Artigo Dons Espirituais - CTRE
Artigo Dons Espirituais - CTRE
Artigo Dons Espirituais - CTRE
ESPIRITUAIS
Setembro de 1994
Introdução
C. Peter Wagner, que já foi chamado “o mais articulado porta-voz do uso dos
dons espirituais no evangelismo,” afirma:2
Uma coisa relativamente nova aconteceu à igreja de Jesus Cristo na América
durante a década de setenta. A terceira Pessoa da Trindade veio para o que é
Seu, por assim dizer. Sim, o Espírito Santo sempre esteve lá. Credos, hinos,
liturgias têm atestado o lugar central do Espírito Santo na fé cristã ortodoxa.
Teologias sistemáticas através dos séculos têm incluído seções de
“pneumatologia”, afirmando assim o lugar do Espírito Santo no pensamento
cristão.
Mas raramente, se é que alguma vez, na história da igreja tem se
estendido sobre o povo de Deus um interesse tão disseminado, de passar dos
credos e teologias para uma experiência pessoal do Espírito Santo na vida
diária, em um grau como agora estamos testemunhando. A faceta mais
proeminente desta nova experiência do Espírito Santo são os dons espirituais. 3
1
Traduzimos “inventories” em todo o trabalho como “inventários”. A idéia é de testes aplicados aos membros da
igreja, para que estes descubram seus dons. N. do T.
2
Delos Miles, Church Growth, A Mighty River (Nashville: Broadman Press, 1981), 129.
3
C. Peter Wagner, Your Spiritual Gifts Can Help Your Church Grow (Ventura, Calif.: Regal Books, 1979), 19.
4
Cf. Evangelism and Church Growth with Special Reference to the Church Growth Movement. Em Português:
Evangelização e Crescimento da Igreja - com Especial referência ao Movimento “Church Growth”. Parecer da
Comissão de Teologia e Relações Eclesiais da Igreja Luterana - Sínodo de Missúri, 1987, traduzido por Eleonora I.
R. Kautzmann, p. 37.
sobre o assunto geral dos dons espirituais”. A Convenção recomendou ao Sínodo o
parecer da CTRE “para referência e orientação” e encorajou o Sínodo a “continuar a
fazer uso do documento e dos princípios que ele fornece com respeito aos dons
espirituais.” Ao mesmo tempo, o Sínodo solicitou formalmente à CTRE que “estudasse
com mais detalhe o assunto dos dons espirituais e especificamente o uso de
inventários de dons espirituais e trouxesse um parecer com os resultados dos estudos
para a Igreja.”5
É em resposta a esta solicitação específica do Sínodo que a CTRE apresenta
este parecer sobre “Dons Espirituais e Inventários de Dons Espirituais”. O parecer inicia
com uma “Breve História dos inventários de Dons Espirituais.” Seguida por uma
“Análise Bíblica dos Dons Espirituais” na parte 2. A parte 3 do parecer oferece “Uma
Teologia dos Dons e Chamados na Igreja”, que procura colocar o tópico dos dons
espirituais em sua perspectiva própria, no contexto dos três artigos do Credo
Apostólico.
5
Resolução 3-16, “Estudar o Assunto dos Dons Espirituais”, 1989 Convention Procedings, 119.
6
Wagner, 26.
7
Ibid., 19.
8
Ibid., 27.
especialmente a glossolalia (falar em línguas), curas e poderes milagrosos. Estes já
foram discutidos em dois pareceres anteriores da CTRE. 9
O segundo movimento que contribuiu para um intenso interesse no assunto dos
dons espirituais - embora por razões ligeiramente diferentes - é o assim chamado
Movimento do Crescimento da Igreja, que muitos identificam como tendo sido originado
em sua forma contemporânea no Seminário Fuller, na Califórnia. 10 Diferentes daqueles
envolvidos no neopentecostalismo, os seguidores do Movimento Crescimento da Igreja
tendem a não enfatizar os assim chamados dons de “sinais”. Em lugar disso, enfatizam
os dons menos espetaculares listados na Bíblia. Também diferentemente dos
neopentecostais, que enfatizam uma segunda experiência, separada, do Espírito
Santo, manifestada por dons, os proponentes do Movimento do Crescimento da Igreja
assumem que certos dons já foram dados a todos os cristãos em algum ponto do
tempo. Eles mantêm que todo cristão possui ao menos um dom e que muitos têm
diversos dons, em variados números, graus e variações. Esta é a base para a idéia de
que se a igreja consegue mobilizar seu povo para descobrir, desenvolver e utilizar seus
dons específicos, não há como evitar que ela cresça em número e vitalidade.
Foi o Movimento do Crescimento da Igreja que causou o desenvolvimento e uso
dos inventários de dons espirituais. Estes são instrumentos designados para auxiliar a
igreja em descobrir e implementar os dons espirituais de seus membros. O primeiro a
ganhar ampla popularidade foi o “Questionário Houts Modificado”, desenvolvido pelo
Instituto Fuller para Evangelismo no Seminário Fuller. Este inventário foi modificado
para uma audiência luterana, por David Hoover e Roger Leenerts em um programa
chamado11 Enlightened with His Gifts.12 As diversos inventários foram mais adiante
adaptados para uso por uma congregação individual em St. Paul, Trenton, Michigan e
para uso ao nível de distrito no Texas. Este último serviu de modelo para o “Estudo de
Renovação Pessoal”, parte de um mais amplo processo de educação na mordomia,
conhecido como “His Love - Our Response”13. Este programa proporcionou uma ampla
exposição dos inventários de dons espirituais entre o laicato da Igreja Luterana -
Sínodo de Missúri.14 Outro programa que foi usado por congregações do Sínodo é,
Gifted for Growth 15 preparado pelo Instituto para o Crescimento da Igreja, de Corunna,
Indiana.16
Além de trabalharem sobre o “Questionário Houts Modificado”, na formulação de
questões e avaliações, cada um dos programas acima depositam-se fortemente sobre
9
The Charismatic Movemente and Lutheran Theology, Parecer da Comissão de Teologia e Relações Eclesiais da
Igreja Luterana - Sínodo de Missúri, 1972 (um extrato do mesmo foi traduzido para o Português por Vilson Scholz,
publicado no livrete Dons Carismáticos, Concórdia Editora, 1975) e The Lutheran Church and the Charismatic
Movement: Guidelines for Congregations and Pastors, Parecer da Comissão de Teologia e Relações Eclesiais da
Igreja Luterana - Sínodo de Missúri, 1977 (Traduzido por Arnaldo Schüler - Movimento Carismático, Concórdia
Editora, 1977).
10
Cf. Evangelism and Church Growth.
11
“Iluminado com Seus Dons” - em programas próprios da Igreja nos EUA, optamos por conservar o título
original. N. do T.
12
David W. Hoover e Roger W. Leenerts, Enlightened with His Gifts: A Bible Study on Spiritual Gifts (St. Louis:
Lutheran Growth, 1979.).
13
“Seu Amor - Nossa Resposta”.
14
Cf. Robert W. Schaibley, “Measuring Spiritual Gifts,” Lutheran Quarterly 3 (Inverno 1989): 423-41.
15
“Dotado para Crescimento.”
16
Kent R. Hunter, Gifted for Growth: Na Implementation Guide for Mobilizing the Laity (Corunna, Ind: The Church
Analysis and Learning Center, 1983).
a apresentação de C. Peter Wagner dos imperativos bíblicos e da base teológica para
os inventários de dons espirituais, em seu Your Spiritual Gifts Can Help Your Church
Grow 17. Esta dependência fica evidenciada pelas expressões de dívida a Wagner nos
prefácios, forte dependência em relação à sua definição e enumeração de dons
espirituais, e o uso dos passos propostos por Wagner para descobrir dons espirituais. A
observação de Wagner de que há muita repetição na literatura sobre este assunto,
também é verdadeira no que se refere a estes programas.18 Dada a importância do
livro de Wagner em providenciar para estes programas uma base bíblica e
hermenêutica para dons espirituais, muito do que segue estará interagindo com sua
obra.
17
“Seus Dons Espirituais Podem Ajudar Sua Igreja Crescer”.
18
Wagner, 27.
19
Ibid., 36.
20
Hoover e Leenerts, 6.
21
Hunter, 151.
22
Ibid., 152.
Qual é o propósito de ajudar cada pessoa a encontrar um lugar na igreja? Visto
dentro do contexto da igreja como um corpo com muitos diferentes membros - sendo
que cada um deles precisa ser saudável e em funcionamento para o corpo poder ser
saudável e crescer - os dons espirituais são vistos como uma chave para a mobilização
dos membros. Esta mobilização, por seu lado, estimula o crescimento do corpo. Este
ponto está expresso no próprio título do livro de Wagner: Your Spiritual Gifts Can Help
Your Church Grow.23 “Ignorância a respeito dos dons espirituais”, ele adverte, “pode
ser uma causa principal do pequeno crescimento da igreja hoje.” 24 Opostamente, “o
conhecimento dos dons espirituais ... é a chave para o conhecimento da organização
da igreja.”25
Enfatizando a conexão entre os dons e o crescimento, Kent Hunter entitula seu
livro Gifted for Growth.26 Na Introdução deste livro, Hunter afirma que “Os dons
espirituais são um meio para se chegar a um fim: a missão e o ministério 27 do corpo de
Cristo.”28 Os dons espirituais precisam ser vistos dentro de um “contexto bíblico de
crescimento.” Na Conclusão do livro, ele oferece uma palavra de cautela e uma de
encorajamento. “O uso dos dons espirituais,” diz, “não é garantia que sua igreja vá
crescer. Outros fatores podem ser mais fortes para impedir o crescimento.” No entanto,
“em noventa e nove porcento das igrejas cristãs, a mobilização do povo de Deus de
acordo com o plano de Deus sobre os dons trará uma extraordinária mudança no
crescimento interno e externo da igreja.” 29 Os autores de Enlightened with His Gifts
também afirmam, ainda que não tão enfaticamente, “os dons espirituais têm um papel
importante no crescimento da igreja.”30
Além de contribuírem para o crescimento da igreja, a descoberta dos dons
espirituais (assim se diz) enriquecerá a vida do cristão. “Antes de mais nada,” diz
Wagner, “você será um cristão melhor e mais capaz de permitir que Deus faça sua vida
ter valor para Ele.”31 Outros livros e guias que estão mais dirigidos para uma audiência
luterana suavizam esta afirmação de Wagner, sem rejeitar sua tese fundamental. O
autor de Gifted for Growth testifica: “Para mim, tem sido um dos empreendimentos de
crescimento mais compensadores de minha vida cristã.” 32 Da mesma forma,
Enlightened with His Gifts sugere que os dons espirituais “são uma das chaves para a
maturidade espiritual.” Os autores têm a cautela de dizer que apesar de que os dons
espirituais podem ser “uma chave”, não são “a chave” para um desenvolvimento
espiritual do cristão.33 Mais adiante, os autores enumeram diversos outros benefícios
que seguem da descoberta dos dons espirituais, tais como trazer “direção” para a vida
da pessoa no reino de Deus e capacitar as pessoas e congregações e “virem para a
vida.”34
23
“Seus Dons Espirituais Podem Fazer Sua Igreja Crescer.”
24
Wagner, 32.
25
Ibid., 38,39.
26
“Dotado para Crescimento.”
27
Não traduzimos a expressão “the long haul” antes de “a missão e o ministério”. N. do T.
28
Hunter, 3.
29
Íbid., 152.
30
Hoover e Leenerts, 5.
31
Wagner, 49.
32
Hunter, 4.
33
Hoover e Leenerts, 7.
34
Ibid., 65.
Wagner vai adiante, afirmando que a descoberta e uso dos dons espirituais
beneficiarão não apenas os cristãos individuais, mas a igreja como um todo. 35
Enlightened with His Gifts concorda: “Todos os membros da igreja serão capazes de
trabalhar juntos em amor, harmonia e eficiência ... a descoberta, desenvolvimento e
uso dos dons espirituais farão muito para eliminar o orgulho, a falsa humildade e a
inveja.” Além disso, “a igreja amadurecerá” e com tal maturidade, “a igreja irá
crescer.”36 Finalmente, Wagner observa que a “coisa mais importante que o
conhecimento dos dons espirituais faz é que glorifica a Deus.”37 Enlightened with His
Gifts ecoa o sentimento de que “Deus será glorificado.”38
O que é um dom espiritual? Visto que a definição dada por diversos autores
seguem quase que literalmente aquela dada por Wagner, a seguinte servirá como um
ponto de partida: “Um dom espiritual é um atributo especial dado pelo Espírito Santo
para cada membro do corpo de Cristo, conforme a graça de Deus, para uso dentro do
contexto do corpo.39 Diversos aspectos desta definição são dignos de nota. Primeiro, é
enfatizada a importância do corpo como o contexto para a discussão sobre os dons
espirituais. Segundo, um dom espiritual é definido como um “atributo especial”. Outros
se referem a ele como uma “habilidade especial.” Como veremos, o termo “dom
espiritual” quase sempre se refere a uma capacidade ou habilidade particular que
alguém recebeu. Terceiro, cada cristão recebeu ao menos um dom. Quarto, estes dons
são dados pelo Espírito Santo em algum ponto específico no tempo, simultaneamente
com ou subseqüente à conversão da pessoa.
Pode ser de ajuda para dar maior precisão a esta definição, examinando aquelas
coisas que geralmente não são consideradas como dons espirituais. Primeiro, dons
espirituais não são equivalentes a talentos naturais. Isto é assim porque, Wagner
insiste, “ter talentos naturais não tem diretamente nada a ver como ser cristão ou
membro do corpo de Cristo.”40 Assim, por exemplo, habilidades tais como aquelas
necessárias para consertar automóveis, cozinhar e trabalhar não são dons espirituais.
Mesmo se tais dons naturais forem dedicados aos serviço do Evangelho, eles não
deveriam ser considerados dons espirituais. Wagner diz que os dons espirituais não
devem ser considerados como “talentos naturais dedicados.” Ele concede, porém, que
em alguns casos (“não em todos, de maneira nenhuma”) Deus pode transformar um
talento natural em um dom espiritual. Como um exemplo, ele cita o vendedor que, uma
vez convertido, tornou-se um dos mais bem-sucedidos evangelistas no Sul da
Califórnia.41
Segundo, dons espirituais não são o mesmo que o fruto do Espírito (Gl 5.22,23).
Esta última categoria tem mais a ver com qualidades éticas que todos os cristãos
35
Wagner, 50.
36
Hoover e Leenerts, 65; cf,. Wagner, 50.
37
Wagner, 51.
38
Hoover e Leenerts, 66.
39
Hoover e Leenerts, 66.
40
Ibid., 86.
41
Ibid., 87.
possuem em comum e devem apresentar. Embora não sejam idênticos aos dons
espirituais, Wagner crê que eles sejam pré-requisito para o uso apropriado dos dons
espirituais. Possuir dons espirituais sem o fruto do Espírito é comparado a ter pneus de
automóvel sem qualquer ar para inflá-los. O carro não irá muito longe tão cedo. Ao
passo que todos os cristãos devem apresentar o fruto do Espírito, diferentes dons
espirituais são dados a pessoas diferentes.42
Terceiro, dons espirituais não devem ser entendidos como uma função ou
ministério específicos. Por exemplo, oração, fé, oferta e serviço são funções que todos
os cristãos devem executar. A diferença entre um dom e uma função pode ser ilustrada
pela referência à função que uma pessoa deve cumprir dentro e fora do casamento.
Apesar de que todos os cristãos têm a função de permanecer castos até que casem,
outros têm o dom do celibato, e assim não têm o desejo de casar. Da mesma forma,
todos os cristãos têm a fé, mas nem todos têm o dom da fé heróica. Todos têm a
função de ofertar, de seus recursos para a missão da igreja, mas nem todos têm o dom
de ofertar acima e além do que é esperado de qualquer pessoa.
Como observado acima, uma das premissas básicas dos inventários de dons
espirituais é a convicção de que cada cristão recebe ao menos um dom. Isto é
consistente com, e brota do paradigma da igreja como um corpo humano. Cada cristão
é um membro do corpo de Cristo e tem um papel a exercer dentro do corpo. Assim,
cada cristão recebeu um dom que define o lugar daquela pessoa dentro do corpo e é
especialmente apropriado para desempenhar as funções daquele papel, seja como um
dedo, um pé, uma mão ou um braço. Um dos textos bíblicos usados para fundamentar
a afirmação de cada um tem ao menos um dom é 1 Pe 4.10: “Servir, uns aos outros,
cada um conforme o dom que recebeu, como bons despenseiros da multiforme graça
de Deus.” Outro texto freqüentemente citado é 1 Co 12.7, onde Paulo diz: “A
manifestação do Espírito é concedida a cada um, visando a um fim proveitoso.”
Embora todo cristão tem ao menos um dom, muitos podem bem possuir diversos dons
ao mesmo tempo e em diversas “combinações de dons.” 43
A descoberta e uso dos dons é vista pelos defensores dos inventários de dons
espirituais como a chave para a saúde da igreja. Wagner diz:
Penso que não estou errado em afirmar que um dos principais exercícios
espirituais para qualquer cristão é descobrir, desenvolver e usar seu dom
espiritual. Outros exercícios espirituais podem ser igualmente importantes:
culto, oração, leitura da palavra de Deus, alimentar o faminto, ou o que você
42
Ibid., 88,89.
43
Este termo é utilizado de forma usual por Wagner e por aqueles se baseiam em suas obras.
tem a fazer. Mas não sei de nada mais importante do que descobrir,
desenvolver e usar os dons espirituais.44
Ele argumenta que a igreja tem atuado por 1900 anos sob o “Plano B” da missão
de Deus para a igreja, por não auxiliar seus membros a descobrir e usar seus dons
espirituais. O “Plano A” envolve uma ênfase e trabalho conscientes com o fim de
descobrir, desenvolver e utilizar os dons espirituais.45 Dois princípios básicos se
aplicam: Deus quer que cada cristão tenha e use um dom espiritual e quer que as
“ovelhas perdidas” sejam encontradas. Gifted for Growth também argumenta: “Três das
mais importantes metas na sua vida cristã são descobrir, desenvolver e usar os dons
espirituais que Deus lhe deu.” 46
Os que defendem os inventários de dons espirituais citam diversas passagens
bíblicas como exortações explícitas para descobrir os dons espirituais de cada um. Por
exemplo, Wagner sugere utilizar como “ponto de partida” a exortação de Paulo em Rm
12.3, para que se “pense com moderação” sobre si mesmo.47 Os autores de
Enlightened with His Gifts referem-se à declaração de Paulo em 1 Co 12.1: “A respeito
dos dons espirituais não quero, irmãos, que sejais ignorantes.” 48
Como um cristão age para descobrir seu(s) dom(dons) espiritual(ais) ou
“combinação de dons”? Wagner lista cinco passos, que são duplicados quase que
literalmente em Gifted for Growth e em Enlightened with His Gifts. Conforme o arranjo
acróstico em Gifted for Growth, os passos envolvem o seguinte:
1. Explore as possibilidades.
2. Experimente tantos dons quantos puder.
3. Examine seus sentimentos.
4. Estime (avalie) sua eficácia.
5. Espere confirmação do corpo de Cristo.49
F. Catalogando os Dons
44
Wagner, 44.
45
Ibid., 47.
46
Hunter, 9.
47
Wagner, 35.
48
Hoover e Leenerts, 23.
49
Hunter, 9-14; Wagner, 116-33; Hoover e Leenerts, 66-67.
50
Não traduzimos a expressão “or names”. N. do T.
51
Wagner, 86.
Com base nos textos bíblicos, Wagner identifica 27 dons.52 Gifted for Growth
segue Wagner, listando os mesmos 27 dons.53 Estes incluem: profecia, serviço, ensino,
exortação, oferta, liderança, misericórdia, sabedoria, conhecimento, fé, curas, milagres,
discernimento de espíritos, línguas, interpretação de línguas, apóstolo, auxílio,
administração, evangelista, pastor, celibato, pobreza voluntária, martírio, hospitalidade,
missionário, intercessão e exorcismo. Enlightened with His Gifts, por outro lado, lista
apenas 20. Estes incluem: apóstolo, profeta/profecia, evangelista, pastor-mestre,
exortação, palavra de sabedoria, conhecimento, servir, auxílios, liderança,
administração, oferta, mostrar misericórdia, discernir espíritos, fé, hospitalidade,
línguas, interpretação de línguas, curas, milagres. 54
52
Ibid., 39-73.
53
Hunter, 17-63.
54
Hoover e Leenerts, 40-63.
55
“Signifying.” Talvez: “sinalizar”, no sentido de mostrar “sinais”. N. do T.
56
Leslie B. Flynn, 19 Gifts of the Spirit: Which Do You Have? Are You Using Them? (Wheaton, Ill.: Victor Books,
1977), 32.
A. A Metáfora do Corpo como uma Chave Interpretativa para o Dons Espirituais
Como já foi discutido acima, a maior parte dos proponentes dos inventários de
dons espirituais sustentam que a metáfora do corpo serve como um paradigma ,
contendo um imperativo programático para que se procure o crescimento da igreja
através de um processo de descobrir, desenvolver e empregar os dons do Espírito.
Assim, examinaremos primeiro o uso desta metáfora por Paulo, no contexto de sua
discussão sobre os dons espirituais. Como veremos, o uso de Paulo, do corpo como
metáfora para a igreja, de fato molda sua abordagem sobre os dons, de maneira
sugestiva - mas não da maneira como muitos proponentes dos inventários de dons
espirituais sugerem. Paulo emprega esta metáfora para argumentar em favor da
unidade e maturidade do corpo, não pelo crescimento externo da igreja.
Em sua primeira carta aos Coríntios, Paulo trata de algumas questões específicas
que estavam perturbando a igreja em Corinto e que haviam levado a divisões abertas
dentro da congregação. Um problema sério era o excessivo individualismo, que havia
dividido a congregação. Já no primeiro capítulo, Paulo confronta o partidarismo exibido
por alguns dos Coríntios que ligavam-se a Paulo, ou a Apolo, ou a alguém outro. Este
problema aparece novamente nos capítulos 12 a 14, agora ligado aos dons espirituais.
A preferência de alguns dons sobre outros é um dos fatores que contribuíam para as
divisões entre os Coríntios.
Os versículos iniciais de 1 Co 12 estabelecem a base para a discussão de Paulo
sobre os dons espirituais. Aqui Paulo oferece um padrão para avaliar os dons - ou seja,
a confissão de Cristo. Em resposta à questão, “Quem tem o Espírito Santo?”, Paulo
afirma: “Todo aquele que confessa que Jesus é Senhor.” Por outro lado, todo o que
“jura fidelidade” aos príncipes deste mundo, amaldiçoa Jesus. Todo aquele que
confessa Cristo compartilha do mesmo Espírito. A confissão de Cristo providencia,
assim, o ponto de partida e contexto para subseqüente discussão das manifestações
do Espírito.
Depois de estabelecer o fundamento básico nos versículos 2 e 3, Paulo desdobra
seu argumento nos capítulos 12 a 14, em torno dos dois polos da unidade e
diversidade. Ele entrelaça estes temas como fios de cabelo em uma trança. A repetição
de Paulo das palavras variedades (Almeida RA: “diversidade”57) e mesmo nos
versículos 4 a 6 realça o tema da diversidade e unidade desenvolvido nos versículos
subseqüentes.
Os dons são diversos, mas o Espírito é o mesmo.
Há diversidade nos serviços, mas o Senhor [=Cristo] é o mesmo.
57
No original, a mesma palavra (⬧) é empregada três vezes. N. do T.
Há diversidade nas realizações, mas o mesmo Deus [=Pai] é quem opera tudo
em todos.58
58
“Distribuição” pode ser uma tradução melhor aqui do que “diversidade” (Almeida RA, Bíblia de Jerusalém) ou
“diferentes” (Linguagem de Hoje). Além de enfatizar a variedade dos dons, este termo chama a atenção para a fonte
dos vários dons, ou seja, Deus, o Senhor, o Espírito.
59
“For the common good” - para o bem comum. A mesma idéia aparece em BLH (“bem de todos”) e BJ (“utilidade
de todos”). A expressão empregada é ⧫ ⬧◆◼ (do verbo
seus dons pelo bem comum de todo o corpo. Seu objetivo é puxar os Coríntios para
que fiquem juntos, puxando-os para Cristo. Além disso, contra uma esmagadora
preferência pelo dom de línguas, Paulo procura ampliar os horizontes dos Coríntios
abrindo todo o espectro das manifestações do Espírito. Longe de identificar um dom
como o melhor, ou como a manifestação exclusiva do Espírito, Paulo deixa claro que o
Espírito se manifesta através de uma variedade ampla de dons, nenhum dos quais
devendo ser excluído. Isto implica que o corpo precisa de uma tal diversidade. Sem ela,
o corpo seria uma entidade incompleta e de funcionamento prejudicado.
Ao utilizar a ilustração do corpo, Paulo aborda dois grupos diferentes da
congregação. Nos versículos 14 a 19 ele encoraja aqueles que sentem que seus dons
são inferiores ou desnecessários, reafirmando a eles que o corpo precisa da
contribuição de cada membro. Nos versículos 20 a 26 Paulo fala aos “elitistas” na
congregação, que tinham a atitude de “não preciso de vocês” em relação aos outros. 60
Ele menciona aquelas manifestações que estavam sendo “reivindicadas” ou “exaltadas”
em detrimento de outras (celibato, línguas, sabedoria). Aqueles que têm dons mais
espetaculares, diz Paulo, não têm o direito de dizer a outros cristãos que seus dons
são menos valiosos ou importantes. Sim, alguns dons podem até ser mais
espetaculares, mas há um único Senhor. Nenhuma manifestação do Espírito pode ser
considerada pouco importante ou de menos valor do que outra.
Com base nesta discussão no capítulo 12, Paulo segue em frente, mostrando
como os Coríntios devem utilizar seus dons em amor, para o bem comum (1 Co 13).
Ele os admoesta “da forma mais enfática de que o amor deve permear e motivar seu
uso dos dons espirituais ou eles tornar-se-ão sem sentido e inúteis.”61
A análise acima indica que Paulo não utiliza a metáfora do corpo em 1 Co 12 para
encorajar os Coríntios para que descubram e usem seus multiformes dons para o
propósito explícito da missão e evangelismo.62 O problema em corinto não era que os
Coríntios estivessem deixando de usar seus dons - se havia problema aí, era de que
estavam utilizando-os ao ponto de abusarem deles! Eles estavam preocupados em
determinar que dons seriam os mais desejáveis e valiosos. Eles estavam
aparentemente utilizando-os de tal forma que a graduação e preferência por certos
dons haviam causado divisão e inveja dentro da congregação.
Paulo emprega a metáfora do corpo para chamar os Coríntios a viverem juntos, e
a servirem uns aos outros dentro do corpo. Ele fundamenta a verdade que os cristãos
⬧◆), que significa “benefício”, “vantagem”. A idéia, pelo que se vê no contexto, é realmente do
benefício de toda a igreja. N. do T.
60
Ver D. A. Carson, Showing the Spirit: A Theological exposition of 1 Corinthians 12-14 (Grand Rapids, MI: Baker
Book House, 1987), 48.
61
Charismatic Movement, 20.
62
Isto, obviamente, não sugere que o Espírito não conceda dons para a evangelização do mundo (cf. Charismatic
Movement, 16,21). Cf. também Evangelism and Church Growth, 20 (Evangelização e Crescimento da Igreja:
“Como filhos, os cristãos têm a promessa de que Deus, por Seu Espírito Santo, quer operar neles tanto o querer
como a habilidade de serem seus instrumentos para levar a mensagem da salvação ao mundo que jaz na morte (Fp
2.13). Para esta finalidade, ele dá aos cristãos os dons da graça, as habilidades e aptidões que os habilitam a cumprir
este importante serviço.” [16])
constituem um só corpo em Cristo no fato que todos eles foram batizados em um
Espírito para dentro de um corpo. “A unidade do corpo, a igreja, predicada no fato de
que todos os seus membros foram batizados em um Espírito para dentro deste corpo, é
agora aplicada aos problemas em Corinto.” 63 Paulo enfatiza que todos os cristãos
foram batizados para dentro do corpo de Cristo, e todos receberam de beber do único
Espírito (v. 13).64 Conseqüentemente, a discussão de Paulo sobre os dons espirituais
não se concentra no crescimento externo do corpo, mas na unidade do corpo.
O uso que o apóstolo faz desta metáfora segue de sua tese colocada no versículo
7. Quando ele diz: “A manifestação do Espírito é concedida a cada um, visando a um
fim proveitoso”, não é imediatamente evidente, como alguns inventários de dons
espirituais iriam sugerir, que ele esteja se referindo ao bem comum da raça humana. O
contexto indica que Paulo tem em mente o “bem comum” da igreja.65 Em outras
palavras, Paulo aborda o uso destes dons “intracorpo” ou “intracongregação”, e não
“extracongregação” (fora do corpo). Não se consegue enfatizar este ponto o suficiente.
Os dons não são dados simplesmente para auxiliar o corpo a crescer ou para capacitar
os membros para “fazerem sua parte”. A preocupação de Paulo é que cada membro do
corpo funcione “individualmente e propositalmente para a saúde e bem-estar de todo o
corpo.66 Apenas depois de sublinhar a unidade que existe no corpo de Cristo, apesar
da diversidade de dons, raças e nacionalidades (judeus e gregos), Paulo segue (com
base nisto) para discutir o uso próprio dos dons.
Em 1 Co 12 e 14, portanto, Paulo deixa claro que no corpo de Cristo o olho não
pode dizer para a mão: “não preciso de você.” Da mesma forma, os membros do corpo
devem ter igual interesse uns pelos outros (12.25). O interesse de Paulo pelo “bem
comum” leva-o a “comparar a igreja cheia do Espírito a um corpo humano no qual
‘todos os membros têm o mesmo cuidado uns pelos outros’, assim que ‘se um membro
sofre, todos sofrem com ele; e, se um deles é honrado, com ele todos se regozijam’.” 67
O dom da profecia edifica a igreja. Aquele que profetiza fala para a igreja (14.4; cf.
14.26). O interesse “intracongregacional” por detrás do uso paulino da metáfora do
corpo também emerge mais adiante, no capítulo 14, quando ele discute o culto público
e encoraja os Coríntios a fazerem tudo de forma ordeira (14.40).
63
Carson, 47.
64
A última frase pode ser lida como uma referência à Ceia do Senhor , que também tem profundas implicações para
a unidade da igreja como o corpo de Cristo (1 Co 10.16,17; 11.23,24).
65
Charismatic Movement, 20.
66
Martin Franzmann, Alive with the Spirit (St. Louis: concordia Publishing House, 1973), 39.
67
Ibid., 38.
dádivas especiais em detrimento a talentos naturais, milagrosos em detrimento a
habilidades ou ofícios não milagrosos. Todo dom, não importa sua natureza ou
definição, continua sendo um dom do Deus único, para o propósito de edificar o corpo.
“que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te vanglorias, como
se o não tiveras recebido?” (1 Co 4.7)68 Não importa as diferenças e variedades das
manifestações do Espírito, todas vêm de Deus. Este é o ponto crucial.
Além de minimizar a distinção entre os vários dons, dirigindo a atenção dos
Coríntios para o Doador de todas as boas dádivas e para a unidade do corpo, que Ele
cria, Paulo usa a imagem de um corpo e de seus membros para virar de cabeça a
classificação dos dons. Os “melhores dons” vão para o fim da lista. Os “dons menos
espetaculares” vão para o começo. Assim, os “mais importantes dons”, membros ou
funções em um corpo não são necessariamente aqueles que são “mais espetaculares”.
Pelo contrário, as partes não decorosas do corpo são de igual importância. A inversão
que Paulo faz com a classificação dos Coríntios reflete sua “teologia da cruz” 69
articulada anteriormente em sua epístola. Nos capítulos 1 a 3 Paulo exaltou a loucura
da cruz e a contrastou com a sabedoria do mundo. No capítulo 12 Paulo exalta aqueles
dons que parecem ser menos espetaculares, úteis e distintivos, e diz que eles também
têm um papel fundamental a exercer dentro do corpo de Cristo.
Perante Deus nenhum dom pode ser classificado por importância. O valor de
qualquer dom não está em sua natureza intrínseca. Paulo aborda os dons com base
em seu valor para a edificação do corpo. Sob certas circunstâncias, alguns dons
podem ser mais proveitosos para o corpo. Um dom deve ser avaliado não com base no
que ele faz por mim, mas em termos de seu valor para meu irmão ou irmã em Cristo.
Desta forma, Paulo rebaixa os dons que os Coríntios haviam exaltado entre eles e
promove os dons que beneficiam outros. Os Coríntios não precisam cobiçar um dom ou
um lugar no corpo que eles não tenham recebido. Paulo quer que eles, em lugar disto,
busquem o bem-estar de seus próximos. Ele, assim, subordina as línguas, colocando-
as no fim da lista, porque este dom beneficia apenas o indivíduo. Ao mesmo tempo, ele
eleva o dom da profecia para o começo da lista porque edifica o corpo.
Enquanto Paulo obscurece e aparentemente ignora as distinções entre os dons,
poder-se-ia perguntar se os inventários de dons espirituais acentuam ou não as
diferenças e elevam a importância dos dons espirituais como dádivas especiais
(opostas a talentos naturais dados por Deus). Um perigo semelhante brota da forma
como muitos no movimento carismático tendem a enfatizar dons carismáticos e
espetaculares, em detrimento aos dons não carismáticos e não espetaculares. Quando
certos dons são enfatizados em detrimento a outros, a distinção entre os dons é
radicalizada e isto, como em Corinto, freqüentemente produz divisão.
68
A versão inglesa realça o argumento: “como se não fosse um dom”. N. do T.
69
A expressão “teologia da cruz” se refere ao ensino da Escritura de que Deus freqüentemente revela sua graça e
glória “escondendo-a” sob sofrimento, fraqueza e privação. O maior exemplo disto, obviamente, é a revelação da
graça de Deus na cruz e sofrimento de Cristo. Ver Heino O. Kadai, “Luther’s Theology of the Cross,” in Accents in
Luther’s Theology, ed. Heino O. Kadai (St. Louis: Concordia Publishing House, 1967).
Os inventários de dons espirituais levantaram uma série de questões sobre o
listar e catalogar dos dons, sobre sua natureza e definição, e sobre o propósito ou
função de cada dom. Quantos dons há? Pode-se acrescentar alguns novos, que não
estejam listados na Bíblia? A lista está fechada ou aberta? São os dons espirituais
habilidades naturais latentes (talentos que a pessoa possui e que não são utilizados
antes da pessoa se tornar cristã) ou devem ser claramente distinguidos dos talentos
naturais? De que forma os dons espirituais se diferenciam dos papéis e atividades para
os quais Deus chama Seu povo? Finalmente, podem os dons espirituais ser
distinguidos claramente do fruto do Espírito? Os inventários de dons espirituais
precisam responder a estas questões e fornecer definições precisas de cada dom
espiritual, para formar as perguntas que permitem às pessoas determinarem que dons
têm recebido.
Surpreendentemente, em suas discussões sobre os dons, Paulo mostra muito
pouco interesse em definir os dons individuais ou em fazer distinções entre eles. Seu
tratamento a respeito dos dons, na verdade, parece ser acidental. Distinções não
aparecem com clareza, de modo que diversos dons parecem sobrepor-se a outros.
Conseqüentemente, há falta de consenso entre os estudiosos, quanto à definição e
natureza dos itens nas listas de Paulo. Paulo parece estar dizendo: “De qualquer forma
que o Espírito se manifeste dentro da igreja para o bem da igreja, receba-o como um
dom. É uma obra do Espírito.” O foco de Paulo sobre a unidade do corpo e o
subseqüente “achatamento” das distinções entre os dons, é evidente em sua lista e
arranjo dos dons, em sua definição dos dons e também pelo seu uso do termo
charismata.
70
John R. W. Stott, Baptism and Fullness: The Work of the Holy Spirit Today (Downers Grove, Ill.: InterVarsity
Press, 1977), 88.
71
Ibid., 88.
72
Forteenth Hayama Missionary Seminar: The Contemporary Work of the Holy Spirit, ed. Carl C. Beck (Tokyo:
1973), 9; cf. Stott, 88.
73
Gordon D. Fee, The First Epistle to the Corinthians (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1987), 585.
nitidamente os dons do Espírito dos dons da criação (talentos naturais). Os primeiros
são dados apenas a cristãos; os últimos, a todas as pessoas. Os inventários também
tendem a concluir que estes dons do Espírito não são simplesmente papéis ou ofícios,
mas são qualidades ou talentos dados pelo Espírito, que as pessoas possuem,
presumivelmente até o ponto em que permaneçam cristãos. Finalmente, uma distinção
acentuada é feita entre os dons do Espírito e o fruto do Espírito (transformação moral).
Os dons variarão de pessoa a pessoa, mas o fruto do Espírito se manifesta (apesar de
que em graus variados) em todos os cristãos.
A discussão de Paulo sobre os dons espirituais, no entanto, leva a conclusões
bastante diferentes destas. Qualquer tentativa de identificar a natureza precisa dos
dons espirituais é frustrada pelo tratamento ad hoc de Paulo sobre os dons. Em
nenhum lugar ele define um dom espiritual tão especificamente ao ponto de limitá-lo a
uma habilidade especial. Seu uso do termo charismata e sua listagem dos dons
incluem um amplo espectro de fenômenos. Novamente, é como se Paulo estivesse
dizendo: “Onde e quando quer que o Espírito esteja se manifestando e edificando a
igreja, você pode considerar isto como um dom do Espírito.” Na discussão que segue,
tentaremos examinar os termos charismata e pneumatika e então tentaremos
determinar quais dons, se porventura algum, podem ser propriamente descritos como
“habilidades especiais.”
Os dois termos acima são os mais prováveis candidatos para o título ou tradução
de “dons espirituais.” Curiosamente, ambos são característicos de Paulo. Dos dois,
charismata é usado de forma bem mais freqüente do que pneumatika nos escritos de
Paulo. O primeiro poderia ser traduzido por “dons da graça” ou “expressões da graça”.
O segundo poderia ser traduzido como “expressões do Espírito”.
Charismata
O termo charisma (forma singular do charismata) é encontrado dezesseis vezes
nos escritos de Paulo e uma vez em 1 Pedro (4.10). Sua abrangência de significado
sobrepõe-se consideravelmente com charis (graça). Não é de se surpreender que um
apóstolo que se regozija em enaltecer a graça de Deus devote atenção aos dons que
são dados gratuitamente por Deus. A palavra empregada por Paulo abrange uma
ampla variedade de dons e tipos de dons, que não podem ser restringidos a
“habilidades especiais” de um cristão.
Em Rm 1.11 Paulo emprega o termo em conexão com encorajamento mútuo, mas
não parece ter qualquer dom específico em mente. Diversas vezes em Romanos,
charisma se refere ao dom da vida eterna. Por exemplo, em Rm 5.15,16 o charisma é
aquilo que traz vida eterna, em contraste com a morte, trazida sobre a humanidade por
Adão. No capítulo seguinte, Paulo contrasta o charisma da vida eterna com o salário do
pecado, que é a morte (Rm 6.23). Mais adiante em Romanos charisma se refere à
eleição de Israel (Rm 11.29). É somente no capítulo 12 que Paulo utilizará o termo
charisma em conexão a uma lista específica de dons.
Paulo inicia sua carta aos Coríntios, lembrando-os de que eles não têm falta de
nenhum dos charismata na expectativa ante o retorno do Senhor (1 Co 1.7). Isto pode
ser uma referência aos itens listados mais adiante, no capítulo 12. Em 1 Co 7.7 Paulo
diz que todas as pessoas receberam um charisma de Deus, um “de um modo”, outro,
“de outro”. No contexto, “de um modo” e “de outro” se referem ao dom do casamento e
ao dom do celibato. Enquanto “celibato” pode ser entendido como uma habilidade
especial, é difícil ver como o casamento entra nesta categoria. Os usos adicionais de
charismata são encontrados no capítulo 12, onde Paulo se refere a “diversidade” de
dons (12.4,31) e aos dons (plural) de curar (12.9,28,30).
De interesse especial é o uso de charismata nos versículos iniciais de 1 Co 12,
junto com outros dois termos. Nos versículos 4 a 6 Paulo indica que há diferentes tipos
de dons, serviço e realizações. Primeiro, há charismata (expressões da graça);
segundo, há diakoniai (formas de serviço); finalmente, há energemata (realizações,
energias, atividades ou poderes).74 O termo serviço (diakonia), no versículo 5, é
utilizado no Novo Testamento para todos os tipos de trabalho, tais como servir às
mesas (At 6) e reunir dinheiro para os pobres (2 Co 8.4,5). Atos de serviço do dia-a-dia
também parecem estar incluídos neste termo. A palavra realizações (energemata)
parece designar diversas formas nas quais o poder de Deus é aplicado. “Ele
praticamente ocupa o mesmo espaço que charismata, mas dá mais ênfase à idéia de
força, do que de doação.” 75
Paulo usa os três termos para descrever o amplo espectro dos assim chamados
dons espirituais. Com base em 1 Co 12.4-6, James Dunn mantém que estas três
expressões são maneiras alternativas de discutir o mesmo fenômeno. “Todos os
charismata são atos de serviço; todos são ações operadas por Deus; todos são
manifestações do Espírito para o bem comum.” No versículo 7 os três termos são
incluídos sob a expressão “manifestação do Espírito.” Com base nisto, Dunn sustenta
que charismata refere-se a “ações concretas, eventos reais”, não a possibilidades
latentes ou habilidades escondidas. Um “charisma é um evento, uma ação possibilitada
pelo poder divino; charisma é energia divina efetuando um resultado específico (em
palavra e ação) através do indivíduo.”76 Quando uma cura acontece, ela manifesta a
obra do Espírito e é, assim, um dom do Espírito. Desta perspectiva, os “dons”
aparentemente incluiriam tais coisas como habilidades, ofícios, papéis e tarefas.
Em 2 Co 1.11 Paulo se refere ao “benefício” dado a ele em resposta às orações
de muitos - sua libertação divina, uma ação de Deus em seu favor. Em 1 Tm 4.14, ele
adverte Timóteo para que não negligencie o charisma dado a ele através da imposição
de mãos. Mais adiante, Paulo exorta Timóteo a reavivar o dom de Deus recebido
através da imposição de mãos de Paulo (2 Tm 1.6). O dom, apesar de não ser
especificado, pode muito bem se referir ao ministério para o qual Timóteo havia sido
chamado. Daí Paulo adverte Timóteo a que não diminua aquele ministério através de
preguiça, timidez ou falta de autodisciplina.
Esta breve pesquisa sugere que o termo charisma não pode ser considerado
como termo técnico seja para dons sobrenaturais seja para habilidades especiais. Ele
pode se referir ao dom de encorajamento, ao dom da oferta generosa, o dom do
74
Cf. Stott, 87.
75
Archibald Robertson and Alfred Plummer, A Critical and Exegetical Commentary on the First epistle of St. Paul
to the Corinthians (Edinburgh: T. & T. Clark, 1978), 264.
76
James Dunn, Jesus and the Spirit: A Study of the Religious and Charismatic Experience of Jesus and the First
Christians as Reflected in the New Testament (Philadelphia: The Westminster Press, 1975), 209.
casamento ou celibato, ou mesmo (como repetidamente) ao dom da salvação. Nem
mesmo em 1 Co 12 a 14 charismata “adquire uma força semitécnica.”77 O que todos
estes itens têm em comum e o que os liga é que são expressões da graça, eles são
dons. Eles são dados gratuitamente por Deus, pela pura generosidade de Sua graça
divina.
Pneumatika
Pneumatika é o outro termo que é freqüentemente traduzido como “dons
espirituais.” Assim como o termo charismata, ele é característico de Paulo, que o
emprega de pelo menos três formas.
O adjetivo pneumatikos difere de charisma em seu alcance de significado. Ele
modifica outra palavra, indicando que ela é, de alguma forma, “espiritual.” Em Rm 1.11
ele qualifica o próprio charisma. Mais adiante em Romanos Paulo indica que a lei é
espiritual, dada ou revelada pelo Espírito (7.14). Em 1 Co 15.44-46, o apóstolo
descreve o corpo ressurreto como sendo um corpo espiritual. Em Ef 1.3 Paulo se refere
às bênçãos espirituais dadas pelo Espírito. Cl 1.9 realça o conhecimento espiritual e
Paulo fala de “cânticos espirituais” em Ef 5.19 e Cl 3.16. Como substantivo, pnematikos
pode se referir a uma pessoa espiritual ou a um povo espiritual. Este é um povo que
parece estar possuído pelo Espírito ou que manifesta o Espírito (ver, por exemplo, 1 Co
2.13,15; 14.37; Gl 6.1). Tanto Paulo como seus oponentes em Corinto afirmavam ser
“espirituais.” Como neutro plural, a palavra se refere a “coisas espirituais.” Isto é visto
mais claramente em 1 Co 9.11, onde Paulo contrasta as atividades e atitudes do
Espírito, com aquelas da carne (cf. Rm 15.27).78
Quando Paulo inicia sua discussão em 1 Co 12, com as palavras, “A respeito dos
pneumatikon,” ele parece estar considerando uma questão específica que surgiu em
Corinto e que ele agora pretende responder, durante os próximos três capítulos. A
questão centraliza-se na palavra pneumatikon.79 Considerada masculina, pode se
referir a pessoas espirituais (2.15; 3.1; 14.37). Considerada neutra, pode se referir a
coisas espirituais (9.11; 14.1; 15.46). A primeira leitura pode ser a preferível, visto que
o termo serviria para emoldurar a discussão de Paulo, abrindo e fechando o capítulo
com uma referência à real raiz do problema em Corinto, isto é, as assim chamadas
“pessoas espirituais.” A leitura “coisas espirituais” (forma neutra) é apoiada pelo
assunto do capítulo, visto que a discussão que segue é dedicada especialmente ao
tópico dos “dons espirituais.” Neste caso, pneumatikon poderia ser melhor visto como
sinônimo de charismata. O uso deste termo em 1 Co 2.13 e 14.1 parece confirmar esta
posição. Se tomamos em consideração a ambigüidade deste termo, a questão que
Paulo procura responder em sua discussão poderia ser colocada como: “É realmente
verdade que as manifestações espirituais (pneumatika) constituem-se em evidência
inequívoca de pessoas espirituais (pneumatikon)?”80
77
Carson, 21.
78
Cf. Dunn, 208.
79
É importante para entender o argumento considerar que o termo grego (◼◆⧫◼) é o genitivo
plural, sendo a mesma forma para o neutro e para o masculino. (N. do T.)
80
Carson, 22.
Se os termos charismata e pneumatika advertem contra traçar uma linha muito
definida em torno da natureza dos dons espirituais, definindo-os como “habilidades
especiais”, os itens individuais que Paulo lista levam à mesma conclusão. Estes itens
referem-se a pessoas, ofícios, papéis, responsabilidades, habilidades ou a eventos
reais? Cada uma destas opiniões têm seus defensores. É possível que a resposta seja
“Sim!” Paulo não parece distinguir nitidamente entre dons espetaculares e não
espetaculares, entre talentos naturais e dádivas especiais, entre habilidades e papéis,
ofícios e pessoas. Existe suficiente ambigüidade com respeito à natureza de cada dom,
de modo que qualquer intérprete deveria deter-se antes de caracterizar com confiança
a natureza dos dons. O ponto permanece: qualquer que seja a manifestação, qualquer
que seja sua natureza, qualquer que seja sua definição, vem como um dom gracioso
de Deus. O mesmo Deus realiza todas as coisas. Paulo parece lançar a rede tão
amplamente quanto possível. Esta abordagem está fundamentada pelas seguintes
considerações.
Em primeiro lugar, vários dos itens que Paulo lista parecem se referir a ofícios
para os quais alguns são designados ou às pessoas que servem nestes ofícios. Isto é
particularmente verdade nas listas em Ef 4.11 e 1 Co 12.28-30. Em Efésios Paulo diz
que Cristo deu à igreja apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres. Em 1
Coríntios Paulo coloca em ordem apóstolos, profetas e mestres. A ênfase está no que
estas pessoas ou grupos de pessoas fazem - nas suas funções, mais do que nas suas
pessoas.
Segundo, certo número de itens parece se referir a eventos ou atividades, mais
do que a habilidades latentes. Rm 12.4 fala dos muitos membros com diferentes
funções. Se os dons (charismata) do versículo 6 se referem ao que foi dito antes, no
versículo 4, a ênfase está nas funções. No versículo 7 Paulo segue em frente para
mostrar como estas atividades devem ser realizadas: Quem quer que fizer (isto), que o
faça (desta forma). No versículo 8 Paulo muda para Particípios substantivados, que
também apontam para a atividade ou tarefa de uma determinada pessoa. Paulo diz que
aqueles que exortam, ofertam, lideram, mostram misericórdia, devem fazê-lo
alegremente e de boa vontade, etc. Neste contexto, um dom espiritual não parece se
referir à posse de uma habilidade latente (utilizada ou não), mas ao uso da habilidade.
Terceiro, alguns dons realmente parecem apontar na direção de algumas
habilidades ou capacidades dentro de um indivíduo. Mas mesmo nestes casos não fica
completamente claro se a Escritura tem em mente uma habilidade sobrenatural ou uma
habilidade natural utilizada no serviço do Espírito. Carson observa que as quatro listas
“contém, como um todo, uma mescla do que alguns poderiam chamar de dádivas
‘naturais’ e ‘sobrenaturais’, ou dons ‘espetaculares’ e ‘mais ordinários’.” 81 Alguns dons
são claramente sobrenaturais, tais como línguas, milagres e curas. Outros parecem
comparativamente terrenos, tais como o mostrar misericórdia. Esta última categoria
dificilmente pode ser restringida a dádivas específicas distribuídas pelo Espírito no
Batismo, como se não tivessem fundamento em talentos ou dons naturais. “Isto sugere,
por sua vez, que Paulo não se sentiria desconfortável com dons espirituais formados
de alguma combinação de assim chamados talentos naturais - o que ele ainda
81
Carson, 37.
consideraria serem dons de Deus - e de dádivas especificamente operadas pelo
Espírito.”82
Parece, então, que Paulo inclui uma ampla variedade de fenômenos e
manifestações do Espírito soba rubrica de “dons espirituais.” Apesar das distinções
observadas acima, com respeito à natureza dos dons espirituais, provavelmente
existam consideráveis sobreposições entre dons, habilidades, tarefas, ofícios e
eventos. Os dons de línguas, curas e milagres podem ser a dádiva de um dom que
previamente não se tinha. Além disso, se os dons são definidos como tarefas, há
certamente atividades desempenhadas por um cristão, que ele (ou ela) não
desempenhava antes de tornar-se cristão. O fato que Paulo não categoriza, define,
divide nem subdivide os vários dons, fornece mais evidência da natureza ad hoc de sua
apresentação. É possível, por exemplo, que cada pessoa tenha ou o dom do
casamento ou do celibato? Novamente, não está claro se Paulo está falando de
habilidades, ou de papéis, ou de pessoas. Alguém poderia ainda perguntar se o fruto
do Espírito, de Gálatas 5, poderia ser excluído completamente da categoria de dons
espirituais, especialmente quando o próprio dom da salvação é chamado de
charisma.83
82
Ibid.
83
Cf. Charismatic Movement, 17: “Aqui deve ser observado que São Paulo lista os menos espetaculares dons do
Espírito, isto é, as atitudes e qualidades espirituais mais comuns do cristão, que resultam de sua regeneração.”
84
Fee, 586.
definições precisas, mas apenas realçar as dificuldades de determinar o conteúdo de
cada termo com algum grau de certeza.
a. Os Dons de 1 Co 12.8-11
85
Carson, 38.
86
Fee, 592.
87
Ibid., 593.
88
Dunn, 219-20.
89
Ibid., 221.
entanto, que o conteúdo e mensagem foram obtidos através de instrução ou de
experiência pessoal.
Fé
Este dom e aqueles que seguem parecem ser manifestações sobrenaturais do
Espírito. A fé de que Paulo fala parece ser distinta da fé salvadora, que todos os
cristãos têm em comum. Alguns se referem a ela como “fé heróica,” uma fé que
capacita a pessoa a realizar alguma obra extraordinária. É descrita em 1 Co 13.2 como
uma fé que pode transportar montes. Pode se referir também a uma convicção
sobrenatural de que Deus revelará Seu poder ou misericórdia de uma forma especial,
em uma ocasião específica. Carson sugere que este tipo de fé capacita o crente a
esperar que Deus aja de uma certa forma, mesmo se não se pode apontar para uma
promessa específica. Alguém poderia indagar em que este dom difere dos milagres de
curas. Há, afinal, diversos exemplos nos Evangelhos onde uma tal fé está associada a
um milagre ou cura (por exemplo, Mt 9.22,29; 15.28; Mc 10.52; 11.22; Lc 5.20; 17.19;
18.42).
Dons de curar
Os dons de curar sem dúvida envolvem milagres de uma forma ou de outra. É
interessante que ambos os termos estão no plural, assim que a tradução literal é “dons
de curas” (cf. 1 Co 12.28,29). Esta expressão está sujeita a uma variedade de
interpretações. O plural dons e o plural curas podem sugerir ou dons diferentes ou tipos
diferentes de curas. O plural charismata poderia indicar que este não era um dom
“permanente,” mas que cada manifestação era um “dom” em si mesmo. 90 Poderia
também sugerir que “nem todos seriam curados por uma pessoa, e talvez certas
pessoas com um destes dons de cura poderiam ser, pela graça do Senhor, curar certas
doenças ou curar uma variedade de doenças, mas apenas em certas ocasiões.” 91
Operação de Milagres
“Operação de milagres” (literalmente “operações de poderes”) também aparece
no plural. Mas como difere este dom dos dons de curas ou do dom da fé? Pode ser que
“todas as curas são demonstrações de poderes milagrosos, mas nem todos os poderes
milagrosos são curas.”92 É também possível que esta manifestação trate de atividades
sobrenaturais que não o curar de doentes, tais como exorcismos, milagres na natureza
e coisas semelhantes. O relacionamento entre os dons da fé, de curas e de milagres
sugere que até certo ponto estes dons se sobreponham uns aos outros.
Profecia
Paulo encoraja seus leitores a buscarem o dom de profecia acima de todos os
outros (1 Co 14.1). Diferentemente das línguas, que edificam a própria pessoa, a
profecia edifica, exorta e encoraja a igreja (1 Co 14.5). Uma discussão detalhada sobre
o alcance de fenômenos que podem ser cobertos pelo termo “profecia” está além do
escopo deste documento. Algumas observações, no entanto, podem ser feitas.
90
Fee, 594.
91
Carson, 39.
Primeiro, embora Paulo diga que a profecia é para “edificação, exortação e consolo” da
congregação (14.3), ele não define profecia. Parece que a pregação, o ensino e a
oração servem às mesmas finalidades. Segundo, há evidências que sugerem que a
profecia no Novo Testamento inclua o que nós hoje chamaríamos de pregação ou
exposição da Escritura. Certamente no Antigo Testamento a maior parte das profecias
anunciavam juízo e salvação, chamavam a uma reforma e instruíam o povo. Terceiro, 1
Co 14 sugere que aquelas profecias eram “mensagens espontâneas, inspiradas pelo
Espírito, inteligíveis e anunciadas oralmente ... para a edificação ou encorajamento das
pessoas.”93
Discernimento de espíritos
Paulo pode ter em mente a habilidade de identificar espíritos falsos, que
freqüentemente se manifestavam ligados à mostra de um poder milagroso. Visto que
“discernimento de espíritos” segue imediatamente à profecia, na lista de dons de Paulo,
é possível que ele tenha em mente algo mais estreitamente ligado a profecia. Talvez
ele deva ser visto como paralelo a “interpretação de línguas” e realizando funções
semelhantes. Se for assim, ele pode envolver o discernimento, diferenciação e
julgamento de profecias, como em 1 Co 14.29. A linguagem de “espíritos” se referiria,
então, a palavras proféticas (cf. 1 Jo 4.1, onde o distinguir entre espíritos está, de
alguma forma, relacionado ao discernimento doutrinário, confessional.
Variedade de Línguas
Este é mencionado por último, talvez para realçar o interesse especial dos
Coríntios nesta manifestação do Espírito, que ocasionou toda a discussão de Paulo
sobre os dons. Este dom, “no caso dos Coríntios, referia-se a uma ‘linguagem,’
ininteligível a outros, assim como ao que falava, pela qual um cristão louvava a Deus.”
São Paulo obviamente o considerava como um autêntico dom do Espírito, mas enfatiza
que ele “pode ser útil na igreja apenas se suplementado com o dom da interpretação
(v. 5), pois somente assim edificará a igreja.” Também deveria ser “cuidadosamente
observado que o apóstolo em 1 Co 12 e 14 não está discutindo o dom de línguas com
o propósito de encorajar ou auxiliar os Coríntios para que adquirissem este dom.”
Neste contexto específico, “seu propósito é, antes, apontar para os perigos e abusos
que têm resultado do seu mau uso e para encorajar o uso de outros dons espirituais,
especialmente a profecia.’94
Interpretação de Línguas
Devido à evidente ininteligibilidade das línguas, este dom “evidentemente era a
habilidade de transmitir o conteúdo e mensagem de uma tal ‘linguagem’ para o
benefício e edificação do que falava e dos outros membros do corpo de Cristo.” 95 De
acordo com 1 Co 12.7,10,27-30 esta também é uma manifestação do Espírito.
Entretanto, não está inteiramente claro se este dom se refere a uma habilidade de
interpretar ou se a referência é feita ao fato concreto de interpretação.
92
Ibid., 40.
93
Fee, 595.
94
Charismatic Movement, 20,21.
95
Ibid., 20.
b. Os Dons de 1 Co 12.28-31
Apóstolos
Paulo lista apóstolos em primeiro lugar. É interessante que apesar de que os
outros dons se manifestavam na congregação de Corinto, não há evidência de que
Paulo cresse que cada igreja local tivesse seus próprios apóstolos. Talvez eles sejam
mencionados primeiro aqui de forma a realçar seu papel na edificação do corpo e para
servir como uma lembrança do ministério do próprio Paulo, como apóstolo.
Profetas
Paulo lista profetas em segundo. Não está claro se Paulo tem em mente um
“grupo específico conhecido como ‘profetas’ vis-a-vis com ‘apóstolos’ e outros
membros da comunidade”, ou se a frase é puramente funcional e refere-se a qualquer
que exerça o dom da profecia. 96 Se este dom for visto como cumprimento de Jl 2.28-
30, pareceria estar disponível a qualquer cristão após a vinda do Espírito em Sua
plenitude no Pentecostes. 1 Co 14.1 sugere que todas as pessoas cheias do Espírito
seriam potencialmente profetas. Podemos concluir de Ef 2.20 e 4.11, no entanto, que
havia alguns que regularmente atuavam como profetas e eram um grupo identificável.
Se assumimos que o entendimento de Paulo sobre a profecia era moldado pelo
seu próprio pano-de-fundo no Judaísmo e pelo seu conhecimento do Antigo
Testamento, então um profeta seria uma pessoa que falava para o povo de Deus por
impulso do Espírito Santo. Com base no Antigo testamento, profecia envolve mais
proclamação do que predição, apesar de que este último poderia certamente estar
incluído (por exemplo, At 11.28; 21.10-14). Hermann Ridderbos sugere que profetas
eram “proclamados da Palavra de Deus para a igreja, impelidos pelo Espírito, que
abriam o plano da redenção de Deus, bem como o elucidavam e imprimiam nele a
importância da obra de Deus em Cristo, de uma forma pastoral e parenética.” 97 A
mensagem profética deveria ser testada para verificar sua genuinidade e veracidade (1
Ts 5.21; cf. 1 Co 14.37-40). Assim Paulo dá diretivas específicas sobre profecia no
96
Fee. 620.
97
Hermann Ridderbos, Paul: An Outline of His Theology, traduzido por John Richard De Witt (Grand Rapids: Wm.
B. Eerdmans, 1975), 451.
culto (1 Co 14.29-40). Havia tempo dedicado não só para a profecia, mas também para
o julgamento por parte de outros (isto é, toda a congregação).
Mestres
Paulo menciona mestres em terceiro lugar. O ensino é intrínseco aos ofícios de
apóstolo e de bispo ou supervisor. 98 Em Ef 4.11 Paulo une mestres com pastores, o
que sugere um escopo mais amplo de significado. As funções de ensinar podem incluir
edificação, conforto e direção espiritual. É difícil distinguir com um bom grau de
precisão as atividades dos mestres em relação às dos profetas. Ensino pode envolver
uma fonte menos direta que aquela da profecia, trazendo a “tradição” da igreja.
Poderria referir-se ao catecumenato, `a tradição oral e/ou doutrina, bem como a
práticas da igreja e formas de culto. Finalmente, não fica claro, no entanto, se este dom
designa um ofício específico ou um papel assumido por alguém ou por todos cristãos
em certas circunstâncias.
Socorros e Governos
Dois novos dons são aqui introduzidos. Em ambos os casos, não está claro se os
dons se referem a pessoas ou a habilidades. O primeiro, antilempsis (“socorro”) só é
referido aqui no Novo testamento (ver Lc 1.54; At 20.35 e 1 Tm 6.2 para o uso do verbo
cognato). Ele parece ser um termo geral que se refere a todo tipo de assistência. Pelo
menos, a palavra implica que alguns cristãos deveria atender às necessidades físicas e
espirituais de outros dentro da comunidade. Ele pode ser similar aos três itens finais de
Rm 12.8 (serviço, dar-se a outros em necessidade, realizar atos de misericórdia). 100
O segundo item (na sua forma singular, kybernesis) significa literalmente pilotar
um barco Aparece em At 27.11 e Ap 18.17 com o significado aparente de “piloto.” Na
Septuaginta (Pv 1.5; 11.14; 24.6) kybernesis inclui a idéia de dar direção a alguém. O
termo pode envolver liderança ou mesmo administração (apesar de que
“administração” no Português contemporâneo traz a idéia de habilidades
administrativas, o que provavelmente não é o que Paulo tinha em mente). Uma
tradução mais acurada “poderia ser ‘atos de orientação,’ apesar de que pode se referir
a dar conselho sábio à comunidade como um todo e não simplesmente a outros
indivíduos.”101 Kybernesis pode assim se referir a orientar ou governar outros, talvez
assumindo liderança e responsabilidade para certas tarefas e atividades.
98
Carson, 91.
99
Fee, 621.
100
Note-se que não combina exatamente com o que temos na tradução em Português. N. do T.
101
Ibid., 622.
c. Os Dons de Romanos 12
Romanos 12 (6-8) lista como dons: profecia, serviço 102, ensino, exortação,
contribuição, auxílio103 e realização de atos de misericórdia. Assim como no caso dos
dons discutidos previamente, nenhum destes dons é facilmente identificável, nem é
imediatamente claro se eles se referem a qualidades e capacidades ou a ofícios e
atividades.
Profecia
Paulo escreve aqui que a profecia deve se realizar de acordo com a analogia da
fé (cf. a discussão sobre 1 Co 12 acima). Evidentemente, uma norma mais objetiva é
pretendida aqui, ou seja, a fé de acordo com seu conteúdo ou, em geral, a doutrina
crista.”104 Isto pode corresponder à necessidade de julgar a profecia em 1 Co 12.
Serviço
“Serviço” e “servir” (diakonia) pode se referir a um amplo espectro de ministérios.
Um servo pode se referir a um garçom que serve às mesas (Lc 22.27) ou a alguém que
realiza tarefas domésticas (Lc 10.40). Ridderbos observa: “Talvez a palavra, que em
geral pode denotar qualquer ato de serviço, em Rm 12.7, onde a questão é justamente
de especialização, tenha o significado de um serviço que auxilia em amor, expressão
prática de serviço, como é utilizado por Paulo em outros locais (por exemplo, Rm
15.31; cf. v. 25; 1 Co 16.15; 2 Co 8.4ss; 9.12ss).105 Diakonia pode bem ter o mesmo
sentido geral do termo antilempsis em 1 Co 12.28.
Ensino e Exortação
Ambos termos podem se referir a aspectos do ministério público de pregação,
cada um deles possivelmente incluindo o outro. Uma pessoa pode encorajar pelo
ensino e ensinar pelo encorajamento. O encorajamento pode incluir um escopo
ligeiramente mais amplo do que o ensino, englobando desde “rogar” até “confortar” e
“exortar”. Exortação também pode ser usado vinculado com profecia e ao ofício de
ensino (cf. Ef 4.11,12; 1 Co 12.28,29).
Não conseguimos distinguir facilmente entre dons “naturais” e “sobrenaturais”
com respeito ao ensino e exortação, porque ambas atividades são realizadas também
por não cristãos. Comumente falamos de pessoas que “nasceram para ser
professores” e outros que têm um dom de sensibilidade e encorajamento. A diferença
entre mestres e “encorajadores” cristãos e não cristãos parece ser primariamente na
área do assunto (o conteúdo do ensino e exortação), apesar de que também podem
diferir com respeito ao por que e ao meio pelo qual ensinam e encorajam. Stott sugere
que pode existir uma ligação entre talentos pré-conversão e dons espirituais pós-
conversão no caso daquele “que ensina” (Rm 12.7) e “que exorta” (Rm 12.8).106
102
Almeida traduz por “ministério”. N. do T.
103
Almeida traduz por “o que preside”. N. do T.
104
Ridderbos, 451.
105
Ibid., 465.
106
Stott, 93.
Contribuição, Auxílio e Misericórdia
Os dons listados no versículo 8 surpreendem não por serem obviamente
milagrosos ou espetaculares, mas, pelo contrário, porque são “positivamente
terrenos.”107 Paulo exorta a igreja em Roma: “aquele que contribui, com liberalidade;
aquele que auxilia, com zelo; aquele que pratica atos de misericórdia, com alegria”
(12.8). “Contribuição” se refere ao ofertar dinheiro e é usado em Ef 4.28 para o ofertar
aos que estão em necessidade. Dos três dons mencionados nesta passagem, o mais
ambíguo é auxílio. O termo aqui usado por Paulo pode se referir a alguém que
“governa”108 ou “toma a liderança” e designa líderes da igreja em 1 Ts 5.12 e 1 Tm
5.17. “Aquele que realiza atos de misericórdia” denota uma pessoa que auxilia outros
em necessidade. Esta atividade, pode-se notar, não está limitada a cristãos. O que
parece ser novo aqui, ou, ao menos, distintivo do cristão, não é o ato, o papel, a
habilidade (em si mesmos), mas o objetivo e motivo para se fazer tais coisas. Estas
atividades ajudam a edificar o corpo de Cristo e são realizadas voluntaria e
alegremente.
Precisamente como estes três dons diferem um do outro não está claro pelo texto.
Ridderbos conclui que “não é uma questão simples formar uma idéia clara de todas
estas descrições e fazer uma distinção precisa entre, por exemplo, distribuir e realizar
atos de misericórdia.” O primeiro pode ter o pobre em vista, enquanto que o segundo
pode ser tomado em um sentido mais geral. Como Ridderbos ressalta, entretanto, “os
atos de serviço de 1 Co 12.28 poderiam então envolver tanto um como o outro.” 109
d. Os Dons em Efésios 4
Evangelistas
Apenas Ef 4 menciona evangelistas como um dom. Visto que esta palavra ocorre
apenas três vezes no Novo Testamento, é difícil estabelecer seu significado preciso. 110
Parece referir-se a homens que se põem a caminho para proclamar o Evangelho a
descrentes (At 8.4; 21.8; cf. o uso do Particípio em At 8.12,35,40) ou àqueles que
serviram como auxiliares dos apóstolos. Em 2 Tm 4.5, Paulo exorta Timóteo a “fazer o
trabalho de evangelista”. Se Paulo tinha em mente um ofício ou simplesmente a
atividade de evangelizar, isto está aberto a discussão. Ridderbod sugere que nos
primeiros anos da igreja, evangelistas “freqüentemente formavam o ligação entre os
107
Ibid., 91.
108
Esta parece ser a idéia cf. Almeida (também na BLH: “quem tem autoridade”). N. do T.
109
Ridderbos, 456.
110
Mesmo sendo a palavra evangelista rara, Paulo autodenomina-se um kerix (“pregador” ou “proclamador”) em 1
Tm 2.7 e 2 Tm 1.11, que seria considerado fazendo parte do mesmo grupo de palavras.
apóstolos e os líderes na igreja. Com a morte dos apóstolos, os evangelistas também
desapareceram.”111
Pastores e Mestres
111
Ridderbod, 454.
112
O uso de um só artigo (tous de poimenas kai didaskalous) pode indicar que Paulo esteja se referindo aqui a um
ofício com duas funções. Ver: Ministry: Office, Procedures, and Nomenclature, A Report of the Commission on
Theology and Church Relations of the Lutheran Church - Missouri Synod, 1981, 14.
113
Cf. Henry Hamann, “The Translation of Ephesians 4.12 - A Necessary Revision,” Concordia Journal 14 (Janeiro
1988): 42-49; e “Church and Ministry: An Exegesis of Ephesians 4.1-16,” Lutheran Theological Journal 16
(Dezembro 1982): 121-28.
114
Stott, 104.
Paulo diz que o Espírito concede Suas manifestações “como lhe apraz” (1 Co
12.11). Esta passagem poderia também ser traduzida por “como Ele julga conveniente
ou como lhe agrada.”115 Lembramos que Jesus disse que o Espírito, como o vento,
“sopra onde quer” (Jo 3.8). A ênfase em 1 Co 12.11 está menos na decisão do Espírito
e mais em Sua liberdade de distribuir os dons ou para manifestar-se como ele escolhe
fazê-lo.
Dois pontos adicionais podem ser feitos. Primeiro, dizer que o Espírito distribui
Seus dons como Ele quer implica que não ousaremos “encaixotar o Espírito” ou
esperar que Ele atue em cada situação de acordo com nossas expectativas ou desejos.
Ele pode ou não dar à igreja todos os dons em determinado tempo ou lugar. Alguns
dons podem desaparecer, outros podem ser acrescentados. Alguns podem aparecer
em um lugar numa determinada época; outros, em outro lugar, em outra época. Deus
não promete todos os Seus dons para uma determinada pessoa (cf. 1 Co 12.29,30).
Isto não significa que não possamos querer ter certos dons. Paulo encoraja-nos a fazer
isto. Mas o desejo por determinado dom deve corresponder a uma necessidade
específica da congregação. Assim, em 1 Co 12.31, Paulo encoraja os Coríntios a
desejarem aqueles dons que edificam outros.
Segundo, o Espírito distribui estes dons como Ele quer. Quaisquer que sejam os
dons que o Espírito dê, eles são dados por Sua livre vontade. Todo dom é acima de
tudo um dom da graça, não um “direito” ou “recompensa.” A distribuição dos dons é um
ato soberano e determinado livremente pelo Espírito. É precisamente por esta razão
que eles são dons da graça. Nem pode qualquer dom ser considerado
“intrinsecamente” ou “inerentemente” melhor que outro. Eles são todos igualmente
dons.
Sumário
Certo número de pontos podem ser esboçados a partir do material bíblico, para
trazer algumas diretrizes ou parâmetros para uma discussão sobre os dons espirituais.
Os dados bíblicos deixam claro que qualquer tentativa de formular uma definição
precisa e ampla de um dom espiritual traz consigo uma série de dificuldades. Nenhuma
definição, portanto, será capaz de levar em consideração o alcance completo do que as
Escrituras ensinam nesta área. Tendo este cuidado, portanto, uma tentativa de
definição deveria incluir as seguintes idéias:
Dons espirituais são melhor definidos como sendo manifestações especiais do
Espírito (1 Co 12.7) que chamam os membros da igreja à ação de uma forma
que confesse Cristo e edifique o corpo de Cristo. Estes dons ou manifestações
do Espírito podem tomar a forma de atividades, habilidades, ofícios, papéis ou
mesmo pessoas.
115
Fee, 599.
Apesar de que esta definição é um tanto geral, ela traz a verdade de que o ensino
bíblico sobre os dons espirituais é “mais rico, mais amplo e mais flexível do que alguns
têm sugerido.”116
À luz da definição acima, diversas facetas dos dons espirituais devem ser
guardadas em mente:
1. Dons e talentos estão estreitamente relacionados. Habilidades naturais ou dons
inatos são dons de Deus da mesma forma (Gn 1.26,27; 1 Co 4.7; Tg 1.7). O que temos
que não tenhamos recebido? “Talentos e dons, então, não são nem antitéticos, nem
simplesmente idênticos.”117Alguns sugerem que um dom espiritual é uma habilidade
dada por Deus, que “pegou fogo.” Outros sugerem que a diferença entre um dom e um
talento está na maneira como os crentes exercem seus talentos, com um caráter e
atitude à semelhança de Cristo.
2. Alguns dos dons exigem um caráter sobrenatural, tais como a fé heróica, os
dons de milagres e os dons de curas. Estes também devem ser levados em
consideração, mas são apenas uma parte do quadro total da Escritura sobre os dons
espirituais.
3. Há uma relação estreita entre dons e pessoas dotadas. As listas de dons
incluem tanto habilidades como pessoas. Paulo fala de profecia (1 Co 12.10) e de
profetas (1 Co 12.28), de ensino e de mestres. Ele se move livremente entre os dois e
faz pouca distinção entre eles.118
4. Dons espirituais e tarefas na igreja também andam lado-a-lado. “Nem dons
sem tarefas, nem tarefas sem dons são situações toleráveis. O chamado de Deus não
é somente para privilégio, mas também para responsabilidade. Há trabalho a ser
feito.”119
1. As listas do Novo Testamento com os dons não são exaustivas. As quatro listas
principais variam significantemente de uma para outra. A razão sem dúvida está nas
diferentes situações abordadas pelo apóstolo. Ele seleciona os dons em cada lista para
tratar de situações específicas na congregação. 120
2. O caráter ad hoc das listas de Paulo também indicam que muitos dons não
podem ser identificados ou categorizados com algum grau de precisão. Em vez disso,
existe considerável sobreposição entre muitos dos dons.
116
Boyd Hunt, Redeemed Eschatological Redemption and the Kingdom of God (Nashville: Broadman and Holman,
1993), 49. A discussão abaixo segue bastante o tratamento muito útil de Hunt sobre este assunto.
117
Ibid., 51.
118
Ibid., 52.
119
Ibid., 55.
120
Ibid., 52.
1. Dons funcionam dentro do corpo. “Frente ao excessivo individualismo em
Corinto, [Paulo] ampliou o ensino sobre os dons para enfatizar sua dimensão
corporativa.” A natureza corporativa dos dons e seu uso indicam que os membros do
corpo precisam uns dos outros. Como resultado, nenhum lugar fica para individualismo
excessivo, rivalidade, disputas e inveja, que dividem os cristãos. 121
2. Os Coríntios “carnais”, ao que parece, era “famintos por milagres.” Eles
focalizavam-se mais nos “milagres visíveis” do que no espectro total de dons dados
pelo único Espírito para a edificação do corpo de Cristo. 122
121
Ibid., 53.
122
Cf. Frederick Dale Bruner, A Theology of the Holy Spirit (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1970), 285-322.
123
O que aqui chamamos de “Vida no Primeiro e Terceiro Artigos” tem sido descrito por outros como vida nos
“dois reinos” ou “dois governos”. Ver a discussão que segue.
124
Gustaf Wingren tem sido de grande ajuda ao trazer este assunto para a vanguarda da discussão teológica, como
um corretivo para as teologias de Karl Barth e de Oscar Cullmann, que tenderam a minimizar a importância e papel
da criação como uma estrutura para a teologia. Ver, por exemplo, Gustaf Wingren, The Flight from Creation
(Minneapolis: Augsburg, 1971).
a vida neste mundo vão para um segundo plano do pensamento e prática cristãos.
Quando isto ocorre, surge o perigo de que as pessoas não apenas distingam entre as
obras de Deus, mas de fato separem-nas umas das outras. O que resulta é que os
dons e as obras tratadas no Primeiro Artigo acabam tendo pouco a ver com as obras
de Deus apresentadas no Segundo e Terceiro Artigos e vice-versa.
Os inventários de dons espirituais correm o risco de fazerem exatamente isto, ou
seja, dicotomizar o Credo. Eles tendem a considerar a questão dos dons e funções por
demais estritamente, ou restritivamente, confinando-os ao Terceiro Artigo. Com aquela
afirmação, vem ou uma correspondente valorização dos dons espirituais e tarefas
eclesiásticas sobre as mais ordinárias tarefas do dia-a-dia da vida cristã dentro da
vocação de cada um, ou, no mínimo, uma benigna desconsideração por estas últimas.
Muito freqüentemente, proponentes de tais inventários reconhecem que os talentos
que recebemos no Primeiro Artigo podem ser usados dentro da igreja, mas eles
freqüentemente parecem não considerá-los tão altamente como os assim chamados
dons espirituais do Terceiro Artigo. Como um corolário, trabalhos dentro da igreja
passam a ser considerados como intrinsecamente mais valiosos do que trabalhos no
mundo, ou seja, dentro de nossas vocações. Afinal (assim o pensamento segue),
dentro da igreja estamos servindo ao Senhor! Na prática, também acontece facilmente
de que aqueles que são ativos dentro dos muros da congregação (servindo em vários
departamentos, comissões e organizações) recebem mais reconhecimento, e aqueles
que trabalham fielmente como testemunhas de Cristo em suas vocações são ignorados
ou desvalorizados.
Para sermos exatos, a obra de Deus na criação deve ser distinguida de Sua obra
na redenção e santificação. Até um certo ponto, podemos dizer que Deus atua de uma
maneira entre todas as pessoas no mundo, e de outra entre Seu próprio povo, na
igreja. Mas também há continuidade na Sua obra. O que Deus criou, também redimiu e
santificou. Ele redime, restaura e ressuscita nossos corpos; Ele não os aniquila. Assim
como Ele atuou através da criação para nos dar vida e sustentar nossas vidas, assim
Deus nos redime e santifica através de elementos da criação, através da encarnação
de Cristo, através da água, através do pão e do vinho. Assim, a criação serve à
redenção e a redenção consuma a criação. Isto significa que um artigo do Credo, no
caso o Primeiro Artigo, informa e molda os outros dois, que edificam sobre ele. De
muitas formas, o Primeiro Artigo dá o fundamento e a estrutura para os outros dois
artigos. Ele dá o contexto e o ambiente para os cristãos servirem seus próximos dentro
da vida e ocupações diárias. Esta perspectiva e abordagem realçam a continuidade,
mais do que a descontinuidade, entre os dons associados a cada um dos três artigos.
Uma forma de abordagem ao assunto dos dons espirituais dentro do contexto do
Primeiro e Terceiro Artigos é fazer as perguntas: “O que é geral e aplicável a todos,
sejam cristãos ou não cristãos?” e “O que é distintivamente cristão sobre estes dons?”
Pode-se errar em ambas direções ao responder tais questões. O primeiro erro é
responder que não há nada distintivamente cristão no que se refere aos dons
espirituais. Em outras palavras, que não há tal coisa como dons ou atividades
espirituais fora dos dons e tarefas próprias da criação (inatos). Esta posição realça a
continuidade, com o risco de perder de vista a natureza distinta do Segundo e Terceiro
Artigos. O extremo oposto é insistir que não haja dons espirituais fora do que foi dado
exclusivamente aos crentes. Apenas aqueles dons dados no Batismo ou subseqüentes
à conversão poderiam ser considerados com dons espirituais. Eles teriam pouco ou
nada em comum com dons da criação inatos ou naturais. Esta posição leva a
descontinuidade ao extremo. Entre estes dois extremos se encontra a questão
igualmente importante: “Como os ‘dons espirituais’ se relacionam aos ‘dons inatos’?”
B. Dons da Criação
125
Cf. Oswald Bayer, Schöpfung als Anrede: Zu einer Hermeneutik der Schöpfung (Tübingen: J. C. B. Mohr, 1986),
80-108. Bayer esboça e discute a maneira como Lutero desdobra sua discussão sobre o Primeiro Artigo, em círculos
concêntricos que se expandem. Ver também Oswald Bayer, “I Believe That God Has Created Me with All That
Exists. An Example of Catechetical-Systematics,” Lutheran Quarterly VIII:2 (Verão 1994), 129-61.
126
De uma monografia não publicada, de William Weinrich, “Creatio Ex Nihilo; The Way of God,”8.
Gênesis 1 enfatiza a ordem e a distribuição dos vários elementos da criação dos dias
dois ao seis. Ele coloca ênfase especial na ordenação destas atividades como o meio
de Deus, através da criação, de prover um lar para as criaturas humanas e para o
sustento de suas vidas. 127 O Salmo 104 especialmente realça e celebra “a ordem do
mundo como uma rede de mútuo auxílio e assistência entre as criaturas que, em última
análise, é a própria obra graciosa e mantenedora de Deus.” 128 Neste contexto, cada
pessoa tem um dom, uma tarefa, um lugar, uma função para usar como canais de sua
bondade criadora para com outros.
Deus não apenas providenciou as ordens da criação; Ele também colocou sobre
elas Sua bênção divina. Por meio da bênção divina (Gn 1.28: “sede fecundos;
multiplicai-vos”) Deus deu à criação a capacidade de produzir vida e deu à humanidade
a habilidade de propagar-se, isto é, produzir vida e providenciar tudo o que é
necessário para sustentar a vida. Assim, a palavra que criou a partir do nada continua a
provar que é eficaz. Ela carrega consigo poder de Deus de trazer vida. “Sem ela, não
haveria vida real.”129 A bênção divina continua a obra de Deus na criação, 130 assim que
a própria obra da criação continua (creatio continua).131 Deus continua a criar, através
das ordens e estruturas da criação, que por sua vez funcionam como aquilo que Lutero
denominava as “máscaras de Deus.”132
Deus quer que cada pessoa, com seus dons e habilidades, sirva como
instrumento de bênção para outros. Por esta razão, é próprio falar de todas as Suas
criaturas, incluindo os seres humanos, como cooperadores - embora não co-criadores -
com Deus. Lutero escreve no Catecismo Maior:
127
É interessante que do terceiro ao sexto dias há um espaço desproporcionalmente maior do que no primeiro e
segundo dias da criação. São precisamente aquelas coisas criadas do terceiro ao sexto dias que dão suporte mais
direto à vida dos seres humanos. O fluxo do pensamento é tal que estes dias são todos preparatórios para o ápice da
criação de Deus, no sexto dia.
128
De uma monografia não publicada de William Weinrich, “God, the Creator,” 4.
129
Claus Westermann, Creation, traduzido por John J. Scullion (Philadelphia: Fortress Press, 1974), 46.
130
Gordon J. Wenham, Word Biblical Commentary: Genesis 1-15 (Waco, Texas: Word Books, 1987), 24. O
cumprimento da bênção fica muito evidente na dádiva de filhos e na lista de gerações. Pode ser observado que, onde
a pessoa moderna fala de sucesso, o Antigo Testamento falava de bênção.
131
É digno de nota que bara, “criar”, é usado freqüentemente em estreita proximidade com barak, “abençoar”, (Gn
1.21,22,27,28; 2.3; 5.1,2). Isto sugere que criação e bênção estão unidas ao propósito divino.
132
Na visão de Lutero, “as coisas e relacionamentos externos, nos quais o homem vive, representam Deus para ele;
eles são ‘máscaras’ de Deus” (Gustaf Wingren, Luther on Vocation, traduzido por Carl C. Rasmussen [Philadelphia:
Muhlenberg Press, 1957], 117). Lutero diz: “Todo nosso trabalho no campo, no jardim, em casa, na guerra, no
governo - em que tudo isto importa perante Deus senão como passatempo de criança, por meio do que Deus se
alegra em dar Seus dons no campo, em casa e em toda parte? Estas são as máscaras de nosso Senhor Deus, por
detrás das quais Ele quer estar oculto e fazer todas as coisas” (Ibid., 137,38). Como Wingren explica, “Em vez de vir
em majestade visível (nua), quando dá um dom ao homem, Deus coloca uma máscara ante Sua face. Ele se veste na
forma de um homem comum, que realiza seu trabalho na terra. Os seres humanos devem trabalhar ‘cada um de
acordo com sua vocação e ofício’: através destes, eles servem como máscaras de Deus, por detrás dos quais Ele
pode se esconder quando concede Seus dons” (Ibid., 138). “Uma máscara tanto esconde como revela o Criador.
Assim é que ordens, ofícios e estados são também larvae Dei [máscaras de Deus] através dos quais Deus está
constantemente confrontando os seres humanos com Sua vontade e Seu poder” (Donald R. Heiges, The Christian’s
Calling, Edição revisada [Philadelphia: Fortress Press, 1984], 52).
Nossos pais e todas as autoridades, e a mais disso cada um relativamente ao
seu próximo, têm ordem de nos fazerem toda sorte de bem. De maneira que
não o recebemos deles, senão de Deus por intermédio deles. As criaturas são
apenas a mão, o canal e o meio através de que Deus tudo concede, assim
como dá seios e leite à mãe para dá-los à criança, e dá grãos e toda espécie
de frutos da terra para alimentação. Criatura nenhuma pode produzir, por si
mesma, um só que seja desses bens. 133
Todos os nossos talentos e habilidades, tudo o que envolve quem somos, Deus
nos concedeu através de nossos pais e daqueles que receberam responsabilidade
sobre nós.
Da mesma forma como recebemos dons de Deus através de Suas criaturas,
também nós nos tornamos canais para a atividade criadora de Deus fluir a outros.
Biblicamente este pensamento está presente no relato da criação - a humanidade foi
feita à imagem de Deus e recebeu a comissão de exercer domínio sobre a terra. A
imagem de Deus (Gn 1.26-28) não apenas diferencia os seres humanos do restante da
criação. Ela os habilita a representarem Deus na terra e a gerenciarem, como reis
benevolentes, o estado terreno estabelecido pelo Criador. Nas palavras do Sl 8.5,
“Fizeste-o, no entanto, por um pouco, menor do que Deus, e de glória e de honra o
coroaste.” Ser “coroado” significa receber a glória e a honra de governar sábia e
benevolentemente sobre as obras das mãos do Criador. Em Cristo vemos da forma
mais bendita e perfeita a natureza deste domínio. Mas mesmo Adão e Eva, como
criaturas de Deus, trataram com a criação no interesse do Criador. Eles deviam realizar
a vontade do Criador para com Sua criação e expressar Sua preocupação pela
preservação da vida. Eles deviam ser cooperadores com Deus na obra continuada da
criação. Isto se aplica agora a todas as pessoas, sejam cristãos ou não. Para sermos
exatos, estes últimos freqüentemente servem como instrumentos de Deus de forma
involuntária e de má vontade, mas Deus continua a realizar Sua obra, mesmo através
de pais, patrões e governantes não cristãos.
A imagem de Deus está diretamente ligada à comissão subseqüente, de ter
domínio sobre a terra. Através de todo o Antigo Testamento, o vocabulário de domínio
descreve o papel de reis (Sl 8; 72) que deveriam personificar o próprio governo
gracioso de Deus. “Deste-lhe domínio sobre as obras da Tua mão, e sob seus pés tudo
lhe puseste” (Sl 8.6). Gn 2.15 mostra que domínio não significa nem dominação, nem
autonomia, mas responsabilidade pelo cuidado e cultivo da terra. Os seres humanos
devem supervisionar a terra e garantir que ela continue a proporcionar o que for
necessário para a promoção e preservação da vida.134 Inicialmente, isto tomou a forma
de dois meios de vida básicos: agricultura sedentária e a vida nômade. Assim vemos
Caim cultivando e Abel pastoreando (Gn 4). A implementação da comissão divina
breve resultou em uma sucessão de realizações, tais como a edificação de cidades, o
cultivo da arte e música, e o desenvolvimento da tecnologia (Gn 4.17-26). De modo
geral, o Antigo Testamento apresenta uma visão positiva do desenvolvimento e
133
Livro de Concórdia, 398 (CM 1a parte 26).
134
James Limburg, “The Responsibility of Royalty: Genesis 1-11 and the Care of the Earth,” Word and World 11
(Primavera 1991), 124-30.
progresso da civilização para áreas de especialização, à medida que brotava do
domínio ordenado em Gênesis. 135
À medida em que consideramos a criação e vemos uns aos outros como
representantes de Deus, as descrições de trabalho que estabelecem nossos deveres e
responsabilidades são dados em e com as ordens e estruturas da própria criação.
Deus deu a cada pessoa uma “situação” e “local” onde cada um pode utilizar seus dons
em favor dos outros. Na verdade, cada pessoa estará em um ou mais locais em um
determinado tempo. Podemos ser pais e filhos, esposos e esposas, vizinhos e amigos,
patrões ou empregados, governantes e cidadãos.
Nossa situação dentro desta rede de relacionamentos humanos descreve nosso
papel e, até certo ponto, o determina.136 As necessidades daqueles de quem temos a
nossa volta funcionam como chamado de Deus para que sejamos Seus cooperadores
na criação. Se sou pai, tenho um chamado para cuidar de meus filhos. Se sou casado,
sou chamado a tratar com carinho meu(minha) cônjuge. Fazemos aquilo que
recebemos para fazer quando fazemos tais coisas. Em cada caso, as necessidades
destas pessoas (e talvez as necessidades de toda a criação) funcionam, como
chamado de Deus para nossa atuação. Em cada uma destas situações, fazemos uso
de nossos dons - para alimentar e vestir nossos filhos, para auxiliar e favorecer nossos
vizinhos, ou para servir nossos patrões, tendo em retorno o salário, que é usado para
manter nossa vida terrena. Os Dez Mandamentos estão enraizados na criação e
estabelecem como podemos propriamente usar nossos dons no serviço da criação de
Deus, dentro de nossa vocação ou estado.
Entre os mais preciosos e úteis de todos os dons recebidos pela humanidade na
criação, para auxiliar no desempenho da comissão recebida, do domínio, é o dom da
razão. “Para a criatura é dada uma capacidade para agir, correspondente a sua
natureza; e esta capacidade para agir é exercitada por uma liberdade correspondente à
intenção divina.”137 Este dom é utilizado para decidir como, onde, quando e até que
ponto serviremos a Deus como cooperadores. Dentro dos parâmetros de nossas
contingências como criaturas, podemos usar a razão de forma criativa para encontrar
tantas maneiras diferentes de usar nossos talentos e tempo, quantas há pessoas. Isto
mostra que o trabalho que Deus nos deu para realizarmos não é algo estático. Por
meio de uma genealogia, Gn 4.17-26 nos mostra que a comissão para trabalharmos
“inclui todo o problema da divisão de trabalho, bem como o progresso na arte e
tecnologia.”138
A discussão acima leva à conclusão de que através do uso das faculdades de
nossa mente, podemos desenvolver muitas ferramentas e instrumentos para auxiliar as
pessoas a expor seus talentos e encontrar um lugar no mundo de Deus, para
trabalharem e atuarem. Estes instrumentos podem revelar fraquezas que devem ser
fortalecidas, ou pontos fortes que estão sendo pouco utilizados. Tal descoberta pode
levar a novas direções na vida da pessoa ou abrir novas portas de oportunidade para
135
Para um outro excelente exemplo da maneira como os valores do Antigo Testamento são expressos, ver Ec
2.24,25.
136
Heiges, 50,51.
137
Weinrich, 4.
serviço. Assim, ferramentas têm sido desenvolvidas para o uso nas escolas e por
conselheiros.139 Ocasionalmente a igreja pode fazer uso de instrumentos similares,
como aqueles administrados nos Seminários,140 para auxiliar no traçado do perfil
pessoal dos estudantes. Tais testes são determinados para reconhecer os pontos
fortes e fracos dos estudantes, assim que o Seminário possa melhor ajudá-los a
utilizarem Seus talentos dados por Deus, dentro da igreja quando eles se tornarem
pastores. Eles não pretendem fornecer a certeza infalível da presença do Espírito ou
para medir a extensão da atividade do Espírito nos estudantes.
Parece que os inventários de dons espirituais pertencem a uma categoria
semelhante ao citado acima. Não há inventários ou estratégias biblicamente
estabelecidos para descobrir, desenvolver e desenvolver nossos dons. Deus nos tem
dado o dom da razão para desenvolver tais instrumentos e ferramentas. Seu uso,
portanto, deveria estar sujeito aos mesmos padrões científicos de exatidão e perfeição
que são aplicados às ferramentas semelhantes utilizadas na sociedade em geral. Em
outras palavras, eles devem estar sujeitos aos padrões da razão.
O plano de Deus para a criação, no entanto, não funcionou como Ele pretendia.
Sua obra criadora foi obscurecida e obstruída em grande parte porque os seres
humanos cobiçaram as coisas criadas e, desta forma, transformaram estes dons do
Primeiro Artigo em ídolos. De fato, “a postura de conquista ... constitui a atitude básica
da descrença em relação ao Deus doador e criativo” e “automaticamente implica uma
atitude de desamor” para com outros.141 O Primeiro Mandamento realça a maneira
fundamental na qual Deus e os seres humanos se relacionam um ao outro: Deus dá,
nós recebemos. Toda idolatria pode ser descrita como uma falha em reconhecer o
Criador como sendo distinto da criatura. Wingren descreve esta frustração da criação
como segue:
Ao procurar Deus na criação, que por si mesma necessita do que o homem
necessita, o homem não atinge aquela vida que procura, mas apenas a morte,
e sua descrença se torna maior. Por ligar-se às coisas da criação, sem ser
capaz de deixá-las pelo medo de perdê-las, a porta através da qual o homem
deveria passar, de modo a dar ao seu próximo, fica ainda mais bloqueada, e
sua insensibilidade para com seu próximo fica ainda maior. Por curvar-se
àquilo que foi criado, como se estivesse sujeito a estas coisas, e por fazer-se
um escravo delas, o homem perde a possibilidade de se colocar sobre a
criação, “governando-a” e “subjugando-a” a si mesmo (Gn 1.28). 142
138
Westermann, 21. O Novo Testamento continua esta aprovação do valor e necessidade do trabalho em ocupações
do dia-a-dia (Mc 6.3; At 18.3; 1 Tm 5.8; 2 Ts 3.10-12; Tt 3.1; cf. 1 Co 7.20). Cf. Heiges (38,39) para uma discussão
útil sobre este assunto.
139
Não traduzimos aqui exemplos fornecidos de Testes vocacionais em uso nos EUA. N. do T.
140
Idem.
141
Gustaf Wingren, Creation and Law, traduzido por Ross MacKenzie (Edinburgh and London: Oliver and Boyd,
1961), 50.
142
Ibid., 51.
O que é dito aqui, se aplica não só a posses, mas ao tempo, tarefas, talentos e
habilidades. Quando estes são cobiçados e utilizados unicamente para o ganho ou
satisfação pessoais, eles não podem beneficiar o próximo. Quando cometemos este
pecado, promovemos nossos interesses às custas de nosso próximo. O uso egoísta de
posses e talentos não consegue evitar de ser destrutivo tanto para a família como para
a comunidade mais ampla. A cobiça e o mau uso dos talentos resultam em julgamento
e no domínio da morte, isto é, a desordenação da criação e da atividade vivificadora de
Deus na criação.143
Apesar do impacto da cobiça e da resultante obstrução das intenções criadoras
de Deus, a obra criadora de Deus continua. A humanidade não tem sido capaz de
impedir totalmente a obra criadora de Deus. Após a queda em pecado, a atividade
criadora de Deus tomou uma dimensão de Lei e Evangelho. A obra criadora de Deus
continua a “promover a bênção e a vida, e a impedir a condenação e a morte.” 144
Nem mesmo a pessoa mais pecaminosa e desobediente, nem mesmo o
próprio diabo, o príncipe dos maus espíritos, pode anular a obra de Deus. Isto é
verdade quanto a Sua criação original, bem como quanto a sua contínua e
criadora luta contra os poderes da morte e destruição. Através de Sua lei e da
ordem da criação Deus constantemente mantém a vida e a bênção no meio
daquele mundo onde o pecado humano espalha morte e condenação. 145
O mundo continua a produzir coisas boas. O governo procura manter a paz e
trazer prosperidade. Os pais continuam a providenciar o necessário para seus filhos.
Todavia, em cada caso as cicatrizes do pecado estão evidentes, onde quer que
olhemos. É um testemunho da bondade e atividade criadora de Deus que estas coisas
continuem a acontecer apesar de toda tentativa pecaminosa da humanidade de destruir
as estruturas da criação e a construção da comunidade humana. Deus atua através de
médicos, para curar outros, mesmo quando aqueles procuram egoisticamente
beneficiar a si próprios. Ele continua a atuar através de fazendeiros e mercadores, que
abastecem com alimento, mesmo quando os pensamentos destes estejam totalmente
voltados para o acúmulo de fortuna. “A vontade do Criador segue como uma corrente
no fundo do rio das obras humanas, e não é perturbada mesmo quando a superfície se
encrespa.”146 Como um dique, a atividade criadora de Deus procura deter a morte,
ainda que não a destrua (a destruição da morte é obra própria de Cristo). O Primeiro
Artigo estabiliza o paciente de modo que possa ser levado à sala de operação do
Segundo Artigo.
143
Ibid., 49.
144
Regin Prenter, Creation and Redemption, traduzido por Theodor I. Jensen (Philadelphia: Fortress Press, 1967),
202.
145
Ibid., 204.
146
Wingren, Creation and Law, 96.
benefício de outros - como canais através dos quais Sua bondade pode fluir através de
nós para outros - usamo-los em serviço próprio e propósitos de autopromoção. Devido
ao pecado, a própria criação sofreu um desvio, tendo como resultado que suas
estruturas, ordens e dons se fragmentaram. Não deveria surpreender, portanto, que
nossos dons e habilidades inatos sejam tão freqüentemente não utilizados, ou pouco
utilizados ou mesmo mal utilizados.
No Segundo Artigo vemos que Cristo nos redime e nos restaura para Si mesmo,
inaugurando assim uma nova criação, uma restauração e reclamação de tudo o que se
desviou. No Terceiro Artigo encontramos a pessoa e obra do Espírito Santo. Os dons
próprios atribuídos ao Espírito, no terceiro Artigo, brotam dos dons conquistados no
Segundo Artigo. No Segundo Artigo confessamos que Cristo os obteve; no Terceiro,
que Ele os concede. O Espírito Santo derrama sobre nós o perdão dos pecados, vida e
salvação obtidos por Cristo. Este é o dom próprio e, de fato, único, do Terceiro Artigo.
O dom comum do perdão dos pecados se coloca como o ponto alto do Terceiro Artigo.
Nós todos recebemos o mesmo perdão dos pecados. Recebemos a mesma confissão
de Cristo. O dom do perdão que nos leva a confessar Cristo como Senhor não é
encontrado senão na igreja, onde é distribuído.
Nos Catecismos Lutero mostra o Espírito Santo como o Espírito santificante. O
Espírito santifica por nos iluminar e chamar. Ele nos santifica dando-nos as bênçãos de
Cristo.147 Assim, santificação envolve minha pessoa inteira e tudo que faço - quem sou
perante Deus e minhas ações para com os outros. Com este tema, Lutero une o que
podem parecer cinco itens desconectados, mencionados no final do Credo Apostólico:
a santa igreja cristã, a comunhão dos santos, a remissão dos pecados, a ressurreição
da carne e a vida eterna. O Espírito nos santifica, reunindo-nos na igreja. Nesta igreja,
Ele nos santifica diariamente através do perdão dos pecados, e finalmente através da
ressurreição da carne e da vida eterna.
A obra santificante do Espírito Santo terá importantes implicações para nosso
entendimento da obra do Espírito dentro de nós e para o uso de nossos talentos,
energias e ações. No Primeiro Artigo confessamos a Deus como Criador. No Terceiro
Artigo confessamo-lo como aquele que santifica e recria. Isto tem ramificações no que
se refere a nossa individualidade e para nossa vida em conjunto em comunidade.
147
Embora o termo santificação possa ser empregado para se referir (1) à justificação e a subseqüente transformação
interna do cristão, ou (2) apenas a transformação moral, devemos notar que também pode ser utilizado, como Lutero
freqüentemente o faz no Catecismo Maior, como (3) sinônimo de justificação.
148
Hunt, 51.
149
Ibid.
pressionados para o serviço de Satanás, estes dons são agora colocados no serviço de
Deus.
Segundo, pode acontecer que antes da pessoa tornar-se cristã e ser trazida à
igreja, seus dons inatos tinham estado latentes por um número de razões. Talvez
alguns cristãos nunca tiveram a oportunidade de exercitar estes dons ou lhes faltou
coragem e confiança para envolver-se em certas tarefas por medo de falharem. Isto,
naturalmente, agrada Satanás, que procura suprimir e inibir a criação de atuar assim
como Deus pretende que atue, opondo-se assim às dádivas generosas de Deus
através da criação.
Quando pessoas se tornam membros do corpo de Cristo, tendo sido recriadas
para boas obras, não deveriam surpreender-se que dons que estavam dormentes
agora florescem e “pegam fogo” pelo poder do Espírito, assim como confessado no
Terceiro Artigo. O Batismo compromete a pessoa a um diário afogar e levantar através
da confissão e absolvição, assim que o velho eu cobiçoso é morto e o novo Adão
venha, para usar os dons de Deus para o propósito para os quais Ele os deu.
Acontecerá, então, que “a vida da congregação refletirá o florescer da originalidade
individual de seus membros, porque aquilo que era próprio e privado de alguém está
sendo subjugado e posta à morte.”150
Os dons de um cristão podem florescer de diversas maneiras. Dons dos quais a
pessoa nem estava à par pode vir à tona e ser descobertos. “Sem dúvida, visto que os
crentes são novas criaturas em Cristo (2 Co 5.17), o Espírito concede habilidades e
graças que surpreendem mesmo as próprias pessoas.” 151 Ou um cristão pode
subitamente encontrar a oportunidade de usar dons, onde estavam faltando
oportunidades antes. “No serviço nos tornamos o que em nosso mais profundo ser já
somos. Fora do corpo de Cristo, nossos dons estariam sem uso e não teriam
sentido.”152E, para sua alegria, um cristão por mesmo usar tais dons e talentos com
uma nova motivação e desejo, operados pelo Espírito.
O valor desta perspectiva é seu reconhecimento de que Deus normalmente opera
através de meios. Os dons que cada pessoa tem foram dados por Deus por intermédio
de outros. Eles foram descobertos e desenvolvidos através da assistência de pais,
professores e escolas. Isto realça a continuidade da obra de Deus na criação e
santificação, sendo que o primeiro encontra cumprimento no segundo. Deus restaura,
reivindica e recria aquilo que ele já deu. E Ele o faz por meios naturais.
Finalmente, o que está dito acima não pretende sugerir que Deus não poderia ou
não teria dado dons excepcionais e sobrenaturais aos Seus servos, necessários para
tarefas especiais. O Novo Testamento menciona explicitamente poderes, dons de
curas e línguas. Parece claro, no entanto, que estes são dons extraordinários, talvez
dados para circunstâncias extraordinárias. Declarações inequívocas sobre quando ou
como eles são dados ou descobertos não podem ser feitas com qualquer grau de
confiança. Parece que tais dons são dados de acordo com as necessidades do povo de
Deus. Assim, pode bem ser que eles não são nem dados, nem descobertos até que a
pessoa esteja em uma tal situação que requeira o auxílio de um dom específico. Isto se
150
Gustaf Wingren, Credo: The Christian View of Faith and Life, traduzido por Edgar M. Carlson (minneapolis:
Augsburg, 1981), 152.
151
Hunt, 51.
152
Wingren, Credo, 153.
aplicaria especialmente a dons tais como fé corajosa, martírio e uma esperança sem
oscilações em um tempo de severo teste (1 Co 12.11). Outros dons (tais como o dom
de apóstolos) pode bem ter cessado de existir quando cumpriram com seu propósito.
Como Paul Althaus observou, “Lutero nunca pensa da reunião dos muitos na
unidade da comunidade sem entender a unidade em termos do ser membro no corpo e
assim compartilhar uns com os outros.”154 Por um número de razões, a declaração de
153
Catecismo Maior 2a parte 51,52.
154
Paul Althaus, The Theology of Martin Luther, traduzido por Robert C. Schultz (Philadelphia: Fortress Press,
1966), 297.
Lutero é importante pelo que diz sobre a natureza da igreja e a maneira na qual os dois
aspectos de comunhão correspondem a fé e amor.155
Primeiro, Lutero afirma que todo cristão possui em comum com outros todos os
benefícios e bênçãos de Cristo. Há um Batismo, um Senhor e um Espírito. Todos
igualmente colocaram seus pecados sobre Cristo e todos igualmente receberam Seus
bênçãos e benefícios. Apesar deque o catecismo Menor realça a individualidade,
quando enfatiza que o Espírito “me chamou ... me iluminou ... me santificou e
preservou,” imediatamente segue enfatizando que aquilo que aconteceu com respeito a
cada cristão não é algo que só a ele pertence. Os próprios dons que são dados a cada
um como resultado da obra de Cristo se aplicam a todos dentro da igreja. E assim
temos a transição crucial: “assim também” Deus em Jesus Cristo chamou, reuniu,
iluminou e conservou toda a igreja cristã na terra. O Espírito agiu em mim da mesma
forma como tem agido em toda a igreja cristã, em todos os lugares e em todos os
tempos. Esta atividade comum, com os dons comuns, nos traz juntos em uma igreja,
um corpo. Estes dons e atividades são o que temos “em comum” - o próprio sentido de
koinonia (comunhão) no Novo Testamento. Todos foram chamados pelo mesmo
Evangelho e iluminados com os mesmos dons. Todos receberam rica e diariamente o
mesmo perdão dos pecados. O dom do perdão, em lugar de distinguir-nos uns dos
outros, coloca-nos no mesmo patamar diante de Deus. A mensagem de Paulo aos
Coríntios é que, apesar de possuirmos diferentes dons, recebemo-los todos de um e o
mesmo Doador.
Segundo, as palavras de Lutero nos ensinam que todos os cristãos não apenas
compartilham da confissão comum de Cristo, mas cada pessoa compartilha tudo o que
tem, com os outros membros do corpo. A igreja manifesta aquilo para o que fomos
criados, mesmo agora, enquanto aguardamos seus cumprimento final:
Creio que nesta congregação, ou igreja, todas as coisas são comuns, que as
posses de cada um pertencem aos outros e que ninguém tem algo que é
unicamente seu; portanto, todas as orações e boas obras de toda a
congregação devem ajudar, aiistir e fortalecer a mim e a cada crente em todos
os tempos, na vida e na morte, e assim cada um carregar as cargas dos outros,
como ensina Paulo. 156
155
Ibid., 294-97.
156
“A Brief Explanation of the Creed” (1520), Works of Martin Luther, vol. 2, traduzido por C. M. Jacobs
(Philadelphia: A. J. Holman, 1916), 373.
157
Althaus, 296. Para uma visão geral do desenvolvimento histórico na terminologia e entendimento de Lutero sobre
a igreja, ver: Thomas M. Winger, “Communio Sanctorum: Gemeine or Gemeinschaft?” in Concordia Student
Journal 15 (Páscoa 1992): 10-19.
posses temporais e o serviço físico aos homens; segundo, serviço através de doutrina,
consolação e intercessão;” e terceiro, “suportando as fraquezas do irmão e o
compartilhar por parte daqueles a quem Deus tem sido gracioso e protegeu dos
pecadores.”159 Semelhantemente, a ênfase da Escritura no uso dos dons não é tanto
um chamado para “puxarmos juntos” em uma direção comum ou para lutarmos por um
objetivo comum (como, por exemplo, expansão missionária). 160 Antes, a Escritura
enfatiza a importância de usarmos os dons que recebemos, para o benefício dos outros
membros do corpo. Dentro do corpo há uma mutualidade de compartilhar que não
existe entre aqueles que estão no corpo e aqueles que não estão. Isto significa não
apenas que nos interessamos por cada um dentro do contexto da igreja e sua várias
atividades, mas que continuamente nos preocupamos uns pelos outros onde quer que
nos encontremos.
Uma das questões levantadas pelo uso dos inventários de dons espirituais diz
respeito à necessidade de que as pessoas saibam como e onde eles se encaixam na
vida e atividades da igreja. Estas ferramentas pretendem ajudar as pessoas a
descobrirem seus dons, de modo que possam encontrar onde podem ser de maior
ajuda no corpo de Cristo. Ao empreender este esforço válido, a aplicação do Primeiro e
do Terceiro Artigos do Credo fornece una estrutura para formularmos uma resposta
adequada.
Primeiro de tudo, parece que os inventários de dons espirituais não precisam ser
rejeitados de todo. Eles bem podem ter seu lugar e papel a cumprir. No entanto,
hesitaríamos em chamá-los de inventários de “dons espirituais”. Eles podem ser de
ajuda em identificarem nossos dons naturais (inatos) assim que possamos melhor
servir a Deus onde quer que estejamos. Os métodos de identificar dons espirituais nos
inventários utilizados presentemente não são realmente desenvolvidos a partir de
quaisquer princípios bíblicos ou passagens bíblicas. Apesar de que inventários de dons
espirituais se propõem a auxiliar cristãos a descobrirem seus “dons espirituais,” parece
não haver nada particularmente “espiritual” ou distintivamente cristão sobre os passos
usados para descobrir estes dons. Eles ficam naquilo que chamamos usualmente de
“senso comum.”
Considere os passos que são freqüentemente recomendados para se descobrir
os dons de um cristão: (1) explore as possibilidades; (2) experimente tantos dons
quantos puder; (3) examine seus sentimentos.; (4) avalie sua eficácia, isto é, veja o que
vai acontecer; (5) espere confirmação de outros. Estes pouco diferem das
considerações que muitas pessoas, cristãs ou não, levam em conta ao tomarem os
mais diversos tipos de decisões na vida (por exemplo, que tipo de exercício poderia ser
o melhor para eles; que carreira gostariam de entrar; ou em que tipo de serviço
comunitário gostariam de estar envolvidos). Em cada caso, as pessoas tendem a
158
Althaus, 308.
159
Ibid., 308,9.
160
Isto não é para sugerir que estes fatores estejam excluídos ou não sejam importantes, mas simplesmente que eles
não são mencionados ou tratados como o assunto em discussão.
explorar as possibilidades, vendo quais opções existem e em que delas eles poderiam
ser bons ou gostar de fazer. Muito freqüentemente não sabemos o que é o melhor para
nós ou mesmo o que gostamos, até que tentemos uma variedade de atividades. Se
estamos interessados em alguma coisa, isto freqüentemente nos leva a trabalhar mais
arduamente nela e, assim, nos tornarmos melhor nela. Ao mesmo tempo, podemos
também perguntar quantos de nós querem continuar a fazer uma coisa se não somos
bons nela ou se nosso trabalho prova ser ineficaz. Em alguns casos, o sucesso e
proficiência crescente levam a pessoa a gostar do que está fazendo. Novamente, não é
distintivamente cristão buscar “confirmação” disto. Em toda a nossa vida, nossos pais,
pastores, professores e amigos nos ajudam a identificar nosso lugar dentro do mundo,
mostrando aquelas áreas nas quais nos distinguimos. Freqüentemente alguém nos diz;
“Você é realmente bom nisto. Deveria continuar.” Da mesma forma, estas mesmas
pessoas podem também apontar para aquelas áreas onde nos faltam talento ou
habilidade.
Se se deseja maior exatidão para a descoberta de talentos ou interesses, do que
se obtém destes passos do “senso comum,” o desenvolvimento de algum tipo de
inventário pode ser útil. Tal inventário, porém, deveria utilizar de padrões científicos
rigorosos, aos quais outros instrumentos deste tipo estão sujeitos. Na verdade, existe
uma disciplina especial para “criar e avaliar testes, conhecida como Psicometria.” 161 Ela
testa tanto “construct validity” 162 como “criterion-related validity.”163 O primeiro se refere
à “extensão até a qual um teste mede características ou habilidades relativamente
abstratas.”164 Ele busca uma correlação demonstrável entre as questões perguntadas e
a habilidade que elas querem medir. O segundo mede “a extensão até a qual os
escores predizem a presença do objeto de medida.”165 Ele explora a conexão entre as
colocações ou questões no inventário e a habilidade daquelas colocações em
identificarem o dom em questão. Outro requisito é confiabilidade. Esta é a extensão
para a qual o teste é consistente em medir o que mede. Finalmente, tais instrumentos
deveriam oferecer base para se chegar a “escores padronizados”, de forma a fornecer
resultados com significado. 166
Segundo, ver estas ferramentas como inventários da obra do Espírito pode
também criar problemas teológicos desnecessários. Um deles, não o menor, é que
pode levar a uma confusão entre os dois reinos nos quais Deus atua. As questões em
muitos inventários parecem fazer pouca provisão em avaliar a diferença entre dons
naturais e dons espirituais. De fato, muitas das questões poderiam facilmente ser
respondidas por não cristãos de uma forma que os poderia levar à conclusão de que
também eles possuem dons espirituais! Por exemplo:
Recebi boas notas na escola.
Gosto de conseguir soluções para problemas difíceis na vida.
Parece fácil aprender verdades difíceis.
Parece que as pessoas normalmente seguem meu conselho.
161
Schaibley, 434.
162
Parece ser um termo técnico da Psicologia. N. do T.
163
Idem.
164
Schaibley, 434. (Ibid.)
165
Ibid.
166
Ibid., 435.
Tenho um forte senso de confiança em minhas soluções para os problemas.
Embora estas colocações são ditas como auxílios para identificar “dons
espirituais”, tais como profecia, conhecimento, administração e liderança, parece não
haver diferenças entre estas características e aquelas que indicariam a presença de
“apenas” talentos naturais. No caso do “Personal Renewal Study”, a condição espiritual
da pessoa não é um fator em 27 de 60 (45%) afirmações. 167
Um dos perigos que resultam da confusão dos dois reinos na forma discutida
acima, é que a atenção e o foco podem ser transferidos da obra do Espírito através dos
meios da graça, para a obra do espírito diretamente em nossos corações. Inventários
tornam-se, então, ferramentas pelas quais tentamos calcular od efeitos, a extensão e a
natureza da obra do Espírito.
A questão também poderia ser feita, se os inventários sugerem, ou não, uma
concepção radicalmente diferente do Espírito Santo - uma em que o Espírito é
retratado como sendo o organizador da igreja, mais do que aquele que cria a igreja
pelos dons da palavra e sacramentos. Será que os inventários encorajam pessoas a
olharem internamente ( para suas próprias experiências e sentimentos) em busca de
evidências de seus dons, ao invés de olharem para fora de si, para a Palavra externa
de Deus? Isto levanta outras questões, tais como as que seguem: Quando os dons são
dados? Na conversão? No Batismo? Por quais meios os dons são dados? Com o
perdão dos pecados? Com o Sacramento do Altar?
Finalmente, parece que o uso dos inventários de dons espirituais cresceu a partir
de uma eclesiologia específica. Esta observação tem diversas implicações. Primeira, o
uso de tais inventários corre o risco de levar a atenção à parte dos meios da graça,
para os dons ou habilidades particulares das pessoas, como chave para o crescimento
a igreja. Os dons são vistos como a chave para organizar as pessoas para o
crescimento da igreja. Não apenas se coloca a ênfase nos dons e na organização do
laicato para o crescimento da igreja, mas a tarefa do ofício do ministério (onde ele é
mencionado), de equipar (isto é, mobilizar, organizar, administrar) os leigos, é
facilmente enfatizada mais do que a responsabilidade de proclamar o Evangelho e
administrar os sacramentos. Na verdade, os inventários de dons como tais não
requerem um pastor para proclamar o Evangelho e administrar os sacramentos. Tudo o
que eles requerem, conforme Wagner, é um “guarda-livros.”168
O interesse nos dons espirituais e o desenvolvimento de inventários de dons
espirituais têm trazido necessária atenção para áreas negligenciadas da vida e teologia
da igreja. Todavia, a ajuda que tais inventários prometem providenciar freqüentemente
trazem consigo perigos pastorais e teológicos. Afortunadamente, a herança luterana
providencia ricos recursos teológicos que podem ser traçados não apenas para abordar
as questões específicas levantadas pelos inventários de dons espirituais, mas assuntos
mais amplos, relacionados à santificação e piedade cristã. Estes recursos incluem o
167
Ibid., 433.
168
Wagner descreve como “extremamente eficaz” o método de evangelismo de uma congregação que “crê tanto na
vida do corpo, que eles se recusam a colocar pastores na suas igrejas. Eles crêem que o Espírito Santo providencia
para cada igreja todos os dons necessários para uma vida saudável na igreja, e que quando os membros estão usando
seus dons da maneira certa, um ministro profissional é simplesmente excesso de bagagem. Os anciãos e o diáconos
fazem a pregação. A única pessoa que a igreja contrata é o guarda-livros; o resto do trabalho é feito pelos próprios
membros.” What Are We Missing? (Carol Stream, Ill.: Creation House, 1973), 81. Citado em Evangelismo e
Crescimento da Igreja, 52, nota 86.
ensino luterano sobre vocação, que nos ajuda a vermos como podemos alegremente
receber e utilizar plenamente os dons, tanto do Primeiro como do Terceiro Artigos, e
assim viver em ambos os artigos simultaneamente.
Conclusão
Os cristãos vivem sob o duplo governo de Deus, à medida em que vivem suas
vidas no Primeiro e no Terceiro Artigos. Como criaturas que ainda vivem na terra,
aguardando o cumprimento escatológico da salvação, eles vivem sob o governo de
Deus na criação. Como aqueles que foram trazidos à fé em Jesus Cristo, eles vivem
sob o governo da graça de Deus eda recriação, na igreja. Apesar de que estes dois
reinos devem ser distinguidos, não podem ser separados, como se não houvesse
relação ou interação entre eles. Eles não podem ser compartimentalizados, como se
vivêssemos de uma forma no reino da criação e de outra forma no reino da graça.
Uma das preocupações teológicas que brotam em conexão com o uso dos
inventários de dons espirituais é a questão sobre se tal uso dá testemunho de uma
separação dos dois reinos, com o Primeiro Artigo sendo subordinado ao Terceiro
Artigo. Em outras palavras, a pergunta poderia ser feita: “Terá ocorrido uma
secularização, assim que apenas um dos reinos é reconhecido como divino, enquanto
o outro é visto como profano?” Ambos reinos e ambos artigos pertencem a Deus.
Ambos são a obra de Deus e estão ligados através da pessoa e obra de Cristo. Eles
não devem ser separados um do outro, nem deve um ser subordinado ao outro. Em
vez disso, existe uma mútua interação entre eles, assim que cada um informa e molda
o outro.
Em diversos aspectos, o Primeiro Artigo e a doutrina da criação são básicos e de
fundamento para o Segundo e o Terceiro Artigos. O entendimento da missão de Deus
será, sem dúvida, distorcido, se colocado à parte da perspectiva universal da obra de
Deus, que é trazida pela doutrina da criação.169 Onde estariam nosso entendimento
sobre a encarnação e os meios da graça, à parte do primeiro Artigo? Em um tempo
quando muitos “pensam que Deus apenas está relacionado à religião e vida
espiritual,”170 o Primeiro Artigo nos faz alargar nossa perspectiva sobre a atividade de
Deus. Ele nos lembra que Deus continua a exercer Sua atividade criadora através das
estruturas e ordens deste mundo. Em e através destas estruturas - que incluem as
necessidades de nosso próximo - Deus nos chama para que o sirvamos. Dentro deste
contexto, cada um de nós tem um papel e um lugar para viver como cooperador de
Deus. As freqüentes exortações de Lutero a que permaneçamos em nossos estados
(sejam eles elevados ou humildes em poder e prestígio) e em continuarmos em nossas
vocações individuais são não um chamado a que mantenhamos o status quo em
nossas vidas, mas lembretes a que continuemos a agir como instrumentos de Deus na
criação. Para dentro destas situações da vida diária, o Evangelho entra e é
proclamado. Como Marc Kolden observou, “Uma noção de vocação dá objetividade à
169
Terence Fretheim, “The Reclamation of Creation: Redemption and Law in Exodus,” Interpretation 45 (Outubro
1991): 354-65.
nossa vida de fé e nos ancora na obra e vontade de Deus. E, à medida que nos
esvazia através do serviço aos outros, somos abertos para viver somente pela fé.
Vocação, assim, abre espaço para Cristo, assim que Ele possa ser tudo em todos.” 171
Se o Primeiro Artigo prepara o caminho, colocando o fundamento necessário e
providenciando o contexto para o Segundo e o Terceiro Artigos, o Terceiro Artigo, por
sua vez, nos traz a Cristo e, assim, ao pai, que revelou a profundidade de Seu amor
por nós em Cristo. Resultando disso, a obra do Espírito, como confessada no Terceiro
Artigo, em última análise nos leva a reconhecer o Criador como nosso gracioso Pai
celestial e, assim, a receber tudo o que há na criação como um dom imerecido de Deus
(ou como diz a explicação do Primeiro Artigo no Catecismo Menor: “sem nenhum
mérito ou dignidade de minha parte”).172 Isto tem pelo menos três implicações para a
igreja.
Primeiro, sem importar os diferentes dons e os vários graus nos quais os
recebemos, o Espírito nos leva a recebê-los todos, grandes e pequenos, espetaculares
e não espetaculares, como dons que vem de Deus. Nossas diferentes vocações, dons
e talentos têm todos uma fonte comum, o Criador dos céus e da terra. Este é o
reconhecimento fundamental ao qual Paulo tentou levar os Coríntios. Quando
reconhecemos que todos estes dons vêm de Deus, também entendemos que Deus não
está preocupado sobre as diferenças entre os dons, mas apenas com a forma como os
usamos. Aos nossos olhos, ações e obras terrenas variam em glória e importância. Aos
olhos de Deus, as diferentes obras em si não são o que é importante. Antes, Ele olha
especialmente para nossa resposta a Ele em nossas obras e vocações. Como diz
Lutero, “Portanto é Sua vontade que todos tenhamos consideração por Sua ordem e
vocação.”173Lutero segue dizendo:
Assim Paulo escreve em Rm 12 e 1 Co 12: O corpo tem muitos membros, mas
nem todos os membros têm o mesmo trabalho. Assim, somos muitos membros
da única congregação cristã, mas nem todos temos o mesmo trabalho. Cada
um deve olhar para seu próprio trabalho e não para o de outro; assim devemos
viver juntos, em obediência simples, em uma harmonia de muitas missões e
multiformes trabalhos.174
É colocando a devida atenção em nossas vocações que nos tornamos membros
úteis no inteiro corpo de Cristo.
Segundo, a proclamação da igreja deve “nos deixar a par de que cada contexto
na vida é um meio para servir a Deus e é o meio pelo qual Deus nos chama para
tarefas concretas.”175 Como diz Richard John Neuhaus, “A vocação da igreja é
sustentar muitas vocações.”176 O Terceiro Artigo nos leva de volta a nossa vida diária
dentro do Primeiro Artigo, de modo que possamos começar nossa vida como Deus
pretendeu que Sua criação atuasse. Como confessamos no Catecismo Menor, “devo
dar-lha graças e louvor, servi-lo e obedecer-lhe”, conforme os Dez Mandamentos.
Somos livres para confessar a Deus, o Criador, como nosso Pai celestial, assim que
170
Marc Kolden, “Vocation, Work and identity and the Church’s Mission,” Word and World 9 (Outono 1989); 368.
171
Ibid., 371.
172
Catecismo Maior 2a parte 63-66.
173
Citado em Wingren, Luther on Vocation, 178.
174
Ibid., 178,79.
175
Kolden, 368.
podemos devotar-nos à obra de Deus em nossos estados e ofícios, mesmo se eles não
parecerem particularmente divinos ou espirituais, em comparação com o que outros
estejam dando ou fazendo.177 De fato, no Catecismo Maior o Credo e o Pai Nosso
estão orientados para o Dez Mandamentos de tal forma que os primeiros são dados
para nops ajudar a guardar este último.
Terceiro, a revelação do amor de Deus em Cristo é de tal forma final e definitiva, e
o perdão dos pecados é tão imenso, que somos levados a confessar a bondade da
criação de Deus e de todos os nossos dons naturais, mesmo quando eles estão ocultos
da vista, e mesmo quando experimentamos eventos que parecem contradizer a
verdade da bondade de Deus. em última análise, pois, o Primeiro Artigo é tanto
confissão de fé como o Segundo e o Terceiro Artigos. Como Edmund Schlink colocou-o
sucintamente, não é “mais fácil conhecer a criação de Deus do que Sua redenção. ...
Ser chamado a crer no Criador é tão ofensivo quanto a crer na cruz de Cristo.”178 Esta
foi uma confissão radical e de contracultura, mesmo na igreja antiga.A doutrina da
encarnação compeliu a igreja a confessar a bondade da criação. O Pai de Jesus Cristo
provou ser o Criador do mundo, com o resultado que a criação foi valorizada em
comparação com desvalorizações que se fazem sobre ela (por exemplo, no
Gnosticismo). Deus criou o mundo do nada; Ele não simplesmente colocou ordem
sobre uma matéria que fosse intrinsecamente caótica (contra diversas filosofias gregas,
tais como o Estoicismo, Epicurismo e Platonismo).179 Esta visão sobre a criação uniu o
Antigo e o Novo Testamentos (contra o Marcionismo), assim que o Antigo Testamento,
e não a filosofia grega, trouxe o contexto teológico para o Novo Testamento.
A afirmação do Primeiro Artigo como um artigo de fé, se manifesta também na
teologia da cruz, de Lutero, que envolve o confiar nas promessas graciosas de Deus,
mesmo em meio a privações, sofrimento e morte. Lutero pergunta: “Se você não tem
tanto quanto o prefeito, você não tem, antes, a Deus, o criador dos céus e da terra,
Cristo e a oração? Sim, mesmo o imperador não tem mais do que isto.” 180 Confessar
que Deus é nosso bom Criador “em meio a nossa própria morte e corrupção, ou em
meio àqueles que nos odeiam e nos maltratam não é nada além ou diferente do que
crer que no pecador crucificado, Deus está criando ex nihilo [do nada], dando vida ao
indigno e àqueles sem nenhum mérito.”181
Temos a restauração da criação e a consumação da salvação ao mesmo tempo
já e ainda não. Elas são nossas já agora, pela fé, mesmo se ainda não podemos vê-las
e experimentá-las. Temos estes dons na esperança. Esta convicção está bem
expressa nos versículos finais de Habacuque:
Ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na vide; o produto da oliveira
minta, e os campos não produzam mantimento; as ovelhas sejam arrebatadas
do aprisco, e nos currais não haja gado, todavia, eu me alegro no SENHOR,
176
Richard John Neuhaus, Freedom for Ministry, edição revisada (Grand Rapids: William B. Eerdmans, 1992), 229.
177
Kolden, 370.
178
Edmund Schlink, Theology of the Lutheran Confessions, traduzido por Paul F. Koehneke e Herbert J. A. Bouman
(Philadelphia: Muhlenberg Press, 1961), 59.
179
Cf. Frances M. Young, The Making of the Creeds (London: SCM Press, 1991), 16-32, para um relato útil sobre a
natureza radical da confissão da igreja sobre a criação.
180
Citado em Wingren, Luther on Vocation, 130.
181
Weinrich, 14,15.
exulto no Deus da minha salvação. O SENHOR Deus é a minha fortaleza, e
faz os meus pés como os da corça, e me faz andar altaneiramente.
182
O hino “See, the Conqueror Mounts in Triumph” olha para a frente com a mesma antecipação:
Levantaste nossa natureza humana
Sobre as nuvens, para a mão direita de Deus;
Lá nos assentamos nos lugares celestiais,
Lá contigo na glória estamos.
Jesus reina, adorado por anjos; Homem e Deus está no trono.
Poderoso Senhor, em Tua ascensão,
Nós pela fé olhamos para o que é nosso. (Lutheran Hymnal 218:5)