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Entrevista com crianças
As entrevistas foram realizadas por estagiária de Psicologia sendo as
primeiras que ocorreram de um atendimento se prolongou por vários meses. O primeiro contato da paciente foi na Unidade Básica de Saúde através de uma entrevista de triagem realizada por estagiário que encaminhou iniciando-se dessa forma os atendimentos com a menina.
1ª entrevista
P = Mariana M = irmão D = Pai Entrevistadora
Entrevistadora: Oi Mariana. Meu nome é Cristina. Como estás?
Mariana: Meu pai disse que tu irias me fazer um monte de perguntas. Se eu estou bem no colégio, se eu sei escrever. (faz silencio) Eu tenho sete anos estou no 1º ano. Entrevistadora: Bem Mariana, esse espaço aqui vai ser um lugar pra tu falares das coisas que te incomodam que te fazem mal, e também de coisas boas. Sabes por que estás aqui? Mariana: Eu estou muito confusa. Entrevistadora: Como é estar confusa? Mariana: Não sei assim.... É que meu pai e minha mãe se separaram e o juiz disse que era para eu vir aqui. O meu pai, ele ainda gosta da minha mãe. E eu nunca chorei assim como eu estou chorando agora por causa disso. Entrevistadora: Tu nunca tinhas chorado pela separação dos teus pais? Mariana: Não, eu nunca choro. Entrevistadora: Nem quando tu te machucas, ou choras escondidos? Mariana: Quando eu me machuco sim. Uma vez a mãe estava com o irmão da minha tia, minha tia não é de verdade, é a senhora que me cuida, e eu a chamo de tia, e minha mãe ainda era casada com meu pai. Daí o meu pai sempre dizia que minha mãe tinha outro e ela dizia não. Aí um dia tinha uma festa da irmã da senhora que me cuida e ela nos convidou. Mas a mãe disse “D se for pra tu ir e ficar incomodando é melhor tu não ir” e o pai ficou em casa. Daí nós chegamos lá na festa e omano mano, o M, começou a chorar e a mãe disse pra ele ir pra casa. Eu fiquei lá né, que tinha umas amiguinhas que eu conhecia. Daí eu fiquei lá brincando com elas. Bem no final da festa nem tinha mais muita gente eu também comecei a chorar e a mãe disse que se eu quisesse era pra eu ir pra casa. Aí eu fui. Cheguei e fui ao meu beliche que era assim em cima e do mano em baixo, me trepei, me encostei bem na parede e comecei a chorar. Entrevistadora: Por que tu choravas? Mariana: Por que a mãe tava com o outro. Entrevistadora: Como tu te sentistes? Mariana: É ruim porque ele era casada com o pai, e ele não sabia que ela namorava o .... Aí na mudança dela o outro irmão da senhora que me cuida ajudou. Primeiro ela trabalhava e pagava o aluguel. Daí não deu mais e nós fomos morar nos fundos da casa de minha vó. E quando eu tiver 8 anos ela disse que não vai pagar mais a senhora pra me cuidar. Só que minha vó não gosta que eu mexa no fogão. Entrevistadora: Tu estás achando que vai ficar sozinha? Mariana: Não porque a minha mãe vai deixar a comida pronta e a minha vó vai lá esquentar. Antes ali na frente tem a casa dos pobres e a minha vó cuidava de uma guriazinha. Entrevistadora: Da casa dos pobres? Mariana: É aí ela tava sempre ali, mas ali tinha o bêbado e a minha vó não cuidou mais da guriazinha. E eu me senti muito só. Entrevistadora: Tu sentes falta de alguém para estar contigo? Mariana: eu brincava com meu irmão, às vezes nós brigávamos e parávamos pra minha mãe não bater em nós. Ela não bate em nós nem minha mãe, nem meu pai. Entrevistadora: Eles nunca batem em vocês? Mariana: Não Entrevistadora: E por que às vezes tu brigas com M? Mariana: Porque ele quer brincar de mamãe, papai e filhinho e eu quero brincar de irmãos. O meu avô diz que se ele for para lá vai levar ele para o campo. Entrevistadora: Se ele for morar lá no campo? Mariana: É, mas eu acho que é chantagem do vô. O vô vai ao campo às vezes no domingo. Entrevistadora: tu queres que o mano vá morar lá contigo? Mariana: (pensa, mexe palavras...) Eu não sei. Entrevistadora: De novo tu estás confusa? Mariana: Amanhã eu vou pro pai e depois de amanhã e no outro final de semana o M vai lá, na casa da mãe e a gente fica junto. Entrevistadora: e a tua mãe? Mariana: ela também está confusa. O vô diz pro M ir pra lá, eu não sei. Entrevistadora: Mariana eu quero que fique bem claro pra ti que tudo que a gente falar aqui é só nosso... nós vamos combinar que tu virás uma vez por semana e a gente vai ficar junto 50 minutos. Por isso é bem importante que tu chegues na hora, pra poder aproveitar todo o tempo. Esta caixa destes brinquedos é de todas as crianças que vem aqui, mas esta aqui vai ser só para ti com as coisas que tu fizeres... Também é importante que tu saibas que de vez enquanto eu vou chamar teus pais pra saber de coisas de quando tu eras bem pequena, que tu não te lembres... Mariana: eu me lembro de umas coisas de quando eu era pequena. Que era bem gordinha. O meu pai me contou que ele me trocava, me dava banho, me cuidava... Entrevistadora: E a mãe? Mariana: a mãe eu não sei o que fazia. Bem de qualquer maneira eu vou chamar os teus pais para conversarmos até como vão indo as coisas em casa. Mariana: Ah que nem juiz né? Ele chamava os pais depois de nós. Entrevistadora: realmente eu vou te ver num dia e os teus pais noutro, mas eu não sou como juiz por que juiz dá as leis e diz o que vai ser feito né? Mariana: É Entrevistadora: Eu não dou leis eu vou estar aqui pra ajudar vocês se sentirem melhor. Mariana já no chão abre a caixa gráfica e pega uma caneta. Mariana: Igual a da minha mãe. A minha mãe estuda no mesmo colégio que eu só que eu estudo de tarde e ela de noite. Desenha uma casinha com flores, sol.... Mariana: antes eu desenhava o sol com risquinhos agora eu desenho assim que a minha professora de pré-desenhava assim. Só que eu nunca vi um sol assim. Ao finalizar o tempo ocorre o término da entrevista.
2ª entrevista
Entrevistadora: olá Mariana, tudo bom?
Mariana: eu gostei de vir aqui. Entrevistadora: que bom Mariana. Mariana: eu não gostei da outra vez que eu vim aqui que era aquele noutro homem. Ele fazia um monte de perguntas. Entrevistadora: Que perguntas? Mariana; Ah da minha mãe. Eu não contei para ele o que eu te contei. Naquele dia. Entrevistadora: É que é diferente né. Porque ele estava aqui pra te ver pela 1ª vez, ver o que estava acontecendo, saber porque vocês vieram procurar o atendimento... E eu também estou aqui pra te ouvir, mas eu vou ter bastante tempo pra isso. Tu vais me contar as coisas que tu quiseres quando tu quiseres. Mariana: eu gosto de vir aqui. Entrevistadora: do que tu gostaste? Mariana: Que aqui tem brinquedos, massinha, tinta.... Entrevistadora: E por que aqui tu podes conversar sobre as coisas que te deixas confusas que te deixam mal e tu podes chorar. E tem esta caixa que será para tu guardares os brinquedos e desenhos que tu fizeres. Só tu abres esta caixa. Mariana: É, eu tenho uma folha que tem uns quadrados maiores outros menores daí eu escrevi 6ª feira, bem grande. Entrevistadora: Por quê? Mariana: porque é o dia de eu vir aqui. Silêncio Entrevistadora: e então Mariana? Mariana: No colégio tá tudo ótimo. Só tem uma guria que me incomoda que fica dizendo que a minha mãe à primo-irmã da mãe dela, mas não é, eu já disse pra ela que não. Eu pergunto pra minha mãe. E ela fica dizendo tu não tens as fotos, que foto eu não sou prima, nem irmã dela. Entrevistadora: E isto te incomoda? Mariana: É, também tem as gêmeas, Luísa e Marli, os irmãos José w Joel. Das gêmeas eu não gosto elas são muito exibidas e metidas. Entrevistadora: Como é ser exibida? Mariana: Elas dizem que eu sou gorda e feia. E tem o... e o ...que são filhos de uma amiga da minha mãe que são lá do colégio e um dia a minha mãe estava de férias e me deixou no portão de trás, aí eu entrei, estava andando bem tranquila, bebi água e vieram os dois me chamando de gorda, baleia... Eu saí correndo atrás deles e caí de bunda. Aí eu fiz aiii (raiva) e eles começaram a rir e dizer “viu o botijão de gás caiu no chão”. Entrevistadora: Isto te magoou? Mariana: Faz com a cabeça sim. Entrevistadora: tu te achas gordinha? Mariana: faz com a cabeça sim – Silêncio. Entrevistadora: e o resto da turma? Mariana: A professora é legal. Eu sou a única que fala bem baixinho quando ela pede, para não atrapalhar. Se ela dá uma, matéria que eu não entendo eu digo “Professora, como é essa letra separada que eu não a entendi diz é assim P. Daí eu digo ah tá professora, então agora eu entendi, obrigada”. Mas tem o João e o Júlio que são terríveis. Uma vez era para fazer umas pipas e o João fez uma de cascão. Entrevistadora: O que é ser terrível? Mariana: Ele fala um monte de nome feio, grita... Eu tenho três amigas, a Ana, a Luciana e a Amália, e às vezes a Ana briga com o João que por alguns segundos ela chega a dizer as mesmas coisas que ele. Um dia o Júlio pegou um giz e desenhou um gurizinho mijando no chão da escola. Eu disse para ele, por isso que tu és assim. Entrevistadora: Assim como? Mariana: Não sei é que ele é um menino negro e ele quer ser igual ao João. Entrevistadora: E tu querias ser igual a alguém? Mariana: fez com a cabeça que sim. Entrevistadora: Quem? Mariana: A Ana, porque ela é bem magra, como tudo e é bem magra. E a Luciana porque ela é muito inteligente e bem forte. Entrevistadora: Como assim? Mariana: Forte que ela faz as coisas todas e não se cansa. Entrevistadora: Mas é assim mesmo Mariana que a gente vai criando amigos, cada um tem uma coisa legal que a gente gosta e.... (Acontece um grande estrondo. Tomamos um susto!) Mariana: o que foi isso? Entrevistadora: Não sei, mas foi lá fora, o meu coração disparou e o teu? Mariana: O meu também. Entrevistadora: Ficaste assustada Mariana? Mariana: Sim. Entrevistadora: Com que outras coisas tu te assustas? Mariana: Com o escuro. Entrevistadora: Explica melhor. Mariana: Assim eu vou dormir e imagino uns bichos vindo. Entrevistadora: Que bichos. Mariana: Cobras, crocodilos, jacarés, rinocerontes... todos esses bichos que eu tenho medo. Entrevistadora: Tu os vês ou tu imaginas? Mariana: Eu fico imaginando que eles venham me picar.... Entrevistadora: Como é que tu dormes? Mariana: (reconta um pedaço da história da mudança, que o irmão da senhora que a cuida gritou, lembra que já me contou). Pois é na casa que a gente está nos fundos da avó a mãe botou um armário, uma cama aqui e outra aqui, Daí a gente dorme aqui. Entrevistadora: Vocês dormem juntas? Mariana: Eu pra cá e ela pra lá. Entrevistadora: E quando ela apaga a luz tu começa a imaginar? Mariana: A mãe não apaga a luz. E eu penso também num gorila. Entrevistadora: O que tem o gorila? Mariana: Que ele vai vir me pegar e me dar de comida para a família dele. Silêncio Entrevistadora: Bem Mariana, como eu ia te falando as pessoas são diferentes e cada um gosta.... Talvez tu também tenhas algo que elas não têm. Mariana: Não sei, nunca perguntei para elas. Vamos brincar agora? Entrevistadora: Vamos? Mariana: Olha só (se admira com os brinquedos) Pega a família: Sônia (empregada), Mônica (criança), Juju (criança), a mãe vai ser Lúcia e o papai Júlio. Pega Barbie e uma boneca pequena. Mariana: E esta vai ser a cunhada, vizinha, com sua filhinha. Muda os nomes. Mariana: Aí o papai comeu muita maionese e teve uma caganeira, foi pro vaso. A mamãe fica aqui cozinhando... e a filhinha vai ajudar a arrumar a casa. Mexe mais um pouquinho. Mariana: Ah a massinha, eu vou pegar. Pega a massinha. Tem tinta? Entrevistadora: Olha ali. Mariana: Ah então eu vou pintar, vou pintar o saci Pererê. Entrevistadora: Tu gostas do saci Pererê? Mariana: Gosto. Entrevistadora: Por quê? Mariana: Ele é engraçado e tem uma perna. Entrevistadora: Da onde tu conheces o saci? Mariana: Da lenda. Entrevistadora: Da lenda? Mariana: É Entrevistadora: Quem sabe tu me contas essa lenda? Mariana: Que era uma vez um saci que caçava pro caçador, aí um dia o saci não quis mais caçar pro caçador. Aí o caçador foi caçar e o saci ficou só olhando, se tu não caçar eu não sou mais teu amigo... Só que eu não me lembro da lenda e esta história eu inventei! Finalizando o tempo a terapeuta termina esta entrevista.