuso, mas sedutor pelas belas construções que deixam clara a identidade daquele que finge
ser um ghost-writer, mas que acaba por ser a identidade de alguém que prima pelo exercício
da literatura, uma identidade erigida e manifesta pela linguagem, por procedimentos
metaliterários.

4.6 Narrar (in)significâncias

Eu não gostaria de contar mais uma dessas


histórias de reavaliação da própria vida
numa situação-limite.
Do narrador em queda

Mais uma obra que compõe esse corpus dedicado a metaficcionar é a dramática e bela
Diário da queda, aqui também retomada em alinhavo com estudos anteriores sobre suas vozes
discursivas. Uma das chaves do romance é como se instaura na narrativa o ato de leitura, o
que trataremos a partir dos registros feitos pelo personagem avô e, em cadeia, com registros
de seus descendentes,5 cujas âncoras referenciais e também indissociáveis são: a) o sistema de
torturas, manifesto nas ações contra judeus pelo nazismo, e na ação de judeus contra os góis,
os não judeus; b) os gêneros textuais verbete, relato de experiência e diário.
Segundo Wolfgan Iser,

[...] há no texto ficcional muita realidade que não só deve ser identificável como
realidade social, mas que também pode ser de ordem sentimental e emocional. Estas
realidades por certo diversas não são ficções, nem tampouco se transformam em tais
pelo fato de entrarem na apresentação de textos ficcionais. Por outro lado, também é
verdade que estas realidades, ao surgirem no texto ficcional, neles não se repetem
por efeito de si mesmas. Se o texto ficcional se refere à realidade sem se esgotar
nesta referência, então a repetição é um ato de fingir pelo qual aparecem finalidades
que não pertencem à realidade repetida. Se o fingir não pode ser deduzido da

5
A denominação dos personagens se fará de acordo com as relações familiares norteadas pelo protagonista: avô,
pai, neto. Isso não impede que seja necessário, muitas vezes, o acréscimo de termos que deixem claro de quem se
está falando, de acordo com a cena.
206

realidade repetida, nele então surge um imaginário que se relaciona com a realidade
retomada pelo texto. Assim o ato de fingir ganha a sua marca própria, que é de
provocar a repetição no texto da realidade vivencial, por esta repetição atribuindo
uma configuração ao imaginário, pela qual a realidade repetida se transforma em
signo e o imaginário em efeito do que é assim referido (ISER apud COSTA LIMA,
2002, p. 958).

A relação entre os três elementos — o real, o fictício e o imaginário –— se mostra na


obra em estudo, explicitando-se como um ato deliberado de transgressão, como um modo
operatório criador de realidades textuais, sedimentado em atos de leitura: a leitura que o
personagem avô faz da realidade, transposta em verbetes; o efeito da leitura que o personagem
pai faz desses verbetes; e o efeito da leitura que o neto — o protagonista, narrador e escritor
— faz dessas duas leituras, sendo esta a sua escrita, a composição da sua obra. Diário da
queda é, então, a manifestação de um efeito de sentido.
Apresentando-se, então, em camadas de atos de leitura, a obra, intencionalmente,
propicia camadas de extratextualidade a partir das quais se orientam as leituras. Uma dessas
instâncias de extratextualidade se dá enquanto faticidade, algo registrado historicamente: a
Segunda Grande Guerra. Do evento participou o personagem avô, um judeu, vítima dos
algozes alemães no campo de concentração Auschwitz, situação que o marcou para sempre, a
ponto de viver na tentativa de negá-la. Essa negativa se manifesta pela proposital ausência de
registros sobre qualquer detalhe daquela situação vivida, tentando, pela ausência da palavra,
extirpá-la de sua vida. Entretanto, esse absentismo se fez fortemente presente na fase de sua
vida posterior a ela — silenciada, gritou: marcado a ferro e vivendo experiências
subsequentes à guerra que só ratificavam seu estigma, sentindo que o porvir trataria de
reproduzir continuamente a maldade e a desfaçatez humana, certo de que ele nunca mais se
livraria da percepção da maldade humana, o avô sente-se impelido a sobreviver seu último
tempo de vida pela escrita, e o faz em verbetes, elemento oriundo de uma outra camada de
extratextualidade, a da produção de tipos e gêneros, objetos construídos em circulação social.
Entretanto, para que se configure essa catarse, faz-se necessária uma transgressão, pois essa
forma de escape só lhe é possível sob a condição dessa intencionalidade, à qual é submetido o
gênero: para subsistir a uma realidade incômoda, dolorosa, é preciso registrar as experiências
vividas de outra forma, que compele mais ainda à evasão, a escrita dos verbetes às avessas do
vivido. Além dessa quebra de expectativa, os verbetes são desenhados de forma a negar sua
configuração prevista, a de uma enciclopédia. Diferentemente disso, constituem uma narrativa
em forma de diário:
207

Aparentemente meu avô queria escrever uma espécie de enciclopédia, um


amontoado de verbetes sem relação clara entre si, termos seguidos por textos curtos
ou longos, sempre com uma característica peculiar. O verbete leite, por exemplo,
fala de um alimento liquido e de textura cremosa que além de conter cálcio e outras
substâncias essenciais ao organismo tem a vantagem de ser muito pouco suscetível
ao desenvolvimento de bactérias. A seguir meu avô passa para porto, bagagem,
Sesefredo, e não é difícil perceber que os registros obedecem à ordem na qual ele se
deparou com cada um desses lugares, objetos, pessoas e situações. Dá para
acompanhar a sequência como uma história [...] (LAUB,2011, p. 24-25).

Acontece, então, que essa composição passa a algo intencionalmente transgressor,


quando as anotações se tornam objeto de leitura do neto e, sendo ele um escritor, seu objeto
de fazer literário. Nesse fazer, são selecionadas e combinadas com outros elementos (a própria
experiência de vida do narrador-escritor; o contexto histórico que gera a produção dos
verbetes; a obra É isso um homem?, de Primo Levi; a leitura de verbetes feita pelo
personagem pai), todos configurando o texto literário, porque ganham “caráter de
acontecimento”, à medida que trazem “uma perspectiva para o mundo presente que não está
nele contida” (ISER, 1976/1996, p. 11).
Assim, a interpretação feita pelo neto de que há tipos e gêneros textuais se cruzando e
se desconstruindo é a percepção de que há nos verbetes estranhamentos, algo às avessas do
que é característico do gênero, o que leva à compreensão do produto como um memorial.
Segundo afirma o neto-narrador-escritor, os apontamentos registram cenas “num tom
grosseiramente otimista” (LAUB, 2011, p.25), conforme as reflexões metanarrativas presentes
no capítulo 10:

Segundo meu avô, era muito comum que um homem rico e germanófilo e pai de
uma mulher bonita e solteira de Porto Alegre, 1945, diante de um imigrante judeu e
pobre recém-recuperado de uma febre tifoide e devendo dois meses de aluguel numa
pensão chamada Sesefredo, perguntasse a esse rapaz quais eram seus planos em
relação à filha. Era comum o rapaz responder que gostaria de retomar a carreira de
professor mas que por enquanto, dadas as suas dificuldades com o português, que
seriam logo superadas, e uma certa expectativa dos proprietários da Sesefredo,
sempre manifestada em modos compreensivos e cordiais, ele pensava em aceitar um
emprego de caixeiro-viajante oferecido por um agenciador, no qual percorreria
dezesseis cidades por semana vendendo máquinas de costura. Há diversos tipos de
máquinas, explica o rapaz, com diferentes usos e preços, e então o pai rico da
mulher bonita e solteira abre um sorriso e oferece mais uma taça de vinho, e também
um charuto, e comemorando o fim daquele jantar agradável os dois brindam ao fato
de que o rapaz levará a filha do homem rico e orgulhoso para morar num quarto e
sala próximo à Sesefredo, numa rua em que há um canil e um açougue onde se
abatem galinhas, estabelecimentos comerciais de reputação ilibada, num prédio que
sobreviveu a um incêndio, mas que é sólido e possui bons ângulos em relação ao
sol, um lugar para começar uma vida nova a ser comemorada numa cerimônia
poucos meses depois, um padre e um rabino para celebrar a união entre a filha
daquele homem rico e orgulhoso e o seu genro judeu e pobre que em breve lhe dará
o único neto (LAUB, 2011, p.28-29).
208

As expressões “segundo meu avô” e “era muito comum”, associadas ao discurso


indireto livre, expõem o modo de leitura construído pelo neto das anotações do avô, expõem a
percepção que ele teve do quanto os recursos discursivos são bizarramente incoerentes: as
descrições antitéticas dos personagens rico/pobre, germanófilo/judeu, bonita/recém
recuperado de uma febre tifoide; o tom solene da descrição do emprego chinfrim; o exagero
da reação generosa do pai, que lhe oferece mais uma taça de vinho; a ainda antitética e
insólita descrição de espaços e tempos presente e futuro em “o rapaz levará a filha do homem
rico e orgulhoso para morar num quarto e sala [...] um lugar para o casal começar vida
nova...” (LAUB, 2011, p.28-29).
O trecho ilustra como o contexto histórico em que o avô se situara e aquele no qual
passa a se situar são dolorosos, motivo pelo qual é preciso fugir deles, e, para isso, a forma
encontrada é a linguagem, uma outra linguagem, a do verbete, um gênero de anotações
denotativas, literais, objetivas, pelas quais seria possível afastar a subjetividade da experiência
humana. No entanto, as condições de produção dos verbetes pelo avô, sua angústia ante a
realidade que o tortura exigem que haja desvios da autonomia referencial do gênero, passando
a ser tomado como fingimento, o qual, inadvertidamente, acaba por ser algo confessional, um
indicador de que o avô não deu conta de seu propósito, o que se comprovaria pela finalização
de vida pela qual optou, o suicídio. Assim, quando das leituras feitas pelo neto, as anotações
acabam por ser compreendidas em sua referencialidade, porém esta sendo tomada por uma
nova dimensão discursiva, na qual se repete a realidade vivenciada e cuja carga de violência é
ampliada, ao contrário do pretendido pelo avô, pelo recurso da inversão de informações
mapeadas pelo exagero da positividade, produzindo, então, outros efeitos de sentido,
encenados em outras duas camadas narrativas tomadas de fingimento, a do pai e a do neto.
Segundo Wolfgang Iser,

[...] como o fingir se relaciona com o estabelecimento de um objetivo


(Zwecksetzung), devem ser mantidas representações de fins (Zielvorstellungen), que
então constituem a condição para que o imaginário seja transladado a uma
determinada configuração, que se diferencia dos fantasmas, projeções, sonhos
diurnos e ideações sem um fim, pelas quais o imaginário penetra diretamente em
nossa experiência. [...] No ato de fingir, o imaginário ganha uma determinação que
não lhe é própria e adquire, deste modo, um predicado de realidade; pois a
determinação é uma definição mínima do real(ISERapud COSTA LIMA, 2002,
p.959).

A metaficção, na obra em estudo, se desenvolve, pois, pela notabilização dos


fingimentos postos como objetos de produção e objetos de leitura, que vão se encadeando, a
partir de elementos extratextuais, em efeitos de sentido: dois descendentes — o filho desse
209

avô, que reorganiza os verbetes do seu pai de acordo com os sentidos por eles produzidos e a
partir dos quais organiza o próprio discurso também em verbetes, embora de outra ordem; e o
filho desse filho, o neto, que reorganiza o memorial do avô, lido de forma associada à
reorganização feita pelo pai, também um memorial, e, nesse processamento, organiza seu
próprio discurso em forma de diário, o Diário de uma queda. Resulta disso um romance
composto de anotações, verbetes, diários, memórias, enfim. Desse modo, o narrador — neto,
filho e escritor — constrói a obra, tramando sua leitura e sua escrita, subversivamente
atreladas a gêneros e discursos, ilustrando o conceito de metaficção posto por Mário Avelar,
aquele que perfaz um “jogo intelectual com a linguagem e com a memória literária e artística”
(AVELAR, 2016).
A organização dos fingimentos arquiteta a obra, o que exige o olhar atento aos modos
de narrar de cada personagem e aos diálogos entre elas, ou seja, à composição da obra como
um todo. Há, então, a encenação dessa organização, feita pelo narrador, que se multiplica nos
papéis indissociáveis de leitor e escritor. Eles aqui, no entanto, serão, em certa medida,
tratados separadamente, apenas para fins de estudo.
O primeiro papel é o de leitor dos verbetes do avô e dos efeitos de sentido que os
verbetes promoveram no pai. O segundo, como escritor das leituras que fez, no que elucida o
efeito delas sobre si mesmo, como neto, como filho e como escritor.
Assim, esse escritor deixa registrado que, entre os fingimentos, há o que não está, em
princípio, no âmbito da literatura, porque, intencionalmente, não pretendia apresentar um polo
artístico — aquele que “designa o texto criado pelo autor” — nem um polo estético — aquele
que se faz na “concretização produzida pelo leitor” (ISER, 1976/1996, p.50). São os escritos
do avô, verbetes íntimos, que não deveriam constituir-se na convergência entre texto e leitor,
na medida em que eram produzidos pelo avô para si mesmo, como forma de atender a uma
necessidade de que eles produzissem um efeito catártico, um livramento da existência terrível,
por meio da palavra, algo nunca alcançado, pois, à sua revelia, a realidade se repete, reafirma-
se, e tão fortemente, que o avô termina por se matar. Assim, seu ato de fingir deveria incidir
apenas sobre si próprio, não havia intenção de que os verbetes se relacionassem à natureza
literária, ele não queria repetir-transgredindo a realidade sob uma outra forma discursiva para
alcançar um outro. Queria, mesmo e apenas, afastar-se da realidade e tentou alcançar isso por
meio de uma outra forma discursiva. O avô não queria a realidade vivenciada como referência
para a sua produção, a realidade era outra coisa, um objeto a ser encoberto, deletado de sua
existência. Porém, o objetivo não é alcançado, considerando dois aspectos: aquilo que
pretende encobrir é algo tão enorme e sufocante, que é impossível ocultá-lo, tentativa que
210

acaba por escancarar a referência para si mesmo, de forma insuportável; suas anotações
chegam a outros, dois descendentes, seu filho e seu neto.
Tomadas em mãos por esses dois outros, suas estratégias de encobrimento paradoxal e
hiperbolicamente denunciadoras acabam por permitir leituras adversas, atos de desleituras. Os
recursos que compõem esses avessos são, independentemente do enunciador, aquilo que pode
ser experimentado na leitura, e, portanto, são elementos que não se cristalizam, o que permite
movimentos de acordo com o leitor. Podem, assim, ser denominados efeito, pois “designam
um lugar vazio na linguagem referencial” (ISER, 1976/1996,p. 52-53) e provocam a
interrogação sobre o que sucede com o leitor quando toma posse da narrativa.
Nessas duas desleituras contadas, o ato de fingir do avô, mais uma vez, à sua revelia,
continua repetindo a realidade detestada e agravada, porque não se esgota em si como
referência.
Primeiramente, o narrador nos revela como seu pai, o personagem filho desse judeu
produtor de verbetes, compreende, em cada movimento da narrativa, a sua própria história.
Como ele compreende o estranho silêncio sobre a guerra daquele homem vindo da guerra.
Como ele compreende não se tratar de um capricho, mas de uma capa de proteção que se
harmoniza com o que precisava aparentar ser diante da mulher, diante desse filho que agora o
lê, diante de todos. Os verbetes contam a esse primeiro leitor sobre a dor paterna e também
originam a sua própria dor, posto que a percepção de uma produção às avessas se fazia
reveladora da rejeição e do rancor que lhe eram devotados, o que se garante pelos
mecanismos discursivos estimulantes para a realização da leitura, operada a partir desses
recursos, desenvolvida a partir da experiência do leitor.
Ocorre que o narrador não apenas nos relata a leitura feita pelo pai, ele a altera sob seu
próprio olhar, sob o olhar daquele que, além de simples narrador, é neto e escritor, conforme o
segmento:

Meu pai mandou traduzir os cadernos do meu avô porque precisava ter um registro
dessas memórias, e ele era o único que se interessaria por elas, um filho que lê a
descrição do próprio nascimento nas palavras do pai, meu avô dizendo que o parto
coroa a decisão do marido de selar a união com a esposa, e que não há nada mais
feliz na vida de um homem que o dia que ele acompanha a esposa rumo ao hospital
para dar à luz um filho (LAUB, 2011, p. 45).

Configuram-se, no trecho ilustrativo, processos de atos de leitura. Um deles, aquele


vivido pelo personagem-filho de um judeu vítima do nazismo. No caso, evidencia-se o efeito
duplo que promove a leitura dos verbetes — a compreensão da dor paterna e o concomitante
211

desencadeamento de sua própria dor —, o que suscita a também necessidade de fuga desse
filho-leitor diante do quadro de rejeição desenhado pelas anotações. Essa evasão,
contraditoriamente, se dará por um mergulho na referencialidade em que se ancoram os
verbetes de seu pai, ou seja, o filho de um judeu vítima do nazismo se dedicará a ler sobre
aquilo que seu pai havia tentado silenciar, as torturas em Auschwitz, especialmente pela obra
É isso um homem?, de Primo Levi. Conforme interpreta o narrador-escritor,

É tentador dizer que a reação do meu pai ao ler os cadernos influenciou a maneira
como ele passou a tratar não só do judaísmo como de todas as outras coisas: o
casamento com minha mãe, o convívio comigo em casa, e como não cheguei a
conhecê-lo de outro jeito [...] (LAUB, 2011,p.33).

O tratamento a tudo e a todos também será posto em registros anos mais tarde, quando
é informado de que está com Alzheimer. Seguir o caminho daquele que o gerou parece ser a
forma de resgatar o que não pôde ter havido, embora pairem dúvidas quanto à sua razão de
ser:

Seria inútil imaginar as razões dele àquela altura, e embora tudo fosse um pouco
mórbido eu não poderia me opor ao que virou a grande distração do meu pai: as
horas no escritório como o meu avô, um projeto mais ou menos como o do meu avô,
um livro de memórias com os lugares aonde meu pai foi, as coisas que ele viu, as
pessoas com quem falou, uma seleção dos fatos mais importantes da vida dele
durante mais de sessenta anos (LAUB, 2011,p.93).

A reação do segundo personagem ante a leitura feita é, novamente, fazer da escrita


uma forma de catarse, desta vez, porém, um conjunto de memórias sem subterfúgios:

Nossa família tinha uma casa na praia. Era uma casa grande. Quatro quartos, sala,
uma varanda boa. Um gramado grande na frente. As famílias sempre iam de manhã
para a praia, por volta de nove, e voltavam por volta de uma, duas horas. Ninguém
comia na areia. Não havia quiosques nem vendedores de milho. Não havia
bronzeador e a água era muito mais limpa (LAUB, 2011,p.94).

Além do tom ameno, sem hipérboles, mas também sem eufemismos, garante-nos o
lado direito da narração o testemunho do narrador como leitor das memórias de seu pai,
refletindo sobre elas, percebendo a semelhança entre o momento extremo vivido pelos
personagens que tanto determinam sua vida:

Meu pai começou a escrever as memórias logo depois que soube do Alzheimer. Eu
nunca perguntei a ele o motivo, não só porque não queria estragar uma distração
sempre saudável nesses casos, mas porque o significado daquilo, considerando a
forma como ele escrevia e as coisas que estavam ditas ali, era um tanto óbvio.
212

[...]
Talvez meu pai tenha imaginado que podia ser como um exercício, um equivalente
às palavras cruzadas, as frases servindo para estender a lembrança das coisas, como
quando você faz anotações em aula e depois estuda e tudo o que o professor disse
passa a ser o que você lê nessas anotações, mas, no fundo, eu não acredito nisso.
Ninguém escreve um livro de memórias por causa disso, sabendo que no futuro será
incapaz de ler por causa de uma doença, a não ser que tenha chegado ao ponto em
que meu avô chegou ao escrever o dele (LAUB, 2011,p.116).

Ainda dessa vez, não temos uma produção com intenções estéticas. A intenção parece
ser a de lidar com o insuportável, o medo de repetir o gesto às avessas do homem que o criara,
e, então, escrevendo não o reverso, mas o verso. Algo de si para si, em fuga do
aprofundamento a que se dedicara quanto à questão político-religiosa-ideológica, uma forma
catártica de tentar entender tudo o que projetou o dilaceramento daquele seu pai, um judeu em
fuga da realidade, e suas consequentes atitudes, uma forma de justificar esse dilaceramento e
essas atitudes e, assim, conseguir blindar-se da mesma tortura que fora repassada para si, uma
herança passada de judeu torturado para a geração subsequente.
Essa conduta se tornou uma obsessão, insistentemente repetida para mais uma
geração, a do neto, este que, então, herdeiro duplo das agruras da guerra, avalia:

Meu avô nunca falou sobre Auschwitz, e restou ao meu pai mergulhar naquilo que
Primo Levi escreve a respeito: os homens que roubam a sopa uns dos outros em
Auschwitz, os homens que mijam enquanto correm porque não há permissão para ir
ao banheiro durante o expediente em Auschwitz, os homens que dividem a cama
com outros homens e dormem com o rosto nos pés desses outros homens e torcem
para que eles não tenham pisado no chão por onde passam os que têm diarreia, e a
capacidade de Primo Levi em dar dimensão ao que era acordar e se vestir e olhar
para a neve no primeiro dia de um inverno de sete meses em que se trabalha em
jornadas de quinze horas com água pelos joelhos carregando sacos de material
químico ajudou meu pai a justificar os últimos anos do meu avô. É mais fácil culpar
Auschwitz do que aceitar o que aconteceu com o meu avô. É mais fácil culpar
Auschwitz do que se entregar a um exercício penoso, que qualquer criança na
situação do meu pai faria: enxergar o meu avô não como vítima, não como um grão
de areia submetido à história, o que automaticamente torna meu pai outro grão de
areia diante dessa história, e não há nada mais fácil do que sentir até orgulho por ser
esse grão, aquele que sobreviveu ao inferno e está entre nós para contar o que viu,
como se meu pai fosse o meu avô e meu avô fosse Primo Levi e o testemunho do
meu pai e do meu avô fosse o mesmo testemunho de Primo Levi — enxergar meu
avô não como vítima, mas como homem e marido e pai, que deve ser julgado como
qualquer outro homem e marido e pai (LAUB, 2011,p.81).

O trecho em destaque é uma leitura dos registros construídos pelo avô vítima do
nazismo e lidos por um pai que sofre as consequências dessa vitimização. Mas, além disso, o
trecho estampa que o narrador faz mais que o relato do efeito da leitura. Seu discurso se
compõe de considerações febris, reveladoras de um outro leitor, esse que lê as leituras de seu
pai e de seu avô, fazendo delas sua leitura-escrita, encenando um posicionamento de alguém
213

de perfil múltiplo: um neto-filho-leitor-escritor. Por isso, o mesmo trecho é também uma


ilustração de que o discurso do narrador-escritor tem uma outra intenção, dessa vez, estética,
manifesta em repetições, em adjetivas restritivas, em polissíndeto, em períodos longuíssimos,
em discurso indireto livre, elucidando o discurso recorrente de seu pai, mas em palavras
outras, agora as de um escritor. Assim, do incessante discurso paterno oriundo de um outro,
construído como forma de atenuar o sofrimento ante a rejeição sofrida, como uma forma de
desculpar aquele judeu que o gerou, de sentir-se amado e de amar, emergem essas estratégias
linguageiras, orientadas sob a voz de alguém que lê os escritos do avô e os do pai, lê as
relações entre os dois homens. E reage a ambos, crítica e sofridamente: ao primeiro, por ter
não ter reagido ao terror a que foi submetido; ao segundo, por não ter sido capaz de livrar-se
da herança recebida e ter-se dedicado a uma história que não era a sua. E escreve sobre eles
uma narrativa na qual se interpõe e pela qual repete e inova ações e intenções. Isso ocorre
porque também ele, assim como seu pai e seu avô, não consegue livrar-se da sua herança de
judeu, não consegue livrar-se de ser filho de um homem cujo pai fora vítima do nazismo do
qual nunca pôde se alforriar, pois, por mais que tentasse afastar-se daquilo que oprime seus
dois parentes — o nazismo e sua rede de opressões — não o alcança, pois nunca haviam se
mostrado para ele de outro jeito, e, assim, ele também acabou arrastado por aquela história.
Entretanto, outra situação vivida por esse neto-escritor acentua esse fardo, tendo em
vista que é uma experiência às avessas daquela vivida pelo avô: no lugar de torturado, nosso
escritor, certa feita, age como um torturador, algo encenado como um evento extratextual,
trazido para uma narrativa como assim aconteceu à semelhança da situação vivida pelo avô no
campo de concentração. E, ainda dessa vez, embora assumida como processo de catarse, a
narrativa é feita em recuo, como algo a não ser feito, conforme nos anuncia esse protagonista-
escritor: “Eu também não gostaria de falar desse tema” (LAUB, 2011,p.9); “Se eu tivesse que
falar de algo meu...” (LAUB, 2011,p.15). Enquanto usa artifícios que conotam possibilidades
e condições, vai escrevendo, contando sobre aquilo que começou “aos treze anos, quando
deixei [deixou] João cair na festa de aniversário” (LAUB, 2011,p.33). O remorso ante a
participação na queda do colega deflagra um diário de ações e sensações, um tratado cotidiano
de como o mundo é, do qual não se consegue fugir, porém não porque se é o sacrificado, mas
porque se é o executor. Trata-se de um remorso que se acentua, porque se dá em alguém que é
neto de uma vítima de algozes, porque é filho de um homem que esbugalhava os olhos
enquanto tentava convencer de que estavam na Alemanha de 1937, mal sabendo que é
verdade, que estavam mesmo na Alemanha de 1937, embora não com uma ameaça que vem
de fora de casa, o nazismo, mas que está dentro de casa, em si mesmo. Assim, o efeito da
214

leitura que faz dos verbetes do avô, da leitura que faz da frenética reação do pai como leitor
desses verbetes e produtor de suas anotações a partir do momento em que se percebe com
Alzheimer, associado ao remorso que corrói, tudo isso que o põe em queda constitui a obra
desse narrador, um escritor.
Por isso, desta vez, a leitura se dá como um acontecimento transmitido pela voz do
narrador-escritor. A reação às leituras se faz como um acontecimento que se revela por meio
de estratégias estruturadas para que as percebamos, conforme afirma Iser, “uma perspectiva
para o mundo presente que não está nele contida” (ISER, 1976/1996, p.11), de forma que ele
“rompe as imagens dominantes do mundo real, os sistemas sociais e de sentido, as
interpretações e as estruturas” (ISER, 1976/1996, p.11). Os elementos selecionados pelo
narrador-escritor — a realidade extratextual da Segunda Grande Guerra, a tortura nazista e os
verbetes — combinados às leituras feitas e à sua condição de algoz, dão ao texto o que Iser
denomina de “desterritorialização semântica” (ISER, 1976/1996, p.12), pois saem de seu
campo histórico e de referencialidade para serem seu ato de leitura.
Diferentemente, então, das outras duas galerias de anotações, sua escrita,

[...] orientada pela estética do efeito, visa à função, que os textos desempenham em
contextos, à comunicação, por meio da qual os textos transmitem experiências que,
apesar de não familiares, são, contudo, compreensíveis, e à assimilação do texto,
através da qual se evidenciam a “prefiguração da recepção” do texto, bem como as
faculdades e competências do leitor por ela estimuladas (ISER, 1976/1996, p.11).

O acesso, assim como o do seu pai, aos verbetes do avô, à obra É isso um homem?, a
documentos e fotos das ações nazistas, tudo lhe fazia parecer que não havia mais nada a dizer
a respeito desse absurdo. Ele mesmo afirma, citando Adorno e Eyhuda Amichai e Hanna
Arendt, “que não há mais poesia depois de Auschwitz”, “que não há mais teologia depois de
Auschwitz”, “que Auschwitz revelou a existência de uma forma específica de mal” (LAUB,
2011,p.96). Entretanto, e apesar disso, escreve. Ele é o avô, saturado da vida vivida, que se
repete hereditariamente, agora saturado, além das leituras vividas, da vida vivida.
No entanto, quando os elementos são retirados da realidade de sua referência e
incorporados ao texto, eles experimentam, a partir daí,uma mudança de sua significação.
Nesse sentido, a seleção a partir da qual o narrador-escritor constrói o texto literário possui o
caráter de acontecimento, e isso porque ele, ao intervir em uma determinada organização,
elimina sua referência, tiraos elementos de uma subordinação e liberta-os para novos efeitos
de sentido. Assim, ele acaba por contar o que o avô não contava, em combinações com atos
de leitura encadeados e entrelaçados, de tal forma que põe em palavras “o que sabia do meu
215

[seu] pai, e tudo o que sabia do meu [seu avô] e consequentemente tudo o que sabia de mim
[si]” (LAUB, 2011,p.102). E tudo o que foi sabendo sobre si mesmo enquanto interpretava
leituras é que ele tinha um Auschwitz dentro de si.
Esse é o teor metanarrativo em estudo: o diário de alguém que tem em si um campo de
concentração e, sabendo disso, resolve enfrentar essa dor por meio da escrita esteticamente
construída, não uma escrita que engana ou que se dá na iminência da morte, vitimado pela
vida. Diferentemente, uma escrita de alguém que, tomado de remorso, precisa expurgar essa
queda vivencial da qual nasceu, na qual foi criado e na qual se envolveu e que parece não ter
fim. E faz isso contando sobre escritas catárticas, expondo-se, chicoteando-se por meio da
arquitetura de um efeito de sentido, expressando pela artea “inviabilidade da experiência
humana em todos os tempos e lugares” (LAUB, 2011,p.134), assim descrita, associada a
outros efeitos de sentido:

As memórias do meu avô podem ser resumidas na frase como o mundo deveria ser,
e daria até para dizer que as do meu pai são algo do tipo como as coisas foram de
fato, e se ambos são como que textos complementares que partem do mesmo tema, a
inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e lugares, o meu avô
imobilizado por isso, o meu pai conseguindo ir adiante apesar disso, e se é possível
falar sobre os dois sem ter de também firmar uma posição a respeito, o fato é que
desde o início escrevo este texto como justificativa para essa posição (LAUB,
2011,p.146).

Assim, desde o início da narrativa, seu traçado vem sendo feito, um traçado da
construção de uma obra de redenção, cujo final traz um claro endereçamento a um leitor, um
filho que será livre do encadeamento a que foi submetido o narrador-escritor, ciente de que ter
esse filho “é deixar para trás a inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e
lugares” (LAUB, 2011,p.150):

[...] e se pela última vez estou dizendo o que penso a respeito [de Auschwitz] é para
que no futuro você [o filho] leia e chegue às suas próprias conclusões. Porque não
vou atrapalhar sua infância insistindo no assunto. Não vou estragar sua vida fazendo
com que tudo gire em torno disso. [...] e há o patinho, a espuma, a buzina, o espelho,
a toalha felpuda, o colo e a pele da sua mãe, o cheiro dela, o toque das mãos
passando você para o meu colo, a roupa que estarei vestindo, a minha barba, o som
da minha voz, as palavras que direi e que ainda são incompreensíveis, mas você olha
para mim e sabe intuitivamente o que está por trás de cada uma delas, o que
significa a pessoa na sua frente, meu avô diante do meu pai, meu pai diante de mim,
eu agora e a sensação que acompanhará você enquanto os anos passam e também
começo a esquecer todo o resto, o que a esta altura não é mais alegre nem triste, bom
ou ruim, verdade ou mentira no passado que também não é nada diante daquilo que
sou e serei, quarenta anos, tudo ainda pela frente, a partir do dia em que você nascer
(LAUB, 2011,p.151).
216

Em Diário da queda, temos um sujeito gerado e construído pela leitura e pela escrita
de diários encadeados, escrita que estabiliza (e demonstra) as experiências, reorganizadas em
linguagem, dando sentido a tudo o que foi selecionado e posto em combinação, tudo visível
pela urdidura acessada pelo relato de um ato de leitura. A obra faz-se, assim, metaficcional,
jogando com possibilidades de forma e efeitos de sentido, descrevendo a autoconsciência do
narrador-escritor em relação à produção artística estritamente relacionada ao papel do leitor,
uma função que protagoniza a trama junto à de escritor.

4.7 Um monólogo ensaiado

[...] se ninguém toma a palavra, ela me toma.


Do personagem-irmão

Assim como as obras até aqui estudadas, também A história dos ossos, de Alberto
Martins, apresenta um trabalho metaficcional. Será especialmente tratado o segmento “O cão
no sótão”, considerando a ligação entre literatura e teatro, que se entrecruzam numa relação
complexa. Essa questão é posta na obra por meioda nomeação dos capítulos: “Prólogo”,
“Ensaio” e “Epílogo”, termos atribuíveis ao mundo do teatro, cuja conceituação expomos a
seguir.
Prólogo, segundo Maria Isabel Barbudo, é uma espécie de introdução que

tornou-se uma prática comum nas peças dos séculos XVII e XVIII, sendo por norma
escrita em verso. Neste espaço preliminar ao da representação, e pela voz de um dos
actores que integram o elenco da peça, o dramaturgo dirige-se ao seu público,
aproveitando para tecer comentários satíricos, convocar a indulgência dos
espectadores, ou especular sobre os temas da própria peça. [...] Aparece por vezes
também a anteceder o discurso romanesco e outras formas de narrativa, sendo disso
exemplo o famosoPrólogo dos Canterbury Talesde Chaucer (BARBUDO, 2017).

Sobre o ensaio, tomamos as palavras de Admir Calazans:

Quando começamos um projeto é no ambiente dos ensaios que começamos a


conhecer mais de perto todos os componentes do processo envolvido — diretor,
atores, técnicos, dramaturgo, entre outros. Geralmente, quando se faz a leitura de
mesa, temos que nos comunicar “olho no olho” com nossos “novos familiares”
217

(encare assim, é ordem!). Daí que sintonias começam a se desenhar. Tão importante
nesse período é a sinergia que rola entre as pessoas. É um momento de
conhecimento das personagens e atmosfera a ser criada. [...] É uma viagem rumo ao
conhecido com percurso e destino desconhecidos. Ensaio é isso: um tema que
precisa ser esculturado para dar uma bela obra (CALAZANS, 2014).

Epílogo, segundo Carlos Ceia,

[...] é a arte de um texto que constitui a sua conclusão ou remate, ondenormalmente


se dá a conhecer o destino final das personagens de uma história que se contou, o
desfecho dos acontecimentosrelatados, ou ainda as ilações finais de um conjunto de
ideiasque se apresentou ou defendeu. Em termos de localização no discurso, o
epílogo coloca-se no lado oposto do prólogo, podendoassumir a forma de um
apêndice. A existência de um epílogopressupõe, em regra, o desenvolvimento de
uma intriga até sechegar a um ponto final, necessariamente posterior
aosacontecimentos descritos nessa intriga (CEIA, 2016).

A partir dos títulos que se apresentam no segmento “O cão no sótão” e dos


conceitos acimaexplicitados, verificamos que o “Prólogo” se compõe de um enredo
em que se dão as relações familiares, principalmente entre dois irmãos, trançadas a
questões relativas à literatura, considerada algo preocupante e vinculada a um
personagem também preocupante, que “passava horas escrevendo” (MARTINS, 2005,
p.13) e para quem o único assunto apaixonante era a literatura:

Eu tentava esticar ao máximo aquelas visitas desviando a conversa para a literatura,


único assunto que o apaixonava no momento [...] Seu desejo era “escrever uma
página verdadeiramente viva”. Feito isso, “sua vida se cumpriria na mais absoluta,
imprevisível e irremediável liberdade” (MARTINS, 2005, p. 13-14).

É essa preocupação que leva a mãe a arranjar-lhe um emprego: “A mãe, que tinha
antecedentes, passou a ver com temor aquela atração desmedida do filho pela escrita. [...]
Você que gosta tanto de escrever, sua tia arranjou-lhe emprego em um escritório”
(MARTINS, 2005, p.14). No emprego, sai-se bem e consegue um espaço, um sótão, onde
poderia dedicar-se às tarefas sem sofrer incômodo. Essa mudança, conforme vimos nos
estudos sobre espacialidade, vão permitir ao personagem dedicar-se à literatura, o que faz
produzindo “um monólogo a muitas vozes” (MARTINS, 2005, p.14), executado como em um
estado de arrebatamento e visto como um estado de delírio. O monólogo é transcrito pelo
narrador, o outro irmão, em situação também de arrebatamento.
O que, então, deveria ser anunciado no prólogo? Diante do enredo, só podemos aceitar
o que nos diz o verbete de Maria Isabel Barbudo: um narrador que esteja a anteceder o
218

discurso romanesco, haja vista essa voz discursiva nos relatar, em prosa, a situação familiar
exposta acima, fazendo o papel simultâneo de narrador-irmão.
Ocorre, entretanto, que o material em seguida ao anúncio é um texto de representação,
um monólogo a muitas vozes, algo à parte da narrativa, um outro, o qual revelará um estado
de desvario. A função do segmento é peculiar, porque, apesar de ser o corpo da obra
anunciado pelo “Prólogo”, quebra a expectativa formal prevista pela composição em prosa, e
o que seria uma continuidade tem o lugar tomado por um texto de representação. Sobrevém,
então, uma digressão, e os fatos que antes vinham sendo contados e que propunham uma
continuidade — “Na tarde do dia seguinte, a mãe me despertou com a notícia” — têm,
também estranhamente, no “Epílogo”, seu prosseguimento.
Além dessa linha inusitada de composição da obra promovida pela inserção do
monólogo em meio a um conjunto de parágrafos em prosa, o material tem, em sua produção,
peculiaridades: a) é construído enquanto ensaiado; b) simultaneamente ao monólogo ensaiado,
ocorre sua transcrição, feita pelo narrador-irmão; c) no bojo dessa encenação-transcrição,
estão inscritas discussões sobre o fazer literário. Assim, há uma incorporação do encenado no
transcrito, cujo resultado é uma prática verdadeiramente viva, conforme sonhava realizar o
tresloucado personagem produtor do monólogo.
Retomando Calazans, no trecho construído pelo personagem-irmão, aquilo que é
“esculturado para dar uma bela obra” transmuda-se, pois o próprio esculturado é a bela obra.
Nada há cujo resultado seja uma bela obra, pois uma só situação encarna o processo e o
produto.
O trecho que antecipa a transcrição anuncia o grau de vivacidade e beleza que a
impregna:

Numa tarde, ao me curvar para depor a muda de roupa no pé da escada, aproximei


sem querer o ouvido do corrimão. Com nitidez espantosa, ouvi cada sílaba que o
irmão proferia, vibrando nas tábuas, saltando de degrau em degrau. No impulso,
tomei o caderno de desenho que carregava comigo e, dobrado sobre o primeiro
degrau, me pus a transcrever cada som, cada gesto, cada risco que saía da voz do
irmão (MARTINS, 2005, p.17).

Que motivos subjazem a essa impulsão? É possível dizer que o narrador, que tanto se
inquieta por esse irmão, tendo percebido que se dava a construção de uma peça e atentando
para o fato de que ele estaria realizando o ensejo de criar algo vivo, a partir do que viveria a
“mais absoluta, imprevisível e irremediável liberdade”, foi tomado de uma necessidade de
deixar registrada a encenação. A transcrição do monólogo já traz no cerne de sua
219

intencionalidade uma reflexão fundamental sobre o texto escrito — sua perenidade. Isso, pois,
caso a produção do monólogo atendesse às aspirações do irmão, como arte cênica que é,
ficaria restrita a uma única apresentação e, portanto, estaria perdida ante sua efemeridade.
O teatro é uma arte paradoxal, conforme afirma Anne Ubersfield (2010): é
simultaneamente representação concreta e produção literária; instantânea e eterna; para ser
vista em uma representação e objeto de leitura infinita:

Arte do hoje, representação do amanhã, que se pretende a mesma de ontem,


interpretada por homens que mudaram diante de novos espectadores; a encenação de
dez anos atrás, por mais qualidades que tenha apresentado, está hoje tão morta
quanto o cavalo de Rolando. Mas o texto, esse é, pelo menos teoricamente,
intangível, fixado para sempre (UBERSFIELD, 2010, p.1).

O que o narrador faz é manter vivo o objeto de leitura infinita, fixá-lo para sempre, o
que se manifesta numa condição só plausível pela linguagem verbal. Dissemos acima que a
composição presente no segmento “Ensaio” é a encarnação de processo e produto, o que se dá
porque ocorrem três situações entrelaçadas e concomitantes: a construção desse monólogo, o
ensaio da representação desse monólogo e a transcrição desse ensaio, feita de maneira a ser
verdadeira representação, gestualizada. Assim, há uma absorção do encenado no transcrito,
cujo resultado é uma linguagem teatral, um metateatro, posto como metaficção no sentido que
já temos aprendido com Gustavo Bernardo: “momentos em que a ficção se duplica por dentro,
falando de si mesma ou contendo a si mesma” (BERNARDO, 2010, p.13), pois o monólogo
instaura a questão universal quem sou eu? mais uma vez, metaforizando as perguntas o que é
a literatura?e o que é e quem é o autor?.
Antonin Artaud (1999), nas “Cartas sobre a linguagem”, publicadas em O teatro e seu
duplo, responde a um interlocutor que o questionara sobre considerar a encenação uma arte
autônoma e a apresentação agir isoladamente e determinar-se de modo independente. Afirma-
lhe que:

[...] enquanto a encenação continuar sendo, mesmo no espírito dos diretores mais
livres, um simples meio de apresentação, um modo acessório de revelar obras, uma
espécie de intervalo espetacular sem significado próprio, ela só terá valor na medida
em que conseguir se dissimular por trás das obras a que pretende servir. E isso
durará enquanto o interesse maior de uma obra representada residir em seu texto,
enquanto no teatro, arte de representação, a literatura estiver acima da representação
impropriamente chamada de espetáculo, com tudo o que essa denominação tem de
pejorativo, de acessório, de efêmero e de exterior (ARTAUD, 1999, p.124).
220

As reflexões do dramaturgo se aplicam ao monólogo construído ao vivo, pois, nele, o


interesse maior não reside no texto, mas, sim, nos efeitos de cenário, nos movimentos
realizados em cena, naquilo a que Artaud denomina “efeitos epidérmicos” (ARTAUD, 1999,
p.126), isso que lhe promove alto valor dramático. São gestos que carregam o texto de
impressão e, compatíveis com o discurso do dramaturgo francês, são “um modo de mobiliar e
animar a atmosfera da cena, por uma conflagração, num determinado ponto, de sentimentos,
de sensações humanas, criadores de situações suspensas, mas expressas” (ARTAUD, 1999,
p.127), concretamente na configuração da personagem.
Dessa forma, o que ensaia o nosso personagem-irmão é a linguagem teatral que o
narrador-irmão consegue traduzir em exaustão, e, sob essa condição, acaba por assumir para
si a representação do papel de escritor. Para isso, tão febril quanto a encenação é a transcrição.
É durante a transcrição que é exposta a construção-ensaio delirante de seu par. É nela que se
manifestam, acoplados, discursos do autor e ator e ainda do personagem da peça, de forma
que a subjeção de quem a elabora emerge de/em quem a representa.
Assim, evidencia-se a duplicação da obra por dentro, pois, primeiramente, a
construção do texto é a situação encenada, o autor do texto é o personagem encenado. Além
disso, uma outra via de leitura se estabelece, pois se pode ver ainda a operação realizada pelo
irmão-narrador.
A primeira duplicação se dá a partir de situações pertinentes ao espaço do teatro, em
inserções de falas no âmbito da arte cênica, como um diálogo com a plateia (“Ainda uma voz
por aqui? Se há retardatários, que se aproximem”); uma referência à maneira de começar uma
peça (“É um belo início para este ato, não?” (MARTINS, 2005, p.19)). Também, e
principalmente, pelo alto grau de perturbação que engendra a produção ensaiada e viva,
partindo de alguém que faz questão de “deixar a história de lado” (MARTINS, 2005, p.20) e,
portanto, fazendo questão de promover “o aspecto diretamente humano e atuante de uma
dicção, de uma gesticulação, de todo um ritmo cênico” (ARTAUD, 1999, p. 126).
É o que se pode ver, por exemplo, na constituição da conjuntura metateatral que se
apresenta por uma intertextualidade significativa: o elemento que compõe o público que
assiste ao monólogo é um cão, acompanhante de todos os momentos de construção da peça: o
que a antecede, o de sua construção-apresentação e o de posterioridade, quando se dá o
incêndio.
Segundo a mitologia, o cão representa o terror da morte, o próprio Hades e o inferno
interior de cada um (BRANDÃO, 1993, p.203). Há, na presença do elemento mítico, um
estratégico aviso da morte em que se insere o irmão-personagem. A princípio, é um elemento
221

extramonólogo, presente no sótão onde se instalara o irmão antes que o monólogo começasse
a ser ensaiado; ele aparece ali como algo insólito, em desacordo com o ambiente, um ser
esquisito, frágil, esquálido, mas vigilante, temerário: “As mãos giravam nervosas uma
barrinha de metal. Durante toda a visita, não se ergueu uma única vez. E volta e meia os olhos
derrapavam num canto da sala: lá, deitado num colchonete, as orelhas em pé, um cachorro
magricela seguia atentamente cada gesto do irmão” (MARTINS, 2005, p.16).
Apesar de ser o oposto de Cérbero, sem nada em sua aparência que seja monstruoso,
ele magnetiza o olhar do personagem-irmão, algo percebido pelo narrador e evidenciado pelo
uso da palavra “derrapavam”, que conota o descontrole, a subjugação ao animal.
Como elemento intramonólogo, numa ilustração do delírio que envolve o texto, o cão
atua como público da peça e também como se fosse o próprio personagem, o que acentua no
texto o caráter monologal. Várias passagens expressam esse duplo. Em uma delas, verifica-se
a quebra de expectativa no uso inverso da personificação: “Já não engasgo a cada sentença e
posso conduzir falas inteiras sem perder o osso do raciocínio”. Em outra, sendo o discurso um
monólogo, “o solilóquio de um sozinho”, o diálogo com o cão volta-se para o próprio
emissor: “Avante, animalzinho. Queres escutar o solilóquio de um sozinho? Ótimo. Alguém
que vive do ócio como tu será o melhor ouvinte à minha exposição. Afinal, não há nada que
estimule tanto um homem a falar quanto um discreto e dissimulado espectador” (MARTINS,
2005, p.20). Ao final da peça, é o cão-personagem quem traz os fósforos, o que anuncia o
incêndio, situação que se dará extramonólogo.

Ai língua da infância, muda de lembranças — o que é que tudo isso significa? Tanta
areia e cinzas... e um cão faminto que abana a cauda entre os escombros!... Ó, cão!...
Então sou eu esse que se move de quatro entre os despojos, o focinho rente ao chão,
farejando restos num festim de mortos!?... E meu este corpo!?... E serão meus estes
ossos!?... Mas suspende a pena um instante.
Traz os fósforos.
Quero examinar de perto as marcas (MARTINS, 2005, p.29).

Assim, o cão faz uma costura circular na narrativa, prefaciando o solilóquio,


inserindo-se nele, e nele deflagrando o epílogo que alcança o mundo extramonólogo. Sua
função é, pois, a de “psicopompo, isto é, guia do homem na noite da morte, após ter sido seu
companheiro no dia da vida” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1990, p.176).
A alusão à imagem clássica do cão multiplica o texto, colocando dentro dele outros
textos em que se manifesta a presença do cão que encaminha para a morte. A alusão abala
essa imagem, porque o desenho feito do animal é paródico. Entretanto, ao mesmo tempo, faz-
lhe um elogio, mantendo a imagem original como seu cerne. Além disso, essa menção
222

intertextual, situando o texto em uma memória literária, dá nova espessura ao personagem,


que, sendo esquelético, não deixa de ser o cão que acompanha e guia para a morte, parodiado
não só na sua frágil condição, mas porque é guia de um anti-herói, abandonado e tresloucado.
É a partir dessa questão que podemos pensar na outra via de leitura que se estabelece,
além do duplo construção/ensaio, a operação realizada pelo irmão-narrador, um outro estado
de metaficção, de texto que se desdobra sobre si mesmo. Não sendo viável nem lógico que o
narrador-irmão, estando do lado de fora da sala onde se ensaiava o monólogo, pudesse assistir
à demonstração experimental que ali se dava, acaba por se ver um outro texto: o que ele
registra é a sua colheita auditiva, é a apreensão da comoção vivida pelo irmão, esse anti-herói,
apoucado como o próprio cão.
São os gestos que ele não vê fisicamente, mas que absorve pela dramática audição que
lhe chega, tornadas palpáveis pelas indicações de movimento de cena (“Ah, vês a pilha de
ossos ao pé da mesa? Essa mesma. Abocanha-os e enquanto mastigas hei de inventar-te uma
outra história”; “À falta de coadjuvantes, encenarei a tua parte nesta farsa. Pronto...! De
quatro patas. Começar!” (MARTINS, 2005, p.21-26)). Também palpáveis pelo ritmo em que
a voz discursiva que se manifesta no monólogo imprime ao solilóquio, quando interpõe a ele
pensamentos e assuntos distintos: uma história diversa com a consciência de quem está
fazendo essa interposição: “Abocanha-os e enquanto mastigas hei de inventar-te uma outra
história (MARTINS, 2005, p.21, grifo nosso); uma teorização sobre língua; um discurso sobre
justiça; uma investigação em autos, tudo isso freneticamente.
Toda essa audição vem carregada da gesticulação empreendida, carregada de
comoção. Sendo assim, o narrador-irmão consegue colocar em confluência o gesto e a
palavra, algo que lhe exigiu extremo esforço, exaurindo-o: “Exausto, passei o resto do dia
feito um zumbi e no início da noite tive febre” (MARTINS, 2005, p.17). Haveria aí um
narrador, sendo personagem, capaz da onisciência? Estaria sendo atenuada a barreira entre o
narrador em 3ª pessoa e em 1ª pessoas? Ou ainda haveria uma encenação de uma capacidade
narrativa de abstrair quaisquer situações?
Artaud, ainda em sua “Primeira carta”, afirma que

[...] a mais elevada ideia de teatro é a que nos reconcilia filosoficamente com o
Devir, que nos sugere através de todos os tipos de situações objetivas a ideia furtiva
da passagem e da transmutação das ideias em coisa, muito mais que a transformação
e do choque dos sentimentos nas palavras (ARTAUD, 1999, p.123).
223

O narrador-irmão conseguiu fazer além do que afirma Artaud, conseguiu


metamorfoseara transmutação das ideias em coisa e unir ametamorfose e o choque dos
sentimentos às palavras, fazendo de seu produto não só a transcrição do monólogo, mas
também uma demonstração do processo em que isso é feito, elucidando o exercício do gesto
incorporado ao da escrita.
Essa é a trama que dá sequência ao “Prólogo”, esses dobrados da narrativa sobre si
mesma, expondo-se em poética. E, após ela, vem o “Epílogo”, o que a mãe conta ao narrador
quando o acorda é o que acontece ao final do monólogo, a voz discursiva dominante no
monólogo solicitando ao cão — a si mesma, portanto — que traga os fósforos para ver suas
próprias marcas, de seu corpo, de seus ossos. Aquela cena, anunciada no “Prólogo”,
apresenta-se sob outra forma que não a prosa, vem como representação, sendo tomada de
exuberância e arrebatamento pela gestualidade imprensada na transcrição. Mantendo um
constante nível, um clímax, em estado de constante retesamento, sem descanso nem arrego,
declina para a forma prosaica, no “Epílogo”. Feito em tom cortante, terrível, angustiante,
barroco: “De todo o escritório restava apenas o carvão — que se tornava cinza que se tornava
pó que o vento soprava espalhando na calçada” (MARTINS, 2005, p.33).
Os movimentos são atos metaficcionais, fazem a leitura debruçar-se sobre algo distinto
do enredo, até porque faz com que ele pareça estar perdido quando os parágrafos são retirados
e entra uma voz viva, teatral. São movimentos entre o teatro e a narrativa, entre o gesto e a
palavra, deslocamentos que libertam os gêneros de amarras conceituais e formais,
desguarnecendo o narrador de posições estanques e exibindo-o em instâncias perturbadoras.

4.8 O eu, um outro

Estou de fato dentro de um texto que


escrevi.
Do narrador em litígio

Nossos estudos sobre espacialidade na obraDívórcio, de Ricardo Lísias, apontam para


a construção de um narrador que vive em trânsito, entre um casamento, a descoberta de um
224

diário que leva ao divórcio, os primeiros tempos de sensação de derrota, a busca pelo
equilíbrio.
Nessa montanha-russa de emoções, a rua torna-se seu espaço de maior permanência,
mas, conformada ao narrador, não éobjeto de observação nem de estabilidade; é espaço onde
cabe alguém cujo perfil é o de o de um sujeito que vive no meio urbano, em meio às ruas, à
indiferença social. Os títulos dos capítulos ilustram isso: abaixo de cada um deles, há um
subtítulo que alude a algo desse narrador-personagem.
Esse narrador coloca-se explicitamente como um escritor, cuja peculiaridade éseu
estado de desnorteamento, condição constitutiva de uma estratégia performática pela qual se
manifestam temas de relevância para a teoria da literatura, como a discussão entre o que é
ficção e o que é realidade e, nesse bojo, a discussão sobre as condições da autoria bem como
do valor da literatura, matérias laboradas na própria trama.
Nesse movimento desorientado, são trançadas questões estéticas, de forma a serem
construídasa princípio duas faces narrativas, convidando o leitor a ater-se a uma delas, rixas
infantilizadas em um caso de divórcio, ou a percorrer um engendramento dessa face a uma
textura metanarrativa, voltada para si mesma.
Os procedimentos presentes no processo são diligenciados pelo narrador. Ele, entre
outras ações, trata de dar tons de realidade ao enredo, com fatos que retomam situações
extratexto, inclusive datadas, acontecidasex-centricamente, anteriores à narrativa em si, algo
periférico ao andamento dos fatos, como as anotações, que ele inclusive considera
autobiográficas, feitas em outras fases da vida distintas dessa que ele narra, sua situação de
divórcio:“Durante todo o segundo semestre de 2011, além de começar a correr seriamente,
preenchi muitas folhas com frases autobiográficas. Além disso, fiz mil outras anotações”
(LÍSIAS, 2013, p.14).
Nessa mesma linha de referências sobre si mesmo, ele se mostra como alguém que
atua em um outro papel, diferente do marido que está em fase de separação, diferente daquele
que faz anotações:

No sexto dia, com o corpo sem pele queimando apesar do frio, não me senti morto:
tive certeza de ter enlouquecido. Eu acabara de escrever um SMS chamando minha
ex-mulher de puta quando, na metade de uma frase autobiográfica, achei que estava
vivendo um dos meus contos.
Com certeza eu assinaria essa história (LÍSIAS, 2013, p.15).

O trecho apresenta relações antonímicas curiosas: morto versus enlouquecido; escrita


de SMS e frase autobiográfica versuscontos; autor versuspersonagem. A construção
225

dessasexpressões como antitéticas, mais do que fazer parte de um enredo, problematiza a


separação em campos do que é experiência de vida e do que é escrita literária, todavia,
cunhando-as em uma outra instância, a instância da narração, que nos conta as duas. Há,
portanto, a constituição de um triplo “inseparado”: o que o narrador relata sobre o que um
personagem — ele mesmo— faz (está vivendo um divórcio, escreve uma frase autobiográfica,
envia SMS), algo, portanto, da realidade vivida;e a referência à própria função — um escritor
(alguém que assinaria essa história) —,compõem uma exibição do que acontece na instância
da narração, numa ampliação que acolhe as duas primeiras. Assim, diante da afirmativa “Com
certeza eu assinaria essa história”, seria possível perguntar: que história ele assinaria: a de
alguém que, em processo de divórcio, escreve um SMS ofensivo à ex-mulher?; a de alguém
consciente de que está escrevendo uma autobiografia?; a de alguém que sente estar vivendo
uma situação propícia à literatura; a de alguém que sabe estar produzindo uma história
composta dessa miscelânea?
A problematização continua à frente: “Será que tudo não passa de um conto que estou
escrevendo?” (LÍSIAS, 2013, p.15). A intromissão do narrador como escritor no enredo, por
meio dessasreflexõesmetaliterárias,promove, assim, destaque para a narração, entretecendo-a
à narrativaem cenas e tempos.
Afinado a isso, o narrador ainda citaumaobra de sua autoria, algo, portanto, extra-
enredo, novamente fazendo jogos de cena: “Apaixonei-me pela minha ex-mulher no dia do
lançamento de O livro dos mandarins. Não aconteceu nada: ela não escreveu esse diário e não
cobriu o Festival de Cannes de 2011 para um jornal. É só um conto’ (LÍSIAS, 2013, p.15).
Aqui, há um desejo de negação dos fatos que ele narra. Assim, negados, constituiriam um
conto. Ou seja, o narrador nos afirma que do conto não consta o existido.
Segue ainda com uma cena em que ele se comporta de forma tresloucada:

A tontura me jogou na cama. Mesmo no inverno, o calor do meu corpo descarnado


me queimava. Mandei outro SMS. Não sei o que disse. Se tiver enlouquecido, nunca
mais vou olhar para os meus amigos. Depois, sentei no chão. Mandei um terceiro
SMS, agora com uma declaração de amor. Na resposta, ela me chamava de idiota.
Só pode ser ficção. No meu último romance, O céu dos suicidas, o narrador
enlouquece e sai andando. Agora, fiquei louco e estou vivendo minhas personagens
(LÍSIAS, 2013, p. 15).

É curioso que o narrador váse embaralhando ao seu papel de escritor, dispondo de si


como princípio de realidade, fazendo-se de referencialidade, portando-se como algo exterior
ao texto, deixando disponíveis informações verificáveis — título de uma obra, como se
comporta o narrador daquela obra — enquanto emparelha-se com esse outro do mundo da
226

ficção ao qual ele se congemina: a criatura de O céu dos suicidas,que enlouquece, é um


narrador; a voz discursiva que nos conta isso,o autor de O céu dos suicidas, e que se assume
como louco, assume-se também como narrador e como personagem: “Agora, fiquei louco e
estou vivendo minhas personagens” (LÍSIAS, 2013, p.15). Tendo isso em vista, da mesma
forma como ele compreende o personagem enlouquecido da obra já publicada como narrador,
ele se vê também como um narrador que enlouquece. Confunde, dessa forma,as noções de
sujeito do enunciado e sujeito da enunciação, instalando-se entre o ficcional e o factual, pondo
em cheque seus limites. Fica, assim, verossímil essa sensação de desarranjo,para si mesmo,
desse narrador-personagem-autor, tomado que está dessa confusão emocional em que se
encontra, confessando-se estar nesse deslugar, afobado, sôfrego diante da leitura do diário,
precisando de se defender daquelas palavras, frases, ideias que alimentam seu fracasso e que
lhe dão a sensação de que há coisas que só poderiam — deveriam — acontecer na ficção.
Expõe-se, assim, entre a referencialidade e a ficção, na referencialidade e na ficção, exibindo
um impasse que vai além de si mesmo e chega ao campo da estética.
Constata-se, então, que o texto não se restringe à sofreguidão vivida pelo narrador nem
paira no reconhecimento dele, de si para si; esses movimentos confusos não protagonizam a
narrativa. O que fica em cena é a confusão em que ascondições de produção se manifestam,
de tal forma que não se assiste apenas às atuações de um sujeito em si. Diferentemente disso,
assiste-se à disseminação de um sujeito numa trama sem fronteiras que delimitem
referencialidade e ficção, numa trama que está num lugar e noutro, a ponto de ele precisar se
assegurar de algum limite entre os papéis que exerce, o que ele faz por uma assertiva—
“ACONTECEU, NÃO É FICÇÃO”: “Acabo de achar a folha com as frases autobiográficas
que redigi naquele dia. Um pouco abaixo do meio, depois do comentário sobre o enterro da
minha avó, escrevi várias vezes com caneta vermelha: ACONTECEU, NÃO É FICÇÃO”
(LÍSIAS, 2013, p.15).
É interessante o modo de operar na obra para que fique visível o movimento entre o
extratexto e o intratexto: naquele, teria havido dois registros das sensações do autor por uma
indicação quantitativa –– “várias vezes”–– e imagética, em vermelho–– “com caneta
vermelha”. No entanto, esses usos ficamapenas no discurso do narrador, pois, na obra, elesse
materializam de outra e apenas uma forma, em maiúsculas, sem repetições, sem cor, como se
as estratégiasde dizer sobre o que é trazido da realidade não pudessem ser as mesmas quando
postas em escrita, na ficção; ou como se, no momento do vivido, anterior à narração, a
insistência na ratificação do que sentia o narrador fosse algo mais premente, e, quando
contado, passando a ser um fato narrado, intratexto, tivesse perdido a urgência. Vê-se, então, a
227

exposição do fazer literário, em que duas situações, referencialidade e ficção,são desenhadas


como espaços dedistinção e aproximação.
Divórciose oferece, portanto, como construção metaficcional, na medida em queo
enredo é dominado pela demonstração de um jogode atuações, no qual o personagem-
narrador, apresentando-se como uma figura desajustada, dado o incômodo da situação
intratextual, sua separação frustrante, exibe asua condição–– não apenas de alguém que sofre
um incômodo e o narra, mas de alguém que traduz pela narrativa os incômodos de
narrar,expondo o exercício da escrita, seus percursos, suas reflexões, o histórico, a construção
da figura do autor. Trata-se de uma construção metaficcionalcujo eixo é a autoficção.
Discutindo o gênero que, nas palavras de Eurídice Figueiredo,“embaralha as
categorias de autobiografia e ficção, de maneira paradoxal, ao juntar, numa mesma palavra,
duas formas de escrita, que, em princípio, deveriam se excluir” (FIGUEIREDO, 2010, p.91),
Diana Klinger afirma que:

[...] a autoficção adquire outra dimensão que não a ficção autobiográfica,


considerando que o sujeito da escrita não é um “ser pleno”, cuja existência
ontológica possa ser provada, senão que o autor, a figura do autor, é resultado de
uma construção que opera tanto dentro do textoficcional quanto fora dele, na “vida
mesma”. Daí que o texto de autoficção se aproximetambém da performance como
arte cênica. O texto autoficcional implica uma dramatizaçãode si que supõe, da
mesma maneira que ocorre no palco teatral, um sujeito duplo, ao mesmo tempo real
e fictício, pessoa (ator) e personagem (KLINGER, 2008, p.25).

Na obra em estudo, as ações do personagem se revelam com esse caráter duplo


apontado por Klinger: aquele homem que conta sobre o diário perturbador não o faz em tom
confessional. Distintamente, agrega a descoberta dos escritos ainformações que promovem
um deslizamentopara as referencialidades, aludindo, várias vezes, ao fato de que estava a
fazer uma autobiografia:

Por mais que me esforce, não tenho nenhuma memória do sétimo dia. Uma semana
fora de casa. Não fiz nenhuma nota autobiográfica nessa data. Acho que sei a razão:
naquela noite saí de novo para andar. Agora, não perdi o fôlego. Minha vista
também não escureceu (LÍSIAS, 2013, p.17).

Essa encenação de alguém que faz anotações para uma autobiografia cabe bem ao
propósito de pôr em discussão as relações entre ficção e realidade, pois, como afirma Silviano
Santiago, em sua palestra Meditação sobre o ofício de criar, “o discurso autobiográfico per
se— na sua pureza — é tão proteiforme quanto camaleão e tão escorregadio quanto
mercúrio...” (SANTIAGO, 2008, p.174), e, por essa condição, passa a ser uma escolha
228

estética, um gênero que pode ser afetado pelo “direto, concentrado e imaginativo do discurso
ficcional” (SANTIAGO, 2008, p.174). A seleção do gênero como objeto de comentários
manifesta, portanto, uma intenção metaficcional. E, assim, o enredo sobre uma situação de
divórcio, carregado de citações do diário, vai cedendo lugar, cada vez mais, às reflexões sobre
a escrita ficcional e suas relações com a realidade, com as referências.
Nesse processo, a condição de escritor é exibida como aquela que tem, no discurso
autobiográfico, uma força motriz para tratar do discurso literário, o que se estende às
considerações que o narrador-escritor faz do discurso jornalístico, mais um elemento que põe
em discussão o fazer literário. Desprezível para ele, aquele discurso é encarnado na figura da
personagem ex-mulher e retirado do diário que ela escreveu e de suas ações; e comentado sob
a ótica do narrador, ente encarnado na figura de um escritor. Esses dois lados representativos
da escrita são postos como antagônicos entre os personagens. De um lado, a ex-mulher o
despreza por ele ser um escritor, reconhecendo apenas o status de que a profissão se reveste:

10 de julho: Nova York. Eu estou viajando em lua de mel, mas não estou
apaixonada. O Ricardo é legal, inteligente e às vezes me diverte, apesar de andar
muito. Mas apaixonada eu não estou. Gosto de ser casada com um escritor. É só
esconder certas coisas e pronto. Eu sou uma mulher atraente, não tenho dificuldades
para achar amantes, nunca tive. Quanto ao jornal, eu acho que vou sair mesmo. Sou
a maior jornalista de cultura do Brasil (LÍSIAS, 2013, p.35).

O registro desse menosprezo vem, explícita ou implicitamente, atravessado por tons de


voz, por comparações, comentários ácidos.

23 de julho. E o Ricardo? Por acaso o Ricardo foi para alguma guerra na África? O
que ele sabe da vida? Ele não me dá nenhuma das aventuras que eu quero. Eu não
tenho nada para sonhar com ele. Nunca o Ricardo me convidou para ir a um lugar
com meus vestidos. Em Cannes, na entrevista com o Brad Pitt, eu estava
deslumbrante. Se não fosse o dia do casamento, com o Ricardo eu só uso roupa
normal. Ele acabou de virar para o lado, deve estar com frio, coitado (LÍSIAS, 2013,
p.35).

No entanto, simultaneamente, essas falas são também reveladoras de quem as enuncia


e, por isso, tomam um outro sentido, deixando de ser apenas transcrições do diário e
tornando-se uma seleção estratégica do narrador: se elas expõem determinado perfil do
marido, visto sob o prisma da esposa, contundentemente elas também expõem o perfil de seu
enunciador: uma mulher-jornalista vaidosa, mesquinha, medíocre, desleal, falsa. E que
escreve mal.
229

Harmonizam-se as peculiaridades de seu perfil como jornalista e como pessoa, quase


inseparáveis, pondo-se constantemente em um pedestal; sentindo-se no direito de ser
preservada (“A desgraçada tinha uma variação: me preserva, sou uma jornalista, me preserva”
(LÍSIAS, 2013, p.51)); mostrando-se míope com relação ao comportamento do marido, sem
senso para avaliações, dominada por seu elitismo barato.“O Ricardo ficou trancado dentro de
um quarto lendo a vida toda” (LÍSIAS, 2013, p.21).

Hoje almoçamos em um restaurante legal na sexta avenida com um amigo do


Ricardo que dá aula em Princeton. Um casal simpático, o cara falou quase o tempo
inteiro dos livros do Ricardo e das faculdades brasileiras e americanas. Quando
chegou o prato, ele pegou o garfo errado e o garçom teve que corrigir. A pessoa
consegue ser professor em Princeton mas não sabe usar talher em um restaurante um
pouco melhor (LÍSIAS, 2013, p.63).

A seleção de trechos do diário que denunciam o caráter da ex-mulher serve à


exposição de comparações: quem lê e quem não lê; quem se sente em uma situação de
privilégio que exige discrição e quem não se importa com a opinião dos outros; quem escreve
mal, quem escreve bem; como se constitui o mundo do jornalismo e como se dá o mundo da
literatura.
Assim, as preferências do narrador, um escritor, vão se contrapondo às da ex-mulher,
uma jornalista. Aquele, com obsessão por Samuel Beckett, em leituras de prosa e teatro,
maníaco por línguas estrangeiras, com gosto por xadrez e geopolítica, influenciado por Joyce,
este que o obrigou a conhecer Dublin, com nojo de jornal (parte de uma lista de “tudo o que
me dá nojo” (LÍSIAS, 2013, p.83)). E, apesar dessa formação, acabou em uma “festa fechada,
com mais ou menos doze pessoas, entre elas o dono de um grande jornal e um colunista
reacionário” (LÍSIAS, 2013, p.83).
A jornalista, por sua vez, aprecia a Broadway, restaurantes de gosto um tanto
duvidoso, o Metropolitan, onde, segundo o narrador, os ladrões de pelo tomam chá. O
narcisismo e a falta de escrúpulos emanados de seu próprio discurso, uma mulher-jornalista,
são perturbadores:

Em Cannes eu pude confirmar a mulher que eu sou. As carícias do [X] me


desabrocharam. O Brasil e esse ambiente cultural mesquinho reduzem muito as
pessoas como eu. Não sou a típica mulher gostosa do Brasil. Fora do Brasil, na rua
muitas vezes nem percebem que eu sou do Brasil. Eu preciso de um ambiente
sofisticado para desabrochar, de gente igual ao [X], um cineasta que foi brilhar na
terra de Malle, Renoir e Truffaut. E a besta do meu marido acha Godard o maior
cineasta francês. Eu tenho necessidade de falar francês, mostrar os vestidos que eu
comprei, fazer grandes perfis, perfis de cineastas de verdade. [...] (LÍSIAS, 2013,
p.97).
230

A crítica à mediocridade do discurso se estende para o campo do jornalismo, sendo a


ex-mulher quase uma metonímia do segmento profissional do qual faz parte.
Semelhantemente a ela, os amigos são bajuladores, pouco inteligentes, dados a clichês:

Os amigos da minha ex-mulher perceberam logo que eu era vaidoso e souberam me


adular. Todos subiram na vida trabalhando e compraram bons apartamentos durante
o governo Lula.
O retrato não é difícil de traçar. Logo que começamos o namoro, por exemplo, uma
amiga da minha ex-mulher me escreveu sugerindo um café porque queria perguntar
algumas coisas sobre o meu processo criativo. É isso mesmo: processo criativo!
Gente bem-sucedida tirou pós-doutorado em clichê. Não tenho coragem de
reproduzir as observações sobre o acervo da Neue Gallery que minha ex-mulher fez
nas primeiras páginas do diário. A moça do processo criativo, ainda, seria a autora
da ligação telefônica mais patética que recebi na vida: olha, Ricardo, estamos te
monitorando, somos jornalistas, pessoas bem informadas. Essa superinformada, no
caso, é uma repórter de TV (LÍSIAS, 2013, p.103-104).

Usufruindo da pergunta da jornalista clichê, o narrador relata seu processo de criação,


porém atrelado às experiências de vida:

Infelizmente, nunca conversei com a bem-sucedida sobre o tal processo criativo.


Este romance, portanto, tem um trecho incompleto. Não vou decepcioná-la, porém:
crio um plano e sempre prefiro cumpri-lo. Se as coisas dão errado, paro e o refaço.
Quando tudo sai do controle, procuro um lugar silencioso, de preferência onde eu
possa me deitar. Ao saber que o André tinha se matado, peguei minha mochila e fui
ao Parque do Ibirapuera. Fiquei quatro horas esticado na grama. Depois, saí atrás de
uma igreja. Quando li o diário, não consegui fazer nada disso: minha pele
desapareceu (LÍSIAS, 2013, p.104-105).

Em tom diametralmente oposto a esse sobre si, a descrição do trabalho jornalístico é


repleta de críticas mordazes, posto como antiético, inclusive e gravemente, pela perspectiva
do próprio meio, de onde vem a indicação, sem constrangimentos, da leitura de O jornalista e
o assassino, como se, na obra, houvesse um aval para o comportamento comprometedor da
classe. Porém, o trecho citado da obra de Janet Malcolmé de estarrecer, pois denuncia o lado
facínora do jornalismo. Mais petrificado fica o narrador, leitor da indicação, porque a leitura
fora proposta por um “antigo membro da imprensa”, uma sugestão simpática para o melhor
entendimento do mundo jornalístico:

Qualquer jornalista que não sejademasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que
está acontecendo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável. [...] Os
jornalistas justificam a própria traição de várias maneiras, de acordo com o
temperamento de cada um. Os mais pomposos falam de liberdade de expressão e do
“direito do público a saber”; os menos talentosos falam sobre a Arte; os decentes
murmuram algo sobre ganhar a vida (MALCOLMapud LÍSIAS, 2013, p.114-115).
231

Assim, o processo criativo e as situações de vida se sobrepõem, fazendo com que o


discurso crítico emane tanto do narrador-escritor quanto do personagem-marido: “Minha ex-
mulher não é a bem-sucedida padrão. Talvez seja apenas aqui que ela fuja de um clichê: é
uma caricatura. Essa gente que se deu bem na vida é versátil. Sabe se virar. Mas eu casei com
uma desgovernada” (LÍSIAS, 2013, p. 105).
Uma das preocupações do narrador é com o uso de clichês, algo que ele abomina. A
personificação do clichê é sua esposa, que visita museus porque são “um monumento da
história humana”:

Agora, por exemplo, estou me lembrando do episódio na fila da Notre Dame. Cinco
horas para entrar aí dentro? Mas, Ricardo, é um monumento da história humana. A
Notre Dame é um monumento da história humana! Joguei-me em um enorme clichê
e não percebi (LÍSIAS, 2013, p.31).

Recheados dessas considerações contra a mulher e contra o que ela representa, um


jornalismo canhestro e sem ética, os capítulos-percurso, até o 7º quilômetro percorrido,trazem
muitas citações do diário, um tanto dominantes até então. Como estão ligadas a alguém que se
assume como um ser de realidade, um escritor que, por exemplo, assina uma obra reconhecida
na instância extratexto, essas citações passam a ser parte de um além-enredo, sua presença
também cola a narrativa na referencialidadee também se manifesta nas doses de
tominfantilizado, tomado por rixas, vingancinhas, e-mails malcriados e pueris.
A partir, no entanto,dessa quilometragem,as citações do diáriopassam a minguar,
quase desaparecendo, transpostas em discursos indiretos, deslocando-se para a voz do
narrador-escritor, declinadaspara que um outro ocupe seulugar: o discurso sobre a própria
escrita. Diferentemente, esse vemem tom maduro, sem infantilismos, fazendo-se um momento
da narração que se materializa nas referências metalinguísticas uníssonas à ficção. Assim,
frases como “O capítulo fracassou” (LÍSIAS, 2013, p.131), “Estou escrevendo onze meses
depois de ter saído de casa e visto meu corpo morto no cafofo” (LÍSIAS, 2013, p.131), “Para
fazer esse fragmento...” (LÍSIAS, 2013, p.153), aos poucos tornam a escrita objeto presente, e
o divórcio do casal,objeto passado. Há,nesse modo de desenvolver a narrativa, uma metáfora
do divórcio de intencionalidades: a autobiografia vai sendo rendida pela ficção, a ponto de o
narrador ter ciência de efeitos de sentido:

Tenho vergonha de revelar agora, mas me senti um pobre coitado. Quando as


pessoas souberem quem de fato é essa mulher, vão, no mínimo, querer cuidar de
232

mim. Para isso, planejei colocar entre os parágrafos do novo conto trechos refeitos
(mas com o mesmo sentido) do diário (LÍSIAS, 2013, p.164).

O enredo parece ir perdendo espaço. Ganha, em seu lugar, uma intenção


metanarrativa.
Ora, o depoimento torna-se, portanto, um convite a reler a obra, os trechos citados do
diário com olhos outros, não os que leem autobiografia, mas os que leem ficção. E,
conjuntamente, ver, na escrita sobre a escrita, o objeto dessa obra, uma terceira margem, a dos
bastidores, acompanhando o narrador no exercício do seu papel de escritor, vendo-o “começar
[cei] uma segunda versão. Refazendo [refiz] duas vezes os planos e chegando [cheguei] a
procurar três imagens que poderiam inspirar um trecho” (LÍSIAS, 2013, p.165). O convite é
para se ler (não a vingança de um ex-marido ultrajado, vexado pelo casamento com uma
mulher que o irrita “por conta desse enorme clichê em que [ela] você chafurda e [o] me
arrasta”(LÍSIAS, 2013, p.235),e, sendo assim, deseja impedir que a obra Divórcio seja
publicada na tentativa de se proteger do que a ficção revelaria) a narrativa de alguém que
escreve para encontrar a vida e, ao depor sobre isso, alguém que continua a discorrer sobre
literatura, expondo uma de suas funções:

Confesso que, logo que li o diário, tive o enorme impulso de mostrar para todo
mundo quem de fato é minha ex-mulher. Vejam que moça mais legal. No entanto,
logo depois me vi morto. Toda a minha energia então ficou voltada para me resgatar
do que me parecia ser a antessala de um necrotério. A conclusão é obrigatória: a
literatura é agora parte vital não apenas da minha vida simbólica, mas até do meu
corpo (LÍSIAS, 2013, p.166).

Mantendo até o fim o engendramento entre realidade e ficção, aquela materializada


nas mãos do leitor — a obra Divórcio—, esta num plano em que não interessa nenhuma
materialidade, ambas constituindo os efeitos de sentido, o narrador-escritor termina com mais
uma incongruência, dessa vez, com relação à sequência de ações, que põe na mesma linha
tênue a ficção e a realidade: após ter sido jogada ao lixo, uma carta que seria enviada à ex-
mulher chega ao leitor (apenas ao leitor?). E, nessa leitura pós-lixo, contrassenso permitido
apenas na ficção, não se encontra apenas uma missiva, encontram-seconsideraçõespreciosas
sobre literatura, elucidadas em trechos como:

Você se dá ao direito de mentir sobre mim por todo lado, mas acha que pode
impedir-me de escrever um texto de ficção. Sempre querendo tudo![...]Tenho sim o
direito de elaborar ficcionalmente a violência a que fui submetido [...]. Faça alguma
coisa melhor do que escrever cartas anônimas para minha mãe (note como vou
assinar tudo o que estou dizendo) (LÍSIAS, 2013, p.234-235).
233

A carta é, assim, a última “cartada”nesse jogo metaficcional: numa conversa afiada,


agora num tom maduro que desmente o acriançado que dominou a narrativa pelo menos até os
sete primeiros quilômetros percorridos, bordado por uma linha que costura realidade e ficção,
o narrador-escritor sintoniza realidade e ficção, mentira e ficção, mas as diferencia pela
elaboração e responsabilização da segunda.

4.9 Um mosaico de referências

Aquela é a história do Andersen. A minha eu conto


assim.
Da irmã da narradora

A vendedora de fósforos, de Adriana Lunardi (LUNARDI, 2011), desde seu título,


passando pela epígrafe e pela dedicatória, adentrando ao corpo do texto, apresenta umaforma
textual calcada na autoconsciência, ou seja, nametaficção. Esse movimento entre o perigráfico
e o textual revela uma atitude metalinguística que, similarmente ao que reflete Débora
Teresinha Mutter da Silva, em seu trabalho sobre a questão em Cortázar e Clarice Lispector,
se apresenta no modo metaficcional e contada, simbólica ou alegoricamente, na voz do
narrador (SILVA, 2001). A leitura desse modo de operar a ficção implica apreender o que há
no discurso que o vira para si mesmo, expondo a forma como é produzida a narrativa, uma
obra decorada com referências a autores e obras, pequenas peças intertextuais que desenham o
percurso no qual se forjou a protagonista como leitora e escritora. A obra mostra-se,
assim,delicadamente, encenada na própria condição da literatura, que

[...] se escreve com a lembrança daquilo que é, daquilo que foi. Ela a exprime,
movimentando sua memória e a inscrevendo nos textos por meio de um certo
número de procedimentos de retomadas, de lembranças e de re-escrituras, cujo
trabalho faz aparecer o intertexto (SAMOYAULT, 2008, p.47).

Além do mecanismo — e associado a ele — há um evidente gosto pela palavra,


discutida, usada, reverenciada, o que se vê desde o princípio, já na primeira página, quando
ocorre a primeira reflexão sobre a língua, especificamente sobre os advérbios, que projeta
234

uma definição, a de infância (“A infância era quando a cerca não existia, entende?”; “Tudo
muda depois que se experimenta” (LUNARDI, 2011, p.9)) concatenada a uma referência à
Bíblia, ao livro de Gênesis (“Igual à história da maçã” (LUNARDI, 2008, p. 9)). Esse último
elemento se integra à narrativa por meio da sugestão, exigindo um emprego mais extenso do
conhecimento da protagonista (e também do leitor) bem como uma capacidade associativa
refinada: as palavras “maçã” e “inocência” e a frase “Tudo muda depois que se experimenta”
(LUNARDI, 2011, p. 9) sugerem a circunstância da tentação sofrida por Eva e repassada a
Adão, e, unidasao circunstancial pertinente à classe de palavras, redimensionam ambos os
usos, o linguístico e o literário: o paraíso, a infância, fica constatado, está definitivamente
perdido, depois que se percebem as circunstâncias.
Um mosaico de referências vai-se apresentando na narrativa, então revelando,
conforme afirma Leyla Perrone-Moisés, quando comenta sobre um conjunto de obras
literárias contemporâneas, “uma bagagem de cultura, alta e pop, para partilhar as referências
explícitas e implícitas” (PERRONE-MOISÉS, 2012, p.4), esculpindo a protagonista,
espelhando-a nas situações em que ela se insere. As construções culturais Robinson Crusoé,
Sur, Dom Quixote são exemplosdessa bagagem. Postas em uma biblioteca em arrumação,
configuram o único passado que interessa à narradora e um presente cuja finalidade era “adiar
o triunfo de traças e fungos, que de todo modo venceriam” (LUNARDI, 2011, p.13).
Na linha dessas múltiplas referências, explícitas ou implícitas, vêm muitas outras:
personagens dos quadrinhos (“Papai, o raivento, sapateava e espancava o ar, repetindo a
reação do Tio Patinhas ao descobrir que uma moeda de ouro lhe escapara das mãos”
(LUNARDI, 2011, p.53); “O corpo inteiro perdia as extremidades, transformava-me em uma
vela, dessas que têm numa ponta o Mickey ou o Batman e na outra uma espátula fina para ser
enfiada no colo” (LUNARDI, 2011, p.53)); um dito popular (“Ainda hoje parece-me
malicioso que o sentido de tudo se revele somente depois, quando não há nada a fazer senão
aceitar o novo tamanho e descobrir um lugar onde se caiba”(LUNARDI, 2011, p. 62)); um
músico refinado (“Volte ao menos para o Tom Jobim, diz no meu ouvido, depois canta uma
estrofe, dessas que não se repetem fora do contexto”(LUNARDI, 2011, p. 65)); um
personagem da literatura clássica brasileira (“Conversávamos sobre a miopia do Hubble —
acho que só eu falava, ele grunhia umas concordâncias. Era umpoema esse satélite com falhas
de visão, um Miguilim do espaço” (LUNARDI, 2011, p. 90)); uma produção nacional infantil
clássica (“Encontrado em Minas Gerais e na música-tema do Sítio do pica-pau-amarelo, ele
acrescentou, sem tirar os olhos da revista. Fiquei parada. Quantas letras? Ele negou com a
cabeça. Jabuticaba, respondi. Dez letras. O grafite pontudo obedeceu” (LUNARDI, 2011, p.
235

92)); um clássico infantil (“Sou mais velho do que você e devo estar mais bem informado,
papai bufava, repetindo noutras palavras o bordão do pássaro falante da Alice” (LUNARDI,
2011, p. 96)); um conto infantil da literatura universal (“Já disse, respondi, cortante, para me
esquivar das gavinhas que ele fazia crescer em minha direção. Reconheço de longe quando
querem me enredar. Tirei umas conclusões ao ler João e Maria” (LUNARDI, 2011, p. 102));
cineastas e literatos (“O cara não sabia quem era Zelda Fitzgerald e ainda queria que eu
falasse? Virei o rosto para ele não ver o riso de deboche. O fato é que eu sentia raiva de viver
num mundo onde havia pessoas que nunca tinham lido Zelda ou Clarice ou Hesse, nem visto
os filmes de Bergman” (LUNARDI, 2011, p. 102)); e a Bíblia novamente (“Será que
tínhamosde partir sempre do mesmo ponto, como se o mundo estivesse sendo criado hoje e a
gente fosse aquela dupla que experimentou a maçã pela primeira vez? E tudo o que já foi dito
em milhares de quilômetros de frases por gente mais sabida do que nós era para esquecer?”
(LUNARDI, 2011, p. 102)); um cientista (“Não há, posso afirmar então, entre esses 132
passageiros que viajam comigo, algo que os distinga para além do fato de estarmos nas mãos
do mesmo piloto, submetidos à fragilidade aplanadora dos que correm o mesmo risco. [...]
Não estou perdendo a chance de que um Einsteinaperte a minha mão durante o pouso”
(LUNARDI, 2011, p. 124)); uma obra clássica brasileira, que, por sua vez, remete à
tradicional fábula do macaco Simão e do gato Micefufe (“Dentro, tudo lembrava um cenário
de Clarissa. A mesma mãe com um filho adoentado, as quatro moças empregadas do
comércio a dividir beliches, o músico da orquestra municipal às voltas com o estojo magro do
violino, e até um gato sem dono que eu passe a chamar secretamente de
Micefufe”(LUNARDI, 2011, p. 138)); clássicos entre clássicos (“Móvel e instável, ele
brincou, me chamando de Quincas Borba, o filósofo” (LUNARDI, 2011, p. 36); “Pego um
exemplar de Esaú e Jacó cheio de anotações nas margens (a minha memória toda é por
escrito, não confio de outro jeito)” (LUNARDI, 2011, p.64), “Vá ler Proust, sua ignara,
respondeu, quando perguntei o motivo daquele apelido” (LUNARDI, 2011, p. 140); “Naquele
escuro de feitio subterrâneo, nossos inimigos interiores voltaram a roer mais forte”
(LUNARDI, 2011, p. 171)); filmes e cineastas e novamente a Bíblia (“Foi no meio da sessão.
É o que fazem as almas atormentadas. Vão ao cinema de tarde. Kane tinha chegado no jornal
e descoberto que falariam mal da peça de teatro que ele havia financiado. [...] Eu vi coisas que
vocês humanos não acreditariam. Uma frase de Blade runner, que eu tinha vista nove vezes
até então. [...] Quando Orson Welles reapareceu na parede foi um alívio. Estávamos de volta a
Xanadu, o caminho, a verdade e a vida” (LUNARDI, 2011, p. 170-171)); um comediante
(“Trajava uma capa de gabardina marrom e tinha um bigode que rivalizava com o de Groucho
236

Marx” (LUNARDI, 2011, p. 175)); e mais uma vez a Bíblia (“Se fosse pronunciá-lo, uma
coisa ia surgir no mundo” (LUNARDI, 2011, p. 181)).
Sobre referências como essas apresentadas por Lunardi, Samoyault se utiliza das
considerações de Annick Bouillaguet, que as conceitua como “empréstimo não literal
explícito” (BOUILLAGUET apudSAMOYAULT, 2008, p.50), e afirma que podem “[...]
acompanhar a citação para precisar as fontes do texto citado. Mas, com mais frequência,
quando aparece sozinha, a relação com o outro é muito mais sutil que no caso da citação, já
que a heterogeneidade do texto está quase ausente”(SAMOYAULT, 2008, p.50).
Nesse sentido, por vezes, deslizam para a alusão, remetendo

[...] a um texto anterior sem marcar a heterogeneidade tanto quanto a citação. [...]
Outras vezes, ela remete mais a uma constelação de textos do que a um texto
preciso. Ao escrever Ulysses, “a Helena de Argos, a jumenta de Tróia que não era de
madeira e que alojou tantos heróis nos seus flancos”, James Joyce fornece uma
alusão mitológica e alegórica que pode remeter tanto a Homero quanto a Eurípides
ou a qualquer outro autor que tenha retomado a epopeia troiana. Não plenamente
visível, ela pode permitir uma convivência entre o autor e o leitor que chega a
identificá-la. A alusão depende mais do efeito de leitura que as outras práticas
intertextuais: tanto pode não ser lida como pode também o ser onde não existe
(SAMOYAULT, 2008, p.50-51).

Nesse movimento de explicitação em maior ou menor grau, algumas


referênciasmerecem destaque por alguns motivos. Uma delas, por exemplo, porque fomenta o
futuro da personagem como escritora, salientando o tom autoficcional da obra, é aleitura de
Júlio Verne, parte de uma “pequeniníssima biblioteca” familiar (LUNARDI,2011, p.18). A
obra Viagem ao centro da terra motiva a então jovem personagem a seguir a carreira de
geóloga, mas já apontando a escritora que vira no livro mais do que a descoberta de
realidades, um mundo imaginário a encontrar, trecho construído intertextualmente, como
novas conotações: “Ao terminar o livro, tinha uma certeza pétrea: ia ser geóloga, descobrir
uma passagem que levasse ao ninho do vulcão sobre o qual Antares fora erguida, encontrar
metais mais preciosos do que o ouro e formas de vida extintas presas no âmbar” (LUNARDI,
2011, p.18).
O comentário profético da irmã — “Espere até ler Vinte mil léguas submarinas...” —
se realiza: “Fevereiro terminou. A essa altura, mesmo morando a trezentos quilômetros do
mar, eu era uma futura oceanógrafa” (LUNARDI, 2011, p.19). Ambas as referências que
anunciam a futura escritora se juntam a outras, embalando as experiências sedimentares,
como um verso posto sem aspas e com ponto final, assumindo serem seus os versos do poeta
maior (“Busque amor novas artes, novo engenho, para matar-me” (LUNARDI, 2011, p. 20)).
237

Outra, um detalhe que, conforme a irmã, fazia com se assemelhasse a Proust: ambos,
asmáticos, o que a levaria a ser escritora. A cena é posta sensorialmente, aconchegante, com
dupla inscrição: o passado retomado em lembrança — narrativa — posto no presente em
escrita — narração. É ofício de gente transformado em ofício de escritora:

Está vendo aqueles sete livros de capa verde? O autor, Marcel, sofria de asma desde
criança.
Minha irmã foi até as prateleiras de tábuas nuas sobre tijolos e tirou de lá um
exemplar antigo que eu nunca tinha aberto.
Quer ouvir o comecinho? Ele conta como era naquela idade.
E na voz mais gentil e quente que podia, minha irmã leu o primeiro parágrafo do
livro:

Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Às vezes, mal apagava a vela e meus olhos se fechavam
tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: adormeço. E, meia hora depois, despertava-me a ideia de
que já era tempo de procurar dormir; queria largar o volume que imaginava ter ainda nas mãos e soprar a
vela; durante o sono não havia cessado de refletir sobre o que acabara de ler.

Aquilo lembrava minha nebulização. Querer respirar, quando já se está respirando,


não dormir por medo de morrer durante o sono, acordar no meio da noite para
conferir se estava viva. Talvez aconteça a mesma coisa com escritores, pensei,
sentindo o rigor das pálpebras aumentar, certa de que dessa vez, porém, eu podia
fechá-las, alguém estaria vigiando (LUNARDI, 2011, p.21-22).

Mais uma referênciaque expõe a memória de leitura e ainda sutilmente concorre para
seu anúncio como escritora, dessa vez, enquanto ocorre a descriçãodas rudezas familiares,é a
fábula “A cigarra e a formiga”. A moral da história preenche o tom de melancolia com que é
feita a leitura, tom que pode estar em uso para representar o sentenciando para si do
distanciamento da literatura, mas também a feição que veio a ser típica da voz autoral:

A expectativa quanto ao que minhairmã faria, aonde ia chegar com aquilo, tornou-se
para mim uma obsessão. A prova de fogo foi dizer que eu tinha decidido estudar
letras. E eu, e eu? Ela foi perguntando, nervosa, como se eu estivesse lhe passando a
perna. Você é a escritora, eu vou ser apenas uma professora, tratei de minimizar,
despistando o ciúme que ela não escondia. O interesse frouxo que eu aparentava pela
faculdade dava mesmo a entender que eu escolhera aquele curso por falta de
vocação. Ficou ainda menos suspeito quando comecei a revisar textos e copidescar
teses de mestrado. Era um trabalho palpável, instrumental, que me afastava daquele
campo de interesses comuns no qual minha irmã tinha mais qualificação para
transformar em ofício. Eu seria somente uma operária, ela, a artista (LUNARDI,
2011, p.35).

Nesse celeiro de alusões, mais uma que merece destaque é a apropriação do nome
Nietzsche para batizar, com uma variação na grafia (Nietsche), a personagem que é uma
grande amiga da narradora. Trata-se de uma referência, não por acaso, a um filósofo alemão,
cuja biografia e obra descrevem um homem em angústia perene, o que se exemplifica pelo
conselho nietzscheniano parafraseado por Pelbart: “ao olhar o passado a partir da mais alta
238

força do presente – único ponto a partir do qual é legítimo interpretar o passado –, é o de ler,
por exemplo na vida dos grandes homens, a injunção suprema à qual obedeceram – a de
escapar à coleira do tempo. Por conseguinte, não cabe relacionar Fulano e se tempo, mas
considerar Fulano como um lutador contra seu tempo –...”(NIETZSCHEapudPELBART,
2003, p.190). Essa fala ilustra como se ajustam o filósofo, a personagem moradora de Antares
e a relação entre as amigas. Sendo assim, o destaque à escolha se dá pela sua
representatividade na vida da narradora-escritora, simbolizando o percurso feito para sua
libertação e sensibilização, bem aos moldes daqueles que se insurgem, de alguma forma,
contra seu tempo. Com essa colega de classe, a protagonista descobriu seu lugar na cidade,
dentro de um furacão, em pleno voo, a partir do que entendeu que havia se perdido da família.
Também por essa amiga descobriu o valor de ser sincera consigo mesma, compreendendo a
morte como uma opção. Liberdade, sensibilidade, morte, ingredientes imanentes à literatura:

Nietscheme ensinou a voar.O garfo de papai caiu sobre o prato. Meu irmão rolou os
olhos para dentro e mamãe bebeu mais um gole de Coca-Cola.Perdemos ela de vez,
foi o comentário de minha irmã, enquanto juntava o molho com um pedaço de
pão.Sim, eles tinham me perdido (LUNARDI, 2011, p.31).

Em dois passos cheguei ao portão e ouvi a porta ser fechada. Olhei para trás. Soube
então que nunca mais veria o pai da Nietsche, nem aquela casa, nem o suéter que
pertencia a ela. Não precisava. Comecei a ver por mim, a entender por mim. Era
como se até então os dentes perdidos fossem todos de leite e se tratasse, agora, de
um definitivo. As lágrimas desceram por aquele pai que perdera a filha, e porque eu
tinha uma vida minúscula, falhada, para carregar pelo resto dos meus dias. Foi aí
que começou o que veio em seguida.

O que eu não pude dizer ao pai de Nietscheé que uma coisa no meio de tudo fazia
sentido. Uma coisa que eu não podia falar, mas que era fundamental para eu seguir
sendo sincera comigo. Não foi a doença cardíaca prévia, não foi por descuido. Ela só
fez o que fazia com o vento. Um mergulho. E isso eu podia aceitar. E aceito
(LUNARDI, 2011, p.120-122).

Vale ainda a referência a uma constelação de textos literários, todos vinculados à irmã,
essa personagem que tanto contribuiu para a formação cultural da protagonista, e com quem
tanto partilhou e sofreu as dores familiares, “[...] a única pessoa com quem compartilha[o]
uma história desde o início. É ela que está no banco de trás de todas as viagens, enjoando com
ela [comigo], porque a paisagem passa depressa, depressa demais pela janela” (LUNARDI,
2011, p.183). Foi ela, a irmã, quem expôs a narradora a toda a sensação do incompreensível, o
que as coloca em uma simbiose alinhavada pela literatura eo que domina as duas como
leitoras e vem a se manifestar na mana caçula quando já é uma escritora. Essa convivência se
manifesta, então, por uma reprodução/apropriação de uma beleza ímpar:
239

Tudo leva a ela.


É isso então?
Nada de espanto, querida. Vai aqui toda a história da literatura. O que ouço de mim
vale pelo som terrível das palavras de Tirésias que Édipo escutou. É o mesmo uivo
de Riobaldo diante do corpo frio e sem disfarces de Diadorim. A sobriedade
irremissível de Brás Cubas ao escrever suas memórias. É o canto do logro. Você
ouve e não sabe o que fazer(LUNARDI, 2011, p.62-63).

Não há ainda como deixar de falar de Poe, referência que compõe as cenas mais fortes
de incorporação da literatura à escritora, posta em uma sessão de terapia, com alarmantes
índices de dor, elucidando um arquivo expandido, renovado:

Eu podia contar do sumiço de meu irmão, da morte de Nietsche, da repulsa que


comecei a sentir pelos livros,mas ia parecer que eram assuntos separados quando,
para mim, vinham como uma coisa só. Falar de sentimentos é o mesmo que explicar
o sabor do pão pela receita. Nunca dá certo. É uma ilusão pensar que pondo uma
ideia depois da outra a gente está se comunicando. Basta tentar descrever um bando
de pombos a levantar voo da calçada: se olhar cada um, perde-se o significado do
conjunto; se olhar todos ao mesmo tempo, não dá para acompanhar a trajetória de
nenhum. Eu precisaria de um cubo para me expressar.
De repente, comecei a ter dificuldade em mover a língua. Era como se pelos grossos
tivessem crescido nela e se expandissem em todas as direções. Tossi e a glote
estreitou, diminuindo a passagem de ar.
Um copo d’água, rápido, supliquei. O médico se levantou, caminhou até a
escrivaninha e depois ficou de frente para a parede, como se fosse entrar nela. Ouvi
o gorgolão do bebedor quando a torneira foi aberta. Ele voltou segurando o copo de
plástico com a mão em pinça para não apertar demais. Entregou-me a água e sentou-
se de volta. Quando terminei, estalei a língua para me certificar de que estava limpa.
Ele ergueu as sobrancelhas, num sinal de que ia retomar de onde havia parado.
É que eu não consigo mais sair da minha cabeça. Pronto, estava dito.
Como é isso?
O senhor já leu o conto do gatoemparedado? É do Poe. Um homem comete um
crime e ergue uma parede falsa para criar um espaço onde esconder o cadáver. Só
que o gato da vítima tinha entrado ali e os miados denunciaram o criminoso.
Ele parou para pensar.
Não sei por que eu tinha dito aquilo.Talvez para distrair o médico. Contar uma
história sempre funciona se a gente quer desviar de um assunto.
Com que personagem você se identifica?
Nunca tinha pensado em me pôr no lugar de nenhum deles. O assassino, acho,
respondi.
E o que você escondeu atrás da parede?
Ele mal acabou de fazer a pergunta e senti o cheiro da exumação. O Poe não falou
isso, eu sei. A descoberta era toda minha. Foi o ar empestado de decomposição que
fez o gato miar. Ele miou porque estava sendo sufocado pelo cadáver da própria
dona. Estava contente com aquela descoberta, quando apareceu, do nada, a
lembrança de uma relação de objetos escrita nas paredes de uma lavanderia. Uma
lista que eu soube de cor durante muitos anos.

centrífuga secadora pregos martelo tesoura


cadarço parafuso vaso barbante sandália
uma garrafa discos jornais tesoura de jardim

No que você está pensando agora?


Uma promessa. Não sei como pude esquecer.
As promessas têm sentido apenas na hora em que são feitas.
Podia estar correto o que ele dizia.
240

Por quê?
Porque seria insuportável carregá-las pelo resto da vida.
Naquela hora, eu já sabia que tinha apagado o fato de minha irmã ter começado a
usar roupas de vitrina e sapatos de salto, mas isso foi mais tarde. Deve ter havido um
momento em que tudo começou, uma primeira grande canalhice que ela fez comigo
e que foi sutil demais para eu perceber na hora. A mudança física era só a parte
visível do que se operava nela. Você não é assim, lembro de ter avisado quando ela
cortou o cabelo até as orelhas. Não pode cair nesse conto (LUNARDI, 2011, p. 105-
107).

Esse denso e belíssimo trecho entrecruzado de Poe constitui-se de pura metanarração.


Primeiro, a sensação de impossibilidade de comunicar-se, metaforizada em trocar o sabor do
pão pela receita. Em seguida, a sensação de sufocamento apresentada em uma outra metáfora
que adensa a sensação — pelos grossos crescendo e se expandindo, tomando conta da
passagem de ar. Depois, a sensação de alívio com o gole de água. Tudo isso resumido em “É
que eu não consigo mais sair da minha cabeça” e explanado por meio do conto O gato preto,
de Edgar Allan Poe. Uma história extraordinária é levada então para um cotidiano trivial,
tomado de dores humanas, de forma a redimensioná-la e ampliar a referência, transpondo-a
para uma vivência subterrânea, na qual uma escolha terrificante é feita: diante de três
personagens, dois deles vítimas e um algoz, a escolha feita pela personagem para seu
espelhamento é o último. O narrador de Poe transpõe-se a uma assassina de uma história
familiar, que empareda a irmã (?), a família (?) incômoda, junto aos motivos.
No entanto, parece haver um engodo nessa escolha: na verdade, o gato é a personagem
com que a narradora-escritora se identifica. Essa interpretação se confirma ante o fato de que
ambos — gato e jovem em terapia — sentem-se sufocados, precisam de água e ar, abafados
pelos cadáveres à sua volta que insistem em permanecer: Nietscheque escolhe morrer, o irmão
que escolhe sumir, a repulsa pelos livros, a irmã com sua lista alienante, a promessa
aprisionante que havia feito...
A gritante referência a Poe não só dá ares de autoficção ao texto como também
tematiza o próprio ato da escrita: embora a narradora afirme que “falar de sentimentos é o
mesmo que explicar o sabor do pão pela receita”, ela consegue fazê-lo sem trocar o sabor do
pão; pelo contrário, por meio da intertextualidade, realça seu sabor, exatamente por não
colocar uma ideia depois da outra, sem deixar perder o significado do conjunto,
acompanhando a trajetória de cada um. Sua escrita equivale ao miado do gato, ela é o gato
que mia, para deixar de ser sufocada pelos cadáveres que atravessam sua vida, para tentar
livrar-se do “ar empestado de decomposição”.
Embrenham-se assim a leitora de Poe e a escritora que renova Poe, refletindo sobre o
conto fantástico, relacionando-o a uma vivência, transformando-o. Segundo Samoyault (2008,
241

p. 67), referindo-se à citação, ajustada aqui à referencialidade, “mesmo quando é absorvida


pelo texto, [...] abre-o para uma exterioridade, confronta-o com uma alteridade que perturba
sua unidade, coloca-o do lado do múltiplo e da dispersão”, o que permite mensurar novos
efeitos poéticos.
Na esteira dessas reflexões, não se pode deixar de tratar do título da obra, alteridade
que perturba e dispersa, promovendo novas qualidades. A referência direta à dramática
narrativa infantil desde o título deixa clara a ação do artífice, aquele que escolhe o que e como
moldar e prenuncia um dramático final. Durante a narrativa, pequenas alusões à obra parecem
confirmar isso. Uma delas, quando a narradora se lembra da irmã colocando fogo nos seus
trabalhos, anunciando que eles têm pouca valia, o que não parecia algo positivo, pois indicava
um interesse por outro tipo de trabalho, o de escritora. A sensação era de esperança, uma
expectativa de que a fogueira resolvesse os problemas:

Minha esperança acabou de desabar no momento em que a vi incendiar os seus


cinco cadernos. Tolice pura, ela desdenhou, jogando álcool sobre as capas coloridas
no fundo do tanque. Entrei em pânico. Talvez seja uma decisão precipitada, insinuei,
você pode se arrepender em seguida. Era o meu cinismo falando em voz alta. Ela
acendeu o fósforo. Calei-me, como se respeitasse o gesto. A fogueira parecia, enfim,
resolver tudo. Se ela desistir de verdade, eu pensei, fica mais fácil para mim
(LUNARDI, 2011, p. 36).

A mais forte referência vem ao final, último capítulo da obra, um reconto de A


vendedora de fósforos, anunciado como uma forma de ferimento: “Enquanto as luzes dos
postes se acendem no parque, tento recordar minha irmã, de como ela era, e, ao colocar-me
em sua pele, sinto que estou preparada para feri-la outra vez” (LUNARDI, 2011, p. 184).
Por conseguinte, reaviva-se a simbiose, e a forma de ferimento vem pela lembrança do
ferimento, uma cena em que a irmã mais velha conta à mais nova o clássico de Andersen.
Então, o passado volta. As lembranças emergem. As vozes adultas mudam de tom: uma,
jovem, conta para outra, uma criança. Assume lugar no comando da narrativa a voz da irmã,
não a agora hospitalizada, mas aquela, mentora na infância. E o reconto, em sua atualização,
urbanizado na contemporaneidade, perde-se na história que se ganha.
Apesar de algumas semelhanças, a nova versão diverge como um todo. Então, assim
como no conto tradicional, não há o início em equilíbrio, ou certa tranquilidade, em ambos, a
pobreza é escancarada pela natureza implacável: o inverno gelado e o verão incandescente.
Mas, na atualizada, a garota se encontra descalça, com os pés em bolha. Também não há uma
vendedora de fósforos, apenas uma menina que os consegue emprestados do dono de um bar a
fim de servir-se deles para outra finalidade: furar as bolhas dos pés e assim tentar aliviar a
242

dor. Portanto, nada havia de intenção solidária em seus palitos de fósforos: não há família
para ajudar, apenas há família a temer, no que se centra a falta de coragem de retornar para
casa. A voz discursiva que narra essa versão opõe-se àquela do conto tradicional,
desvencilhando-se da intenção dramática original, atualizando-o de forma brutal demandada
de uma realidade também brutal, na qual não se permite sequer o sonho ou avós carinhosas ou
elementos mágicos. Não há alívio nem ajuda. Não há nem bondade nem recompensa pela
bondade. Especialmente o “final feliz” para a protagonista foge do discurso religioso cristão,
em que a transcendência é a salvação total e absoluta. Dessa vez, a situação restringe-se à vida
terrena, aos fogos de artifício do réveillon, à indiferença humana. Não se faz presente a morte
como rito de passagem para uma vida melhor junto a Deus, do que se infere a total ausência
divina. Não há discussão sobre a morte, porque não há discussão sobre a vida, ocorre apenas
uma crueza na existência, nas personagens, no espaço, no tempo, no enredo. As mazelas são a
condição humana inescapável.
A intertextualidade com o conto se pauta então num dialogismo que se mostra no fio
do discurso e que é constitutivo do sujeito, postando-se em sua heterogeneidade. Segundo
Faraco, tratando da conceituação de Bakhtin sobre autor-pessoa e autor-criador, afirma que

[...] todo ato cultural se move em uma atmosfera axiológica intensa de


interdeterminações responsivas, isto é, em todo ato cultural assume-se uma posição
valorativa frente a outras posições valorativas [...]. No ato artístico especificamente,
a realidade vivida (já em si atravessada por diferentes valorações sociais porque a
vida se dá num complexo caldo axiológico) é transposta para um outro plano
axiológico (o plano da obra); o ato estético opera sobre sistemas de valores e cria
novos sistemas de valores (FARACO, 2014, p. 38).

Isso posto, o discurso religioso cristão presente no conto tradicional perde força para a
visão dolorosa da contadora irmã, tão ferida em sua latência de morte, necessitada de
vingança diante da falta de um mínimo de transcendência em sua vida, da total ausência de
uma tábua na qual pudesse se agarrar. Ela não se desloca de si para recontar, ela constrói sua
realidade em seu discurso com a agudeza do mesmo punhal que a feria e transfere essa
agudeza para os ouvidos de sua interlocutora, à qual resta rebater, trêmula, cada passo dado,
cada transformação, tentando se defender da violência que a assolava:

Com neve é mais bonito. [...] Lanchonete? [...] Não se furam as bolhas, elas devem
secar sozinhas [...] Tinha anoitecido! [...] Ele também devia estar com bolhas a essa
altura [...] Que nojo! [...] Podia ter deixado ela entrar pela porta de trás [...] E a avó?
[...] Quando entra a parte da avó? [...] Está tudo errado [...] Essa não é a vendedora
de fósforos. Não é assim que está escrito [...] Dá pra mudar a história dos livros? [...]
Não gostei do seu jeito [...] Sem neve não teve graça. Não parece um conto de Natal
243

[...] Hum. Não fiquei com pena da menina. Ela destrói a cidade [...] No seu não dá
vontade de chorar [...] A gente não sente assim, que é mais justo [...] Que está
errado, que a história não funciona [...] Quando ela morre, eu sinto que o mundo é
injusto. Sinto de verdade [...] Tem razão. Mas não é para resolver, acho. Não é para
isso (LUNARDI, 2011, p. 185-188).

Se o deslocamento da história original feito pela irmã é colado à sua experiência de


vida, sem “um excedente de visão e conhecimento para poder consumar o herói e seu mundo
esteticamente”(FARACO, 2014, p. 41), o mesmo não ocorre com a alocação do reconto na
narrativa por parte da narradora, agora não mais a ouvinte da irmã, mas aquela que recorda a
irmã, colocando-se em sua pele para então sentir-se preparada para feri-la outra vez. Essa
destinação da cena para o desfecho coroa o teor metanarrativo da obra, porque esteticamente
faz-se um casamento entre a designação do episódio; o título — A vendedora de fósforos; a
epígrafe — “Escreverei as lembranças de minha irmã para falar de mim com mais verdade”
(LUNARDI, 2011, p.5); e a dedicatória — “Para a minha irmã, que não gostava de mudar o
final” (LUNARDI, 2011, p.7).
Durante toda a narrativa, a irmã é a tônica: é por uma conversa com ela que a
narradora dá início da trama; é a notícia de sua tentativa de suicídio que desencadeia a
espacialidade percorrida pela narradora; é por meio dela que nasce o gosto da narradora pelos
livros; é espelhado nela que nasce o desejo da narradora de fazer da escrita seu ofício; é a
criatividade nos apelidos dados que fomenta a inteligência e o humor da narradora; as
discussões sobre o fazer literário foram feitas entre as duas.
Assim, são belíssimas as construções poéticas reveladoras de um amor imensurável e
paradoxal entre ambas: “Não, ela não gostaria de ver ninguém. Mas não era bem isso, não era
uma linha reta essa recusa. Ela estava muito deprimida, envergonhada. Sabe que estou aqui?,
perguntei, o coração ouvindo um sim” (LUNARDI, 2011, p.134).
Assim, muitas reflexões sobre o fazer literário estão intrinsecamente relacionadas à
irmã. Uma delas, quando rumina sobre as suas tentativas de suicídio:

Pessoalmente, o que mais me convence é a teoria do instinto: parte da gente, de nós


todos, quer a morte, enquanto a outra parte quer justo o oposto. Quem vence, vence
só pela metade. Por isso há essa nota de tragédia a soar no final de um dia
particularmente feliz, como um aviso, uma lembrança, de que parte de nós está
descontente com tanta satisfação.
Talvez seja também o que explica essa disposição tirânica de escrever logo agora,
no saguão de um hospital, e que tanto mais me inspira quanto mais fundo desço.
Uma vez chamada, contudo, não me retraio. É batendo nessas letras em busca de
sentido que as coisas lá fora podem seguir como estão. Alguém precisa vigiar
(LUNARDI, 2011, p.135).
244

São, portanto, essas lembranças um dos aspectos dominantes na narrativa, desenho do


império da irmã no decorrer da vida da narradora. E, coerentemente, foi a escolha estética
para a forma de desfechar a narrativa, uma cena põe em evidência a irmã e a literatura. Assim
o episódio vem como em suspenso, porque ele não é arranjado como em uma sequência do
enredo, é posto ao final, mas não se constitui como um final, pelo contrário, faz uma abertura
de cortinas, apresentando ao mesmo tempo o protagonismo e a destituição da irmã do lugar de
controle, elucidando um recado: o final redentor existe, e ele está na literatura, que não
resolve nada e que não tem mesmo a função de resolver, pois não é feita para isso. O circuito
título-epígrafe-dedicatória-episódio final, enovelado pelo enredo, expõe, então,
comportamentos que elucidam a metaficção, um fazer que mostra “a relação arisca com as
palavras” (LUNARDI, 2011, p.163), movimento em que, “para criar, é preciso ir ao nada,
nonada” (LUNARDI, 2011, p.162).

4.10 Minha voz, muitas vozes

Perguntas e histórias sem respostas. Sem começo


nem fim. Mas tamanha beleza.
Do narrador entre vozes

Começo este segmento sobre Antiterapias, de Jacques Fux, pelos trechos com os quais
fechei as reflexões sobre a obra, relativamente às vozes discursivas, no segundo capítulo
destes estudos, segmento “Diz-me se lês e te direi se és”:

Para fugir da dor, resolvi ser filósofo existencialista. Grande besteira. Essa pedra que
havia no meu caminho me derrubou. Eu não sabia que todos estes que aí estavam
atravancando meu caminho, eles passarão, eu passarinho. Eu ainda não era um
passarinho, mas passaria (FUX, 2012, p. 113).

Naquele momento, concluía que o narrador atua como leitor e como escritor. Com
suas leituras, demonstra como tem lidado com o rol de obras que o cercam, fazendo emergir
delas novos sentidos. O rol revela um leitor consistente, mas um frágil escritor, cuja matéria
de trabalho está sempre no que é de outro.
245

É essa mesma linha de reflexão que será retomada, o que se explica a seguir. Nas
outras obras estudadas até aqui, foi possível selecionar, com certo cuidado e risco, algumas
condições poéticas que, embora associadas à pesquisa sobre as vozes discursivas e a
espacialidade, apresentam outros nichos passíveis de observação entre vários que serviriam à
tentativa de analisar, investigar, examinar trabalhos que,nos parece, compõem uma vertente
preocupada em ilustrar o escritor como objeto de si. Entretanto, quanto à obra do autor
mineiro, fazer esse movimento de pinça é tarefa hercúlea, tão calcada ela é na estratégia
metaliterária, que discursa em sua inteireza sobre a relação entre vida e literatura, as lacunas
daquela sendo preenchidas por esta.Tantas são as lacunas, que a obra é tomada de veredas.
Ratificando o conceito de metaliteratura, tomamos a palavra deSchøllhammer:

[...] é a literatura que fala de si mesma, que fala da literatura, da leitura ou da escrita,
do processo de diálogo e interação com outras literaturas, de livros com livros, em
um mundo-biblioteca bem ao gosto de Borges. Como se o mundo devesse ser lido
como uma biblioteca, e a biblioteca, qualquer livro, em realidade, vivido como se
fosse um mundo (SCHØLLHAMMER, 2011, p.131).

A obra de Jacques Fux, Antiterapias, conforme já vimos em nossos estudos iniciais, se


estrutura nessa condição metaliterária, de forma que o leitor é tomado por uma sensação de
volume e intensidade agregados à imagem que o narrador pretende construir. O excesso de
referências revela uma voz que não existe em si, frágil na sua condição de escritor. Essa
estratégia está a serviço de um questionamento de si mesmo como leitor, de si mesmo como
narrador que se narra, de si mesmo como escritor, bem como acerca do valor da literatura.
Trata-se, portanto, de um texto claramente assumido como metanarrativo, que inclui
no processo de criação um gesto poético voltado para o narrador, expondo sua fragilidade no
exercício dessa função, tecendo reflexões sobre o fazer literário em meio a fragmentos-
citações, postando-se como um “ser de”, alguém que se alimentada ficção para viver a sua
realidade. As citações despontam, assim, a cada ocorrência da vida, embaralhadas,
sobrevivendo às custas uma da outra.
A exemplo, com relação a Sílvia, uma paixão, sua sensação de ser um nada se
configura pela literatura, após uma declaração de amor mal-engendrada, feita em um
momento em que ele não se sentia preparado. Nega-se a esse amor, jovem demais para expor-
se, para revelar-se, para descobrir-se, num medo de amar tal qual em Fernando Pessoa, cuja
voz é absorvida pelo narrador, que assume para si o conceito pessoano de que “o amor é a
exposição ao que você próprio julga ridículo. Como todas as cartas de amor”. E continua:
246

Eu não estava preparado. Eu não estou preparado. Estarei? E ainda me lembro da


nossa despedida. Sim. E de seu perfume. Sim. Eu quero. Silvinha fez aliá, subiu
para Israel. Sua festa foi descontraída. Brincávamos de pegador em sua casa. E eu,
astrofísico declarado, amor usurpado, idiota uterino, complexado e personagem
literário, fui ao seu encontro para guardar o último e o único toque. Toque de que
ainda me recordo, tão belo e falseado (FUX, 2012, p.19).

Do que se trata o personagem literário que ele afirma ser? Desse que, tendo lido
Pessoa, assume essa voz literária para expor seus sentimentos universais? Desse que se vê
como um personagem dentro da narrativa que nos é narrada, ou seja, o próprio narrador?
Desse que entende seus sentimentos como algo pertencente ao mundo da literatura?
É no emaranhado entre o que é referência e o que é ficção que se instaura a reflexão
sobre o que é literário e o que não é, toque tão belo e falseado de que se recorda. Nesse
deslimite,a realidade a ser mostrada é a do fazer literário, colocado no centro da obra, de
maneira a buscar a participação do leitor que “co-opera”, sob o risco de perder a construção
da obra como tema, percebendo que a coisa narrada é a forma.
O enredo que se vai construindo, sobre as relações judaicas familiares e escolares,
profissionais e amorosas, todas, poder-se-ia dizer, vêm entrecruzadas de citações, forma
preponderante de sentir, interpretar, viver a vida. Assim como em A vendedora de fósforos,
misturam-se as fontes, com referências à cultura alta e pop, porém, nesta obra de Fux,
infinitamente:uma produção de massa (“[...] até pensava que o Show da Xuxa era um
programa kasher”(FUX, 2012, p. 13)); o livro sagrado (“Se é que Deus e Lilith
existem”(FUX, 2012, p. 13)); um clássico contemporâneo (“As relações entre Stephen
Dedalus e seu colégio eram justamente o oposto da minha relação com meu colégio”(FUX,
2012, p. 14)); um clássico atrelado a um pop (“Posso recontá-la como Dom Quixote ou como
Forrest Gamp” (FUX, 2012, p. 16)), ou o mesmo clássico isolado em sua grandeza (“Aqui eu
era um cavaleiro cuja batalha era proteger minha Dulcinéia com honra” (FUX, 2012, p. 17));
ilustres brasileiros, como Drummond, Bandeira, Guimarães Rosa... (“Descansar de minha
seriedade. Meus ombros não suportariam mais o mundo” (FUX, 2012, p. 29); “Andorinha do
Bandeira que passou o dia à toa. À toa! Muito menos queria passar a vida à toa, à toa”; “Eu
era pactário de Deus ou de Riobaldo. Mas será que Riobaldo fez o pacto?”(FUX, 2012, p.
27)); um memorialista (“Só o testemunho de Levi faz esta criança ter existido”(FUX, 2012, p.
27)); um autor contemporâneo brasileiro, Laub (“Tive a minha imponderável queda” (FUX,
2012, p. 47)); a filósofa Hanna Arendt (“Foi enforcado com a banalização do mal”(FUX,
2012, p. 49), “É, de fato, a banalização do mal. Será que os malditos estavam somente
cumprindo ordens?”(FUX, 2012, p. 23)); uma fala popular paródica (“Todos nós desejamos a
247

mulher do próximo, desde que esse próximo não esteja ou seja tão próximo assim”, (FUX,
2012, p. 24)); um dicionário associado a um personagem da literatura clássica infantil
(“Espaço exato descrito no Dicionário de Lugares Imaginários, onde se situava também a
Terra do Nunca”(FUX, 2012, p. 31)); personagens de filmes de massa misturados aos
clássicos (“Talvez um Hannibal Lecter ou um Corleone, mais inteligente e refinado”(FUX,
2012, p. 30)); um filósofo também clássico, Platão (“Um amor mais platônico, daqueles do
mundo das ideias. Que está num plano superior às ideias” (FUX, 2012, p. 23));todos numa
rede imensurável, postos a cada termo, a cada frase, a cada parágrafo, com uma única trégua:
um relato feito à margem dessa biblioteca de inspiração borgeana.
Trata-se de uma voz discursiva, um judeu perseguido pelos nazistas, atormentado por
essa tortura. À parte do emaranhado de citações, essa voz é apresentada em itálico. Darlan
Roberto dos Santos a descreve como sendo “um outro que fala, através do garoto, do
adolescente e do jovem, que está apenas começando a trilhar os caminhos de um “judeu pós-
moderno” (SANTOS, 2013, p. 87). Essas falas funcionam como “uma história dentro da
história”, que podem ser consideradas uma forma paralela de demonstrar um fazer literário
que tenta um estado de pureza, sem as interferências de outras vozes discursivas, alguém que
não se perca do roteiro, uma personagem posta num eixo, em equilíbrio, distinta dde um outro
“afinado com sua época fragmentada, multicultural, híbrida e desmemoriada” (SANTOS,
2013, p. 87). Por conseguinte, promove uma leitura em comparação, deixando claro para o
leitor um outro modo de operar.
Prepondera, no entanto, um mesclado de citações, ao qual está intrincado o
pensamento literário: ora acoplado mesmo à referência implícita ou explícita,ora separado, em
tom mais teórico, faz parte de uma orgia de operações que coloca no centro do texto a sua
dimensão metaliterária. Em ambas as circunstâncias, exibe-se a consciência da criação de
novos sentidos, convergindo a obra para o centro de si mesma, o próprio mundo literário.
A exemplo, tomemos o seguinte parágrafo:

Acho que quando curtimos de fato o momento, o momento é o próprio encanto. A


distância transforma os momentos em sensações. Cheiros. Mas quando mais nada
subsiste de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas
— sozinhos, mais frágeis, porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais
fiéis — o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas,
lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando
sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação. Ficção.
Literatura. Plágio. As memórias não são mais dos fatos, e sim dos sentimentos
vividos, Assim sinto, e minhas sensações atuais são as melhores. As mais perfeitas.
As mais suaves, lindas e inebriadas possíveis. Assim classifico e escolho minhas
lembranças para relatar. Para reviver. Para reconstruir e sonhar novamente. Comi a
mesma coxinha que sempre comia aos sábados no clube judaico. E o edifício imenso
248

da recordação se ergueu. Não era gostosa. Mas, de súbito, a lembrança surgiu. No


mesmo instante em que aquele gosto tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que
se passava de extraordinário em mim. Algo extraordinário se passou em mim. E eu
preciso escrever. Eu tenho que escrever. Escrevo e me lembro. Lembro-me de
flutuar aos sábados, no Dror, nas Machanot. Je me souviens... (FUX, 2012, p.30).

O trecho tem intrínseca relação com a maravilhosa cena de Marcel Proust, em O


caminho de Swann, quando o narrador, aguçando paladar e olfato, “pede [peço] a seu [meu]
espírito um esforço mais, que lhe [me] traga outra vez a sensação fugitiva” (PROUST,
1913/1982, p.32). O resultado é a lembrança sensorial do gosto de madalenas, saboreadas aos
domingos de manhã, em Combray:

E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedaço de madalena


que nos domingos de manhã em Combray (pois nos domingos eu não saía antes da
hora da missa) minha tia Leôncia me oferecia, depois de o ter mergulhado no seu
chá da Índia ou de tília, quando ia cumprimentá-la em seu quarto(PROUST,
1913/1982, p.32).

Ver os bolinhos em formato de concha não havia lhe aguçado a lembrança, o que,
segundo o narrador, talvez tenha se dado

[...] porque, como depois tinha visto muitas, sem as comer, nas confeitarias, a sua
imagem deixara aqueles dias de Combray para se ligar a outros mais recentes; talvez
porque, daquelas lembranças abandonadas por tanto tempo fora da memória, nada
sobrevivia, tudo se desagregara; as formas — e também a daquela conchinha de
pastelaria, tão generosamente sensual sob a sua plissagem severa e devota — se
haviam anulado ou então, adormecidas, tenham perdido a força de expansão que
lhes permitiria alcançarem a consciência. Mas quando mais nada subsistisse de um
passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas — sozinhos,
mais frágeis, porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis — o
odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando,
aguardando,esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em
sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação (PROUST, 1913/1982,
p.32).

A impressionante cena é resgatada pelo narrador de Antiterapias no parágrafo


transcrito anteriormente, uma metalinguagem que a elucida em novo formato. Um registro de
umarecepção do texto clássico, o trecho se faz como uma transposição com formas
pertinentes à distância cronológica em que se dá o diálogo entre os narradores, orientado pela
consciência estética em que se dãoos movimentosde afastamento e aproximação pertinentes à
intertextualidade. O narrador de Fux age, assim, duplamente: refere-se à sua própria
experiência, não tão agradável, de comer as coxinhas de quando frequentava o clube judaico,
enquanto assume uma outra experiência, agora de encantamento, o que se dá pela frequência
ao “edifício imenso da recordação”, não exatamente da experiência pessoal, mas da
249

experiência de leitura. Anuncia isso a adjetivação negativa quanto ao sabor do salgado, que
não caberia em “sensações mais perfeitas. As mais suaves, lindas e inebriadas possíveis”,
estas outras que levam a pôr em reflexão “Ficção. Literatura. Plágio”.
O narrador de Antiterapias assume,por meio desses movimentos interdiscursivos, seu
fazer literário como um exercício meio de plagiar, meio de recriar, meio de criar, repetindo,
renovando, inovando, com Proust, o conceito de distância, de tal forma que as suas sensações
são as do autor clássico, apropriadas, ampliadas. De madalenas a coxinhas, da delicadeza da
tia Leôncia ao serviço de um clube judaico, há um processo parodiante, desmitificante do
papel do narrador. Ao mesmo tempo, edifica-se o poder da ficção, que transpõe tempos e
espaços, provendo algo de extraordinário, a necessidade, urgente, de escrever: “E eu preciso
escrever. Eu tenho que escrever. Escrevo e me lembro. Lembro-me de flutuar nos sábados no
Dror, nas Machanot. Je me souviens...” (FUX, 2012, p.32). Usando essa expressão em
francês, o narrador assume ser um escritor absorvido por outras obras, experiência imitando
experiência, num cruzamento entre ficção e referências, expondo a sua captura do outro, num
espelhamento do ato de escrever. Assim, o narrador desenha-se calcado em outros,
metaficcionalizando-se, tratando, esteticamente, por meio do diálogo com outras literaturas,
da própria literatura, considerando-se parte de uma biblioteca borgeana e assim considerando
o fazer literário. Reescreve-se dessa forma a história da literatura, renovando a leitura dos
clássicos pela revivência de encenações de personagens e suas sensações e experiências.
Plágio, literatura, ficção, enfim.
Além do recurso intertextual, há reflexões da ordem do teórico postas de forma mais
explícita, sempre em função de desenvolver o tema sobre o qual a obra se debruça, a própria
literatura, o que é ou não é literatura, como se dá o fazer literário, metanarrativa, portanto, o
que pode ser exemplificado em:

Aqui seleciono e classifico meus momentos. Aqui elejo o que quero contar e
registrar, separando-o do que não desejo contar, do que não posso contar ou do que
não rememoro para poder contar. Aqui escolho os momentos que quero mudar,
embelezar, comparar, idealizar. Escolho a literatura e a ficção. Cânone. Acredito que
no campo da memória atua a seleção dos momentos do passado e não o seu total
arquivamento. Seleciono alguns momentos do meu passado e os classifico, por mais
absurda que seja qualquer forma de classificação (FUX, 2012, p. 73).

O trecho trata do gerenciamento do objeto literatura pelo autor-narrador, o que ele


seleciona e classifica entre suas experiências, material que muda, embeleza, compara,
idealiza, demonstrando domínio e consciência sobre seu trabalho de escritor. Segundo ele, há
dois campos, o da literatura e o da ficção, mas essa segmentação não se prolonga, não se
250

consegue verificar essa determinação de campos. Inclusive porque, logo a seguir, o narrador
se recusa a qualquer classificação. Argumenta sobre isso usufruindo da classificação de um
ornitorrinco, reflexão tirada de outra busca no arquivo de leituras do narrador. Umberto Eco,
em seu texto “Chamem-no Platypus ou Ornitorrinco, o fato é que ele é muito popular”e
também em sua obra Kant e o ornitorrinco, publicada pelo autor em 1997 e editada em
português pela Editora Record (Rio de Janeiro), em 1998, trata dos estranhamentos que há no
animal e tece reflexões de variada ordem de forma a fazer analogias com outros pensamentos.
Nessa trilha, vêm as apreciações do nosso narrador quanto ao que é literatura. Ele retoma
Perec e Kuhn, o primeiro, em seu cadastro aleatório de eventos durante certo tempo em uma
praça; o segundo, em sua classificação de animais. Ambos, entre o sui generis e o espanto,
servem para tratar do fenômeno literário, analogamente ao ornitorrinco, todos equiparáveis a
uma “metamorfose ambulante” (FUX, 2012, p.74), opção do narrador de não ser aquela
opinião formada sobre tudo. Inclassificáveis as matérias da literatura — a lembrança, a
memória, o ser, a percepção, a possibilidade, o esquecimento —, inclassificável é a literatura.
É desse composto de reflexões metapoéticas que se faz a narrativa, de maneira que
tanto a dose de referências quanto as observações e as ponderações são elementos com os
quais o narrador tece uma obra literária de teor ensaístico, que, não abrindo mão da teoria, faz
prevalecero estético, sem, contudo, adentrar a um aspecto da literatura, a uma categoria
especificamente. Tudo é dito em dispersão, forma compatível a uma obra feita sob uma
abóbada livresca, para a qual o narrador olha, embasbacado. Ilustram essa composição alguns
trechos a seguir.
Neste, estabelece-se a relação entre a literatura e o imaginado e o sonhado, em
oposição à verdade, o factual:

E foram tantos desencontros. Acho que todas as minhas cartas eram cartas de amor.
Mas todas as que recebi, não o eram. Meu amor era tanto que imaginava ser capaz
de amar todas. Profundamente. Elas, um pouco mais maduras ou maliciosas,
declaravam amizade. E aquilo me bastava. Bastava-me o romance imaginado. A
literatura (FUX, 2012, p.77).

Esta foto que me aparece na mente me faz lembrar da primeira vez. Da minha
primeira vez. Já tinha possuído milhares de mulheres em sonho. Na ficção. Nunca de
verdade. E a verdade, qual seria? O encontro carnal. O sexo. [...] Nela doeu no
corpo. Em mim doeu na alma. [...] Não havia amor. O amor é compartilhar. Não
sabíamos compartilhar, trocar, curtir. Cada um sofria o confronto entre a ficção e a
realidade. Entre o sonho e o fato (FUX, 2012, p.82).

Já no próximo trecho, comenta-se a relação entre autor e narrador, deixando claro que
as duas categorias atuam como apenas uma, embora a primeira seja aquela que
251

conscientemente labora a narrativa, escolhendo e moldando a voz discursiva a se manifestar,


inclusive na forma de autor:

O povo escolhido é o escolhido por terem sido eles mesmos — nós — que
escreveram o livro sagrado. Raciocínio lógico. Simples. Direto. Aqui também eu sou
o escolhido pelo autor (apesar de alguns problemas acerca da posição do autor na
literatura,não deixo de ser eu o autor dessa obra). De uma forma ou de outra, eu seria
o autor(FUX, 2012, p.87).

Esta passagem também serve de exemplo, pois, nela, as reflexões teóricas passam
também pela discussão das funções da literatura, distintas daquelas a que uma autoajuda se
propõe, cujas estratégias nunca poderiam ser compreendidas como literatura, tão rasteiro seria
o embuste:

Como fizeram com Borges, em algum instante de descuido: se eu pudesse viver


novamente a minha vida na próxima trataria de cometer mais erros. Relaxaria mais,
subiria mais montanhas. [...]Mas, se pudesse viver novamente a minha vida, na
próxima trataria apenas de ter bons momentos. Porque se não sabem, disso é feita a
vida. Só de bons momentos não os perca agora. Eu não perderei minha vida lendo
versos menores. Não perderei meu tempo lendo autoajuda. Com a Literatura não se
perde a vida nem os momentos. A literatura torna os encontros encantados. Mágicos.
Eternos enquanto durem. Difíceis e belos.
A Literatura deve ser como o sofrimento de Riobaldo. Como a inveja, o ódio, o
escárnio e o amor inalcançável de Dante. Como a morte de Julieta, com tão belos
versos mostrando a dor humana (FUX, 2012, p. 110).

A intensidade da palavra literária é dimensionada pela intensidade das experiências


dos personagens: nada de leveza e apoio moral, mas solidão experiência da/pela linguagem.
Empolgado, o narrador mostra-se um apaixonado pela literatura tanto no âmbito da
poética quanto no âmbito da estética. Daí que suas várias experiências de leitor fazem dele um
compositor de uma peça cujo enredo é cunhado na face teórica, expondo um exercício de
quem gosta de sentir sua língua roçar na de Camões e nas de infinitos outros, numa profusão
de paródias, furtando cores como camaleões, numa demonstração do que pode a literatura. A
proposta da obra é a de que a literatura seja lobo da literatura, compondo um todo cujas
partes, sem o todo, não são partes; e que, sem as partes, não é todo. Seja este, então,
necessariamente profanado.

4.11 Perseguindo a poética


252

Existe uma história, se toda metáfora e toda


memória são insatisfatórias?
Do narrador em busca da chave

Nossos estudos sobre vozes discursivas no que tange à obra Procura do romance, de
Julián Fuks, se deram a partir da primeira frase, na qual se encerra toda a trama: “Trajiste la
llave?” (FUKS, 2011, p. 7). Segundo vimos, a pergunta manifesta uma trivialidade, traduz
uma inquietude, é uma indagação que acena para uma questão da ordem da literatura. Naquele
primeiro momento, então, fizemos reflexões sobre o texto já sob o prisma da metaficção, pois,
novamente retomando Gustavo Bernardo, a obra ilustra “um fenômeno estético autorreferente
através do qual a ficção duplica-se por dentro, falando de si mesma ou contendo a si mesma”
(BERNARDO, 2010, p.9), conforme se viu no fértil diálogo entre as vozes discursivas que
nela se apresentam, narrador, personagem-escritor. Nele, a metaficção aparece como uma
necessidade, uma demanda, uma procura — a procura da forma romanesca, feita
metaforicamente por meio de um personagem-escritor que sente a responsabilidade de se
situar em um mundo em que se questiona o fazer poético, a ausência de renovação estética, a
morte do autor. Fuks ampara a danação do momento, construindo um personagem em
desamparo, tateante, em busca de respostas.
A obra é uma metáfora do tatear, do não saber, uma exibição do rastreamento em
busca do romance dentro de um próprio romance. Esse trilhar se manifesta, entre outros
aspectos, em gestos de adiamento, como se o personagem ficasse andando em círculos,
perdido no seu percurso. Entretanto, concomitantemente, a narração caminha, num processo
que desafia os próprios passos não dados, promovendo a andadura que o narrador tem
dificuldade de cumprir, como se houvesse uma incoerência entre aquilo a que se propõe o
narrador e aquilo que consegue fazer o personagem-escritor. Trata-se de um desvelamento
desse processo encenado por esse mesmo processo, uma metanarrativa, portanto.
Obcecado, o personagem-escritor vive todas as situações, tem todos os pensamentos
voltados para o fazer poético, como se vê pelas estratégias apresentadas, como: a) no
tratamento das categorias, b) na presença da intertextualidade, c) no diálogo com a realidade,
cuja amostragem revela que o meditado é o vivido e o materializado nas palavras.
A exemplo, no que se refere ao enredo, podemos considerar trechos dos dois capítulos
iniciais: o primeiro, a trama em desenvolvimento, a narrativa engendrando-se; o segundo, a
narração, o processo de construção do primeiro capítulo. O produto, então, vem atrelado à
253

produção, de maneira que a metanarrativa vai sendo exposta, condição de existência da obra,
que, dessa forma espelhada, entre outras, constitui-se.
Assim, enquanto, no segundo capítulo, ocorre a reflexão sobre a forma mais adequada
de dar início à narrativa —

Sim, as palavras trajiste la llave lhe parecem significativas o bastante para serem as
primeiras de sua história, sobretudo pela curiosa referência a Drummond, adaptada
com justiça ao espanhol e sem dúvida isenta de qualquer intenção da pessoa que a
operou. Pergunta-se, todavia, se tal remissão não viria a ser óbvia demais para o
leitor erudito, que de partida teria à sua disposição um argumento inconsistente
sobre a pobreza criativa do autor, ou mesmo sobre a escassez de seu repertório de
leituras(FUKS, 2011, p.17-18).

— no primeiro, materializa-se o uso da expressão drummondiana:¿Trajiste la llave? (FUKS,


2011, p.7).
Enquanto, no segundo capítulo, se dão as considerações sobre a escolha do
personagem que emitirá a frase —

Uma solução, cogita, seria maquiar a referência e a um só tempo enriquecê-la,


inserindo na boca da mulher um ¿Has traído la llave? ou trocando a forma de
tratamento e passado a utilizar ¿Usted ha traído la llave?. Qualquer uma dessas
formulações cumpriria a função semântica almejada e ainda acrescentaria uma
instigante ambiguidade, considerando que as palavras ditas em espanhol estariam
atingindo ouvidos mais afeitos ao português. O caso é, no entanto, que nenhuma das
formas lhe soa natural o bastante para uma primeira frase e, afinal, vale pensar,
talvez ambas estejam distantes demais do original para realizar qualquer
alusão(FUKS, 2011, p. 17-18).

— no primeiro, presentifica-se uma personagem feminina que emite a frase: “Pergunta-lhe a


porteira, mantendo o tronco rijo e apressando as pequeninas pernas na direção do sujeito que
vai se encerrar, taciturno, no elevador”(FUKS, 2011, p.7).
Enquanto, no segundo capítulo, são expostas as inabilidades do personagem-escritor
sobre a arquitetura da obra —

Quando volta a apertar o botão do quinto andar, a indecisão o toma por completo e
lhe exige um grande esforço na busca por soluções, que ele empreende com os olhos
fechados e a mão esquerda cobrindo a testa numa posição um tanto artificial, que o
impossibilita de assistir ao espetáculo geométrico do elevador e de rememorar toda a
reflexão (FUKS, 2011, p. 17-18).

— no primeiro, ocorre a encenação dessa falta de destreza, sendo, portanto, ele mesmo aquele
que reflete e constrói e aquele que é construído, um duplo de si mesmo — é personagem que é
um escritor que reflete, titubeantemente, sobre a construção de um enredo, em processo de
254

narração, e personagem de si mesmo, que titubeia no decorrer da narrativa, interno a ela, um


conjunto em que se narra uma narrativa narrada:

Tendo estabelecido entre eles uma barreira dupla de metal, que só não se assemelha
à de uma prisão por se constituir de ferros entrelaçados, e não paralelos, ele por fim
pode responder: mas não responde. Limita-se a mover a cabeça de cima a baixo uma
única vez e, sem entender a própria pressa e a habilidade com que põe a máquina a
funcionar, pressiona com força exata o botão do quinto andar(FUKS, 2011, p.7).

A relação entre os dois primeiros capítulos se propõe — e ilustra bem — a esse


movimento estrategicamente lento da narrativa, uma morosidade que visa a elucidar a
impotência da autoria de dar curso à narrativa. Isso principalmente se pensarmos que o
primeiro capítulo é aquele em que se delimita o enredo, a ficção, enquanto o segundo é o da
metaficção, aquele outro lado do espelho, o lado duplicado. Assim, quando se espera um
segundo capítulo que continue dinamizando a narrativa, vem algo que a emperra, uma parada
obrigatória, que constrange não só o leitor a suspender seu movimento de expectativas,como
também a retroceder, para que possa fazer as relações necessárias e não perder a proposta
dúplice da obra.
Por meio dessa estratégia, o leitor vê-se obrigado a entrar em um jogo de fingimentos,
pois também ele tem sua parte de fingimento, porque deve aceitar o drama encenado do
escritor — o de quem não sabe o que fazer. Mas é compelido a fazer não só o movimento,
precisa se ajustar a dois: o da leitura da ficção e o da leitura da metaficção, compreendendo
que o personagem, enquanto diz que não sabe o que fazer, vai fazendo. Isso ocorre por meio
de atrasos que retardam o andamento do enredo, porém configuram a intenção metanarrativa
que a ele subjaz. Dessa forma, os dois lados da trama vão sendo envolvidos por uma modorra
que ativa o leitor para a construção não apenas de um personagem-escritor perdido nas suas
ações, mas também a de um personagem-escritor que precisa contar sua perdição, sendo esse
contar a sua salvação.
No que se refere à intertextualidade, outra fonte para a construção da
metanarratividade a que se propõe a obra, podemos tomar como exemplo a cena em que o
personagem-escritor divaga sobre “a mercadológica mania da reprodução”(FUKS, 2011,
p.34). A reflexão sobre isso é deflagrada pela imagem de um casulo “menor e mais esguio do
que indicaria sua unitária, arquetípica memória” (FUKS, 2011, p.34), que faz brotar de algum
lugar a expressão “graciosamente delgado” (FUKS, 2011, p.34). Essas palavras, as quais ele
denomina estranhas, são uma alusão à obra de Lukács, Teoria do romance, no capítulo em
255

que o teórico discute o “Problema da filosofia histórica das formas”, especificamente sobre a
constituição da totalidade que seria ou não possível em uma obra literária:

[...] a fim de preencher o casulo graciosamente delgado desse pequeno mundo, o


escritor se vê forçado a inserir elementos estranhos, e ainda que isso fosse sempre
tão bem-sucedido quanto em momentos esparsos de extremo tato no arranjo, disso
jamais resultaria uma totalidade (LUKÁCS, 2000, p.54, grifo nosso).

Tendo em si uma memória livresca que ele teme ter sido desencadeada pela imagem
do casulo, o personagem-escritor preocupa-se com a cópia, o plágio, pois “sente que palavras
lhe surgem já empacotadas, com uma cadência predefinida e o conjunto pronto demais para
que nelas possa confiar”. Ou seja, ele não reconhece, nas palavras de Lukács, as suas. Por
isso, “sabe bem: o melhor a fazer é tratar de olvidá-las, sem qualquer remorso, e deixar que,
se verdadeiras, ressurjam em contexto diverso, explícitas em sua procedência” (FUKS, 2011,
p.34). O curioso é que temos em mãos exatamente o contrário, ou seja, as palavras não foram
olvidadas e estão sendo, sem qualquer remorso, realocadas em contexto diverso, sem que
esteja explícita sua procedência, o que já vem justificado:

Mas da boa imagem sem dúvida pode se valer, pois, dada sua carência de variações
em um mundo tomado pela mercadológica mania da reprodução, não há mal
nenhum na intenção e no efeito de se aproveitar do que outros narraram, com tão
diferentes termos e tons(FUKS, 2011, p.34).

Embora, assim como no original do filósofo húngaro, o objeto em discussão seja a


poética, a imagem do casulo passa a ser objeto de reflexão aplicada, algo que se ativa na
construção da metáfora com que o personagem-escritor revestirá seu personagem (que acaba
por ser, como se tem visto, ele mesmo, um duplo atuante). O emprego se dá semque haja
explicitação de sua procedência, como convém mesmo ao texto literário, que, sem licença, se
apossa de outros discursos como parte de seu corpo natural, sem dever satisfações à fonte ou
ao leitor, inclusive propiciando a este que cumpra seu papel, aquele do agente “que persevera,
tranquilo, no deciframento dos signos. Que constrói o sentido no isolamento e na solidão”
(PIGLIA, 2006, p.130).
Dessa forma, no cerne das reflexões sobre a memória livresca, está a discussão sobre
autor e leitor e sobre as dificuldades do fazer poético por esse alguém que é um leitor, o que
continua se dando pelas referências, particularmente, aJames Joyce e Kafka, cujas
articulações se conjugam para a construção da narração e da narrativa:
256

[...] mas não se trata disso; o caso é que há tempos sua história tem se desenvolvido
na mente e já quase passa da hora de começar a averiguar a possibilidade de um
segundo personagem, para desentranhar uma série de reflexões e situações que só
poderiam decorrer do contraste e até para livrar os leitores do calculável estado de
prostração de que poderiam ser acometidos. Talvez fosse tempo, considerando
também a necessidade de concisão que a nova época lhe exige, de deixar seu
Stephen Dedalus ser sucedido por algum candidato a Leopold Bloom ou então, para
não perder de vista a ideia encerrada no casulo, de, por fim, fazer entreabrir a porta
do quarto de seu Gregor Samsa, para o ingresso desestabilizante de uma irmã
desesperançosa, de pais que sejam mais do que meros espectros travestidos em
lençóis puídos, de um chefe que amealhe em sua face toda a opressão que o trabalho
sempre lhe provou, mesmo estando ele no exórdio de sua vida laboral.
“Rá”, ri alto da própria presunção. Como se atreve, ainda que na imensidão
incontida dos pensamentos, à grandiloquência de comparar seu inominado sujeito,
carente de rosto, de voz, de existência, carente de qualquer palavra escrita, com
personagens tão x, tão y, tão maiores do que qualquer adjetivo que lhes possa
atribuir? (FUKS, 2011, p.35).

O diálogo com os três personagens da alta literatura se dá em virtude da necessidade


de já haver escolhas de personagens a serem construídas, qual delas e que perfil seria
adequado à sequência de fatos: se Stephen Dedalus, um erudito; se Leopold Bloom, típico
homem de classe média de Dublin, um homem da multidão, algo cômico e trágico; se Gregor
Samsa, em sua aterradora desconstrução. Todos eles, exaltados em sua nomeação, referências
certificadas, são colocados em situação oposta à do personagem-escritor (ou à de qualquer
outro a ser criado),este instaurado na pequenez de um projeto tomado por algo grau de
pessoalidade, a ponto de tornar desnecessário qualquer movimento de perseverança ou de
deciframento por parte de algum leitor, pois as alusões se restringiriam a familiares e amigos
e não alcançariam a biblioteca universal com sua infinita teia de associações. Apesar disso, as
reflexões continuam, com um personagem-escritor teimando em usufruir da performance de
Joyce e Kafka, tomando-os como reportações para subsidiar sua “imensidão incontida dos
pensamentos” e seu estilo feito de “entraves, impedimentos, embaraços e interrupções”. Isso
enquanto, paulatinamente, à revelia de todas as citações eminentes, adentra à cena o urgente e
diminuto personagem, um menos x, menos y, tão menor que qualquer adjetivo que lhe possa
atribuir:

Vai dar com ela, certificando sua realidade, quando a pequena cabeça morena ainda
se pressiona, olhos e nariz escondidos contra uma barriga saliente que tenta se
disfarçar em listras verticais de camisa escura, encimada por um rosto igualmente
gordo que se faz mais redondo à medida que o queixo se aproxima do peito. A
papada semicircunferente que então oculta o pomo de adão vai aos poucos se
desfazendo — como uma lua minguante em suas últimas noites — e Sebastián vai se
tornando capaz de reconhecer um e outro traço no rosto alheio, algo no nariz e nas
sobrancelhas, esforçando-se para ignorar seu tom grisalho e os talhos que socavam a
pele e o baixo dos olhos, assimetrias e simetrias em relação à papada desaparecida
(FUKS, 2011, p.36, grifo nosso).
257

A serviço de uma revisão poética, a intertextualidade funciona mesmo conforme


encenação do fazer literário, dos movimentos feitos por um escritor para dar conta desse
exercício, dos anseios e frustrações diante daquilo que é legislado como literatura e como
literatura de qualidade. Ele faz,similarmente a um jogo de esconde-e-mostra, exibindo o seio
da construção, a fantasmagoria de autores e personagens que, estando nas estantes, promovem
as fantasias do escritor. A tentativa frustrante de mimetizar os clássicos se materializa nesses
pensamentos que antecedem a obra e são a obra concomitantemente. Assim, Samsa e Bloom
são “re-tecidos” em outras circunstâncias, exigindo do personagem-escritor deslocamentos
que ele encena nem sempre desejar fazer, o que, entretanto, resulta em sua matéria final, tudo
em representação. Também são “re-tecidos”pelo leitor em outras circunstâncias, pois este
deve transitar pelo arquivo cultural que lhe pertence além daquele presente no duplo em que
se constitui a obra, fazendo as associações necessárias.
Outra matriz que compõe a metanarratividade presente na obra Procura do romance
(FUKS, 2011) é o diálogo com a realidade, aspecto que denuncia o conflito vivido pelo
personagem quanto ao papel social de sua função de escritor, questão que vai dialogando com
o enredo:

Não, Sebastián está cansado de repetir seus vícios. A cada vez que despeja sobre o
outro sua pesada carga de juízos, a cada vez que vasculha seu repertório depreciativo
em busca de cismas plausíveis, o que faz é ausentar-se da condição de alvo principal
das críticas, é furtar-se à verdade mais dolorida. Tanto melhor resumir o processo e
questionar-se: será ele próprio um expoente da alienação e do descompromisso? [...]
Bastaria observar a arbitrariedade com que enquadra e domestica seus sentidos para
compreender quão pouco lhe interessa o mundo, a esquina, o outro, se contrastados
consigo mesmo, com seus próprios domínios (FUKS, 2011, p.124-125).

Suas reflexões sobre o compromisso da literatura com a política, se a literatura deve


ou não ser engajada, vão se entrelaçando às cenas de rua, às referências da situação política
vivida na Argentina, quando “[...] em cada beco indistinto, em cada barraco mal iluminado,
mulheres e homens sobrevivem em condições inauditas”, enquanto ele “[...] do alto de sua
formação humanística, se desperdice [ça] em cavilações infrutíferas sobre sua vida sem
conflitos e sobre uma retidão essencial à criação artística” (FUKS, 2011, p. 125).
Implacável consigo mesmo, infiltra-se na narrativa por meio de um discurso indireto
livre em que declara sua falta de empatia, sua covardia social, a ponto de ter-se vangloriado
“da naturalidade com que negara à criança qualquer auxílio e voltasse [voltado] a seu
monólogo mudo e descontínuo, a sua lamúria insensível, a seu catálogo habitual de
mesquinharias” (FUKS, 2011, p.126).
258

Notabilizando ainda mais essa inclemência, apresenta, comparativamente ao discurso


literário, um discurso não literário, oriundo de uma das mães da Plaza de Mayo:

Otros, ellos, antes, podían, parece indicar uma insegurança, uma propensão ao
titubeio. Mas seu rosto logo adquireo fervor que marcara seu prelúdio contundente.
Nos estafaban, nos subyugaban, nos explotaban, nos relegaban al silencio. Esto ya es
pasado, no el presente y no el futuro. No los estafamos y no los estafaremos, no los
subyugaremosm no los explotamos y no los explotaremos, pero tendrán que oír
nuestras protestas, tendrán que escuchar y aguantarse como puedan, porque, esto si,
de ellos será la impotência, de ellos será la confusión, El aturdimiento, la
intermitencia, de ellos será el silencio (FUKS, 2011, p.128).

Apaixonado, ardente, o discurso opõe-se a todo o comportamento discursivo do


personagem-escritor: enquanto a fala da mãe “parece indicar uma insegurança, uma
propensão ao titubeio”, mas logo em seguida se arvora de determinação e arrebatamento, a
dele se prolonga gaguejante; enquanto a fala da mãe é direta, com voz dissonante, a dele é
subjugada à do narrador, emergente em discursos indiretos livres; enquanto a fala da mãe é
intraduzível, a dele é permeada pela voz do narrador.
Posto entremeado à narrativa e à narração, o texto em espanhol arranca o personagem-
escritor de seu alheamento e dá-lhe um tempo de empatia e admiração. Assim se opõem o
mundo referencial e o mundo da literatura, este carente de uma postura, algo da autenticidade
e da vivência.
Saindo como sai, andando a esmo como anda, o narrador-escritor adia o momento de
escrever. Angustiado com o que não é, lança o olhar para fora de si, onde estão os assuntos
que o fariam testemunha legítima de seu tempo (FUKS, 2011, p.127), um tempo de lutas e
sofrimento social. Mas, ante eles, não se encontra, porque falar deles não seria falar de si, e
ele somente consegue fazer isso todo o tempo, “urdindo apenas seus próprios dramas sovinas,
indiferente aos ecos, decerto audíveis, dos torturadores gritos” (FUKS, 2011, p.125).
Sente-se um arruinado, sem dar conta de uma renovação estética e/ou engajada,
procurando a si mesmo na procura do romance, demonstrando que a motivação do exercício
metaficcional está numa procura universal de si mesmo, o que nos leva a, mais uma vez, nos
utilizar das palavras de Gustavo Bernardo:

[...] podemos apontar como característica principal da metaficção a consciência de si


ou autoconsciência, mas uma autoconsciência socrática que procura saber tão-
somente o quanto não sabe — em outras palavras, o quanto o conhecimento possível
é caleidoscópico. De dentro da literatura, portanto, a metaficção tenta responder às
perguntas mais complicadas da filosofia: 1) sabemos quem somos?; 2) sabemos se
somos?; 3) a consciência pode ter consciência da consciência? (BERNARDO, 2010,
p.45).
259

Na obra de Fuks, essa busca de respostas universalmente íntimas se adensa na procura


do romance, porque de seu pensamento romanesco tudo brota, dele surgem personagens,
espaços, tempos, trama, como um fiat lux em que o enredo é dominado pela palavra criadora,
pelo exercício da poética, que é contada, narrada, descrita.
Haroldo de Campos (1976), em seu estudo “O texto-espelho (Poe, engenheiro de
avessos)”, afirma que “o “fingimento” do poeta-histrião é uma “questão eminentemente de
linguagem” (CAMPOS, 1976, p. 25). Continua o teórico afirmando que “no espaço fictivo, o
poeta não afirma nem nega, ele configura na materialidade da linguagem a sua emoção, não
importa se real ou imaginada” (CAMPOS, 1976, p.26).
É a presença dessa condição que tentamos demonstrar haver nas dez obras em estudo,
tecidas em um movimento de evidências por cima dos panos, no espaço da criação literária.
Encontram-se nelas um arsenal de buscas e interrogações sobre a própria condição do fazer
literário, sob sua dimensão teórica ou crítica, cada uma com suas peculiaridades, abrigando os
estudos feitos sobre narrador e espaço, num tratamento empenhado na imagem do escritor que
tem a si como seu objeto, às voltas com suas dúvidas, seus anseios, suas obsessões. E isso, no
amplo campo da poética, acaba por se dar em abordagens distintas, quer seja na relação com o
referencial, com a tradição, com a função, com o leitor ou com os gêneros literários. Assim,
no decorrer do plano de conteúdo de cada uma das tramas, são expostas insatisfações quanto à
escrita ficcional, transpostas para o plano da expressão, cujo manejo da narração faz com que
a linguagem seja protagonista dessa vertente literária.
260

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta destes nossos estudos foi a de investigar a presença de um narrador que


problematiza a escritura sob condições estéticas que ressignifiquem essa categoria, tendo em
vista o tempo histórico em que se inserem, a ponto de formarem uma vertente cuja poética
represente a contemporaneidade. Para isso, tomamos como objeto de investigação um corpus
que comunga três recursos estéticos. Um deles, as peculiaridades das vozes discursivas que se
fazem presentes, nas quais foram constatadas os outros dois: um estado comum de
desconcerto e uma recorrente insegurança ante seu próprio papel. O desconcerto se reveste de
instabilidade, algo ilustrado nas relações com a espacialidade. Quanto à insegurança do/no
próprio exercício discursivo, verificou-se ser ela o tema tratado por essas vozes, intrincada ao
próprio fazer poético.
Sendo assim,no decorrer de nossos estudos, foi-se confirmando que, embora tratados
em segmentos distintos, os três centros de investigação se manifestam de maneira
indissociável, localizados na tessitura das tramas: nossa primeira impressão quanto à presença
de vozes discursivas em constante mal-estar encontrou respaldo na percepção de que tal
sensação promovia movimentos geográficos e emocionais constantes e múltiplos, algo típico
de quem está desacomodado,uma inquietude externa que traduzia algo interno; também se
pôde constatar que o incômodo sentido ia sendo eleito como o seu objeto de reflexão. Essa
tríade desconfortada e desconfortável se conjuga a um tempo histórico que permite e promove
muita inquietação, digamos que ela é, portanto, um produto da cultura que a condiciona.
Pudemos observar,em cada uma das 10 obras investigadas,que essa consumição
destitui de seu lugar de garantia a primeira e a terceira pessoas do discurso. Elas aparecem
embaralhadas, sufocadas, destronadas. Dessa forma, ocorpus estudado anuncia um novo valor
semântico para a categoria narrador, pois este tem um comportamento discursivo distinto, não
nítido, instável, sem ancoragem, ou, pelo menos, sem ancoragem em portos seguros, portanto,
não cabe nas descrições tradicionais. Acentua isso o fato de que ele se manifesta em
deslizamentos com outras vozes discursivas, como autor e personagem, seres de referência
e/ou seres de papel, por vezes, separados por uma linha tênue, de maneira que nem sempre é
perceptível sua separação ou união. São vozes discursivas cruzantes, em rede, que revelam
narradores múltiplos.
Essas reflexões foram amparadas em nossas considerações iniciais sobre “um tempo”,
quando fizemos um breve cotejo entre estudos realizados por alguns filósofos sobre a
261

contemporaneidade, cujas concepções descrevem um cenário no qual se engendram as vozes


discursivas presentes nas obras estudadas. Entre os filósofos, sobressaem Zygmunt Bauman e
Giorgio Agamben, que chegam ainda mais perto do corpus selecionado.
Segundo o filósofo polonês, um traço permanente tem se apresentado na construção
deste momento— o derretimento dos sólidos. Esse entendimento é oriundoda sua percepção
de que, na modernidade,

[...] a sociedade [vem] dando forma à individualidade de seus membros, e os


indivíduos [vêm] formando a sociedade a partir de suas ações na vida, enquanto
seguem estratégias plausíveis e factíveis na rede socialmente tecida de suas
dependências.
A apresentação dos membros como indivíduos é a marca registrada da sociedade
moderna. Essa apresentação, porém, não foi uma peça de um ato: é uma atividade
reencenada diariamente(BAUMAN, 2001, p. 39).

Essa reencenação se deu, por exemplo, pela desacomodação das pessoas ao limite de
sua individualidade, o que as fez sentir a necessidade de se reacomodarem, passarem a “viver
‘de acordo’ (não ficar atrás dos outros), de conformar-se ativamente aos emergentes tipos
sociais de classe e modelos de conduta, de imitar, de seguir o padrão, de aculturar-se, não sair
da linha nem se desviar da norma” (BAUMAN, 2001, p. 49), promovendo a necessidade da
sensação de pertencimento. No seguimento, as classes menos favorecidas foram
impulsionadas a tratar de si coletivamente, sendo essa uma outra reacomodação, agora
oriunda das privações a que os indivíduos estavam sendo submetidos e incapacitados para se
autoafirmar nessa condição, pois estavam cerceados pelos seus próprios e limitados recursos
individuais.
Nos tempos de “modernidade reflexiva” ou “segunda modernidade”, conforme nomeia
Bauman, retomando a conceituação de Ulrick Beck (BAUMAN, 2001, p. 42), não têm sido
fornecidos “lugares” para a reacomodação, “e os lugares que podem ser postulados e
perseguidos mostram-se frágeis e frequentemente desaparecem antes que o trabalho de
‘reacomodação’ seja completado”. Pessimistamente, o filósofo afirma que, “na terra da
liberdade individual de escolher, a opção de escapar à individualização e de se recusar a
participar do jogo da individualização está decididamente fora da jogada” (BAUMAN, 2001,
p. 43).
No percurso dessas reflexões iniciais, chegamos às considerações baumanianas sobre
as relações entre primeira modernidade e segunda modernidade, associadas à metáfora de dois
navios, denominados, conforme vimos, de Capitalismo Pesado e Capitalismo Leve: aquele,
cujos passageiros confiavam no comando da tripulação a alcançar um destino; este, cujos
262

passageiros descobrem que não há piloto nem roteiro de bordo nem regras que permitam a
salvação. No momento, então, não há sociedade, não há conjunto, de tal forma que o
individualismo passa a ser cada vez mais a única tábua em que se pode segurar (exemplar é a
frase de Margaret Thatcher: “Não existe esse negócio de sociedade”). E a isso o filósofo
também acaba por associar a relação entre a esfera pública e a privada, a primeira dominada
pela segunda, a ponto de os problemas privados de pessoas públicas serem mais relevantes
que os problemas públicos das pessoas privadas, de tal forma que se vive avidamente em
busca de receitas de vida oriundas de pessoas públicas, vendo nelas uma forma de realização,
que é objeto de querer do indivíduo que as recebe. O imediatismo dessas receitas são
exemplos de bens promovidos pelo capitalismo, que nutrem o hedonismo, algo que caminha
na via contrária de tudo o que demanda dedicação e, portanto, tempo.
As ideias de Bauman aqui selecionadas, sintetizadas e relacionadas possibilitam
compreender o desconforto das vozes discursivas estudadas. Vimos, em cada uma delas, um
cunho extremamente subjetivo. São voltadas profundamente para si mesmas, portanto, são
seres praticantes desse individualismo, construídas em um tempo em que a vida se organiza
com fins de produção, em torno do consumo, “orientada pela sedução, por desejos voláteis”,
nada sólidos e permanentes, em que “as coisas deliberadamente instáveis são a matéria-prima
das identidades”. Entretanto, as narrativas não se constituem como “meramente ensaios de
retórica pública montados pelos meios públicos de comunicação para “representar verdades
subjetivas’” (BAUMAN, 2001, p. 101). Diferentemente disso, as obras simulam essa
conjuntura e, nessa representação estética, escancaram essa condição contemporânea. Seu
desajuste se engasta na pele desse movimento temporal, entretanto,exibindo ali uma crosta,
palpável, visível, sensível, destoante. Por conseguinte, embora não se caracterizem como
textos de intenção denunciante, com vozes discursivas carregadas de engajamento, são
desconfortantes, revolvem-se nessa condição profundamente subjetivada, porém de forma a
refleti-la como fazem os espelhos de antigos parques de diversão, de tal maneira que aquilo
que deles emerge não se alinha à comodidade que parece estar assegurada pelo imediatismo.
Fazem um movimento contrário ao recorrente: Se o princípio do prazer parece ser o
lenitivo para esses tempos de instabilidade, as obras o mostram sufocante e tornam-se elas o
lenitivo. São produções que parecem ser empurradas pelo movimento histórico, mas que usam
o freio e fazem curvas de deslocamento. Temos, então, vozes discursivas contemporâneas no
sentido proposto por Agamben: mostrando-se instáveis, descentradas — como convém a seu
tempo—, não se harmonizam com ele; incomodadas com essa sua constituição, aproximam-se
dele e dele se distanciam, analogamente ao estilista utilizado como metáfora pelo filósofo
263

italiano: em um lapso de tempo, em um lapso de moda, lança algo que deverá estar na moda,
mas nunca é da moda.
O jogo de aproximação e afastamento é instaurado pela inovadora linguagem do
narrador, um metanarrador por excelência, transmudado em vozes discursivas que: dialogam
metaficcionalmente entre si e com teorias que têm tratado de sua condição, evocando-as e
questionando-as; desprendem-se de um espaço, extrapolando essa desamarração em detalhes
espacializantes; são scriptocêntricos, manifestos em vários sujeitos, por vezes associados—
escritor, leitor, personagem, ghost-writer, outro narrador, uma língua...
A metaficcionalidade é o manto que recobre o desenvolvimento das narrativas,
porque, para a exposição do seu fazer poético, em tempos de liquefação dos sólidos, as obras
esteticizam duas outras ocorrências — vozes discursivas e espacialidade— encenando-as
melindradas e desalojadas. Assim, atreladas à metaficcionalidade, ambas são postas em
discussão de forma a evidenciar a engrenagem das narrativas, fazendo da ficção uma espécie
de teoria da literatura.
Em Divórcio, de Ricardo Lísias (2013), vimos que o narrador se apresenta como um
escritor em fase de intensa instabilidade, desnorteado porque encontra considerações
negativas sobre ele no diário da esposa. Falando exaustivamente sobre si, o metanarrador
relata sua passagem por estágios emocionais. Primeiramente, sente-se dissolver, ficando sem
pele, sem proteção. Aos poucos, recupera-se nas corridas pelas ruas, tão sem identidade
quanto ele. Entre a sua quase morte e o seu revigoramento, discute sobre a morte e o
revigoramento da literatura. Trata-se de uma metaficção. Ele discorre sobre os efeitos do
divórcio sobre si, sobre a dificuldade de reerguer-se, sobre sua recomposição. Enquanto corre
pelas ruas, vai também compondo uma discussão sobre o fazer literário, sobre sua relação
com a realidade, sobre o domínio do autor sobre a construção da obra:

Nas minhas anotações, a segunda semana depois de sair de casa foi tomada por
ruídos caóticos e pelo enorme medo de ter enlouquecido: tive mesmo certeza de
estar vivendo um dos meus textos. Cheguei a me concentrar para mudar o enredo,
refazendo folhas de rascunho, remanejando esquemas e sobretudo mudando as
personagens. No final do capítulo, porém, voltava sempre o Festival de Cannes de
2011, Lars Von Trier dizendo que compreende Hitler, as guerras da libertação da
África e o diário (LÍSIAS, 2013, p.46).

A voz discursiva manifesta no trecho exemplificador está incrustada na metaficção,


porque se faz no duplo enredo/reflexão teórica, servindo a ambos. É um narrador que se conta
como um escritor dominado pelas referências, estas que perturbam a ficção, inserido em uma
sociedade cujos valores também são postos em questionamento: “Ao encerrar o treinamento
264

para a São Silvestre, já tinha percebido que na verdade minha ex-mulher é apenas uma versão
malfeita e ansiosa da classe alta brasileira. Ela adora dizer que teve a infância pobre: subi na
vida trabalhando” (LÍSIAS, 2013, p. 54).
Transeunte inquieto de um espaço de anônimos, as ruas, o narrador-escritorvai
cabendo nesse não lugar contemporâneo, indo a ele recorrentemente, topando com estranhos,
presenças meramente físicas, uma neutralidade individualizante, que atende a essa condição
contemporânea e a ilustra:

Penso em gritar: alguém está me vendo? Mas, por algum motivo, apuro os ouvidos.
Tudo continua silencioso, como sempre gostei. Estranho, devo ter raciocinado, é o
pior momento da minha vida e o mundo me oferece o que sempre procurei. Sinto
uma tranquilidade esquisita (LÍSIAS, 2013, p. 27).

Andar, correr, percorrer para criar pele, por causa da raiva, para se acalmar. De mil e
uma utilidades, a rua passa a ser também espaço de escrita:

Eu nunca tinha escrito um texto na rua e com tanta gente perto. Quando fixei meus
treinos em meia hora de corrida e uma de caminhada, já tinha o primeiro rascunho
do conto “Divórcio”. Durante a revisão, em um dos dias em que a Ramona não
apareceu, percebi que estava muito vulnerável. É o assunto do texto (LÍSIAS, 2013,
p. 106).

O trecho ilustra a constituição metaficcional que alinha essa obra: um metanarrador,


transitando em um não lugar, na espacialidade que o (des)abriga, tratando de si, assumindo
que a obra (com escritas elaboradas nesse percurso em que as pessoas e as coisas se diluem) é
ele e sua vulnerabilidade. Trata-se de uma obra, então, ficcional teorizante, que
estrategicamente dá relevância ao desconforto vivido, pois a suscetibilidade é exposta não só
porque o narrador-escritor assim o afirma, mas porque a escrita se dá enquanto corre, em
situação inadequada para o ofício. A obra metaforiza uma reação à futilidade, ao anonimato,
ao que é emergente na vida contemporânea, pois trata de alguém que parece amoldado a esse
tempo, mas, ao mesmo tempo, deslocado e desconfortado.
Ocorre o mesmo em Ribamar, de José Castello(2010), embora com estratégias
distintas, conforme tratamos nos capítulos anteriores. Seu narrador retorce também o tempo
de liquidez, num jogo de ajuste e desajuste. Vivente nele, entrevado na relação com o pai e na
incapacidade de escrever, movimenta-se por gêneros e faz travessias geopessoais,
manifestando-se numa autorreflexividade desacomodada, desconfortável. O trânsito das
coisas junto ao trânsito do narrador, junto ao trânsito da literatura, tudo conflui numa narrativa
que convida o leitor a ler seu avesso. Dessa maneira, até elementos mínimos, aparentemente
265

fora da discussão metaliterária, são propostas sutis de um diálogo com a poética, sob o qual
uma voz discursiva desassossegada circula. O primeiro parágrafo deste trecho, por exemplo,
possibilita que se pense a respeito das relações entre escritor e leitor, do trajeto entre eles. Sua
sequência adentra na discussão, mostrando os desvios da leitura, o poder do leitor, a autoria,
os efeitos de sentido:

As figuras do remetente e do destinatário só funcionam nas agências do correio. Foi


o que aprendi quando A., um amigo distante, me telefonou do Rio de Janeiro para
me fazer uma pergunta.
A. é escritor e conhece a gravidade das palavras: “Você lembra se, no Dia
dos Pais de 1973, você deu a seu pai a Carta ao pai, de Kafka?”
Sempre fomos amigos distantes. Só nos aproximamos um pouco nos anos 90. Como
ele poderia saber?
Sem esperar minha resposta, leu a dedicatória: “Para o papai com um beijo e o amor
do seu filho José”. Sob ela, a anotação: “Dia dos Pais. 73”. E mais nada.
É verdade: no Dia dos Pais do ano de 1973, eu lhe dei um exemplar da Carta ao pai,
de Kafka. É uma dessas lembranças nítidas, porque fracassadas.
O presente carregava segundas intenções. Era um período em que mal nos
falávamos. Nem mesmo falar sobre a dificuldade de falar eu conseguia.
Comprei o livro de Franz Kafka, por acaso, em uma papelaria de Copacabana. A
capa negra me atraiu mais que o título, que me pareceu desprezível. Eu o li com
grande dificuldade, mas espanto.
Ao se dirigir a seu pai, Herman Kafka, Franz não só me roubava minhas palavras,
mas usurpava meu lugar de filho. As mesmas palavras que, em minha garganta,
provocavam feridas que me impediam de falar, ditas por Franz, descerravam a
verdade.
Eu não precisava mais buscar palavras para as coisas que tentava dizer. As palavras
estavam ali, ainda que, em grande parte, me escapassem. Emitidas por um grande
escritor, o que não só o engrandecia, mas autenticava. Noventa e duas páginas que
resumiam o que, durante anos, eu tentei inutilmente expressar.
Peguei o livro, autografei-o e o larguei sobre sua mesa de cabeceira. Com esse gesto,
revidava às palavras que Franz ouviu de Hermann, quando lhe deu de presente o
primeiro exemplar de Um médico rural, único livro que dedicou ao pai
(CASTELLO, 2010, p. 21-22).

A frase inicial, um comentário corriqueiro, expõe duas categorias— as de autor e


leitor—, que, assim como as de remetente e destinatário, não funcionam. O que desencadeia
essa interpretação é todo o repertório de lembranças e reflexões que são aguçadas pelo
telefonema do amigo. Por que não funcionam? As respostas podem ser: não há
correspondência entre um autor e um leitor, este que pode ser um acaso (“Comprei o livro de
Franz Kafka, por acaso, em uma papelaria de Copacabana”); o leitor se apropria daquilo que
não é seu (“Peguei o livro, autografei-o”); o modo de dizer, o estilo, tão pessoal, torna-se
experiência alheia (“Eu não precisava mais buscar palavras para as coisas que tentava dizer.
As palavras estavam ali, ainda que, em grande parte, me escapassem”); a leitura é o que dá
vida à obra, ou seja, há certa sobreposição do leitor sobre o autor (“Com esse gesto, revidava
266

às palavras que Franz ouviu de Hermann, quando lhe deu de presente o primeiro exemplar de
Um médico rural, único livro que dedicou ao pai”).
Essas questões retratam ao mesmo tempo a forte sensação de deslocamento do
narrador. Primeiramente, ele, um escritor, vê-se como leitor de um outro em quem deseja se
espelhar. Além disso, uma carta, que não é sua, mas a qual assina, é um gênero de intensa
participação no seu romance, neste que, como vimos anteriormente, o narrador sequer
acreditava. Também o trânsito geográfico desviado da carta (antes A Carta de Kafka, agora a
sua) revela o trânsito emocional em que se encontra o narrador, em desvio. E tudo isso ainda
se harmoniza com outras travessias vividasna relação com o pai, na partitura de uma canção
de ninar e na viagem em busca de um passado, entalhes da ficção na metaficcão que
desnudam o mundo contemporâneo.
Em outro perfil, na dramática A história dos ossos (2005), de Alberto Martins, a
ilustração desconfortável da contemporaneidade se dá, de acordo com os estudos realizados,
por uma intercalação de duas áreas — teatro e literatura — com duas atuações, a do
personagem-irmão e a do narrador-irmão, ambos interligados pela palavra, assumida como
representação por um e como registro verbal por outro. O desconforto do narrador é nítido,
porque o que ele escreve, aliás, transcreve, é o representado e não é de sua autoria. Ao final, a
palavra que lavra não é a sua. Mais uma obra, então, que, apresentando lugares destituídos, o
faz sem aceitação, pois tudo ali soa a estorvo: um irmão louco; um monólogo (des)encaixado
na narrativa; um auditório composto por um cão; um narrador posto em segundo plano, sem
onisciência, mas com febril sensibilidade; uma transcrição simultânea à representação; uma
autoria ambígua; um incêndio que põe término a tudo.
O narrador, uma terceira pessoa, um ser que narra sobre o outro, mostra certa
fragilidade nessa condição, pois descumpre o papel que lhe caberia, o de onisciente, já que
precisa colar a orelha a um corrimão para ouvir o que se dá do outro lado da parede; ao
mesmo tempo e incongruentemente, é capaz de captar cenas, sons e silêncios. Entretanto, isso
não é feito pela onisciência, mas algo além de seu controle, por impulso e febre:

Numa tarde, ao me curvar para depor a muda de roupa no pé da escada, aproximei


sem querer o ouvido do corrimão. Com nitidez espantosa, ouvi cada sílaba que o
irmão proferia, vibrando nas tábuas, saltando de degrau em degrau. No impulso,
tomei o caderno de desenho que carregava comigo e, dobrado sobre o primeiro
degrau, me pus a transcrever cada som, cada gesto, cada risco que saía da voz do
irmão.
Fiz isso sem contar a ninguém por vários dias seguidos. Lembro que a certa altura
não ouvi mais vozes. Juntei as forças e toquei para casa. Exausto, passei o resto do
dia feito um zumbi e no início da noite tive febre (MARTINS, 2005, p. 17).
267

Frágil, essa terceira pessoa age “sem querer”, fica alquebrado ante o esforço feito.
Expõe-se, dessa forma,a condição do narrador, cuja linguagem é um tanto a sua, um tantoa do
irmão; um tanto a da literatura, um tanto a do teatro, em deslizamento de vozes de narrador,
de personagem, de autor, de ator, de dramaturgo. Tematiza-se, então, a tênue delimitação de
categorias e papéis, uma produção perturbada, mais um desalinhamento aos tempos de vazio.
Berkeley em Bellagio (2002), de João Gilberto Noll, afigura-se também nessa vertente
de obras que ilustram a contemporaneidade, reagindo a ela, por meio da construção
metaficcional entranhada à imagem de vozes discursivas em deslocamento.
Vimos que essa voz discursiva se constrói com um perfil desorientado, expondo-se em
um fluxo ininterrupto, posto, como se viu no terceiro capítulo de nossos estudos, em espaços
embaralhados. Mais um metanarrador que cumpre papéis diversos sem cumprir nenhum: é
professor em terra estrangeira, estagnado porque não domina a língua; é escritor que teme
extraviar-se da própria língua “sem ter por consequência o que contar”; é narrador, atuando
em primeira pessoa e também em terceira, olhando para si e olhando para um outro, perdido
nessas figuras de papel. Assim ele se autoproblematiza, mal-engendrado em uma narrativa,
mal-engendrado em atos de narração.
Sem conseguir se valorizar, mostra-se um sem lugar de muitas formas, por exemplo,
sendo alguém que não consegue falar português nem inglês nem algo misturado, portunhol,
sentindo necessidade de que essa mundialização idiomática arrume “um jeito de acabar com
as línguas em troca de uma comunicação imediata, sem intermediação fonética, ou seja, pura
expressão virtual” (NOLL, 2002, p.26), numa clara demonstração de não pertencimento ao
mundo. Considera o ofício de escritor um castigo e assume o exercício motivado por um
déficit linguístico (“Falei que era só por esse déficit linguístico que me tornara escritor —
aliás, não poderia chamar isso de escolha, melhor diria se chamasse o meu ofício de castigo,
que jeito?” (NOLL, 2002, p.27)).
Em meio a essa inconsistência de papéis, há um hedonismo que emerge envolvido
com certo desprezo e impaciência ante os compromissos e situações sociais, o que se elucida
em cenas eróticas. A exemplo, aquela em meio a uma reunião enfastiante, quando “o escritor
brasileiro ouvia calado como sempre, louco para o último gole do café para então subir até o
quarto, adentrar depressa em seu estúdio ao lado e esquecer do mundo em sua escrita que
alguns críticos chamavam de rara” (NOLL. 2002, p. 29), adjetivo que remete de imediato à
figura de um ragazzo
268

[...] para quem ele olha e diz: sim, Deus baixou aqui, é vivo. De imediato tocou na
espádua arcaica do peninsular divino, mesmo que o ragazzo não soubesse, não
importa, era Deus que ele continha no seu peito arfante, não o Deus que não saía das
igrejas, mas o Deus que pulsava atrás da calça apertadado ragazzo, o Deus que se
aplumava e se punha rígido colosso! (NOLL, 2002, p. 29).

Essa dedicação ao prazer sobre todas as outras coisas não se mantém, todavia, de tal
modo que predomina a inconstância, a ponto de ele sempre estar ansiando pelo seu Éden, sua
Porto Alegre, onde está a pessoa amada, alguém de quem fugiu, mas com quem almeja estar.
A obra simula, assim, uma inconsistência de papéis e uma instabilidade espacial
constante, o que a aproxima da contemporaneidade. Entretanto, ambas são feitas de modo a
promover o efeito de algo inconveniente, perturbador, o que distancia essa mesma obra desse
mesmo tempo.
Em mais uma configuração dessa vertente literária que problematiza a escritura sob
novas condições estéticas, temos A vendedora de fósforos, de Adriana Lunardi(2011), vista
por nós em algumas de suas peculiaridades.
O enredo, simples, se desenvolve por meio de um jogo complexo de vozes que se
misturam, embaralham-se de forma que não é possível discernir muitas vezes quem é quem
num duo de vozes reflexas, que deixam à mostra a proposta nessa construção de vozes
discursivas encarregadas de trazer até o leitor o enredo. Ao confundir os papéis, ao impedir
que se configure com clareza quem narra, quem é personagem, quem protagoniza a trama, a
categoria narrador é posta como objeto de leitura, num convite a seu desvendamento. Isso
posto, não se lê a relação entre duas irmãs pertencentes a uma família em que a loucura é um
registro. Lê-se a relação entre vozes posicionadas na narração, num jogo de gato e rato, em
que o leitor deve se prender a detalhes de cenário, pormenores nos discursos, minúcias de
lembranças. Há tanto em comum entre as personagens-narradoras — a loucura, o gosto pela
literatura, a potencialidade para a escrita literária, o parceiro — que fica difícil discerni-las. O
grau máximo desse irmanamento discursivo está na qualidade estética presente em trechos
que, não parecendo serem comuns às duas, têm em comum a qualidade dos arranjos estéticos,
tirando o leitor da ilusão de existir unicidade de voz narrativa, nunca uma primeira, nunca
uma terceira pessoa:

Tomei um último gole e pensei que tinha algo de lavoura em um livro. As palavras a
formar linhas, as linhas a cumprir o mesmo espaçamento entre as plantas, as páginas
a formar uma grande paisagem que o leitor atravessa, sozinho. De vez em quando,
alguma coisa cintila (LUNARDI, 2011, p. 83).

A longa lista de créditos rolava na tela enquanto a sala se esvaziava e as pessoas


aproveitavam a semiescuridão para recolher seus trenós de volta ao peito. Eu
269

continuava no lugar, desencorajada a achar um nome para o que me fora levado tão
cedo. Desencorajada a enfrentar esse mistério tão infantil, tão pequeno.
Desencorajada a voltar para o dia lá fora (LUNARDI, 2011, p. 172).

Assim a obra de Lunardi faz, então,a colagem de um enredo que conta uma viagem ao
encontro de uma irmã suicida, a uma reflexão sobre o fazer poético. O tom da narrativa,
entretanto, é o do desencontro, um deserto de afetos com alguns oásis, tomado de competições
entre as irmãs, inclusive no que se refere à literatura.
A (des)conjugação dessas vozes em busca de estabilidade ilustra a mesma postura de
aderência e rechaço proposta por Agamben, segundo o qual a contemporaneidade é “uma
singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma
distâncias, mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma
dissociação e um anacronismo” (AGAMBEN, 2010, p.59). Prova disso é a desconfiguração
da estabilidade da voz narrativa posta em uma falsa aderência entre as personagens. Assim, há
certa renúncia à sensação de instabilidade contemporânea A ilusão de haver duas vozes
discursivas, a ilusão de haver uma voz. Tudo lido em desconforto.
A mesma sensação se desenvolve de forma vigorosa em A passagem tensa dos corpus,
de Carlos Brito e Mello(2009), na qual a metaficção também convida a decifrar uma voz
discursiva de formato esdrúxulo — uma língua que nega sua condição de narrador. Ajustada a
um enredo fantástico, tomada de suspense, desenvolve-se uma outra ficção, uma linguagem
sobre a linguagem literária. Não estão em questão, consoante nossa investigação, apenas as
peripécias de enredo, mas as peripécias pertinentes à produção de personagens, narrador,
espaço, gêneros.
A errância que acomete o narrador quando à procura de um morto para registrar
descortina a sua errância como voz discursiva sem lugar, acossada em uma condição que
rejeita. Sua andança em círculos, girando sobre si mesmo, esse quase nada duplica a narrativa,
colocando-se como um enigma em pauta na poética, a discussão em torno do autor, do
narrador, das suas especificidades.
Gustavo Bernardo afirma que,

[...] confrontado com as ameaças de fora (do mundo) e de dentro (de si mesmo), o
ser humano reage fabulando: atribui sentido ao que se lhe apresenta sem sentido.
Essa reação fabuladora é que constrói a civilização e as suas instituições. A ficção é
menos uma diversão do que um escudo contra as ameaças externas e internas,
obrigando-nos a narrar uma luta interminável: o drama que nos constitui
(BERNARDO, 2010, p. 20).
270

Ora, menos uma obra de entretenimento pelo suspense, A passagem tensa dos corpus
deixa em suspensão a condição do narrador, essa figura estética de circulação social à deriva,
num momento histórico em que a literatura, sua formulação, é posta em xeque. Trata-se da
literatura representando, de forma frenética, a busca de identidade, sua e do ser humano—
ficção espelhando referencialidade, conforme este trecho:

Transcorre uma temporada de padecimentos, e os pássaros do céu podem voar até


gelar o cu, que não me voltarei um só instante à contagem de seu curso sobre minha
cabeça oca. Tenho pressa de acontecimentos de corpo visível, mas a casa que ocupo
ficou, subitamente, abandonada
e agora somos três os ausentes que a habitam
o pai morto, o filho recluso e o narrador.

Lamentável tríade de faltosos em que


o pai nada pode mais fazer
o filho tudo faz apenas a si mesmo, em regime de privação
e todo o meu fazer, embora rico de desejo e energia, não se realiza por meio
de uma ação de corpo. Talvez devamos concluir, melancolicamente, que somos os
três juntos tão inúteis quanto os pássaros do céu e que fazemos bem se decidirmos
contá-los. Mas renunciarei a essa medida de derrota, estendendo minha permanência
aqui
crendo em meu projeto único e pessoal(BRITO E MELO, 2009, p. 72).

A crença no projeto único e pessoal, algo tão contemporâneo, é vista como algo inútil,
de tal forma que a obra se instaura como uma reação a essa condição que nos avassala. É
assim que a obra nos propõe uma literatura com a outra (in)utilidade, a de contar pássaros do
céu, uma ação de alma, que se situa acima dos acontecimentos visíveis, prenhe de vida e que
preenche de vida os seres faltosos.
Essa sensação faltosa também se faz presente na obra Procura do romance, de Julián
Fuks(2011), também em uma tessitura que se engendra em metaficção. Encena-se uma voz
narrativa que se arvora da função de escritor, tendo em vista que este, perdido, não consegue
assumir seu papel, vagueante por ruas de Buenos Aires e por questões intimistas, numa
procura de si atrelada à do romance. Prolonga, nessas andanças, reflexões sobre o fazer
poético, promovendo uma letargia que enerva o narrador e empata o encadeamento de ações
que constituiriam um romance. No entanto, é mesmo embargo que será a composição do
enredo.
As posições do narrador e do personagem-escritor são ambas desconfortadas, os dois
estão insatisfeitos em seus lugares, o primeiro tomando para si, por vezes, de forma irritada,
as atitudes pertinentes à função do segundo, este impotente, um tanto desanimado dessa sua
condição. Essa dose de permuta encena o questionamento sobre a legitimação da autoria,
propõe uma revisão do papel do escritor — se engajado, se alienado; se dominante no
271

exercício da escrita, se submisso ao andamento da própria urdidura da trama — e constitui a


matéria metanarrativa da obra, ou seja, há um enredo claudicante que assim é para pôr em
discussão essa situação faltosa:“As palavras, as palavras que ele não profere o exaurem, as
palavras profusas que assaltam sua mente e tão logo escapam, inassimiláveis” (FUKS, 2011,
p. 92).
Esse processo autorreflexivo que pensa e repensa, mói e remói construções estéticas,
põe-se em relevo pela lentidão como se manifesta, também uma estratégia estética não para
revelar um subjetivismo acachapante, mas para, mostrando-o, avultar o imediatismo que
contamina a contemporaneidade. São extremos que ali se encenam: um, a própria morosidade
imposta pela condição das vozes discursivas; outro, pelo seu efeito de sentido, uma
perturbação ansiosa, impaciente.
Segundo nossa análise, em estratégia oposta, em uma agitação convulsiva, o narrador
de Budapeste, de Chico Buarque(2003), faz parte de mais uma construção metanarrativa. Pela
encenação de um ghost-writer, institui-se um duplo, alguém que exige não assumir uma
identidade reconhecível e valorizada, ou seja, José Costa, o protagonista, é um outro, na
verdade, vários outros. Melhor dizendo: vários outros são José Costa. Essa função ganha
ampla aderência porque há esses pares com interesse inverso, aqueles que se sentem
confortáveis sendo reconhecidos pelo que não fazem.
O duplo encenado exige do leitor dupla leitura, outra além daquela que enfoca apenas
a movimentação da personagem em sua função fantasma. Há desdobramentos em outras
perspectivas que lançam a leitura para outras superfícies, por exemplo, há dois espaços
esteticamente posicionados; vários gêneros que passam a ser produzidos, como a biografia e o
poema, vasculhados nas condições de produção de cada um; duas entidades — José Costa e
Zsoze Kósta, nomes cuja sonoridade desenha linguagens distintas; duas línguas, português e
magiar, que fazem prosperar a sensação de babel que se desenrola na obra. Trata-se de uma
construção metaficcional, na qual está posta em questão a própria identidade da autoria, do
narrador, do personagem, todos objetos mercantilizados: “Até não-clientes se gabavam por aí
de terem dispensado suas assessorias, pagando um pouco mais por nossos serviços
diferenciados, o Álvaro falava essas coisas” (BUARQUE, 2003,p.17).
A forma de tratar a questão esteticamente, nos jogos de duplicidade, desloca-se do
âmbito verbal para se materializar no objeto livro, cuja descrição é tomada em corpo nas mãos
do leitor, fazendo com que este, por meio de uma varinha de palavra, passe a ter em mãos o
que está nas mãos do narrador:
272

A capa furta-cor, eu não entendia a cor daquela capa, o título Budapeste, eu não
entendia o nome Zsoze Kósta ali impresso, eu não tinha escrito aquele livro. Eu não
sabia o que estava acontecendo, aquela gente à minha volta, eu não tinha nada a ver
com aquilo. Eu queria devolver o livro, mas não sabia a quem, eu o recebera de
Lantos, Lorant & Budai e fiquei cego (BUARQUE, 2003,p. 167).

Figura 3

Fonte: Disponível em:


<https://www.google.com.br/search?q=contra+
capa+de+Budapeste+de+chico+buarque&biw=
1366&bih=662&source=lnms&tbm=isch&sa=
X&ved=0ahUKEwiw0IqbosLRAhXHQpAKH
Y2aBF8Q_AUIBigB#imgrc=zRKhCRMNFDt
qLM%3A>. Acesso em: 14 jan. 2017.

A construção estética dessa obra, tornada tão palpavelmente produto de mercado, e do


narrador como alguém confortável e desconfortável nessa dubiedade coisificada, sem nenhum
escrúpulo, descarado, macunaímico mesmo, e assim também perdido nessa condição pela
qual ele opta, também refratário de outros que com ele compartilham essas práticas de mão
dupla, coloca-o como uma figura vinculadaàs peripécias do aqui e agora.
Ainda compondo essa linha de metanarradores contemporâneos em suas
singularidades está a obra Antiterapias, de Jacques Fux(2012). Mais uma vez, há uma
construção que ressalta o desconforto de uma voz discursiva em sua função. Desta vez, a
estratégia utilizada é um volume enorme de citações, o que coloca o narrador, também um
escritor, num entrediscursos: o seu só existe acoplado aos outros.
Conforme nossas observações, não há um trecho sequer livre de outras vozes, das mais
variadas instâncias: quadrinhos, composições musicais, alta literatura, filosofia, biografia,
273

religião... Encena-se, dessa forma, um narrador-escritor que se constitui assimpor sua avidez
como leitor, com um arquivo cultural louvável, mas também alguém pouco confortável na sua
condição própria de escritor, correndo o risco de se perder de si para funcionar como um
ventríloquo, como se houvesse um leitor maduro, mas um escritor ainda grudado às saias de
outras vozes. Esse excesso provoca interrogações: existe o escritor? De que se forma um
escritor? Qual é o papel da intertextualidade na estética literária? O que separa o plágio do
inédito? Qual é a matéria do romance? Há o gênero romance?
Essas inquietações percorrem a obra, tornando-a um quase romance, um quase ensaio:

Assim que a obra acaba, acaba-se com ela um autor. Esse autor que a escreveu. Que
nela colocou sua emoção. Que sofreu e sorriu. Criou mistérios, encantos, problemas
e soluções. O autor budista. Entregue à escrita e à elaboração de algo belo. Artístico.
E que, ao chegar ao fim, libertou-se de seu trabalho. O livro passa a existir em outra
dimensão. Outro plano, outro autor, outro leitor(FUX, 2012, p. 158, grifo do autor).

Tudo isso simula um descentramento de formas e funções. Entretanto, a composição


disseminada em gêneros — ensaio-romance-autobiografia —, também de uma figura múltipla
— ensaísta-narrador-escritor —,denuncia o descentramento, porque ele é espelhado em
exagero, disforme em suas infinitas livres associações, pinçadas nos volumes de uma outra
biblioteca borgeana.
Para finalizar nossas reflexões, tomemos o doloroso estado em que se apresenta o
narrador, outro escritor, da obra Diário da queda, de Michel Laub (2011). Extrema e
visivelmente desconfortado, essa voz discursiva expõe a problemática situação de alguém
que, lendo as dores de seu avô e de seu pai, sendo herdeiro delas, acaba por contar as suas
mesmas.
Entre outros aspectos estudados, o discurso de valorização dos judeus em relação ao
seu sofrimento durante a Segunda Grande Guerra é posto em discussão, pois o narrador trata a
maldade como parte da essência humana, corrente em nazistas e em judeus, portanto, presente
em si mesmo, ele próprio um judeu. Faz isso, expondo discursos na instância pessoal, familiar
e social, pois, no vértice das ações de crueldade, está a sua mesma: a cooperação entre amigos
judeus para deixar um gói, um não judeu, João, “cair na festa de aniversário” (LAUB, 2011,p.
33), uma queda que vai colocar em queda qualquer discurso que culpabilize qualquer
segmento humanosobre o exercício da maldade:

[...] se Auschwitz é a tragédia que concentra em sua natureza todas essas outras
tragédias também — não deixa de ser uma espécie de prova da inviabilidade da
experiência humana em todos os tempos e lugares — diante da qual não há o que
274

fazer, o que pensar, nenhum desvio possível do caminho que meu avô seguiu
naqueles anos, o mesmo período em que meu pai nasceu e cresceu e jamais poderia
ter mudado essa certeza (LAUB, 2011, p.134).

Narrador de si e da história dos seus, testemunha-leitor das mazelas que acometem a


todos e são provocadas por todos, esse também escritor, assim como o avô, não gosta de falar
do tema recorrentemente tratado, o sofrimento de judeus provocado por nazistas. No entanto,
é-lhe impossível safar-se disso, como foi impossível para seu pai e seu avô. Desconfortado,
aflito, sofrido, escreve, assim como seu pai e avô, tentando livrar-se da herança que o
dominae, concomitantemente, evidenciando o modo estético dessa tentativa de livramento. A
exemplo, os títulos dos capítulos são tentativas vãs de distanciar-se de si mesmo, um
infrutífero falar sobre o outro. Prova disso está no primeiro capítulo, “Algumas coisas que sei
sobre meu avô”, quando, após discorrer durante dois parágrafos sobre seu sofrido ascendente,
passa a 36 sobre si, contando, com detalhes reveladores, a crueldade que se estabelecia dia a
dia entre ele e os colegas de classe contra João, um gói, submetido às torturas por ser um gói,
numa réplica do ideário nazista. Trata-se de um contar catártico feito por alguém desesperado;
trata-se de uma repetição, por meio das palavras, da queda sofrida pelo companheiro de
escola, modo de reiterar a queda que se instaurou no espírito de um adolescente e que foi se
entranhando nele à medida que conhecia sua herança biológica, social e, principalmente,
discursiva.Durante os parágrafos, o narrador expõe-se como aquele que, tendo a pena nas
mãos, está submetido a uma escrita, martelando a ideia de que, assim como o avô, não
gostaria de falar sobre o tema, tarefa, no entanto, inexequível. Encena, portanto, um escritor
no exercício da sua escrita, que narra as circunstâncias da criação estética, pautada nas
referências, nas experiências de vida.
Com o passar do tempo, ciente cada vez mais dos efeitos de sentido promovidos pelas
palavras, vai entendendo, um escritor em formação, a dor de lidar com elas, a dor de escolher
com qual função as usará: se forjar realidades para sobreviver; se repetir e arranjar referências
para impressionar; se produzir uma ficção tomada de arranjos estéticos que possam até
promover sensação de catarse, mas que ofereçam para o leitor algo com o que ele chegue a
suas próprias conclusões, apresentando um narrador cujas palavras podem ser ainda
incompreensíveis, mas que, ao olhar para elas, saber-se-á intuitivamente o que está por trás de
cada uma delas, o que significa o narrador à sua frente, o avô diante do pai, o pai diante do
narrador:

[...] e se pela última vez estou dizendo o que penso a respeito [da tortura nazista e
seus efeitos] é para que no futuro você leia e chegue às suas próprias conclusões.
275

[...] e que há [...]o som da minha voz, as palavras que direi e que ainda são
incompreensíveis, mas você olha para mim e sabe intuitivamente o que está por trás
de cada uma delas, o que significa a pessoa na sua frente, meu avô diante do meu
pai, meu pai diante de mim, eu agora e a sensação que acompanhará você enquanto
os anos passam[...](LAUB, 2011, p.151).

Essa construção metaficcional, que expõe o papel da escrita em e sob várias


condições, simula, como todas as outras nove obras estudadas, o fazer literário sob o comando
da subjetividade levada ao extremo, forma de registro estético de uma condição
contemporânea. Todas as vozes analisadas atuam com esse perfil, mas não de forma a
mostrar-se enquadradas nele. Pelo contrário, são obras que ilustram sua subjetividade em
espelhos que a distorcem, por meio de atuações discursivas incomodadas, desconfortadas. Em
seu discurso, por meio de sua linguagem estética,questionam-se a si — seres de escrita — em
seu tempo, pondo em questão o valor e o lugar da narrativa, a condição e o lugar da literatura,
fazendo dela o objeto maior tematizado. São, portanto, obras metaficcionais que, entre outros
aspectos, constituem essa amostragem do fazer poético sobre vozes discursivas vinculadas ao
fazer poético—escritor, leitor, personagem, ghost-writer, outro narrador, uma língua.
A prioridade,no grupo de obras, é, portanto, a autorreflexividade, de forma a fazer com
que o código poético seja o objeto tratado, sendo que o fenômeno da escrita, com suas
idiossincrasias, não deixa perder, em cada uma delas, sua própria condição estética. Sendo
assim, nelas, a metalinguagem intercepta a ação, promovendo ainda tons de ensaio crítico
sobre a linguagem literária.
Sua marca registrada nesse percurso metaficcional é, pois, a diluição das vozes
discursivas nas funções que exercem, amalgamadas, postas em espacialidades dispersivas,
reformuladas na e pela linguagem. Falando assim da própria literatura, duplicando-se
ficcionalmente, as vozes põem em questão a identidade da literatura e, em sua inteireza, a
própria identidade humana. O escritor, dominante a princípio, é construído em dispersão,
disseminado em outras vozes, fragilizado. No âmbito estético dessas obras, a pergunta quem
sou eu é construída metaforicamente na busca do entendimento desses seres de papel, que se
desnudam pelas perguntas já postas teoricamente: O que se narra quando não se pode mais
narrar? O que se narra quando não há mais o que narrar? O que se é quando não há nada mais
a ser?
Sendo assim, as obras ilustram uma vertente da literatura que se desenvolve nestes
tempos, com procedimentos estéticos que revelam a intenção de operar com a linguagem
autorreflexivamente. Para isso, põem em figuração vozes discursivas que fazem, no ato de se
276

autoquestionar, a inserção do que é questionado, sua própria atuação — o próprio fazer


literário.
277

REFERÊNCIAS

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