Ensino Da Historia e Memoria Coletiva

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E59 Ensino da história e memória coletiva [recurso eletrônico] / Mario Carretero,

Alberto Rosa e Maria Fernanda González (organizadores) ; tradução


Valério Campos. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre: Artmed, 2007.

Editado também como livro impresso em 2007.


ISBN 978-85-363-1170-8

1. Educação – Fundamentos. 2. História. I. Carretero, Mario.


II. Rosa, Alberto. III. Gonzáles, Maria Fernanda.

CDU 37.01:930

Catalogação na publicação: Juliana Lagôas Coelho – CRB 10/1798


Ensino da história e memória coletiva 45

sentimento nacionalista que encobria as disparidades econômicas e sociais acen-


tuadas pela política econômica.
Os estudos sociais propostos e apresentados pelas obras didáticas eram, dife-
rentemente das propostas de sociólogos como Darcy Ribeiro ou Delgado de Car-
valho, uma simplificada e reduzida história e geografia, sem profundidade concei-
tual, justificada por uma “inserção do aluno na comunidade” de maneira a se
adaptar e se acomodar ao sistema. A relação aprendizagem associada ao ensino
passou a ser considerada fundamental pelos currículos, mas os novos métodos
anunciados que objetivavam uma formação intelectual baseada nos pressupostos
piagetianos transformaram-se em simples técnicas de ensino. Jogos, testes e os
estudos dirigidos eram apresentados como inovações metodológicas, mas pouco
acrescentavam à formação intelectual e transformavam-se, mais uma vez, em ins-
trumentos pedagógicos para fazer o aluno melhor memorizar e repetir lições para
os professores. As inovações técnicas fundamentavam-se na concepção do aluno
como sujeito de aprendizagem, mas as práticas de ensino fundamentavam-se ex-
clusivamente na reprodução do conhecimento. Ensinar significava reproduzir co-
nhecimento, e a didática tinha como função criar instrumentos eficientes para que
esse conhecimento fosse transmitido da maneira mais fácil para o aluno. Explica-
se, assim, a importância dos livros didáticos que podiam, inclusive, substituir pro-
fessores, com técnicas de auto-instrução.
Os avanços anunciados nas décadas de 1950 e 1960 quanto a uma formação
dos alunos com fundamentos científicos incorporados pelas ciências de referên-
cia, indicando possibilidades de identificar o caráter ideológico de um passado
construído sob interesses de determinados setores, foram eliminados no decorrer
da fase ditatorial. Escolas onde tais pressupostos eram desenvolvidos foram “fe-
chadas pela polícia”, como o Colégio de Aplicação da USP, em São Paulo, e seus
professores, perseguidos. A ideologia da democracia racial, já bastante criticada
por autores como Florestan Fernandes, ao lado do caráter pacífico do “povo brasi-
leiro”, que havia feito a independência política sem guerras, realizando acordos
políticos (diferentemente dos demais países americanos), assim como a libertação
dos escravos, também realizada sem conflitos internos (diferente do trágico caso
norte-americano), eram difundidos e procuravam ser sedimentados por outras
atividades nas festas cívicas e em outros conteúdos escolares.
Resistências de professores e também de autores de livros didáticos, entre-
tanto, não estancaram totalmente o processo iniciado na década de 1960.

DE UMA IDENTIDADE NACIONAL A MÚLTIPLAS IDENTIDADES

A volta da história e da geografia para o então denominado primeiro grau


provocou debates significativos que marcaram a história da disciplina em nosso
país. Vários estudos abordam esse processo que se inseria em um retorno das
46 Mario Carretero, Alberto Rosa, María Fernanda González & cols.

disciplinas da área das ciências humanas em meio aos debates de redemocratização


do país na década de 1980 e na constatação de uma “crise” educacional (Maria do
Carmo Martins, 2002; Jaime Cordeiro, 2000).
O acesso à escola para amplos setores sociais havia conduzido a uma situa-
ção complexa e contraditória, pois aspectos qualitativos dessa “escola para todos”
não foram cuidados. A precária qualidade do ensino público, com professores mal
remunerados, trabalhando em péssimas condições e mal preparados por cursos
superiores particulares sem maiores cuidados além do ganho monetário, havia
criado uma situação na qual o conhecimento escolar foi reduzido, com alunos
que, após oito anos de escolarização, mal dominavam a leitura e a escrita.
O problema central ao final dos anos de 1980 era democratizar o ensino e
melhorar sua qualidade, considerando que havia avanços significativos no campo
educacional, com maior embasamento sobre questões de ensino e aprendizagem,
o retorno de exilados, como Paulo Freire e Darcy Ribeiro, os quais provocavam
debates e propostas para a educação popular.
A volta da história para o ensino então chamado de primeiro e segundo graus
era, portanto, tarefa complexa. A indagação que percorria os debates entre educa-
dores e historiadores relacionava-se a qual história deveria ser ensinada para o
novo público escolar social e culturalmente heterogêneo. Um público escolar que
estava sendo colocado diante de novos veículos de comunicação audiovisuais,
criado sob novos paradigmas frente ao conhecimento e que parecia oferecer obs-
táculos diante do mundo da escrita e da leitura impressa. Um público que conhe-
cia o Brasil pela TV e muito pouco por estudos históricos na escola.
Muitas das reformulações curriculares iniciadas na década de 1980 e reali-
zadas pelos diferentes estados, assim como pelos grandes municípios, buscavam,
além de resolver questões metodológicas para atender às necessidades desse novo
público, rever as finalidades da disciplina e de seus conteúdos.
Ao lado da decantada frase de que a história era a disciplina que deveria
“formar o cidadão crítico e consciente”, os debates apontavam para outra finalidade
da disciplina ligada à superação do ideário nacionalista do regime militar e repen-
sar o problema de identidade social, bem como enfrentar os problemas dos pre-
conceitos e racismos camuflados sob o slogan do Brasil ser o país da “democracia
racial”. Que país é esse? O que é ser brasileiro? Estas têm sido indagações de
muitas das propostas curriculares de história.
As introduções de algumas das propostas curriculares da fase do final de
1980 e do início dos anos de 1990 mostram a intenção de reformular a história
escolar calcada no modelo eurocêntrico de conteúdos organizados sob a lógica de
uma cronologia que sedimentava um tempo linear e da ideologia do progresso do
capitalismo.
Os movimentos sociais organizados por vários setores haviam sido fundamentais
para o fim da fase ditatorial, e suas reivindicações estavam na pauta das reformas
educacionais. A produção historiográfica criticava o estruturalismo marxista pela
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imobilidade política que provocava, uma vez que as respostas aos problemas inter-
nos dependiam exclusivamente do exterior, do capitalismo internacional.
Na busca de explicação da posição do Brasil junto ao mundo globalizado, no-
vamente ocorreram aproximações com as condições dos países latino-americanos.
Os debates que ocorriam em encontros de professores da rede com historiadores
passaram a enfatizar mudanças nas análises sobre os problemas nacionais e latino-
americanos, constatando-se que, sobretudo pela análise da produção didática, ha-
via simplificações que reduzem a história da América Latina em etapas sucessivas
de dependência econômica: a dependência colonial, a dependência primário-ex-
portadora, a dependência tecnológico-financeira. Da mesma forma, nesse processo
de crítica ao estruturalismo, havia ainda a tendência de se criarem generalizações
que impediam a compreensão das situações internas, particulares e regionais:

Um exemplo significativo dessa perspectiva generalizante é a maneira como são


ignoradas as diferenças marcantes entre a Região do Prata e a Região Andina.
Muitos livros didáticos, ao tratarem do período colonial, dão a entender que toda
a economia da América hispânica girava em torno da extração de metais preciosos,
pois somente discorrem sobre o Peru, a Bolívia e o México. (Beired et al., 1988, p.
222, grifo dos autores)

As reformulações curriculares iniciadas no final da década de 1980 até a


elaboração dos PCNs para o ensino fundamental e médio no final de 1990 tiveram
que atender a tais séries de críticas e buscavam situar com maior cuidado as fina-
lidades da história.
Em São Paulo, duas propostas para o ensino de história geraram intensas
polêmicas e tornaram-se paradigmáticas para as demais que então se realizavam
em todo o país. Em 1986, foi elaborada a proposta de história pela Secretaria da
Educação do Estado de São Paulo com a proposta de uma nova organização de
conteúdos por intermédio de uma história temática. A proposta baseava-se nos
fundamentos teóricos da renovação da linha marxista dos ingleses, especialmente
E. Thompson, com ênfase na história social aliada à concepção cultural de classe
social. A proposta tinha como eixo o tema do trabalho, e os sujeitos históricos
eram os trabalhadores como construtores da nação. Em 1990, a proposta
Reorientação Curricular pela Via da Interdisciplinaridade, promovida pela Secre-
taria da Educação do município de São Paulo, cujo secretário era Paulo Freire, foi
mais ousada em sua concepção de uma história fundamentada nos temas geradores
e que se constituía juntamente com outras disciplinas e dentro de problemáticas
da comunidade escolar.
Apesar de bastante criticadas pelas inovações, as propostas que se seguiram
buscavam solucionar o problema de conteúdos construídos sob o enfoque euro-
peu. A partir delas, tem sido possível repensar uma história escolar calcada em
problemas atuais e enfatizar as relações da micro e macro-história, assim como os
conceitos fundamentais que devem garantir a organização curricular.
48 Mario Carretero, Alberto Rosa, María Fernanda González & cols.

A identidade nacional concebida por intermédio de um passado unificado e


homogêneo não se justificava por várias razões e perspectivas distintas. Para os
setores liberais, aliados ao ideário globalizado que hostilizava reivindicações de
caráter nacionalista, notadamente quanto aos aspectos econômicos, aplaudiam
(ou aplaudem) as privatizações de estatais por empresas internacionais: a identi-
dade nacional é posta sob suspeita de atraso cultural e político. Para os grupos
mais à esquerda, o nacionalismo passou a ser revisto, surgindo os defensores da
pluralidade e diversidade sociais como base para se entender o passado da nação.
Para além da identidade nacional, existe uma preocupação em identificar o
sentido mais amplo dos pertencimentos do conjunto da sociedade, sejam de classe,
de etnia, de gênero, de religião, de região.
Tal perspectiva tem colocado novos problemas para o ensino de história,
notadamente no que se refere à definição de conteúdos significativos. Entretanto,
esse problema, é importante frisar, não se coloca apenas para o caso brasileiro,
mas para o conjunto de países latino-americanos, conforme apontam algumas aná-
lises sobre a história da disciplina.
Carmen Gonzalez Munõz (2002, p. 276), em estudo sobre os currículos dos
países latino-americanos, incluindo o Brasil, aponta que, para além do desafio de
selecionar conteúdos que possam atender às expectativas do atual público escolar,
existem “dificuldades para definir una historia propria que huya del eurocentrismo y
de una periodización ajena y que dé cabida a poblaciones originarias (...)”
Entre os problemas da contribuição da história escolar na constituição de
identidades existe o do regionalismo ou o das identidades regionais. Histórias
regionais têm sido propostas no âmbito latino-americano, como o caso das pro-
postas educacionais do Mercosul, sob os auspícios governamentais. Trata-se de
uma proposta que redefine as relações identitárias entre os povos latino-america-
nos, mas também europeus. As raízes européias situam-se nas regiões ibéricas, e
não mais nos países hegemônicos do continente europeu que até têm servido de
referencial civilizatório para o conjunto dos países do Mercosul.
A preocupação dos países integrantes do Mercosul tem sido a de sensibilizar
educadores para inclusão de estudos históricos e geográficos sobre os países que
integram o Mercado. Alguns poucos levantamentos realizados sobre o estado da
questão, ou seja, o que alunos conhecem da história dos países vizinhos demons-
traram que dominam um repertório bastante escasso sobre problemas sociais,
políticos ou mesmo culturais dos países vizinhos.3
A proposta do Comitê Educativo do Mercosul de 1997 para o ensino de história
e geografia, visando mudar essa situação de desconhecimento sobre os países
vizinhos do continente e favorecer a integração regional, centrou-se na busca de
temas comuns na perspectiva de uma história regional capaz de superar os limites
de uma história nacional. A concretização dessa proposta era, então, entendida
como possível se houvesse uma ação conjunta de educadores, historiadores e
geógrafos nessa direção, conforme afirmou o historiador argentino Alejandro
Eujanian (1998, p. 41 e 42):
Ensino da história e memória coletiva 49
[...] Nos últimos anos, a proliferação de estudos regionais tendeu à dissolução da
visão nacional e à criação de condições para a reflexão sobre as relações realmente
existentes entre alguns espaços regionais nacionais com regiões pertencentes a
outros países limítrofes.

Entretanto, quanto aos objetivos de constituições de identidades regionais, o


autor adverte:

Mas também não podemos trocar essa missão de construir consciências nacionais
por aquela de outorgar às identidades regionais espaços multinacionais, como o
Mercosul, de um passado tão imaginário e, talvez, mais artificial do que o anterior.

Introduzir ou produzir história regional para o ensino necessita, igualmente,


articular-se aos debates teóricos que envolvem as relações entre nacional e regional.
A história regional tem sido objeto de debates constantes e caracterizada
parte considerável da historiografia de várias nações, em especial aquelas de maio-
res proporções, como é o caso do Brasil. Constata-se que as pesquisas de história
regional têm crescido a partir de 1970, sobretudo pelo esgotamento das macroabor-
dagens que enfatizaram as análises mais gerais e não se detinham nos estudos
particulares que possibilitariam elucidações da história recente do país, como o
incessante processo migratório, as disparidades socioeconômicas, a concentração
de renda e o papel dos poderes locais e o crescimento urbano, entre outros. A
valorização da história regional explica-se pela possibilidade que fornece para a
percepção da configuração e da transformação social do espaço nacional, uma vez
que a historiografia nacional ressalta as semelhanças, enquanto a regional trata
das diferenças e da multiplicidade. A história regional proporciona na dimensão
do estudo do singular um aprofundamento do conhecimento sobre a história na-
cional, ao estabelecer relações entre situações históricas diversas que constituem
a nação (cf. Silva, M., 1990).
O ensino de uma história regional sempre foi apresentado como proposta edu-
cacional, considerando-se, entre outros aspectos, as possibilidades enunciadas pe-
los currículos fundamentados nos círculos concêntricos pelos quais os alunos, den-
tro da lógica do desenvolvimento cognitivo, deveriam ser introduzidos na apreen-
são do tempo e do espaço, começando pelo mais próximo (escola, bairro, família)
para o mais distante (cidade, município, região e nação). Na prática, concretiza-
ram-se estudos de cada estado da federação: história de Minas Gerais, história de
Pernambuco, história do Rio Grande do Sul... que têm se denominado história regio-
nal. A preocupação mais efetiva corresponde ao estudo baseado em uma divisão
administrativa e política que, sem dúvida, leva em conta a constituição de identidades
locais: ser paulista, ser amazonense, ser cearense... mas não necessariamente visa à
formação de uma identidade regional e repete, em menor escala, a organização de
uma história nacional fundada nos feitos de chefes políticos.
A introdução no ensino de uma história local ou regional passa, necessaria-
mente, pelo aprofundamento dos estudos de uma história social e cultural que
50 Mario Carretero, Alberto Rosa, María Fernanda González & cols.

não exclua a política, mas esta necessita ser revista quanto aos seus conceitos
fundamentais: poder, estado, partidos políticos e movimentos sociais, entre ou-
tros. Torna-se fundamental aprofundar estudos sobre os diferentes sujeitos que
participaram e participam da história local e nacional, sejam indígenas, trabalha-
dores urbanos ou rurais, políticos, empresários, fazendeiros, religiosos, etc.
As relações entre pesquisadores e professores tornam-se vitais no processo
para que a redefinição da constituição de identidades sociais não se fragmente em
estudos de “caso” e se tornem dogmáticas e maniqueístas, repetindo o percurso
muitas vezes delineado pela constituição de uma identidade nacional elitista e
excludente. Na atualidade, os estudos históricos nas escolas estão associados ao
desenvolvimento intelectual dos alunos dos diferentes níveis de escolarização,
além de ligados a seus processos de socialização em diversas esferas, fornecendo
legitimidade à constituição da vida social, aos conflitos e projetos políticos. Esse
compromisso do ensino de história, ao lado da sua inerente condição de formador
de valores, juntamente com os demais componentes escolares, situa com precisão
o atual momento da história da disciplina.
A introdução da história da África e da cultura afro-brasileira e africana inse-
re-se nessa condição contemporânea do papel da história escolar, tendo como
pressuposto a constituição de identidades sociais e de uma redefinição de uma
identidade nacional. A nação não é mais concebida como relacionada de forma
umbilical e intrínseca a um problema político a fim de legitimar o estado. Está
condicionada a uma concepção da relação entre nação e povo que necessariamente
deve preocupar-se com todos os seus cidadãos. Essa relação que também não é
nova modifica-se, nesse momento da história do ensino de história, por ser uma
aspiração e por ter, efetivamente, a participação dos próprios grupos sociais excluí-
dos da denominada história nacional, tendo como paradigma uma identidade na-
cional concebida não de forma homogênea, mas fundada na diversidade.

NOTAS

1. Uma série de pesquisas, muitas delas teses e dissertações, algumas já publicadas, têm
sido realizadas no Brasil e apresentadas, não de forma extensiva, nas referências. Pode-
se também consultar as referências no site do Banco de Dados LIVRES (http://paje.fe.
usp.br/estrutura/livres/index.htm) que apresenta um balanço bastante extenso sobre
as pesquisas referentes à história dos livros didáticos das diferentes disciplinas, sendo
que muitos desses estudos abordam o papel dos livros didáticos na formação da iden-
tidade nacional.
2. Sobre a constituição e as práticas do currículo humanístico clássico e do científico, a
referência é o artigo Les humanités dans l´histoire de l´enseignement français, de André
Chervel e Marie-Madeleine Compère, publicado em 1997.
3. História comparada nas fronteiras do Mercosul: uma experiência entre instituições de
ensino brasileiras e argentinas, de Maria de Fátima Sabino Dias e Maria José Reis, apre-
Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para
esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual
da Instituição, você encontra a obra na íntegra.

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