Antropologia Brasileira

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ANTROPOLOGIA BRASILEIRA

ANTROPOLOGIA BRASILEIRA

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NOSSA HISTÓRIA

A nossa história inicia-se com a ideia visionária e da realização do sonho de


um grupo de empresários na busca de atender à crescente demanda de cursos de
Graduação e Pós-Graduação. E assim foi criado o Instituto, como uma entidade capaz
de oferecer serviços educacionais em nível superior.

O Instituto tem como objetivo formar cidadão nas diferentes áreas de


conhecimento, aptos para a inserção em diversos setores profissionais e para a
participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e assim, colaborar na sua
formação continuada. Também promover a divulgação de conhecimentos científicos,
técnicos e culturais, que constituem patrimônio da humanidade, transmitindo e
propagando os saberes através do ensino, utilizando-se de publicações e/ou outras
normas de comunicação.

Tem como missão oferecer qualidade de ensino, conhecimento e cultura, de


forma confiável e eficiente, para que o aluno tenha oportunidade de construir uma
base profissional e ética, primando sempre pela inovação tecnológica, excelência no
atendimento e valor do serviço oferecido. E dessa forma, conquistar o espaço de uma
das instituições modelo no país na oferta de cursos de qualidade.

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Sumário
NOSSA HISTÓRIA ..................................................................................................................................... 1
OS GRANDES PROBLEMAS DA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA ......................................... 3
1 - APRESENTAÇÃO ..................................................................................................................... 3
REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 22

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OS GRANDES PROBLEMAS DA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA

1 - APRESENTAÇÃO

Entre as centenas de publicações de Arthur Ramos nunca chegou a constar esta


conferência, proferida por ocasião da Semana Euclidiana de São José do Rio Pardo,
em 1948. Sua morte, em Paris, um pouco mais de um ano depois, aos 46 anos, deve
ter contribuído para tal destino - prenunciador do que ameaçaria o conjunto de sua
obra nas décadas seguintes.

Sua mais dedicada, estudiosa e divulgadora contemporânea, Luitgarde Oliveira


Cavalcanti Barros, entregou uma transcrição do manuscrito inédito a Moacir Palmeira,
para eventual publicação em Mana. Estudos de Antropologia Social. 1 Encarregado
de apresentar o texto, dada a minha familiaridade com a obra do mestre, tardei mais
do que o devido em fazê-lo.

O interesse do texto é, no entanto, grande, por apresentar um compacto vislumbre da


antropologia brasileira em um momento crítico de sua história, poucos anos antes da
primeira Reunião Brasileira de Antropologia [1954],2quando o culturalismo
antropológico do entre guerras, de que ele fora um dos luminares, sofria intensa crítica
da sociologia cultivada nas universidades paulistas.3

O personagem e a obra de Ramos têm encontrado espaço em uma bibliografia


suficientemente ilustrada (Fernandes et al. 1950; Barros 2000, 2007; Azeredo 1986; Corrêa 1998; Biblioteca

Nacional 2004), que recupera - se não suas principais contribuições analíticas - o fascínio
de uma carreira exemplar dos desafios e das aceleradas mudanças ocorridas no
campo intelectual brasileiro do século XX. Ramos, de uma família de classe média
letrada alagoana, formado em Medicina na Faculdade da Bahia em 1926, teve
desencadeada sua disposição antropológica no contato com a obra de R. Nina
Rodrigues e na frequentação, como psiquiatra, das delicadas fronteiras entre o transe
3

3
religioso e as perturbações mentais, no principal asilo de Salvador. Reconhecendo em
Nina os primeiros esforços em escapar do rígido determinismo da ciência psiquiátrica
e penal da passagem do século XIX para o XX, procurou aprofundá-los, buscando
recursos analíticos alternativos nos saberes da época. As teorias de Lévy-Bruhl e da
psicanálise foram os instrumentos básicos iniciais, permitindo a Ramos formular
hipóteses sobre o funcionamento do pensamento afro-brasileiro independentes do
reducionismo organicista e dos anátemas da teoria degeneracionista. Participou, com
isso, do grande movimento ideológico do entre guerras brasileiro de enfatizar as
possibilidades de "civilização" de um país mestiço, mormente pela via da educação.
Ramos ocupou importantes funções de Estado ligadas à educação infantil nos anos
1930, e defendeu o uso da psicanálise como recurso fundamental para a eficiência do
ensino.

A luta por um afastamento progressivo da visão médica em direção a uma visão


antropológica dos fenômenos da religiosidade de matriz africana tornou-o muito atento
às possibilidades de interlocução internacional, tendo se correspondido desde os anos
1930 com M. Herskovits e outros pesquisadores da negritude nas Américas - o que
lhe garantiu uma intensa experiência de trabalho direto em diversas universidades
norte-americanas entre 1940 e 1941.

Ao longo dessa viagem, em que também dialogou com segmentos mais engajados da
comunidade acadêmica negra, parece ter se afirmado com mais clareza sua
disposição em dedicar-se a uma "antropologia aplicada" - em contraste, aliás, com
Herskovits. Sua disposição antifascista, que já lhe valera problemas com a polícia de
Vargas (cf. Barros 2004), levou-o a fazer da Sociedade Brasileira de Antropologia e
Etnologia, por ele criada em 1941, uma plataforma para veemente denúncia de todos
os racismos.4

Ramos tornou-se professor da inovadora Universidade do Distrito Federal em 1935, a


convite de Anísio Teixeira - com a cátedra de Psicologia Social (ao lado de Gilberto
Freyre, que detinha a de Antropologia Social e Cultural). Com o fechamento da
Universidade pelo Estado Novo, passou em 1939 a professor da recém-criada
Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, com a cátedra de

4
Antropologia e Etnografia - cargo que ocupou até sua ida para a Diretoria do
Departamento de Ciências Sociais da Unesco, em 1949.

A experiência universitária brasileira das ciências sociais, tão tardia, é o foco do texto
que ora se publica: o "problema" da antropologia brasileira de sua época. A ausência
de um "ambiente universitário" significava, na verdade, a ausência de uma
institucionalidade regular para os esforços reflexivos e etnográficos, esparsos entre
as iniciativas individuais e a acolhida por museus públicos de orçamentos e políticas
instáveis. À época da conferência, as duas faculdades de São Paulo já tinham mais
de dez anos de funcionamento e a Universidade do Brasil quase chegava lá, mas o
problema que denunciava Ramos era sobretudo a enorme lacuna passada, que
tornara os primeiros anos das faculdades inseguros e conflituosos, dependentes de
convidados estrangeiros, nem sempre bem adaptados (como ocorrera em São Paulo),
ou da conversão artificial de intelectuais polivalentes em pesquisadores
especializados. Mas era também uma lacuna do seu tempo, de que só podemos
aquilatar se pensarmos que o CNPq e a Capes só foram criados em 1951 e a
implantação de um sistema nacional de pós-graduação nos moldes estadunidenses
só se iniciou em 1967. Também a Fapesp, embora prevista legalmente desde 1947,
só veio a ser fundada em 1962.

A preocupação com a dimensão organizacional e política das ciências sociais no


Brasil é característica da última fase da vida de Ramos, quando sua estruturante
dedicação à causa da "civilização" se desloca do foco da pesquisa sobre a
religiosidade negra e popular ou sobre a mentalidade infantil para novos patamares.
Ainda se repete aí, entre aspas, a expressão "laboratório de civilização", tão associada
depois, de maneira pejorativa, às expectativas de uma democracia racial brasileira;
mas já aparece a convocação dos "responsáveis pela administração da coisa pública",
que poderia contribuir para que a "civilização técnica" no mundo moderno viesse a ser
acompanhada de um "aperfeiçoamento" da humanidade. A instauração de um
verdadeiro "ambiente universitário" deveria ser assim acompanhada de intensas
modificações na organização do ensino, inclusive da antropologia ("deficiência técnica
do ensino e da pesquisa das disciplinas antropológicas em nosso meio").

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No nível mais reflexivo, Ramos evoca todas as etapas de sua carreira, tão
características das radicais transformações por que passou o que se poderia chamar
de uma antropologia no Brasil do século XX. Aí aparece com larga ênfase o tema do
"negro no Brasil", com a necessária evocação do "estudo comparativo das culturas
africanas", iniciado - como ele sempre sublinhava - por Nina Rodrigues. Aparecem
também referências a disciplinas que podem ser consideradas de mediação entre os
saberes biologizantes de sua carreira originária e os novos rumos socioculturais: a
paleontologia humana, a paleoetnologia, a arqueologia e a linguística.

Vêm em seguida sucessivas menções ao eixo psicologizante de seu trabalho, já mais


abrangente do que a original dedicação à psicanálise como metodologia de acesso
ao mais recôndito do pensamento humano (cf. Duarte 1999, 2000). São evocados, a uma
certa distância, os estudos de cultura e personalidade, os de caráter nacional, as
correntes etnopsiquiátricas e a psicologia social.

Mas o que surpreende não é a evocação dos conhecimentos que foram centrais para
a sua produção intelectual, mas a desses outros, recentes, com os quais se enfrentava
nos últimos anos, sobretudo a partir de sua estada nos EUA: a antropologia urbana
americana desencadeada pelos Lynd, os estudos rurais e urbanos desenvolvidos sob
a influência da Sociologia de Chicago, e os estudos regionais (a que associa Euclydes
da Cunha, o homenageado da cerimônia). Não há muitas referências nominais a
colegas diretos, nem sequer a alguns dos que foram mais próximos de suas fases
anteriores de pesquisa, como Mário de Andrade, Donald Pierson ou Roger Bastide;
ao escritor e médico legista Afrânio Peixoto sim, seu grande companheiro na
manutenção da herança de Nina Rodrigues. Aparecem Charles Wagley, Herbert
Baldus e Emilio Willems, que encarnavam naquele momento a etnologia indígena
brasileira. Chama a atenção a menção a Lévi-Strauss, que só publicara até então, e
nesse mesmo ano, em Paris, sua monografia sobre os Nambiquara.

Um ponto metodológico fundamental se encaminha no texto: o elogio de uma


etnografia ancorada em "estudos monográficos", em que o "contexto geral da cultura"
pudesse ser levado em conta, permitindo a melhor compreensão dos problemas
históricos da aculturação e da mudança cultural. Já surgia porém, pari passu, o
desafio de compreensão da "organização social" (que ele associa aos estudiosos da

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USP), no bojo de uma "ciência das relações humanas" - uma perspectiva que acabaria
presidindo a reestruturação da antropologia ocorrida no Brasil mais adiante, na
década de 1960.

Aparece finalmente, nomeada, a preocupação com uma "antropologia aplicada" -


considerada por seus biógrafos como a marca de seus últimos tempos: não mais a
mera compreensão das coisas humanas como elas são, mas a intervenção para que
não sejam como não gostaríamos que fossem. O princípio de civilização continua aí
operante, mas de um modo menos dirigista, mais atento à pluralidade das
possibilidades do melhorismo. Certamente a luta contra o racismo encarna essa
"antropologia aplicada" de maneira exemplar. Afinal, na Unesco, o pouco tempo de
trabalho de que dispôs Ramos foi todo dedicado à concepção do grande projeto
comparativo das relações inter-raciais no mundo, com vistas à promoção da tolerância
e da convivência. Infelizmente, o projeto teve que ser conduzido longe de suas vistas
- e acabou conduzindo mais ao aprofundamento de uma consciência desencantada
da questão do que a uma solução iluminista.

O período que se sucede à experiência americana, ocorrida durante a II Grande


Guerra e durante a ditadura de Vargas, foi ainda mais "aplicado" do que se costuma
descrever, como demonstra Barros, ao tratar de sua militância política regular. Sua
primeira prisão política se deu em 1937 e a segunda, em 1942, por ter criado a
Sociedade de Antropologia sem autorização da polícia. Após o fim da guerra parece
ter se aproximado do PCB, resultando na seguinte anotação em sua ficha do DOPS:
"o marginal é militante comunista" (Barros 2004:135). Sua ida para a Unesco não teve a
aprovação da Universidade, sob a alegação de que iria participar do suspeito
Congresso Mundial dos Partidários da Paz, capitaneado pelos comunistas e que tivera
sua realização proibida no Brasil pelo governo Dutra. Aqui neste texto aparece, bem
ao final, a crítica às denúncias de alguma "perigosa agitação subversiva", sempre que
se procura "remover o bolor da rotina ou do primarismo".

Muitos dos desenvolvimentos ulteriores da antropologia mundial e brasileira estavam


prenunciados neste texto de 1948 - e não teriam assim surpreendido Ramos, caso
pudesse a eles ter assistido. Mas teria certamente ficado bastante surpreso ao saber
que o Instituto de Antropologia com que ele sonhara para a Universidade do Brasil

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viria afinal a florescer inicialmente no Museu Nacional,5 com a criação em 1968 do
primeiro Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (e não "cultural"). Sua
Faculdade Nacional de Filosofia, duramente castigada pela ditadura de 1964, 6 só
poderia ver se consolidar o seu próprio núcleo antropológico ainda bem mais tarde,
primeiro com um mestrado, a partir de 1983, e, depois, sob a forma do atual PPGSA
do IFCS, a partir de 1998.

Há, no setor dos estudos antropológicos entre nós, uma situação curiosa, que é a
desproporção entre o imenso material de pesquisa e o número relativamente pequeno
de estudiosos que se dedicam ao tratamento deste material. Já se tem dito que o
Brasil é um grande "laboratório de civilização", mas só recentemente é que se vêm
recrutando os seus técnicos para o ingresso nesse laboratório.

Uma das razões deste fato é que a Antropologia é uma ciência de estruturação
recente. Na realidade, ela é a mais jovem das ciências sociais e seus objetivos têm
variado no correr dos tempos. A princípio, ela foi uma simples atividade de coleta
etnográfica. A chamada "etnografia" não constitui mais do que um aspecto
complementar dos estudos sociológicos, quando se trata de exemplificar ou comparar
com o material dos "primitivos" os fatos com que a Sociologia teria de lidar. A
etnografia era, assim, uma disciplina pitoresca ou curiosa, que recrutava seus
materiais de observação entre os povos "selvagens", "bárbaros" ou "primitivos" deste
mundo.

Por isso mesmo, as atividades etnográficas constituíram durante muito tempo uma
disciplina dos museus, preocupada em coletar e catalogar curiosidades exóticas para
suas vitrines de exibição. Esta catalogação de "curios" recrutou para o seu serviço
toda uma equipe de expedicionários e viajantes que se derramaram pelos quatro
cantos da terra, recolhendo dos primitivos um vasto material que era distribuído, em
esforços de competição, pelos museus e universidades.

Só recentemente é que a Antropologia veio a se definir como uma ciência mais vasta
do homem em seus quadros de natureza e cultura. Mas, assim considerada, a
Antropologia não existia como disciplina de estudo nos currículos universitários do
Brasil. Os estudos de antropologia física constituíam apenas atividades subsidiárias

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ou aplicadas, enxertadas nas faculdades de medicina, onde se fragmentavam em
várias disciplinas, como anatomia e fisiologia humanas, medicina legal e identificação,
a biotipologia ou constitucionalística. E a etnografia, de acordo com os objetivos atrás
assinalados, existe desde que o Brasil foi descoberto.

A humanidade indígena aqui encontrada forneceu, de súbito, um novo e abundante


material de observação. E o primeiro etnógrafo brasileiro foi também o primeiro
cronista dos feitos da descoberta. A preocupação inicial fora a do registro dos grupos
indígenas existentes, com suas línguas, suas "originalidades", suas "esquisitices",
seus costumes "exóticos", suas práticas "pagãs", seus hábitos "ferozes" ou "não
civilizados", tão diferentes dos padrões de vida dos primeiros observadores.

Foi a fase dos esquemas, dos grandes quadros linguísticos, das classificações de
conjunto, das observações "estereotipadas" que enchem a etnografia brasileira, desde
os primeiros observadores até os estudiosos da fase pré-universitária da Antropologia.
O primeiro esquema foi traçado pelos padres da Companhia de Jesus, quando
basearam suas observações principalmente nas línguas indígenas, e de então para
cá se multiplicaram os esquemas classificatórios, desde Martius até Chestmir
Loukotka. Nos fins do século XIX e começo do XX, a tendência ainda era para as
classificações linguísticas, como se pode verificar no grupo francês Société des
Américanistes de Paris. Não quer dizer que não tenham sido de importância os
estudos realizados neste setor, onde se destaca, por exemplo, a obra fundamental de
Rivet, mas esses objetivos não cobriam todo o campo da Antropologia modernamente
considerada como a ciência da personalidade cultural.

Mesmo nos estudos monográficos, de campo, que vêm de fins do século XIX, com a
obra generosa dos expedicionários alemães Von den Stein e Ehrenreich, a tendência
ainda era para uma visão daqueles aspectos das culturas indígenas, consideradas
imóveis, conservativas, curiosas ou aberrantes. Em suma, essas atividades ainda
eram "etnografia", como também é "etnografia", aliás, boa etnografia, a atividade
magnífica que gira em torno das expedições do ciclo Rondon, em começos deste
século, e continuada nos esforços de coleta e catalogação do Serviço de Proteção
aos Índios.

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A criação dos cursos de Antropologia e Etnologia no ambiente universitário originou
uma mudança radical de eixo. Os objetivos se precisam, e os métodos de pesquisa
se aperfeiçoam. Já não se trata de simples atividade de coleta, de classificações
linguísticas, de arrumação de dados curiosos. A preocupação dominante será então
a da reconstituição da história do Índio brasileiro no plano paleontológico e
paleoetnológico; como será da compreensão da sua personalidade cultural, nos
quadros da sua vida atuante de nossos dias.

O movimento do chamado "americanismo" deu lugar a uma literatura romântica que


atingiu um inflacionismo perigoso, no qual as mais extravagantes hipóteses se
digladiavam, levando a confusão ao espírito de estudiosos e leigos no assunto. Foi a
época das hipóteses sobre a origem do homem americano, quando vieram à tona
grupos de escola, com suas opiniões estanques, algumas delas com selo de
interesses nacionais ou políticos. Não quero dizer que não tenham sido fecundas
algumas atividades nesse setor, mas a maior parte destas hipóteses tinha um fundo
livresco, literatoide ou se baseavam em fatos insuficientes ou falseados de
observação. Quer no plano físico, como no cultural, essas hipóteses e teorias,
estabelecendo analogias apressadas, como no caso dos achados fósseis ou das
comparações linguísticas, conduziram sempre a resultados os mais diversos, às
vezes estapafúrdios e antagônicos.

A paleontologia humana e a paleoetnologia brasileira têm precursores de valor,


enfileirando nomes como os de H. Von Ihering, Ferreira Pena, Barbosa Rodrigues,
Ladislau Neto... Mas na realidade só agora se iniciam com rígido critério científico,
como os realizados pelo grupo mineiro sobre as raças do Homem da Lagoa Santa,
pelo grupo de estudiosos dos sambaquis e palafitas litorâneos ou dos investigadores
da paleoetnologia do vale amazônico. Modernamente, há alguns problemas que estão
a desafiar a argúcia dos pesquisadores: o da caracterização dos tipos indígenas
fósseis, do grupo Lagide e do grupo mais recente, o do Homem dos sambaquis; a
análise das culturas pré-colombianas realizadas com métodos mais científicos de
comparação e reconstituição, exame estratigráfico das capas geológicas, para o
estabelecimento da cronologia precisa, a comparação paleoetnológica etc.; o
levantamento da arqueologia do vale amazônico, com critérios novos, como os
iniciados por Nordenskiold, Helen Palmatary e outros, permitindo estabelecer não só
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a cronologia como as conexões culturais entre o alto, o médio e o baixo Amazonas, e
entre este último e as culturas centro-americanas.

Também se impõe a sistematização dos estudos culturais sobre o índio brasileiro.


Uma tarefa inicial será a da tomada de contato, um survey geral, como o intentado
nas páginas do primeiro volume da nossa Introdução à Antropologia Brasileira. As
classificações linguísticas e algumas culturais já realizadas foram muito úteis, porque
permitiram situar o material de observação de estudo. Em muitos pontos, essa tomada
de contato nem foi realizada, ou o foi de maneira vacilante ou imprecisa. As obras dos
museus, como a do Serviço de Proteção aos Índios, ou de outras instituições oficiais,
poderão ajudar nessa tarefa de contato prévio.

Mas o trabalho etnográfico, de descrição e classificação de outros tempos deverá ser


substituído hoje pelo estudo científico das culturas indígenas nas pesquisas
monográficas. Já não se trata, no setor, por exemplo, da cultura material, de uma dada
área, de colher e descrever seus traços vários, mas de compreendê-los
funcionalmente no contexto geral da cultura de que fazem parte, ou de compará-los
com os traços de culturas de outras áreas, para as necessárias tarefas de estabelecer
conexões e analogias, e tanto quanto possível, traçar-lhes a cronologia relativa,
analisando-lhes os empréstimos recíprocos, anotar a dinâmica da mudança cultural,
registrar o trabalho aculturativo. São objetivos novos que alargam o campo de
interesse dos estudos antropológicos, libertando-os dos aspectos puramente
recreativos ou ilustrativos que tinham até então.

A cultura não material, a linguística, a organização social, por seu lado, constituem
hodiernamente novos campos de interesse, mal abordados pelos investigadores de
outras eras. Os vários traços da cultura não material não devem ser estudados, como
já o dissemos em relação à cultura material, como elementos isolados que se vão
somando progressivamente no decurso da investigação, mas compreendidos em
conjunto, ligados funcionalmente aos outros elementos da cultura total. O moderno
antropólogo deve ter em mira que detrás dos traços da cultura que ele observa está o
agente que os produziu, o Homem, objeto último da sua perquirição.

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As línguas indígenas não devem servir apenas, como se fazia até então, para o
trabalho classificatório das tribos indígenas. Elas oferecem um material psicológico do
mais alto valor, que deve ser explorado em todos os seus aspectos. Certas tentativas
de reconstituição histórica de línguas indígenas - como o caso do tupi-guarani - são
da mais alta importância, mas não me parece que devam constituir o objetivo primacial
da reconstituição cultural desses grupos. As línguas indígenas devem sempre ser
estudadas em conexão com a cultura, ou as culturas totais de que fazem parte.

Um setor praticamente novo é o do estudo da organização social, que entre nós só


agora se inicia com o impulso das pesquisas do malogrado Nimuendajú e continuados
pelo grupo dos estudiosos ligados à Universidade de São Paulo. Aspectos
inteiramente novos para a antropologia brasileira estão vindo à tona nas discussões,
como os ligados à organização da família, ao sib, às organizações duais, aos sistemas
e termos de parentesco, aos grupos de trabalho e outros, às instituições sociais e
políticas. Também recentes são os trabalhos sobre a mudança cultural e a aculturação
entre os índios, iniciados com as pesquisas de Claude Lévi-Strauss, Herbert Baldus e
seus colaboradores. E isso ocorre de observação contemporânea de que as culturas,
mesmo as mais "primitivas", não são conservativas e imóveis, porém, ao revés,
transformam-se no decorrer do tempo, se modificam à mercê de causas intrínsecas
de mudanças psicológicas ou extrínsecas de empréstimos culturais, advindos do
contato com outras culturas. As transformações aculturativas da personalidade do
índio deverão ser ainda registradas por um exame psicológico que ateste as
influências recíprocas entre a personalidade e a cultura. Pesquisas desta natureza
virão completar as outras, já iniciadas, sobre a dinâmica cultural, e será este
certamente o aspecto mais novo e mais promissor da antropologia cultural de
indígenas brasileiros.

Com o setor dos estudos sobre o Negro no Brasil, a situação foi talvez pior. A princípio,
não foram sequer considerados matéria de trabalhos etnográficos. Esses estudos se
distribuíam pelos vários departamentos de história, das crônicas de viagem, da
linguística e, quando muito, da sociologia ou da demografia. O assunto era
considerado pitoresco e interessante, mas tropeçou naquela série de dificuldades, que
apontamos em mais de uma oportunidade: a deficiência do documentário histórico, os
preconceitos e os estereótipos dos observadores, a influência da opinião pública pré-
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formada, o interesse menor em contraste com as atitudes românticas que sempre
rodearam os assuntos indígenas.

Aproveita-se, contudo, muita coisa das páginas cheias de colorido e algum interesse
que nos vêm dos cronistas do período colonial e imperial. Nestas páginas não houve
nenhum estudo propriamente antropológico, a não ser a tentativa de Spix e Martius
que nos deixaram o primeiro esboço de classificação étnica dos grupos negros
entrados no Brasil. Convém destacar, de outro lado, as contribuições históricas e
políticas, principalmente no período da campanha abolicionista, onde o "Negro" se
tornou assunto obrigatório no Parlamento e no jornalismo. A atenção dos estudiosos
foi polarizada para o problema e daí surgiram alguns trabalhos de valor, no plano dos
estudos linguísticos e sociológicos, que se enfileiram de Antônio Joaquim de Macedo
Soares a Sílvio Romero e João Ribeiro.

Nina Rodrigues inaugura, em fins do século passado, a fase realmente científica dos
estudos sobre o Negro. De início, seu interesse foi de natureza médico-psicológica.
Professor de medicina legal na velha Faculdade de Medicina da Bahia, Nina
Rodrigues estava preso às correntes da criminologia italiana e do grupo francês da
Société Médico-Psychologique. Por isso mesmo, seus primeiros trabalhos visavam
aos aspectos da criminalidade dos negros e dos mestiços da capital baiana, da
"degenerescência" da mestiçagem, do contágio criminal, da sociologia da mala
vita dos grupos dos candomblés, dos fenômenos de possessão exibidos pelas "filhas
de santo" que o mestre baiano examinava no seu consultório clínico.

Esses trabalhos traziam as estereotipias da época e do método. Tratava-se de ajustar


o material de observação, como o fez Ortiz em Cuba, e como o faziam outros autores
em diferentes pontos do Velho e do Novo Mundo, às correntes lombrosianas que
dominavam o mundo científico de então. Já tive, aliás, a ocasião de comentar as
dificuldades com que se defrontou Nina Rodrigues para conciliar seu grande
documentário de observação com as vistas teóricas de escola sobre a
degenerescência da mestiçagem, o atavismo do crime, a inferioridade antropológica
do negro em relação aos grupos étnicos de procedência europeia.

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Seus ensaios famosos sobre o bandoleiro Lucas da Feira, sobre a loucura epidêmica
de Canudos, assim como sobre as manifestações psicológicas dos negros dos
candomblés o levaram a pôr em destaque os fatores sociais na gênese daqueles
fenômenos. Era uma correção social e cultural às teses da pura antropologia criminal
e física, uma como antecipação às conquistas recentes da antropologia cultural.

Daí ser levado Nina Rodrigues a alargar o seu campo de observação sobre o elemento
negro no Brasil, propondo um método de estudos que ele aplicou na série de trabalhos
que haviam de culminar na obra famosa, deixada incompleta, O problema da raça
negra na América portuguesa. Esse método - o do estudo comparativo das culturas
africanas e suas "sobrevivências" no Brasil - iria depois ser adotado pelos
antropólogos contemporâneos do Negro, muitos dos quais não tomam conhecimento,
ou o fazem de maneira inadequada, das contribuições pioneiras de Nina Rodrigues.

O Negro é hoje um dos assuntos permanentes da antropologia e da sociologia das


Américas. Uma instituição recente congrega seus especialistas: é o Instituto
Internacional de Estudos Afro-Americanos. Dele fazem parte notáveis scholars que,
dos Estados Unidos, de Cuba, do México, do Haiti, da América do Sul reclamam a
importância do estudo dos "africanismos" sobreviventes nos grupos de cultura do
Negro dos seus respectivos países. Mas historicamente foi o mestre baiano quem na
realidade metodizou o problema nos termos científicos em que exatamente o devemos
considerar.

Certamente que hoje o estudo antropológico do Negro não se confinará na


comparação cultural dos seus traços, na pesquisa de africanismos sobreviventes nas
suas formas de cultura. Vai mais além: procurará as raízes históricas do
comportamento do Negro no Novo Mundo; examinará o impacto da escravidão,
modelando tipos e grupos de caráter e de conduta nos quadros nacionais; registrará
a incidência de múltiplos fatores de ordem social e cultural que condicionam a
mudança da cultura; tomará nota dos contatos recíprocos dos grupos e indivíduos
para a análise do mecanismo fundamental da aculturação; estudará a influência
psicossociológica dos grupos dominantes não negros, as relações de "raça", os
estereótipos de opiniões e atitudes, os fatores sociológicos da casta e da classe, os
mecanismos psicológicos da frustração e da agressão; recolherá o estudo da

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personalidade emergente do Negro, como indivíduo e como cultura, nos seus grupos
de vida local, regional ou nacional.

Esta imensa tarefa, que recrutará toda uma equipe de pesquisadores, ainda se
completará com a do estudo antropológico-físico dos tipos negros e seus mestiços,
na análise estatística das medidas antropométricas, visando à existência ou não de
tipos homogêneos nas pesquisas de ordem genética para a verificação mendeliana
das características "negras" e suas combinações; no estudo científico dos grupos
mestiços; na análise dos tipos individuais e suas caracterizações fenotípicas. Num
ponto comum, o moderno antropólogo há de se deter, e é na verificação de que é
impossível estudar o negro no mundo sem sua filiação às raízes africanas, sem
procurar destruir o "complexo de inferioridade do passado africano", que em muitos
pontos da América tem dificultado a correta apresentação do problema. E esse
método é uma proposição que pertence ao grupo de estudiosos que se filiam ao
legado de Nina Rodrigues.

O estudo dos grupos europeus não recebeu até agora um tratamento científico no
nível do Negro ou do índio. Era considerado "sociologia", "demografia", "história" ou o
que mais fosse. A antropologia ou a "etnografia" consideradas disciplinas que lidavam
com os "primitivos" não podiam se ocupar de assuntos tidos como excedendo ou
quando muito tangenciando seus objetivos. E, por isso, todo esse material sofreu um
tratamento não científico, sujeito aos azares ou aos preconceitos de interpretação, de
cor histórica, social ou política.

Quer em relação ao colonizador, quer em relação ao imigrante, têm sido imensas e


contraditórias as opiniões emitidas sobre a sua importância e a sua contribuição
relativa à formação nacional. Julgamentos de valor impregnam toda uma literatura que
até agora se tem derramado sobre a apreciação dos grupos europeus que entraram
no Brasil como colonizadores e depois como imigrantes. Os "ensaios" e as
"interpretações" no Brasil refletem as opiniões estereotipadas sobre esses grupos, seu
valor em relação aos grupos não europeus, as culturas, os contatos, físicos e culturais,
seus destinos na tarefa de amalgamação e de aculturação.

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Somente agora é que esse material começa a sofrer um tratamento realmente
científico, e um dos meus cuidados, ao escrever o segundo tomo da Introdução à
Antropologia Brasileira, foi justamente o de submeter a uma análise meticulosa o
material disponível e os critérios a serem estabelecidos para o seu correto tratamento
científico. Alguma coisa já foi intentada, sendo de destacar as contribuições de Herbert
Baldus e Emilio Willems sobre o grupo japonês, e as monografias fundamentais do
professor Willems sobre o grupo alemão e a sua aculturação no Brasil. Esses
trabalhos inauguram, na realidade, um novo setor, e dos mais importantes, da
antropologia brasileira.

Um fenômeno interessante, e que deve ser assinalado aqui é o estado de crise, de


métodos e de objetivos em que se debate cada uma das disciplinas que constituem
as ciências do homem e da sociedade. Esta imprecisão crítica atinge talvez
preferencialmente a sociologia, pelo fato de que o seu objeto de estudo constitui
precisamente a sociedade de que faz parte o observador. As atitudes
preestabelecidas, o Zeitgeist, o etnocentrismo cultural impregnam de tal maneira os
estudiosos da sua própria sociedade e da sua própria cultura que ele se converte
insensivelmente num apologista da sua cultura ou num reformador utópico, imbuído
da filosofia da sua classe ou da sua casta.

Por isso mesmo, nestas duas últimas décadas, os especialistas nos vários ramos das
ciências sociais estão se reunindo em torno de um objetivo comum, um campo novo
da ciência - "a ciência das relações humanas", como alguns propõem chamar. A
Antropologia, ciência total do Homem e da Sociedade, proporciona este campo de
encontro, como a nova e a mais promissora das ciências sociais. Ela mudou, nos seus
objetivos e nos seus métodos, não mais interessada apenas em caracterizar os
"primitivos", em realizar medidas antropométricas, em classificar "raças" ou colecionar
curiosidades de museu. É hoje a ciência mestra do comportamento comparado do
homem, a disciplina condutora deste conhecimento das relações humanas.

Hoje, as comunidades não primitivas, do tipo europeu ou europeizado, são passíveis


de tratamento antropológico, desde os ensaios pioneiros de Robert S. Lynnd e Helen
Merrel Lynd até a já agora relativamente extensa lista de estudos de comunidades do
tipo das Yankee City Series. Precisamente no prefácio do livro dos Lynd, Middletown,

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escrito em 1929, dizia o professor Clark Wissler ser esta "uma tentativa pioneira de
lidar com uma amostra da comunidade americana à maneira da antropologia social",
acrescentando que essa contribuição realizava "uma experiência, não somente no
método, mas num novo campo, a antropologia social da vida contemporânea".

Esta experiência frutificou e tivemos uma antropologia renovada em ação, a princípio


estudando comunidades de folk-cultura, como nas monografias do grupo de Chicago,
e depois alargando o seu campo ao estudo de outras comunidades, não apenas rurais,
mas também urbanas. A tentativa metodológica recente de Chapple e Coon, nos
seus Principles of Antropology, procura estender os métodos da nova antropologia ao
estudo das comunidades urbanas, embora sejam em reduzido número os
experimentos realizados neste setor.

O Brasil tem uma rica tradição de estudos regionais das suas populações, embora
realizados até agora pelos geógrafos, pelos sociólogos, pelos historiadores sociais. E
é precisamente neste setor que se inclui a grande obra pioneira de Euclides da Cunha.
Quero destacar aqui haver feito, no 2º volume da Introdução à Antropologia Brasileira,
grandes restrições ao famoso autor de Os Sertões, numa crítica cerrada, que poderia
ser julgada um tanto excessiva. Meu intuito fora na realidade uma análise objetiva das
opiniões e das atitudes preestabelecidas em face dos fatos de observação em que
incorreram não só Euclides como outros grandes pioneiros, não se excetuando Nina
Rodrigues, mestre tão das minhas predileções.

A melhor maneira de cultuarmos a memória dos nossos escritores e cientistas será a


da análise imparcial de sua obra, expurgando-a dos senões de doutrinárias que muitas
vezes refletem a filosofia em voga, os estereótipos da época, em suma, o seu
Zeitgeist. Será uma das tarefas dos amigos de Euclides da Cunha reeditar agora Os
Sertões, nada modificando naturalmente no texto definitivo, assim julgado pelo autor,
no qual seu pensamento e seu estilo se conservem intactos, atualizando os
conhecimentos ao diapasão das conquistas científicas modernas, expurgando-o dos
senões metodológicos e de algumas interpretações tendenciosas que o prejudicam.

Era o que eu propunha, há pouco tempo atrás, ao meu inolvidável amigo e mestre
Afrânio Peixoto, ao ser reeditado As raças humanas e a responsabilidade penal do

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Brasil, talvez o mais fraco de todos os livros de Nina Rodrigues, e o que eu próprio fiz,
nos comentários e nas notas à margem de O animismo fetichista dos negros
baianos e As coletividades anormais.

Reiterando o que afirmei de Euclides da Cunha, nas páginas talvez amargas acima
referidas, quero, no entanto, reivindicar para o autor de Os Sertões o papel de grande
pioneiro da antropologia regional do Brasil. É esta, a meu ver, a mais importante das
suas mensagens às novas gerações - a de ter ensinado como se pode fazer
antropologia e psicologia social de uma região brasileira, dando-nos um documentário
das condições de atraso cultural que levaram a região de Canudos aos movimentos
de fanatismo religioso, ou de rebelião franca, da parte de uma cultura mais atrasada
diante da cultura dominante. Fenômeno que, na moderna terminologia antropológica,
chamaremos de movimentos contraculturativos, quer sejam fechados, introversos, no
plano do misticismo e do fanatismo religioso, quer sejam abertos, extroversos, no
plano das insurreições, das rebeliões, das lutas abertas.

Todos os ensaios brasileiros que, nestes três últimos decênios, se têm ocupado
desses estudos de antropologia e sociologia regionais do Brasil - do bandoleirismo,
do fanatismo, do papel dos heróis, dos beatos, dos criminosos do sertão, das secas,
do atraso cultural, da fome, da história social e cultural da região da folk-cultura -
podem se considerar como ligados à tradição euclidiana de tratamento desse material.

Os métodos se aperfeiçoam no decorrer dos tempos, mas os objetivos fundamentais


são os mesmos. Euclides ensinou-os como se deve segmentar a humanidade e a
natureza do Brasil, em estudos parcelados e regionais, sem os quais não poderemos
ter a visão do conjunto. Se esses estudos pertenciam aos geógrafos ou aos
historiadores sociais, a quem se deve no Brasil toda uma série de interessantes e
valiosos trabalhos, hoje passam a constituir objeto de estudo de antropologia da
região, da antropologia urbana e rural, da antropologia da comunidade.

Esta é a perspectiva mais nova e mais promissora que se abre aos estudos
antropológicos no Brasil. Diríamos melhor: uma perspectiva renovada, atualizada à
luz dos novos métodos da ciência das relações humanas. A humanidade chamada
"primitiva" se torna cada vez mais aproximada, no tempo e no espaço. Embora no

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Brasil ainda tenhamos uma pequena porcentagem desses chamados grupos
"primitivos", sua população indígena, o interesse maior das pesquisas antropológicas
se desloca para o estudo da mudança cultural desses grupos, como já dissemos, das
suas modificações sucessivas que culminam na folk-cultura e suas transições para a
cultura urbana. Traçaremos então um diagrama desses estudos de comunidade,
começando pela localização, a identificação e a análise de uma comunidade de folk-
cultura, até o estudo das comunidades urbanas, através da análise dos contatos
culturais, dos cotejos, de ordem histórica e funcional, entre o conservantismo cultural
e a mudança.

Esse estudo da comunidade deverá necessariamente ser completado com a análise


psicológica dos seus participantes, no molde de certos trabalhos, como entre outros,
o de Dollard numa pequena cidade do sul dos Estados Unidos, sobre as reações
individuais diante das estruturas de classe e de casta, ou o de James West sobre a
cultura total de uma cidade-amostra "Plainsville, USA" e seu impacto sobre a
personalidade.

Somente estudos monográficos, conduzidos com rígido critério metodológico, nos


quais as pesquisas sobre a psicologia individual são completadas e corrigidas com a
visão da cultura total, podem destacar e definir esses objetivos ainda novos das
interinfluências de personalidade e cultura. Os trabalhos de Linton e Kardiner, como
os de certos psicanalistas que trouxeram à primitiva ortodoxia de escola a correção
social e cultural trazida pela antropologia, já permitem até certo ponto a compreensão
dos fenômenos da personalidade e do comportamento humanos em face do seu
mundo de cultura. Pesquisas desta natureza deverão completar, no Brasil, o estudo
objetivo de uma comunidade padrão.

E só depois de realizadas séries inteiras de pesquisas desta ordem, poderemos nos


aventurar a propor "interpretações" do Brasil, ensaios de conjunto impressionistas que
podem ser muito interessantes, mas conduzem a generalizações apressadas e
perigosas.

Não sabemos ainda o que é o ethos brasileiro, nem poderemos sabê-lo antes destas
pesquisas parciais que permitam a análise da região e da comunidade, e a

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compreensão da personalidade humana diante do seu grupo de cultura. O Brasil se
estende num território imenso povoado por uma humanidade diversificada
erroneamente considerada homogênea. Sua unidade pode ser política, ou quando
muito linguística. Mas do ponto de vista antropológico, não há uma "cultura" brasileira,
mas "culturas" que só agora começam a ser estudadas e compreendidas. Ainda é
cedo, portanto, para indagarmos do "caráter nacional" do seu ethos, em visões
generalizadoras que lancem mão do critério histórico ou social.

Por isso mesmo, têm fracassado essas tentativas de "mensagens" normativas,


disciplinares, teorizadoras e proféticas que vêm caracterizando a obra da maior parte
dos nossos ensaístas. Faltara-lhes justamente o método da antropologia social da
comunidade, do grupo ou da região. Faltara-lhes a compreensão do ethos de
determinada cultura parcial, o registro dos contatos e das mudanças, a apreensão da
personalidade cultural realizada com os métodos da psicologia social de mãos dadas
com a antropologia.

Será preciso, de outro lado, que os responsáveis pela administração da coisa pública
procurem os técnicos do estudo do homem e da sociedade, que tragam sua
experiência científica indispensável. Isto não tem sido feito até agora. As ciências
sociais, como já destacamos, só recentemente entraram nos currículos dos estudos
superiores, e seus trabalhos ainda não foram reconhecidos convenientemente pelos
políticos e administradores.

A ciência das relações humanas é talvez o instrumento mais importante e mais


necessário do que nunca, nesta fase atribulada da história humana. Os
desajustamentos humanos, ao que parece, estão longe de serem resolvidos
pacificamente. Há uma enorme desproporção entre o acervo dos bens da cultura
material e a sua distribuição equitativa e seu aproveitamento pelos homens. A
civilização técnica ainda não foi acompanhada pelo aperfeiçoamento correspondente
do homem. E essa "demora cultural" é justamente apontada como um dos grandes
males da cultura europoide.

No Brasil, o problema se complica, pois há inúmeros fatores primários que definem as


relações humanas em planos que, em certos setores, diríamos feudais. Mas as

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correções e as medidas são deixadas à aventura principalmente no que diz respeito
ao elemento humano. Com a exceção de São Paulo, os estudos, as pesquisas e o
ensino das ciências do homem ainda se acham praticamente desaparelhados e
desprotegidos entre nós. Não há instituições universitárias de ensino e pesquisa que
se dediquem ao estudo do homem brasileiro com o rigor metodológico que seria de
desejar-se. A universidade do Brasil, tão pomposa no seu título ambicioso, não possui
ainda um Instituto de Antropologia, tão reclamado e tão necessário. O ensino das
várias disciplinas que constituem a ciência do homem se acha distribuído pelos
currículos de geografia, da história ou da sociologia, nos quais é considerado material
subsidiário ou ilustrativo. O estudante passa pelos cursos de Antropologia, num
contato rápido e obrigatório que o habilita apenas a completar os seus cursos de
geografia ou história que o conduzem ao professorado secundário. E como não há
Antropologia nos currículos secundários, como não há aproveitamento de técnicos em
Antropologia nas várias instituições que poderiam recrutá-los, o ensino da
Antropologia nas Escolas Superiores não encontra uma finalidade imediata ou
pragmática.

Estas são as razões por que registramos aquela situação aparentemente paradoxal,
aludida no início desta conferência: a desproporção entre o imenso material de estudo
de antropologia no Brasil e o número reduzido de especialistas. Serviços como o de
Imigração e Colonização, ou de Proteção aos Índios, bem como as várias tarefas de
educação, saúde, obras públicas, ação cultural, distribuídos pelos vários ministérios,
deveriam ter o concurso indispensável das ciências do homem e da sociedade.

A ação larga da chamada "antropologia aplicada", considerada hoje indispensável não


só na obra colonial de países como a Inglaterra, com seus problemas de
administração das colônias, ou de outros países que lidam com as massas indígenas,
como a Dinamarca, com os seus esquimós, os Estados Unidos, com seus índios, a
União Soviética, com o problema das nacionalidades que se distribuem por seu vasto
território, pode ser ampliada na obra de assistência técnica que se abre hoje nas
tarefas normativas da ação social, nos planos vários de sociedade e de cultura.

No Brasil, mal se registra a existência dessa "antropologia aplicada", que poderia


parecer aos políticos e administradores mal avisados tarefa de perigosa agitação

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subversiva, como é vez o considerar tudo aquilo que, entre nós, procura remover o
bolor da rotina ou do primarismo. E tudo isso por esta razão simples: o
desconhecimento do papel da universidade, principalmente no setor, ainda mal
consolidado, das ciências do homem e da sociedade.

Os "grandes problemas da antropologia brasileira" se convertem assim num único


problema: o da deficiência técnica do ensino e da pesquisa das disciplinas
antropológicas em nosso meio.

Possam estas minhas rápidas palavras, nesta oportunidade de tão gratas


recordações, provocar algumas ressonâncias favoráveis, são os votos mais sinceros
que aqui formulo.

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1O documento original se encontra no Catálogo "Arquivo Arthur Ramos Inventário


Analítico", estabelecido pela Biblioteca Nacional em 2004, sob o número 4247 (referência de pastas:

38, 4, 9).

2Uma portaria ministerial de 1948 tinha incluído o nome de Ramos na comissão que
deveria preparar o primeiro congresso brasileiro de antropologia, ao lado de Fróes da
Fonseca, Heloísa Alberto Torres e Roquette-Pinto.

3A Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP), fundada em 1933, e a Universidade


de São Paulo (USP), em 1934.

4Ramos foi um dos signatários do "Manifesto contra o Racismo", de 1942, e membro


da Liga dos Intelectuais Antifascistas.

5Instituição que ele associava a uma antropologia ultrapassada e com cuja longeva
diretora Heloisa Alberto Torres mantivera uma reiterada discórdia (cf. Corrêa 1997).

6Uma das muitas vítimas foi sua discípula mais próxima, a professora Marina São
Paulo de Vasconcelos, cassada em 1969, e que hoje dá o seu nome à Biblioteca do
IFCS/UFRJ.

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