Fabiane Salume - Dissertação de Mestrado 2017 Elementos Estéticos e Relações Simbolicadas No Ritual Do Reis de Boi
Fabiane Salume - Dissertação de Mestrado 2017 Elementos Estéticos e Relações Simbolicadas No Ritual Do Reis de Boi
Fabiane Salume - Dissertação de Mestrado 2017 Elementos Estéticos e Relações Simbolicadas No Ritual Do Reis de Boi
VITÓRIA
2017
FABIANE VASCONCELOS SALUME ZIMERER
VITÓRIA
2017
FABIANE VASCONCELOS SALUME ZIMERER
COMISSÃO EXAMINADORA:
_____________________________________________
Profª. Drª Aissa Afonso Guimarães
PPGA/UFES
Orientadora
______________________________________________
Prof. Dr. Aparecido José Cirillo
PPGA/UFES
______________________________________________
Prof. Dr. Osvaldo Martins de Oliveira
PGCS/UFES
Aos meus pais, Marlene e Lúcio, à Claus
e Lorenzo por sempre me apoiarem e
estarem ao meu lado mesmo nos
momentos mais difíceis, por torcerem e
vibrarem em todas as minhas conquistas.
Para que essa dissertação pudesse ser concluída, muitas são as pessoas
a quem tenho que agradecer, afinal no período de escrita de uma dissertação, a vida
segue e com ela as necessidades do cotidiano que muitas vezes sufocam e
agridem. Por isso, na vida em geral e não seria diferente nesse período restrito do
Mestrado, muitas pessoas fazem diferença e nos ajudam a seguir em frente nessa
árdua caminhada. Não tenho dúvidas que o sucesso de cada etapa da nossa vida
depende de nós, mas o apoio das pessoas com que convivemos é fundamental, por
isso o meu agradecimento às pessoas que, de um jeito ou de outro, tornaram esse
momento menos penoso.
Agradeço também aos meus pais, Marlene e Lúcio Salume, pela vida,
pela formação, pelos valores, pelo apoio e pela presença de vocês. Obrigada pelas
horas de conversa ao telefone ouvindo meus desabafos, minhas conquistas e me
aconselhando, mãe. Obrigada pelas inúmeras vezes que me levou aos lugares mais
distantes para entrevistas, pai. Sem a presença firme e acalentadora de vocês,
muitos desses passos não seriam dados. Ao restante da família: Fabrizio, Flaviane,
Renata, Paulo, Sophia e Elisa, obrigada pelo apoio e pelos bons momentos
compartilhados.
À minha sogra Isaías e meu sogro Antônio Teles, obrigada por todo
carinho que sempre tiveram por mim, me acolhendo como filha na família de vocês e
transformando-a na minha família também. Ao restante da família, obrigada pelos
bons momentos partilhados.
Aos companheiros dos projetos de extensão aos quais fiz parte nessa
universidade, guerreiros que com dificuldades fazem um importante trabalho em
contato direto com as comunidades. À Marlene e Fraga, do projeto ‘Entre
Comunidades’ e Aissa, Osvaldo, Patrícia, Luiz, Larissa, Jane, Clair e Luciana, do
projeto ‘Jongos e Caxambus’ agradeço pela acolhida e pela oportunidade de
aprendizagem.
Reis de Boi is a cultural practice from two cities, São Mateus and Conceição da
Barra, located at the north of the state of Espírito Santo. It is related to the Christmas
cycle and celebrates the Three Kings. The celebration starts on the 6th of January
(Epiphany and ends on the 3rd of February (Saint Blaise´s Day). Reis de Boi
presents in its ritual, besides the praise, a more spirited and festive moment named
“Brincadeira de Boi”, which allows this cultural practice to be categorized as a form of
“Reisado”. There are complex rituals where every object, parade and movement is
thoroughly planned to its littlest details. The participants are mostly black people,
even though the festivities have Iberian roots due to the devotion to The Three Kings.
Seeking a less excludable discourse, which aims to give voice to the group members
who associate their origins to the ancestors from Africa, this dissertation presents -
through the analysis of the ritual within the studies of performance art - how “Reis de
Bois” preserves symbolic and artistic elements expressed through the physical
performance of its participants in order to display the contribution of the black
individual in these rites.
FOTOGRAFIAS
Fotografia 2 – Mulheres do antigo grupo de Reis de Boi dos Machados, hoje Reis de
Boi dos Barros............................................................................................................29
Fotografia 57- Marujos do Reis de Boi fazem reverência aos Santos Reis...............97
QUADROS
FIGURAS
INTRODUÇÃO...........................................................................................................16
1 O REIS DE BOI.......................................................................................................20
1.1 Os Personagens...................................................................................................25
1.2 Os grupos.............................................................................................................27
1.3 Os sujeitos da pesquisa.......................................................................................29
1.4 O Territorio...........................................................................................................43
2 O RITUAL................................................................................................................50
2.1 Os preparativos....................................................................................................50
2.1.1 A composição das Marchas..............................................................................50
2.1.2 Os objetos e os modos de fazer........................................................................65
2.1.2.1 Os instrumentos.............................................................................................68
2.1.2.1.1 Modo de fazer o pandeiro artesanal............................................................70
2.1.2.2 Vestimenta....................................................................................................72
2.1.2.3 Chapéu...........................................................................................................75
2.1.2.4 Máscaras........................................................................................................77
2.1.2.4.1 Modo de fazer as máscaras de couro.........................................................81
2.1.2.5 Os Bichos.......................................................................................................82
2.1.2.5.1 Modo de fazer os Bichos.............................................................................86
2.2 As apresentações.................................................................................................87
2.2.1 As louvações.....................................................................................................90
2.2.2 A Brincadeira do Boi........................................................................................100
3 RECONTANDO ESSA HISTÓRIA........................................................................111
3.1 A devoção aos Santos Reis..............................................................................112
3.2 Os folguedos do Boi...........................................................................................123
3.3 A performance do Reis de Boi............................................................................129
3.3.1 Comportamento restaurado.............................................................................131
3.3.2 Motrizes culturais.............................................................................................134
3.3.3 Performance afro americana...........................................................................137
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................143
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................145
ANEXOS – DVD ......................................................................................................149
16
INTRODUÇÃO
1O TCC foi feito por mim em conjunto com a pesquisadora Ana Rita de Assis Zordan. Para saber
mais: ZIMERER, Fabiane V. Salume. ZORDAN, Ana Rita V. de Assis. O Reis de Boi em São
Mateus. 2013. 138 f. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação em Artes Visuais, EAD) –
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória.
17
2
No decorrer da dissertação, convencionei utilizar as falas dos grupos e entrevistados
em itálico e algumas palavras de uso coloquial entre aspas. Os termos e conceitos dos
entrevistados serão explicados sempre que aparecerem pela primeira vez, seja em nota ou mesmo
no corpo do texto.
20
1 O REIS DE BOI
Desse modo o Reis de Boi pode ser classificado como um Reisado, pois
contém em seu ritual canto, dança, música e representação teatral divididos em dois
momentos: o primeiro momento, sagrado, com a representação da peregrinação dos
Reis Magos em forma de cortejo de brincantes, com pedido de licença para entrar e
todas as louvações, e o segundo momento, profano, com os entremeios do Boi e
dos Bichos, momento mais festivo e lúdico chamado de ‘Brincadeira do Boi’.6
O riso não é forma exterior, mas uma forma interior essencial a qual não
pode ser substituída pelo sério, sob a pena de destruir e desnaturalizar o
próprio conteúdo da verdade revelada por meio do riso. Este liberta, não
apenas da censura exterior, mas antes de mais nada, do grande censor
interior, do medo do sagrado, da interdição autoritária, do passado, do
poder, medo ancorado no espírito humano há milhares de anos. [...] por
essa razão o riso, menos do que qualquer outra coisa, jamais poderia ser
um instrumento de opressão e embrutecimento do povo. Ninguém
conseguiu jamais torná-lo inteiramente oficial. Ele permaneceu sempre uma
arma de liberação nas mãos do povo. (Bakhtin, 1987, p. 81)
1.1 Os Personagens
7
Tirar uma Marcha significa compor uma Marcha.
8Manobras ou acrobacias são as movimentações puxadas pelo Sanfoneiro e pelo Violeiro e seguida
pelos Marujos. Explicarei detalhadamente essas movimentações no próximo capítulo.
26
prática do Reis de Boi. A ausência de um deles já é suficiente para que o Reis não
se apresente. “Se não tiver o Sanfoneiro, não tem Reis” (Sr. Jose Luiz Barros, 2013).
Fotografia 1- Sanfoneiro (Isael), Violeiro (Sr. Orly – in memorian) e Marujo do grupo de Reis de Boi
dos Barros. São Mateus-ES 2014. Fonte: Fabiane Salume.
1.2 Os grupos
9Segunda é um termo utilizado pelos grupos para definir a voz aguda que faz contraponto com a
mais grave.
29
Fotografia 2 – Mulheres do antigo grupo de Reis de Boi dos Machados, hoje Reis de Boi dos Barros.
Fonte: acervo pessoal de Domingos Machado, data desconhecida.
Para essa pesquisa foi feito o mapeamento dos grupos de Reis de Boi em
atividade na região Norte. Em Conceição da Barra foram encontrados os grupos:
Reis de Boi de Mestre Neném, Reis de Boi de Mestre Nilo, Reis de Boi de Tião de
Velho, Reis de Boi das Barreiras e Reis de Boi de Itaúnas. Em Linhares existe
apenas um grupo no distrito de Povoação: Reis de Boi de Povoação.
Reis de Boi dos Barros José Luiz Barros Urbana Bairro Ideal – São Mateus
Reis de Boi do Paixão Paixão Bispo Urbana Bairro Ideal - São Mateus
Correia
Reis de Boi de Antônio Antônio Galdino Urbana Bairro Aviação - São Mateus
Galdino
Reis de Boi Mirim de Eny Berto Urbana Pedra D’água - São Mateus
Pedra D’água
Reis de Boi dos José Antônio dos Rural Comunidade Divino Espírito
Laudêncios I Santos Santo - São Mateus (núcleo
Bom Pastor)
Reis de Boi de Luiz Luiz dos Santos Rural Comunidade Divino Espírito
dos Laudêncios II Santo - São Mateus (núcleo
Bom Pastor)
Quadro 1 – Grupos de Reis de Boi entrevistados em São Mateus. Fonte: Fabiane Salume.
10O grupo de Reis de Boi do Mariricu teve formação recente, por isso não houve tempo de entrevistar
o Mestre Cimar. Maria Justina encontrava-se adoentada quando a visitei, por isso não pude realizar
os procedimentos de entrevista, fazendo apenas um primeiro contato para voltar numa nova
oportunidade.
31
Fotografia 3 - Grupo de Reis de Boi de Antônio Galdino. Fonte: Fabiane Salume, 2015.
11 Nota-se que a maioria das fotos escolhidas, os grupos estão posicionados em frente à Igreja da
comunidade de Santos Reis, local onde ocorre anualmente a Festa de Santos Reis e que marca o
início da temporada de apresentações dos grupos.
32
O meu Reis é quase todo de gente da família, esposa, filho, neto, nora e
todos aprenderam juntos brincando comigo. Quando a gente era criança, a
história do nascimento de Jesus era contada para nós pelos mais velhos,
isso era coisa de pai, de avô, de família de um tempo onde a gente tinha
muito tempo, as crianças, de ir aprendendo essas coisas boas. (Antônio
Galdino, 2014)
Fotografia 7 - Grupo de Reis de Boi de Luiz Laudêncio. Fonte: Fabiane Salume, 2016.
12
Apesar de também participar de grupo de Reis, Maria Justina, tia do sr. Valentim não é a mesma
Maria Justina que cito anteriormente como primeira Mestra de Reis de Boi da Região.
34
família, meu pai e disse: eu tenho uma missão para levar para frente.” (Luiz dos
Santos, 2015).
Sr. Luiz dos Santos, nascido em 1968, participava do Reis do seu tio-avô,
Sr. Jones dos Santos, desde os sete anos de idade e foi crescendo dentro do grupo
participando das figuras (personagens), batendo pandeiro, cantando até se tornar
Vaqueiro, Guia e Contra guia.
Fotografia 8 – Sr. Zeca Laudêncio. Fonte: Fotografia 9 – Sr. Luiz dos Santos. Fonte: Fabiane
Fabiane Salume, 2014. Salume, 2016.
Laudêncios volta a se apresentar como um só, sob o comando de Sr. Luiz dos
Santos e a ajuda de Vadinho, filho do Sr. Zeca, pois este está adoentado e não vai
mais se apresentar.
Fotografia 10 – Grupo de reis de Boi Mirim de Pedra D’água. Fonte: Fabiane Salume, 2016.
Sra. Eny, nascida em 1960, decidiu formar o grupo mirim após o fim do
grupo de Reis adulto que havia na comunidade.
Fotografia 12 - Reis de Boi de Benedito Machado na Festa de Pedra D’água. Fonte: Fabiane Salume,
2014.
Associação dos grupos de Reis de Boi de São Mateus e ter sido o mediador e o
primeiro Mestre entrevistado.
Fotografia 15- Sr. Paixão Bispo Correia. Fonte: Fabiane Salume, 2015
13 Retinto, retinta ou requinta no Reis de Boi é uma nota muito aguda entoada para finalizar o canto
de algumas estrofes da música, respondendo a sanfona. Geralmente quem faz a requinta são as
crianças que ficam no fim das filas.
40
Fotografia 16 - Grupo de Reis de Boi dos Barros. Fonte: Fabiane Salume, 2014.
Apesar da história do grupo de Reis de Boi dos Barros ter começado com
o Sr. Domingos Machado, seu falecido avô, Sr. Arlindo Barros já brincava Reis de
Boi em grupos antigos dos quais Sr. José Luiz não lembra o nome, isso mostra
como é antiga a tradição de se brincar o Reis de Boi em sua família
Após Sr. Domingos Machado parar de brincar o Reis, seu pai assumiu o
grupo, que passou a se chamar Reis de Boi dos Barros, e ainda conservava os
integrantes da família Machado e da família Barros, famílias com parentesco direto.
Atualmente, muitos integrantes têm relação de parentesco com Sr. José Luiz, que
conta com quatro irmãos, quatro sobrinhos e quatro primos no grupo. Todos os tios
faleceram, o último, Sr. Orly, que era o violeiro do grupo desde o início, faleceu em
2015. Hoje, em seu grupo, ainda existem integrantes que brincavam o Reis desde a
época do Sr. Domingos, como o Sr. Matheus Nascimento, Sr. Izael Serafim de
Aguiar e a Sra. Maria Jorge.
42
Fotografia 18 - Grupo de Reis de Boi de Antônio Nascimento. Festa Pedra D’água. Fonte Fabiane
Salume, 2014.
Fotografia 19 - Sr. Antônio Nascimento e seu irmão Sr. Sebastião Nascimento. Fonte: Fabiane
Salume, 2014.
43
1.4 O Território
Fotografia 20 - Sítio Histórico Porto de São Mateus. Fonte: Fabiane Salume, 2014.
14 Fonte:
http://www.bnb.gov.br/content/aplicacao/prodetur/downloads/docs/es_2_5_patrimonio_historico_1007
08.pdf
15 Construção inacabada localizada na Praça Anchieta, centro, construída em estilo colonial
português com data da metade do século XIX.
16Localizada na Praça Municipal, centro, construída pelos Jesuítas sendo a mais antiga de São
Mateus e uma das mais antigas do Estado.
17 Localizado desde 2001 na antiga Casa de Câmara e cadeia (na parte superior funcionava a
Câmara e na inferior a cadeia), localizada na Praça São Mateus, centro, onde se encontram expostas
no andar térreo ferramentas, utensílios e peças do período escravagista, além de urnas funerárias de
cerâmica indígena das tribos Tupi e Aratu. No andar de cima ficam os mobiliários do século XIX,
louças, quadros e fotografias antigas.
18Construção jesuítica do início do século XVIII, construída pela Irmandade de São Benedito dos
Homens Pretos, com mão de obra dos próprios devotos. Está localizada na praça de mesmo nome,
onde são realizadas celebrações, sendo a de maior relevância a do dia 27 de dezembro, feriado
municipal, onde se celebra o dia de São Benedito.
45
Fotografia 21 – Igreja Velha. Fonte: Ana Rita Fotografia 22 - Igreja Matriz. Fonte: Ana Rita
Zordan, 2012. Zordan, 2012.
Fotografia 23 – Museu de São Mateus. Fonte: Ana Fotografia 24 - Igreja Matriz. Fonte: Ana Rita
Rita Zordan, 2012. Zordan, 2012.
“A Marujada era muito difícil, não era todo mestre que se metia com ela, era
preciso muito conhecimento... só Zoroastro, Balduíno e Domingo Alcino, que
eu sei, tirava a Marujada, nunca ouvi dizê que outro se atrevesse a tirá, nem
mesmo a Pequena que durava trêis hora, quanto mais a Grande, que
durava seis”.
19Para saber mais sobre esses grupos e outros do ES ver: GUIMARÃES, Aissa Afonso. OLIVEIRA,
Osvaldo Martins de. Jongos e Caxambus: culturas afro-brasileiras no Espírito Santo. Vitória: UFES,
Proex, 2017.
48
Fotografia 25 – Apresentação do Jongo de São Benedito das Piabas. Fonte: Fabiane Salume, 2014.
São Brás (3 de fevereiro) e apesar de não ‘saírem’ para São Benedito, encontrei
grupos se apresentando nas Festas para esse Santo, tanto em São Mateus, no dia
27 de dezembro; em Itaúnas, na Festa de São Benedito e São Sebastião que
acontece anualmente nos dias 19 e 20 de janeiro e também na Festa de São
Benedito das Piabas em Barreiras, geralmente no segundo fim de semana de
janeiro.
2 O RITUAL
2.1 Os preparativos
“ Eu fui lá em Brasilia,
Visitei Sarney nosso Presidente
A promessa que ele fez
Ele não cumpriu e enganô muita gente. ”24
Adorava de joelho
Porque Deus era nascido (Guia 2x)
Foi nascido Rei da glória
O salvador do mundo inteiro (Contra guia e coro 2x)
SOM DE REIS
Grupo de Reis de Boi dos Barros Grupo de Reis de Boi do Paixão
Quadro 2 – Transcrição do ‘Som de Reis’ dos grupos analisados. Fonte: Fabiane Salume, 2016
56
Senhora dona de casa Senhora dona de casa Que coqueiro tão alto
Me dá uma prenda sua Abre a porta e fecha a janela Quero ver a cidade (2x)
Minha mãe é costureira Meu canário cantou Eu quero ver o meu amor
Meu pai é cantador No galho da rosa amarela Tô morrendo de saudade (2x)
Ôh Luzinete
Não se dê por acabado (2x)
Quem fica por derradeiro
É que é mais estimado (2x)
Quadro 3 – Transcrição do ‘Descante’ dos grupos analisados. Fonte: Fabiane Salume, 2016.
57
MARCHA DE ENTRADA
Reis de Boi dos Reis de Boi do Paixão Reis de Boi de A. Nascimento
Barros
Viemos nessa casa Entramos nessa casa linda Na igreja nós saímos
Com amor e alegria A primeira que meus olhos Na igreja voltarei (Guias 2x
(Guias 2x) avistou (Guias 2x)
Agradeço a São Cristóvão
Viemos festejar Santos Entramos pedindo licença E ao glorioso Santos Reis (Contra
Reis O coração da morena balançou guias e coro 2x)
Que hoje é seu dia (Contra guias e coro 2x)
(Contra guias e coro 2x)
Quadro 4 – Transcrição da ‘Marcha de Entrada’ dos grupos analisados. Fonte: Fabiane Salume,
2016.
Reis de Boi dos Barros Reis de Boi do Paixão Reis de Boi de Antônio
Nascimento
Estou nesse salão Vou fazer nossa batucada Meu Deus em minha vida
Santos Reis mandou me Com sanfona e violão (Guias Nunca vi isso acontecer (Guias
chamar (Guias 2x) 2x) 2x)
Quadro 5 - Transcrição da ‘Marcha Corrida’ dos grupos analisados. Fonte: Fabiane Salume, 2016.
58
MARCHA DE OMBRO
Reis de Boi dos Barros Reis de Boi do Paixão Reis de Boi de Antônio
Nascimento
Ficou saudade Eu fui de manhã cedo pra igreja Meu senhor eu tô aqui mas
Daquele que Deus levou rezar Sinto saudade e tristeza
(Guias 2x) Encontrei Nossa Senhora ela veio (Guias 2x)
nos acompanhar (Guias 2x)
Está lá no céu Nossa irmã que Deus levou
Junto de Nosso Senhor Comigo não tem tristeza, só tem Tá lá no céu, tenho certeza
(Contra guias 2x) alegria (Contra guias 2x)
Jesus Cristo nos acompanha, toda
hora, todo dia (Contra guias 2x
Quadro 6 - Transcrição da ‘Marcha de Ombro’ dos grupos analisados. Fonte: Fabiane Salume, 2016.
Em seguida vem o ‘Baiá’ (Quadro 7), uma Marcha mais animada que a
‘Marcha de Ombro’, mais solta e dançante. Os temas falados nessa Marcha
geralmente são mais divertidos: namoradas, moças bonitas, amor ou temas do
cotidiano da comunidade. A composição também é feita em dois dísticos.
BAIÁ
Reis de Boi dos Barros Reis de Boi do Paixão Reis de Boi de Antônio
Nascimento
Se quiser viver comigo O altar de Santos Reis Jesus com doze anos
É do jeito que eu quiser Não é de ouro nem de prata (Guias 2x) Sentou na mesa com os
(Guias 2x) doutores (Guias 2x)
Menina cadê você que veio nos
Eu te dou o meu amor acompanhar Hoje precisa sentar de
Fico com você mulher A aliança do seu dedo faz o salão novo
(Contra guias 2x) clarear (Contra guias 2x) Com presidente e
governadores (Contra
guias 2x)
Quadro 7 - Transcrição do ‘Baiá’ dos grupos analisados. Fonte: Fabiane Salume, 2016.
Reis de Boi dos Barros Reis de Boi do Paixão Reis de Boi de Antônio
Nascimento
Montado no seu cavalo Vaqueiro cadê você Acorda meu vaqueiro acorda
Vaqueiro foi na Bahia Onde é que você está Que já é de madrugada (Guias
Numa Festa de Reis (Guias 2x) 2x)
Na fazenda Alagoinha (Guias 2x)
Ele está na campina Ele veio da campina
Lá ele avistou o meu Boi Capital O gado ele foi buscar Veio trazendo sua boiada (Contra
Invadiu a fazenda tirando ele do (Contra guias 2x) guias 2x)
jardim (Contar guias 2x)
Quadro 8 - Transcrição da ‘Marcha de avisar o Vaqueiro’ dos grupos analisados. Fonte: Fabiane
Salume, 2016.
Reis de Boi dos Barros Reis de Boi do Paixão Reis de Boi de Antônio
Nascimento
Meu Vaqueiro é Vem cá meu Vaqueiro Andando e chorando
Meu Vaqueiro é No salão vem sapatear Por essa campina (Guias 2x)
Ele é domador do nosso Boi (Guias 2x)
Capital (Guias 1x) Procurando meu Boi
Vem cá meu vaqueiro E a mãe Catirina (Contra guias
Meu Vaqueiro é valente Seu Patrão mandou chamar 2x)
Meu Vaqueiro é valente (Contra guias 2x)
Ele leva animais pra negociar
(Contra guias 1x)
Quadro 9 - Transcrição da ‘Marcha de chamada do Vaqueiro’ dos grupos analisados. Fonte: Fabiane
Salume, 2016.
No fim, o Dono da casa diz para o Vaqueiro que ele pode trazer o Boi. O
Vaqueiro sai para buscar o Boi e volta com ele ao som da ‘Marcha de Chamada do
Boi’ (Quadro 10). O Boi entra dançando e o cachorro vem junto acompanhando26.
Reis de Boi dos Barros Reis de Boi do Paixão Reis de Boi de Antônio Nascimento
Eu chamei o meu Vaqueiro Meu Vaqueiro traz O Boi é bravo, é ligeiro (Guias 1x)
Ele respondeu lá fora Trovão no meio desse Brinca comigo Limoeiro
Parece que adivinhou salão (Guias 2x) Brinca comigo Limoeiro (Contra guias
Que já tá chegando a hora 1x)
(Guias 2x) Já rodou o mundo todo
Por isso ele é campeão Aqui no meio desse terreiro (Guias)
(Contra guias 2x) Brinca comigo Limoeiro
Brinca comigo Limoeiro (Contra guias)
Reis de Boi dos Barros Reis de Boi do Paixão Reis de Boi de Antônio
Nascimento
Capital chegou cansado Vaqueiro o que é que você fez É hora é agora
da fazenda Alagoinha com Trovão que ele se arriou Quero ver a fita voar (Guias 2x)
(Guias 2x) (Guias 2x)
Xodó tira as esporas e Santos Reis abençoa
Levanta seu chapéu O povo desse lugar (Contra guias
brilhantina Ele machucou a mão, mas já se 2x)
levantou (Contra guias 2x)
Quadro 11 - Transcrição da ‘Marcha Rodada’ dos grupos analisados. Fonte: Fabiane Salume, 2016.
Quadro 12 - Transcrição da ‘Marcha de saída do Boi’ dos grupos analisados. Fonte: Fabiane Salume,
2016.
o Reis de Boi do Paixão, tem cinco Marchas de Bichos. Entretanto como exemplo,
transcrevo somente uma de cada grupo.
Quadro 13 - Transcrição da ‘Marcha dos Bichos’ dos grupos analisados. Fonte: Fabiane Salume,
2016.
Através dos versos, o Vaqueiro mostra sua visão dos fatos acontecidos
na atualidade, fatos políticos, do cotidiano ou outros e fala da sua relação com as
coisas da vida, expressa o seu modo de ver, de sentir, de estar no mundo. Algumas
vezes esses versos são entendidos apenas pela comunidade, pois se trata de
algum improviso sobre algum assunto de conhecimento só daquelas pessoas,
outras vezes algum acontecimento maior, como por exemplo, a tragédia que
aconteceu em Mariana, no fim de 2015. O Rio Doce virou um mar de lama,
ribeirinhos e pecadores que viviam do rio sofreram e sofrem até hoje com as
consequências da morte dos peixes e de uma série de animais, o assunto foi muito
comentado em redes sociais, jornais, televisão e rádio, então, o Vaqueiro do Reis
64
Os pescadores ribeirinhos
Que tinham de ganha-pão
O pescado de Linhares
Regência e Povoação
Sem saber o que fazer
Ficaram todos na mão.
Esse momento foi de grande euforia e causou muito alarido, cada verso
que o Vaqueiro recitava, o público reagia com entusiasmo, demostrando como
todos ali estavam tristes e indignados com aquela tragédia. No fim o Vaqueiro se
despede e faz seu último sapateado ao som da ‘Marcha de saída do Vaqueiro’.
MARCHA DE OMBRO
Reis de Boi dos Barros Reis de Boi do Paixão Reis de Boi de Antônio
Nascimento
Quando eu era adolescente Aquelas estrelas que está lá Povo pobre brasileiro
Não conhecia Santos Reis no céu É povo trabalhador (Guias 2x)
(guias 2x) Hoje era dia de mostrar o
Ele tem poder seu sorriso (Guias 2x) Só é reconhecido
Hoje estou junto dos meus Eu sinto falta nesse salão Lá no céu por Nosso Senhor
companheiros (Contra guias Dos companheiros tão (Contra guias 2x)
2x) queridos (Contra guias 2x)
Quadro 14 - Transcrição da segunda ‘Marcha de Ombro’ dos grupos analisados. Fonte: Fabiane
Salume, 2016.
Reis de Boi dos Barros Reis de Boi do Paixão Reis de Boi de Antônio
Nascimento
Eu gosto dessa morena O Ana Júlia porque você tanto Nós vamos retirando
Aqui não posso ficar chora Voltamos outro dia (Guias
Porque os carinhos são coisas Chegou a hora, nós já vamos 2x)
Que vão me condenar (guias 2x) nos retirar (Guias 2x)
Agradeço a Santos Reis
Pra te levar eu não posso A chuva cai, o sereno vai me E a Virgem Maria (Contra-
Pra te deixar tenho pena molhar guia)
É hora da retirada Essa nossa brincadeira agora
Até outro dia morena (Contra guias vai terminar (Contra-guia)
2x)
Quadro 15 - Transcrição da ‘Marcha de Retirada’ dos grupos analisados. Fonte: Fabiane Salume,
2016.
29
Floreado é como se referem às voltas melódicas feitas na sanfona.
30
Cantar declarado é cantar de forma que todos entendam, de forma clara.
68
2.1.2.1 Os instrumentos
.
Fotografia 26 - Sanfona do grupo de Mestre Paixão. Fotografia 27 - Sanfona do grupo das Barreiras.
Fonte: Fabiane Salume, 2015. Fonte: Fabiane Salume, 2015.
Esse era um anseio antigo dos Mestres, que diversas vezes relatavam que os
pandeiros artesanais que utilizavam antigamente tinham uma sonoridade bem
melhor. “Quando eu tinha meus doze, treze anos de idade a gente batia pandeiro de
couro, que é próprio pro Reis”, diz Sr. Benedito Assis (2015). A busca pela melhor
sonoridade rendeu bons diálogos. A sonoridade desejada é um dos fatores principais
que determinou a realização desta oficina, pois, a busca pelo som produzido em
pandeiros artesanais faz parte da memória afetiva dos mais velhos.
Fotografias 28 e 29. Sr. José Luiz ensinando a fazer os pandeiros artesanais. Fonte: Ana Rita de
Assis Zordan, 2016.
mais os mesmos, isso em nada diminui a importância no ritual, marcando o ritmo das
Marchas. Assim como acontece com os chapéus, com as máscaras, o processo de
transformação e mudança acontece como solução de problemas (dificuldades e
facilidades) que vão surgindo com os tempos atuais.
2.1.2.2 Vestimenta
Fotografia 30 - Sr. Paixão e um Marujo de seu grupo aguardando o início da Festa de Pedra D’água.
Fonte: Fabiane Salume, 2015.
73
Fotografia 32 – Sr. Antônio Nascimento e Marujos de seu grupo com as marinheiras azul e vermelha.
Fonte: Fabiane Salume, 2014.
2.1.2.3 O Chapéu
Fotografia 34 - Chapéu de diferentes grupos de Reis de Boi. Fonte: Fabiane Salume, 2015.
76
2.1.2.4 As Máscaras
(2013, p. 316) faz uma análise da construção dos personagens dos reisados, que se
assemelha ao que acontece no Reis de Boi, ele observa:
Fotografia 36 – Vaqueiro do Reis de Boi do Paixão. Fotografia 37 - Vaqueiro do Reis de Boi dos
Fonte: Fabiane Salume, 2015. Barros. Fonte: Fabiane Salume, 2015.
79
Fotografia 40 – Mulinha do Reis de Boi dos Barros. Fotografia 41 – Mulinha do Reis de Boi do
Fonte: Fabiane Salume, 2015. Paixão. Fonte: Fabiane Salume, 2013.
é, para se transformar num outro livre para fazer e falar o que quiser, mostra que a
máscara afeta e produz efeitos no corpo do brincante que se refletem visivelmente
na sua performance em cena.
Outra oficina promovida pela Liga Mateense de Reis de Boi, foi a oficina
de máscaras, que possibilitou a aprendizagem e confecção de máscaras de couro
pelos integrantes de diversos grupos de Reis de Boi, que participaram desse
processo de aprendizagem. O oficineiro foi o Sr. Paixão Bispo Correia (Fotografia
42), que separou algumas máscaras produzidas por ele, com diferentes propostas
para explicar e exemplificar o processo. De início, ele falou da escolha e dos tipos de
82
couro a serem usados e onde são vendidos. Depois, com uma manta de couro nas
mãos, mostrou as possibilidades que esta peça oferece, levando-os a pensar de que
maneira ela pode ser mais bem aproveitada. Depois, em um pedaço de EVA,
mostrou como traçar o molde da máscara, determinando o tamanho e os espaços
para os olhos, nariz e boca. Recortado o molde em EVA, ele o transferiu para o
couro, usando uma caneta. Em seguida, recortou o couro e passou a demonstrar
materiais e suas possibilidades para o processo criativo dos elementos compositivos
da máscara como: nariz, boca, dentes, orelha, bigode, sobrancelha, cabelo, barba
entre outros. Com a máscara recortada em mãos, cada um pode dar início ao
processo criativo. É o momento de colocar a mão na massa e criar os detalhes que
irão diferenciar uma máscara das outras. É a hora de criar o personagem.
Fotografia 42 - Sr. Paixão ministrando a oficina de Máscaras de couro. Fonte: Ana Rita Zordan, 2016.
2.1.2.5 0s Bichos
Fotografia 44 - Onça do grupo de Reis de Boi do Paixão/ crianças com seus personagens. Fonte:
Fabiane Salume, 2015.
84
Fotografia 45 - Sr. Paixão exibindo o Gavião comendo uma cobra, Bicho feito por ele. Fonte: Fabiane
Salume, 2015.
Fotografia 46 - ‘Chupa cabra’, Bicho imaginário do grupo de Reis de Boi do Paixão. Fonte: Fabiane
Salume, 2013
85
Fotografia 47 - ‘Beija moça’, Bicho imaginário do grupo de Reis de Boi do Paixão. Fonte: Fabiane
Salume, 2013
Primeiro eu faço a forma de barro, né, depois eu encapo com papel, com
cola de goma, aí vou encapando todo e depois que tiver mais ou menos um
dedo de grossura, aí eu deixo secar e eu quebro o barro e tiro o Bicho, aí eu
passo pra pintura. (Celestrino Monteiro, 2016)
Mas nem todos os grupos têm pessoas que sabem confeccionar o Bichos,
então, muitos encomendam do Sr. Paixão, que faz Bichos há muitos anos. Na
tentativa de resgatar esse saber, uma das oficinas ministradas em 2006 foi a de
confecção de Bichos.
86
A oficina de Bichos, também foi ministrada pelo Sr. Paixão Bispo Correia,
considerado por todos os grupos o maior “fazedor” de Bichos e máscaras da região.
A oficina de Bichos foi dividida em cinco etapas. Primeiramente a feitura do molde,
nesta etapa cada aluno colocou literalmente “a mão na massa” (Fotografia 48) e
misturando água e argila, cada um teve que descobrir o ponto ideal para ir moldando
o seu Bicho sem se preocupar com detalhes, apenas criando uma forma básica para
ser trabalhada na etapa seguinte. Depois de pronto, o molde foi colocado para secar
ao ar livre.
Fotografia 48 – Modelando a argila para fazer o molde dos Bichos. Fonte: Ana Rita Zordan, 2016.
31 Técnica manual que consiste na colagem de folhas de papel em várias camadas sobre um molde.
87
Fotografia 49 – Pintura dos Bichos confeccionados. Fonte: Ana Rita Zordan, 2016.
2.2 As apresentações
Fotografia 50 – Igreja da Comunidade de Santos Reis onde acontece o início das apresentações de
Reis de Boi. Fonte: Fabiane Salume, 2015.
De primeiro o Reis saía dia 04 e eles chegavam em casa dia 07. Eles
brincavam 04, 05 e 06, era três noites andando, mas era de pé. Vamos
supor eles saíam do São Miguel, cantava no Nativo, ia pro Palmitinho, ia
pros Laudêncio aqui dentro, era essas três noites andando, mas se a
primeira noite eles fosse dormir lá no Palmitinho, eles iam jantavam, por lá
dormia, aí no outro dia ia pro nativo, aí ficava aquela noite ali, aí dormia e no
outro dia ia pro Laudêncio, aí quando terminava lá eles vinham pra casa.”
(Sr. José Luiz Barros, 2017)
Fotografia 51 – Marujos carregando Andor com os Santos Reis na procissão. Fonte: Fabiane Salume,
2015.
90
2.2.1 As louvações
Como já foi dito anteriormente, o Reis de Boi tem seu ritual de
apresentação dividido em dois momentos, o primeiro com as louvações sagradas e
saudações, e o segundo mais festivo chamado ‘Brincadeira do Boi’.
91
“Quando a gente apresenta numa casa, numa comunidade, que já chega ali
no horário certo, então a gente apresenta as músicas todas. Quando a
gente chega lá nos Santos Reis 32 então, porque é muito Reis que vai pra lá,
então, são marcada (contadas) as músicas” (Sr. Benedito Machado, 2014).
32
Referindo-se à Festa de Santos Reis, no bairro Pedra D’água.
92
Ritual de Apresentação
1º momento - Louvaçoes
33 Casa entendida como espaço privado, podendo ser a casa em si ou o quintal, terreiro, sítio.
93
Fotografia 54 – Marujos posicionados em filas na porta de igreja. Fonte: Fabiane Salume, 2014.
Fotografia 55 – Sr. Luiz Laudêncio concentrado durante o Som de Reis. Fonte: Fabiane Salume,
2015.
Para Sr. Paixão, o ‘Som de Reis’ se diferencia das outras Marchas pela
importância. “De todas as Marchas, o Som de Reis é o mais importante, tanto que
96
tem gente que vai assistir o Reis e que só assiste o Reis da porta, e já sabe se o
Reis é bom. Aquilo ali é igual, você chegar numa igreja e o sino bater e o padre rezar
uma missa.” (Sr. Paixão, 2017)
Fotografia 57- Marujos do Reis de Boi fazem reverência aos Santos Reis. Fonte: Fabiane
Salume, 2016.
A partir desse momento inicia-se a parte mais disputada do ritual, por sua
essência lúdica e festiva: a Brincadeira do Boi (Fotografia 58).
Fotografia 58 – Brincadeira do Boi do grupo de Luiz Laudêncio, São Miguel- SM. Fonte: Fabiane
Salume, 2014.
Fotografia 59 - Vaqueiro do Reis de Boi dos Barros. Fonte: Fabiane Salume, 2012.
Sr. Benedito Machado nos dá uma versão deste personagem que não foi
narrada por nenhum outro Mestre, segundo ele, o Vaqueiro representa a figura dos
pastores que estavam no campo e cuidavam dos seus rebanhos quando do
nascimento de Jesus. Ainda segundo ele, isso se deve ao fato de que, na época da
Natividade, as terras não possuíam cercas e, portanto, era necessária a presença
dos pastores para tomarem conta dos animais que viviam soltos. Neste caso, hoje,
quem toma conta do rebanho é o Vaqueiro.
O fato do enredo já ser conhecido do público faz com que seu prazer se
desvie da expectativa do desfecho, para se concentrar no fato de assistir
como será, a cada vez, executando o que está estabelecido, já que o
envolvimento da comunidade com as manifestações dessas formas cênicas
ocorre desde sua preparação. (BARROSO, 2013, p.308)
40O Dono da casa pode ser literalmente o dono da casa que convidou o grupo ou quando a
apresentação acontece numa comunidade, uma pessoa mais velha e respeitada por todos.
103
Fotografia 60 – Reis de Boi do Paixão em formação em ferradura durante a Brincadeira do Boi. Fonte:
Fabiane Salume, 2012.
Fotografia 61 – Bois e cachorros do grupo de Reis de Boi do Mariricu. Fonte: Fabiane Salume, 2016.
até três Bois e três cachorros, entretanto o entremeio é um só, eles entram todos
juntos e quando levam a paulada na cabeça, caem todos. Essa quantidade é só
para mostrar que o grupo é bom, pois pela lógica dos participantes, quanto mais
elementos um Reis tiver, melhor ele será.
Fotografia 62 – Momento em que o Vaqueiro dá uma paulada na cabeça do Boi. Grupo de Reis de
Boi dos Laudêncios. Fonte: Fabiane Salume, 2012.
Nesse momento, quando o Boi cai, a Marcha se torna mais lenta e a letra
acompanha o momento vivido pelos personagens (Fotografia 63).
Fotografia 63 – Momento em que o Boi ‘morre’ ou ‘cai’. Grupo de Reis de Boi do Mariricu. Fonte:
Fabiane Salume, 2016.
105
variação no quantitativo das Marchas, pois, existem grupos que cantam uma Marcha
diferente para cada Bicho, e aí, quanto mais Bichos, mais Marchas. Outros agrupam
os Bichos em pares, ou em trios e cantam uma Marcha para cada grupo, reduzindo
assim o número de Marchas. Entretanto, a mulinha (Fotografia 65), está sempre
presente nos grupos de Reis de Boi e a primeira Marcha de Bichos geralmente é
para ela.
O Vaqueiro retorna, dessa vez com sua esposa Catirina (Fotografia 65). É
a parte cômica e mais desprendida da Brincadeira, tanto, que este personagem não
possui uma Marcha específica, mas sim, diverte a todos ao som de um forró. “É a
festa que faiz mais zuêra, é a hora da Catirina”. (Sr. Benedito Machado).
43
Território no Norte do Espírito Santo que envolve as cidades de São Mateus e Conceição da Barra. Para saber
mais ver: FERREIRA, Simone Raquel Batista. “Donos do lugar”: a territorialidade quilombola do Sapê do
Norte-ES, apresentada à Universidade Federal Fluminense em junho de 2009. Disponível em:
www.domíniopublico.gov.br
108
A Catirina corre atrás dos homens da plateia para com ela dançar o forró,
que é tocado na hora de sua apresentação. Ela dança o forró agarrando seu par e
se esfregando nele, em movimentos licenciosos (Fotografia 66), levando o público
ao riso44. Sobre o riso nos Reisados, Barroso observa:
Fotografia 68 – Macaco do Reis de Boi do Mariricu dançando forró. Fonte: Fabiane Salume, 2016.
então sai levando a Catirina com ele. Neste ponto a Brincadeira vai chegando ao fim.
Os personagens saem de cena e novamente ficam apenas o Sanfoneiro, o Violeiro e
os Marujos, que voltam à posição inicial em dois cordões (filas) e cantam, nessa
ordem: a ‘Marcha de Despedida’, outra ‘Marcha de Ombro’, Marcha que faz
homenagens e recordações e a ‘Marcha de Retirada’45, festiva e alegre, finalizando
assim a apresentação.
46
AGUIAR, Maciel de. Brincantes e quilombolas. Memorial: São Mateus (ES), 2005.
SANTOS NEVES, Guilherme. Coletânea de Estudos e Registros do Folclore Capixaba. Vitória:
Cultural- ES, 2008 e FONSECA, Hermógenes Lima; MEDEIROS, Rogério. Tradições populares no
Espírito Santo. Vitória: Dep. De Cultura, Divisão de Memória, 1991.
112
Gilbert Vezin, autor da obra clássica "L´Adoration et le cicle des Mages: dans l´art
chrétien primitif "47, afirma de modo categórico: “O tema da Adoração dos Magos foi
o assunto mais popular e frequente que se expressou na arte, no Oriente e no
Ocidente” (VEZIN, apud SILVA, p.18).
E eis que a estrela, que tinham visto no oriente, os foi precedendo até
chegar sobre o lugar onde estava o menino e ali parou. A aparição daquela
estrela os encheu de profunda a alegria. Entrando na casa, acharam o
menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se diante dele, o adoraram.
Depois, abrindo seus tesouros, ofereceram-lhe como presentes: ouro,
incenso e mirra. Avisados em sonhos de não tornarem a Herodes, voltaram
para sua terra por outro caminho. (Evangelho segundo São Mateus. Bíblia
Sagrada, cap. 2, 1-12, 2003, pp.1285-1286).
Segundo a tradição eles eram três e lhes foi dado o nome de Melquior,
Baltazar e Gaspar. Estes nomes, aparecem no Evangelho Apócrifo Armeno da
Infância, do fim do século VI, capítulo 5 – 10 que diz assim:
Um anjo do Senhor foi depressa ao país dos persas para avisar aos reis
magos e ordenar a eles ir e adorar o menino que acabara de nascer. Estes,
depois de ter caminhado durante nove meses, tendo por Guia a estrela,
chegaram à meta exatamente quando Maria tinha dado à luz. Precisa-se
47
Gilberte Vezin, V adoration et le cycle des Mages dans Vart chrétien primitif. Étude des influences orientales
et grecques sur Vart chrétien. Presses Universitaires, Paris, 1950, 128 p.
114
48
http://www.abiblia.org/ver.php?id=1438&id_autor=2&id_utente=&caso=artigos#.UcmWdzse22U
49 Epifania significa aparição, manifestação e vem do grego “epiphanéia. ” No sentido religioso, no
calendário litúrgico da Igreja Católica, significa uma manifestação divina, por exemplo: quando houve
a apresentação de Jesus Cristo ao mundo através da chegada dos Reis Magos
trazendo seus presentes. http://www.significados.com.br/epifania/
115
Ainda a respeito dos grupos peditórios, Silva (2006, p. 62), cita uma
passagem do Compêndio Narrativo do Peregrino da América, de Nuno Marques
Pereira onde o autor assim descreve: “[...] uma noite dos Santos Reis saíram estes
[homens] com vários instrumentos pelas portas dos moradores de uma vila cantando
para lhes darem os Reis em prêmio que uns lhes davam dinheiro e outros doces,
frutas, etc.”
51
No Espírito Santo, a aldeia jesuítica Reritiba, hoje a cidade de Anchieta, foi fundada pelo padre José de
Anchieta em 1561, como local de catequese dos índios. Não muito distante de Anchieta está o balneário de Nova
Almeida (antiga Reis Magos), na Serra-ES, onde se destaca a Igreja dos Reis Magos construída entre 1580 e
1615. No Espírito Santo essas práticas culturais de devoção aos Santos Reis são encontradas no extremo Norte,
em São Mateus e Conceição da Barra (Reis de Boi) e em várias cidades, em sua maioria ao Sul (Folia de Reis).
Entre as cidades encontradas citamos: Serra, Alegre, Cachoeiro de Itapemirim, Mimoso do Sul, entre outras.
Além de Muqui, onde acontece anualmente, há cerca de 64 anos, o Encontro Nacional de Folia de Reis.
119
Ao contrário de Ferreti, Marta Abreu (1994) diz que a adoção dos Santos
católicos pelos africanos não apontava necessariamente para uma conversão dos
escravos ao catolicismo, muito menos o sincretismo religioso, entendido pela autora
como - uma parte católica outra parte africana - tampouco a uma estratégia de
esconder as divindades africanas por trás dos santos católicos. Segundo a autora,
“Significava, principalmente, a incorporação das imagens católicas, dos novos
símbolos, à religião da África Central”. (ABREU, 1994, p.192).
52
Ampla associação de estudos e de atuação que se estendeu pelo território nacional entre 1949 e 1964.
124
“Quando Jesus nasceu ele nasceu numa manjedôra, e você entende o que
é uma manjedôra hoje? [...] é um curral que hoje tem e nesse curral tinha
um cocho [...] e ali, Nossa Senhora ficou iscundida e ganhou esse menino.
[...] então foi aonde nasceu o Reis de Boi, por isso que eles botaram o Boi,
botaram a loba que é a égua e botaram o cachorro que tava chegando na
hora e ficaram “aquentando” (esquentando, aquecendo) Jesus na quentura
ali”. (Benedito Machado, 2013)
algumas práticas culturais poderia ser explicada através de uma das mais
conhecidas peças de Gil Vicente, denominada O Monólogo do Vaqueiro,
apresentada em 1502, em homenagem ao nascimento do príncipe D. João. Essa
peça é considerada por alguns estudiosos a origem do auto do Bumba-meu-Boi.
Para Arthur Ramos também “não bastam as origens ameríndia e europeia para a
explicação etiológica do bumba-meu-Boi.” (2007, p.83) e diz que a contribuição
fundamental do africano é o Totemismo. 53
53 Classicamente conceitua-se totemismo como um conjunto de ideias e práticas que tem como
base a crença na existência de um parentesco místico entre seres humanos e a natureza, como
animais e plantas. Para saber mais ver cap XII – O ciclo do totemismo – Arthur Ramos, em 0 negro
brasileiro, disponível em http://www.brasiliana.com.br/obras/o-negro-brasileiro-1-v-etnologia-
religiosa/pagina/349/texto acesso 21/05/2017.
127
Nossos povos têm suas raízes [...] nos quatro cantos do globo, desde
Europa, África, Ásia, foram forçados a se juntar no quarto canto, na “cena
primária” do Novo Mundo. Suas “rotas” são tudo, menos “puras”. [...]
Sabemos que o termo “África” é, em todo caso, uma construção moderna,
que se refere a uma variedade de povos, tribos, culturas e línguas [...] A
distinção de nossa cultura é manifestadamente o resultado do maior
entrelaçamento e fusão, na fornalha da sociedade colonial, de diferentes
elementos africanos, asiáticos e europeus. (HALL. 2003, p. 30)54
[...] uma longa prática da Igreja, que passou a tolerar o batuque e mesmo
algumas manifestações afro-católicas, como as congadas, os reisados,
entre outras, em vários estados do país como forma de se popularizar, a
tal ponto que pesquisadores passaram a notar nessas manifestações as
suas características religiosas ibéricas em detrimento dos componentes
afro ou ameríndios que as caracterizam tão exemplarmente. Não é por
coincidência que a maioria dos grupos de folia de Reis, Congadas e
Moçambiques é formada por afrodescendentes. (LIGIÉRO, 2011, p. 240)
ritual, mas pelo que este corpo é capaz de revelar, através de sua performance, se
evidenciando como um elemento de identidade diaspórica.
Barroso (2013) chama a atenção para o fato de que nos Reisados, assim
como em outras brincadeiras tradicionais e manifestações cênicas populares, se
acredita que a realidade é passível de encantamentos, ou seja, que sob a expressão
do cotidiano pode se esconder uma realidade outra, uma segunda dimensão da
realidade, só revelada em algumas circunstâncias.
No caso do Reis de Boi, o ritual remete à natividade, com a visita dos Reis
Magos ao nascimento do menino Jesus. Assim, durante o ritual do Reis de Boi o
tempo é reatualizado e todos são transportados para um outro Tempo-Espaço
sagrado. Sobre isso nos diz Mircéa Eliade:
Desse modo, a ideia de matriz traz algo fixo e a força motriz traz o
movimento, as relações e dinâmicas próprias criadas e transformadas no cotidiano
da brincadeira. O conceito de motrizes define as principais dinâmicas culturais
utilizadas nas celebrações afro-brasileiras, a saber:
5) ela afirma o estilo pessoal, pois espera-se que o artista tenha um estilo
próprio;
6) por fim, ela cumpre funções sociais - sendo possível destacar seu
papel socializador e aglutinador, na medida em que estas performances são sempre
realizadas pela comunidade.
Mas em que medida podemos propor que o ritual do Reis de Boi seja
analisado dentro desta conceituação de Frigerio sobre a performance afro-
americana? Alguns aspectos apontados em seus estudos nos remetem diretamente
ao ritual do Reis de Boi e à atuação de seus personagens.
57
Entretanto, como já dito anteriormente, nem todos os Vaqueiros fazem a repartição do Boi atualmente.
140
sanfoneiro que faz o seu “floreado”), os Guias que buscam se destacar pela afinação
e sustentação da voz.
Considerações Finais
Justamente por ser uma prática cultural com um ritual tão complexo, com
diversas possibilidades de direcionamento dos estudos, muitos caminhos foram
mostrados, mas não puderam ser percorridos, devido à falta de tempo e ao foco
dado nesse trabalho. Um desses caminhos é o papel da mulher no Reis de Boi. Uma
investigação sobre quem são essas mulheres, desde quando participam, suas
funções (Mestras, integrantes, colaboradoras), buscando entender como se
estabelece a relação de gênero nessa prática cultural é extremamente importante e
pode ser um caminho interessante para uma pesquisa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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pesquisa e interpretação – 2. ed. – Maceió: EDUFAL, 2010.
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Escola/ SEED/ MEC, 2008. p. 199-209. Disponível em: <
http://www.tvbrasil.org.br/saltoparaofuturo/imagens/livros/livro_salto_cultura_popular
_e_educacaoi.pdf > Acesso em: 14.06.2013.
ANEXO - DVD