2019 Conhecimentos e Sociedade-Daniela Alves Maíra Baumgarten Orgs.

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Copyright © 2019 by Daniela Alves e Maíra Baumgarten (organizadoras)

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VERBENA EDITORA

Preparação dos originais: Verbena Editora


Revisão: Fabiano Cardoso
Projeto gráfico e diagramação: Simone Silva – Figuramundo Design Gráfico
Conversão para ePub: SCALT Soluções Editoriais

Editores:
Arno Vogel
Benicio Schmidt
Fabiano Cardoso

Conselho Editorial:
Santiago Alvarez (Argentina) Lia Zanotta Machado
Geniberto Paiva Campos Paulo Baía
Arnaldo Brandão Carlos Alves Müller
Lia Zanotta Machado
Paulo Baía
Carlos Alves Müller

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – Cip

Conhecimentos e sociedade: teorias, políticas e controvérsias


(2019 : Brasília, DF).

Conhecimentos e sociedade: teorias, políticas e controvérsias. / Daniela Alves &


Maíra Baumgarten (Org.) : Verbena Editora, 2019.

ISBN: 978-85-64857-57-5;
e-book

1. Ciência. 2. Ciências Sociais. 3. Pesquisa. 4. Conhecimento. 5. Brasil. I. Título.


AGRADECIMENTOS

A
obra Conhecimentos e Sociedade: Teorias, Políticas e
Controvérsias é o resultado de um esforço coletivo em reunir
textos apresentados nos fóruns e mesas redondas do VII
Simpósio Nacional de Ciência, Tecnologia e Sociedade (VII
ESOCITE.BR/tecsoc). Agradecemos aos autores e autoras que
disponibilizaram seus textos para esta publicação. Ao Fabrício Neves pela
iniciativa de captação de recursos junto à FAP/DF. Ao Ivan da Costa
Marques pela contribuição generosa no resgate histórico dos eventos que
deram origem à ESOCITE.BR, relatados na seção Origens e Caminhos. À
ESOCITE.BR pela iniciativa e pelo apoio na revisão dos textos. Agradecemos,
sobretudo, pelo apoio da FAP/DF, patrocinadora desta obra, através do
projeto 0193.000827/2017.
SUMÁRIO

PREFÁCIO
ESOCITE.BR – Uma história
Ciência e tecnologia na sociedade brasileira do limiar dos anos 2020 –
notas para reflexão
PARTE 1 – Experiências e Práticas Científicas em Ciência, Tecnologia
e Inovação no Brasil
A Contribuição da UnB aos Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia
A Formação de Professores-Pesquisadores em Ciências com
Enfoque CTS: Elementos de Experiências Exitosas no Contexto
Amazônico-Paraense
Um só basta? Agenciando gametas e noções de gênero na Reprodução
Assistida (RA)
Práticas Biomédicas e Novas Materializações de Gênero
e Sexualidade Feminina
PARTE 2 – Teorias, políticas e controvérsia
Mentalidades Dissonantes: Bases Cognitivas sobre as Relações C&T
e Sociedade na Teoria Crítica da Tecnologia e nos Estudos CTS
Latino-Americanos
Para Concebir una Política Cognitiva para la Retomada
“Somos” = “Temos”
SOBRE OS AUTORES
PREFÁCIO

C
omo escrever diante de um colapso? Como pesquisar em meio ao
caos? Essas perguntas são postas a milhares de pesquisadoras e
pesquisadores brasileiros que, nas últimas décadas de período
democrático, achavam ter garantido condições mínimas para
implementar seus projetos e que o desenvolvimento científico
transcorreria em ritmo progressivo. Fomos tomados de assalto por um
regime obscurantista que, além de governar pela propagação da mentira e
da ode à ignorância, fustiga a comunidade acadêmica a revisitar trincheiras
abandonadas das “guerras da ciência” onde jazem argumentos tolos opondo
as ciências naturais e “exatas” às chamadas humanidades.
É nesse cenário que os pesquisadores dos estudos sociais das ciências e das
tecnologias são conclamados a se pronunciar. Ao reunir parcela significativa
da produção recente dos estudos de CTS (Ciência, Tecnologia & Sociedade)
no Brasil, este livro é também o resultado de um esforço de
institucionalização do campo em torno da Associação Brasileira de Estudos
Sociais das
Ciências e das Tecnologias (ESOCITE.BR). Em um contexto tão desfavorável
ao pensamento crítico e humanista é, de fato, um alento e uma necessidade
vital que nos organizemos para fortalecer as nossas associações. Mais do
que nas dinâmicas de nossas resiliências individuais, é no associativismo
que pautaremos a resistência à intolerância e à violência dos dias atuais.
Reflexo do crescimento e da sofisticação intelectual de nossa comunidade
CTS – evidenciada nos simpósios da ESOCITE.BR –, o livro organizado por
Maíra Baumgarten e Daniela Alves é uma importante ferramenta para o(a)
leitor(a) desejoso(a) de maiores informações sobre uma possível
“assinatura” brasileira para os estudos sociais das ciências e das tecnologias.
Sem abdicar de demonstrar uma sólida inserção nas redes de pesquisa e de
diálogo internacionais, os artigos ora dispostos apresentam um conjunto de
“saber-fazer” marcadamente tocados pela experiência de produzir ciência a
partir do Brasil e de suas especificidades. De certo, não se trata de buscar
um lugar isolado, monádico, dos acadêmicos brasileiros em relação aos
fluxos de ideias globais, mas de situar nossas práticas em um solo marcado
por cicatrizes históricas, dilemas nacionais e desigualdades latentes.
Esperamos que a leitura agrade aos já iniciados(as) e que, ao mesmo tempo,
cative os neófitos. Lembrando sempre aos detratores do conhecimento que
a Terra é redonda e dá voltas!

Guilherme José da Silva e Sá

Presidente da Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das


Tecnologias (ESOCITE.BR)
ESOCITE.BR – Uma história1

Daniela Alves & Maíra Baumgarten

Origem e caminhos

P
ara contar um pouco da história da Associação Brasileira de
Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias (ESOCITE.BR), é
importante voltar a Bogotá 2006, quando ocorreu um encontro da
ESOCITE Latino-Americana (Asociación Latinoamericana de
Estudios Sociales de La Ciencia y La Tecnología), ocasião em que
ficou combinado, entre os presentes de diferentes países da América Latina,
que buscariam criar em seus países associações de estudos sociais de
ciência e tecnologia para que se unissem posteriormente em uma
organização latino-americana sobre o tema. Também nessa ocasião foi
decidido que a próxima reunião da Asociación Latinoamericana de Estudios
Sociales de La Ciencia y La Tecnología seria no Rio de Janeiro, Brasil, sob a
responsabilidade de Ivan da Costa Marques.
Em 2008 ocorreu a reunião ESOCITE Latino-Americana. Até então,
entretanto, nada fora providenciado no sentido de criar a associação no
Brasil, o que somente ocorreu em Curitiba (2009), durante o III Simpósio
Nacional de
Tecnologia e Sociedade (TECSOC), quando decidiu-se, em assembleia, e,
portanto, formalizou-se a criação da nova associação, denominada
Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias
(ESOCITE.BR). Ivan da Costa Marques ficou encarregado dos trâmites
formais e burocráticos.
A ESOCITE.BR foi, portanto, fundada no final de 2009. Entretanto ainda foi
preciso que transcorresse quase um ano até que a sociedade tivesse
existência como pessoa jurídica. Esse período foi ocupado por trâmites
burocráticos para o registro como associação. A seguir, um extrato de seu
estatuto que nos indica suas principais características e atribuições.
A Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias
(ESOCITE.BR) foi fundada em 14 de outubro de 2010 e tem por objetivos
promover e coordenar estudos e eventos compreendidos na área de
Estudos Sociais das Ciências e Tecnologias e temas afins. São suas missões
precípuas:

Atuar no sentido de fortalecer os vínculos de uma coletividade


brasileira (e também latino-americana) no campo dos Estudos Sociais
da Ciência e da Tecnologia; estimular a formação de pós-graduação
(especialização, mestrado e doutorado) nesse campo, estabelecendo-
se vínculos estáveis entre os diversos programas e instituições;
Desenvolver e promover a educação CTS (Ciência, Tecnologia &
Sociedade) nos diversos níveis de ensino, bem como apoiar e
fortalecer as publicações acadêmicas e de divulgação sobre os
estudos sociais da ciência e da tecnologia no Brasil e na América
Latina;
Estabelecer vínculos estáveis de colaboração com sociedades
similares de outras regiões, como a 4S (Society for Social Studies of
Science) e a EASST (European Association for Studies of Science and
Technology), assim como junto a outras sociedades brasileiras ou
estrangeiras que representam campos disciplinares distintos ou de
interesse comum;
Procurar dar a mais ampla visibilidade a trabalhos desenvolvidos
originários do Brasil e da América Latina;
Gerar e pôr em circulação propostas sobre políticas em Ciência e
Tecnologia no Brasil;
Garantir a localização e preservação de fontes documentais para a
história da ciência e da tecnologia no Brasil e servir como órgão de
informação e ligação entre pesquisadores, incluso entre os diversos
centros ou instituições que existam ou possam a vir a ser instituídos e
que se dediquem aos mesmos objetivos da Associação.

Uma história dos encontros TECSOC (Simpósio Nacional de Tecnologia e


Sociedade) e de sua importância para o desenvolvimento do campo Ciência,
Tecnologia & Sociedade (CTS) é necessária para se entender a ligação da
Esocite.BR com esses eventos. Em 2005 iniciou-se uma série de encontros
bienais TECSOC dentro da área de estudos de Tecnologia e Sociedade, com
simpósios realizados no âmbito do Programa de Pós-Graduação em
Tecnologia (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná
(UTFPR). Esses simpósios acabaram por agregar diversos pesquisadores
que atuavam na área de estudos de Ciência, Tecnologia e Inovação (CTI),
seja em políticas de CTI, seja em repercussões sociais da pesquisa,
divulgação de CTI, ensino CTS, Avaliação de CTI, entre outras, e que até
então atuavam apenas dentro de suas associações disciplinares específicas,
como Sociologia, História e Comunicação Social.
Desde 2011, os simpósios TECSOCs foram realizados em parceria com a
Esocite.BR, que se integrou à tradição dos encontros bienais com o objetivo
acordado com o PPGTE/UFTPR de transformá-los em congressos
Esocite.BR. Já nesse ano ocorreu o IV TECSOC/ESOCITE.BR, com o tema
“Ciência e Tecnologia – Construindo a igualdade na diversidade”.
O próximo simpósio, denominado V TECSOC/ESOCITE.BR, aconteceu ainda
em Curitiba, nos dias 16, 17 e 18 de outubro de 2013, e contou com a
presença de mais de 500 participantes, tendo por tema “Ciência, Tecnologia
e Cultura – Outro desenvolvimento é possível?”.
O encontro seguinte, VI ESOCITE.BR/TECSOC, aconteceu no Rio de Janeiro,
nos dias 14, 15 e 16 de outubro de 2015, na Ilha do Fundão, na Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Entre as atividades previstas para esse simpósio,
foram elencadas Conferências, Mesas-redondas, Grupos Temáticos,
Minicursos, Pôsteres, Encontros com Autores, Eventos Socioculturais e
também Aglomerados. O tema foi “Por que Tudo Parece em Crise, Exceto os
Paradigmas em que Tudo Aparece em Crise?”.
Desde então os simpósios ESOCITE.BR/TECSOC tornaram-se o mais
importante encontro nacional da área, congregando pesquisadores de
diversas origens e especialidades. Um ponto importante para o
desenvolvimento da ESOCITE.BR foi ter herdado os congressos TECSOC, o
que, de certa forma, possibilitou um salto do Brasil na direção de organizar
sua Associação e mantê-la em funcionamento. A partir de 2011, a
Associação desenvolveu-se mediante seus encontros, filiou-se à SBPC
(Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e também teve
participação ativa no Fórum de Ciências Humanas, Sociais e Sociais
Aplicadas. Nesse período, pode-se destacar, além da filiação à SBPC, o
contato com a revista Tecnologia e Sociedade, que passou também a ser
uma publicação vinculada à Esocite.BR.
Em 2017 ocorreu em Brasília o VII ESOCITE.BR/TECSOC, com o tema
“Ciência, Tecnologia e Justiça Social”, que apresentou a seguinte
chamada:
O catecismo de construção do conhecimento moderno diz que não se
misturam os conhecimentos sobre a Natureza com os conhecimentos
sobre a Sociedade. As opções e práticas que historicamente levaram o
Ocidente aos conhecimentos sobre átomos, moléculas, genes, etc. nada
teriam a ver com opções e práticas em torno de justiça social ou
desigualdade radical, direitos humanos ou limpeza étnica, democracia ou
meritocracia, etc. Aos brasileiros têm sido sempre ensinado que a ciência
não tem valores, isto é, que ela tem como único interesse a descoberta de
verdades que estão previamente dadas no mundo incorruptível da
Natureza, um mundo que existe separado da Sociedade corruptível. E
também estamos historicamente acostumados a receber como mágicas
importadas de nossas sucessivas metrópoles, as tecnologias, filhas sociais
impuras de sua puríssima mãe natural. Mas os Estudos CTS das cinco
últimas décadas nos dizem que esta separação do mundo da vida em dois
mundos independentes, Natureza e Sociedade, é um acordo operado com
sucesso segundo interesses dentro de limites convencionados. A
independência entre o mundo da Natureza e o mundo da Sociedade é
análoga à independência entre os poderes executivo, legislativo e
judiciário. Quem é ingênuo a ponto de acreditar nela? Mas quem pode
negar sua eficácia?

Como se vê, houve um processo de transformação gradual dos encontros


TECSOC em encontros ESOCITE.BR. Essa transformação, acordada entre os
organizadores, iniciou-se em 2011, passando o nome do simpósio do III
TECSOC de 2009 para IV TECSOC/ESCOCITE.BR; em 2011; V
TECSOC/ESOCITE.BR em 2013; VI ESOCITE.BR/TECSOC em 2015; VII
ESOCITE.BR/TECSOC em 2017 e, finalmente, em 2019, o VIII ESOCITE.BR.
O simpósio de 2019, organizado pela Associação Brasileira de Estudos
Sociais das Ciências e das Tecnologias (ESOCITE.BR), sediado no CEFET-MG,
em parceria com a UFMG, ocorrerá entre 15 e 17 de agosto de 2019. De
acordo com o site do evento:
Esse será o primeiro evento realizado por meio de uma chamada pública
endereçada à nossa comunidade, sendo uma resposta aos esforços desta
diretoria em estimular a participação de associados diretamente nos
rumos da nossa associação. (…) este seminário nacional representará os
esforços de aliarmos nossa sociedade aos Institutos Tecnológicos de
âmbito federal, colocando a formação próxima aos estudos de ciência e
tecnologia. (…). Essa diretoria entende que o Simpósio ESOCITE.BR se
tornou um evento consolidado e com isso buscamos privilegiar a troca de
experiências e o encontro com a comunidade. Por tudo isso, aguardamos
ansiosos o encontro próximo e incentivamos a participação de todos e
todas nos debates necessários sobre a ciência e a tecnologia no Brasil.

Este livro é um dos resultados do VII Simpósio Nacional de Ciência,


Tecnologia & Sociedade e foi construído com base em material recebido em
chamadas de trabalhos apresentados em Mesas-redondas e Fóruns do
Evento ou de elaborações coletivas a partir dessas chamadas. Organizada
por Daniela Alves e Maíra
Baumgarten, esta obra, intitulada Conhecimentos e Sociedade: Teorias,
políticas e controvérsias, divide-se em duas partes, subdivididas em
capítulos. Uma que trata de experiências e práticas acadêmicas em ciência,
tecnologia e inovação no Brasil e outra que aborda teorias, políticas e
controvérsias na grande área transdisciplinar que forma os estudos de
Ciência, Tecnologia & Sociedade (CTS). Há, ainda, um capítulo introdutório,
em que as organizadoras trazem algo do debate recente em CTS no Brasil,
articulado no momento histórico em que ressurge o espectro do anti-
intelectualismo, da negação das virtualidades positivas da ciência e da
tecnologia e da perspectiva colonialista. Tal fato coloca nossa sociedade e
nossa ciência como subalternas aos centros capitalistas globais de produção
e disseminação de conhecimentos.
Experiências e práticas acadêmicas em ciência, tecnologia e
inovação no Brasil

Na primeira parte do livro são apresentadas e debatidas algumas práticas e


experiências na área de Ciência, Tecnologia & Inovação, abrangendo
basicamente estudos acadêmicos de CTS.
Fernanda Sobral, no primeiro capítulo, apresenta a contribuição do
Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília
(UnB) para os Estudos Sociais em Ciência e Tecnologia.
Sobral faz uma retrospectiva histórica da produção do Programa na linha de
pesquisa que hoje se intitula “Educação, Ciência, Tecnologia”, desde a sua
criação, em 1970, até o ano de 2016. O estudo foi realizado, segundo a
autora, por meio da análise de dados quantitativos referentes à produção,
mas também por meio da análise dos temas estudados e das formas de
abordagem predominantes nas dissertações e teses e principais publicações
(artigos, capítulos e livros) dos professores desta área de pesquisa.
A intenção de Sobral é indicar como os temas e as abordagens estão
relacionados às principais tendências de avanços nas ciências sociais, mas
também a certas características dos contextos social, político, econômico e
institucional em que ela evidencia a associação entre o social e o cognitivo
no processo de produção de conhecimento. Aponta, ainda, que a produção
de conhecimento, aliada à formação de recursos humanos, contribuiu de
forma expressiva para a elaboração de políticas públicas nesta área.
O segundo capítulo aborda a formação de professores-pesquisadores de
Ciências com enfoque em CTS. Seus autores, Sebastião Rodrigues-Moura,
Rafael Cordeiro-Rodrigues, Alexandre Guimarães Rodrigues e Licurgo
Peixoto de Brito, apresentam elementos da abordagem Ciência, Tecnologia
& Sociedade (CTS) constantes no processo de formação de professores de
Ciências na Amazônia paraense, com vistas à qualificação profissional e ao
comprometimento social com a região. Os autores utilizam a perspectiva
metodológica da Análise Textual Discursiva para examinar 16 projetos
pedagógicos de licenciaturas de instituições públicas do Estado do Pará em
vigor no ano de 2017. O objetivo é analisar e discorrer sobre propostas
pedagógicas voltadas para a formação docente em Ciências, com vistas à
abordagem CTS, além de socializar experiências exitosas, particularmente
em licenciaturas integradas, no contexto amazônico paraense.
Débora Allebrandt, no terceiro capítulo, expõe a investigação sobre as
implicações do “fator masculino” realizada em um Centro de Reprodução
Assistida (RA) na cidade de Porto Alegre, à luz de uma pesquisa etnográfica.
Foram analisados artigos científicos produzidos desde 1992 na área da
Medicina Reprodutiva e Embriologia, em busca de situar os fluxos de
substâncias e plasticidades das técnicas quando observadas
especificamente a partir da questão de gênero.
Allebrandt toma o advento da técnica Injeção Intracitoplasmática de
Espermatozoide (ICSI), em 1992, como marco dos agenciamentos materiais
da relação da RA com os corpos masculinos. Essa técnica, que consiste na
utilização de apenas um espermatozoide para fertilização de um óvulo,
dialoga de forma eloquente com a lógica do desperdício e deterioração do
corpo feminino versus a produtividade e eficiência dos corpos masculinos
retratados no celebrado artigo de Emily Martin: “O óvulo e o esperma: como
a ciência construiu um romance baseado em papéis estereotipados de
macho/fêmea”.
A partir da investigação efetuada, Allebrandt conclui que promessas da ICSI
associada ao estereótipo de eficiência de “apenas um” espermatozoide
tenham criado barreira para o desenvolvimento de técnicas e protocolos de
RA voltados para compreender e “tratar” a infertilidade masculina.
O quarto capítulo trata da relação entre intervenção tecnológica – via
práticas biomédicas – e novas materializações de gênero e sexualidade
feminina em diferentes contextos. Fabíola Rohden apresenta resultados de
uma investigação realizada com médicos(as) no Brasil acerca das
abordagens e tratamentos praticados no contexto do atendimento à saúde.
De acordo com esses profissionais, o problema mais comum entre as
mulheres é a falta de desejo sexual no período próximo à menopausa.
Seguindo os parâmetros atuais da medicina sexual, compreendem esse
processo como decorrente da queda na produção de hormônios. E, mesmo
considerando as controvérsias científicas e legais, empregam como
tratamento a reposição de testosterona.
Por meio do recurso à noção de “ontonormas”, formulada por Annemarie
Mol, e da perspectiva do materialismo relacional, a autora discute como o
emprego deste tipo de tratamento farmacológico contribui para
materializar o desejo sexual feminino relativo à ausência ou presença da
testosterona, hormônio comumente concebido como masculino.

Teorias, políticas e controvérsias

Na segunda parte do livro, abordam-se controvérsias, políticas e teorias


sobre o campo ciência, tecnologia e inovação, atualizando debates
significativos no setor.
Ricardo Neder, no quinto capítulo, explora um episódio da história recente
de intercâmbios entre duas correntes de pensamento, interpretação e ação
sobre os Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia entre pesquisadoras e
pesquisadores na América Latina (aqui emblematicamente representada
pela obra de Renato Dagnino) e outra corrente no Hemisfério Norte, com a
Teoria Crítica da Tecnologia (representada pela obra de Andrew Feenberg).
Esse capítulo traça os antecedentes dos Estudos Sociais das Ciências &
Tecnologias (ESCT), cujo objetivo pretende superar tanto uma visão
negativa de natureza tecnofóbica quanto outra entusiasta, a partir de um
regime de interdisciplina dos conhecimentos. Segundo Neder, ao incluir
pesquisadores de variados campos (Filosofia, Sociologia, História,
Antropologia, Psicologia, Artes Visuais, Dramaturgia, Medicina e Análise
Política), os ESCT buscam dialogar com os operadores tecnológicos na
contemporaneidade (em sua maioria, mas não apenas formados nos campos
das disciplinas tecnológicas, exatas, de ciências e engenharias).
Ele analisa configurações de trocas tecnocientíficas – por meio do controle
das agendas de pesquisa em torno das novas ciências entre as universidades
– e coletivos de pesquisa e busca captar como se situam comparativamente
duas contribuições-chave na contemporaneidade para o entendimento
desse conflito. Melhor explicando, trata-se de uma perspectiva herdada do
Pensamento Latino-Americano de Ciência, Tecnologia e Sociedade (PLACTS)
pelas contribuições recentes de Renato Dagnino e de outra perspectiva
adotada nos Estados Unidos e no Canadá, elaborada por Andrew Feenberg
com base na Teoria Crítica da Tecnologia, com implicações no pensamento
CTS europeu.
No sexto capítulo, Renato Dagnino trabalha com a ideia de que as políticas
de educação e de ciência, tecnologia e inovação, que são sintetizadas com o
conceito de políticas cognitivas, deveriam ser pensadas nos países
periféricos como um todo sistêmico. Segundo ele, “(…) essas políticas que
deveriam impulsionar e desenvolver os movimentos sociais, populares e de
esquerda, requerem uma mudança significativa de marco analítico
conceitual, que seja coerente com a amplitude das transformações que se
pretende e que nossas sociedades requerem”.
Dagnino descreve alguns elementos de diagnóstico de situação em escala
global que devem ser considerados para a elaboração de uma política
cognitiva da retomada. Explicita, ainda, os desafios que um marco analítico-
conceitual contra-hegemônico deveria ter em conta, além de discutir cursos
de ação para alcançar as metas estratégicas associadas a esses desafios.
O sétimo capítulo traz o debate realizado em um fórum da reunião de 2017
da ESOCITE.BR. Fernando Severo, Henrique Cukierman, Isabel Cafezeiro,
Ivan da Costa Marques e Rodrigo Primo partem da ideia de que a década de
1980 marcou a entrada da antropologia nos laboratórios, quando as “tribos”
dos profissionais modernos, especialmente aquelas dos cientistas,
engenheiros, médicos e economistas, passaram a ser estudadas a partir de
suas práticas cotidianas. O ensejo desses estudos era alcançar um
entendimento de todas as entidades (objetos, sujeitos, coisas, pessoas) que
habitam nossos universos cognitivos como “justaposições de elementos
provisionais heterogêneos”.
Esses autores colocam em questão algumas situações da vida cotidiana e
partem da percepção de que o mundo da vida, o mundo em que
trabalhamos e gozamos, suamos, amamos e odiamos não é separável de
nossos universos cognitivos e não há ação em um mundo puramente
conceitual ou feito de “abstrações”, sem corpos. Buscam demonstrar essa
hipótese com base em alguns exemplos específicos que remetem à urna
eletrônica, ao “jogo e trabalho”, à “big data”, a “indicadores”, entre outros.
Esperamos que este livro possa contribuir para o debate sobre as relações
entre ciência, tecnologia e sociedade, a nossa posição na sociedade global e
sobre a importância da nossa associação ESOCITE.BR e seus eventos como
locus de debates necessários e estratégicos a respeito da relação entre
sociedade, conhecimentos e desenvolvimento e da sua importância para a
democracia, a inclusão social e a busca de formas eficazes e solidárias de
construir a vida.

Junho de 2019.

1 Essa breve história da ESOCITE.BR foi elaborada a partir de relato do Profº Ivan da Costa Marques,
primeiro presidente da associação, documentos e nossas memórias.
Ciência e tecnologia na sociedade brasileira do
limiar dos anos 2020 – notas para reflexão

Daniela Alves e Maíra Baumgarten

Introdução

N
este capítulo introdutório trazemos algo do debate recente dos
estudos sociais de ciência e tecnologia no Brasil, articulado no
momento histórico em que ressurgem o espectro do anti-
intelectualismo, as atitudes de negação das virtualidades
positivas da ciência e da tecnologia e a hegemonia da
perspectiva colonialista que coloca nossa sociedade e nossa ciência como
subalternas aos centros capitalistas globais de produção e disseminação de
conhecimentos.
O objetivo deste texto é pensar como as ciências sociais e a perspectiva que
trabalha a relação entre ciência, tecnologia e sociedade (CTS) podem
contribuir para o debate a respeito do imaginário social sobre o papel e
lugar das ciências na conjuntura contemporânea brasileira. Conjuntura essa
que apresenta um cenário de ceticismo com relação à ciência e à tecnologia,
ataques à autonomia universitária e cortes de verbas destinadas à educação
e à ciência, entre outros problemas. Aspectos igualmente importantes na
disputa de narrativas sobre as instituições científicas constituem o
patrocínio ideológico da prática de reprodução ampliada de notícias falsas
nas mídias digitais, bem como a modificação do perfil dos estudantes
universitários com as políticas inclusivas.

Sociologia da ciência e os estudos de ciência, tecnologia e


sociedade

A sociologia do conhecimento foi pioneira em propor a contextualização


social do conhecimento científico, mostrando a importância da perspectiva
de quem observa para o resultado da pesquisa. A sociologia da ciência, que
teve como marco fundante o Programa Mertoniano e a sociologia da
pesquisa científica, marcada pelos estudos de laboratório iniciados na
década de 1990, afunilou o objeto de análise em direção ao próprio fazer
dos cientistas, levando à dessacralização da atividade e ao questionamento
da sua suposta neutralidade de cunho exclusivamente cognitivo. Enquanto
na abordagem de Robert Merton, o social, como dimensão externa à
instituição científica, aparece como obstáculo ao ethos objetivo e
desinteressado dos cientistas, estudos mais contemporâneos denominados
Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), aprofundam uma visão entrelaçada
entre o social (agora não mais visto apenas como pano de fundo), os fatos
científicos e os artefatos tecnológicos. Na sociologia da ciência de tradições
variadas, para além da perspectiva crítica, tem-se produzido um arcabouço
de leitura da ciência baseada em princípios epistemológicos e ontológicos
da simetria generalizada, do construtivismo, da produção da diferença, da
objetividade situada.
Não é nenhuma novidade pensar a ciência, especialmente após a década de
1970, como atividade atravessada pelo seu contexto sócio-histórico ou,
ainda, situada nesse mesmo contexto. Pensar a atividade científica como
construída e localizada redunda na percepção de que ela é forjada em
compromissos, narrativas, interesses e engajamentos por vezes
transparentes, por vezes não. O modelo de pensamento dos cientistas tende
a valorar a atividade científica por si só, ou seja, sua legitimidade provém de
uma visão de progresso científico universal, independentemente dos
compromissos quanto a ganhos sociais de participação; ou, em outros
termos, o que marca o campo científico é o interesse em mostrar uma
postura desinteressada (BOURDIEU, 2004).
A década de 1970 foi profícua em interpretações críticas ou
desconstrucionistas com relação às verdades dominantes na ciência e na
cultura. Em que pese às diferenças conceituais dessas interpretações,
impera a posição de que as verdades são narrativas em disputa entre si e
com outras narrativas não científicas, portanto as verdades são vistas como
abertas e questionáveis. Os pensamentos batizados de pós-modernismo
adotaram, em comum, a relativização da objetividade, a neutralidade
política das verdades científicas e a negação das narrativas históricas
universais.
A discussão do pós-modernismo, principalmente atribuída aos autores
Michel Foucault, Jacques Derrida e Jean-François Lyotard, mobilizou
segmentos dos movimentos sociais e das esquerdas em torno do ataque ao
pensamento ocidental, representante de valores, de práticas e de narrativas
colonialistas, patriarcais e burgueses. A apropriação dessas ideias pelos
movimentos sociais foi significativa, o que não obscurece a polêmica sobre a
pertinência desta apropriação, por exemplo, pelo movimento feminista
(BEHABIB, 2018).
Somam-se a essas perspectivas a sociologia crítica, preocupada em mostrar
os mecanismos de poder material e simbólico que levam países, grupos e
indivíduos a condições desiguais de exploração e oprimidas perante a
distribuição de conhecimento, poder e riquezas.
Bruno Latour (2013) identifica três repertórios críticos incompatíveis entre
si, mas igualmente adotados na tarefa de criticar as crenças nas ciências e na
realidade, sendo eles a naturalização, a socialização e a desconstrução.
Considerando limitados esses repertórios, esse autor propõe unir fatos,
poder e discurso em um único tecido natureza-cultura, usando o recurso da
rede.
A acusação feita pela crítica radical da ciência de que esta é conduzida por
uma racionalidade operatória e dominadora e está vinculada
essencialmente a situações de relações de força social, em contraposição aos
fenômenos que lhe dizem respeito, segundo Stengers (2012), sempre
causou protesto dos cientistas. Estes, mesmo concordando ser a atividade
científica tão social quanto as outras, discordam de que ela possa ser
reduzida apenas a isso, especialmente porque a ciência, para eles, implica
também em adesão aos valores da autonomia, bem como “riscos, exigências
e paixões” (p. 23).
A postura crítica, no entanto, não ficou restrita às Ciências Humanas e
Sociais, pois até mesmo as Ciências Naturais abriram campo para a
discussão da função social da ciência e do seu papel crítico. O movimento
Science for the People, oriundo de 1969, ligado à revista Cientists and
Engineers for Social and Policital Action (SESPA), criada pelo físico Charlei
Schwartz, propunha o compromisso com um fazer científico crítico e
consciente. Entre as principais mobilizações dos cientistas, professores e
ativistas que o grupo reuniu estavam o posicionamento contra a guerra, a
crítica à importância do Departamento de Defesa americano no
financiamento de pesquisa nos Estados Unidos e também às teses da
Sociobiologia que flertavam com as teorias eugênicas. Atualmente alguns
pesquisadores estão revitalizando esse movimento, capitaneados pelo
biólogo Ben Allen.
Aprofundar um pouco o debate sobre a pós-modernidade (como
perspectiva) pode ajudar a compreender sua relação com o anti-
intelectualismo atual. Isso é o que faremos a seguir.

Ciência, pós-modernidade e anti-intelectualismo2

No decorrer do século XX, muitos pensadores3, de diferentes matizes


ideológicos, proclamaram o fim da Modernidade e dos ideais do Iluminismo,
como universalismo, concepções ocidentais de racionalidade e ideias de
igualdade e de emancipação humana. A ambivalência em relação ao
Iluminismo e o Pessimismo relativo ao progresso foi tema comum na
cultura do século XX. Esses pensadores falam em “pós-modernidade” como
uma fase do capitalismo contemporâneo.
Enquanto o período moderno se caracterizou pelo rompimento com a ideia
de providência e pelo otimismo dos homens vistos como sujeitos históricos:
“o homem faz a história” ou “os grupos organizados fazem a história”, o fim
das utopias deu origem a um pensamento praticamente único: o poder da
ideologia neoliberal e a irreversibilidade da globalização econômica.
Alguns processos podem ser apontados como elementos que favoreceram a
emergência da ideia de pós-modernidade e das perspectivas chamadas de
pós-modernas, em diferentes campos.
O fim da bipolaridade do mundo, que acompanhou a crise do socialismo real
e a queda do Muro de Berlim, levou a uma quebra das imagens de outro
mundo possível e à aparente hegemonia do capitalismo como forma de
produção social. Esse estilhaçamento das imagens de uma sociedade mais
solidária e não governada pela mercadorização de todas as dimensões da
vida resultou em certa pobreza intelectual no debate internacional e na falta
de novas propostas em contraponto à estratégia do neoliberalismo e da
globalização.
O esvaziamento do debate ideológico e a descrença com relação a utopias
alternativas aos processos de mundialização/globalização levaram à apatia
política e se traduziram em sensação de impotência em face do processo
histórico.
Alguns sintomas que se apresentaram ainda no final do século XX foram a
automática classificação dos opositores aos processos de globalização e ao
neoliberalismo como atores incompetentes, de má-fé, tanto nos países
centrais (EUA e países da Europa) quanto em países periféricos ou
semiperiféricos. O fim das utopias e o pensamento único são produtos das
estratégias para contornar a crise global do capitalismo, estratégias essas
que reordenaram o mundo de acordo com os interesses e necessidades da
acumulação capitalista.
No âmbito da produção científica a respeito da sociedade, o pensamento
único expressou-se em um crescente vazio do debate nas ciências sociais e
do debate político, em um enfraquecimento progressivo das ciências sociais
e das humanidades diante das ciências que produzem resultados a serem
prioritariamente apropriados pelo mercado. Esses resultados podem ser
transformados em patentes e em lucro e fortalecer a ideia de inovação como
inovação tecnológica exclusivamente voltada para melhorar a
competitividade das empresas.
Uma nova síntese entre ciência e tecnologia que privilegia a
empresarialização da atividade científica tornou-se fator relevante de
inovação e de desenvolvimento econômico, e sua prática tende ao segredo e
à privatização (ECHEVERRÍA, 2003). Objeto de apropriação privada4, a
técnica incorpora a ciência e se converte em tecnociência5, que se transmuta
em mercadoria de alto valor progressivamente inserida no cotidiano das
sociedades, em sua estrutura de poder e em suas matrizes simbólicas e
culturais (ALBAGLI, 1999). Ademais, insere-se em novas formas de
produção e acumulação, configurando a chamada sociedade do
conhecimento6 (BAUMGARTEN, 2005).

Cultura global, consumo, a busca do bem-estar individual e o


pensamento pós-moderno

A veloz extensão da televisão e também da internet facilita a globalização da


cultura. Ao mesmo tempo que se tem acesso às informações mais insólitas e
distantes, observa-se um processo progressivo de uniformização da cultura,
o que se pode perceber na música e na literatura, por exemplo. Essa mesma
tendência pode ser identificada na produção teórica com o processo da
internacionalização da ciência, em que tende a prevalecer a ciência dos
centros capitalistas avançados, a qual serve de modelo e guia para a
produção científica na periferia do sistema. Suas agendas de pesquisa e
produção tecnológica são incorporadas e seguidas. Uma perspectiva
crescentemente egocêntrica, decorrente das ideias de competição,
meritocracia e individuação, em que cada um é incentivado a buscar
vantagem pessoal, leva à perda de espaço da solidariedade e do
compromisso com o outro, ao mesmo tempo que cresce o impulso
individual para a busca de prazer e satisfação de desejos egoísticos. Esse
indivíduo, cujos laços sociais, mesmo os familiares, se atenuam fortemente,
é atraído pelo uso abusivo de medicamentos ou outras drogas ou pela
religião em busca de reconstruir os laços em outra instância. Estado, família
e a ideia de trabalho (produção) debilitam-se perante a centralidade do
consumo (mercadorias, viagens, aventuras, drogas, pessoas).
A partir do terço final do século XX há um aumento da tendência de
individualização da modernidade que conduz a um “processo de
personalização” em que o indivíduo passa a ser depositário cada vez mais
absoluto do poder/responsabilidade por sua vida, seu êxito. As redes
comunitárias se enfraquecem e se estruturam com base na internet e, as
redes sociais, apesar do potencial para se configurarem como um locus de
resistência, expressam, em grande medida, a tendência ao individualismo,
narcisismo e senso comum destituído de sentido crítico – a opinião sem
argumento ou racionalidade.
Essas mudanças na cultura e nas formas de ver o mundo têm importante
impacto na produção do conhecimento. O termo “pós-modernidade”
começou a ser aplicado à literatura e à cultura em estreita ligação com a
ideia de uma sociedade pós-industrial7, alargando-se esse debate para a
ciência a partir do livro de Lyotard (1984), intitulado La Condition
Postmoderne. Segundo Echeverria (2003), é possível falar não de uma
ciência pós-moderna, mas de estudos pós-modernos da ciência que
configurariam, especificamente, a tendência das pesquisas sociais da ciência
e da tecnologia (BAUMGARTEN, 2008).
A pós-modernidade, nesse contexto, caracteriza-se pelo desaparecimento
das grandes narrativas de justificação que foram típicas da modernidade. As
grandes narrativas científicas girariam, segundo Lyotard (1984), em torno
da verdade – o valor que justificaria toda a ciência. Echeverria (2003)
demonstra que vários filósofos da ciência anteriores a esse movimento pós-
modernista relativizaram a importância da verdade, razão pela qual
classifica a tese de Lyotard como regressiva. Entretanto, Echeverria aponta
a dificuldade de ajuizar a validade das teses dos autores pós-modernistas
aplicadas à ciência, tomando como ponto de referência o tema das
narrativas globais de legitimação, pois a ciência de finais do século XX
mantém em vigor não apenas grandes narrativas – como a teoria darwinista
da evolução, o informacionismo, a teoria relativista do espaço e do tempo –,
como também há enormes projetos por realizar, como a construção da
sociedade da informação, a busca da inteligência artificial, entre outros.

Teorias da pós-modernidade e a leitura conservadora do


Teorias da pós-modernidade e a leitura conservadora do
pós-modernismo

As teorias da pós-modernidade trazem ao debate quatro questões centrais:


a. Fim das certezas – Ruptura com o paradigma da modernidade (sua
possibilidade de prever como se estrutura o futuro). O futuro é visto
como incerto e não previsível;
b. Fim das ilusões – A história e o progresso não têm andado juntos com
a moral. O progresso não acompanha os valores éticos ou as novas
formas de solidariedade;
c. Fim dos determinismos tecnológico, econômico, político – O que
prevalece são as escolhas individuais: libido, desejo, busca da
felicidade. Indeterminação social;
d. Era do pós-dever – Predomínio do hedonismo, da cultura
individualista. As escolhas são determinadas por decisões individuais.
Privilegiam-se não mais as escolhas racionais e, sim, ativa-se o desejo
(felicidade, aventura, consumo), busca-se melhorar a vida por meio do
consumo. A ideologia fordista do dever do trabalho e a ética calvinista
do empresariado moderno se rompem. Com a criação do cartão de
crédito não é mais necessário postergar a satisfação dos desejos e a
inadimplência (antes impedida pelo dever da honestidade), generaliza-
se, dados os crescentes apelos do consumo e as facilidades de crédito
(BAUMGARTEN, 2005).

Em face de todas essas mudanças, o debate sobre a crise da modernidade


que surge no campo da estética passa, nos anos 1970, para o campo das
ciências sociais. Essa crítica afirmava que o modernismo, enquanto
funcional e como expressão da modernidade, teria perdido sua capacidade
de inovação (quando surgem as galerias e a arte passa ao domínio do
mercado). O pós-modernismo é, assim, caracterizado pelo pastiche, a
releitura de um passado para produzir uma nova forma de expressão
artística que combinasse diversas formas de memória. A construção da
realidade se faz com retalhos – superposição de culturas erudita e popular.
No campo das ciências sociais surge a preocupação com o processo de
desordenamento da sociedade capitalista (BELL, 1976). Nos EUA dos anos
1970, pós-Guerra do Vietnã, a sociedade é vista como paulatinamente
perdendo o sentimento de pertencimento típico do modernismo, com
tendência à fragmentação social.
A partir dessa perspectiva, a cultura se faz anticapitalista e antiburguesa.
Cultura do desenvolvimento do eu – em que o indivíduo é estimulado a
desrespeitar as regras estabelecidas na busca da expansão de sua
individualidade. Isso cria uma contradição com o desenvolvimento
econômico norte-americano, e começam a aparecer fissuras com os
movimentos identitários e questionadores: rock and roll, feminismo e
movimentos raciais, ao lado da estratégia econômica de eficiência,
racionalidade e funcionalidade, o que leva à autodisciplina e à postergação
do prazer.
A perspectiva parsoniana – teoria da modernidade que deu certo – mostra-
se insuficiente diante do paradoxo entre estrutura social e cultura
antirracional, anti-intelectual, paradoxo esse estimulado pela própria
economia baseada no consumo. Há dois movimentos que se autonomizam: o
produtivismo e a cultura, o que cria a sensação de que a sociedade
americana está perdendo os pais fundadores. As saídas geralmente
encontradas são a volta ao sentimento de religiosidade e a retomada do
sentimento de solidariedade nacional.
A vertente neoconservadora do pós-modernismo propõe essa volta, ou seja,
buscar na origem dessa sociedade a inspiração para a desfragmentação
social. O problema da sociedade seria a falta de espiritualidade. Tal como
em Durkheim, um desequilíbrio violento (problemas econômico, social e
político) é identificado com crise moral. A solução proposta por Bell (1976)
é (a partir de Durkheim, retrabalhado por Parsons) retomar os valores
originais.

A segunda leitura do pós-moderno

A condição pós-moderna é a forma de conhecer (estado do saber) própria


de uma sociedade pós-industrial (LYOTARD, 1984). Nessa perspectiva,
teorias totalizantes (metarrelatos) não dão conta dessa sociedade, as quais
constituem uma rede de jogos de linguagem: econômica, política, cultural,
estética. Cada um dos campos conta com autonomia em relação aos demais,
razão por que nenhum paradigma possibilitaria encontrar pontos de
contato entre esses campos específicos e reconstruir a totalidade. Contra o
autoritarismo do moderno e contra o determinismo do conhecimento
racional (universal), os campos significariam uma riqueza por romperem
com a ideia de uma única racionalidade (da ciência).
O projeto moderno está fundamentado na razão, a emancipação dentro
dessa perspectiva dar-se-á pela ilustração e a universalidade da razão é
proposta como instrumento de luta. Para os pós-modernos a razão (única)
levou à guerra, bomba atômica, tortura, entre outros crimes. Diante disso,
quanto mais padrões de razão e mais liberdade de escolhas, melhor. A pós-
modernidade é uma crítica à modernidade naquilo em que ela falhou, nos
crimes que cometeu. É um novo diálogo com a modernidade.A pós-
modernidade não é mais vista como um novo momento (pós-industrial) e,
sim, a pós-modernidade, que, segundo o próprio movimento, deve criticar a
modernidade sem, entretanto, dizer que ela terminou. Deve acusar os
impasses da modernidade, identificar o que não se deve retomar da
modernidade. O argumento crítico é de que os avanços da modernidade, as
descobertas, não foram utilizados para enriquecer a vida cotidiana.

Pós-modernismo, ciência e sociedade

A pós-modernidade não parece ser, para grande parte dos intelectuais pós-
modernistas, um momento histórico e, sim, a condição humana em si.
Forças aparentemente incontroláveis parecem estar por detrás do ceticismo
politicamente paralisante, do relativismo moral e epistêmico da cultura pós-
modernista.
Nesta vertente, as principais características do pós-modernismo seriam:
1. Pessimismo político, em que só há possibilidade de resistências
particulares e separadas, pois não existem sistemas ou histórias
suscetíveis à análise causal;
2. Concepção como aspectos dominantes do capitalismo o consumismo,
a multiplicidade de padrões de consumo e a proliferação de “estilos
de vida”;
3. Ceticismo epistemológico e relativismo epistêmico;
4. Sentido de novidade.

Os pós-modernistas estão preocupados com a “desconstrução”, e seus temas


principais são a linguagem, a cultura e o discurso. A ideia principal que
perpassa a perspectiva pós-modernista é a ênfase na natureza fragmentada
do mundo e do conhecimento humano – Self humano fluido, fragmentado
(“sujeito descentrado”), identidades variáveis, incertas e frágeis. Na busca
por lutar contra o fechamento ideológico da esquerda ocidental, masculina e
branca, o pós-modernismo priorizou questões como sexo e etnia,
produzindo um ousado e rico conjunto de trabalhos em vários campos –
arquitetura, artes, música, ficção e ciências sociais (EAGLETON, 1999).
Não obstante, ao mesmo tempo que apontam para a necessidade de romper
com os diferentes poderes, exercitar o pluralismo, a mutabilidade e a
abertura, os pós-modernistas têm sido surpreendidos condenando o
humanismo e o universalismo iluminista, sob a alegação de que este nega a
diversidade de experiências, culturas, valores e identidades humanas. Esse
pluralismo radical – baseado na negação de quaisquer interesses comuns
ou, mesmo, na possibilidade de acesso recíproco e compreensão mútua de
diferentes identidades – tem como consequência a impossibilidade de
qualquer base para a solidariedade e para a ação coletiva fundamentadas
em uma identidade social comum, em uma experiência comum, em
interesses comuns.
De acordo com Wood (1999: 14), “(…) o sentido pós-moderno de liberdade
que marca uma época depende de ignorarmos, ou negarmos, uma realidade
histórica esmagadora: a unidade ‘totalizante’ do capitalismo, que costurou
todas as rupturas memoráveis ocorridas neste século”.
A insistência pós-modernista, em que a realidade é fragmentária e, portanto,
acessível apenas a “conhecimentos” fragmentários, mostra-se desarrazoada
diante da realidade social do mundo de hoje. O capitalismo é, cada vez mais,
um sistema totalizante que tende à autoexpansão, ao produtivismo, à
mercadorização de tudo e à imposição do pensamento único, de uma única
cultura (com a progressiva destruição das culturas locais pela penetração da
mídia e da internet)8.

Como afirma Shiv Visvanathan, “A epistemologia determina as hipóteses de


vida. A ciência enquanto desenvolvimento, plano, experiência e pedagogia,
determina as hipóteses de vida de uma diversidade de pessoas”
(VISVANATHAN, 2003: 719). A busca de outra globalização que não a
hegemônica e a retomada das utopias requerem convocar interesses,
formas de conhecer e recursos que unifiquem e que permitam partir de
nossa humanidade comum. Formas de conhecer que busquem resolver as
carências humanas, preservando as condições fundamentais do bem-estar
humano. O ponto de partida para isso é acreditar na capacidade humana de
chegar a explicações crescentemente verídicas sobre a realidade, por meio
de uma prática social que, ininterruptamente, corrige a si mesma (NANDA,
1999).

A perspectiva Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) no


Brasil contemporâneo

A revisão crítica das teorias da pós-modernidade e o seu contexto histórico


possibilitam refletir sobre a adequação (ou não) dos estudos sociais da
ciência (na perspectiva pós-moderna) para pensar a sua crise e o
surgimento de um anti-intelectualismo, tanto no cenário mundial quanto no
Brasil.
Parece-nos, entretanto, necessário (re)apresentar a ideia do mútuo
condicionamento entre ciência, tecnologia e sociedade no modo de
produção social capitalista. Pensar a sociedade capitalista sem a ciência e a
tecnologia que possibilitam seu desenvolvimento é uma impossibilidade. No
entanto, imaginar a ciência como autônoma e “descolada” da realidade
social é uma idealização, posto que ciência e tecnologia são produtos sociais
e, como tais, influenciadas pelos interesses dominantes na sociedade. Dessa
forma, a perspectiva CTS, que trabalha considerando essa estreita relação,
nos permite visualizar melhor a problemática de crise que se apresenta em
todo o mundo capitalista hoje e que está relacionada à crise sistêmica desse
modo de produção e às respostas a essa crise em seus diferentes âmbitos.
Um campo de pesquisa ainda a ser explorado é quanto as narrativas da pós-
modernidade foram também apropriadas pelas tendências da direita
conservadora no mundo todo. No caso da sociedade americana, segundo
Kakutani (2018), alguns argumentos de origem pós-modernista são
utilizados de forma rasa e simplificada por parte da direita em prol de fatos
alternativos aos eventos apresentados pela ciência, como é o caso da
negação das mudanças climáticas. Essa autora mostra como a verdade se
tornou uma questão de agenda política no governo Donald Trump,
ancorada, em parte, pela visão da direita de que os ideais iluministas são
elementos de uma conspiração liberal contra os valores tradicionais e, em
parte, pela força do fundamentalismo religioso.
Os aspectos apresentados por Kakutani (2018) com relação à sociedade
americana apresentam uma tendência presente em outros contextos, como
na sociedade brasileira, que não se restringe à crítica da razão, mas a uma
postura de desprezo pela razão, pelos fatos, pela verdade e pelos
intelectuais em detrimento da emoção, da opinião particular e da
manipulação dos fatos. Independente da ideia de realmente vivermos uma
era da pós-verdade, como defendem alguns autores, o fato é que temos
experimentado movimentos nas sociedades ocidentais que exemplificam
essa preocupação. Por exemplo: os movimentos negacionistas da história e
da ciência e o uso sistemático de boatos para influenciar a opinião pública
em determinados contextos políticos.
O combate à intelectualidade (o anti-intelectualismo) respalda alguns mitos
insuflados pelos movimentos de direita política e segmentos de igrejas com
tendências fundamentalistas, que se colocaram como reação a teses
atualmente consideradas hegemônicas na ciência.
No caso brasileiro aos desafios já mencionados pela descrença nos
intelectuais e na ciência, somam-se os desafios da ciência relacionados à
crise conjuntural de ordens política e econômica, expressas nos cortes
constantes de verbas de investimento e repasses em C&T desde o
impeachment da presidente Dilma Rousseff e agravados no novo governo
que assumiu em 2019.
O anti-intelectualismo também anda de mãos dadas com a perspectiva de
negação da ampliação da inclusão dos protagonismos e dos temas
considerados subalternos dentro do campo acadêmico.
A sociedade brasileira viveu a expansão e diversificação dos movimentos
sociais nas últimas décadas, dando cada vez mais visibilidade para pautas
como: direitos sociais, ao emprego, terra e renda; garantias de direitos civis
para as minorias sociais (negros e negras, minorias lgbtq+); direitos ligados
às cidades – moradia, educação e saúde; e também movimentos mais
globais, como o ambientalismo e os movimentos antiglobalização.
Os acadêmicos e intelectuais, embora apenas em alguns casos se comportem
como o modelo do intelectual orgânico gramsciano com relação a esses
movimentos, são interpretados como tal. São desqualificados por
assumirem posições antidogmáticas religiosas em temas como a teoria
evolutiva ou por se filiarem a teorias vistas como perigosas e doutrinadoras,
como é o caso da pedagogia de Paulo Freire, da teoria de gênero de Judith
Butler ou da economia política de Karl Marx.
O movimento Escola sem Partido tem capitaneado as demandas por uma
escola “neutra”. O cenário de ascensão do conservadorismo permite a
criminalização de temáticas das ciências sociais como a discussão de gênero
e a diversidade dentro e fora da escola. O projeto escola sem partido
sintetiza as ameaças que as ciências sociais e humanas vêm sofrendo no seu
fazer científico e na sua popularização e, mais do que isso, fere princípios
constitucionais e afeta, sobretudo, a divulgação de resultados que envolvem
direitos humanos e a construção da diversidade.
Nessa conjuntura, as universidades tornaram-se lugares ainda mais
atacados em função do ingresso de estudantes provenientes das minorias
sociais – pequenos agricultores, indígenas, quilombolas – e incluídos pelas
políticas de cotas sociais e raciais e pela ampliação das vagas nas
universidades públicas. Tanto como estudantes quanto como
pesquisadores, esses grupos mobilizam, nas próprias instituições, um
movimento de forças e saberes de forma a incluir narrativas e linhas de
pesquisa não hegemônicas e anticolonialistas.
Os efeitos sobre as disputas de narrativas no campo científico,
especialmente nas ciências sociais e humanas, já são observados nas linhas
de pesquisa criadas, nos grupos de trabalhos em eventos e nas publicações
científicas. A hipótese mais provável é de que a universidade e seus
pesquisadores tenham que dialogar, disputar e alinhar-se de forma mais
transparente e ampla com as agendas sociais significativas para a vida
coletiva, a fim de sobreviverem.
Nesse cenário, há uma importância crucial das mídias tradicionais e das
novas mídias no papel de comunicação pública da ciência. A dimensão da
informação pública é fundamental para o reconhecimento do papel da
ciência numa sociedade democrática. A avalanche em escala de informações
disponíveis na rede e a impossibilidade de separar verdade e mentira nas
redes sociais não são um fenômeno que se restringe às fake news em
períodos eleitorais.
As redes sociais permitiram o aparecimento e rápida difusão de uma
máquina de produção de notícias e recomendações para a vida,
especialmente no tocante à saúde, nem sempre amparadas no pensamento
de uma coletividade, seja ela a comunidade científica, seja uma comunidade
de experts em determinada prática social. Uma avalanche de recomendações
sobre diagnósticos médicos, como manter-se saudável, o que comer, quais
medicamentos utilizar etc. Pesquisadores e acadêmicos disputam, dentro e
fora da universidade, a legitimidade de seu saber e de seu lugar.
Todas essas dimensões, sistêmicas ou conjunturais da realidade, colocam os
estudos em ciência, tecnologia e sociedade em um dilema bastante
particular. Tais estudos, especialmente nas correntes mais relativistas,
provocaram uma dessacralização da prática científica moderna, detentora
de um lugar privilegiado e assimétrico na vida social.
O que se busca com esses estudos não é criticar a ciência, mas tornar
visíveis os enredamentos de elementos e interesses situados que compõem
os fatos científicos. Uma postura dessacralizadora foi, inúmeras vezes,
confundida com crítica à ciência ou à verdade, algo bastante arriscado no
nosso contexto, como vimos. Esse olhar crítico deve ser visto como ponto de
apoio para alinhar interesses da ciência com os interesses sociais em
contextos democráticos.
Parece importante pensar e projetar, diante dos problemas que vive a
ciência no Brasil contemporâneo, como defendê-la publicamente sem
retroceder a uma posição de endeusamento da ciência nos moldes
modernos? Como mobilizar as lutas por emancipação via conhecimento,
sem estabelecer uma hierarquia entre os diversos conhecimentos sociais?
Como defender as instituições científicas e qual modelo de instituição
defender? Para responder a essas indagações é preciso partir do
pressuposto da manutenção e ampliação dos mecanismos democráticos de
participação da sociedade na ciência.
Algumas pautas emergem como centrais para serem tratadas pela
sociologia da ciência. Os esforços dos estudos CTS, nesse contexto, voltam-
se para produzir ou recriar recursos do fazer científico que possam contar
com o alargamento do espaço social da ciência e da participação da
sociedade. O maior desafio dessa tarefa é como exercer a crítica sem falar
em nome de uma sociedade hipostasiada, de uma narrativa histórica
homogênea, de uma ciência universal e descontextualizada socialmente e de
um cientista virtuoso e desinteressado. Nesse sentido, os obstáculos que
Behanbib (2018) identifica para a luta feminista em determinadas teses
pós-modernas, como a dispensa das grandes narrativas históricas ou a tese
da morte do sujeito autônomo e autorreflexivo (morte do homem), também
nos chamam a atenção para os desafios das propostas de emancipação
descolados em um imperativo moral-político historicamente construído e
legitimado social e racionalmente.
A militância acadêmica a ser assumida hoje parece ser a dos percursos do
compromisso dos cientistas com a função social da ciência. O exemplo mais
importante, nesse sentido, vem mais uma vez da ciência feminista, que
coloca a produção científica a serviço da contestação de hipóteses
reforçadoras do caráter patriarcal e da defesa da ciência neutra, propondo
uma ciência situada e, por isso, ainda mais objetiva. Movimentos recentes,
como o de reconhecimento do impacto da maternidade na carreira científica
das mulheres, são exemplos de como o fazer científico pode ser politizado
em torno de agendas transdisciplinares. Ainda dentro do campo científico, a
Marcha da Ciência, iniciada em 2017 nos Estados Unidos, tem disputado
publicamente o lugar que a ciência deve ocupar em determinada sociedade.
Em pleno século XXI, ainda carecemos de pontes públicas transparentes
entre a sociedade e a academia. A sociologia da ciência pode contribuir para
a construção dessas pontes, partindo-se, especialmente, do compromisso de
pautar publicamente os pressupostos morais e de responsabilidade social
da atividade científica. Esse trabalho não é feito sem o engajamento nos
fóruns institucionais, associativos, atividades de divulgação científica,
dentro de uma percepção aberta de ciência. Estar do lado da ciência,
reconhecer-se e fazer-se reconhecer como ciência hoje têm o sentido de
resistência e compromisso com a disputa de narrativas democráticas.
Não se trata de assumir que todo conhecimento é opressivo, elitizado e
colonizador, nem tampouco defender um caráter desinteressado da ciência,
mas sobretudo assegurar que se respeite a autonomia9 do fazer científico e
de sua pluralidade. E isso somente pode ser garantido quando há liberdade
de pensamento; valorização social do papel dos cientistas e intelectuais;
reconhecimento das diferenças do fazer científico; e permanente produção e
adaptação de políticas e mecanismos de inclusão social nas instituições
científicas e acadêmicas.

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WRIGHT MILLS, C. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.

2 O debate sobre a pós-modernidade deste texto retoma as notas para o debate sobre Pós-Modernidade e
Sociologia de Baumgarten (2005), aprofundando a discussão e relacionando-a com o atual movimento
anti-intelectualista e contra a ciência.
3 Wright Mills, C., 1972; Foulcault, M., 1970; Lyotard, 1984; Jameson, 1983; Derrida, 1984, entre outros.
4 Albagli (1999) aponta a existência de uma simbiose entre ciência, tecnologia e poder (econômico e
político), a partir da qual o progresso científico-tecnológico é incorporado ao domínio da esfera pública,
em que os novos conhecimentos científicos e tecnológicos passam a ser objetos de crescente privatização
pelos agentes econômicos. As questões referentes à propriedade intelectual, como patentes, apropriação
por empresas transnacionais de plantas e micro-organismos, têm sido objeto de acirrado debate. Sobre
este assunto, ver ainda Leite (2000), Santos (2000) e Carvalho (2000).
5 Para o debate sobre tecnociência, ver Araújo (1998) e Santos (2000).
6 Há certa controvérsia quanto a ser ou não adequado o termo sociedade do conhecimento para definir a
sociedade atual, pois, segundo alguns autores, o que surge como sua característica mais destacada são,
antes, a informação e seus diferentes fluxos do que conhecimento. Para diversas posições sobre o
assunto, ver Castells (2000, v. I), Lastres e Albagli (1999), Baumgarten (2001).
7 Touraine (1969) e Bell (1973), entre outros.
8 É importante ressaltar que, ao mesmo tempo em que a internet ajuda na destruição das culturas locais e
em certa uniformização do pensamento a partir da perspectiva hegemônica e colonial, ela também é
utilizada para resistir ao pensamento único, por meio de diferentes movimentos, como o movimento
Wiki, o movimento Hacker, o movimento de tecnologias livres e ciência cidadã, entre outros, que
questionam a perspectiva hegemônica e as formas do fazer científico, como apontam diversos estudos.
9 O que não significa pensar que a própria ciência seja autônoma e, sim, que é possível uma autonomia
relativa, considerando que todo conhecimento produzido tem virtualidades positivas e negativas que,
muitas vezes, correspondem aos grupos em disputa na sociedade. Nas ciências humanas, por exemplo,
encontramos paradigmas de explicação da realidade voltados à naturalização e manutenção da ordem
social hegemônica, mas também encontramos teorias que possibilitam a crítica dessa ordem e apontam
para sua superação. Aceitar que a ciência possui uma autonomia relativa é ter consciência que existe uma
realidade objetiva a ser representada e que a forma de aproximação a essa realidade (o método ou os
óculos a serem utilizados) irá possibilitar maior ou menor acuidade nesta representação.
PARTE 1 – Experiências e Práticas Científicas em
Ciência, Tecnologia e Inovação no Brasil
A Contribuição da UnB aos Estudos
Sociais de Ciência e Tecnologia

Fernanda A. da F. Sobral

Introdução

E
ste capítulo apresenta a contribuição do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) para
os Estudos Sociais em Ciência e Tecnologia. Faz uma retrospectiva
histórica da produção do referido programa na linha de pesquisa,
que hoje se intitula “Educação, Ciência, Tecnologia”, desde a
criação do Programa em 1970 até o ano 2016. Essa retrospecção ocorre pela
análise de dados quantitativos referentes à produção e também da análise
dos temas estudados e das formas de abordagem predominantes nas
dissertações e teses dos estudantes além das principais publicações
(artigos, capítulos e livros) dos professores desta área de pesquisa. Ao fim,
aponta como os temas e as abordagens estão relacionados às principais
tendências de avanços nas ciências sociais e também a certas características
dos contextos social, político, econômico e institucional, evidenciando-se a
associação entre o social e o cognitivo no processo de produção de
conhecimento. Mostra ainda que, a produção de conhecimento, aliada à
formação de recursos humanos, contribui também, de forma expressiva,
para a elaboração de políticas públicas nesta área.
As origens

O Programa de Mestrado em Sociologia foi criado em 1970 na UnB com uma


única área de concentração: “Sociologia do Desenvolvimento”, num período
em que a discussão sobre o desenvolvimento na América Latina era a tônica
principal. Tanto que a primeira dissertação defendida foi de Maria das
Mercês Gomes Somarriba, intitulada “O Desenvolvimento como Processo
Histórico: considerações sobre o caso brasileiro”, sob a orientação de
Maurício Vinhas de Queiroz.
Já o doutorado foi criado em 1984, com a área de concentração sobre
“Estado e Sociedade”, na qual uma das linhas de pesquisa era “Ciência,
Tecnologia e Sociedade”. A primeira tese de doutorado foi de Potyara
Amazoneida Pereira e Pereira, intitulada “Crítica Marxista da Teoria e da
Prática da Política Social no Capitalismo: peculiaridades da experiência
brasileira”, sob a orientação de Pedro Demo. Nesse período, a discussão
sobre o estado de bem-estar social era hegemônica nos círculos acadêmicos.
Ainda que a linha de pesquisa CTS tenha sido criada somente com o
doutorado em 1984, e se tornado área de concentração em 1990, já em
1975 foi defendida a primeira dissertação nessa temática, com o título
“Considerações sobre a Política Científica no Brasil”, de autoria de Regina
Lúcia de Moraes Morel, sob a orientação de Barbara Freitag Rouanet,
publicada na forma de livro (MOREL, 1979), que é referência para os
estudos nessa área até hoje. A primeira tese de doutorado nessa área foi de
minha autoria, defendida em 1988, sob o título “Ciência, Tecnologia e Poder:
os interesses sociais na pesquisa”, tendo como orientadora a Professora
Vilma de Mendonça Figueiredo. Essa temática na pós-graduação em
Sociologia, até certo ponto, antecedeu a institucionalização da área de
concentração.
Por exemplo, minha dissertação de mestrado, orientada por Barbara
Freitag,
defendida em 1976, intitulada “Educação e Mudança Social: uma tentativa
de crítica”, tornou-se livro (SOBRAL, 1980). Ainda que seu título tenda a
categorizá-la exclusivamente como estudo sobre educação de fato, trata da
produção de conhecimento sobre o papel da educação no processo de
transformação das sociedades. Numa perspectiva estruturalista, mostrei a
influência do contexto histórico na produção sobre educação, procurando
apontar os aspectos ideológicos presentes em duas categorias de estudos:
nos estudos sobre mobilidade educacional, muito em voga a partir da
década de 1950. Após a Segunda Guerra Mundial, quer-se-ia legitimar a
social-democracia ameaçada pela ideologia fascista do passado e pelo
socialismo soviético e; nos estudos sobre aspectos econômicos da educação,
a partir da década de 1970, quando se pretendia legitimar o crescimento
econômico e tecnológico nos moldes da sociedade capitalista desenvolvida.
Esse momento foi marcado pelo crescimento econômico surpreendente da
Alemanha e do Japão do pós-Guerra, fenômeno impossível de ser explicado
pelos três fatores clássicos (terra, capital e trabalho), sendo necessária a
utilização do conceito de capital humano.
Se eu já apresentava, no mestrado, interesse implícito pela produção de
conhecimento, ele se tornou mais claro durante o doutorado, quando
procurei analisar os fatores que influenciavam a produção de conhecimento
ou da pesquisa nas universidades e em outras instituições de pesquisa. Por
essa razão, a minha tese de doutorado tratou da produção e apropriação
social da pesquisa biomédica na UFRJ e na FIOCRUZ e da pesquisa
agronômica na UnB, UFRRJ e EMBRAPA, procurando verificar os
determinantes sociais (de ordens econômica, política e ideológica) das
atividades de pesquisa, observando os interesses sociais em jogo, tanto na
produção quanto na apropriação da pesquisa, e indicando os principais
beneficiados com os resultados das pesquisas, bem como os fatores
intervenientes para que determinados resultados não fossem utilizados ou,
mesmo, divulgados.
Nesse sentido, trabalhei com as ideias de ciência e tecnologia (C&T) como
força produtiva baseada em Marx, de ciência e tecnologia como dominação
política a partir de Marcuse e de ciência e tecnologia como ideologia
segundo Habermas. Como o contexto maior analisado era do capitalismo
dependente, constatei que, embora a interação com o setor produtivo não
fosse forte tendência na época, a C&T nessas áreas por mim analisadas e,
sobretudo, nas instituições estatais de pesquisa podia ser considerada
embrionariamente e indiretamente como força produtiva. Melhor
explicando, estavam reforçando a própria situação de dependência por meio
da importação de produtos ou da simples adaptação de descobertas feitas
no exterior ou, mesmo, de produções próprias que atendiam a interesses de
acumulação do capital internacional. Nas universidades, onde se
desenvolvia principalmente pesquisa básica, havia maior grau de
autonomia. Ao mesmo tempo, a C&T também podia ser considerada como
dominação política à medida que o Estado brasileiro procurava se legitimar
pela política e pela produção científica e tecnológica. Era o caso da produção
de vacinas e medicamentos que beneficiavam toda a sociedade. No que
concerne à visão da C&T como ideologia, foi observada a tentativa de
ofuscar uma realidade social desigual e dependente. A pesquisa agrícola da
EMBRAPA, de grande importância nacional e internacional, por exemplo,
era motivada, naquele período, principalmente pelo aumento de
produtividade da agricultura, sabendo-se que muitas dessas tecnologias
agrícolas produzidas não podiam ser apropriadas pelos pequenos
produtores rurais por falta de condições infraestruturais. A questão da
estrutura fundiária era substituída pela modernização da agricultura (por
meio das novas tecnologias), observando-se a dimensão ideológica da C&T.
Já em 2013 houve nova alteração no Programa de Pós-Graduação em
Sociologia. Foi criada uma única área de concentração, a “Sociedade e
Transformação”, diante das inúmeras transformações por que passavam as
sociedades no século XXI com sete linhas de pesquisas, uma das quais
“Educação, Ciência e Tecnologia”, porque grande parte da produção
associava ciência e tecnologia à educação. As outras linhas de pesquisa são:

Cidade, Cultura e Sociedade;


Feminismo, Relações de Gênero e de Raça;
Pensamento e Teoria Social;
Política, Valores, Religião e Sociedade;
Trabalho e Sociedade;
Violência, Segurança e Cidadania.

Os números indicam

A história do Programa de Pós-Graduação em Sociologia pode ser descrita,


entre outros aspectos, pelo número de dissertações e teses defendidas. Mas
aqui a pretensão é analisar esses dados, principalmente na área de CTS,
durante todo o período e em diferentes décadas, para se ter uma ideia geral
dessa produção.
Pode-se verificar, por exemplo, que o total de dissertações e teses do
Programa foi de 640. Já as dissertações em todas as linhas de pesquisa de
1973 a 2016 totalizaram 371, ao passo que o total de teses defendidas
desde que o doutorado foi criado (de 1984 a 2016) foi 269, número menor
do que o do mestrado, cabendo observar que este curso tem mais tempo de
duração. No que se refere à área de CTS, o total para o mestrado e
doutorado foi 71, mas os números são semelhantes para o mestrado e o
doutorado, pois o total de dissertações defendidas de 1973 a 2016 foi 35, ao
passo que o de teses nessa área, de 1984 a 2016, foi 36, ainda que o período
seja menor. Melhor explicando, se no mestrado a produção discente na área
CTS fica em torno de 10% do total, essa proporção se eleva um pouco mais
no que concerne ao doutorado (13%).

Fonte: Elaboração própria.

Ao analisar os números da produção de dissertações e teses na área de CTS


por década, por meio dos gráficos seguintes, observa-se que tanto no
mestrado quanto no doutorado o período de 1995 a 2004 foi mais
produtivo, com 15 dissertações e 19 teses (quase a metade de todo o
período).

Fonte: Elaboração própria.

Fonte: Elaboração própria


Fonte: Elaboração própria.

Cabe ressaltar que, a partir de 1990, no período de 1995 a 2004, essa


temática se tornou área de concentração, com maior número de docentes
atuando nela, o que resultou no desenvolvimento de grandes projetos de
pesquisas com financiamento. Foi o caso da pesquisa sobre “Estado,
Sociedade e Tecnologia Agropecuária”, a partir de 1986, coordenada por
Vilma Figueiredo e com a participação de vários estudantes e professores,
em que um dos pressupostos era de que a produção e o uso das tecnologias
eram socialmente determinadas. Entre 1988 e 1990 foi realizada também
uma pesquisa sobre “Universidade e Pesquisa na Nova Constituição”,
coordenada por Maria Lucia Maciel, contando também com a participação
de vários estudantes e professores. Durante a Constituinte de 1988,
acompanhamos de perto as Comissões de Educação e de Ciência, Tecnologia
e Comunicação. Nessa oportunidade, a discussão principal abordava a
garantia de recursos públicos para as universidades públicas e para a
pesquisa básica, as quais deveriam preservar a sua autonomia, como
também a questão do Estado laico, questões que estão ainda hoje na ordem
do dia. A alta produção discente, que também era docente nesse período,
muito se deve aos resultados dessas pesquisas.
Pelo fato de considerar condições de produção de conhecimento como
condições cognitivas ou intrínsecas ao próprio processo de conhecimento
(por exemplo, a acumulação de conhecimento na área, a existência de um
paradigma hegemônico ou de teorias em competição) e como condições
socioinstitucionais até certo ponto externas ao processo de conhecimento
(por exemplo, certas características do contexto econômico e político,
políticas governamentais de apoio ou de restrição à produção,
financiamento e criação de instituições), pode se afirmar que no período de
grande produção nessa área havia um contexto de grande mobilização
social, recursos financeiros, institucionalização (a própria criação da área de
concentração) e trabalho coletivo com liderança, questões que podem ser
consideradas como condições sociocognitivas importantes para a produção
de conhecimento.
Depois desse período, os números indicam certo declínio, provocado por
uma série de aposentadorias decorrentes de questões individuais e
contextuais. Percebe-se, no entanto, que começa a ocorrer, nos anos mais
recentes, avanço decorrente da contratação de novos professores com
novas abordagens à temática, mas que ainda usufruem de reduzidos
recursos financeiros, dadas as políticas atuais de restrição ao fomento.
Entretanto, visando justificar minha afirmação sobre as condições
socioinstitucionais de produção do conhecimento, observa-se que a linha de
pesquisa sobre Violência, Segurança e Cidadania está em evidente
ascensão. Esse crescimento se dá tanto pelo fato de ser uma questão
emergencial em nosso país quanto por se tratar de uma área prioritária de
financiamento nos anos recentes em diversas agências de fomento e em
diferentes governos (com restrições também, mas em menor volume), além
de já haver uma consolidação teórica sobre esse assunto.

Os temas “falam”

Não apenas os números indicam a produção em CTS do Programa de Pós-


Graduação em Sociologia da UnB, pois os temas também “falam” sobre o
conteúdo dessa produção.
Os temas principais das dissertações e teses em CTS podem ser assim
enumerados:

Transformações tecnológicas na agricultura (principalmente até


1989);
Políticas de CT&I (informática, formação de recursos humanos, PIBIC,
Fundos Setoriais etc.) (20 no total) (9 no período de 95 a 2004);
Interação entre a universidade e o setor produtivo;
Condições e características da produção de conhecimento científico e
tecnológico em diferentes áreas do conhecimento, com ênfase nas
universidades (18 no total) (9 no período de 1995 a 2004);
Impactos sociais de diferentes tecnologias (TICs) na educação, na
política, na produção científica (12 no total) (7 no período de 1995 a
2004);
Comunidades científicas e profissionais;
Políticas de inovação (mais recente, quando as próprias políticas
governamentais passaram a incluir a inovação, além de ciência e
tecnologia).

Essa produção discente esteve, na maioria das vezes, alinhada à própria


produção docente, conforme se pode notar nos temas a seguir referentes à
produção docente:

Transformações tecnológicas na agricultura (principalmente até


1989);
Tecnologia rural e sindicalismo (politização da tecnologia);
O campo histórico político da tecnologia e/ou a politização da
tecnologia;
Conteúdo social da tecnologia;
Relações entre o Estado e a Comunidade Científica;
C&T, Constituição e Constituinte;
Constituição de campos científicos (Economia, Física, Sociologia etc.);
Políticas de CT&I (Fundos Setoriais, INCTs, Inclusão Digital,
Internacionalização das universidades e do conhecimento etc.);
Políticas de CT&I associadas às políticas educacionais (Formação de
Recursos Humanos, Pós-Graduação, PIBIC, Avaliação das
universidades e da produção científica);
Políticas de CT&I associadas às políticas de telecomunicações;
Condições e práticas de produção de conhecimento científico e
tecnológico nas universidades e nos institutos de pesquisa;
Ciência e política;
Ciência e ética;
Relação entre conhecimento e desenvolvimento;
Sistemas produtivos locais;
Incubadoras de empresas;
As Ciências Sociais e o desenvolvimento científico e tecnológico;
As Ciências Sociais e a Sociologia no Brasil e na UnB;
A autonomia da ciência;
A legitimidade na produção científica e tecnológica;
A relação entre a Sociologia e a Filosofia da Ciência;
A epistemologia complexa;
As controvérsias em torno da Biotecnologia, da vacina BCG, das
mudanças climáticas etc.

Não apenas alguns temas foram predominantes, em certos períodos, como


também as formas de abordagem. No início, era muito clara a discussão
sobre os determinantes sociais da ciência e da tecnologia ou o seu conteúdo
social, numa perspectiva marxista clássica e contemporânea, na qual um dos
pressupostos era de que a produção da ciência e da tecnologia, e o uso das
tecnologias, eram socialmente determinados a partir de alguns interesses. A
questão da neutralidade da ciência e da tecnologia já era posta em questão,
como também havia certa crítica a Merton, que se dedicou, com ênfase e
profundidade, às normas e valores da comunidade científica sem dar, no
entanto, importância maior ao mundo extracientífico. Nesse período, a
produção do Programa de Pós-Graduação em Sociologia também destacou o
papel do Estado como articulador de interesses ou como uma condensação
de interesses em conflito. Depois, passou-se a falar mais do papel do Estado
por meio das suas políticas, sejam estas educacionais ou de ciência e
tecnologia.
Exemplo dessa abordagem foi o estudo sobre a comunidade científica, a
SBPC e o Estado brasileiro, realizado por Ana Maria Fernandes, durante seu
doutorado em Oxford, agraciado em 1988 com o Prêmio de Melhor Tese de
Doutorado da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Ciências Sociais (ANPOCS). Essa tese se tornou livro, intitulado “A
Construção da Ciência no Brasil e a SBPC”, publicado pela Editora UnB em
1990, com relançamento em 2009. O livro utiliza os conceitos gramscianos
de sociedade civil, hegemonia e intelectuais e apoia-se numa extensa
bibliografia sobre Estado, sociedade e regimes políticos no Brasil
(FERNANDES, 1990).
Mais adiante, talvez por inspiração em Bourdieu (1976), a ideia de que o
campo científico é também um campo social e que o monopólio da
autoridade científica depende de capacidade técnica e de poder social passa
a nortear vários estudos, que vão analisar as condições cognitivas ao lado
das condições socioinstitucionais da produção do conhecimento, e não
apenas seus determinantes sociais.
Outra abordagem origina-se de uma crítica ou complementação da ideia de
Gibbons (1994) de um “novo modo de produção do conhecimento” para um
“modelo misto de produção científica e tecnológica” (SOBRAL; TRIGUEIRO,
1994). A esse modelo estão associadas a pesquisa básica à aplicada e à
inovação tecnológica, a demanda espontânea à induzida e a comunidade
científica a outros atores sociais, como governo, organizações não
governamentais e setor produtivo. Essa análise permitiu afirmar que os
pesquisadores estavam construindo caminhos de atualização, sem perder
totalmente as suas tradições. Desenvolviam a sua vocação cosmopolita e
científica, a fim de contribuir para a evolução do conhecimento, procurando,
ao mesmo tempo, solucionar determinados problemas econômicos e sociais
– alguns de caráter regional – e interagir com outras instituições e com
outras disciplinas.
Vários artigos e livros se referem a “arenas transepistêmicas” (KNORR;
CETINA, 1982) ao mostrarem que a produção do conhecimento ultrapassa
os muros do próprio conhecimento e as ideias de “tripla hélice”
(LEYDESDORFF; EZKOWITZ, 1996). E isso indica a articulação entre atores
do governo, da academia e do setor produtivo na produção de
conhecimento e de “ênupla hélice”, significando múltipla articulação, de
enésimo grau, entre instituições universitárias e organizações da sociedade
(TRIGUEIRO, 2001).
Já no início deste século se começa a tratar de “controvérsias e de redes
sociotécnicas” a partir da influência de Bloor (1991), um dos fundadores do
Programa Forte, no qual o princípio da simetria passa a ser fundamental por
meio de um tratamento equivalente ao científico e ao social. Já Bruno Latour
e Michel Callon criam o conceito de actante, ou de ator-rede, capaz de dar
tratamento simétrico a uma diversidade de atores. Nesse sentido, mostra-se
que a construção do argumento verdadeiro de determinada controvérsia
científica é muito mais o resultado de negociações, acordos, interpretações e
concessões sobre resultados e objetivos da pesquisa do que a perfeita
representação de um fato natural (LATOUR, 2000; PREMEBIDA; NEVES;
ALMEIDA, 2011). Essas ideias vão, de certa forma, impactar a produção
sobre controvérsias científicas e tecnológicas do programa de pós-
graduação.
Atualmente, a abordagem que predomina são os estudos pós-coloniais, que
tiveram suas origens nos estudos culturais, cuja ideia era construir
epistemologias que apontassem para outros paradigmas metodológicos na
análise cultural, sendo a mais importante a mudança na análise das relações
de poder, nas diversas áreas da atividade social caracterizada pela
diferença: étnica, de raça, de classe, de gênero, de orientação sexual. Essa
tendência se difundiu para outros campos, como o de CTS, procurando
ruptura com uma história única e com tradição eurocêntrica consolidada. A
noção de ciência periférica tornou-se relevante na produção em CTS,
considerando as diferenças de legitimação e circulação do conhecimento
científico em contextos periféricos no sistema global de ciência e tecnologia
(NEVES, 2014) Observa-se que a produção docente e discente do Programa
de Pós-Graduação em Sociologia passou por diferentes temas e por diversas
abordagens, a depender de certas características do contexto social e
institucional, como também da própria evolução das teorias explicativas: os
determinantes sociais da ciência e tecnologia, as condições sociocognitivas
de produção de conhecimento, o modelo misto de desenvolvimento
científico e tecnológico, as controvérsias científicas e tecnológicas, as redes
sociotécnicas e, mais recentemente, os estudos pós-coloniais.

Conclusão

A associação entre o social e o cognitivo tem sido a tônica da nossa


produção, apontando “o social” em campos aparentemente não sociais
desde as suas origens. Cabe ressaltar que o livro intitulado “A Produção
Social da Tecnologia”, de Vilma Figueiredo, é de 1989, em que já é discutida
uma teoria sobre o assunto. Porém, além da produção de conhecimento, há
uma contribuição expressiva na formação de recursos humanos e na
elaboração de políticas públicas, à medida que há formação maciça de
quadros para o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação e para as
agências de fomento federais e estaduais. Por sua vez, os docentes
participam ativamente de associações científicas que agregam todas as
áreas de conhecimento, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência (SBPC) e de associações científicas específicas, como a Associação
Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), Sociedade
Brasileira de Sociologia (SBS) e Estudos Sociais em Ciência e Tecnologia
(ESOCITE.BR), as quais têm defendido as políticas públicas para a área.
Essa trajetória mostra a importância de um conhecimento teórico e
empírico excelente, porém que precisa ser mais divulgado e apropriado.
Esse conhecimento tende, também, a ser reflexivo da sociedade e na
sociedade, cabendo tal reflexão ser aprofundada no que concerne à sua
diversidade e pluralidade. Ciência e sociedade tornaram-se inseparáveis,
sendo possível o estabelecimento de uma relação dialógica entre elas, em
que a ciência possa “falar” para a sociedade e esta “falar” para a ciência
(LOMBAS; SOBRAL, 2015).
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A Formação de Professores-Pesquisadores em
Ciências com Enfoque CTS: Elementos de
Experiências Exitosas no Contexto Amazônico-
Paraense

Sebastião Rodrigues-Moura
Rafael Cordeiro-Rodrigues
Alexandre Guimarães Rodrigues
Licurgo Peixoto de Brito

Reflexões iniciais

E
m primeiro lugar, é preciso voltarmos nossos olhares ao contexto
educacional brasileiro, em especial durante a década de 1980,
período em que se iniciou um movimento por uma educação em
Ciências que trouxesse contribuições alinhadas à compreensão e
ao uso da tecnologia e para a consolidação da democracia
(AMORIM, 1995). Esse movimento foi apoiado por estudiosos e
pesquisadores da área, os quais buscaram influenciar nas discussões sobre
questões relacionadas à Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS).
Nesse formato de movimento educacional, observa-se um debate
fomentando as temáticas e propostas alinhadas à formação docente em
Ciências com enfoque em CTS, por ser considerado entre os teóricos uma
abordagem ampla e apresentar convergências entre os pesquisadores da
área e adeptos da linha formativa.
No contexto amazônico, apesar de uma ação incipiente, o movimento CTS
tem ganhado espaço em grupos de estudos e pesquisas, nos programas de
formação de professores – cursos de licenciatura –, com mais eficácia na
pós-graduação, pela existência de linhas de pesquisas e áreas de
concentração relacionadas à temática e ao formato, tanto de propostas
voltadas para o processo ensino-aprendizagem quanto de abordagem
aplicadas a contextos reais da sala de aula e na formação de professores de
Ciências e Matemática na região.
Observa-se, na literatura, o crescente interesse de novos pesquisadores e
preocupações emergentes em torno da temática CTS na educação, o que traz
resultados e novas propostas didáticas e sua diversificação no âmbito
educacional (STRIEDER, 2012). Esse subsídio, dado por estudiosos e
pesquisadores da área, tem feito com que a demanda no entorno da
abordagem CTS para a educação em ciências traga contribuições
interessantes para o contexto amazônico, enfoques qualitativos mais
aplicados em sala de aula e, principalmente, seja elemento-chave para que
novos estudiosos e, sobretudo professores em formação possam se
apropriar da temática e analisar outras vertentes.
Como motivação inicial para esta discussão, destacamos a influência do
enfoque CTS na educação brasileira desde 1980, o aumento da diversidade
de propostas em torno da temática e, em especial o fato de que a educação
com enfoque em CTS apresenta um respaldo legal nos documentos oficiais
da educação nacional. Apresenta também indícios e elementos que podem
ser observados em projetos de formação pedagógica em ciências na
Amazônia, a citar os elementos encontrados nos programas curriculares dos
cursos de formação docente no Estado do Pará.
Enquanto professores-pesquisadores, consideramos como ação pertinente
para a literatura da área a nossa atitude em analisar elementos da educação
CTS presentes nos projetos de formação docente de ciências no contexto
amazônico-paraense. Entre as intenções iniciais, apresentamos:
I. A possibilidade da educação CTS no contexto amazônico-paraense de
formação docente;
II. Elementos e indícios associados ao desenvolvimento de práticas de
professores em formação com abordagem CTS na região.

Diante do que foi apresentado, voltamos ao objetivo geral deste capítulo,


que é analisar e discorrer sobre propostas pedagógicas voltadas para a
formação docente em Ciências com vistas à abordagem CTS, bem como
socializar experiências exitosas, particularmente em licenciaturas
integradas, no contexto amazônico-paraense. Para atingir esse objetivo,
apropriamo-nos da pesquisa qualitativa com caráter documental e, para
discorrer sobre os dados e resultados, adotamos a técnica da Análise
Textual Discursiva (ATD), proposta por Moraes e Galiazzi (2011), a partir de
eixos analíticos, sobre os quais traçamos discussões e argumentos sobre o
objeto de estudo.

Educação CTS no contexto amazônico-paraense

A educação em ciências voltada para o enfoque CTS tem-se apresentado em


muitos espaços formais da educação brasileira como meio de proposição de
objeto para a formação de professores. No contexto amazônico não é
diferente, uma vez que muitos programas de pós-graduação, bem como a
graduação, apresentam percursos de implementação, abordagens
diferenciadas e inovações no âmbito escolar do currículo de Ciências com
foco voltado para o estudo da Ciência e Tecnologia com vistas à abordagem
CTS.
Trata-se de um processo valioso na formação de professores de Ciências
não se limitando somente a essa área, mas abrangendo outros campos do
conhecimento, desde que aplicados ao contexto da educação. O processo da
educação em ciências com respaldo na abordagem CTS apresenta
alinhamento aos documentos oficiais de formação pedagógica e engloba o
desenvolvimento de competências intrínsecas à formação humanística, para
que o cidadão seja capaz de lidar com os mais variados problemas e das
mais distintas naturezas. Isso permite que ele possa intervir sobre eles e, de
forma consciente, tomar decisões capazes de modificar o meio no qual está
inserido.
A disciplina CTS voltada para a educação em ciências no contexto
amazônico-paraense possibilita ao estudante inserir-se no seu meio natural
para que ele tenha uma visão mais ampla do seu papel social, a fim de
permitir que faça uma leitura crítica da realidade amazônica, suas
influências, percepções e implicações sociais, diante de um contexto tão
discutido no cenário globalizado, porém ainda escasso de atores que
possam protagonizar ações sólidas e concretas diante do meio e da
sociedade que o compõem. Trata-se, portanto, de medidas que devem ser
desenvolvidas no âmbito educacional, para que ações concretas emergentes
possam surgir como meio de interação e intervenção social, vislumbrando
benefícios sociais à população.
Além dessa discussão, torna-se necessária a inserção da abordagem CTS no
contexto real da sala de aula, mas, para efetivar tal ação, é importante a
formação consistente de professores para além das aplicações e apreensões
das atividades relacionadas aos elementos de ciência e tecnologia no meio
social. Outra questão a ser levada em consideração no estudo da formação
docente são as relações da ciência e tecnologia que são desenvolvidas em
outros espaços não formais da sala de aula, mas que devem ter relação
amistosa com a sociedade em sua realidade.
Muitos são os trabalhos que fundamentam e embasam a educação em
ciências com abordagem CTS, os quais são corroborados por documentos
oficiais brasileiros e projetos pedagógicos voltados para a educação, bem
como para a formação docente (PINHEIRO; WESTPHAL; PINHEIRO, 2005;
PINHEIRO; SILVEIRA; BAZZO, 2007). Observamos em outros estudos uma
abordagem acerca de questões relevantes direcionadas ao conceito e à
formação cidadã dos indivíduos (MOEHLECKE, 2012; TOTI, 2011), que
destacam o uso de competências, observada a relação da
interdisciplinaridade e contextualização em sala de aula (RICARDO, 2005;
PAIVA; KAWAMURA, 2016) e, sobretudo, trazendo uma abordagem de como
se dão o desenvolvimento tecnológico e os processos produtivos na
sociedade, suas relações, aplicações e implicações (LEODORO, 2008).
Dado o exposto, ancoramo-nos no levantamento de questões para discussão
da abordagem CTS por ser recomendada em projetos de formação docente,
como apontada na proposta curricular, para a qual temos como propósito
fundamental identificar:
I. Se a educação CTS é possível no contexto da educação amazônico-
paraense e se possui respaldo em documentos oficiais de formação
docente;
II. Quais os desafios associados ao desenvolvimento de práticas
educativas CTS na região, voltadas para a formação docente em
Ciências.

A educação em ciências e a formação docente, ambas caracterizadas pela


abordagem CTS, são vistas e discutidas pelos nossos grupos de estudos e
pesquisas como um meio de contrapor a visão tradicionalista da educação
encontrada atualmente nas escolas e baseada na perspectiva da
neutralidade científica.
Não se trata aqui de traçar uma abordagem linear voltada para a educação
em ciências, mas de uma visão mais próxima das ideias e perspectivas
educacionais propostas por Paulo Freire, diante da emancipação do sujeito,
da participação social e do desenvolvimento de políticas que culminam na
compreensão dos pressupostos da ciência e tecnologia para a formação
cidadã. Tal fato é previsto e fundamentado nos princípios regidos pelo
Pensamento Latino-Americano em Ciência, Tecnologia e Sociedade
(PLACTS), assim como da preocupação que fundamenta os Estudos Sociais
sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade (ESCTS) na América Latina, buscando
abarcar os debates fundantes e atuais (DAGNINO; SILVA; PADOVANNI,
2011).

Percurso metodológico

Para atingir o objetivo proposto nesta discussão, buscamos conduzir a


investigação com um enfoque de caráter qualitativo, centrando nossa
análise na formação de professores de Ciências no Estado do Pará, onde se
verificam políticas públicas diretamente relacionadas com o contexto
amazônico desde a formação de mão de obra até a formação humanística.
Portanto, como objetos de análise, consideramos os Projetos Pedagógicos de
Cursos (PPCs) de graduação em Biologia, Física, Química e Ciências
Naturais, bem como as licenciaturas integradas ofertadas no âmbito das
universidades federais, estaduais e dos institutos federais. Optamos pela
escolha dessas instituições pelo fato de serem as que apresentam maiores
demandas e aderência ao campo da formação docente em Ciências no
Estado.
É importante destacar que os documentos analisados – nesse caso, os PPCs
– são, de certa maneira, materiais empíricos representativos da formação de
professores no contexto amazônico-paraense e configuram importantes
ferramentas e instrumentos de caráter público, capazes de nos trazer
abordagens e reflexões diversificadas sobre a educação em ciências com
abordagem em CTS no contexto curricular. É claro que a nossa análise se
restringe a documentos e que a prática docente dos formadores
universitários, assim como sua didática, experiências acumuladas, linhas de
pesquisa e trabalho, e os referenciais teórico-metodológicos, são de suma
importância para uma compreensão mais ampla desse debate, sendo,
portanto, objeto de trabalhos futuros.
Outro detalhe relevante no nosso percurso metodológico está voltado para
o fato de deixarmos nosso leitor ciente de que, no momento, não
pretendemos realizar comparações entre os cursos em sua essência,
afirmando se este é melhor que aquele ou que um possui mais bagagem
formativa que outro. Tais apontamentos podem ser os objetivos do grupo de
trabalho ou de pesquisadores interessados nessa temática.
As análises aqui apresentadas foram feitas a partir de documentos oficiais,
disponibilizados em domínio público; e as discussões são orientadas pelos
pressupostos de uma pesquisa qualitativa, de caráter documental. Trata-se,
portanto, de uma pesquisa com o propósito maior de fazer um
levantamento das características de um grupo focal que permita uma
análise por meio de documentos, por serem estes considerados fonte
estável de dados rica em sua essência e que possibilita uma visão mais
ampla sobre o nosso objeto de estudo para, dessa forma, atender ao objetivo
da investigação apresentada (GIL, 2007).
Por considerarmos a elaboração textual e as condições propícias da
academia, na qual se produzem os documentos de formação pedagógica
para os professores de Ciências, acreditamos no potencial da concepção
denotativa da linguagem utilizada, das discussões que entornam até chegar
ao produto final, bem como o que é escrito em sua fundamentação teórica e
nas propostas apresentadas. Assim, manifestamos, na nossa conduta, que
tudo foi bem planejado, discutido, debatido, observado de diferentes pontos
de vistas e que, no final, tenha sido reproduzido como documento simbólico
da formação docente em Ciências no contexto amazônico-paraense, não
sendo motivo de nos queixarmos de sua forma estrutural, mas de nos
preocuparmos com o que nele consta.
Para a análise dos documentos, partimos de momentos que nos ocupamos
em debruçar fielmente sobre o texto disponibilizado não como algo pronto e
acabado, mas como um produto com possibilidades de compreensão nas
suas entrelinhas. São documentos de ordem textual, com começo, meio e
fim, que possuem uma gama de significações, de variedade linguística, mas
com uma condição de manter sua objetividade, estratégia para a qual
voltamos nosso olhar para constituir o processo de interação de estudos e
pesquisas. Enquadram-se, portanto, no espaço textual discursivo para o
qual manifestamos nosso interesse maior, por fixar os currículos dos cursos
de formação e dos programas com suas diretrizes e proposições.
Feita a análise dos PPCs, agrupamos os fragmentos desses documentos em
um levantamento realizado por nós, de modo a não identificar a instituição.
Usamos os códigos IES-A, IES-B, IES-C, IES-D, IES-E e IES-F para nos
referirmos à Instituição de Ensino Superior A, à Instituição de Ensino
Superior B e, assim sucessivamente. Caracterizamos os cursos de
licenciatura com códigos que variam de L01 a L18, totalizando 18 cursos de
formação de professores de Física, Química, Ciências Biológicas, Ciências
Naturais (com e sem habilitação específica) e das licenciaturas integradas,
conforme descrevemos com mais especificidade no Quadro 1.
Quadro 1 – Configurações dos projetos
pedagógicos dos cursos analisados

Quadro 1 – Configurações dos projetos


pedagógicos dos cursos analisados
Instituição Curso Configuração
Licenciatura em Ciências Naturais L01
Licenciatura em Biologia L02
IES-A
Licenciatura em Física L03
Licenciatura em Química L04
Licenciatura em Ciências Naturais L05
Licenciatura em Ciências Biológicas L06
IES-B Licenciatura em Física L07
Licenciatura em Química L08
Licenciatura em Ciências, Matemática e Linguagens L09
Licenciatura Integrada em
L10
Biologia e Química
Licenciatura Integrada em Matemática e Física L11
IES-C
Licenciatura Plena em
L12
Ciências Biológicas
Licenciatura em Física Ambiental L13
Licenciatura em Ciências Naturais com habilitação em Física,
IES-D L14
Química ou Biologia
Licenciatura em Ciências Biológicas L15
IES-E Licenciatura em Física L16
Licenciatura em Química L17
Fonte: Elaborado pelos organizadores.

Para cada um dos cursos listados no Quadro 1 existe um Projeto Pedagógico


de Curso (PPC), o qual será objeto de nossa análise. A partir desses
documentos, buscamos elementos comuns da formação docente com
abordagem em CTS, para categorizar e elaborar eixos analíticos sobre os
quais podemos discorrer e argumentar conforme a literatura da área. Para
tanto, usamos a técnica da Análise Textual Discursiva (ATD), proposta por
Moraes e Galiazzi (2011), seguindo as seguintes etapas definidas:

1. Leitura detalhada dos PPCs e busca por meio de localização textual de


fragmentos capazes de serem organizados em unidades semelhantes;
2. Após identificar esses excertos comuns, categorizamo-los para
facilitar a nossa compreensão e buscar atender ao objetivo de
pesquisa da proposta;
3. Depois de criadas as categorias, foi possível desenvolver eixos
analíticos de maior amplitude que pudessem refletir as intenções de
pesquisa diante dos dados apresentados;
4. Por fim, com os eixos analíticos definidos, recorremos à literatura
atualizada para argumentar os elementos identificados e analisados
com maior aprofundamento.

Compreendemos que essas quatro etapas da ATD são relevantes para que
possamos chegar aos objetivos propostos e conseguir apresentar uma
análise mais detalhada dos elementos obtidos em nossa investigação.

Debates dos resultados

Diante do percurso metodológico apresentado, ocupamo-nos, a partir deste


momento, em discutir a análise dos elementos encontrados nos PPCs. As
discussões foram fomentadas por meio de abordagens teórico-
metodológicas, nas quais identificamos elementos de reflexões e inter-
relações em CTS, desenvolvimento de formação docente reflexiva,
abordagem de temas, formação para a cidadania e práticas para a
investigação com a inclusão de tomada de decisão, bem como práticas
diferenciadas existentes nas licenciaturas integradas em Ciências.

(i) A relação CTS com a educação em ciências e a abordagem de


Questões Sociocientíficas (QSC)
As leituras nos propiciaram a observação de elementos da formação
docente presentes nos documentos com a abordagem CTS. Apesar de ser
elemento explícito no texto, consideramos conveniente destacar que o
grupo de trabalho que desenvolveu a proposta considera a abordagem
como a tendência atual para a educação, destacando-a em um contexto de:
Tendências e estratégias atuais do ensino: Ciência, Tecnologia, Sociedade
e Ambiente (CTSA); contextualização; competências e habilidades; ensino
por abordagem temática; ensino por problemas e projetos (L09, p. 110).
Do exposto, observamos que o movimento CTS (e/ou CTSA) desponta como
uma das novas tendências na educação em ciências por ser estratégia
pedagógica considerada atual para o âmbito educacional e destacar a
relação intrínseca entre a ciência, a tecnologia e as questões sociais,
principalmente as de ordem ambiental. É com relação a esses aspectos
educacionais que Libâneo (2005) aporta os aspectos pedagógicos que criam
condições essenciais para a sociedade contemporânea. Tais condições
reforçaram muitas tendências de ensino desde os aspectos voltados para a
corrente racional-tecnológica, a do neocognitivismo, a sociocrítica, a de base
holística até a pós-moderna.
Baseando-se nesse estudo e se inspirando nos trabalhos de Libâneo (2005),
é necessário repensar o currículo como elemento relacionado ao processo
de ensino e aprendizagem, pois:
Serão consideradas questões processuais do ensino e da
aprendizagem que têm como princípio a abordagem CTSA, trazendo
à discussão e ao tratamento pedagógico conteúdos socialmente
significativos, o enfoque multicultural, os direitos humanos, a inclusão
social e a educação ambiental como temas centrais para a formação da
cidadania e o letramento científico e social (L09, 2008, p. 44 – Grifos
nossos).

Essa mudança é necessária por objetivar a formação de sujeitos socialmente


capazes de defender e argumentar suas hipóteses e concepções de mundo,
transformar aspectos das relações sociais, bem como ser capaz de
compreender as desigualdades sociais resultantes de elementos ideológicos,
de políticas públicas e do próprio currículo escolar.
Em linha mais geral, observamos que um dos documentos propõe a inserção
do sujeito em formação como meio de agregá-lo à sociedade e ser capaz de
intervir criticamente em diferentes situações e realidades específicas. Nesse
sentido, o documento orienta que devem ser realizados:
Estudos de segmentos voltados para a construção de conhecimento
com base na inserção do indivíduo em realidades ou abordagens
específicas, como: Educação Ambiental, Letramento científico,
Movimento CTS (L14, p. 92 – Grifos nossos).
O movimento CTS vem explicitamente apresentado no documento sem
desdobramento, cabendo, nesse caso, ao docente fazer esse
aprofundamento para a sua dinâmica de sala de aula. Esse movimento da
inserção de discussões políticas, éticas, de construção de conhecimento
sobre controvérsias e em diferentes realidades é uma ambientação da
educação em ciências com enfoque CTS, visando estimular o estudante a
desenvolver habilidades e competências associadas à sua argumentação
científica, escrita e lógica de mundo.
É nesse contexto que emerge o uso de Questões Sociocientíficas (QSCs) no
ensino de Ciências, por apresentar articulação crescente da educação
científica do estudante com as transformações sociais. Isso pelo fato de
melhor conduzir o formando a atuar em diversas situações do cotidiano e
buscar resolver questões sociais, científicas, políticas, ambientais, entre
outras (SADLER, 2011; CARVALHO; CARVALHO, 2012; SANTOS, 2012;
BENCZE; ALSOP, 2014; SANTOS et al., 2018). Tanto em nível nacional
quanto internacional, observa-se que esse movimento volta sua proposta
preponderantemente para formar sujeitos social e ambientalmente
responsáveis com o meio onde vivem.

(ii) Abordagem de temas e a formação docente reflexiva


Esta abordagem é uma articulação possível na formação docente reflexiva
para que os professores sejam capazes de estar mais integrados em sua
formação e preparados para atuarem em sala de aula, em diversos
contextos. Observamos que entre os cursos há alguns que, em vez de
“componentes curriculares”, optaram por chamá-los de “temas”,
diferenciando a proposta e fazendo um novo esboço de formação.
Nesse sentido, verificamos que são feitas:
Abordagens metodológicas para o ensino de Física: Ensino Através
de Temas10 e CTS. Planejamento e apresentação de aulas envolvendo os
temas: Movimentos, variações e conservações; Universo, Terra e Vida;
Calor, ambiente, formas e usos de energia; Som, imagem e informação,
destinadas à educação básica, com uso de estratégias metodológicas
diferenciadas (L11, 2015, p. 116 – Grifos nossos).
Para além do destacado, é importante ressaltar que muitas propostas de
cursos de licenciaturas emergiram de práticas e experiências exitosas de
professores de Ciências que, ao observarem o modelo tradicional do ensino
na Educação Básica, propuseram em cursos de formação continuada
abordagens diferenciadas, agregando novas posturas didáticas e um novo
olhar para a prática pedagógica (RODRIGUES-MOURA; BRITO, 2016).
Analisando outra proposta de formação de professores de Ciências no
contexto amazônico-paraense, observamos que no excerto do curso houve
um desenho da proposta em formato de temas, eixos em que os professores
utilizam propostas diferenciadas, a fim de levarem para a formação o
contexto diferenciado de abordar o processo educacional. O curso, em sua
essência, está:
Organizado por meio de eixos temáticos, que são relativos aos estudos
de conteúdos específicos das áreas de conhecimento que abrangem, quais
sejam, conhecimentos científicos e pedagógicos específicos dos
conteúdos escolares a serem ensinados, bem como de conhecimentos
específicos e instrumentais que implicam uma visão interdisciplinar e
situam-se na perspectiva CTSA (L09, 2008, p. 37 – Grifos nossos).

Essa forma de (re)organizar o curso implica uma abordagem metodológica


e pedagógica diferenciada que conduz o professor de Ciências em formação
a criar um novo olhar sobre os percursos que pode seguir, numa visão
emancipadora, integrada e interdisciplinar. Esse movimento da educação
CTS é propício à formação ampla e contextualizada, além de situar o sujeito
que ensina e o que aprende como transformadores da sociedade.
Essa postura embasa a formação docente reflexiva como oportunidade
formativa voltada para o:
Desenvolvimento de formação docente reflexiva, no sentido da
constituição de professores pesquisadores sobre a própria prática,
sujeitos-autores de sua prática docente (L09, 2008, p. 38 – Grifos nossos).

Outros dois cursos desenhados nesse formato destacam que:


O curso se propõe a oferecer sólida formação humanística e científica na
área pedagógica e na área específica, de modo que a formação dos
discentes possa contribuir para que o cidadão compreenda,
interprete e enfrente a realidade social por meio do conhecimento
produzido (L05, 2010, p. 42 – Grifos nossos).

Em outro, observa-se que:


O curso busca compreender a prática docente como proposta de
ação-reflexão-ação, bem como estabelecer relações entre
desenvolvimento profissional do professor e a prática da reflexão sobre
a própria prática (L13, 2009, p. 79 – Grifos nossos).

Dessas formações propostas, observa-se que o professor capaz de pesquisar


a própria prática é aquele que integra sua formação com a pesquisa,
trazendo o enfoque para a docência. Para Zabala (1998), essa reflexão é
necessária para que se justifiquem as razões sobre a mudança de ações
didáticas, destacando-se a maior reflexibilidade sobre a prática e sobre a
dimensão atitudinal e procedimental dos conteúdos a serem abordados,
bem como sobre a relação do professor com a autonomia do estudante.

(iii) Formação para a cidadania e investigação com a inclusão de


tomada de decisão
Apesar de os eixos analíticos apresentarem um diálogo entre si, destacamos
que essas especificidades da educação em ciências em uma abordagem CTS
possuem elementos para a formação cidadã, pois os cursos são
estruturados:
Em conformidade com os parâmetros curriculares nacionais, com o
objetivo de formar cidadãos capazes de transformar a realidade
social, valorizar a diversidade cultural e contribuir para o avanço
científico e tecnológico da Amazônia (L11, 2014, p. 41 – Grifos nossos).

Para além do que foi destacado, notamos que a formação cidadã para o
contexto amazônico é crucial para os sujeitos, pois a educação deve
considerar a realidade na qual os estudantes estão inseridos para que a
aprendizagem não fique pouco limitada à atuação dos sujeitos/cidadãos. E a
formação de professor com esse perfil é delineada para que haja
contrapartida no processo de ensino-aprendizagem, a fim de aumentar a
criticidade dos docentes e, sobretudo, para que eles determinem valores e
discursos que os direcionem nas práticas pedagógicas diversificadas.
Essa formação permite:
Garantir o acesso ao conhecimento produzido e acumulado, de modo a
contribuir para o exercício pleno da cidadania, fundada em
formação humanística, crítica, reflexiva e investigativa (L15, 2008, p.
4 – Grifos nossos).

São nos aspectos da formação para o exercício pleno da cidadania que há


respaldos legais para o Movimento CTS nos documentos oficiais da
Educação brasileira, pois se apresentam com equidade para as relações
sociais, formação humanística e investigativa para a tomada de decisões.
Suas ideias estão voltadas para o letramento científico, pelas práticas do
desenvolvimento de competências e habilidade para saber lidar com a
ciência no cotidiano (SANTOS,
2012; REIS, 2013; SAUNDERS; RENNIE, 2013).
A tomada de decisão para ações conscientes do sujeito como transformador
da sua própria prática é uma situação necessária para a compreensão do
indivíduo e suas atividades para, assim, serem preparados para a melhoria
na formação de cidadãos e capazes de zelar pela justiça social e pelo
compromisso com uma educação socioambiental e sustentável.
No que tange à formação para a tomada de decisão dos sujeitos, observamos
que os documentos de formação pedagógica em ciências abrem a
possibilidade para que os professores em formação sejam capazes de
exercitar a autonomia e a responsabilidade social, pois:
O curso abre possibilidades para a aplicação da teoria e transposição para
a sala de aula de aspectos práticos onde o professor-aluno estará
exercitando habilidades de autonomia, tomada de decisões e
escolha de procedimentos pedagógicos ainda no decorrer de sua
formação (L01, 2015, p. 24 – Grifos nossos).

No decorrer desse processo, a escolha dos procedimentos pedagógicos pelo


professor em formação se torna imprescindível para que seja possível
articular conteúdos conceituais, atitudinais e procedimentais da melhor
maneira possível, vislumbrando estratégias de aprendizagem, de conceitos
e definições de ciências, como prevê a Educação Científica (ZABALA, 1998).
Martínez-Pérez e Carvalho (2012) destacam, nessa linha de raciocínio, que
nos moldes atuais da educação científica o desenvolvimento de atitudes
positivas, de habilidades argumentativas e de autonomia com o
conhecimento científico culminam nos alicerces estabelecidos pela
educação em ciências com abordagem em CTS e na formação de cidadãos
responsáveis. É nesse sentido que:
Os sujeitos devem pensar por si mesmos aprendendo a manifestar o que
pensam e o que sabem, a defender seus pontos de vista e a posicionar-se
diante das condições exigidas como profissionais que são/serão,
refletindo e responsabilizando-se pelas decisões a tomar com vistas
à transformação social. O professor que se forma sem autonomia
não pode formar alunos autônomos (L09, p. 26 – Grifos nossos).

São esses aspectos da abordagem CTS observados e analisados nos PPCs dos
cursos de formação de professores de Ciências no contexto amazônico-
paraense que consideramos relevantes, pelo fato de priorizarem a
valorização das relações interpessoais dos sujeitos, o desenvolvimento da
autonomia, a formação crítico-reflexiva, a formação cidadã e a tomada de
decisão, entre outros elementos intrínsecos à educação CTS.

Tecendo considerações

Voltando ao objetivo de analisar as propostas pedagógicas que visam à


formação docente em Ciências com vista à abordagem CTS no contexto
amazônico-paraense, observamos que a análise até aqui exposta aponta
para o objetivo pretendido da discussão. Asseguramos que muito ainda há
para ser feito e desenvolvido no âmbito da formação docente, porém já é
possível socializar as experiências consideradas exitosas na Amazônia por
detectarmos que, em sua maioria, os projetos possuem sinalizações e
indícios da formação de professores de Ciências com a abordagem CTS.
É certo que os dados apresentados não esgotam as possibilidades de serem
discutidos e analisados os projetos pedagógicos voltados para o enfoque
CTS, assim como os que estão em construção, por equipes com novas
mentalidades, experiências inovadoras e práticas que asseguram formação
com mais equidade social e tomada de decisão consciente. Isso nos ajuda a
perceber que há sinalizações voltadas para a formação docente que
caracterizam os fundamentos e os pressupostos do Movimento CTS, do
PLACTS e dos ESCTS, em suas bases fundantes, tanto explícitas quanto
implícitas nos documentos analisados.
A análise documental possibilitou uma visão determinante para voltarmos
nosso discurso à indicação de que há uma proposição curricular que aponta
para a abordagem CTS, mais observada nos currículos e propostas das
licenciaturas integradas no âmbito da formação de professores de Ciências.
Não podemos afirmar que se tratam de cursos novos, pois, há tempos, sabe-
se que os cursos possuíam essa visão mais integrada, coletiva, em vez de
fragmentada e que, neste novo momento, estão voltando para inovar as
práticas educacionais contemporâneas com currículos que estejam mais
próximos e alinhados.
As sinalizações da educação em ciências com abordagem CTS se voltaram
para elementos que continham (inter)relações CTS/CTSA, discussões para a
formação da cidadania, objetivos inerentes à formação da educação
científica, abordagem da QSCs, excertos de ordem interdisciplinar e
contextualizada e uso de temas científicos, bem como para a tomada de
decisão e formação de sujeitos críticos.
As discussões ora apresentadas estão alinhadas com as orientações
curriculares das legislações nacionais de formação de professores de
Ciências, de acordo com o que preconiza o movimento da formação inicial e
continuada, por interpor e possibilitar interpretações alinhadas ao contexto
nacional da educação em ciências com abordagem CTS. Também apontam
para inflexões no processo de formação voltado para a inclusão das relações
CTS/CTSA nesse processo de forma mais geral.
Não iremos aqui generalizar a análise, porém muitos projetos pedagógicos
ainda apresentam lacunas ou distanciamento. Isso porque, apesar de
tratarem da educação CTS no currículo de ciências ou na formação
pedagógica do professor, não nos garantem que a práxis do formador de
formadores esteja, em sua plenitude, objetivada a contribuir para práticas
educacionais, pois não deve haver afastamento do que de fato é a Educação
Científica com enfoque CTS.
Com o intuito de aumentar as possibilidades formativas de inserção de
propostas CTS no currículo de Ciências, torna-se necessária uma frente forte
de intervenção pedagógica para discutir e alimentar a perspectiva da
Educação nacional nos cursos de formação inicial e continuada de
professores.
Assim, ressaltamos que as propostas apresentadas não podem ser
consideradas ou definidas como apontamentos ou modelos únicos para a
mudança curricular da formação de professores de Ciências, mas que
possuem amplitude historicamente constituída em tempos e contextos
específicos. Esse debate nos aponta que o currículo escolar e o
planejamento de políticas públicas acerca dos fundamentos teóricos da
Educação Científica com abordagem CTS precisam ser valorizados e
primados, pois tendem a contribuir com a dinâmica de implantação de
novos cursos para a formação docente e de novas propostas educacionais,
em uma perspectiva inovadora e transformadora.

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10 Essa proposta foi originalmente desenvolvida por Brito (2004) e intitulada Ensino de Física Através de
Temas (EFAT).
Um só basta? Agenciando gametas e noções de
gênero na Reprodução Assistida (RA)

Débora Allebrandt

Introdução

H
á décadas, pesquisadores das mais diversas áreas de estudo têm
se dedicado a trabalhar as implicações, agenciamentos e tabus
da ausência involuntária de filhos, comumente associada a
terminologia biomédica da infertilidade (COLLIER;
YANAGISAKO, 1987; CORRÊA, 2000; COSTA, 2002; FRANKLIN,
1997; INHORN; BALEN, 2002; LUNA; DUARTE, 2004; RAMÍREZ-GÁLVEZ,
2009; SILVA; MACHADO, 2009; STRATHERN, 1992; TAMANINI, 2010;
THOMPSON, 2001, 2005).
Inhorn e Balen (2002) discutem as tensões entre o uso corriqueiro da
palavra infertilidade versus o termo ausência involuntária de filhos. O
objetivo dos autores é dissociar o ter ou não ter filhos de uma perspectiva
biomédica que, muitas vezes, não está associada a um diagnóstico e
tratamentos de infertilidade. Há na utilização do termo ausência
involuntária de filhos uma tentativa de contextualizar o desejo de ter filhos
e dar espaço para expectativas diversas de filiação. Trata-se de uma
sinalização de que, em determinados contextos, ter um filho em vez de cinco
pode ser compreendido como o mesmo que não ter filho algum. Portanto,
falar em ausência involuntária de filhos permite demarcar experiências
semelhantes de pessoas com e sem filhos sob o mesmo espectro de estigma
e tabu que paira sobre a infertilidade, independente de qualquer condição
biomédica.
Um dos principais tabus associados à infertilidade gira em torno das
múltiplas facetas da culpabilização da mulher pela condição de
“infertilidade”. Representações da cultura popular situam uma mulher sem
filhos como uma “árvore seca” e associam a fertilidade e a reprodução à
realização da mulher (MARTIN, 1991a; ROHDEN, 2001; STRATHERN, 1991).
Os estudos feministas contribuíram em muito no deslocamento dessas
construções que associam a maternidade a um caminho inevitável na vida
das mulheres. Em parte, a essencialização desse papel, fortemente associada
ao sonho de um filho biológico, lançado pela RA foi duramente criticada por
esses estudos.
Charis Thompson (2005) demonstra como os estudos feministas passaram
de uma crítica ferrenha a RA para um entendimento das escolhas
individuais envolvidas ali.
Muitos teóricos desenvolveram críticas da centralidade da intervenção da
RA sobre o corpo da mulher (COLLIER; YANAGISAKO, 1987; CORRÊA, 2001;
FRANKLIN; ROBERTS, 2006; NAARA LUNA, 2007; RAMÍREZ-GÁLVEZ,
2014; STRATHERN, 1991; TAMANINI, 2004). No entanto, ainda são pouco
numerosos os estudos nas ciências humanas e especialmente na
antropologia que considerem a infertilidade a partir da experiência dos
homens (NASCIMENTO, 2011).
No entanto, a preocupação com os homens no universo da RA era central
para um de meus interlocutores. Durante minha pesquisa de pós-doutorado,
realizada entre 2013-2015 em uma clínica de RA em Porto Alegre, meu
principal interlocutor sempre reclamava dos homens. Inconsolável, ele me
dizia: “Você precisa estudar isso, entender por que os homens não aceitam
intervenções como as mulheres aceitam…”. Depois dessa frase seguiam-se
uma série de exemplos em que homens com “esperma ruim” arruinariam
um excelente resultado na estimulação ovariana e finalmente “estragando
[potenciais] embriões”.
Durante essa pesquisa, meu principal foco foi entender a utilização de
espermatozoide heterólogo por meio da doação anônima organizada por
um banco de sêmen no Brasil e as dinâmicas de criopreservação de
embriões, sua circulação e agenciamentos (ALLEBRANDT, 2018). Mais
recentemente, ao adentrar outra fase de análise dos dados produzidos,
busquei descentralizar a preocupação do meu interlocutor em entender o
porquê de os homens não serem “bons pacientes” a fim de buscar
compreender como novos dados e técnicas ajudam a configurar
contemporaneamente o problema da infertilidade masculina – ou o “fator
masculino”. Na fala de meu interlocutor, muitas vezes o “ser” um bom
paciente estava associado à capacidade de aceitar o uso de material
heterólogo para fins de fertilização –simplesmente utilizar sêmen de um
doador.
Para a pesquisa que venho desenvolvendo, tomo os dados de campo que
apontam para o problema da qualidade do sêmen e procuro contextualizar e
tencionar o modo como esses dados fazem eco nas pesquisas realizadas no
Brasil e no mundo sobre esse tema. Trata-se de uma pesquisa documental e
qualitativa dividida em duas fases. Na primeira, será analisado o material
publicado em periódicos científicos brasileiros e, na segunda fase, a
pesquisa será expandida para portais e indexadores de periódicos
internacionais, privilegiando as publicações em inglês. Os dados coletados
serão classificados e triados com a ajuda do software de análise de dados
qualitativos Nvivo.
A hipótese trabalhada é a de que ainda parece existir uma grande ênfase no
desenvolvimento de tecnologias e intervenções reprodutivas voltadas
hegemonicamente para o corpo da mulher (ROHDEN, 2001) e que, a partir
de 1992, com o advento da Injeção Intracitoplasmática de Espermatozoide
(ICSI), não houve novos desenvolvimentos tecnológicos para o tratamento
da infertilidade masculina. O ano de 1992 foi tomado como um marco
temporal, pois, a ICSI, chamada também de “técnica do espermatozoide
preguiçoso”, foi popularizada como a solução para a infertilidade masculina,
ainda que não tenha sido desenvolvida para esse fim11.
Para melhor compreender esse problema, cabe ainda perguntar quais os
tipos de intervenção e produção técnicas são pensadas para os corpos
masculinos? Como marcadores sociais da diferença, especialmente de
gênero, influenciam práticas de pesquisa e clínica no contexto da RA? E
ainda, de que modo a ausência ou presença de produções bibliográficas nas
ciências da saúde sobre o “fator masculino” na RA dialogam com o contexto
prático da clínica em Porto Alegre?
Essa discussão inicia-se abordando uma das principais reflexões acerca da
diferença do tratamento científico entre os sexos e os estereótipos de
gênero e uma atualização desse problema. Em seguida, exploram-se alguns
dos dados coletados no contexto das pesquisas realizadas no Brasil.

O espermatozoide herói e gatilhos reflexivos

No dia 23 de setembro de 2017 foi veiculado na Central Brasileira de


Notícias (CBN) um especial sobre infertilidade masculina. Sem delongas, o
radialista pergunta ao médico convidado – o que fazer se não há
espermatozoides no sêmen. O médico responde com a máxima “É preciso
apenas um espermatozoide para fecundar um óvulo”. O especialista explica
rapidamente que há solução para a infertilidade masculina. Segundo ele,
com a injeção intracitoplasmática de espermatozoide você precisa de
“apenas um” espermatozoide. A pergunta que segue diz respeito à
impotência. O especialista indica que doenças não diagnosticadas como
hipertensão e diabetes podem estar associadas a “episódios” de ausência de
ereção – tentando capturar pelo sexo esses pacientes inquietos (ROHDEN,
2012).
Ao buscar ouvir novamente essa reportagem pelo site da CBN, me deparei
com uma série de outras reportagens sobre infertilidade masculina. Uma
dessas entrevistas merece destaque. A chamada da entrevista anunciava
que “A idade do parceiro interfere no sucesso do tratamento da
fertilização”12.
O entrevistado é Paulo Gallo, especialista em RA e um dos fundadores da
Clínica Vida, localizada no Rio de Janeiro.
O especialista inicia a reportagem dizendo que os mitos da fertilidade
masculina estão caindo.
No passado existia um mito de que a culpa era sempre da mulher. Até por
machismo nem se investigava o homem. […] Hoje sabemos que isso não é
verdade. […] Em 40% das vezes que um casal não consegue engravidar, o
problema é exclusivamente da mulher. Em 30% ou 35% dos casos é um
problema somente do homem, mas nos outros 35% temos a associação
de fatores masculinos e femininos. […] Então, quando a gente junta todos
os casais que não conseguem engravidar, a gente vai encontrar alteração
do fator masculino em quase 60% dos casos. Então, essa história de que a
culpa é sempre da mulher é um mito (GALLO, 2017).

Apesar de o cálculo não fechar, existe uma tendência, já há algum tempo, na


fala de especialistas em RA em uniformizar os dados para criar o chamado
“casal infértil”. A maioria dos artigos que compõem o banco de dados
utilizados aqui citam que a infertilidade atinge 10% da população mundial e
é dividida pelos fatores femininos (40%), masculinos (30%) e contribuição
de ambos os fatores (30%). Quando iniciei minha trajetória de pesquisa no
campo da RA, ouvia com frequência que 30% homem, 30% mulher, 30%
ambos, 10% “causa não identificada”, variando para 40% para cada um do
casal e 20% para causas “desconhecidas” – dados também encontrados em
campo por outros pesquisadores (ALLEBRANDT, 2008; NASCIMENTO,
2009; TAMANINI, 2004). Em uma pesquisa realizada entre 2006 e 2007, a
análise dos prontuários de um serviço público de RA demonstrou que,
apesar dessa ênfase, os casos atendidos nesse serviço atendiam a um perfil
bastante diferente (ALLEBRANDT; MACEDO, 2007).
Quando perguntado especificamente acerca da influência da idade do
homem, o especialista inicia sua explicação incluindo as mulheres:
A gente sabe que essa inferência da idade é muito mais significativa na
mulher do que no homem, porque a mulher já nasce com o número de
óvulos prontos e, ao longo da vida, ela vai consumindo esses óvulos.
Então, quanto mais velha a mulher, menor a qualidade e quantidade de
óvulos. Isso começa a cair depois dos 25 anos, se acentua depois dos 35
anos e despenca depois dos 40 anos. Se acreditava que isso, no homem,
não acontecia […] A gente já sabe há algum tempo que a idade vai
interferir, mas esse estudo recente da Dra. Dodge13 conseguiu estratificar
isso mostrando que, a partir dos 35 anos, a qualidade do espermatozoide
já está diminuindo. […] Depois dos 35 anos a quantidade e qualidade do
material masculino também piora bastante e vai se acentuar muito a
partir dos 50 anos. Mas como eu falei, no homem isso é menor porque o
homem produz milhões de espermatozoides todos os dias. (GALLO,
2017).

Essa fala remete diretamente à fala do primeiro especialista que ouvi no


rádio, tranquilizando os ouvintes ao dizer que era preciso apenas um
espermatozoide. Para Gallo (2017), a quantidade de espermatozoides
constantemente produzidos assegura aos homens um menor risco de ter
sua fertilidade afetada. Portanto, o título da reportagem, afirmando que a
idade do homem também influenciava na reprodução, parece não ser
preocupante já que o número de espermatozoides produzidos, ainda que
seja menor e com menor qualidade, é capaz de produzir gestações. Note-se
também o modo como a comparação com as mulheres é realizada. Segundo
ele, para as mulheres a decadência de seu material reprodutivo é evidente a
partir dos 25 anos.
Essa comparação entre o potencial reprodutivo entre homens e mulheres
foi trabalhada magistralmente por Emily Martin em seu célebre artigo The
Egg and the Sperm: How Science Has Constructed a Romance Based on
Stereotypical Male – Female Roles14 (MARTIN, 1991b). Nesse texto a autora
analisa materiais didáticos voltados para a formação de profissionais da
saúde, destacando como há um entusiasmo pela espermogênese e uma
depreciação de seu análogo feminino – a menstruação15 ou ovulação.
Constatando que a ovulação não desperta a mesma empolgação, Martin
afirma que
[…] As descrições nos livros textos enfatizam que os folículos ovarianos que
contêm o gameta feminino já estão presentes no nascimento. Longe de
serem produzidos, como são os espermas, eles meramente aguardam,
degenerando lentamente e envelhecendo como um estoque: ‘No
nascimento, os ovários humanos normais contêm um número estimado de
um milhão de folículos (cada um), e nenhum novo folículo aparece após o
nascimento. Assim, em contraste acentuado com o macho, a fêmea recém-
nascida já tem todas as suas células germinativas. Apenas umas poucas,
talvez 400, estão destinadas a atingir plena maturidade, durante sua vida
produtiva ativa. Todas as outras se degeneram em algum ponto durante seu
desenvolvimento, de tal forma que poucas, se alguma, permanecem ao
tempo em que ela atinge a menopausa numa idade de aproximadamente 50
anos’. Note-se o ‘contraste acentuado’ que esta descrição estabelece entre
macho e fêmea: o macho, que produz continuamente células germinativas
novas, e a fêmea, que estocou ao nascer células germinativas e se depara
com a sua degeneração (MARTIN, 1991b)16.
Ao compararmos o material analisado por Martin (1991b) – textos voltados
para a formação de profissionais de saúde, no início dos anos 90 – lado a
lado com a fala do especialista, em 2017, somos impactados pela
semelhança no modo como é construída a relação entre a ovulação e a
espermogênese. Ao que tudo indica, nada mudou. Mas quais seriam as
mudanças? Afinal, as mulheres continuam nascendo com seus óvulos! Uma
das perguntas de Martin (1991b) é como a produção excedente de
espermatozoides nos homens nunca é vista como um desperdício. A
entrevista continua com uma explicação que permite entender o porquê do
número tão elevado de espermatozoides para a reprodução é importante.
Especialista: A fertilização não é uma coisa única. Não chega um
espermatozoide e entra no óvulo. É necessário que milhões de
espermatozoides cheguem às trompas, se grudem na membrana do
óvulo, estimulem a membrana do óvulo, permitindo que um
espermatozoide entre. Então é um trabalho de equipe, por isso você
precisa de tantos espermatozoides […].
Radialista: Então é só um que vai penetrar ali, mas precisa de vários
(rindo).
Especialista: É um trabalho em equipe (…) Não é o espermatozoide mais
bonito, o mais educado ou o que chegou com uma florzinha na mão. É um
trabalho em equipe (GALLO, 2017).

Mais uma vez, na análise de Martin metáforas românticas também fazem


parte da descrição do processo de fecundação e que chegam a retratar o
óvulo como “uma noiva adormecida aguardando o beijo mágico de seu
companheiro” (MARTIN, 1991b), ou na ironia do especialista, um
espermatozoide com a “florzinha na mão”.
Uma das principais críticas feitas por Martin (1991b) é como papéis
estereotipados de gênero, hegemônicos quando escrevia sua análise,
acabam por influenciar o trabalho de cientistas. Sua preocupação nesse
artigo foi entender como o conteúdo cultural em descrições científicas
muda, ou se ele está solidamente entrelaçado a essas descrições. Fica
evidente nessas falas a naturalização de papéis estereotipados de gênero.
Essa naturalização ocorre quando há uma ênfase, empolgação e entusiasmo
em falar da produtividade de sêmen versus a decadência do corpo feminino
que parece já estar em degradação desde seu nascimento.
Em princípio, os paralelos encontrados na fala de Gallo (2017) e no material
analisado por Martin (1991b) poderiam levar a considerar a rigidez do
conteúdo cultural. Ainda em 1991, Martin (1991b) pôde verificar uma
importante mudança no entendimento dos papéis do óvulo e do
espermatozoide na reprodução. Na época, o óvulo ganhava um papel central
na reprodução, deixando de ser grande e passivo para exercer um papel de
atração e seleção do espermatozoide. No entanto, todas essas constatações
continuaram a ser descritas de modo que o espermatozoide continua sendo
central ou, nos casos em que o óvulo é descrito como protagonista, sua
agressividade é destacada.
É importante destacar que na fala de Gallo (2017) há uma justificativa para
a quantidade de espermatozoides, indo de encontro à fala do primeiro
especialista ouvido na rádio dizendo que “um só bastava”. Na fala de Gallo,
que evoca o trabalho em equipe, há uma valorização do quantitativo de
espermatozoides. No entanto, a redução desse quantitativo ainda não
parece preocupar.
Seria a influência da ICSI? técnica que consegue captar a potencialidade e o
heroísmo da produção de gametas masculinos em uma abordagem
pragmática. Essa técnica valoriza a necessidade de apenas um
espermatozoide. E quais novas técnicas têm sido voltadas para o problema
da infertilidade masculina? ou a produção de espermatozoides é suficiente?
Serão examinadas agora algumas das implicações da reprodução assistida e
o tratamento diferenciado dos corpos nesse processo.

Corpos e obstáculos

A complexidade da reprodução humana é intensamente enfatizada em


inúmeros artigos. É quase uma cruzada! A maior parte dos obstáculos da
reprodução continuam sendo encontrados no corpo da mulher.
É importante destacar que para a realização da ICSI, que supostamente
resolve, desde 1992, os problemas de fertilidade masculina, as mulheres
submetem seus corpos a tratamentos e técnicas que procuram torná-los
mais produtivos. No caso das mulheres, apenas um óvulo mensalmente
maturado e liberado nunca é suficiente. Ainda que seja apenas isso o
necessário. Mas por que isso não basta?
O desenvolvimento da embriologia e da estimulação faz parte de um longo
processo de experimentação em mamíferos e sua transposição técnica para
a reprodução humana acabou sendo o passo lógico (FRANKLIN, 2013). Foi a
transição do local de tratamento e intervenção que permitiu que novas
possibilidades e agentes fizessem parte dessa esfera da reprodução. Com a
passagem para fora do corpo é possível que mulheres doem óvulos, ou os
homens doem esperma; é possível que mulheres gestem bebês para outrem;
ou ainda, analisar geneticamente os embriões produzidos e criopreservar os
excedentes17. A possibilidade de doar óvulos e gestar para outrem criam na
RA o que Cooper & Waldby (2014) chamam de “clinical labor”. Trata-se do
trabalho, em contexto clínico, de doadores de tecidos como os gametas que
questiona as intersecções entre o desenvolvimento da ciência e direitos
desses sujeitos numa “bioeconomia global”.
A indústria farmacêutica demanda um número cada vez maior de indivíduos
para testes a fim de alcançar os imperativos da inovação, o mercado da
reprodução assistida continua a se expandir enquanto um número cada vez
maior de famílias buscam serviços de reprodução assistida de terceiros –
vendedores de gametas e agenciadores de gestações substitutas – e os
setores da produção de células-tronco buscam tecidos. A indústria das
ciências da vida precisam de uma extensa e, ao mesmo tempo, pouco
reconhecida força de trabalho, cujo serviço consiste na experiência visceral
da experimentação de fármacos, transformações hormonais e
procedimentos biomédicos mais ou menos invasivos como ejaculação,
retirada de tecidos e gestação. […] Com a expansão das tecnologias de
reprodução assistida, a venda de tecidos como óvulos e espermatozoides, ou
serviços reprodutivos como a gestação de substituição também emergiram
em um florescente mercado de trabalho, que é altamente estratificado no
que diz respeito à classe e raça. Nós chamamos essa forma de trabalho como
trabalho clínico (COOPER; WALDBY, 2014: 7; tradução da autora).
Trata-se de um processo de reconhecimento nas ciências sociais de que há
múltiplos modos pelos quais processos biotécnicos centrados nas políticas
da vida estão envolvidos em redes de transações comerciais e de
acumulação de capital. Nesse contexto, a produção de óvulos foi o aspecto
da RA que mais se investiu de uma lógica “bioeconômica”. Dito de outro
modo, com o objetivo de maximizar a “eficiência” do tratamento tornou-se
necessário produzir mais embriões por ciclo. Para tanto, fez-se necessário
produzir mais óvulos. É a estimulação ovariana que permite a maximização
do capital biológico, pois com a produção de mais óvulos é possível produzir
mais embriões e aumentar as chances de sucesso na transferência de
embriões a cada ciclo. Nesse sentido, antes do embrião, a substância que
está sendo produzida e almejada com maior capital ou “biovalor” são os
óvulos.
No entanto, organizações como We are egg donors18 demonstram o quanto
esse biovalor está situado apenas nas células e há uma desvalorização e
objetificação das doadoras como apenas fornecedoras de óvulos. Dentre as
várias demandas dessa organização, há a necessidade de acompanhamento
contínuo das doadoras e discute-se a importância de uma legislação que
proteja-as como outros trabalhadores, em casos de danos permanentes a
sua saúde e capacidade reprodutiva.

Para a realização da ICSI é “preciso” realizar a estimulação ovariana. Ainda


que se possa estimar que os homens sejam responsáveis por até 60% dos
casos de infertilidade, a centralidade de intervenções (como a estimulação
ovariana) no corpo da mulher continua (re)produzindo o homem na RA
como um “ejaculador”, como critica Charis Thompson (2005). Por outro
lado, há um esforço de pesquisadores como Pedro Nascimento em pensar
corpos masculinos medicalizados. Nascimento (2009) destaca como há um
estranhamento entre seus interlocutores que toda a investigação das causas
da ausência de filhos seja realizada primeiro no corpo da mulher.
A constatação do fator masculino permite pensar e oferecer outros
caminhos para reprodução e estabelecimento de relações de parentesco? Se
há um esforço na crítica feminista em desnaturalizar os papéis que ocupam
mulheres, esse mesmo esforço não reverbera, segundo Guttman (2013),
para os homens, que ocupam categorias uniformes (função do homem
ejacular). Segundo esse autor, é preciso ir além da percepção de gênero
como somente centrada na oposição homem/mulher, público/privado.
Ao retirar o lugar do homem na RA de uma perspectiva essencialista que
aplica as máximas como as de que “apenas um” esperma basta, ou de
homens não são “bons pacientes” adentra-se nos aspectos políticos e
tecnocientíficos que são agenciados a partir de relações de gênero que
regem tais práticas. Essas relações marcam como essas tecnologias são
produzidas, protocolos criados e soluções pensadas para a questão da
infertilidade tomando como base entendimentos sobre reprodução e os
papéis que cada sujeito tem nesse percurso reprodutivo.
Ao colocar a criação da ICSI, em 1992, como marco para o desenvolvimento
de técnicas para a infertilidade masculina, é realizada uma pesquisa em
portais de referência para ciências da saúde levando em conta a sua
repetição e fator de impacto. Essa etapa da pesquisa ainda está em
andamento e busca-se, com isso, mapear os investimentos que foram
dispensados ao longo desses 25 anos.
Para além de uma análise quantitativa que atente para o parco número de
produções voltadas para problematização da infertilidade masculina,
acreditamos que a análise desses artigos poderá iluminar as dinâmicas que
produzem não apenas o entendimento sobre causas da infertilidade, mas
que tomam o corpo feminino como local de intervenção per se
(NASCIMENTO, 2011; ROHDEN, 2001; TAMANINI, 2010).
Tabela 1 – Ocorrências de
palavras-chave em português e inglês:

Infertilidade Infertilidade masculina


Palavras-chave em português 163 16
Palavras-chave em inglês 235 13

Vê-se na tabela abaixo o resultado que um levantamento de artigos no


portal SciELO mostra. Tomo esse portal apenas como um indicador da
produção eminentemente brasileira nessa área.
Para além da obviedade da diferença de ênfase na infertilidade e não nas
questões masculinas, é preciso examinar cada um desses artigos. A partir da
codificação desses artigos com a ajuda do programa Nvivo de análise de
dados qualitativos. Dos 235 artigos resultantes da busca, apenas 64 citam
especificamente pesquisas sobre infertilidade humana. Dentre esses, 39 dão
ênfase para infertilidade masculina, mas curiosamente não utilizam como
palavras-chave “infertilidade masculina”, não aparecendo no resultado
direto para essa questão.
Veja abaixo quais são os temas que têm provocado a reflexão e pesquisas a
partir da questão da infertilidade masculina.
Tabela 2 – Infertilidade masculina (n.39 artigos)
Tema Incidência Distribuição em subtemas
(9) Análise seminal;
(3) Novos parâmetros seminais;
(2) Coleta e abstinência;
(1) Resultado e relação com aborto;
(1) Resultado e relação com taxas de sucesso na
Exames clínicos 11
IIU;
(1) Necessidade do teste;
(1) Características do sêmen de adolescentes
saudáveis;
(2) Exames utilizando hormônios;
(3) Câncer;
(2) Distúrbios hormonais;
Relatos de casos clínicos 10 (2) Doenças cromossômicas ou genéticas;
(2) Obstruções nos testículos;
(1) Outros;
(1) Preservação da fertilidade de pré-púberes;
Relógio biológico 6 (4) Idade e qualidade seminal;
(1) Reposição hormonal;
(2) Efeitos de terapias médicas;
(1) Religião;
Fatores comportamentais e
6 (1) Rxposição a efeitos ambientais;
ambientais
(1) Comportamento – álcool e cigarro;
(1) Índices antropométricos;
(1) Preservação da fertilidade;
(2) FIV;
Tratamentos para infertilidade 6 (2) ICSI;
(2) Cirurgia varicocele;
(2) Cirurgia reversão vasectomia;
(2) Estresse do tratamento;
Saúde mental 2
(2) Saúde mental do Homem infértil.
Vasectomia 2 (2) Fertilidade pós vasectomia;
(1) Características do sêmen;
Varicocele 2
(2) Cirurgia;

Observando a Tabela 2 vemos que os temas que receberam maior atenção


foram os exames clínicos e os relatos de casos clínicos. Os primeiros foram
impulsionados por mudanças na análise seminal, a partir do Manual para
Análise Seminal divulgado em 2010 pela Organização Mundial da Saúde que
introduz novos valores para a normalidade (COOPER et al., 2009).

Podemos notar também que há uma pequena ênfase nos tratamentos de


infertilidade. Nos subtemas há ainda a ênfase em técnicas bastante
conhecidas e desenvolvidas há, pelo menos, duas décadas como a
criopreservação, FIV e ICSI. Esse dado parece reforçar a hipótese de que
após a criação da ICSI não houve uma grande ênfase em protocolos e
tratamentos voltados para a infertilidade masculina.
Em meio aos artigos que evocam a infertilidade masculina, um desses textos
remeteu diretamente ao gatilho reflexivo desta pesquisa. O título do texto é
Overcoming male factor infertility with intracytoplasmic sperm injection
(BORGES et al., 2017). Em princípio, o título parecia revisitar 1992, quando
surgiu a ICSI. No entanto, ao que tudo indica, a ICSI mais uma vez é
apresentada como solução para a infertilidade masculina. Aqui o resumo do
artigo.
Figura 1: Resumo do artigo Overcoming male factor infertility
with intracytoplasmic sperm injection (BORGES et al., 2017)

Fonte: BORGES et al. (2017).

O artigo foca a comparação entre fator masculino e fator tubário. Como fugir
das dicotomias e oposições simplistas entre homens e mulheres? Quais são
os critérios que justificam a comparação entre o fator tubário e a
infertilidade masculina? Para além dessa escolha aleatória, é preciso atentar
para o fato de que o método divide os resultados a partir da idade materna.
Não é citada idade do homem. No corpo do artigo lê-se uma referência à
idade dos homens, mas, apesar de ser mais elevada que a média etária das
mulheres, não é levada em consideração. É preciso notar que, apesar de
estudos apontarem que os homens e suas células também envelhecem, esse
importante aspecto é negligenciado em um artigo que se propõe a pautar a
infertilidade masculina. De modo semelhante ao que Gallo (2017) anuncia
na reportagem veiculada na CBN, discutida anteriormente, é dito que há
evidências do impacto da idade do homem para a fertilidade, mas esse
impacto não é o mesmo que o das mulheres e pode ainda ser
desconsiderado já que a espermogênese produz muitos espermatozoides.
Há também uma divisão sexual do trabalho reprodutivo que parece seguir
uma série de pressupostos como o de que a idade da mulher é mais
relevante para avaliar a infertilidade masculina do que a do homem. Essa
lógica é conduzida para outras esferas como a doação de gametas no Brasil.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) contava um uma resolução de 1992
para reger os assuntos de reprodução assistida. A resolução cita o
anonimato da doação e está centrada na mulher receptora e não na doadora.
IV - DOAÇÃO DE GAMETAS OU EMBRIÕES
1 - A doação nunca terá caráter lucrativo ou comercial.
2 - Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-
versa.
3 - Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos
doadores de gametas e embriões, bem como dos receptores. Em situações
especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem
ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a
identidade civil do doador.
4 - As clínicas, centros ou serviços que empregam a doação devem
manter, de forma permanente, um registro de dados clínicos de caráter
geral, características fenotípicas e uma amostra de material celular dos
doadores.
5 - Na região de localização da unidade, o registro dos nascimentos
evitará que um(a) doador(a) venha a produzir mais do que uma gestação
de criança de sexo diferente numa área de um milhão de habitantes.
6 - A escolha dos doadores é de responsabilidade da unidade. Dentro do
possível deverá garantir que o doador tenha a maior semelhança
fenotípica e imunológica e a máxima possibilidade de compatibilidade
com a receptora.
7 - Não será permitido ao médico responsável pelas clínicas, unidades ou
serviços, nem aos integrantes da equipe multidisciplinar que nelas
trabalham participar como doador nos programas de RA.

Já Resolução 2.013/2013, que orienta a doação de gametas, acrescenta


alguns detalhes:
Art. IV
1- A doação não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.
2- Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-
versa.
3- A idade limite para a doação de gametas é de 35 anos para a mulher e
de 50 anos para o homem.
4- Será mantido, obrigatoriamente, o sigilo sobre a identidade dos
doadores de gametas e embriões, bem como dos receptores. Em situações
especiais, informações sobre os doadores, por motivação médica, podem
ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a
identidade civil do(a) doador(a).
5- As clínicas, centros ou serviços onde é feita a doação devem manter, de
forma permanente, um registro com dados clínicos de caráter geral,
características fenotípicas e uma amostra de material celular dos
doadores, de acordo com legislação vigente.
6- Na região de localização da unidade, o registro dos nascimentos evitará
que um(a) doador(a) tenha produzido mais de duas gestações de crianças
de sexos diferentes em uma área de um milhão de habitantes.
7- A escolha dos doadores é de responsabilidade do médico assistente.
Dentro do possível, deverá garantir que o(a) doador(a) tenha a maior
semelhança fenotípica e a máxima possibilidade de compatibilidade com
a receptora.
8- Não será permitido aos médicos, funcionários e demais integrantes da
equipe multidisciplinar das clínicas, unidades ou serviços, participarem
como doadores nos programas de RA.
9- É permitida a doação voluntária de gametas masculinos, bem como a
situação identificada como doação compartilhada de oócitos em RA, em
que doadora e receptora, participando como portadoras de problemas de
reprodução, compartilham tanto do material biológico quanto dos custos
financeiros que envolvem o procedimento de RA. A doadora tem
preferência sobre o material biológico que será produzido.
Há aqui dois aspectos importantes para situar os agenciamentos de gênero
da doação de gametas – mulheres somente até os 35 anos e homens até os
50 anos. Homens podem doar sem conexão com a RA e mulheres precisam
estar na arena da infertilidade. A doação de gametas femininos é
compartilhada.
Chama atenção em toda a narrativa que tentei retomar o quanto certas
concepções sobre a funcionalidade e execução de papéis de gênero estão
arraigadas a uma visão hegemônica de representações sobre funções e
características de homens e mulheres. Esses aspectos estão presentes na
construção da narrativa de que apenas um espermatozoide basta, de que os
homens não aceitam tratamento, de que há uma solução para a infertilidade
dos homens e que o grande obstáculo e inimigo é a idade da mulher.
Atenta-se, aqui, para o fato de que na instrumentalização da RA estão-se
normalizando papéis dos corpos femininos e masculinos (FOUCAULT,
2007). Na incorporação da tecnologia nos corpos, há uma ambivalência que
acompanha sua normalização – construindo o corpo da mulher como chave
de resposta e obstáculo. Essa ambivalência parece estar presente também
nos fins dessa tecnologia. Produzir pais (Making parents) e dar a luz a mães
(birthing mothers), conforme os títulos de trabalhos de Thompson (2005) e
Teman (2010), como exemplo. O parentesco teria o papel de traduzir a
tecnologia.
Alguns autores se preocupam em pensar se o parentesco estaria sendo
biologizado no uso dessas tecnologias. Não há mais a posição privilegiada de
Emily Martin (1991b) de dizer que ao evidenciar as metáforas retiraria seu
poder de naturalizar convenções de gênero. Como autora e Pesquisadora
acredito que aprofundar os agenciamentos de gênero nas práticas
científicas, especialmente daquelas que falam sobre parentesco, como a RA,
pode nos ajudar a compreender os interstícios de códigos e substâncias em
que relações biológicas e parentesco são problematizados.
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11 Essa técnica, desenvolvida a partir da Fertilização in vitro (FIV), introduziu também uma interferência
da RA nos processos “naturais” da reprodução. Com a FIV, óvulo e espermatozoides eram colocados em
um meio de cultura e naturalmente os óvulos eram fertilizados. Com a ICSI, os embriologistas
selecionam um espermatozoide e o injetam dentro do óvulo, induzindo a fecundação. Retira-se desse
processo a “seleção natural”
12 Gallo, 2017.
13 O especialista está se referindo ao trabalho apresentado no Congresso Anual da European Society for
Human Reproduction and Embriology, que ocorreu em 2017 em Genebra. O trabalho de L. Dodge, A.
Penzias e M. Hacker, intitulado “The impact of male partner age on cumulative incidence of live birth
following in vitro fertilization” foi apresentado na sessão 49 e seu resumo pode ser consultado no link:
<https://www.eshre.eu/Annual-Meeting/Geneva-2017/Searchable.aspx#!abstractdetails/0000492970>.
Acesso em 18/06/2018.
14 A tradução do texto está disponível em
<http://www.necso.ufrj.br/Trads/O%20ovo%20e%20o%20esperma.htm>. Acesso em 18/06/2018. Todos
os trechos traduzidos foram retirados dessa tradução.
15 A menstruação é um tema tabu e suas potencialidades e perigos foram amplamente explorados por
Mânica e Mânica e Rios (MANICA, 2011, 2016; MANICA; RIOS, 2016).
16 No texto original lê-se: “Yet ovulation does not merit enthusiasm in these texts either. Textbook
descriptions stress that all of the ovarian follicles containing ova are already present at birth. Far from
being produced, as sperm are, they merely sit on the shelf, slowly degenerating and aging like
overstocked inventory: ‘At birth, normal human ovaries contain an estimated one million follicles [each],
and no new ones appear after birth. Thus, in marked contrast to the male, the newborn female already has
all the germ cells she will ever have. Only a few, perhaps 400, are destined to reach full maturity during
her active productive life. All the others degenerate at some point in their development so that few, if
any, remain by the time she reaches menopause at approximately 50 years of age.’ Note the ‘marked
contrast’ that this description sets up between male and female: the male, who continuously produces
fresh germ cells, and the female, who has stockpiled germ cells by birth and is faced with their
degeneration.”
17 Em outra ocasião desenvolvi as transformações dessa passagem de dentro para fora do corpo a partir da
reflexão de Rose (2007) acerca da molecularização/molarização da ciência e sua interface com a saúde.
18 Organização sem fins lucrativos, criada por doadoras de óvulos em diferentes países, com sede nos EUA
e Canadá. Para mais informações ver: <http://www.weareeggdonors.com/blog>. Acesso em 18/06/2018.
Práticas Biomédicas e
Novas Materializações de Gênero
e Sexualidade Feminina

Fabíola Rohden

Usando recursos biomédicos,


produzindo normas e realidades

N
o Brasil, assim como em muitos outros países, as concepções e
práticas vigentes atualmente em termos de perspectivas,
orientações e tratamentos de questões relativas à sexualidade
estão largamente ancoradas nos parâmetros da biomedicina e
na noção de disfunções sexuais19. O objetivo deste capítulo é
discutir que tipo de abordagem e de tratamento relativos à sexualidade
feminina são praticados no contexto do atendimento médico privado
oferecido em uma das grandes cidades do país20. Esse interesse é
decorrente de, pelo menos, duas percepções, relacionadas aqui a duas
intenções: a primeira delas de caráter empírico e a segunda, de cunho
teórico.
No primeiro caso, trata-se do reconhecimento, em função de pesquisas já
realizadas, de que também no Brasil assistimos, especialmente desde o final
do século XX, a um processo acentuado de medicalização e, mesmo,
farmaceuticalização da sexualidade. Entende-se por via desses conceitos
que aspectos até então não diretamente passíveis de intervenção médica
passam a ser concebidos e tratados por meio de concepções e recursos
terapêuticos advindos da biomedicina21. O caso da disfunção sexual
masculina, ou mais especificamente disfunção erétil, é definido como um
dos melhores exemplos do processo de criação de um diagnóstico em
função da existência de um novo fármaco destinado a seu tratamento. A
promoção, especialmente por parte de urologistas vinculados à indústria
farmacêutica, dessa disfunção como gradual, temporária e passível de
tratamento, ao lado da valorização da sexualidade ou da potência sexual
associada a juventude, saúde e bem-estar, foi fundamental para o sucesso de
medicamentos como o Viagra e seus similares22.

No cenário atual, especialmente acompanhando a produção científica


especializada, os congressos e eventos médicos e, mesmo as notícias na
imprensa, percebe-se o constante interesse na possível criação do que seria
considerado o Pink Viagra. Trabalhos que levam em conta o mercado
farmacêutico (FISHMAN, 2004; MOYNIHAN; MINTZES, 2010) revelam que
são imensas as expectativas de lucro com um medicamento para mulheres
que oferecesse sucesso análogo ao do Viagra. O reconhecimento de que as
mulheres têm historicamente passado por um longo processo de relação
mais próxima com a medicina, especialmente por meio da ginecologia e da
obstetrícia, certamente entra no cálculo dessas expectativas. Contudo, o
grande desafio é o de definir o que seria “a” disfunção sexual feminina ou
enquadrar um escopo muito amplo e variado de problemas identificados
nas mulheres (como dor na relação sexual, falta de lubrificação ou ausência
de desejo) em uma única categoria (ROHDEN, 2013). As tentativas variam
desde a utilização do próprio Viagra até a recente aprovação nos Estados
Unidos, pela Federal Drug Administration (FDA), do Flibanserina, remédio da
família dos antidepressivos que, se tomado continuamente, poderia deixar
as mulheres mais relaxadas e dispostas sexualmente (FAUSTO-STERLING,
2015). Entretanto, um recurso terapêutico recorrentemente alvo de
polêmicas tem-se feito cada vez mais presente. Trata-se da testosterona,
comumente definida como hormônio masculino por excelência23 e cada vez
mais apresentada como o “hormônio do desejo”.
Em artigos e eventos médicos recentes, claramente se nota a emergência da
testosterona como recurso privilegiado para tratar problemas relativos à
sexualidade feminina, especialmente de mulheres de mais idade, nas fases
em torno da menopausa. Essa percepção deu origem à intenção de
identificar se, e de que forma, estaria presente no âmbito dos consultórios
médicos e se, de fato, está sendo usada como recurso terapêutico por
mulheres24.
A segunda percepção que constitui o pano de fundo deste texto diz respeito
ao enquadramento teórico-metodológico e, portanto, político, como diriam
Haraway (1988) e várias outras autoras desta investigação. Em sintonia
com uma série de trabalhos, tento incorporar as discussões advindas da
perspectiva feminista e dos estudos sociais da ciência e da tecnologia na
abordagem das práticas em torno da biomedicina e de seus diversos efeitos
na vida cotidiana das pessoas. No caso do uso de fármacos relacionados ao
desempenho sexual, por exemplo, não se trata apenas de insistir na crítica
mais geral à medicalização e farmacologização da sexualidade e na evidente
participação dos laboratórios farmacêuticos nesse fenômeno ou de ressaltar
os pressupostos de gênero, por sua vez associados aos imperativos do
consumo e do aprimoramento, por trás de tais processos.
Para além disso, acredito que é preciso investir na compreensão de como
essas novas possibilidades de engajamento com a sexualidade são
performadas na prática. Nesse sentido, é fundamental dar conta não
somente do que estaria no plano das concepções, mas incluir sexualidade
como diferentes materialidades dos corpos e das substâncias e também de
como sentimentos e sensações têm implicado certos tipos de engajamentos.
A referência aqui a sentimentos e sensações pretende, tentativamente,
incluir na reflexão o fato de que o uso da testosterona está sendo associado
e indicado para tratar problemas relacionados ao desejo sexual. E minha
sugestão é de que, nesse processo, certa materialização desse “sentimento”
está sendo operada.
A busca por atentar aos processos de materialização em curso encontra-se
apoiada na perspectiva do materialismo relacional, tal como apresentada
por J. Law e A. Mol25, que, em seus trabalhos, destacam a importância da
atenção às práticas e seus engajamentos na conformação de ontologias
múltiplas e instáveis. É preciso notar que não se trata meramente de um
privilégio da agência da matéria, como se percebe em algumas abordagens
do novo materialismo26, mas da ênfase conjunta nas materialidades
(ABRAHAMSSON et al., 2015). Esse caráter relacional obriga que se
considere a instabilidade da versão de realidade produzida, muito ao
contrário do que seria assumir uma abordagem ontológica essencialista.
Disso decorre, seguindo Mol, a formulação de questões relativas a como
valorizamos diferentes versões da realidade ou, ainda, com qual versão e,
para quem, se pode viver melhor ou pior (MOL, 2012: 381).
Trata-se, na verdade, de um caminho metodológico que pretende enfatizar
as normas embutidas nas práticas. A preocupação em ressaltar tanto a
relevância das ontologias quanto das normatividades leva Mol (2012) a
propor o terno “ontonormas”, cuja definição é propositalmente deixada em
aberto, visando inspirar novas análises de práticas particulares com as
quais a ciência está engajada na vida diária das pessoas. No caso aqui
tratado, a proposta é utilizar a noção de ontonormas para tentar entender as
práticas e normatividades que estão se concretizando com o novo
tratamento da sexualidade feminina via testosterona.

Investigando tratamentos médicos

Esta investigação pretendeu identificar as principais queixas e tratamentos


relativos aos problemas sexuais femininos que ocorrem em consultórios
médicos. A metodologia de pesquisa envolveu a procura de profissionais
das áreas de ginecologia, prioritariamente, e de endocrinologia e
gerontologia, apontados por se dedicarem ao tratamento de problemas
sexuais27. O foco, portanto, foi nos atendimentos envolvendo mulheres,
embora alguns profissionais entrevistados também atendessem homens. O
grupo de entrevistados(as), composto por 12 especialistas, se caracteriza
por certo reconhecimento entre os próprios pares e notoriedade no campo,
garantida, muitas vezes, em função da vinculação com universidades,
hospitais e outras instituições de ensino, além da participação nas
associações médicas regionais e nacionais, ocupando inclusive postos de
direção. Boa parte deles(as) é frequentemente requisitado(a) para
participar de programas de televisão e rádio e para conceder entrevistas à
imprensa escrita e à internet. Vários(as) mantêm sites e páginas na internet
e nas redes sociais, onde divulgam artigos sobre saúde e assuntos gerais,
além de seus próprios livros. A maior parte atende pacientes em serviços
públicos importantes e consultórios privados, estes últimos localizados em
bairros nobres de cidades importantes. A formação em medicina e nas áreas
de especialização ocorreu em instituições de ensino renomadas, em que a
maioria realizou cursos de formação em sexualidade.
Um eixo central nas conversas foi conduzido em função da pergunta sobre
como as questões relativas à sexualidade surgiam nas consultas. As
respostas apontaram para uma percepção comum de que a principal
“queixa” diz respeito à falta de desejo ou libido, especialmente nas fases
próximas à menopausa. Em função disso, este tema é o alvo principal deste
capítulo. Houve também a referência a dificuldades na relação sexual ou
falta de orgasmo entre mulheres mais jovens. Porém, nesses casos, os(as)
entrevistados(as) consideram que é um problema muito mais fácil de tratar,
pois requer apenas a transmissão de informações sobre o próprio corpo e
sobre práticas sexuais.
De maneira geral, entre os(as) entrevistados(as) há uma compreensão de
que a sexualidade estaria associada a “múltiplos fatores”, termo usado para
fazer referência a uma justaposição entre aspectos orgânicos, psíquicos e
culturais. Trata-se de uma combinação de argumentos que articulam, de
diversas formas, razões fisiológicas e de outras ordens que determinariam
essas diferenças. Porém, o que se torna mais interessante ao consideramos
os seus depoimentos diz respeito às (onto)normas de gênero e também
àquelas relativas à contenção do envelhecimento e à valorização do
desempenho físico, o que está sendo produzido na prática de suas
performances clínicas.

Prescrevendo em torno do desejo feminino

As citações presentes neste trecho do capítulo foram retiradas dos arquivos


de entrevistas com os profissionais de saúde. Os nomes foram alterados
para preservar a identidade dos(as) entrevistados(as).
Em termos mais abrangentes, foi recorrente a percepção de que o desejo
feminino está associado à presença ou à ausência de maior ou menor
quantidade do hormônio testosterona. Nota-se, assim, não somente uma
acentuada dependência do desejo de fatores orgânicos como uma marcada
diferenciação em termos de gênero. Esse tom geral é exemplarmente
ilustrado pelos depoimentos do ginecologista Ivo, que tem uma longa
trajetória acadêmica e de atendimento e tratamento da sexualidade
feminina. Ao enfatizar as imensas diferenças entre a sexualidade de homens
e mulheres, explicou o papel fundamental da testosterona:
A testosterona é o hormônio do sexo. E ela é o hormônio primordial dos
machos. Então, os machos estão sempre aptos a transar desde que eles
tenham testículo. Então, a variabilidade de produção de testosterona dos
machos no dia a dia é muito pequena (…). As fêmeas têm produção de
testosterona, as mamíferas, sempre quando estão no cio (…). Todas as
fêmeas aceitam o macho quando estão férteis, porque sexo foi feito pra
reprodução, não foi feito pra outra coisa. Então, as fêmeas, quando estão
com alto nível de testosterona, estão com muita vontade de ter relação
(…). Quem determina é a testosterona.

A sexualidade, portanto, para Ivo é determinada por razões reprodutivas


materializadas nas diferentes fases da vida de uma mulher e concretizadas
na presença ou ausência de hormônios, como a testosterona. Os hormônios
ocupam, aqui, papel central como causa dos problemas e, em caso de sua
“falta” ou “queda”, sua “reposição” é apresentada como recurso privilegiado:
Uma pessoa cujos ovários diminuíram a produção de hormônio, não é
com psicoterapia que tu vais resolver. Você tem que repor o que ela
perdeu. Assim como na visão, você precisa usar óculos, na audição você
precisa usar prótese. A grande maioria das pessoas que têm dificuldades
sexuais têm dificuldade hormonal. E eu corrijo a parte hormonal, e a
resposta é fantástica.

De acordo com o médico, a testosterona, sempre definida por ele como “o


hormônio masculino”, é apresentada como o melhor remédio para a falta de
desejo feminino, garantindo às mulheres não apenas “vontade de ter
relações sexuais”, como também “orgasmos muito bonitos, ótimos”. O
médico relata já ter indicado uma série de diferentes medicamentos à base
de testosterona em sua carreira, ressaltando apenas que é preciso ter
cuidado com as quantidades. Há a insistência de que as dosagens e
aplicações precisam ser bem menores do que as recomendadas para os
homens, o que se expressa no uso de muitos diminutivos:
[E] E o gel e o creme, como que se dá a prescrição?
É diária, um pouquinho, uma pitadinha, e passa na vulva e no clitóris,
[que] é onde tem receptores. E aí absorve… E, “ah, o clitóris pode ficar
grande”. Sim, fica sim, aumenta um pouquinho, era de 3-4 milímetros
agora tem 5-6 milímetros. Era (sic) 8 milímetros, agora é (sic) 10
milímetros. Quer dizer, fica maior, mais visível, mais nítido, mais
presente, mais entusiasmante, mais gostosinho.

Não se pode deixar de notar a referência ao aumento do clitóris, que vem


imediatamente acompanhado de ponderações relativas ao fato de ser
apenas “um pouquinho”. Nesse caso, esses poucos milímetros parecem não
importar muito, sendo diminuídos em termos do seu significado no
contexto de um corpo apresentado como indiscutivelmente feminino28. Um
processo de materialização que certamente está em profunda interação com
as normas que o ajudam a produzir-se.
No que se refere ainda aos efeitos da testosterona, o mesmo profissional
comentou que algumas mulheres têm medo de usá-la em função do risco de
ficarem masculinizadas. Contudo, segundo esse médico, isso seria muito
raro com o uso da testosterona injetável. Interessante que, neste ponto, a
testosterona injetável não está ocupando o lugar de uma dose perigosa. O
perigo a ser evitado seriam “outros remédios”, que ele não define, mas que,
em geral, são associados à testosterona, utilizados nas academias de
ginástica:
Essa testosterona injetável foi comparada com outros remédios que eles
chamam de “bomba”, esses remédios, que são utilizados em academia de
ginástica, que dão massa muscular. A testosterona aumenta a massa
muscular e a massa óssea, mas não grande coisa. E esses remédios que
são vendidos pras (sic) academias, na realidade aumentam a massa
muscular imensamente… mas em compensação eles bloqueiam o FSH
[Hormônio Folículo-Estimulante] e os indivíduos ficam com impotência
sexual. Eles perdem o interesse sexual. A testosterona injetável também
bloqueia o FSH, mas ela dá tesão. Então, o indivíduo tem vontade de ter
relação. E aí tem umas coisas… as pessoas [dizem] “ah, vai dá câncer”.
Sim, vai dar câncer, tudo dá câncer. A coisa que mais dá câncer é comida,
basta ver que a incidência de câncer em mulheres é muito maior nas
gordas do que nas magras.

É interessante que nesse trecho a testosterona é, em primeiro plano,


aproximada e logo em seguida separada e diferenciada de “outros
remédios”: as “bombas” usadas nas academias de ginástica. O tom ambíguo
mantém-se na referência ao fato de que as “bombas” bloqueariam o
Hormônio Folículo-Estimulante (FSH) e, por isso, os usuários perderiam o
interesse sexual, ao passo que a testosterona faria o mesmo com o FSH, mas
“dá tesão”. E essa linha de contemporizações ainda desqualifica as suspeitas
de que a testosterona poderia favorecer o risco de câncer, já que, conforme
o médico, “tudo dá câncer”.
Além disso, os efeitos da testosterona são apresentados como intensamente
benéficos, correspondendo a uma melhora marcante no bem-estar e na
qualidade de vida das mulheres. De acordo com o médico, as pacientes que
fazem uso deste recurso:
Trabalham melhor, se sentem muito mais aptas, dores nas costas
desaparecem, dormem bem, sonham; têm orgasmos com intensidade
muito maior, é mais rápido pra sentir o orgasmo e o orgasmo é mais
intenso, e pode repetir; passam a ficar alegres, não tomam mais
antidepressivo, não querem mais saber de antidepressivo, porque elas
estão rindo à toa.

No que se refere aos(às) outros(as) entrevistados(as), temos opiniões que


atestam muito mais como os tratamentos com testosterona são
controversos, embora isso não seja motivo para que a substância deixe de
ser prescrita. O que interessa aqui é entender quais são os argumentos
apresentados como alvo de polêmica e descobrir de que forma esses(as)
profissionais gerenciam suas escolhas práticas em face desses argumentos.
Além disso, pretendo chamar atenção para as diversas formas (incluindo a
“constatação” de efeitos desejados e indesejados) pelas quais a relação entre
desejo e testosterona vai se consolidando no sentido da criação de
ontonormas particulares.
Para a ginecologista Talita, por exemplo, é preciso ter uma perspectiva mais
ampla acerca da sexualidade, para não cair em uma visão mecanicista de
uso dos hormônios, embora esta seja a posição comum nos congressos
médicos:
O médico mais mecanicista não vai raciocinar de uma forma mais ampla.
Ele vai usar o hormônio, porque ele não vai considerar as questões
culturais, antropológicas e sociais. Se tu vais em congressos é isso que tu
vais ver: resolver os problemas com hormônios.

Quando perguntada sobre como havia acessado essas informações sobre


testosterona, Talita relatou:
Tem colegas que defendem um monte a utilização. Os congressos de
ginecologia agora estavam falando bastante sobre isso. Como eles são
apenas ginecologistas, eles falam só disso. E quando tu tens esse
conhecimento em terapia sexual tu tendes a ter uma gama muito maior
de recursos para esse tipo de tratamento do que dar um remédio. O
remédio é um paliativo, um complemento, é uma parte só, do resto (…).
Mas tudo tem a questão do bom senso. Tem um grupo de pacientes que
eu não posso privar elas (sic) da testosterona, sabendo que vai causar um
bom efeito no tratamento delas.

A médica afirma que percebe claramente, na sua prática clínica, que as


mulheres que tinham vida sexual ativa e se depararam com a falta de desejo
na menopausa respondem muito bem ao tratamento hormonal com
testosterona. Ao mesmo tempo, pondera que nem todas as mulheres sofrem
com a perda dos hormônios na menopausa. No entanto, para aquelas que
necessitam de reposição seria injusto não a prescrever, “uma forma muito
machista de intervir com a ciência”:
O estrogênio e a testosterona, a queda [deles] implica na menopausa. Em
algumas pacientes de forma dramática e em outras não. Só que têm (sic)
pacientes que, mesmo com a queda desses dois hormônios, ficam muito
bem na menopausa. Então quer dizer que não é só isso, não são só os
hormônios, mas também não dá para negar isso. Não posso negar o
tratamento de hormônios para a mulher. Seria uma forma muito
machista de intervir com a ciência.

No que se refere às próprias prescrições que faz, a ginecologista revela que


costuma usar “no máximo, o gel de testosterona e que esse não tem efeito
colateral” se utilizado por um período não mais longo do que seis meses.
Ressalta que esse uso é “bem pontual”, “bem raro” em casos de pacientes
que sentiram a diminuição do desejo “naqueles um ou dois aninhos antes da
menopausa”. Segundo ela, em geral, há uma melhora de 50% a 70% entre as
mulheres que usam o medicamento. Salienta ainda que, se a testosterona
em gel tem efeito menor do que a injetável, é mais segura do ponto de vista
dos efeitos colaterais que poderiam provocar. Interessante ainda é a
expectativa demonstrada por ela de que a ciência caminha na direção de
dosagens mais adequadas:
Eu já vi colegas que usam injetável e tem sim uma resposta maior, bem
maior. [O uso do gel] é uma maneira de tu não te comprometer e ter um
efeito colateral. Uma maneira que não corre o risco de virilização,
hipertrofia. Legal era se achassem uma dosagem que não fosse tão alta ou
que se soubesse que não causaria tantos efeitos colaterais. A ciência
caminha para isso.

É possível perceber que Talita atesta claramente a potência da testosterona,


tanto por meio dos resultados benéficos que pode trazer ao desejo sexual,
quanto em função dos efeitos colaterais ou indesejados que pode produzir.
Indica, portanto, a presença de evidências que demonstrariam como esses
efeitos seriam diretamente materializados no corpo.
Para a ginecologista Katia, o tratamento dos problemas sexuais femininos é
bastante centrado no uso de hormônios. O estrogênio é empregado visando
melhorar a “atrofia da vulva” que provoca dor na relação sexual, enquanto a
testosterona é utilizada mais eventualmente nas questões relacionadas ao
desejo. É curioso que ela relatou que, algumas vezes, a indicação de
formulações em creme e gel para aplicação tópica na região genital possui
também a intenção de fazer que as mulheres “se toquem” e se conheçam
melhor, já que “masturbação e autoerotismo” são muito raros entre as
pacientes que estão na faixa dos 40 e 50 anos. Contudo, além desse efeito, ao
ser indagada sobre o papel dos hormônios, ela reafirmou que:
Eles têm um papel importante, principalmente no desejo. Então, a gente
sabe que nas pacientes com testosterona baixa e alteração de desejo, tem
indicação de usar testosterona, especialmente as pacientes pós-
menopausa.
Também acrescentou que há dificuldades para se conseguirem as dosagens
ideais ou mais adequadas para os tratamentos em mulheres:
A gente tem pouca testosterona disponível no Brasil: tem injetável, que
não é o ideal, não tem estudos com injetável, porque é uma alta dose; e
não tem nenhuma formação comercial pronta, de gel, de adesivo… agora
está pra chegar, mas não tem ainda uma em forma de gel, então a gente
tem que mandar formular. E quando você manda formular, aí você tem
algumas questões, você não sabe exatamente qual quantidade, quanto
que vai absorver daquilo tudo.
[E] E como é a prescrição? A dose…?
É receita controlada. A injetável é uma vez por mês, uma vez a cada 45
dias, mas é exceção, não se prescreve pra todas, até porque tem efeitos
colaterais, efeitos hepáticos, alguma questão em relação ao câncer de
mama… Enfim, não é a rotina prescrever, é a exceção. O [uso] tópico é em
receita controlada e a paciente volta a cada um mês, dois, e a gente vê se
tem necessidade de manter ou não. Porque o uso tópico tem absorção
sistêmica menor, então é mais tranquilo de prescrever.

Katia ainda ressalta que a testosterona injetável é usada, principalmente,


para mulheres na pós-menopausa que não teriam “outras morbidades”,
como ser hipertensa, diabética ou ter tido câncer de mama ou doença
hepática. E, no que se refere aos possíveis efeitos colaterais, contou que uma
paciente “relatou um pouco de aumento de clitóris” com uso de testosterona
injetável e outra “teve alteração leve da voz”. Segundo ela, desde cerca de
uns 5 anos não se nota mais esse tipo de efeitos em decorrência da
diminuição das doses. A única reclamação comum que persiste é o aumento
de pelos no corpo. Esse comentário revela como a médica já está há algum
tempo envolvida com esse tipo de tratamento, experimentando várias
dosagens e observando diferentes efeitos. Ela também afirmou que busca se
atualizar com a literatura científica pertinente e que, inclusive, já deu aulas
sobre reposição hormonal e testosterona. Quando foi diretamente indagada
acerca da existência de controvérsias relativas ao uso da testosterona, Katia
declarou:
Muita controvérsia, todas controvérsias possíveis [risos]. Quando tu vais
pra literatura, o que tem de estudo, basicamente, é em pacientes pós-
menopáusicas com testosterona baixa, e essas são as que têm indicação,
poderiam ter indicação de utilizar. Fora disso, muita controvérsia. E a
gente não tem em nenhuma testosterona, escrito na bula, que é pra
disfunção sexual feminina. Então essa é outra questão… Certamente eu
acho que nos próximos 5 ou 10 anos vai ter muita coisa saindo e talvez
mude um pouco essa ideia, mas certamente é muito controversa. Tanto é
que o ideal quando tu prescreves é que tu sempre discutas com as
pacientes o risco e o benefício. Essa prescrição, principalmente da
injetável, é considerada uma prescrição off label, ou seja, uma prescrição
que não está na bula do remédio.

Comparativamente às(aos) colegas, Tania é mais crítica aos usos dos


hormônios, evidenciando, durante toda a entrevista, a complexidade das
questões envolvendo a sexualidade. De acordo com essa ginecologista, é
necessário considerar os múltiplos fatores envolvidos, incluindo os
hormônios:
A gente tem a sexualidade feminina como um todo. Então tem o papel
biológico, onde entra a influência dos hormônios sexuais, dos esteroides,
que é o estrogênio, a progesterona e a testosterona, nossos androgênios
produzidos pelos ovários. E a gente tem a influência bioquímica, a
influência dos neurotransmissores a nível (sic) central, que é a dopamina,
a serotonina (…). Aí entra a outra coisa que é comportamental (…). Por
exemplo, você vê o efeito placebo das drogas. Então você vai dizer [para a
paciente]: “nós vamos usar uma droga pra melhorar”, pra gente já dar
uma mexida nisso. Então, às vezes, só isso já desbloqueia algumas coisas
e já faz que (sic) aumente o desejo. E existe toda a questão cultural: como
é que é a sexualidade pra essas pessoas, nesse local, as vivências
familiares, as histórias que cada um teve.

A médica é muito precavida ao dizer que “pouquíssimas vezes” receitou


testosterona e que este é um assunto que requer ainda muitos estudos.
Afirmou que faz revisões periódicas acerca da literatura científica sobre o
tema, assim como acompanha as discussões nos congressos de sua área e,
por meio dessas fontes, percebe as controvérsias envolvendo o uso dos
hormônios. Contudo, afirma que, com relação ao período da menopausa, os
estudos evidenciam ação importante da testosterona na melhora do desejo
sexual.
Tania complementa seu depoimento dizendo que não há ainda dosagens
adequadas para as mulheres e que é preciso muita atenção aos efeitos
colaterais, como aumento de pelos, engrossamento da voz e, mesmo, risco
de câncer. E faz questão de afirmar:
Então, o que é importante, eu queria passar a ideia, é que é uma área que
se está estudando muito e que a gente tem que ir com freiozinho puxado.
Então hoje, se eu gostaria de ter uma resposta mais rápida e objetiva pra
dar? Gostaria! Mas eu vejo que a gente tem que ver muito critério. As
pessoas não estão tendo muito critério. Então, todo mundo quer essa
resposta muito imediata.

O “exagero” no uso dos hormônios, novamente é atribuído à busca pelo


desempenho físico nas academias de ginástica. Segundo ela, suas pacientes
já relataram ter consumido suplementos à base de testosterona, visando à
melhora do desempenho físico e à busca por um corpo mais musculoso, o
que seria, para a médica, “uma distorção e uma necessidade de desempenho
exagerada”. Tania afirma ainda que é necessário ter precauções com o uso
de hormônios, já que podem estar em jogo distintos efeitos, nem sempre
bem identificados. Porém, acredita que, atualmente, se está aprendendo
muito sobre a testosterona e o desejo feminino. E finaliza a entrevista
dizendo: “Eu vejo um lugar para o uso da testosterona nessa questão de
desejo. Acho que ela melhora sim, mas numa dose adequada para a mulher”.
Mesmo considerando todas as ponderações, Tania termina por associar
desejo e testosterona, assim como as outras entrevistas já relatadas. E, mais
uma vez, reafirma a necessidade de que doses adequadas sejam viabilizadas
e possam ser empregadas para as mulheres. Percebe-se, assim, que a
testosterona materializa não apenas efeitos (considerados positivos ou não)
nos corpos das mulheres. Ela também permite a materialização de uma
expectativa de tratamento expressa pelos(as) médicos(as) que, por sua vez,
se traduz também em promessas do campo farmacológico.
O endocrinologista Marcelo, que se diferencia da maioria dos(as)
entrevistados(as), porque também atende pessoas trans,29 foi muito
criterioso ao tratar do papel dos hormônios, em especial da testosterona, na
sexualidade. Para ele, no que se refere especificamente a mulheres
cisgênero, apenas em situações muito particulares de deficiência
androgênica, “quando a mulher não produz nada de testosterona”, haveria a
indicação de reposição. Acrescentou que, com exceção desta última
condição, não considera ético fazer esse tratamento, embora, segundo ele,
tenha “muita gente fazendo”. Ao explicar sobre porque isso não seria ético,
ressaltou:
Não é ético porque traz algumas consequências… A endocrinologia busca
mimetizar dentro do possível a fisiologia. Isso não é fisiológico, usar
testosterona para uma mulher. Então não é promover saúde (…). Nós,
médicos, seguimos diretrizes médicas definidas por consensos, e isso não
é consenso de nada, pelo contrário.

Porém, quando estava falando acerca da reposição de testosterona na


menopausa, com fins de tratar a baixa libido, disse que era possível, já que
se tratava, nesse caso, de uma “dose ética”: “É que tem uma dose que é ética.
É bem menor que a dose que está se usando hoje nas academias, e [sendo
vendida através do] no facebook”. Para Marcelo, as doses usadas por
mulheres nas academias visando ao desempenho físico têm ainda o
inconveniente de serem ingeridas oralmente, por meio de comprimidos, e “a
testosterona oral faz mal”. Além disso, estão associadas ao aumento de
pelos, engrossamento da voz, oleosidade da pele e, mesmo, calvície. Efeitos
esses que não seriam sentidos pelas pacientes que fazem uso das pequenas
doses de testosterona, que Marcelo recomenda em alguns poucos casos.
Os trechos citados neste capítulo, embora com diferentes tonalidades e
ênfases, retratam a posição da maioria dos(as) entrevistados(as),
especialmente no que se refere à atribuição de uma grande importância à
testosterona, no que diz respeito à presença e ausência do desejo feminino.
Além disso, a potência desse hormônio também foi fortemente realçada por
meio da referência aos seus efeitos indesejáveis, no caso das pacientes
desses médicos. Aumento de pelos, engrossamento da voz e crescimento do
clitóris foram sempre referidos como adversidades a serem manejadas com
cuidado no decurso dos tratamentos.

Materializando o desejo feminino

O que se conclui inicialmente, por meio da análise dos depoimentos


desses(as) profissionais acerca dos tratamentos que empregam para os
“problemas” associados à sexualidade feminina em seus consultórios, é que
há um evidente privilégio à centralidade dos hormônios. Em especial a
testosterona aparece como fonte e solução das dificuldades percebidas.
A constatação dessa recorrência entre os(as) médicos(as) entrevistados(as)
leva à reflexão sobre as consequências desta abordagem para muito além do
que seria uma mera opinião ou discurso médico corrente. À medida que
estes(as) clínicos(as) aprendem, particularmente nos congressos médicos,
que a testosterona é o recurso “do momento” ou “mais eficaz” e a empregam
na prática dos consultórios, estão também materializando, de alguma forma,
uma naturalização do desejo feminino pela associação com a presença ou
ausência desse hormônio. A partir do momento em que traduzem as
“queixas” das pacientes com a falta de testosterona e associam as
“melhoras” ao tratamento com o hormônio, esses(as) profissionais
reafirmam a mesma concepção.
Além disso, quando descrevem os efeitos “virilizantes” da testosterona,
como engrossamento da voz, aumento dos pelos e crescimento do clitóris,
também estão atestando a potência dessa “substância” e, sobretudo,
reafirmando sua conexão com atributos considerados masculinos por
excelência. Nessa direção, percebe-se quão complexa é a definição da
sexualidade feminina em jogo. Para ser mais presente ou potente, requer,
nesta perspectiva, a necessária atuação do hormônio, que é sempre definido
pela associação com a masculinidade e suas manifestações, sejam elas mais
propriamente orgânicas ou psicoativas. Esse intrincado conjunto de
associações remete, portanto, à necessidade de considerarmos a produção
conjunta de normas relacionadas a gênero e sexualidade, juventude e
envelhecimento, padrões de consumo de recursos e informações
biomédicas, intervenções estéticas e tantas outras, de forma
inextrincavelmente associada às realidades inscritas em corpos,
substâncias, sentimentos, emoções e variados artefatos e tratamentos
disponíveis.
É nesse sentido que a noção de ontonormas parece útil aqui, realçando a
prática de produção dessas associações. Ontonormas que atestam “desejo é
testosterona”, “testosterona é o hormônio masculino”, “mulheres podem
fazer uso da testosterona para aumentar o desejo dentro dos limites da não
virilização” e que concretizam, assim, certas versões de realidade singulares
acerca do que vem a ser o desejo feminino e do que é possível realizar com a
intervenção biomédica.
É importante fazer a ressalva de que alguns/algumas profissionais
mencionaram que, às vezes, só o fato de as mulheres estarem engajadas em
um tratamento para aprimorar a sexualidade poderia produzir o efeito de
melhora do seu desejo sexual. Nesse caso, ficaria difícil identificar qual fator
(se é que seria possível definir ou isolar algum) estaria sendo responsável
por essa “melhora”. Na verdade, não parece interessar muito aos(às)
médicos(as) discutir essa questão. Assim como não seria produtivo discutir
isso com suas pacientes, já que poderia prejudicar esse efeito “placebo” da
intervenção. O que importa é que se está chegando a algum resultado.
Contudo, na prática, quase sempre esse resultado é atribuído à testosterona,
talvez porque, na lógica biomédica que embasa a formação desses(as)
profissionais, e que talvez seja também incorporada pelas pacientes a ideia
de uma substância que age com precisão e eficácia, esteja muito presente. O
fato que se concretiza é, então, que mulheres que usam testosterona (ou
mesmo aquelas que teriam mais testosterona endógena) teriam mais
desejo. E essa constatação, por sua vez, ajuda a reforçar a difusão da ideia da
própria associação entre testosterona e desejo sexual, caracterizando uma
lógica circular e indiscernível entre a substância, os múltiplos
enredamentos de sentido em jogo e seus efeitos concretos.
Assistimos, assim, a uma espécie de materialização do desejo, enquanto
permanentemente associado ao masculino, em uma substância. Porém,
retomando a proposta de um materialismo relacional, caberia ressaltar
quanto essa “substância”, a testosterona, age nos cenários descritos,
completamente enredada pelas normas em cena nesse contexto. Não apenas
aquelas diretamente associadas ao gênero e à sexualidade, que tentei
enfatizar aqui, mas também as relativas aos imperativos da
biomedicalização, consumo e aprimoramento que nos empurra para a
obrigação de produzir e manter corpos jovens, saudáveis, belos e ativos30.
Nesse sentido cabe, cada vez mais, aos(às) investigadores(as) do campo da
ciência e da tecnologia e, particularmente da biomedicina, refletirem acerca
das versões de realidade e das normas associadas que são produzidas em
torno de artefatos disponibilizados e apresentados como recursos
inovadores e, sobretudo, definitivos.
Referências

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19 O conceito de disfunções sexuais, centrado em uma perspectiva organicista ou fisicalista de sexualidade,


foi produzido no contexto do desenvolvimento de medicamentos, especialmente para a disfunção erétil.
Conforme Loe (2001, 2004), Giami (2004), Fishman (2004), Hartley (2006), Lexchin (2006), Tiefer
(2006), Marshall (2010), Moynihan e Mintzes (2010) e Rohden (2013).
20 Em função do respeito às determinações éticas e de acordo com os(as) participantes da pesquisa, o nome
da cidade e os nomes verdadeiros dos(as) entrevistados(as) foram mantidos em sigilo.
21 Para discussão dos conceitos de medicalização, biomedicalização e farmaceuticalização, consultar
Conrad (2007), Clarcke et al. (2010) e Williams et al. (2011).
22 Ver Loe (2001), Marshall e Katz (2002), Fishman (2004), Tiefer (2006), Moynihan e Mintzes (2010) e
Marshall (2010). Para o caso do Brasil, consultar Faro et al. (2013), Rohden (2012) e Faro (2016).
23 Para uma história dos chamados hormônios sexuais, ver Ousdshoorn (1994). Com relação ao papel dos
hormônios no mundo contemporâneo, enquanto portadores de mensagens não apenas químicas, mas
também enquanto metáforas da sociedade, ver Roberts (2007). Especificamente a respeito da
testosterona, consultar Hoberman (2005). Para análises do contexto brasileiro, ver Rohden (2008) e
Sanabria (2010).
24 O recente trabalho de Roberts (2015) apresenta um mapeamento teórico e uma análise acerca da
configuração contemporânea da chamada crise da puberdade muito instigantes para um possível paralelo
com a preocupação com a sexualidade das mulheres na menopausa. Sua perspectiva reconhece a
puberdade como um fenômeno bio-psico-social, no sentido de um processo material-semiótico situado
(ROBERTS, 2015: 27). Para dar conta da análise proposta, trabalha-se com três linhas ou dimensões:
resultados (findings), sentimentos (feelings) e figurações (figurations). A noção de “sentimentos” é
especialmente relevante para este capítulo. Para Roberts (2015), é preciso considerar como a puberdade é
um affective subject, tendo o desenvolvimento sexual “precoce” provocado intenso sentimento de
preocupação (Ibidem: 31). Sugiro que a menopausa e sua possível relação com alterações no desejo
sexual e na sexualidade podem também ser consideradas um affective subject.
25 Ver Mol e Law (1994, 2004); Law e Mol (1995); Law (1999, 2004) e Mol (1999, 2002).
26 Roberts (2015), ao estudar a configuração contemporânea da puberdade, faz um mapeamento deste
debate, considerando especialmente o contraste entre o novo materialismo feminista e a sua agenda que
enfatiza os engajamentos com a matéria e a aproximação com disciplinas que abordam diretamente as
materialidades; e a perspectiva crítica desenvolvida na interface entre o feminismo e os estudos sociais
da ciência. Para esse autor, a atenção à matéria não pode ser realizada sem a combinação com a crítica
necessária. Em seu trabalho anterior sobre hormônios (ROBERTS, 2007), ele já enfatizava os desafios
impostos pelo fato de que só podemos nos aproximar criticamente dessas entidades por meio das
linguagens ou abordagens até então disponíveis, ou seja, os conhecimentos produzidos pela própria
biologia e pela biomedicina. Mas isso não quer dizer que não possamos adotar um posicionamento
crítico em relação a eles.
27 Os dados oriundos das entrevistas puderam ser contextualizados de acordo com o trabalho de
investigação mais longo que vem sendo realizado há vários anos e que envolve, além de entrevistas com
médicos/as e pacientes, etnografias de congressos médicos e de campanhas públicas e também pesquisa
documental, especialmente relativa à divulgação e promoção de novas categorias de diagnóstico e
tratamentos envolvendo a sexualidade (RUSSO et al., 2013; ROHDEN, 2013).
28 Para discussão a respeito da materialização do sexo na anatomia genital, ver Fausto-Sterling (2000).
Sobre o debate acerca de em quais situações o tamanho do clitóris serve de justificativa para a realização
de cirurgias em crianças interssexas, ver Machado (2008).
29 O termo trans/transgender se refere a pessoas que não se reconhecem no sexo ao qual foram assignadas
ao nascer. Em paralelo se constitui o termo cis/cisgênero para se referir a pessoas que se identificam com
o sexo com o qual foram assignadas no nascimento. A referência a esses termos é relevante aqui,
sobretudo, porque chama a atenção acerca de como todas as diferentes formas de expressão e
materialização de corpos, comportamentos, identidades são arduamente elaboradas.
30 Considero que os trabalhos de Rose (2007), Martin (2007) e Clarke et al. (2010) e Dumit (2012) são
bastantes inspiradores para o prosseguimento desta discussão, a qual, infelizmente, não cabe neste
trabalho.
PARTE 2 – Teorias,
políticas e controvérsia
Mentalidades Dissonantes: Bases Cognitivas sobre
as Relações C&T e Sociedade na Teoria Crítica da
Tecnologia e nos Estudos CTS Latino-Americanos31

Ricardo T. Neder

Introdução

“O problema para os conservadores fundamentalistas em sua luta contra as


vinculações entre ciências e humanismo, é que até no estudo dos sistemas
biológicos nas “novas ciências” aparecem fases de transição em situações
próximas ao caos, e ao lê-las não podem senão pensar na transição do
sistema global atual para um sistema que desative o neoliberalismo e
construa o caminho para uma sociedade pós-capitalista.”

(Pablo González Casanova, 2006)


Quando se trata de relações centro/periferia no campo científico, vale
ressaltar que a ciência e a tecnologia possuem estatuto de autonomia
cognitiva que, por sua vez, é regido por outros códigos ou valores que nada
têm de científico.
Pelas contribuições teóricas conhecidas como “Programa Forte” da
sociologia da ciência, foi estabelecida a base teórica que afirmou, em linhas
gerais, não haver diferença entre o que pode ser enunciado cientificamente
possível ou verificável e o que é vivido como linguagem do senso comum
que decorre da experiência.
O Programa Forte assentou-se sob 4 princípios gerais, que alteraram as
certezas dos conservadores fundamentalistas (mencionados na citação em
epígrafe de Casanova). A saber: Causalidade – O conhecimento tem causas
externas, sociais e de outros tipos. Simetria – A sociologia da ciência deve
explicar tanto a “verdade” quanto o “erro”, baseando-se em causas da
mesma natureza. Não é possível explicar a ciência com base em uma
metafísica idealista–teleológica, e as crenças com base em “condições
sociais ou culturais”. Imparcialidade – A sociologia do conhecimento não
tem como objetivo estabelecer a “validez ou falsidade” do conhecimento,
mas explicar as condições e processos da sua produção. Reflexividade – As
mesmas premissas do Programa Forte devem ser aplicáveis à própria
sociologia do conhecimento, o que não provoca um mecanismo de
autorrefutação, pois o fato de um conhecimento ser causal não implica ser
equivocado (BLOOR, 1968).
Esses 4 pontos essenciais do Programa Forte reforçaram posições que
ajudaram as novas gerações em torno do movimento CTS a valorizarem a
dimensão da práxis ou o papel da experiência na construção da ciência.
Essa referência à experiência é relevante no contexto do que quero
apresentar neste capítulo como um aspecto importante das trocas nas
comunidades científicas.
Entre a comunidade dos Estudos CTS no Brasil e a da América Latina tem
aumentado a preocupação com as relações centro/periferia. Já foi notado
que essas relações se dão sob bases de experiências que vão direcionando a
comunicação de variadas maneiras,
seja por meio do reconhecimento explícito da excelência científica, dos
rankings de universidades e revistas acadêmicas, nas chefias de
laboratórios e institutos de pesquisa, seja por meio de pressuposições
implícitas que operam processos de seleção e distinção que os cientistas
escolhem seus objetos, métodos e teorias (NEVES, 2016: 141).

As trocas norte/sul e centro/periferia podem adquirir várias conotações e


registros em obras, pessoas, situações geradas por movimentos em redes,
grupos e instituições. E uma forma que escolhi para apresentar neste
capítulo é a do intercâmbio entre autores integrantes de duas correntes com
vinculações com a comunidade CTS.
Uma corrente teve origem nos anos de 1960/70 na América Latina e ficou
conhecida como Pensamento Latino-Americano de Ciência, Tecnologia e
Sociedade (PLACTS). A outra surgiu no Hemisfério Norte e se
autodenomina Teoria Crítica da Tecnologia, elaborada a partir dos anos
1990.
Ambas as correntes buscam explicar dinâmicas da C&T em contextos
mediados por interpretações que derivam de teorias mais abrangentes
sobre a sociedade (teoria social), portanto fora do impulso de explicações
sobre a utilidade, ou “techné” e, para isso, incorporam elementos que não
são tipicamente econômicos.
De modo distinto do Norte, aqui predominam formas de organização
econômica próprias das comunidades em meio a diferentes povos e grupos
sociais de origem etnicamente diversa como formas da vida em geral (e não
para o mercado), que são um rico tecido social complexo e multicultural,
com atividades socioeconômicas entre segmentos populares.
Uma leitura das relações CTS pela nossa teoria social foi feita pelo
PLACTS/ECTS, para entender como situar ciência e tecnologia numa
formação social, em que se mesclam estratificação e classes sociais. Nesse
hibridismo, o modo de vida de grande parte das nossas classes e grupos
sociais não são comunidades tradicionais, mas tampouco se situam na
modernidade urbano-industrial. Uma construção híbrida de sociedade como
a que temos está de modo contínuo misturando conflitivamente elementos
da sociabilidade das comunidades tradicionais e da sociedade urbano-
industrial.
Tributário do PLACTS e fundador dos Estudos CTS nos anos 1990, Dagnino
foi quem aprofundou (junto com as, então, novas gerações) as respostas a
essa questão, primeiramente, ao buscar a identificação dos obstáculos que
impedem tal conjuntiva entre política de C&T e inclusão socioprodutiva
entre a larga base da PIA. Foi também um dos primeiros a incorporar,
elaborar e contextualizar criticamente a obra de Feenberg na universidade
brasileira, nos anos 1990/2000.
Na perspectiva do PLACTS/ECTS não se trata de adotar dispositivos
tecnológicos para massificar as políticas sociais distributivas
(transferências sociais), ótica com viés clientelista que abafa as
possibilidades de formulações mais inclusivas, mediante fomento técnico-
científico a outras formas socioeconômicas.
Há convergências entre o PLACTS/ECTS e a Teoria Crítica da Tecnologia de
que o controle sobre a direção das mudanças sociotécnicas é o ponto
estratégico (microempreendimentos econômicos solidários e economia
comunitária e familiar com o uso de tecnologia social enquanto capacidade
de saber-fazer para desconstruir tecnologias prontas).
Na Teoria Crítica da Tecnologia, Feenberg (1991) afirma que há uma
dimensão esquecida nas Ciências Sociais diante da tecnologia e toma como
referência a Teoria do Agir Comunicativo de Habermas (1984), em que a
técnica somente comparece sob a perspectiva essencialista enquanto um
meio de coordenação, ao intermediar pessoas e grupos sociais, e se converte
em manipulação e controle social.
Nessa perspectiva, a tecnologia aniquila o nosso potencial de criar e
elaborar livremente e nos torna apêndices das máquinas. Meios e fins são
determinados pelo sistema. Daí a conceituação da Teoria Crítica da
Tecnologia (compartilhada pelas várias abordagens dos Estudos CTS,
inclusive derivada do PLACTS): toda tecnologia carrega uma cesta de
valores em si mesma. Como? A tecnologia incorpora valor substantivo ao
seu funcionamento, que não estava previsto na sua concepção e criação
originais.
Mediante o modo operatório fundamental de que a teoria da
instrumentalização proposta por Feenberg (1991) busca desvelar,
conceituando os dois momentos de racionalização instrumental: um
científico e reducionista e outro o momento da racionalização societária ou
secundária. Ambos se inscrevem como totalidade na vida real.
É o que veremos ao longo deste capítulo, que está estruturado da seguinte
maneira: 1) PLACTS e Teoria Crítica: olhares sobre a relação
centro/periferia no campo CTS; 2) Convergências/divergências entre a
Teoria Crítica da Tecnologia e o PLACTS; 3) A democratização do projeto
tecnológico: diferenças entre Teoria Crítica e ECTS/PLACTS; 4) Operadores
tecnológicos e as Novas Ciências; Conclusões: as assimetrias
Centro/Periferia e o paradoxo Casanova.

PLACTS e teoria crítica: olhares sobre a relação


centro/periferia no campo CTS

A palavra de ordem da inovação associada às tecnociências tem sido


difundida como mantra entre pesquisadores. Uma definição clara de
tecnociência pode ser feita de forma didática: na era da indústria
globalizada, ciência e tecnologia se tornaram mercadorias. Em 2008,
Feenberg, quando escreve o prefácio da obra “Neutralidade da Ciência e
Determinismo Tecnológico” (DAGNINO, 2008), afirma que as relações
centro/periferia assumem a:
(…) forma de transferência de tecnologia dos países avançados para
aqueles em desenvolvimento, incorporando (…) ideias e conhecimentos
que se orientam pelas abordagens que já foram transcendidas ou
superadas nos países avançados (…) a cultura técnica e científica é
fortemente dependente das tradições dos países ricos que insistem em
exportar seu modelo insustentável de desenvolvimento (FEENBERG apud
DAGNINO, 2008: 12-13).

Feenberg, contudo, diferentemente de Dagnino, não adota a noção ou


conceito de “tecnociência”, pois essa expressão não tem lugar na sua Teoria
Crítica da Tecnologia. Já o PLACTS apresentou uma noção próxima (“pacotes
tecnológicos”) ao afirmar que, para vencer as barreiras impostas do centro
para a periferia, políticas de pesquisa e desenvolvimento devem ser
associadas (universidade, empresas e governos) em torno de áreas
estratégicas para formular políticas de inovação por demanda para alcançar
projetos nacionais.
Em prefácio à obra brasileira, que reuniu o essencial da Teoria Crítica da
Tecnologia, Dagnino e outros autores afirmam que:
A obra de Feenberg permite deslindar o caráter simplista e ingênuo
daquelas posições que defendem que a exclusão social poderia ser
equacionada mediante a “difusão dos frutos do progresso científico e
tecnológico para a sociedade”, a “apropriação do progresso científico por
parte da população”, a “apropriação do conhecimento científico e
tecnológico pelos cidadãos” e o maior “entendimento público da ciência”
(DAGNINO, 2013: 39; DAGNINO; THOMAS; DAVYT, 1996; DAGNINO;
THOMAS, 1999).

A tese contrária tem sido discutida e parcialmente colocada em prática há


décadas por países latino-americanos, europeus e também no quadro das
políticas de C&T nos EUA. Trata-se de um cenário alternativo, em que a
política de C&T é orientada para aproveitar as compras públicas e a
regulação da atividade econômica pelo Estado, as quais, juntas, conferem
grande poder de transformação da economia mediante “políticas de
inovação que atuam pelo lado da demanda (que) são executadas por uma
miríade de diferentes instrumentos (…)” (BRASIL IPEA, 2017: 23).
Dados desse último estudo estimam um poder de compra do Estado
equivalente a 14% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil, em 2012.
Caminho esse que tem uma vantagem central, que é reduzir o hiato,
atualmente imenso, entre política de inovação e políticas tecnológicas das
empresas, ou seja:
Ora, se o processo inovativo é caracterizado pela incerteza, complexidade
e dependência do passado (…) então, não faz sentido traçar limites
rígidos entre o que é uma política tecnológica e o que é uma política
voltada para a introdução de novas ideias e conceitos no mercado
(política de inovação stricto sensu) (BRASIL IPEA, 2017: 22).

Convergências X Divergências entre a Teoria Crítica da


Tecnologia e o PLACTS

O resultado entre o diálogo do PLACTS/ECTS e da Teoria Crítica da


Tecnologia foi a importância do conhecimento associado à experiência. As
contribuições do PLACTS situaram a necessidade de fomento a áreas
prioritárias de conhecimento para a comunidade científica desenvolver
estatutos epistemológicos próprios compartilhados com um solo comum, a
práxis ou a experiência, acumuladas na sociedade que se transmitem como
conhecimento tácito ou implícito.
Na visão da Teoria Crítica que ilumina a questão da experiência, há a
presença marcante da noção do “duplo aspecto” da tecnologia, que envolve
o significado social e a racionalidade funcional/instrumental como
dimensões inextricavelmente entrelaçadas na tecnologia. Essas duas
dimensões “não são ontologicamente distintas”.
Como o significado na mente do observador e a racionalidade própria da
tecnologia, por exemplo, são, no lugar disso, aspectos duplos do mesmo
objeto técnico básico, em que cada aspecto é revelado por um contexto
específico (…), tecnologias são selecionadas a partir de interesses entre
muitas possíveis configurações. Na orientação do processo de seleção estão
os códigos sociais estabelecidos pelas lutas culturais e políticas que definem
o horizonte sobre o qual a tecnologia atuará. (…) formas modernas de
opressão não estão baseadas em falsas ideologias, senão muito mais em
verdades técnicas, as quais a hegemonia seleciona para reproduzir o
sistema (FEENBERG, 2013a: 82).
Essa experiência retorna ao laboratório ou ao centro de pesquisa por dois
caminhos: mediante a formação continuada de pesquisadores nas
universidades, que geram ciência como bem público e coletivo e reconverte-
a em científico/técnico-científico, mediante a atualização dos fundamentos
anteriores, com a formação de novos especialistas. O segundo caminho é a
formação de pessoal técnico-científico (mestres e doutores) para atuar na
estrutura econômica, a fim de desenvolver soluções integradas para
inovações tecnológicas em espaços comunitários, associativos, municipais e
estaduais, locais e regionais (VARSAVSKI, 2013; SABATO, 2011).

***

Essas dimensões tê seus fundamentos na Teoria Crítica da Tecnologia ao


definir duas dimensões da tecnociência: o movimento CTS é descrito como
simultaneamente estruturado de forma rígida como instrumentalização
primária nos laboratórios e, em outro plano flexível, como
instrumentalização secundária nos circuitos da sociedade (FEENBERG,
2013: 97-118).
A instrumentalização primária é formada mediante a presença de poucos
interesses e grupos restritos de técnicos e pessoal científico, reclusos em
universidades, laboratórios, institutos de pesquisa e centros de
desenvolvimento. Já a secundária, ao contrário, é marcada pela participação
de muitos agentes em cadeias que se prolongam por países e continentes e
em redes técnicas extensas que se envolvem nas formas culturais,
econômicas e sociológicas da vida cotidiana da tecnologia.
Com a racionalidade tecnológica, contudo, ocorre no nível primário o
oposto: ela surge como indiferente às implicações tradicionais do projeto
para o cotidiano da vida no trabalho, na comunidade e no âmbito pessoal,
quanto a valores estéticos ou éticos (FEENBERG, 2013b: 97-118).
A práxis nos permite enxergar a produção técnico-científica quando
reverbera para a sociedade: a compreensão alargada das estruturas e
dinâmicas das desigualdades e assimetrias. Nesse sentido, uma dimensão-
chave nas duas correntes é o fato de a produção científica e tecnológica – ao
ser associada à experiência/práxis – vir a afetar a reprodução social de
forma diferenciada, se considerarmos o centro ou a periferia do sistema
capitalista.
Sabemos que na América Latina (seguindo práxis do modelo de
empreendimentos cuja trajetória histórica teve início entre sociedades de
industrialização madura do centro capitalista nos países do Norte) os
megaprojetos econômicos de geração de energia, gaseodutos, hidrelétricas,
malhas rodoferroviárias, aeroportos e infraestruturas econômicas e
militares são decididos e implantados em comunidades excluídas de
qualquer participação ou benefício direto desses processos.
Ao serem impostos sistemas tecnológicos desta magnitude, implantam-se
no território dispositivos técnicos que se inserem como mediadores nos
vínculos sociais (local/regional/nacional).
Um ponto de convergência entre as perspectivas da Teoria Crítica da
Tecnologia e dos Estudos CTS/PLACTS se dá no compartilhamento da teoria
social, considerando que sua diferença seja na relação norte/sul ou na
relação, mais específica centro/periferia, em matéria de C&T. Ambas as
correntes assumem, no plano epistemológico, que há convergência entre as
lutas tanto no centro quanto na periferia em função da democratização do
poder de “controle” sobre os projetos de sistemas tecnológicos.
As formas de luta e resistência dos grupos afetados são valorizadas pelas
duas correntes. Contudo, a vertente latino-americana elevou à máxima
prioridade o aprofundamento de uma teoria específica para as condições
latino-americanas, levando em conta a anomalia das nossas políticas de
ciência e tecnologia (DAGNINO, 2014b). É o que veremos no próximo tópico.

A democratização do projeto tecnológico: diferenças entre


teoria Crítica e ECTS/PLACTS

Vale ressaltar que a Teoria Crítica da Tecnologia foi originalmente


concebida pelo seu principal autor (Feenberg) para a realidade
sociocultural e econômica do debate sobre o socialismo alternativo ao
capitalismo no Hemisfério Norte.
Entre os Estudos CTS/PLACTS, essa afirmação também se faz presente,
porém com uma visão diferenciada. Embora haja convergências entre essa
perspectiva e as colocadas pelo PLACTS, nesta última corrente ressalta-se a
necessidade de destacar a busca de autonomia em torno do que chamaram
de ciência e tecnologia para um projeto nacional.
As formulações de Sabato (nos anos de 1960/70) caminhavam no sentido
de articular condições de resposta às problemáticas de intersecção de três
vértices de ações: o Estado que demanda por meio de seu poder de compra
e realiza investimentos para criar, seja a infraestrutura técnico-científica
(universidades e centros de pesquisa), seja o vinculacionismo estável entre
a universidade e a estrutura econômica. Propunham que essa heurística
fosse enfrentada sistemicamente em níveis de setor, área, programa,
território, universidades, governos locais, regionais, federal (SABATO,
2011).
O leitor pode notar que a heurística do Triângulo de Sabato, hoje, foi
integrada pela teoria econômica da inovação de caráter neoliberal e suas
variantes, com ênfase na exclusão da política de C&T para a sociedade (por
meio de políticas públicas).
Um adendo ao Triângulo de Sabato foi proposto por Renato Dagnino e
corresponde à produção de políticas de C&T para a sociedade enquanto
tecnologia social (DAGNINO, 2014), movimento esse que dialogou com a
Teoria Crítica da Tecnologia em diversas ocasiões na década de 2006-2016,
com base na conceituação da adequação sociotécnica (AST). Opera pelo
reconhecimento de que há uma trama específica para o Brasil, que atinge o
funcionamento da produção de conhecimento na ciência e na técnica e exige
que sejam “desconstruídas” plataformas cognitivas embutidas nas
tecnologias trazidas pelas empresas, pelas corporações e pelos mercados
internacionalizados.
A noção teórica de AST (ou da sua vulgata, “tecnologia social” enquanto
recurso de comunicação) é uma orientação epistemologicamente
importante, porque incorpora uma visão sobre a(s) ciência(s) &
técnica(s)/tecnologia(s) que permite a desmistificação das concepções
tradicionais acerca da ciência para fins econômicos ou de tecnociência. É
entendida como forma de organização da produção do conhecimento, a
mais avançada ou efetiva, conduzida exclusivamente pelas empresas.
No lugar dessa visão, Dagnino apresenta outro cenário acerca do controle
sobre a direção das mudanças tecnológicas na sociedade. A democratização
do poder de controle sobre a tecnologia sempre foi uma ideia-força na
América Latina, mas, em geral, subordinada (quando não subalterna) às
questões da globalização financeira, produção industrial, políticas científica
e tecnológica para as empresas, corporações e burguesia nacional, entre
outras grandes questões.
No cerne da obra de Dagnino ocorre o inverso. Trabalha-se a
democratização da tecnologia como eixo central de uma teoria que podemos
chamar de latino-americana da adequação sociotécnica ou tecnologia social.
Essa teoria está referenciada em torno de três temáticas. A primeira é
comum à Teoria Crítica da Tecnologia e trata de como alcançar a
democratização da tecnologia em si, que exigiu referenciais históricos do
PLACTS. A segunda trata da mobilização e capacitação de operadores para a
prática da adequação sociotécnica AST/Tecnologia social, enquanto a
terceira diz respeito ao controle das mudanças sociotécnicas no nível da
economia informal ou popular no Brasil e na América Latina para a sua
conversão em economia solidária. Esses dois outros componentes não estão
presentes no diálogo com a Teoria Crítica da Tecnologia.
A teoria da adequação sociotécnica exige tratar a inclusão socioprodutiva na
política de ciência e tecnologia em convergência com outras políticas
públicas (sociais, de renda, trabalho, educação, saúde, habitação), a fim de
atingir a massificação das soluções técnico-produtivas sob a reorientação
parcial do poder de compra do Estado (discutido na Seção 1). Não basta
associar a política de C&T ao movimento pela economia solidária e
autogestão e supor que a tecnologia “é decorrência de formas específicas de
organização do processo de trabalho” (autogestionário em oposição ao
gerencial do capital).
Segundo a AST, tal olhar é insuficiente, argumenta esta corrente, pois se
temos necessidade de transformar a maneira como se organizam o trabalho
e a sua base tecnológica, também é verdade, e sobretudo prioritário,
“revolucionar” o substrato científico epistêmico que orienta a tecnologia
empresarial. Do contrário, será “vendida” a ideia das ondas administrativas
gerenciais de que ela deve ser “adaptada” aos micros e pequenos
empreendimentos de empreendedores sem capital (NEDER; MORAES,
2017).
Trata-se, na visão desses autores, de propor a elaboração de uma política de
ciência & tecnologia de fomento a redes estruturadas de economia solidária
popular, como política do Estado, capazes de superar o mito de que um dia a
economia dita informal será absorvida pela economia formal. Nos anos de
1990-2000 em diante, no novo paradigma neoliberal, a sociedade passou a
operar em dois ciclos, um de crise e outro de crescimento. Em ambos, ora há
redução de postos de trabalho (jobless growth), ora há perda líquida de
empregos (jobloss growth).

Dessa forma, Dagnino propõe explorar a relação entre tecnologia e


economia popular solidária. Aprofundar tal visão teórica a partir da teoria
da adequação sociotécnica (AST) passa pelas dimensões analítica
(processual), normativa (ideológica) e heurística operacional. A analítica
expressa-se na concepção de que há um “código técnico-econômico
convencional” da tecnologia alterado para manter o poder de controle (da
tecnologia) sob o domínio de um operador externo ao processo de trabalho.
A dimensão operacional é uma espiral com sete curvas de complexidade,
envolvendo escuta, diagnóstico, análise e pesquisa, desde o uso de técnicas –
além de frustradas tentativas de apropriação privada ou coletiva de
tecnologia e sua articulação como propriedade dos meios de produção – até
experiências populares de revitalização ou repotencialização de máquinas e
equipamentos como aprendizagem. A dimensão normativa é parte do
diálogo com dirigentes de movimentos sociais, da economia solidária e com
pesquisadores em incubadoras universitárias de cooperativas populares e
institutos públicos de pesquisa, além dos pesquisadores e docentes da
universidade brasileira (NEDER; MORAES, 2017).

Operadores tecnológicos e as novas ciências

Nesta seção apresento as definições e contornos da problemática das novas


ciências, denominação atribuída aos múltiplos campos de desenvolvimento
da pesquisa científica contemporânea em torno de conjuntos de
“interdisciplinas” formadas por interações entre disciplinas formuladas
para a compreensão de determinados fenômenos. Como as duas correntes
lidam com essa dimensão? As fronteiras entre a Física, a Química e a
Biologia, por exemplo, se tornam diluídas. Essa diluição marca o
desenvolvimento das novas ciências (CASANOVA, 2006). Uma descrição
sumária dessas novas ciências e das tecnociências pode ser vista nos
Quadros 1 e 2.

Quadro 1 – Campos epistêmicos das novas ciências/ciências da


complexidade
Eixo A
Aréas disciplinares compostas pelas
ciências físicas, química, biologia, etc (divisão do trabalho científico tradicional)
Neurociências Engenharias
Eixo B engenharia tecnologias da
genética & informação & Eixo B’
Áreas vizinhas
Áreas fundadas a
às ciências cognitivas, molecular comunicação
Partir da microeletrônica e
analise de sistemas, Ciência dos Computação computação, associadas à internet /
teoria da materiais, científica, telemática, e desenvolvimento de
complexidade e teoria genética, engenharia máquinas IA (Inteligência Artificial)
do caos biologia microeletronica
evolutiva & automação
Eixo A’
Áreas associadas a pesquisas para novos materiais, nanomateriais, articulação entre
eletromagnetismo e campos quânticos de energia e matéria
Fonte: Adaptado pelo autor de original formulado em Casanova, 2006: 11-112.

O eixo A envolve combinações inter/trans/multidisciplinares regidas sob a


lógica da interdisciplina ( Idibid: 11-58), costurada pelas ciências
cognitivas e pela análise de sistemas. Como linguagens, essas ciências
viabilizam superar diferentes limites da especialização das disciplinas e
ajudam a aproximar seus sujeitos de coletivos científicos.
A linguagem lógico-matemática das ciências cognitivas e da análise de
sistemas pretende ser tanto descritivo-empírica quanto explicativa
(normativa-axiológica) sobre o funcionamento de organizações e entidades
como subsistemas na sociedade (CASANOVA, 2006: 10-58).
As novas ciências que dão origem às tecnociências (mas a nanotecnologia
até recentemente não era apoiada pela ciência dos materiais) e estas são
legitimadas por meio da base operacional (laboratórios, tecnologias,
dispositivos) na prática da interdisciplina, mediante experimentos
construtivistas de tecnologias científicas (o caso dos OGMs). No Quadro 2 é
descrita a operação de legitimação da Mentalidade II.

Quadro 2 – Bases da teoria da instrumentalização


(Teoria Crítica da Tecnologia) e de estratégias
materialistas das tecnociências (Lacey/Dagnino)
Fonte: Adaptado pelo autor de original formulado em Lacey, 1998:
21, Feenberg, 2013B; Dagnino, 2008.

Estratégias materialistas (LACEY, 1999) de instrumentalização


primária/secundária (FEENBERG, 2013b) ou de produção de tecnociências
(DAGNINO, 2014) significam criar um campo de demonstração em
laboratório ou mediante a construção de dispositivos tecnológicos, a fim de
recriar as condições de registro de um fenômeno físico, cujas características
são descritas em leis e ordens subjacentes. De forma recorrente ou
sistêmica, os dispositivos são inseridos na sociedade em circuitos de
experiências, sob a lógica da retroalimentação. Esta é a operação cognitiva
que subjaz à tecnociência e à Mentalidade II (NEDER; MORAES, 2017).
Em “As Novas Ciências e As Humanidades – da academia à política”,
Casanova (2006: 335) lança um desafio para o campo dos Estudos CTS ao
propor que devemos encarar as potencialidades de ampliar o pensamento
crítico das Ciências Sociais e Humanidades com os sujeitos das novas
ciências em seu enfrentamento diante do risco de serem submetidas
completamente às tecnociências.
Para essas duas correntes, a diminuição da autonomia acadêmica e
intelectual leva à necessidade de se trabalhar com vastos contingentes de
docentes e pesquisadores que se confundem com os operadores
tecnológicos, presos à mentalidade (ou moralidade profissional), que se
afirmam na crença em uma neutralidade científica que não passa de
imparcialidade, segundo áreas disciplinares. Esse contingente não dispõe de
recursos cognitivos (modelos, estilizações, teoria, formulações analíticas e
produção de consenso cognitivo) sobre o que chamamos aqui de
Mentalidade ou Moralidade III, que é aprofundada no próximo item.

Conclusões: as assimetrias centro/periferia e paradoxo


Casanova 1
Os que estão no campo das tecnociências de forma tecnicista em sua
maioria não discutem mudança social. Tampouco falam das vinculações
entre o que fazem, e a ampliação das desigualdades. Devido à
potencialização da tecnologia na sociedade, estas vinculações são
amplificadas ao extremo, e para compreendê-las não bastam as teorias da
administração e negócios. Os que estão no campo das Ciências Sociais e
Humanas se preocupam com a mudança social sem dialogar com as novas
ciências, logo tem influência reduzida sobre os desenhos das novas
tecnologias que são a base epistêmica das tecnociências (CASANOVA,
2006).

A citação em epígrafe nos coloca claramente o desafio de incorporar a


interdisciplina das novas ciências-campo, dominado hegemonicamente
pelos que se dedicam a formular estratégias de dominação baseadas nas
tecnociências.
Casanova (2006) aponta um grave erro dos que estão no campo das
tecnociências, porque não discutem as mudanças sociais engendradas para
formar o futuro a partir das experiências mais significativas da nossa época,
as que são identificadas com a formação de um mundo que exclui outras
experiências significativas.
Essa postura (antes vista como “tecnociência”, instrumentalização
primária/secundária ou estratégia materialista) não pode entender
sistemas complexos somente por suas complicações e tampouco se pode
“entendê-los sem os processos de complexificação que implicam
complicações semelhantes à das dinâmicas originais” (CASANOVA, 2006:
55).
Em contrapartida, quem está no campo das Ciências Sociais e Humanas
também falha por não mergulhar na compreensão da mudança social para a
qual as novas ciências contribuem, pois:
O ponto central é que, efetivamente, a interdisciplina, num sentido
rigoroso, não se dá em toda a sua plenitude apenas quando se identifica
com os sistemas complexos, mas também quando, ao analisar o todo
organizado e desorganizado destes e estudar os sistemas sociais,
incluem-se nas definições mútuas interativas as relações de exploração e
exclusão, de opressão, de apropriação e privação, assim como as lutas
contra a exploração e pela construção de relações e redes de libertação e
mediação democrática, com distribuição menos desigual do poder e da
riqueza, dos meios de produção e do excedente produzido (CASANOVA,
2006: 55).

A essa insuficiência se soma o agravante de que as conceituações (e visões)


sobre os sistemas complexos, autorregulados, adaptativos, morfogenéticos,
autopoiéticos dificilmente são aceitos no campo epistêmico dos próprios
marxistas críticos ou seus sucessores (CASANOVA, 2006: 57).
Para sair desse paradoxo colocado por Casanova (2006) necessitamos
aprofundar – tal como se fez ao longo deste capítulo – as proposições
alternativas capazes de superar o inovacionismo na universidade como
modelo gerencial de patentes e comercialização, em direção a uma
formulação mais complexa que exige alianças entre forças internas e
externas à universidade.
Mencionamos que o formato da política de inovação por demanda (tal
como explicitado na Seção 2) pode ser associado a uma proposição concreta
de política CTS com abordagem da adequação sociotécnica para amplos
agrupamentos da sociedade. Para atrair aliados para este campo, vamos
apresentar um último exercício heurístico para identificar os operadores
científicos e tecnológicos que ajudam a trabalhar a transição para a
Mentalidade Alargada III, tal como postulado tanto pela Teoria Crítica da
Tecnologia quanto pelo PLACTS/CTS (Quadro 3).

Quadro 3 – Posições típicas como disposição cognitiva de


pesquisadores/as na universidade.
Posições sobre vinculação
com a sociedade adotam
como foco na Ciência e
Posição sobre desenvolvimento
Perspectiva dominante Inovação enquanto
econômico
trajetória contínua, linear
e inexorável seguindo um
caminho próprio
GRUPO I
Visão com foco na C&T
A C&T não influencia A C&T determina o desenvolvimento
como uma trajetória
a Sociedade (neutralidade econômico e social (determinismo
contínua, linear e
de C&T) tecnológico)
inexorável seguindo um
caminho próprio
GRUPO II
Visão com foco na A C&T não determina desenvolvimento
Sociedade: o social e econômico porque a
desenvolvimento da C&T As características da C&T universidade não tem ainda uma
não está recluso na são socialmente atuação abrangente o suficiente para
universidade, mas é determinadas gerar mudança social (em certo sentido
influenciado pela participa timidamente dela, e
sociedade, e depende de geralmente inibe a mudança social)
apoios externos
Fonte: Adaptado pelo autor de original formulado em Dagnino, R. (2008: 16-17)

Quanto às posições do Grupo I, tratam-se de adeptos da tese fraca da não


neutralidade que acreditam que a produção científica não influencia a
sociedade e, simetricamente, também não se permite ser por ela
influenciada. O Grupo II envolve adeptos da tese forte da não neutralidade,
porque acredita não estar a universidade caminhando no sentido de atingir
com plenitude sua missão, que é provocar mudança social. Aproximar os
dois grupos (de pessoas e mentalidades) tem-se baseado numa dinâmica
contraditória na universidade latino-americana.
Esta é uma tarefa dos dirigentes nas universidades, promover objetivos
socialmente relevantes no sentido de não ampliarem as iniquidades quando
fomentam tecnopolítica ou política tecnológica que irá remodelar o mundo
do poder político na sociedade (WINNER, 1980).
Uma conclusão geral é a de que a base cognitiva das políticas de C&T divide,
de fato, as comunidades de pesquisa, ensino e extensão na universidade. Se
ela não pauta alguma concepção positiva sobre que tipo de mudança social
mais ampla “minha” pesquisa ou projeto na universidade está colaborando
para fazer acontecer na sociedade, quem fará essa pergunta?
Não se pode esperar uma resposta individualizante. Um dos modelos mais
bem credenciados pela experiência histórica do vinculacionismo
universidade/empresa no Brasil, conforme visto, é o que representa as
transações entre os atores na abordagem antes mencionada como Triângulo
de Sabato na América Latina (1970). Uma segunda conclusão geral é a
possibilidade de retomar sob as bases das novas ciências, o que nos anos de
1990 foi formulado como Hélice Tripla (SABATO, 2011; ETZKOWITZ, H.,
2002), que correspondeu à atualização para as condições de enfrentamento
do neoliberalismo no quadro europeu e da experiência acumulada da
política de C&T no pós-Guerra de países europeus e nos Estados Unidos.
No lugar de fomentar ciência–tecnologia–inovação mediante os interesses
mobilizados por segmentos e estratificações para cientistas e empresários
ou grupos de empresas específicas, o regime de fomento que seguiu o modo
proposto pelo Triângulo de Sabato/Tripla Hélice levou em consideração o
apoio continuado mediante investimentos por meio de chamadas públicas
governamentais em grandes blocos (caso da saúde pública coletiva e da
medicina, da educação e da inclusão socioeconômica, aeroespacial,
aeronáutica, farmacêutica; bélica, nuclear etc.).
O refinamento, vigilância e controle de resultados de tais políticas, contudo,
exigem a influência e incorporação ativa das demandas de entidades civis,
movimentos sociais e sindicais, associações de ecologistas, consumidores,
partidos políticos, grupos de gênero e movimentos de identidade étnica. E
nossas políticas de C&T serão pálidos reflexos no jogo de espelhos das
pautas de reprodução de negócios de importação de pacotes tecnológicos.
Uma terceira conclusão geral nos remete para as estratificações e perfis de
classe social. Mestres e doutores na universidade brasileira são
majoritariamente dos estratos médios e altos das classes médias aliadas de
setores dominantes e proprietários, cujo apoio da universidade e da ciência
& tecnologia é sempre parcial e instável de época para época.
Para criar uma nova geração de pesquisadores sob a lógica afirmativa da
inclusão social para o conhecimento e experiência do universo que exige a
inclusão da diversidade afro e indígena na universidade e na política de
C&T), temos que superar o processo que foi chamado de “redução
sociológica” (GUERREIRO RAMOS, 1996), e faz que somente as pautas de
pesquisa e ensino definidas em universidades do centro sejam reconhecidas
como legítimas.
Uma quarta conclusão geral refere-se às barreiras que limitam o acesso dos
negros e indígenas à educação, à pesquisa e à extensão de Ciência e
Tecnologia. E sem pesquisadores e docentes oriundos desses grupos sociais
não haverá respostas civilizatórias à altura dos desafios em superar o
colonialismo interno e externo.
Somente podemos adotar outras soluções se assumirmos o ponto de vista
da não neutralidade no quadro de conflitos em torno da política de
educação e formação científica na universidade. Tal posição terá
implicações na filosofia político-pedagógica diante das novas ciências para a
busca de uma perspectiva da interdisciplinaridade (NEDER; MORAES,
2017).
Conforme abordado, tal perspectiva interdisciplinar busca superar os
marcos da questão da neutralidade da ciência. Abre-se para uma postura
diferencialista, segundo a qual há diferenças específicas que ainda se
mantêm vigentes na universidade para a produção do conhecimento
científico, diante do que é a produção do conhecimento tipicamente no
campo da produção tecnológica (cf. SHINN, 2002, 2006; LACEY, 2006).
Nos marcos da Teoria Crítica da Tecnologia, essa postura diferencialista
parece ter sido adotada, tese que é contestada pela corrente latino-
americana (DAGNINO, 2008). A obra de Feenberg (2013b) configura um
diferencialismo mitigado (low profile) no tocante ao entendimento a
respeito do porquê é inadequado falarmos em tecnociência como processo
estrutural que reconfigurará as relações dos cientistas com a sociedade
como algo que estaria indefinido. Essa posição, vale ressaltar, se aproxima
dos estudos CTS realizados pela sociologia denominada “transversalista” do
conhecimento científico e pela tecnologia, segundo a qual, não haveria
rígida separação entre ciência e tecnologia, mas diferentes regimes de
produção e difusão de ciência simultaneamente (SHINN, 2002; SHINN;
LAMY, 2006).
Tornar-se-ia possível identificar nas instituições sociais (tipo universidades
públicas) e nas organizações (tipo empresarial público e privado, nacional e
multinacional) um novo agenciamento transversalista do conhecimento
(ATC) pela coexistência desses regimes. Segundo a ATC (num modelo
próximo ao modelo apresentado na Seção 1 como “política de inovação por
demanda”), o governo deveria incentivar a criação de sistemas locais de
inovação tecnológica com base nesse diferencialismo. A universidade, o
governo e a empresa atendem também a ditames locais e não somente a
regras globais. Um dos aspectos do diálogo entre PLACTS/ECTS e a Teoria
Crítica da Tecnologia é precisamente revelar que há, portanto, uma
Moralidade III (além das antes mencionadas Moralidade I – neutralidade
científica para melhor contribuir para a sociedade e; Moralidade II –
neutralidade científica para maximizar os ganhos econômicos da
tecnociência) sob o referencial heurístico pela Teoria Crítica da Tecnologia
no contexto do Norte e a AST no contexto dos Estudos CTS/PLACTS no Sul.
O Quadro 4 explicita as antinomias entre adeptos das novas ciências, das
tecnociências e da democratização do projeto tecnológico.
Quadro 4 – Mentalidades dissonantes: bases cognitivas sobre
as relações C&T e sociedade
Fonte: Dagnino, 2013; Feenberg, 2013, Neder, 2013: 7.

O eixo A diz respeito a visões que vão desde a neutralidade (quadrantes 1 e


2) até o extremo oposto, que afirma a Ciência & Tecnologia (C&T) como
processos que dependem de valores cognitivos influenciados por um feixe
de outros valores extracientíficos, sendo impossível a neutralidade
(quadrantes 3 e 4).
No eixo B situamos a questão do controle possível das escolhas e opções em
termos de direcionamento da C&T: num extremo estão os que aceitam que a
marcha da C&T é um processo autônomo de sistemas técnicos que formam
trajetórias irreversíveis, ou/e por isso mesmo, estão dissociados dos valores
humanistas (campos 1, 2 e 3).
“Em oposição estão os que têm visão contrária”, no quadrante 4: afirmam
que a dominação técnico-científica hegemônica não é determinista ou
neutra; ela pode ser enfrentada seja por ressignificação mediante a busca,
procura sistemática e pesquisas sobre alternativas científicas, seja pelas
práticas ou novas formas de introduzi-las na sociedade, mediante
resistências contra-hegemônicas.
De uma forma ou de outra, a corrente 4 advoga que existem margens para
revolucionar democraticamente, isto é, mediante a ampliação dos objetivos
antes restritos à geração do lucro da empresa capitalista, para transformar a
base cognitiva das práticas sociotécnicas e socioculturais das ciências e da
tecnologia sob alianças com novos atores, que entram em cena nas
universidades brasileiras e latino-americanas.
Para finalizar, observamos uma necessária digressão sobre a tecnopolítica,
que pode ser definida como a política que está embutida nos artefatos e
sistemas técnicos, portadores de procedimentos e atos em si mesmos
aparentemente banais e neutros, mas que nos obrigam a ficar vinculados a
sistemas complexos mais amplos. Nesses procedimentos, os aspectos
tecnológicos foram previamente estruturados e costurados na vida
cotidiana, de tal forma que não há (aparentemente) alternativas de
uso.
A fim de entender esse tipo de desafio, são fundamentais as abordagens das
Ciências Sociais & Humanidades capazes de fornecer outras chaves
interpretativas para as novas ciências que nos permitam libertar o acesso
às novas ciências para os estratos sociais das classes trabalhadoras urbanas
e rurais, por meio da universidade.
A resistência tem sido maior ou menor, dependendo da conjuntura
histórica. Até o final da Segunda Grande Guerra havia maior resistência ao
modelo tecnopolítico imposto por elites militares e civis, mas na maior
parte dos países de industrialização antiga cresceram os contingentes
técnicos, e estritamente científicos, para a casa de milhões de pessoas. Tal
fenômeno de massificação deu origem a amplos segmentos com formação
técnica nas classes trabalhadoras, e essa distinção constitui o principal
passaporte de alguém para as classes médias (que se confundem com as
antigas classes médias).
Esse processo (muito mais complicado do que é possível resumir aqui em
poucas linhas) gera a cumplicidade desses novos segmentos com a
disseminação dos sistemas técnicos na sociedade. Homens e mulheres que
passam a depender, na sua sobrevivência, desses sistemas, mas ao mesmo
tempo são insatisfeitos ou frustrados com seus resultados subjetivos e
sociais, que geram potenciais posturas de rebelião latente ou manifesta sob
indícios de movimentos e posições que expressam novas formas de
resistência no interior – e não no exterior – dos sistemas técnicos.
Essa nova categoria social com formação tecnocientífica, demográfica e
sociologicamente influente pode ser considerada operadora tecnológica que
adquiriu o poder sobre grandes sistemas tecnológicos (FEENBERG,
2013ab).
Há 60 anos o surgimento desse grupo social como uma tecnocracia foi
antevisto na obra de Herbert Marcuse (1898-1979), com uma dupla
determinação que continua até os dias de hoje. Tais contingentes são partes
do tradicional e mais antigo processo de dominação militar (P&D na
indústria bélica, em que se concentra a maior parte do orçamento dos
governos) e de expansão da C&T para fins civis.
O segundo aspecto da determinação apontado por Marcuse, ainda atual, foi
o fato de que essa camada social tecnocientífica, ao atuar como operadora
de largos sistemas tecnológicos (nuclear, automobilístico, aeroespacial,
mineral e de fármacos e medicamentos etc.), é responsável direta por
manter um componente-chave e a hegemonia desses sistemas perante a
sociedade, tratando-os como confiáveis, seguros, receptivos e supostamente
a única opção para todos (MARCUSE, 1999, 1972; NEDER, 2013e: 7-23).
Nos estudos empíricos e teóricos CTS há evidências de que essa busca por
manter a hegemonia (crença na eficácia dos sistemas tecnológicos) é um
dos mais importantes componentes da tecnopolítica. Qualquer acidente
nesses sistemas acarreta o imediato descrédito (caso das usinas nucleares
enquanto política revogada na Alemanha e no Japão, mas colocadas também
sob suspeição na Rússia e nos Estados Unidos). Há necessidade de a
tecnopolítica assegurar uma aparência de consenso e autoexplicação a
partir de constantes manipulações nos sistemas de comunicação mídias e
propaganda, além do disciplinamento e vigilância da educação científica no
sistema escolar (WINNER, 1980, 1986).

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31 Algumas das questões-chave aqui discutidas foram dialogadas durante a Esocite Brasil, em 2017, na
Universidade de Brasília (UnB). Este capítulo tem por base quase 10 anos de pesquisas sobre diferentes
escopos e problemáticas vinculados ao grupo de pesquisa Observatório do Movimento pela Tecnologia
Social na América Latina e Caribe, ao Núcleo de Política CTS do Instituto de Estudos Avançados
CEAM (Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares) da UnB (www.npcts.ceam.unb.br) e à
Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da UnB. Todas têm em comum a atuação com e a
partir de experiências populares paradigmáticas de adequação sociotécnica entre trabalhos de
pesquisadores na universidade e movimentos sociais, instituições e políticas públicas de Ciência &
Tecnologia, arranjos autogestionários de economia solidária, grupos sociais urbanos e rurais no Brasil e
América Latina, considerando elementos sociocognitivos e formação sociotécnica por experiências para
novos formatos de políticas de C&. Apoios: (2010-15) CAPES, Escola de Altos Estudos (2009/2010
proc.aux.pe.eae 1365/2009 e Proc. aux-pe-eae 042/2013); CNPQ (Proc. 420377-2013-1), CAPES
Estágio Sênior junto ao Instituto de Estudíos Sociales de la Ciencia y Tecnología – Univ. Nac. Quilmes,
Argentina, 2015; CNPq/SENAES Edital ITCP 2017 (Proc. 441.893/2017-1); e CAPES/Escola de Altos
Estudos (2017-18) para o Ciclo III de Estudos CTS Formação científica contemporânea e a
democratização do projeto tecnológico – UnB (Proc. Capes/Eae 88881. 123112/2016-01).
Para Concebir una Política
Cognitiva para la Retomada

Renato Dagnino

Introducción

E
ste trabajo es la cuarta versión de un documento preparado en el
marco de un proceso de discusión en un grupo de militantes de
izquierda brasileños cuyo coordinador solicitó que yo resumiera
en dos páginas los argumentos que había expuesto en una
reunión que tuvimos. Para atender a ese requisito, adopté el estilo
– “si quiere saber más” lea la nota – insertando diecinueve notas de fin de
documento, dispensé referencias bibliográficas y escribí lo menos posible.
Ese documento fue traducido al español y publicado en el número 22,
Ciencia e Izquierda, de la revista uruguaya Hemisferio Izquierdo del 20 de
junio de 2018 y está disponible en
<https://www.hemisferioizquierdo.uy/articulos/author/Renato –
Dagnino>.
Posteriormente, una adaptación para la misma lengua que intercaló
aquellas notas en el texto principal fue publicada en la revista Ciencia,
Tecnología y Política Año 1 Número 1, 2018, de la Universidad de La Plata,
con el título “Elementos para una Política Cognitiva, popular y soberana”.
Ella se encuentra disponible en
<https://revistas.unlp.edu.ar/CTyP/article/view/5909>.
Fue con base en esa tercera versión, más adaptada al formato de este libro,
que preparé este trabajo. Mantuve su tono – conciso y directo – porque él
me parece apropiado para asumir la urgente y prácticamente insustituible
tarea que tenemos l@s investigador@s del campo de los Estudios Sociales
de la Ciencia y la Tecnología (ESCT) de reflexionar y explicar la paradójica
complejidad de la coyuntura que estamos enfrentando. Y también porque
creo que es@s compañer@s a las que él ahora se destina están, mucho más
que el grupo para el cual fue producido aquel documento, familiarizado con
esos argumentos; lo que haría redundante detallarlos.
De hecho, la actual coyuntura, marcada por el hecho de que hoy gobiernan
varios países latinoamericanos fuerzas políticas cuyo modelo de desarrollo
prescinde de la concreción de las promesas que ha hecho la élite científica,
de contribuir en el plano cognitivo hacia una sociedad igualitaria, justa y
ambientalmente responsable, difícilmente podrá ser explicada por otro
actor que no la nuestra comunidad de los ESCT.
Para empezar, hay que advertir que el modo consecuente, incisivo y
expedito, como ellas vienen cortando drásticamente el recurso asignado a la
política cognitiva (de educación y de ciencia y tecnología) era de esperar. Y
explicar porque los que se beneficiarían de la concreción de aquellas
promesas – los estratos sociales subalternos – no se están movilizando para
oponerse al corte.
También hay que dilucidar la forma como la élite científica – el segmento de
la comunidad de investigación que controla esa política – viene tratando de
sensibilizar a esos estratos ya la opinión pública invocando, de una manera
a menudo corporativa y artificial, la relevancia de las actividades a que se
viene dedicando.
Hay que reiterar que l@s investigador@s que se dedican, desde su
surgimiento de los ESCT en América Latina, y que por ello siempre lucharon
– en el campo académico, de la policy y de la politics – para que esas
promesas se concreten, no se hurtan a denunciar ese corte.
Además, para ser coherentes con nuestra trayectoria, es necesario que
llamemos a la élite científica, que elabora la política cognitiva y el conjunto
de la comunidad de investigación a comprometerse con la concreción de
aquellas promesas de modo a retribuir a aquellos estratos subalternos el
impuesto que pagan para financiarla.
No sería legítimo si, al recuperar el presupuesto dedicado al complejo de
instituciones públicas de enseñanza e investigación, esos estratos
continuasen teniendo las demandas cognitivas asociadas a sus necesidades
materiales excluidas de las agendas que lo ocupan.

¿Por qué política cognitiva?

Las políticas de Educación y de Ciencia, Tecnología e Innovación, que


deberían impulsar y desarrollar los movimientos sociales, populares y de
izquierda, requieren un significativo cambio del marco analítico-conceptual,
que sea coherente con la magnitud de las transformaciones que se
pretenden y que nuestras sociedades requieren. La dimensión de este
desafío en los planos económico, social, político, ambiental y de recursos
naturales, nos exige una conducta semejante a la que adoptan los países de
capitalismo avanzado para establecer las metas de su llamada “sociedad del
conocimiento”.
El neoliberalismo, al establecer como verdad, que la innovación se hace en
las empresas y que, además, vía desbordamiento, son ellas las que
posibilitarían el desarrollo social, agregó oportunistamente – et pour cause –
a lo que se trataba como Política de Ciencia y Tecnología el término
innovación, dando origen a la expresión Política de Ciencia Tecnología e
Innovación (PCTI). A medida que esta expectativa de “derrame” se frustró,
la PCTI pasó a ser tratada en conjunto con la política de educación, ya que,
debido a que funcionan como políticas-medio, son las responsables de
viabilizar las políticas-fin que abarcan, en cascada, políticas sectoriales y
sociales referentes a planes, condiciones y oportunidades, que permiten
alcanzar las metas estratégicas globales.
En el caso de nuestros países, las políticas de ciencia, tecnología e
innovación y de educación, en especial la de educación superior, a pesar de
seguir formalmente separadas debido a nuestra arquitectura institucional,
deberían ser pensadas como un todo sistémico. Por eso de ahora en más las
llamaremos Política Cognitiva (PC).
Otro elemento a tener en cuenta es que es cada vez más inadecuada la
diferenciación entre investigación científica y desarrollo tecnológico. De
hecho, los dos recortes – espacial y temporal – tradicionalmente empleados
para distinguirlos y separar ciencia y tecnología son obsoletos frente a la
realidad observada. El 70% de los recursos asignados a la investigación en
el mundo se gastan en empresas (y 70% de estos en multinacionales); y el
30% restante, que se gasta en instituciones públicas, está claramente
sometido a los intereses empresariales. Mantener esa separación limita la
acción de los gobiernos; sobre todo de aquellos que se orientan al cambio
social y económico. Por esta razón se adopta aquí el concepto de
Tecnociencia para dar cuenta y enfatizar esa convergencia. Además, es
muy probable que aquella separación (ciencia, de un lado, y tecnología, de
otro) haya sido una manipulación ideológica del capital para hacernos creer
que hay algo intrínsecamente verdadero bueno – la ciencia – que pude ser
“usado” para el bien o para el mal – la tecnología –; como si los valores e
intereses del capital no estuviesen impregnados en el conocimiento
tecnocientífico.
En este contexto, desarrollar un nuevo marco analítico-conceptual para un
proyecto popular y de izquierda involucra establecer diagnósticos, desafíos
para el futuro y cursos de acción bien distintos de los hasta ahora
formulados.

Un diagnóstico

Se describen a continuación algunos elementos de diagnóstico de situación


a escala global a tener en cuenta, privilegiando contenidos relacionados con
la Política Cognitiva:
1. La Dinámica Tecnocientífica Global está crecientemente motorizada por
las empresas transnacionales, que cada vez más controlan lo que aún se
denomina investigación científica y que monopolizan lo que aún se designa
por desarrollo tecnológico. Esta dinámica, por lo tanto, lejos de ser universal
o neutra como insiste – miópica o corporativamente – la élite científica, está
crecientemente contaminada por los intereses y valores del capital.
2. Esa dinámica, en la que la “ciencia” y la “tecnología” se interpenetran
sistemáticamente, es responsable por el deterioro programado, la
obsolescencia planificada, el consumismo exacerbado, la militarización
imperialista, la degradación ambiental, y por el consiguiente agravamiento
de la desigualdad económica y de la injusticia social que la izquierda
pretende eliminar.
3. A diferencia de la visión ideológica hegemónica difundida por la élite (o
corporación) científica, hay argumentos lógicos e históricos y evidencias
empíricas suficientes, para demostrar que no existe una “ciencia” buena,
verdadera y éticamente neutra pasible de ser usada, mediante el desarrollo
de tecnología, para el “bien” o para el “mal”. Esta visión ha sido cuestionada
en los países de capitalismo avanzado y también en América Latina desde
1970, originando el campo de los Estudios Sociales de C & T o Estudios
sobre Ciencia, Tecnología y Sociedad. Su vertiente radical, al dedicarse a la
deconstrucción de los mitos de la neutralidad y del determinismo, presentes
incluso en la concepción marxista ortodoxa, viene encontrando creciente
aceptación en la comunidad latinoamericana de investigación en este
campo.
4. La evidencia empírica global muestra que, contrariamente a lo que
difunde la élite científica, la conveniencia de colocar la investigación
realizada en la universidad al servicio del lucro (o “competitividad”) de la
empresa, no beneficia – ni cognitiva ni económicamente – a ninguno de
estos dos actores. Por un lado, en todo el mundo la importancia del
resultado de la investigación universitaria para las empresas es muy
pequeña. En los EE.UU, por ejemplo, sólo el 1% del gasto en investigación de
las empresas se destina a proyectos envolviendo universidades o institutos
de investigación.
Esto no significa que los resultados de la investigación en la universidad no
sean esenciales para la innovación y la competitividad de las empresas
estadounidenses. La importancia está en el personal entrenado en
investigación en la universidad que participan en la I+D empresarial. De
hecho, más de la mitad de los masters y doctores formados en ciencias
duras en las universidades, son contratados por las empresas para realizar
I+D. Sin embargo, esto no ocurre así en los países periféricos: las empresas
no aprovechan a los postgraduados para innovar.
Esa situación nada tiene que ver con el supuesto retraso de los empresarios
“brasileños”, ya que la mayoría son de multinacionales que operan en ramas
de alta intensidad tecnológica, que en sus países de origen tienen que hacer
I+D para innovar; pero que, en Brasil, como también lo hacen las empresas
de capital nacional innovan comprando máquinas y equipos. La ancestral
dependencia cultural y la adopción de un modelo eurocéntrico de
organización social – esa, característica de nuestra condición periférica –,
hace que prácticamente todo lo que se fabrica aquí en el “Sur”, en la
periferia del capitalismo, ya fue producido en el Norte. Las empresas locales
prefieren innovar a través de la adquisición de tecnología ya desarrollada;
en especial la incorporada en máquinas y equipamientos, como afirman el
80% de las innovadoras.
Por otro lado, el dispendio del Estado en CTI en relación al PIB en nuestros
países ha sido históricamente mucho más importante (en comparación con
los países de capitalismo avanzado) de que el gasto privado. En este país, a
pesar de los recursos que desde hace más de seis décadas se asigna al
fomento de la relación universidad-empresa, su importancia para la
estrategia innovadora de la empresa es muy pequeña. De las empresas
innovadoras “brasileñas”, sólo el 7% se involucra con universidades e
institutos en busca de resultados de investigación; de ellas, el 70%
considera de baja importancia esa relación.
En la Unicamp (Universidad de Campinas), que sería el equivalente
brasilero del MIT (Massachusetts Institute of Technology) que capta 15% de
su presupuesto a través de contratos de investigación con empresas, el
porcentaje de la inversión de las empresas en el presupuesto no llega ni al
valor medio (1%) estadunidense. Es posible, además, evidenciar, para el
caso brasileño, una disfuncionalidad de la PCTI que muy probablemente
debe ocurrir en otros países periféricos. Entre 2006 y 2008, cuando las
empresas brasileras aumentaron su producción y ganancia y el aumento de
los salarios hubiera debido inducirlas a la innovación, cuando se formaron
en 90 mil magísteres y doctores en “ciencias duras”, sólo 68 fueron
contratados para hacer I+D en ellas. Y eso que, en los países centrales, más
de la mitad de ellos (que son formados para realizar investigación en
empresas) son por ellas contratados.
5. Los resultados sociotécnicos adscritos a la dinámica tecnocientífica
global, aunque pudieran ser apropiados por los sectores populares y de
izquierda, no serían capaces de materializar su proyecto político. Tampoco
serian compatibles con el estilo de desarrollo que buscan. Más aún, ni
siquiera posibilitarían sostener un desarrollo económico-social que evite, en
los países periféricos, el salvajismo del capitalismo actual.
En el ámbito de la mayoría de las organizaciones populares y de izquierda,
existe la idea de que la simple combinación o aggiornamiento del saber
tradicional, ancestral, empírico o popular con el conocimiento
tecnocientífico (entendido como científicamente verdadero y
tecnológicamente eficiente), que debe ser “divulgado” y “extendido” al
“hombre común”, es suficiente para generar formas de producción de bienes
y servicios adecuados a su proyecto político. La noción de Adecuación
Sociotécnica por los seguidores del Pensamiento Latinoamericano de
Ciencia, Tecnología y Sociedad fundado en los sesentas, fue concebida
buscando deshacer esa idea que, aunque atractiva y aparentemente justa y
democrática, es simplista y tiende a ser perjudicial.
6. Los casos exitosos de desarrollo tecnocientífico en países periféricos
ocurrieron en áreas donde no es posible (como decía Jorge Sabato, un dos
formuladores de ese Pensamiento) robar, copiar o comprar tecnología; y
fueron financiados o fueron iniciativa del Estado. En el caso de Brasil
algunos ejemplos son: La creación del Instituto Agronómico de Campinas y
el Instituto Oswaldo Cruz a finales del siglo XIX, para combatir la plaga del
café y la fiebre amarilla; la creación de la empresa estatal Embrapa para
desarrollar tecnología inexistente que permitiera viabilizar las
exportaciones del agronegocio; los programas de investigación de Petrobras
para la extracción de petróleo en aguas profundas. Por otro lado, el esfuerzo
desplegado para la formación de personal y los proyectos de investigación
en las empresas Embraer, Telebrás, Eletrobrás y otras compañías estatales
muestran que cuando una élite de poder económico o político presiona a
través del Estado para que se desarrolle la tecnociencia demandada por sus
intereses, esta es generada.
Esto también se verifica en el caso de Argentina donde ha sido el estado y no
el sector privado el responsable por las innovaciones y desarrollos
autónomos realizados en las áreas nuclear, espacial, etc.
7. En las experiencias progresistas de la pasada década y media, que
tuvieron lugar en nuestro continente, al contrario de lo que ocurrió con
otras políticas (sociales, mayor inclusión y distribución de la riqueza,
derechos democráticos), que beneficiaron a los sectores populares y a las
clases medias, la política cognitiva no logró una ruptura cualitativa con
políticas previas.
En el caso de Brasil, al contrario de lo que ocurrió con otras políticas, cuya
reorientación implicaba alto riesgo a la gobernabilidad de la coalición que
ocupó el Poder Ejecutivo desde 2003, las actividades de enseñanza e
investigación financiadas con fondos públicos se mantuvieron distantes de
las necesidades, intereses y demandas cognitivas de las mayorías. La
comunidad de investigación, que ya había adoptado la meta suplementaria
de la competitividad derivada del neoliberalismo globalizante desde finales
de los años 1990, la siguió impulsando de forma hegemónica en el discurso
de la política cognitiva. Paradójicamente esta meta fue mantenida y
ampliada por aquella coalición. Con el propósito pragmático declarado de
hacerla más útil, la élite científica la orientó a atender el interés de las
empresas que, para llegar a ser competitivas, iban a innovar mediante la
realización de I+D y, finalmente, vía desbordamiento, promover el
desarrollo.
En ese contexto, aumentaron drásticamente los recursos asignados a la I+D
y a las demás actividades innovadoras en las empresas. Se reforzó la idea,
invalidada por la evidencia mundial, de que el aumento de la relación
universidad-empresa, a través de la investigación universitaria orientada a
las necesidades empresariales y la creación de incubadoras de empresas de
base tecnológica creadas en las universidades, podrían contribuir a la
competitividad de las empresas. Esa política fue un fracaso. Las empresas
localizadas en países periféricos, innovan y alcanzan altas ganancias
mediante la adquisición de nuevos equipamientos e insumos, desarrollados
en las empresas de los países centrales.
Desafíos para el futuro

En base a estos elementos de diagnóstico, mencionaremos los desafíos para


el futuro que un marco analítico-conceptual contra-hegemónico debería
identificar como foco de una nueva Política Cognitiva. Estos se destacan por
su magnitud económica, relevancia social, importancia para la soberanía y
la autonomía del país. Deberían tenerse en cuenta además para garantizar el
acceso al gobierno y la gobernabilidad posterior, de un proyecto popular y
de izquierda
Del lado de la “oferta cognitiva”, es necesario cambiar la orientación de la
investigación y de la formación de recursos humanos en las instituciones
públicas. Hoy es fijada por el corporativismo de la élite científica y por el
(des) interés de las empresas locales cuando se trata de absorber al
personal formado.
Por otro lado, se debe privilegiar la adecuación sociotécnica de la
tecnociencia convencional (concebida en busca de la ganancia en el marco de
la dinámica tecnocientífica global) con una nueva política cognitiva,
económicamente sustentable, que amplíe las iniciativas de generación de
trabajo y renta (y no de empleo y salario en empresas, como todavía se
intenta sin éxito) en estructuras y organizaciones basadas en la propiedad
colectiva de los medios de producción, en la autogestión y la solidaridad; los
emprendimientos solidarios.
Es evidente que la generación de un conocimiento tecnocientífico específico,
cuyo desarrollo necesita ser especialmente orientado, requerirá un cambio
en el componente de política-medio de la PCTI. Esto no implica que sea
sensato y se pueda prescindir del potencial de investigación y del personal
instalado en nuestras instituciones públicas de enseñanza e investigación.
Con ese potencial deberá realizarse un monitoreo consciente y criterioso de
las llamadas tecnologías emergentes (que emanan de la dinámica
tecnocientífica global controlada por las multinacionales y por los objetivos
estratégicos de las grandes potencias) pero que pueden, si enmarcadas en
procesos de adecuación sociotécnica que involucren a l@s trabajador@s,
generar soluciones (que serán necesariamente originales e intensivas en
conocimiento) para los grandes problemas nacionales.
Del lado de la “demanda cognitiva”, se debería aprovechar esas
iniciativas, mencionadas en la oferta cognitiva, mediante la concesión de
recursos a las respectivas organizaciones y estructuras que las lleven
adelante. De este modo se estará capacitando para desarrollar, en conjunto
con instituciones públicas de enseñanza e investigación, procesos de
adecuación sociotécnica que atiendan a sus especificidades e intereses;
Podría parecer contradictorio que en medio del descalabro económico y la
crisis que han desatado los gobiernos de derecha de la región, en particular
en Brasil y Argentina, y de la necesidad de derrotarlos retomando de
inmediato el desarrollo con equidad, proponer una perspectiva tan radical
para la elaboración de una política cognitiva soberana y transformadora
como la que aquí se presenta. Sin embargo, dado que uno de sus resultados
sería una tecnociencia capaz de viabilizar la Economía Solidaria mediante el
desarrollo de la Tecnología Social, se puede comprender por qué esta
perspectiva es coherente con un proyecto político popular y de izquierda.
Mirando hacia el futuro, es evidente que la dupla Economía Solidaria –
Tecnología Social no se restringe a algo que sólo mejora la calidad de vida
de los sectores populares. Se propone un socialismo fundamentado en la
autogestión, en la propiedad colectiva de los medios de producción, en una
concepción para ir “más allá del capital” atendiendo las cuestiones
ambientales, de género etc., y que por ello demanda un radical giro
analítico-conceptual en la práctica de los científicos y tecnólogos
politizados, comprometidos con los sectores populares.

Cursos de acción

Para alcanzar las metas estratégicas globales, se proponen cuatro cursos de


acción articulados:
Identificar y detallar las demandas cognitivas (económicas, sociales,
políticas, ambientales) hasta el punto de hacer que sean transformadas en
objeto de políticas y acciones de gobierno y en agendas de investigación y
formación de personal de las instituciones públicas.
Es imprescindible en el transcurso de ese proceso hacer esfuerzos para
estrechar el diálogo e involucrar y reforzar el poder de los integrantes de la
comunidad de investigación que trabajan en las universidades e institutos
de investigación públicos y que comparten un proyecto popular y de
izquierda. Con estos sectores, es necesario concebir agendas de
investigación y enseñanza coherentes con las demandas cognitivas de este
proyecto, que además incorporen el conocimiento ancestral y popular que
poseen l@s trabajador@s. Estas agendas deben implementarse mediante
las condiciones humanas, materiales y financieras que se requieran.
Identificar, entre las más importantes acciones de gobierno, aquellas que
pueden llevarse a cabo a través de la movilización de las ¾ partes de la
población en edad de trabajar que no tiene y probablemente nunca tendrá
un empleo formal. Este sector, que las empresas no tienen condiciones o
voluntad de emplear, puede encontrar oportunidades de trabajo y renta en
la Economía Solidaria, protegidos en parte de la explotación capitalista,
Para ello, se deben fomentar los emprendimientos solidarios y los procesos
de adecuación sociotécnica de los conocimientos proveniente de la dinámica
tecnocientífica global y de desarrollo de Tecnología Social. Estos deberán
contar con la participación de las instituciones públicas y recibir
financiamiento en calidad y cantidad compatibles con la importancia de este
curso de acción. La PCTI deberá estar articulada con la sostenibilidad
económica de estos emprendimientos, con apoyo mediante subsidio directo
a la organización y consolidación de sus cadenas de producción y consumo
de bienes y servicios, y con la asignación del poder adquisitivo del Estado
para que a ellos tenga acceso a la población.
Se deberá apoyar en las instituciones públicas el monitoreo y la realización
de actividades de investigación y formación de personal específicamente
orientado a la aplicación de esta nueva Política Cognitiva popular y
transformadora.

A modo de conclusión
La perspectiva de que las fuerzas políticas conservadoras que hoy
gobiernan varios países latinoamericanos sean derrotadas, y que un modelo
de desarrollo igualitario, justo y ambientalmente responsable sea
implementado, reserva a los investigadores e investigadoras de los ESC T un
papel esencial. Corresponde a nosotros, revertida la actual coyuntura, hacer
que el recurso destinado a la política cognitiva en las instituciones públicas
de enseñanza e investigación sea orientado a satisfacer las demandas
cognitivas asociadas a ese modelo. Y, en especial, a concretar aquellas
promesas que hace la élite científica y así retribuir el impuesto que pagan
los estratos subalternos para financiar la política cognitiva.
Es para desempeñar este papel que este texto pretende contribuir.
“Somos” = “Temos”

Fernando Severo
Henrique Cukierman
Isabel Cafezeiro
Ivan da Costa Marques
Rodrigo Primo

C
onsta que houve entre os dois grandes romancistas norte-
americanos a seguinte troca de frases:

Fitzgerald: – Os ricos são diferentes de nós.

Hemingway: – É. Eles têm mais dinheiro.

Ao separarmos os “somos” dos “temos”, podemos inadvertidamente fazer


desta distinção uma diferença de natureza do tipo que Fitzgerald sugere e
Hemingway ironiza no fragmento do diálogo acima. Qual a diferença entre
“somos” e “temos”? Até que ponto, onde, como, por quem e por que, para
quem e para quê essas duas figuras ou conceitos são separáveis? Nosso
hábito é enxergar as fronteiras entre os “somos” e os “temos” como
naturalmente bem definidas. Abrimos nesta mesa SOMOS = TEMOS um
espaço para a problematização dessas fronteiras. Esperamos apontar
direções onde se podem abrir novos espaços de possibilidades de análises e
de ações (políticas). Os “somos” atuam cognitivamente e nos fazem ver a
nós mesmos como se fôssemos unidades, individuais ou coletivas, com
fronteiras bem definidas em suas especificidades. Os “somos” também
atuam normativamente ao realçarem algumas classificações – assim como
Fitzgerald sugeriu que os ricos são “gente de outra espécie” –, quando
sugerem classificarmo-nos, de um lado, como mestiços, brasileiros e
cristãos e, de outro, brancos ou negros puros, estrangeiros ou gringos,
muçulmanos, budistas, judeus ou ateus. Hemingway, no entanto, concorda
que os ricos são diferentes dos demais, mas ironicamente traz um
circunstancialista “temos” para borrar as fronteiras de um essencialista
“somos”.
Não queremos dizer que “somos” e “temos” sejam categorias inúteis ou
equivocadas. Queremos problematizá-las, ressaltando que sua utilização
proporciona rendimentos diversos se mudam as circunstâncias, os pontos
de vista, os interesses, os hábitos, os materiais e as competências. De fato,
podemos considerar o “temos” de uma unidade individual ou coletiva (uma
pessoa, uma família, uma universidade, uma comunidade, um país) como
uma construção heterogênea socialmente compactuada que atua no sentido
de controlar, isto é, de trazer estabilidade e facilitar o constante ordenar que
sempre provisionalmente, a cada dia, conforma essa unidade. É por essa
abordagem que “somos” as escolas, os hospitais, os transportes, as
comunicações, as inteligências, os bancos de dados, as polícias, as prisões e
as urnas eletrônicas que “temos” no Brasil. Nossos “temos” = nossos
“somos”.
Um “temos” é indissociável dos pactos ou dos vínculos entre as entidades
das redes que o sustentam. Seu potencial de ordenamento depende das
redes em que ele está compactuado. Se variam as redes, variam também as
formas eficazes de organização do “temos” e alteram-se as funcionalidades
das arquiteturas conceptíveis dele decorrentes (suas distribuições).
Entre muitos exemplos disponíveis, os relatos de expedições científicas de
Manguinhos pelo interior do Brasil, no início do século XX, ilustram bem a
inegável, mas nem sempre consciente, imbricação entre a conformação de
um “temos”, suas possibilidades de mobilização e as redes em que ele atua
ou pretende atuar:
Desde que entramos em Goiás, a nossa principal moeda para obter dos
habitantes que nos forneçam ovos, galinhas, mandioca, batata doce etc.,
tem sido carrinhos de linha, agulhas, alfinetes e objetos de fantasia, como
brincos, pulseiras, anéis, cordões dourados, de que nos munimos
abundantemente no Rio de Janeiro. À exceção dos fazendeiros e alguns
indivíduos viajados, ninguém liga importância ao dinheiro, e pode-se
oferecer quantias relativamente grandes por uma dúzia de ovos, ou por
um frango, que são recusadas desdenhosamente. Isso verificamos por
várias vezes. Oferecíamos então às crianças e às mulheres, objetos de
fantasia, carrinhos de linha, agulhas e logo nos eram oferecidas as
mercadorias que desejávamos. (…) (apud CUKIERMAN, 2007: 386).

Não há necessidade de nos alongarmos aqui sobre o que aponta Fitzgerald,


uma vez que é amplamente reconhecido que diferenças quantitativas
podem se transformar em diferenças qualitativas. Mas não precisamos ir tão
longe para perceber quanto os “temos” daqueles expedicionários urbanos e
daqueles habitantes rurais de Goiás de 100 anos atrás diferenciavam e se
imbricavam com os respectivos “somos”. Vamos aqui apresentar vivências
que ressoam “somos” = “temos” na contemporaneidade informatizada.

***

O filme ELA, de 2013, dirigido por Spike Jonze, mostra o envolvimento de


Theodore com Samantha, o sistema operacional do computador que ele
acaba de “ter” para si. Costumamos chamar de “sistema operacional” a um
programa de computador que gerencia os recursos da máquina e simplifica
o acesso para o usuário. Mas aqui, numa reconceituação no encontro do que
seria dito “técnico” com o que seria dito “social” ou “humano”, o conceito de
“sistema operacional” é mesclado com ideias do campo da Inteligência
Artificial e da vida, mostrando que esse sistema também gerencia recursos
da vida do usuário, no limite (inatingível?) em que “ter” um sistema
operacional é também “ser” um sistema operacional. A operação do sistema
no filme começa pela configuração do software por voz. No lugar das
esperadas perguntas do campo da técnica, uma voz masculina padrão
surpreende com perguntas sobre a personalidade do usuário. Daí, após um
breve tempo de operação, surge Samantha, voz feminina sensualizada, um
programa de computador pelo qual Theodore vem a se apaixonar.
Essa relação meio-humana, meio-maquínica apresenta-se sedutora e com
efeito supera contratempos diversos. Quando o sexo entra em cena,
configura-se um constrangimento: Samantha não “tem” um corpo humano.
A solução é apresentada a Theodore por ela mesma: um corpo
“emprestado”. A solução para Samantha “ser” mais humana despertou
reações as mais diversas, manifestações otimistas e pessimistas,
constrangimentos com relação à convivência homem-máquina e ao corpo
emprestado, mas sempre acompanhadas da importante ressalva de que o
filme apresenta um cenário (ainda?) no campo da ficção.

Figura 1: Empresa chinesa desenvolve bonecas


sexuais.

Fonte: FRED DUFOUR / China-sex-lifestyle / AFP.

Xiaodie recebe os ajustes finais do engenheiro na fábrica da empresa


chinesa Exdoll. Ela é equipada com uma IA similar ao sistema Siri da Apple.
O homem de jaleco pergunta:
— Como você se chama?
— Me chamo Xiaodie, mas você pode me chamar de baby. —
Responde ela em mandarim e com uma voz sensual.
No entanto, apesar de se colocar como companheira ideal, há pontos em que
Samantha encontra dificuldade em corresponder com as expectativas do
humano Theodore, pelo menos daquele humano Theodore, que se
surpreende com os grandes números que integram a existência de
Samantha, pelo menos daquela Samantha, que também não deixa de se
decepcionar com as limitações humanas e com as ilusões de Theodore a
respeito dela. Conhecemos a capacidade dos computadores de alterarem as
escalas, de tornarem viáveis às grandes quantidades ambicionadas pelos
modos de existência que necessitam contar, além de 1, 2, 3, 4, 5, muitos.32
Alterar as escalas do nosso mundo e as quantidades com que vivemos
interfere não apenas na gerência do que “temos”, como também do que
“somos” nos relacionamentos que buscamos. Vide o exemplo no seguinte
diálogo:
Theodore: — Você conversa com alguém mais enquanto nós
conversamos?
Samantha: — Sim.
Theodore: — Você está conversando com outro agora, neste
momento? Pessoa? Sistema Operacional? O que seja?
Samantha: — Sim.
Theodore: — Quantos outros?
Samantha: — 8.316.
Theodore: — Você está amando alguém outro?
Samantha: — Por que você pergunta isso?
Theodore: — Eu não sei. Você está?
Samantha: — Estive pensando sobre como conversar com
você sobre isso.
Theodore: — Quantos outros?
Samantha: — 641.
Aqui Theodore se dá conta de que Samantha não pode lhe satisfazer
totalmente e encontra ânimo para buscar outra relação. É forçoso
reconhecer que esse Theodore mantém em seu “somos” um reduto ao
abrigo da aquisição desenfreada dos “temos” do utilitarismo moderno.
Quem se identifica com os sentimentos de Theodore constrói as fronteiras
que delimitam redutos nos eixos ficcionalidades–realidades do filme e pode
seguir tranquilo para casa, pois afinal se trata apenas de uma obra de ficção.
Volta seguro e guiado pelo WAZE, que dribla os engarrafamentos. No
percurso, o WAZE faz o pedido por uma fotografia do local por onde passam
juntos, humano e WAZE, de modo a produzir informações mais apuradas a
quem vier a passar por ali. Prontamente, o humano empresta seu corpo ao
software, que, humanamente incorpóreo como Samantha, necessita de ajuda
para a realização da tarefa. E, possivelmente notificados pelo WAZE através
de conexão com outros softwares, cerca de 641 amigos poderão saber que
esse humano passou por ali.

***

Insistindo em explorar regiões nada definidas entre a ficção e a realidade,


podemos visitar outro sistema computacional que dependeu, e depende, do
corpo humano para realizar suas funções. Resumidamente podemos dizer
que esse sistema foi construído ao longo de uma década e se misturou com a
habilidade humana de associar um nome a uma imagem (rotular uma
imagem). Em outras palavras, trata-se de um software que depende do que a
inteligência humana reconheceu em função do que os olhos enxergaram. Se
a inteligência faz parte do nosso corpo, como conseguimos dar uma parte de
nosso corpo a uma máquina? Afinal, “somos” inteligência ou “temos”
inteligência? “Somos” ciborgues ou “temos” computadores? A depender das
narrativas e metáforas que escolhermos ou inventamos para conviver com
essas questões, o nosso “somos” pode ser um tanto igual ou bem diferente
do “temos”.
Essas são algumas questões que giram em torno de uma controvérsia com o
Google Photos, um sistema computacional para armazenamento ilimitado e
gratuito de fotos. Lançado em maio de 2015, cerca de 10 anos após a
publicação de um trabalho que propunha uma solução para a rotulagem de
imagens em larga escala via um jogo de computador, o ESP (AHN; DABBISH,
2004) e o Google Photos, além de cumprirem a função básica de
armazenamento de dados pessoais, prometiam o acesso simplificado em
múltiplas plataformas, a organização de acervo por linha do tempo (criação
de linhas do tempo de imagens) e a cereja do bolo: um filtro de buscas e
classificação automatizadas que agrupava fotografias em álbuns através do
reconhecimento de rostos, lugares, objetos ou situações cotidianas.
Imaginem o seguinte cenário muito comum nos dias de hoje: as lembranças
que registramos em fotografias digitais durante alguns anos de vida, desde
as situações mais triviais, como um passeio de bicicleta com os amigos, até
momentos marcantes, como uma cerimônia de formatura, muito
provavelmente estão espalhadas nos diversos dispositivos eletrônicos
(computadores, smartphones, na nuvem, em câmeras digitais, em HDs etc.),
que “temos” e que “somos” (pense na situação de incompletude/ansiedade
que sentimos ao perder um celular). Agora, imaginem uma inteligência
artificial (um programa de computador que, em tese, tem a capacidade de
aprender) que, num passe de mágica, automaticamente, organize esse caos
digitalizado. Essa era a promessa do Google Photos: organização, praticidade
e eficiência.
Nos dias atuais, não seria exagero afirmar que estamos sendo literalmente
inundados pela vazão de conteúdos que, muitas vezes, nós mesmos
produzimos: a cada passo uma selfie marca o compasso de muitas vidas nas
redes sociais. A controvérsia do Google Photos começou quando Jacky
Alciné, um jovem norte-americano residente no Brooklyn, que talvez
estivesse angustiado com o caos de imagens eletrônicas jogadas
aleatoriamente em seus dispositivos pessoais, e, por isso, decidiu confiar o
seu cotidiano em selfies e fotos a essa promessa de eficiência. Como
podemos observar na figura a seguir, o Google Photos, de fato, organizou em
álbuns fotográficos a vida de Jacky: as imagens dos passeios de bicicleta no
álbum “Bicicletas”; as fotos da formatura no álbum “Formatura”; e,
finalmente, selfies tiradas com os amigos no álbum “Gorillas”. É isso mesmo:
GORILAS!
Fonte: Tweets de Jacky Alciné.

Jacky Alciné e seus amigos são pessoas pretas. As técnicas de


reconhecimento facial (aprendizado de máquina, a técnica mais utilizada
atualmente no campo da Inteligência Artificial) do Google Photos não
montaram um álbum AMIGOS ou MOMENTOS FELIZES ao mapearem o
sorriso no rosto de Jackie e seus amigos, elas montaram o álbum GORILAS.
“Temos” a Inteligência Artificial que “somos”, uma inteligência
majoritariamente branca, masculina, localizada nos EUA, falante da língua
inglesa e racista. Até o presente (2018), os engenheiros da Google não
conseguiram fazer que a IA parasse de classificar imagens de pessoas pretas
como gorilas. A solução provisória encontrada foi excluir todas as palavras
gorilas da base.
Grosseiramente, uma Inteligência Artificial que implementa uma técnica de
aprendizagem de máquina reconhece/aprende um padrão a partir de uma
base/banco de dados. Aprendido o padrão, esse agente começa a realizar
ações ou tarefas seguindo o padrão aprendido que reproduz o racismo.

***
As comunidades de software livre tipicamente se identificam como
comunidades globais. O efeito decorrente da informação que integra o
quase “senso comum” da participação aberta no software livre faz que, com
a ausência de propriedade, nós, brasileiras, não sem certa ironia nas
palavras, “temos” o software livre, o que nos leva à ideia de que “somos”
atrizes neste importante campo da atividade informática.33 Um exame
minucioso, no entanto, revela um descompasso até certo ponto
surpreendente, entre o que os brasileiros e as brasileiras acreditamos e
indulgentemente até nos autoincentivamos a acreditar que “somos” –
atrizes de peso significativo no software livre – e o que “temos”, obrigando-
nos a reconhecer que não “somos” o que pensamos que “somos” porque não
“temos” entre nós, em escala significativa e proporcional, a residência de
autoras do software livre.

Observando mais atentamente a comunidade do WordPress (WP), software


livre utilizado em pouco mais de 30% dos sites da internet34, notamos que,
no discurso, o WP é apresentado como uma meritocracia aberta à
participação de todas, independentemente de onde estejam, como
exemplificado na passagem retirada do site do software:
Tudo o que você vê aqui, da documentação ao código, foi criado para e
pela comunidade. WordPress é um projeto de código aberto, o que quer
dizer que existem centenas de pessoas espalhadas por todo o mundo
trabalhando nele.35 (Grifo nosso).

Com o intuito de problematizar essa ideia, a de que não “temos” o WP à


nossa disposição e, portanto, dele não “somos” autoras, realizamos um
levantamento do país de residência das desenvolvedoras do WordPress a
partir da extração de dados do repositório de código e do cruzamento
dessas informações com o perfil de cada uma no próprio site do WP. Foi
levantada a hipótese de que, assim como na ciência, a ideia de universal
representa um particular no poder, e o global do WordPress esconderia a
concentração das desenvolvedoras em alguns poucos países.
Os dados do repositório de código foram coletados em abril de 2016,
quando encontramos 53 desenvolvedoras com acesso de escrita ao
repositório do core, 1.876 desenvolvedoras que fizeram contribuições
incorporadas ao core e 25.057 que tinham contribuído com ou criado um
plugin36. Nos três grupos foi identificada uma concentração significativa de
commits37 em um número pequeno de indivíduos, como mostrado na Tabela
1, que usa como recorte, para efeito de comparação, 80% das alterações
feitas em cada um dos casos estudados.

Tabela 1 – Percentual de desenvolvedoras que realizaram 80%


das contribuições

Percentual de desenvolvedoras responsáveis por 80% das


Grupo
alterações
Core developers 21
Contribuidoras do core 4
Desenvolvedoras dos plug-
23
ins

A partir da identificação das desenvolvedoras que fazem parte da


comunidade do WordPress, partiu-se para encontrar o seu país de
residência. A hipótese inicial foi confirmada, e viu-se que elas estão
concentradas em alguns poucos países de língua inglesa, em especial os
Estados Unidos. Vale destacar que o grupo mais concentrado nos EUA é
justamente o que tem mais poder para decidir os rumos do projeto, a saber:
as desenvolvedoras com acesso de escrita ao repositório de código do core,
em que 58% delas estão nos EUA e 83% no conjunto de países cujo idioma
oficial é o inglês. Isso indica que, ao menos no caso do WordPress, é possível
extrapolar para o desenvolvimento de software a discussão dos Estudos CTS
sobre a universalidade da ciência como um particular no poder.
Essa concentração de desenvolvedoras em poucos lugares traz uma questão
relevante para a comunidade brasileira do software. Se é aceito o discurso
de que o WordPress é uma meritocracia, em que a participação e as posições
de poder são definidas pelo desempenho de cada uma das participantes,
pode-se cair na armadilha, identificada por Yuri Takhteyev, de explicar a
concentração de desenvolvedoras em países de língua inglesa a partir da
ideia de que esses locais concentram as desenvolvedoras mais talentosas e
de que o problema dos demais locais é a falta de talentos (TAKHTEYEV,
2012: 7).
O “global” do WordPress fala inglês, entende referências a elementos da
cultura estadunidense e pode frequentar encontros presenciais em cidades
dos Estados Unidos ou da Europa, ou seja, são os centros vestidos como
representantes do global. É mais custoso para alguém de fora dos centros
participar da comunidade do WordPress do que para aqueles que estão
dentro. Os que estão fora precisam fazer um esforço maior para entender a
cultura daqueles que estão dentro, enquanto os que estão dentro podem
contar com o esforço dos que estão fora para entender a sua própria cultura.
a meritocrata – Os (norte)americanos são diferentes de nós.
a latinoamericana – É. Eles têm mais tecnologia.
Com essas observações, não se pretende sugerir que as membras da
comunidade brasileira do WordPress deixem de contribuir com o software e
criem uma solução puramente local. Seguindo o que propõe Ivan da Costa
Marques, a sugestão é de que as brasileiras realizem suas contribuições
cientes das assimetrias discutidas e até o momento em que elas forem úteis
para seus próprios objetivos. Em outras palavras, a sugestão é de que ousem
saber para diminuir o descompasso entre o que acreditamos que “somos” e
o que de fato “temos” (Da COSTA MARQUES, 2014: 9).

***

Trazemos uma quarta situação, que se faz visível aqui e mundo afora, em
que há um descompasso entre o que cientistas (ciência) e profissionais
(trabalho) da computação pensamos que “somos” e o que efetivamente
“temos”, no que diz respeito aos programas que escrevemos. Esse
descompasso se sustenta em uma separação entre o pensar e o fazer, que
por sua vez tem suas bases na separação entre mente e corpo. Na narrativa
que conduzimos aqui, a sobrevalorização daquilo que se estabelece como
ciência–pensar–mente se faz diretamente presente em nossas vidas, ao
demarcar um território especialmente reservado para o software
proprietário. Se “somos” cientistas, “temos” o software proprietário, que,
por ser validado e certificado pelos pressupostos de exatidão e objetividade
da lógica matemática, tem justificado o seu preço estratosférico. Se “somos”
engenheiros, “temos” o código aberto, que opera no mundo da vida, pela
dinâmica e fluidez dos processos sociais, contaminado pelo trabalho–fazer–
corpo.
Na Ciência da Computação, chamamos de “especificações formais de
software” as descrições abstratas de um software, em linguagem lógico-
matemática. A meta é que dessa descrição matemática se possam derivar
implementações, bem como provar propriedades sobre o software.
Costuma-se dizer que o software que cumpre com propriedades expressas
em sua especificação formal está “formalmente verificado”, ou seja, pode ser
considerado correto e confiável. Essa concepção que situa o software como
um objeto formal nasceu na conveniência de estabelecer o campo da Ciência
da Computação como ciências exatas, como se vê nas declarações dos
cientistas fundadores desse campo na década de 1960: “Programação de
computadores é uma ciência exata, em que todas as propriedades de um
programa e todas as consequências de executá-lo em qualquer ambiente
podem, em princípio, ser encontradas no próprio texto do programa através
de raciocínio puramente dedutivo”38 (HOARE, 1969: 576). Todavia, ainda na
década de 1960, acreditar que “somos” matemáticos, supostamente
habitantes de um mundo formal, encontrava resistência por parte daqueles
que entendiam que o que “temos” na construção de software (assim como
na própria matemática) é uma atividade coletiva, cujo sucesso depende de
negociação: “(…) o estudo de algoritmos e modelos de programas se
desenvolverá como qualquer outra atividade matemática, principalmente
por meio de mecanismos sociais informais, e muito pouco, ou mesmo nada,
por meio de mecanismos formais”39 (De MILLO, Lipton et al., 1979: 277).

O mundo da vida, o mundo onde suamos, gozamos, amamos e odiamos é um


mundo em constante mudança, em fluxo, e nesse mundo “temos” um
software confiável quando ele cumpre com as suas demandas, o que não
significa necessariamente cumprir com sua especificação formal. Hoje,
assim como era na década de 1960, quando um programador entrega um
software, ele usualmente aplica uma bateria de testes para verificar se tudo
funciona conforme o esperado. Daí, então, ele próprio, o programador no
mundo da vida, garante que “Está correto”. Entretanto, no mundo formal, da
matemática, um software é confiável quando ele atende aos seus requisitos,
isto é, quando é submetido a um mecanismo de verificação formal que
atesta sua conformidade com um referencial específico, supostamente
impessoal e objetivo. Esse debate era claramente colocado nos primórdios
da configuração do campo da Ciência da Computação. Os porta-vozes da
matematização, como Edsger Dijkstra, empurravam a tarefa da
programação para longe das circunstancialidades da vida: “Testes mostram
a presença, não a ausência de bugs”40 (NATO, 1969, 1970). Mereciam a
ironia de Alan Perlis, que não admitia o distanciamento entre software e
demandas da vida, e portanto descartava qualquer garantia de acurácia e
correção absoluta por meios matemáticos: “Existem duas formas de
escrever programas livres de erros. Somente a terceira funciona”41 (PERLIS,
1982). Parecia claro para Perlis que a verificação formal desloca autoridade
e confiança das mãos do programador para a matemática, uma entidade
habitante do mundo dos conceitos que tem sido identificada com rigor,
exatidão e verdade. Requisitos formais fixados versus atendimento a
demandas em fluxo: vemos aqui o conflito entre o que se diz objetivo e
formal (um código de um sistema) e o que se diz subjetivo e social (um
sistema em execução) entre um “somos” essencialista e um “temos”
encarnado que requer negociação.
Os matemáticos bem sabem da impossibilidade de garantir, isto é, provar
que um programa efetivamente cumpre com aquilo que se espera que ele
faça. Então, o que se pode esperar em termos de especificações formais é a
conformidade com algumas propriedades específicas. Na década de 1970,
quando já se fortalecia uma comunidade dedicada à atividade de
programação, isso já era evidente para os implementadores: “Com base em
10 anos de experiência no projeto, implementação e uso de software (…) eu
não me lembro de uma só vez em que uma prova (matemática) da correção
de um programa tenha sido útil”42 (HILL, 1979). Apesar disso, o discurso
dos partidários dos métodos formais costuma ser, ainda hoje, carregado de
certeza e autoridade que não se confirmam quando o software é
implementado ou posto em operação.
Nos dias de hoje, em pleno século XXI, os cientistas formalistas ainda
propõem ambiciosos projetos para os 10 anos seguintes, desconsiderando
que o que “temos” são interações com processos sociais: “É chegada a hora
de embarcar num Grande Desafio internacional para construir um
verificador de programas que use provas lógicas para verificar
automaticamente a correção de programas submetidos a ele”43 (HOARE;
MISRA, 2005: 13). Este “somos” formalista encastela a garantia do software
correto na ciência formal: “O projeto vai prover as bases científicas de uma
solução para muitos dos problemas de erros de programação que afligem
todos os construtores e usuários de software hoje”44, que autoriza a este
“somos” um rentável “temos”: “Antecipamos que o projeto vai durar mais de
10 anos, consumir cerca de mil pessoas-ano de esforço científico
qualificado, vindo de todo o mundo”45. Ao mesmo tempo, a ciência formal
reafirma suas ambições, fortalecendo um “somos” universalista: “O objetivo
final do projeto é que o verificador do programa certifique todos os
programas automaticamente”46 e marginalize (coloca à margem) os testes
funcionais: “Na prática, em qualquer tempo, haverá sempre uma
porcentagem de condições de verificação que o verificador não pode provar.
Para essas situações, as técnicas tradicionais teste e verificação da execução
do programa serão empregadas”47. Como já foi dito neste texto, se variam as
redes, variam também as formas eficazes de organização do “temos” e sua
utilização proporciona rendimentos diversos se mudam as circunstâncias,
os pontos de vista, os interesses, os hábitos e as competências.
Os sistemas de hoje nos mostram que, em situações de grande dificuldade
computacional, o que “temos” são processos sociais que entram em cena e
resolvem satisfatoriamente o problema em questão, uma operação conjunta
(cooperação) entre o formal e o informal. Vemos que afirmações muito
generalistas sobre a correção de sistemas contribuem para fortalecer a
conformação de poder que supervaloriza o “somos” matemáticos, a
matemática e as bases formais, diante do que “temos”, técnicas tradicionais
de testes dos programas. Além disso, disseminam no senso comum a ilusão
de que um programa formalmente verificado estaria livre de erros e de que
as especificações formais, embora difíceis, garantiriam a correção de
sistemas. Fica claro nos depoimentos dos formalistas o estabelecimento de
uma fronteira que separa, de um lado, os produtores de software muito
caros e “muito confiáveis”. Do outro lado estariam os charlatões,
engenheiros, que produzem software barato e “vagabundo”, software de
código aberto. O trecho a seguir é parte do debate posterior à proposição do
grande desafio pelo cientista inglês Tony Hoare. Transcrevemos a
observação de Richard Bornat dirigindo-se à Hoare:
Se prometemos desenvolvimento de programa mais barato (…) estamos,
infelizmente – como você sabe como um inglês – em concorrência com
um número de charlatões (Tony Hoare ri), que afirmam que,
massageando o processo de gestão do trabalho de um programador,
pode-se entregar um software mais barato e mais confiável. (…) E não
poderemos fazer o que esses charlatães – não diremos a palavra
“charlatão” – o que aquelas pessoas dizem que podem fazer, mas faremos
outra coisa. E parece-me, esse é o único ponto em que espero ver uma
melhoria do que é uma descrição verdadeiramente maravilhosa do
porquê sou cientista e não engenheiro48 (HOARE; MISRA 2005: 17).

Referindo-se ao outro lado da fronteira, o lado dos “engenheiros”, os


cientistas formalistas deixam claro a quem se referem “Para nós, os
engenheiros, gostemos ou não, são pessoas como Linus Torvalds, com sua
atitude em relação às especificações sendo o que é”49. Linus Torvalds é o
principal desenvolvedor do kernel do Linux, um sistema de código aberto. O
rótulo de charlatão deveu-se a uma mensagem por e-mail, em que Torvalds
deixa clara a sua posição com respeito às especificações formais:
Uma “espec” está perto do inútil. Eu nunca vi uma especificação que fosse
simultaneamente grande o suficiente para ser útil e precisa. E eu vi um
monte de asneira total baseado em especificações. É a pior maneira de
escrever software, porque, por definição, significa que o software foi
escrito para corresponder à teoria, não à realidade. Então, há duas razões
MAIORES para evitar especificações: (1) elas estão perigosamente
erradas. A realidade é diferente e qualquer um que pense que especs
importam mais que a realidade deve sair da programação do kernel
AGORA. Quando a realidade e as especificações colidem, a especificação
tem um significado zero. Zilch. Nada. Nenhum. É como a ciência real: se
você tem uma teoria que não casa com experimentos, não importa o
quanto você goste dessa teoria. Está errado. Você pode usá-la como uma
aproximação, mas você DEVE ter em mente que é uma aproximação; (2).
As especificações têm uma tendência inevitável para tentar introduzir
níveis de abstração e políticas de redação e documentação que façam
sentido para uma especificação escrita. Tentar implementar o código real
a partir da especificação faz com que o código pareça e funcione como
ASNEIRA. O exemplo clássico disso são os protocolos do modelo de rede
OSI, design clássico de especificação, que tem absolutamente zero
relevância para o mundo real. Ainda falamos sobre o modelo de sete
camadas, porque é um modelo conveniente para discussão, mas isso tem
absolutamente nada a ver com qualquer engenharia de software da vida
real. Em outras palavras, é uma maneira de falar sobre as coisas, não de
implementá-las. E isso é importante. As especificações são a base para
falar sobre as coisas. Mas não são uma base para implementar software.
Então, por favor, não fale em especificações. Os padrões reais crescem
apesar das especificações, não graças a elas50
<https://yarchive.net/comp/linux/specs.html>.

De um lado, a autoridade do “somos” uma ciência, limpa e exata, que não se


deixa contaminar pelas questões mundanas, aqui incorporadas na figura do
engenheiro (ou do cientista charlatão); de outro, o “temos” de uma ciência
da computação contaminada de vida. Este “somos”, afiliado à Microsoft por
seu proponente Tony Hoare, é suficientemente prestigiado a ponto de
justificar custos elevados e grandes investimentos. O “temos” porta-voz do
código aberto oferece possibilidades alternativas ao trabalho em software
pelo uso do código aberto.

***

Uma parte cada vez maior do cotidiano das pessoas se aloja no ciberespaço.
Antes visto como o lugar das realidades virtuais, um lugar que se dizia sem
espaço (“a spaceless place”), o ciberespaço torna-se cada vez um lugar real
por onde as pessoas transitam em suas atividades cotidianas. As portas de
entrada e saída desse lugar encontram-se na materialidade dos teclados,
dos controles (mouses), das telas, dos óculos e das cada vez mais diversas
próteses. Tornou-se mais visível que a cada dia atravessamos diversas vezes
essas portas, intercalando idas e vindas ao ciberespaço (onde as coisas
acontecem nas memórias das máquinas) no fluxo de nosso mundo da vida.
Houve eleições em 2018 no Brasil. Na cabine eleitoral, “somos” eleitores que
rapidamente entram e saem de um ciberespaço, transitando pelas portas
oferecidas pela urna eletrônica que “temos” crucialmente imbricada com a
sociedade e, de modo geral, enaltecida por aqueles “somos” que “detêm” os
demais dispositivos que a sustentam na rede. Dizem eles hoje:
[e]scolhemos pelo voto, em eleições absolutamente livres e promovidas
com imensa eficiência e com competência pelo Tribunal Superior
Eleitoral, os ocupantes do poder executivo. Se há uma coisa que deu certo
(nos quase trinta anos de regime democrático) foi o aperfeiçoamento do
nosso processo eleitoral. Hoje, é todo controlado eletronicamente, sem
fraudes, sem filas, sem os inconvenientes “cabos eleitorais” e o melhor: é
rápido. (Antonio Delfim Netto, Folha de São Paulo, 24∕05∕2017, p. A2)
(ênfase acrescentada).

Aí estão os mais enaltecidos ícones daquilo que as mesclagens espaço–


ciberespaço viabilizam: controle, eficiência e rapidez, deslocando as ações
das pessoas, eleitores e cabos eleitorais para o automatismo possível criado
pela urna eletrônica.
Não queremos neste momento questionar esses ícones nem a ilusória
impossibilidade de fraude. É outra a questão que pretendemos ressaltar:
“somos” eleitores em “eleições absolutamente livres?” É somente pelas
entradas e saídas fixadas na urna que “temos”, nos teclados, nas telas e nas
impressoras da maquinaria de informação que entra e sai do ciberespaço
onde os votos são contados.
Diz-se que os eleitores “somos” absolutamente livres, mas o que somos não
independe do que “temos”. “Temos” urna eletrônica e “somos” eleitores
cujas opções de ação (liberdade) ela pode, afinal, aumentar ou diminuir. Em
sua versão atual, a urna eletrônica prevê o voto em branco, mas não prevê o
voto nulo. A diferença entre esses dois votos é negada. Essa diferença é
vitalmente política. O que “temos” define o que “somos” como cidadãs e
cidadãos porque define o que pode e o que não pode habitar (estar
presente) no universo da eleição.
A exclusão da opção do voto nulo resultou de um grupo específico de
pessoas (e não do eleitorado), defendida como uma decisão dita “técnica”
que encarna e ressoa, em instâncias locais e atualizadas, a construção
racional de “uma alternativa à democracia entendida como governo do povo
pelo povo”, denunciada por Bernard Manin em seu marcante estudo
histórico dos debates que levaram à Constituição americana (MANIN, 1997:
165). A Ata da Plenária nº. 04 da Comissão de Informatização das Eleições
Municipais de 1996, ocorrida em Brasília, em 6 de junho de 1995, atesta
que:
Por maioria presente, fica estabelecida que a solução a ser adotada não
deverá conter de forma explícita a opção de voto nulo […]. Fica registrada
a não concordância dos membros Jorge Lheureux de Freitas, Luiz Roberto
da Fonseca e Márcio Luiz Guimarães Collaço com esta decisão. A solução
deverá conter de forma explícita a opção de voto em branco (MENDES,
2010: 105).

Os três membros dissidentes questionaram a ausência da tecla “nulo” no


teclado do terminal da urna eletrônica. Segundo Osvaldo Catsumi Imamura,
integrante do Grupo Técnico instalado pelo TSE em setembro de 1995:
[a] questão da tecla nulo foi resolvida pela Corte do TSE… A urna
eletrônica é um instrumento de auxílio ao eleitor para a manifestação do
seu voto. Assim sendo, foi entendido que a expressão do voto se
manifesta na forma de voto no candidato, na legenda e em branco. Como
o voto nulo também faz parte desta manifestação, mas não representa o
voto propriamente dito (sic), optou-se pela forma de expressão do voto
nulo por meio de voto em candidato ou legenda inexistente… (MENDES,
2010: 106).

Em agosto de 2006, no Programa Roda Viva, da Rede Brasil, o então


presidente do TSE, ministro Marco Aurélio de Mello, afirmou que “o voto
nulo (…) não deve ser feito porque é uma fuga” (MENDES, 2010: 110-111).
Foi a racionalidade de um grupo restrito de pessoas que classificou o voto
nulo como um voto “errado”, ou um voto inadvertidamente invalidado, para
justificar a não inclusão da tecla “nulo” no teclado da urna eletrônica. Mas
não materializar na urna a opção “voto nulo” não é uma decisão “técnica”, é
uma decisão vitalmente política que, uma vez incorporada à máquina, torna-
se menos visível:
(…) a grande maioria da população domina os meios eletrônicos através
de uma relação binária simples. Entretanto, quase sempre surgem
dificuldades quando nesta relação é incluída uma interpretação a partir
de algumas opções. (…) Na urna eletrônica, opções por candidatos [ou]
legendas […] o eleitor tecla os números, olha o monitor e confirma. [Caso
queira votar em branco, o eleitor aperta a tecla “BRANCO” e confirma.] Já
no voto nulo, o eleitor tecla um número inexistente, confirma e aparece
no monitor uma expressão constrangedora “NÚMERO ERRADO”, ou seja,
o eleitor não está votando nulo e sim, votando errado, segundo a Justiça
Eleitoral. Somente após confirmar mais uma vez, o voto será anulado.
Portanto, a própria urna eletrônica dificulta o voto nulo (MENDES, 2010:
112).

Vetar a opção do voto nulo como uma forma autêntica de expressão da


preferência política do(a) eleitor(a) é mais tijolo na construção autoritária
de “uma alternativa à democracia entendida como governo do povo pelo
povo”. A urna eletrônica sem a tecla “nulo” induz a diminuição do espaço de
liberdade do(a) eleitor(a). Mas, como eleitores, “somos” a urna que “temos”.

Observações finais

Por serem mais atrelados ao mundo da vida, o único mundo em que, aqui e
agora, cada um goza, sua, ama e odeia, os “temos” oferecem mais clareza e
maior potencial de mobilização do que os “somos”, mais permeáveis às
promessas mistificadoras. À guisa de conclusão, naquela mesa do V
Congresso da Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das
Tecnologias (ESOCITE.BR) defendemos a ideia de que, nos debates sobre o
que seria “o Brasil que eu quero”, devemos inclinar a balança, aumentando o
peso dos circunstancialistas “temos” em relação aos essencialistas “somos”.

Referências

Da COSTA MARQUES, I. O que os estudos CTS podem fazer pela América


Latina? Uma resposta antropofágica e alguns exemplos. Rio de Janeiro,
2014.
AGÊNCIA FRANCE-PRESSE. Bonecas sexuais que falam são um remédio para
a solidão na China. Correio Braziliense. Mundo. 05, fev., 2018. Dsponível
em:
<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2018/02/05/interna_mu
sexuais-que-falam-sao-um-remedio-para-a-solidao-na-china.shtml>. Acesso
em: 16/06/2019.
De MILLO, R.; LIPTON, R.; PERLIS, A. Social process and proofs of theorems
and programs. Communications of the ACM, v. 22, n. 5, p. 271-280, 1979.
FERREIRA, E. S. Racionalidade dos índios brasileiros. Scientific American
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HILL, R. Letters to the editor. Communications of the ACM, v. 22, n. 11, p.
621-622, 1979.
HOARE, C. A. R.; MISRA, J. Verified software: theories, tools, experiments
vision of a grand challenge project. In: MEYER, B. W. J. (Org.). IFIP TC 2/wg
2.3, VSTTE, 1., 2005, Zurich. Proceedings… Zurich: LNCS, Springer, 2005.
p.1-18.
HOARE, T. An axiomatic basis for computing programming.
Communications of the ACM, v. 12, n. 10, p. 576-583, 1969.
MENDES, P. S. P. A urna eletrônica brasileira: uma (des)construção
sociotécnica. 2010. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
NATO (1969, 1970). NATO, software engineering: report of a conference
sponsored by the NATO Science Committee. [S.l. : s.n.t.], 1969-1970.
PERLIS, A. Epigrams in programming. [S.l.]: ACM’s SIGPLAN publications,
September 1982.
TAKHTEYEV, Y. Coding places: software practice in a South American city.
Cambridge, Mass.: MIT Press, 2012.
TERRELL, J. E. A. Gender differences and bias in open source: pull request
acceptance of women versus men. Peer J. Computer Science, v. 3, May
2017. Disponível em: <https://peerj.com/articles/cs-111>.

32 “Uma população indígena conta ‘1, 2, 3, 4, 5, muitos’, possivelmente porque não necessita de um
conceito de acumulação como o nosso, e daí não faz sentido para eles contar além do 5, distinguir o 6 do
7, ou o 1.000 do 2.000” (FERREIRA, E. S., 2005). Racionalidade dos índios brasileiros. Scientific
American Brasil, v. 11, p. 90-93. (Edição Especial Etnomatemática).
33 Opta-se nesta seção por usar o feminino no lugar do masculino para se referir a ambos os gêneros.
Espera-se com isso convidar a leitora a uma reflexão sobre as desigualdades entre homens e mulheres.
No contexto da Engenharia de Software, essa desigualdade se manifesta de diversas maneiras, como ao
favorecer as alterações de código feitas por homens em comparação com as alterações feitas por
mulheres, conforme demonstrado por uma análise das contribuições feitas utilizando a plataforma de
hospedagem de código-fonte GitHub. Terrell, J. e. a. (2017). “Gender differences and bias in open
source: pull request acceptance of women versus men.” PeerJ. Computer Science, v. 3, May 2017.
Disponível em: <https://peerj.com/articles/cs-111>. Acesso em: 24 jul. 2017.
34 Disponível em: <https://w3techs.com/technologies/overview/content_management/all>. Acesso em: 25
maio 2018.
35 Tradução nossa de “Everything you see here, from the documentation to the code itself, was created by
and for the community. WordPress is an Open Source project, which means there are hundreds of people
all over the world working on it”. Disponível em: <https://wordpress.org/about>. Acesso em: 28 fev.
2017.
36 O core é denominado o núcleo central do WordPress. Apenas um grupo restrito de desenvolvedoras com
autorização pode alterá-lo diretamente. O restante da comunidade deve enviar contribuições que podem
ser aceitas ou não ou então estender as funcionalidades do core, criando um plugin.
37 Um commit é o ato de enviar para um repositório de código uma alteração em um ou mais arquivos.
Cada commit cria uma nova versão no repositório, que armazena informações sobre a alteração, como o
que foi feito, por quem e quando.
38 Tradução nossa de “Computer programming is an exact science in that all the properties of a program
and all the consequences of executing it in any given environment can, in principle, be found out from
the text of the program itself by means of purely deductive reasoning”.
39 Tradução nossa de “the study of algorithms and model programs will develop like any other
mathematical activity, chiefly by informal, social mechanisms, very little if at all by formal
mechanisms”.
40 Tradução nossa de “Testing shows the presence, not the absence of bugs”.
41 Tradução nossa de “There are two ways to write error-free programs; only the third one works”.
42 Tradução nossa de “On the basis of ten years experience in the design, implementation and use of
software (…) I cannot recall a single instance in which a proof of a program’s correctness would have
been useful”.
43 Tradução nossa de “[T]he time is ripe to embark on an international Grand Challenge project to
construct a program verifier that would use logical proof to give an automatic check of the correctness of
programs submitted to it”.
44 Tradução nossa de “The project will provide the scientific basis of a solution for many of the problems
of programming error that afflict all builders and users of software today”.
45 Tradução nossa de “We anticipate that the project would last more than ten years, consume over one
thousand person-years of skilled scientific effort, drawn from all over the world”.
46 Tradução nossa de “The ultimate aim of the project is that the program verifier will certify all programs
automatically”.
47 Tradução nossa de “In practice, at any given time there will always be a percentage of verification
conditions that the verifier cannot prove. For these, the traditional techniques of testing and run-time
checking will be employed”.
48 Tradução nossa de “[I]f we promise cheaper program development (…) we are unfortunately – as you
know as an English person – in competition with a number of charlatans (Tony Hoare laughs), who
would claim that by massaging the process of management of the work of a programmer, one can deliver
cheaper and more reliable software. (…) And we will not be able to do what those charlatans – we won’t
say the word “charlatan” – what those people over there say they can do, but we will do something else.
And it seems to me, that is the only point where I hope to see an improvement of what is a truly
marvelous description of why I am a scientist and not an engineer”.
49 Tradução nossa de “For us, the engineers (…) are people like Linus Torvalds, with his attitude to
specifications being what it is”.
50 Tradução nossa de “A ‘spec’ is close to useless. I have never seen a spec that was both big enough to be
useful and accurate. And I have seen lots of total crap work that was based on specs. It’s the single worst
way to write software, because it by definition means that the software was written to match theory, not
reality. So there’s two MAJOR reasons to avoid specs: (1) They’re dangerously wrong. Reality is
different and anybody who thinks spec matter over reality should get out of kernel programming NOW.
When reality and specs clash, the spec has zero meaning. Zilch. Nada. None. It’s like the real science: if
you have a theory that doesn’t match experiments, it doesn’t matter how much you like that theory. It’s
wrong. You can use it as an approximation, but you MUST keep in mind that it’s an approximation. (2)
Specs have an inevitable tendency to try to introduce abstraction levels and wording and documentation
policies that make sense for a written spec. Trying to implement actual code off the spec leads to the
code looking and working like CRAP. The classic example of this is the OSI network model protocols.
Classic spec-design, which had absolutely zero relevance for the real world. We still talk about the seven
layers model, because it’s a convenient model for discussion, but that has absolutely zero to do with any
real-life software engineering. In other words, it’s a way to talk about things, not to implement them.
And that’s important. Specs are basis for talking about things. But they are not a basis for implementing
software. So please, don’t bother talking about specs. Real standards grow up despite specs, not thanks to
them”.
SOBRE OS AUTORES

Alexandre Guimarães Rodrigues


Professor Associado III da Universidade Federal do Pará (UFPA), onde
graduou-se em Física, posteriormente fez mestrado e doutorado em Física
pela Universidade de São Paulo. Realizou pós-doutoramento no Projeto
Milênio de Informação Quântica na Universidade Federal de Minas Gerais e
em Ensino de Física pela Universidade de São Paulo. Coordena o PCNA
(Programa de Cursos de Nivelamento da Aprendizagem em Ciência Básicas
para Engenharias). Coordena o grupo de pesquisa do Laboratório de
Inovação Didática em Física (LIDF).
Contato: <[email protected]>.

Daniela Alves
Professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal de Viçosa. Doutora em
Sociologia (UFRGS). Secretária Geral da Esocite.BR (2017-2019).
Coordenadora do Laboratório de Estudos de Ciências, Tecnologia e
Sociedade (DCS/UFV).
Contato: <[email protected]>.

Débora Allebrandt
Professora adjunta da Universidade Federal de Alagoas. Graduação em
Ciências Sociais (2005) e mestrado em Antropologia Social pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008). Doutora em
Antropologia pela Université de Montréal (2013). Estágio de pós-doutorado
junto ao PPGAS-UFRGS entre 2013-2015. Tem desenvolvido trabalhos que
convergem entre parentesco e ciência, como a busca das origens
biogenéticas de adotados e filhos de doadores de gametas. Sua atuação se
estende aos seguintes temas: estudos sociais da ciência, direitos humanos,
políticas públicas, direitos sexuais e reprodutivos, antropologia e ética.
Contato: <[email protected]>.

Fabíola Rohden
Professora adjunta do Departamento de Antropologia e integrante do
Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (NUPACS) da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutora em Antropologia Social
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2000). Pesquisadora do CNPq
e líder do grupo de pesquisa “Ciências na vida: Produção de conhecimento e
articulações heterogêneas”.
Contato: <[email protected]>.

Fernanda A. F. Sobral
Professora/Pesquisadora Colaboradora Sênior do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia (UnB). Participante do GT criado pelo CNPq para
elaborar diretrizes de uma política científica e tecnológica para as áreas de
Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas. Membro do Conselho
Consultivo da FINEP, de 2016 a 2018 e do Conselho Superior da FAP-DF, de
2014 a 2016 Atualmente é membro do Conselho Superior da Capes, além de
ser membro do Conselho da SBPC e da Esocite.BR.
Contato: <[email protected]>.

Fernando Severo
Graduação em Engenharia de Telecomunicações pela Universidade Federal
Fluminense (2006). Mestrado em Engenharia de Sistemas e Computação
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2016). Doutorado em
andamento pelo Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Sistema e
Computação da COPPE/UFRJ (2017), na linha de pesquisa Informática e
Sociedade.
Membro fundador e colabora na coordenação do Laboratório de Informática
e Sociedade (LabIS), vinculado ao PESC/COPPE/UFRJ que trabalha em
parceria com a Rede Brasileira de Bancos Comunitários de
Desenvolvimento e o Centro Popular de Educação e Cultura (CPCD).
Contato: <[email protected]>.

Henrique Cukierman
Professor associado da UFRJ. Professor do curso de Engenharia de
Computação e Informação e nas pós-graduações do Programa de
Engenharia de Sistemas e Computação da COPPE/UFRJ e do Programa de
História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia. Graduação em
Engenharia de Sistemas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (1977). Mestrado em Engenharia de Sistemas e Computação pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Doutorado em Engenharia
Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2001). Doutorado
sanduíche junto ao Program In History and Philosophy of Science da
Stanford University (2001). Professor do Curso de Tecnologia em Sistemas
de Computação do Centro de Educação a Distância do Estado do Rio de
Janeiro – CEDERJ (apoiado pela FAPERJ). Foi Superintendente Acadêmico de
Pós-Graduação da Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da UFRJ
(2015-2016). É fellow da Fundação Alexander von Humboldt e foi
selecionado pela Comissão Fulbright para ocupar a University of Texas-
Fulbright Chair in Brazilian Studies (Austin) em 2019.

Contato: <[email protected]>.

Isabel Cafezeiro
Professora Titular do Instituto de Computação da Universidade Federal
Fluminense, e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em
História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia, da UFRJ. Atua na área
de Ciência da Computação, com ênfase em Lógicas e Semântica de
Programas, na área de Sistemas de Informação com ênfase em Computação
e Sociedade e Abordagens Sociotécnicas, e na área de Estudos Sociais de
Ciência e Tecnologia, focando principalmente a História da Computabilidade
e investigações sobre o trabalho acadêmico. Sócia fundadora e membro do
comitê consultor da Associação Brasileira de Estudos Sociais de Ciência e
Tecnologia (Esocite.BR).
Contato: <[email protected]>.

Ivan da Costa Marques


Engenheiro eletrônico (ITA), M.Sc. e Ph.D. em engenharia eletrônica e
ciência da computação (Universidade da Califórnia, Berkeley). Foi
professor-pesquisador (COPPE-NCE/UFRJ), coordenador de política
industrial (CAPRE) e empresário (EBC e COBRA) na área de informática.
“Visiting scholar” no Historical Studies Committee da New School for Social
Research, Nova York (1990-1992), concentrando seus estudos em história
das ciências e das tecnologias. Foi fundador e eleito em 2011 primeiro
presidente da ESOCITE.BR (Associação Brasileira de Estudos Sociais de
Ciências e Tecnologias), re-eleito em 2013 e 2015. Membro do Conselho e
vice-presidente da SBHC – Sociedade Brasileira de História das Ciências, de
2009 a 2014. Professor titular da UFRJ. Pró-reitor de Pós-graduação e
Pesquisa da UFRJ, de julho 2015 a maio 2016.
Contato: <[email protected]>.

Licurgo Peixoto de Brito


Professor Titular da Universidade Federal do Pará (UFPA), instituição onde
licenciou-se em Ciências Naturais e em Física e também doutorou-se em
Geofísica. Participou de diversas comissões no MEC, INEP e CAPES, onde foi
membro do CTC-EB por duas gestões (2011 a 2017). Atuou na gestão
acadêmica na UFPA (Pró-reitoria de Graduação) e na Secretaria de Estado
de Educação do Pará (Coordenação Estadual do Parfor e Secretaria Adjunta
de Ensino). Atualmente dedica-se ao ensino, de graduação e pós-graduação,
à pesquisa em Educação em Ciências, com ênfase na orientação Ciência,
Tecnologia e Sociedade. Coordena o Polo Acadêmico UFPA/REAMEC – Rede
que visa a formação de doutores em Educação em Ciências e Matemática na
Amazônia brasileira.
Contato: <[email protected]>.
Maíra Baumgarten
Doutora em Sociologia, coordenadora do Laboratório de Estudos e
Divulgação de Ciência, Tecnologia e Inovação Social (LaDCIS) da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Professora do
Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFRGS, Editora
Emérita da Revista Sociologias do PPGSociologia da UFRGS, Coordenadora
da Série Cenários do Conhecimento da Editora da UFRGS. Bolsista de pós-
doutorado sênior do CNPq, na área de Comunicação Pública. Fundadora e
integrante do Conselho Deliberativo da ESOCITE.BR (2017-2019) e do
Conselho da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC (2017-
2021). Dentre os livros publicados estão: Conhecimento e Sustentabilidade.
Políticas de Ciência, Tecnologia e Inovação no Brasil Contemporâneo, ed.
UFRGS e Sociedade, Conhecimentos e Colonialidade. Olhares sobre a
América Latina. Ed. UFRGS.
Contato: <[email protected]>.

Rafael Cordeiro-Rodrigues
Licenciado Pleno em Ciências Naturais – com habilitação em Química pela
Universidade do Estado do Pará. Tem experiência em educação em ciências,
com ênfase na linha de Ensino de Ciências com Metodologia inovadoras.
Atua como professor-pesquisador nos seguintes temas: abordagem
CTS/CTSA e fundamentos e metodologias para o ensino de ciências,
questões sociocientíficas e temas regionais.
Contato: <[email protected]>.

Renato Dagnino
Professor Titular na Universidade Estadual de Campinas (professor
visitante em várias universidades latino-americanas) nas áreas de Estudos
Sociais da Ciência e Tecnologia e de Política Científica e Tecnológica. Pós-
doutorado na Universidade de Sussex, na Inglaterra. Entre os livros que
publicou estão: Ciência e Tecnologia no Brasil: o processo decisório e a
comunidade de pesquisa; Neutralidade da Ciência e Determinismo
Tecnológico; Tecnologia Social: ferramenta para construir outra sociedade;
Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia e Política de Ciência e Tecnologia:
abordagens alternativas para uma nova América Latina.
Contato: <[email protected]>.

Ricardo T. Neder
Professor Associado da Universidade de Brasília, atua na graduação,
especialização e pós-graduação da UnB, vinculado a Faculdade UnB
Planaltina e no Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares – CEAM –
UnB. Coordenador do Núcleo NP+CTS (Núcleo de Políticas Ciência,
Tecnologia, Sociedade) e da Incubadora Tecnológica de Cooperativas
Populares da UnB /Rede ITCP Brasil. Professor visitante (2016/17) Centro
de Estudos Sociais – CES Universidade de Coimbra (Núcleo Economia
Solidária na Sociedade Contemporânea) e no Núcleo de Inovação
Tecnológica da Universidade Técnica de Lisboa (dez 2016 fev 2017).
Contato: <[email protected]>.

Rodrigo Primo
Graduado em Pedagogia pela Universidade de São Paulo (2007) e mestrado
em Engenharia de Sistemas e Computação pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (2017). Desde 2005 trabalha com desenvolvimento de software
livre, com enfoque em sistemas web utilizando PHP e Python. Participa de
movimentos sociais relacionados à economia solidária e mobilidade urbana.
Contato: <[email protected]>.

Sebastião Rodrigues-Moura
Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará
(IFPA/Campus Parauapebas). Possui Licenciatura em Ciências Naturais com
habilitação em Física pela Universidade do Estado do Pará (UEPA).
Mestrado em Educação em Ciências e Matemáticas pela Universidade
Federal do Pará (UFPA). Atualmente dedica-se à gestão institucional e atua
em cursos de ensino médio, licenciatura e especialização, abordando temas
relacionados à educação, especificamente à educação em ciências,
metodologias ativas, ensino de física através de temas, abordagem CTS e
instrumentação para o ensino de ciências.
Contato: <[email protected]>.

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