Ebook-Interseccionalidades e Producao de Subjetividades

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 315

Wilson Miranda Lima

Governador do Estado do Amazonas

Serafim Fernandes Corrêa


Secretário de Estado de Desenvolvimento Econômico,
Ciência, Tecnologia e Inovação - SEDECTI

Márcia Perales Mendes Silva


Diretora-Presidente da Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado do Amazonas

Esta obra foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas/
FAPEAM – Edital n.º 005/2022 referente ao PROGRAMA HUMANITAS – CT&I FAPEAM
Conselho Editorial

Presidente:
Henrique dos Santos Pereira

Membros:
Antônio Carlos Witkoski
Domingos Sávio Nunes de Lima
Edleno Silva de Moura
Elizabeth Ferreira Cartaxo
Spartaco Astolfi Filho
Valéria Augusta Cerqueira Medeiros Weigel

Comitê Editorial da EDUA

Louis Marmoz (Université de Versailles)


Antônio Cattani (UFRGS)
Alfredo Bosi (USP)
Arminda Rachel Botelho Mourão (Ufam)
Spartaco Astolfi Filho (Ufam)
Boaventura Sousa Santos (Universidade de Coimbra)
Bernard Emery (Université Stendhal-Grenoble 3)
Cesar Barreira (UFC)
Conceição Almeira (UFRN)
Edgard de Assis Carvalho (PUC/SP)
Gabriel Cohn (USP)
Gerusa Ferreira (PUC/SP)
José Vicente Tavares (UFRGS)
José Paulo Netto (UFRJ)
Paulo Emílio (FGV/RJ)
Élide Rugai Bastos (Unicamp)
Renan Freitas Pinto (Ufam)
Renato Ortiz (Unicamp)
Rosa Ester Rossini (USP)
Renato Tribuzy (Ufam)
Iolete Ribeiro da Silva
Isabel Cristina Fernandes Ferreira
Adria de Lima Sousa
Regina Lúcia Sucupira Pedroza
Organizadoras

Interseccionalidades e produção de
subjetividades: diálogos sobre racismo,
sexismo e direitos humanos

Amazonas
2024
Copyright © 2024 Universidade Federal do Amazonas

Reitor
Sylvio Mário Puga Ferreira

Editora
Parimpar editora independente

Revisão Português
Os Autores

Revisão Técnica
As Organizadoras

Editoração eletrônica - Internas e Capa:


Parimpar editora independente

Crédito de Imagem da Capa:


Geraldir E. Bernardino

Catalogação da Publicação (CIP)


Ficha catalográfica elaborada pela Editora Parimpar

F383I Da Silva, Iolete Ribeiro (org).

Interseccionalidades e produção de subjetividades/ Iolete Ribeiro da


Silva, Isabel Cristina Fernandes Ferreira, Adria de Lima Sousa, Regina
Lúcia Sucupira Pedroza.

6,49 MB ePUB.

ISBN 978-65-00-97958-9 DOI: 10.6084/m9.figshare.25777506

1. Racismo. 2. Sexismo. 3. Direitos Humanos. 4. Subjetividades. 5.


Interceccionalidades. I. Da Silva, Iolete Ribeiro. II Ferreira, Isabel
Cristina Fernandes. III. Sousa, Adria de Lima. IV. Pedroza, Regina Lúcia
Sucupira. V. Título.

CDD: 302.13
CDU: 316.3

Direitos Autorais Reservados. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra,


de qualquer meio, salvo com autorização expressa e por escrito da Editora (de
acordo com a Lei do Direito Autoral em vigor no país). Ao reproduzir este ou
qualquer livro através de fotocópia (xerox) ou outro método, você prejudica a
Editora, seus colaboradores e a todos aqueles que trabalham com o livro no Brasil.

Editora PARIMPAR
Rua Alcântara, nº 340 Belo Horizonte, Minas Gerais.
Contato: (31) 9.9979-87.21 / E-mail: [email protected]
Site: parimpar.com.br
SUMÁRIO

INTERSECCIONALIDADE E PESQUISA NA AMAZÔNIA:


DIÁLOGOS ENTRE A PSICOLOGIA E A EDUCAÇÃO ....... 17

INTERSECCIONALIDADES - CONQUISTANDO DIREITOS


AINDA VOLÁTEIS........................................................................ 43

A TRAJETÓRIA E PERMANÊNCIA DE JOVENS INDÍGENAS


EM INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR NO
AMAZONAS: A TRANSFORMAÇÃO DO ESTIGMA EM
PROTAGONISMO......................................................................... 65

OS ATRAVESSAMENTOS DO RACISMO ESTRUTURAL NO


BRASIL: HERANÇAS DE UMA SOCIEDADE COLONIAL
ESCRAVOCRATA.......................................................................... 95

A QUESTÃO RACIAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES:


DESAFIOS E POSSIBILIDADES ............................................... 115

BRANQUITUDE E SUBJETIVIDADE: UM ENSAIO SOBRE A


IDENTIDADE MANAUARA..................................................... 137

RACISMO ESTRUTURAL NOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE


SAÚDE NO BRASIL .................................................................... 159

RACISMO OBSTÉTRICO, INTERSECCIONALIDADE E A


ASSISTÊNCIA A MULHERES PRETAS NO CICLO
GRAVÍDICO PUERPERAL........................................................ 179
INTERSECCIONALIDADE ENTRE RAÇA E GÊNERO: UMA
REFLEXÃO ACERCA DA VIOLÊNCIA SIMBÓLICA NAS
ESCOLAS DE EJA DA REDE PÚBLICA MUNICIPAL DE
ENSINO DE MANAUS/AM....................................................... 205

FEMINISMO NEGRO INTERSECCIONAL:


CONTRIBUIÇÕES PARA UM (RE)PENSAR DA
ENSINAGEM ................................................................................ 227

GÊNERO E SEXUALIDADE NAS POLÍTICAS PÚBLICAS


EDUCACIONAIS: INDICADORES SOCIAIS E MÉTRICAS
PARA A AVALIAÇÃO NA PROMOÇÃO DA INCLUSÃO... 245

SENTIDOS E TRAJETÓRIAS DE MULHERES CAMPONESAS


NA AMAZÔNIA: RELATOS DA LUTA PELA PERMANÊNCIA
NA TERRA E NA UNIVERSIDADE......................................... 269

REFLEXÕES SOBRE AS VIVÊNCIAS DE PESSOAS


BISSEXUAIS À LUZ DA INTERSECCIONALIDADE ........... 291
PREFÁCIO

Cândida Beatriz Alves - UnB

As dinâmicas de poder que abarcam questões de raça,


classe, gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade, etnia e
faixa etária, entre outras dimensões, não se apresentam – em uma
determinada sociedade e em um certo período histórico – como
entidades separadas entre si. Pelo contrário, essas categorias se
entrelaçam e entrecruzam, operando de forma integrada. Ainda que
nem sempre de modo perceptível, tais relações interseccionais de
poder exercem influência sobre as mais diferentes nuances da vida
em sociedade.
Permeado pela necessidade premente de desvendar e
reconstruir os alicerces de nossa sociedade surge este livro. Ele
nasce, portanto, de uma urgência. Os capítulos aqui reunidos são
como prismas multifacetados, cada um iluminando uma faceta
específica da complexa teia que entrelaça racismo, sexismo e outros
desafios estruturais. Por meio da psicologia, da educação, da saúde,
das políticas públicas e das experiências cotidianas, estas páginas
revelam a invisibilidade de privilégios arraigados - como o da
branquitude - e a importância crucial da formação de
professores(as) para a desconstrução desses pilares opressores.
Neste compêndio, o leitor percorre uma jornada
desafiadora: a reflexão sobre como sistemas, políticas e atitudes
perpetuam a marginalização e a desigualdade em diferentes espaços,
como escolas, unidades de saúde, ambientes urbanos, entre outros.
Os diálogos aqui presentes não apenas expõem, mas confrontam.
Eles confrontam uma sociedade enraizada na hegemonia patriarcal,
desvelam a teia do racismo estrutural que permeia nossas
instituições e lançam luz sobre a importância fundamental da
politização da educação.
O resgate da educação como agente de produção de si e a
incessante busca por políticas públicas que abracem a análise
interseccional se revelam como guias fundamentais para a
efetivação dos direitos humanos e o desmantelamento das estruturas
opressoras. Esta não é apenas uma obra que observa à distância; é
um chamado à ação, convocando-nos a reconhecer que nossas
escolhas são intrinsecamente políticas e que a transformação
começa por uma conscientização profunda das intersecções que
moldam instituições, bem como nossas vidas cotidianamente.
Entender que as escolhas individuais são, em si, atos políticos, é o
primeiro passo rumo a uma sociedade mais inclusiva e igualitária.
Assim, mergulhamos na teia invisível que envolve os lugares
de privilégio, fenômenos arraigados nas estruturas de poder que
moldam nossas interações sociais. O racismo estrutural, tão
presente e insidioso em nossas instituições e práticas diárias, exige
uma abordagem corajosa e incisiva. As lutas e conquistas das
mulheres e pessoas LGBTQIA+, em suas diferentes nuances e
entrelaçamentos, desafiam a ordem vigente. Minorias ocupando
diferentes espaços, redefinindo narrativas e contribuindo para uma
mudança significativa em nossa sociedade. A importância da
formação antirracista e sensível à diversidade de gênero ecoa como
um chamado imperativo à desconstrução de paradigmas enraizados
e à construção de uma consciência coletiva que transcende
fronteiras e limitações históricas.
Esta obra não busca apenas questionar, mas também
apontar caminhos para um mundo onde a igualdade e a dignidade
sejam direitos universais, não apenas conceitos aspiracionais. Que
esta leitura seja um convite à ação e à mudança, um chamado para a
construção coletiva de um futuro mais justo e inclusivo para todas
as pessoas.
APRESENTAÇÃO

Diferentes áreas do conhecimento têm se preocupado em


compreender as intersecções que perpassam pela produção de
subjetividade e influem na realidade vivenciada individual e
coletivamente. A crise climática bem como a recente experiência de
uma pandemia e constantes ameaças de guerras globais evidenciam
a fragilidade da condição humana e ainda assim escancaram as
diferentes formas de viver experiências que não podem ser
consideradas universais. É cada vez mais inegável que as
interseccionalidades de território, raça, classe e gênero repercutem
de forma muito peculiar na experiência e nos impactos sofridos por
pessoas e grupos específicos e aumentam as situações de
desigualdade e vulnerabilidade que não podem ser naturalizadas.
Nesse sentido o livro “Interseccionalidades e produção de
subjetividades: diálogos sobre racismo, sexismo e direitos humanos”
é fruto de reflexões e debates de pesquisadoras e pesquisadores da
psicologia e da educação que se debruçaram em olhar para
fenômenos específicos diante do pressuposto epistemológico e
metodológico da interseccionalidade, com base nos resultados da
pesquisa Itinerários e condições de desenvolvimento de jovens
estudantes do ensino superior: desafios para a permanência
(FAPEAM). A interseccionalidade apresenta-se como um termo que
precisa ser inserido não só na forma de compreender as dinâmicas
presentes em níveis micro e macro estruturais bem como na
construção de estratégias de produção do próprio conhecimento, de
políticas educacionais, de saúde, moradia e diferentes expressões do
exercício da cidadania e de direitos humanos.
A fim de evidenciar elementos importantes para o diálogo
sobre a temática abordada o livro está estruturado em 13 capítulos.
No primeiro momento, o capítulo intitulado “Interseccionalidade e
pesquisa na Amazônia: diálogos entre a psicologia e a educação”
de autoria das organizadoras da obra, Isabel Cristina Fernandes
Ferreira, Adria de Lima Sousa, Iolete Ribeiro da Silva e Regina Lúcia
Sucupira Pedroza, o objetivo é apresentar a interseccionalidade
como elemento fundamental no desenvolvimento de pesquisas
comprometidas com a realidade da Amazônia. As autoras apontam
como interseccionalidade na pesquisa revela a complexidade das
experiências sociais, especialmente para estudantes universitárias
Amazônidas, destacando a importância de considerar múltiplos
fatores de opressão. Essa abordagem amplia a compreensão das
desigualdades, promove políticas mais inclusivas e forma
profissionais sensíveis à diversidade. Além disso, destaca-se a
necessidade de uma pesquisa ético-política orientada para a
transformação social e a inclusão dos estudantes Amazônidas no
ensino superior.
No segundo capítulo “Interseccionalidades -
conquistando direitos ainda voláteis” de autoria de Silviane
Barbato, Kristine R. Medeiros Alves, Victoria Goulart da Silva e Ana
Beatriz Goyanna é possível abordar o modo como Mulheres
enfrentam obstáculos nos direitos humanos e acesso à educação e
trabalho, influenciadas por fatores sociais, políticos e culturais. O
capítulo propõe-se analisar a socialização de estudantes
universitárias e apresentar iniciativas para promover a participação
e visibilidade das mulheres em suas comunidades e na produção de
conhecimento.
Em “A trajetória e permanência de jovens indígenas em
instituições de ensino superior no amazonas: a transformação do
estigma em protagonismo”, Rosemary Amanda Lima Alves,
Raniele Alana Lima Alves, Socorro Gamenha, Vanderlécia Ortega
dos Santos (Wanda Witoto), Consuelena Lopes Leitão e Iolete
Ribeiro da Silva apresentam um estudo que foca nas narrativas de
mulheres indígenas na universidade, destacando suas trajetórias,
desafios e o papel das políticas públicas afirmativas. A inserção
dessas mulheres na universidade as torna visíveis, desafiando
estereótipos de gênero e étnicos. A pesquisa, realizada no
Amazonas, revela a importância de políticas de acesso e
permanência. Apesar dos avanços na democratização do acesso, é
necessário modificar o sistema universitário e implementar políticas
de permanência para garantir uma educação inclusiva e bem-
sucedida para todos os estudantes.
O capítulo em seguida sobre “Os atravessamentos do
racismo estrutural no brasil: heranças de uma sociedade colonial
escravocrata” de Melquides Felipe de Gois Maia Neto e Caní Jakson
Alves da Silva evidencia como o racismo estrutural é um
componente ativo nas relações sociais brasileiras, afetando política,
economia, cultura, educação e mercado de trabalho. O estudo visa
analisar a violência racial no Brasil, contextualizando sua
historicidade e indicando os determinantes do aumento das Mortes
Violentas Intencionais (MVI’s) da população negra. Dados do
Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelam um aumento da
violência racial, evidenciando a perpetuação de lógicas coloniais que
marginalizam corpos negros.
Em “A questão racial na formação de professores: desafios
e possibilidades”, Fernanda Calegare aborda a importância de
discutir o racismo na formação de professores, buscando romper
com sua invisibilidade nos processos educativos escolares. Baseado
em leituras que exploram a interseção entre questões raciais e
educacionais, o texto aborda conceitos fundamentais de Direitos
Humanos e reflete sobre a estruturação do racismo, sexismo e
classismo na sociedade.
No capítulo sobre “Branquitude e subjetividade: um
ensaio sobre a identidade manauara”, Alessandra dos Santos
Pereira propõe uma reflexão sobre a identidade da cidade de
Manaus, destacando sua relação com as comunidades indígenas e
utiliza conceitos de cultura, identidade e representação, incluindo a
ideia de branquitude. Em “Racismo estrutural nos serviços
públicos de saúde no Brasil”, os autores Henrique de Araújo
Martins e Marck de Souza Torres realizam uma análise do racismo
nos serviços públicos de saúde no Brasil, examinando a interseção
entre discriminação racial e acesso à saúde. Reconhecendo a saúde
como um direito fundamental o ensaio busca compreender como o
racismo se manifesta na prática e seus impactos na vida dos
afetados.
Ainda no amplo debate sobre o racismo na esfera da saúde,
o capítulo “Racismo obstétrico, interseccionalidade e a assistência
a mulheres pretas no ciclo gravídico puerperal” de Karolayne
Rodrigues Silva, Letícia Moura da Silva Patrício; Aline de Lima
Sousa, Consuelena Lopes Leitão e Iolete Ribeiro da Silva, aborda o
racismo e a violência obstétrica, reconhecendo a importância das
práticas humanizadas na saúde das mulheres. O termo "racismo
obstétrico" é utilizado para descrever as violências enfrentadas por
mulheres pretas e indígenas nas instituições de saúde. Destaca-se o
estudo, realizado por uma mulher negra e uma mulher não-binária,
busca entender como essas práticas afetam as mulheres pretas,
considerando a interseccionalidade.
O capítulo “Interseccionalidade entre raça e gênero: uma
reflexão acerca da violência simbólica nas escolas de EJA da rede
pública municipal de ensino de Manaus/Am” de Débora Napoleão
de Sena e Márcio de Oliveira busca compreender como a
interseccionalidade entre raça e gênero contribui para a violência
simbólica nas escolas de Educação de Jovens, Adultos/as e Idosos/as
da Rede Pública Municipal de Ensino de Manaus/AM. Inicialmente,
destaca-se a importância de investigar essas questões na área da
educação, dada a influência dos ambientes de socialização na escola.
A pesquisa foi conduzida com o objetivo geral de compreender essa
interseccionalidade e objetivos específicos de identificar os sujeitos
da EJA, apresentar a interseccionalidade como uma ferramenta
analítica e analisar como ela contribui para a violência simbólica.
O capítulo “Feminismo negro interseccional:
contribuições para um (re)pensar da ensinagem” de Raescla
Ribeiro de Oliveira aponta a ausência de representatividade de
mulheres negras e indígenas ao longo da formação acadêmica,
desde a pré-escola até a pós-graduação. O capítulo discute o racismo
e o sexismo na educação brasileira, dialogando com a teoria
feminista negra interseccional e a abordagem da Aprendizagem
Criativa para propor reflexões sobre o caminho para uma educação
antirracista e antissexista.
Em “Gênero e sexualidade nas políticas públicas
educacionais: indicadores sociais e métricas para a avaliação na
promoção da inclusão”, Maise Caroline Zucco aborda a
complexidade das políticas públicas educacionais, destacando que
as iniciativas selecionadas refletem escolhas específicas e são
influenciadas pela interação entre atores governamentais e não
governamentais. A autora ressalta a importância de considerar
diversos fluxos, como políticos e de problemas, na definição das
agendas governamentais. Além disso, destaca a necessidade de uma
abordagem interseccional na coleta de dados sobre diversidade,
reconhecendo que nem todos os marcadores identitários são
contemplados pelos indicadores produzidos pelo Estado. O texto
destaca os desafios metodológicos e a importância de problematizar
as análises para promover ações que contribuam para
transformações sociais.
O capítulo “Sentidos e trajetórias de mulheres
camponesas na Amazônia: relatos da luta pela permanência na
terra e na universidade” de Angélica de Souza Lima e Juliana da
Silva Nóbrega destaca a importância na resistência pela terra e no
movimento feminista. Discute também a importância da educação
do campo e a criação do curso de Licenciatura em Educação do
Campo (LEDOC) e explora a relação entre psicologia e ruralidades,
propondo uma práxis descolonizadora. Originado de uma pesquisa
sobre as trajetórias de estudantes da LEDOC na Universidade
Federal de Rondônia, o texto apresenta narrativas de mulheres
camponesas no acesso ao ensino superior.
Em “Reflexões sobre as vivências de pessoas bissexuais à
luz da interseccionalidade” de Victor Lucas da Silva Carvalho,
Paulo Guilherme da Encarnação Matos, Gisele Cristina Resende e
Breno de Oliveira Ferreira é possível refletir sobre os desafios
enfrentados por pessoas bissexuais em uma sociedade
cisheteronormativa. O texto destaca a necessidade de considerar a
bissexualidade nos estudos sobre interseccionalidade, reconhecendo
as diversas formas de discriminação enfrentadas por indivíduos que
não se enquadram nos padrões tradicionais de gênero e sexualidade
e aponta a escassez de pesquisas sobre bissexualidade na literatura
nacional e os impactos negativos da bifobia na vida das pessoas
bissexuais, incluindo problemas de saúde mental e dificuldades
sociais. O estudo visa contribuir para uma maior compreensão e
respeito pela diversidade sexual, destacando a importância de
futuras pesquisas sobre o tema em níveis nacional e internacional,
além de enfocar nas vivências de jovens bissexuais em diferentes
contextos sociais.
De modo geral, os textos, ensaios, debates e reflexões
propostos nesse livro no presente nos levam ao passado e abrem
caminhos para possíveis futuros. Ao refletir sobre perspectivas de
um futuro ancestral, Ailton Krenak nos fala do momento muito
particular pelo qual a humanidade está passando somos obrigados a
mergulhar profundamente na terra e em suas problemáticas para
sermos capazes de recriar mundos possíveis. Acreditamos que
diante de tantas violências perpetuadas esse livro surge como
possibilidade de reflexões e debates para pensar e recriar novos
caminhos possíveis para transformação na psicologia, educação e
direitos humanos considerando as diferentes interseccionalidades
de classe, raça, território e gênero. Desejamos boa leitura e boas
reflexões e ações para um novo caminhar mais humano, igual e
inclusivo.

Afetuosamente, a Organização.
INTERSECCIONALIDADE E
PESQUISA NA AMAZÔNIA:
DIÁLOGOS ENTRE A
PSICOLOGIA E A EDUCAÇÃO1
Isabel Cristina Fernandes Ferreira
Adria de Lima Sousa
Iolete Ribeiro da Silva
Regina Lúcia Sucupira Pedroza

Introdução

A educação é um direito fundamental integrativo da


realização da dignidade da pessoa humana. Na perspectiva da
Teoria Histórico-Cultural, o desenvolvimento humano e,
consequentemente, a formação profissional no ensino superior, dá-
se como resultado da apropriação de signos culturais por meio de
processos educativos, visto que, embora nascidos da espécie
humana, somente por meio desses processos nos constituímos
como seres pertencentes ao gênero humano (Pino, 2005). Dessa
maneira, os processos formativos na universidade assumem o papel
de mediar a relação entre a vida cotidiana (que ocorre de modo não
sistematizado ou problematizado, por meio da convivência com os
outros no meio social e cultural para dar conta das necessidades que
lhe são inerentes) e as possibilidades não cotidianas da atividade
social (Heller, 1987), de modo a favorecer a construção da
individualidade para si - formação da pessoa como alguém que faz
de sua vida uma relação consciente com o gênero humano (Duarte,
2013) e promover a aproximação, cada vez mais consciente, de cada
estudante com os outros, com o meio, consigo mesmo(a) e com as
possibilidades para o vir-a-ser.
1
O presente trabalho foi realizado com apoio do Programa Nacional de
Cooperação Acadêmica na Amazônia – PROCAD/Amazônia da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES/
Brasil e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas/Edital
Nº 005/2022Humanitas CT&I FAPEAM.
O ensino superior é palco de lutas de trabalhadores(as) da
educação, da sociedade civil organizada e de diversos movimentos
sociais. A obtenção de avanços significativos para a democratização
do ensino superior no Brasil, principalmente a partir do início do
século XXI, modificou o cenário das Universidades públicas do país
e da região Norte com a inserção de demandas de acesso de grupos
historicamente excluídos, como os de pessoas negras, indígenas
(povos das primeiras nações) e as pessoas com deficiências, dentre
outras (Jesus, 2020; Oliveira, 2020; Luz, 2013).
Os investimentos do governo federal promoveram a
constituição de novas Universidades Federais com a abertura de
novos campi, cursos e a ampliação das vagas. Com o objetivo de
apoiar a permanência de estudantes de baixa renda, houve a criação
do Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES),
proporcionando assistência à moradia, alimentação, transporte,
saúde, inclusão digital, cultura, esporte, creche e apoio pedagógico
(Brasil, 2010). Já, em 2012, foi promulgada a Lei de Cotas, Lei
Federal Nº 12.711 (Brasil, 2012), para promover o acesso ao ensino
superior em Universidades Federais. Essa última foi alterada pela
Lei nº 14.723 de 13 de novembro de 2023 (Brasil, 2023) e dispõe
sobre o programa especial para o acesso às instituições federais de
educação superior e de ensino técnico de nível médio de estudantes
pretos, pardos, indígenas e quilombolas e de pessoas com
deficiência, bem como daqueles que tenham cursado integralmente
o ensino médio ou fundamental em escola pública.
Iniciadas as conquistas relacionadas à expansão do acesso
ao ensino superior público, a permanência de estudantes na
universidade, público alvo das políticas públicas de ações
afirmativas, apresenta-se como um desafio complexo a ser superado
em consonância com processos educativos sustentados na
compreensão dos sujeitos como histórico-culturais e da realidade
como totalidade concreta, no conhecimento da desigualdade
socioeconômica, na valorização da diversidade e no compromisso
ético-político com o desenvolvimento humano a partir de uma
perspectiva crítico-reflexiva.
Tal conjuntura nos desafia, como mulheres, professoras
formadoras (sempre em formação) e como pesquisadoras, a um

18
INTERSECCIONALIDADE E PESQUISA NA AMAZÔNIA: DIÁLOGOS ENTRE A
PSICOLOGIA E A EDUCAÇÃO

movimento de resistência e de busca de alternativas epistemológicas


e metodológicas importantes para a continuidade da construção de
uma realidade educacional que concretize, intencionalmente, acesso
e permanência para trajetórias de jovens estudantes Amazônidas
como processos educativos inclusivos, humanizadores e
emancipatórios. Nessa perspectiva, é importante chamar atenção
para a discussão sobre a importância da interseccionalidade,
conceito introduzido por Kimberlé Crenshaw (2002), para descrever
as diferentes intersecções entre opressões vivenciadas a partir de
raça, etnia, gênero e classe por mulheres afro-americanas. Hoje, é
possível associar esse conceito ao debate sobre as territorialidades,
isso porque há diferentes formas de opressão e promoção de
desigualdades que perpassam pelos territórios nos quais a vida
acontece (Maia; Anjos, 2022). Assim, é possível compreender a
importância metodológica e teórica do termo interseccionalidade e
assumir que “o conhecimento deve ir além das demarcações fixadas
por linhas imaginárias do horizonte e, finalmente, valer-se de raça,
classe, território e gênero” (Akotirene, 2019, p.64).
A realidade do ensino superior Amazônida, com suas
especificidades, resulta de um processo histórico no qual as
instituições sociais organizam-se para atender os interesses do seu
tempo, produzindo processos contraditórios de inclusão e de
exclusão, próprios da sociedade capitalista (Mészáros, 2008). O
contexto atual de acesso e permanência no ensino superior para
estudantes Amazônidas traz conquistas e impõe desafios
condicionados por diferentes fatores políticos, geográficos, sociais,
culturais, religiosos e econômicos combinados e inter-relacionados
entre si e à raça, etnia, classe, gênero e território e orientação sexual.
O presente capítulo propõe apresentar reflexões iniciais
sobre a interseccionalidade em pesquisas que tratam de trajetórias
de estudantes Amazônidas no ensino superior. Essas reflexões são
possíveis a partir da inserção das pesquisadoras e autoras em dois
projetos de pesquisa sobre essa temática. Dessa perspectiva, refletir
sobre a interseccionalidade a partir de pesquisas integrantes dos
Projetos “Itinerários e condições de desenvolvimento de jovens
estudantes do ensino superior: desafios para a permanência” -
HUMANITAS CT&I FAPEAM - (Silva, 2022) e “Os significados das

19
trajetórias de escolarização de jovens estudantes Amazônidas” -
PROCAD/Amazônia-CAPES - (Silva et al., 2018), constituiu-se
como um modo de busca de formas de enfrentamento, valorização
de superações e de resistência.
Para tal, considera-se a interseccionalidade como uma
abordagem teórica que enfatiza a interdependência de diferentes
categorias de identidade, tais como raça, etnia, classe, gênero,
território e orientação sexual. Essa perspectiva reconhece que as
formas de opressão e discriminação não atuam isoladamente, mas se
entrelaçam, resultando em experiências complexas e únicas para
pessoas que ocupam diversas posições sociais. Assim, não é possível
compreender totalmente a opressão e as desigualdades ao examinar
apenas uma dimensão da identidade, como gênero ou raça
isoladamente. A interseccionalidade busca, em vez disso, analisar
como essas categorias se intersectam, influenciando as experiências
e oportunidades de uma pessoa de maneira interconectada. No
ambiente acadêmico, isso não é diferente. Alguns estudos já
evidenciam a importância de atentar para a interseccionalidade na
universidade e suas implicações na saúde mental, no desempenho e
nas condições de possibilidade de êxito acadêmico (Oliveira, 2020;
Vieira; Torrente, 2022).
Nas pesquisas, a abordagem interseccional tem sido
aplicada especialmente em contextos de justiça social, feminismo e
estudos críticos, visando abordar as complexidades das experiências
individuais e garantir que as lutas por igualdade sejam inclusivas e
abrangentes. No Brasil, um país caracterizado por seu território
continental, repleto de diferenças e desigualdades sociais, os estudos
são desafiados a conceber um olhar interseccional sem negligenciar
as territorialidades de pessoas que vivem em regiões como as
marcadas pelas singularidades Amazônidas. Destarte, os tópicos a
seguir versarão sobre especificidades do Ensino Superior
Amazônida, os atravessamentos interseccionais presentes/
observados a partir das reflexões sobre pesquisas realizadas,
indicando possibilidades e caminhos para novas pesquisas que
valorizem a interseccionalidade.

20
INTERSECCIONALIDADE E PESQUISA NA AMAZÔNIA: DIÁLOGOS ENTRE A
PSICOLOGIA E A EDUCAÇÃO

Ensino Superior no Amazonas: avançando na


compreensão de um contexto complexo

A Amazônia Ocidental é composta pelos Estados do


Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima, abrange 42,97% da extensão
territorial da Amazônia Legal e, aproximadamente, 57% das
florestas. Possui uma rica diversidade natural, abrigando a Floresta
Amazônica, com predomínio do clima equatorial. Os aspectos
geográficos são diversificados com planícies, planaltos e depressões.
Sua economia é baseada na agropecuária, na indústria e no
extrativismo vegetal e mineral (IBGE, 2022). Já, a população
Amazônida é formada por diferentes processos de colonização e de
miscigenação, diversos grupos étnicos e comunidades tradicionais,
como os povos originários, as populações quilombolas, ribeirinhas e
campesinas, pescadores, extrativistas, migrantes e imigrantes,
dentre outras (Lira; Chaves, 2016). Tal diversidade, expressa a
riqueza cultural do país e suas diferentes formas de produção de
bens materiais e imateriais. Entretanto, essa mesma riqueza diversa
relaciona-se com a desigualdade regional e a necessidade de acerto
do compasso das políticas públicas e da sua implementação (Brito;
Guimarães, 2017) em consonância com as especificidades da região
Amazônida e as demandas para o acesso e a permanência no ensino
superior.
Conforme dados da Secretaria de Modalidades
Especializadas de Educação (INSTITUTO SEMESP, 2022), a
expansão desse nível de ensino ocorre de maneira assimétrica. O
Amazonas tem 1,9% de representatividade no número de matrículas
total do país, possui taxa de escolaridade líquida (que mede o
percentual de jovens de 18 a 24 anos matriculados no ensino
superior em relação ao total da população da mesma faixa etária) de
15,3% e, do total de estudantes do ensino superior no estado, 48,8%
têm até 24 anos. Já, Rondônia, tem 0,9% de representatividade no
número de matrículas total do país, possui taxa de escolaridade
líquida de 16,8%, e 46, 2% do total de estudantes do ensino superior
têm até 24 anos, um dos menores índices do país. Da região Norte,
com parcos 8,3% do percentual de matrículas no ensino superior do

21
Brasil, apenas os estados de Tocantins, Amapá e Roraima possuem
taxa de escolarização líquida acima da média do Brasil (18,1%).
A análise desses dados de desigualdade educacional aliados
à desigualdade socioeconômica da região e as suas especificidades,
expõe as condições de vulnerabilidade (Brasil, 2004) de jovens
estudantes Amazônidas, na medida em que as características
geográficas, condições econômicas, origem social, cultura, raça,
etnia, gênero e orientação sexual ainda são fatores relevantes na
construção de desigualdades nas trajetórias de escolarização. Além
disso, aponta necessidades oriundas da implementação de políticas,
programas e projetos de ações afirmativas; de efetivação de
processos de gestão institucional, de ensino e de aprendizagem e
investigativos-participativos-formativos que busquem
cooperativamente, além do acesso, a permanência e a conclusão dos
estudos com qualidade formal, ética e política (Resende; Ferreira;
Silva; Pedroza, 2022).
Além desses aspectos, o ingresso no ensino superior
apresenta diversas exigências como a necessidade de mudanças no
estilo de vida; construção de novos hábitos e rotinas;
desenvolvimento de habilidades, conhecimentos e atitudes
necessárias às competências profissionais a partir de novas
aprendizagens; além daqueles referentes aos aspectos financeiros e
de relacionamentos interpessoais (Soares; Monteiro; Maia; Santos,
2019; Matta; Lebrão; Heleno, 2017).
Diante da necessidade da realização de pesquisas
comprometidas com as especificidades do Ensino Superior da
região Amazônida, o Laboratório de Educação e Desenvolvimento
Humano (LADHU) tem liderado projetos de pesquisa que buscam,
ao longo dos últimos anos, debruçar-se sobre as trajetórias
acadêmicas de estudantes Amazônidas. Para tal, parte do
pressuposto que é preciso compreender as demandas antes de
indicar ações; assume que, para apresentar proposições que
subsidiem políticas públicas, baseadas em evidências do que é
considerado funcional ou não para superação de problemas vividos
nas trajetórias, concernentes a acesso e permanência, é mister
construir percursos investigativos para ouvir as vozes, conhecer e
compreender os sentidos pessoais e os significados culturais desses

22
INTERSECCIONALIDADE E PESQUISA NA AMAZÔNIA: DIÁLOGOS ENTRE A
PSICOLOGIA E A EDUCAÇÃO

sujeitos (Vygotski, 2001), dada as invisibilidades perpetuadas


historicamente.
Das universidades, espera-se que os conhecimentos
produzidos abarquem as demandas das populações locais e as
especificidades regionais, a partir do ensino, da pesquisa e da
extensão com a construção de tecnologias sustentáveis que
valorizem o patrimônio natural e cultural da Amazônia (Pereira,
2020). Nessa perspectiva, (re)conhecer as singularidades dos
sujeitos e as particularidades da realidade, refletir sobre a
necessidade/oportunidade de superar os mecanismos de exclusão,
expulsão, preconceitos e invisibilidade e promover o
desenvolvimento integral de estudantes Amazônidas no Ensino
Superior, constitui-se como um desafio premente. Diante disso,
destacamos dois Projetos para refletirmos sobre a
interseccionalidade em pesquisas que tratam de trajetórias de
estudantes Amazônidas no ensino superior.
O projeto de pesquisa intitulado “Itinerários e condições de
desenvolvimento de jovens estudantes do ensino superior: desafios
para a permanência” (HUMANITAS CT&I FAPEAM, 2022), tem
como objetivo analisar as narrativas de jovens estudantes do Ensino
Superior sobre a sua trajetória de escolarização, sua participação e
protagonismo no contexto escolar, identificando características das
transições e condições de desenvolvimento e o quanto a
universidade responde às suas demandas. A pesquisa vinculada ao
edital HUMANITAS CT&I FAPEAM foi aprovada pelo Comitê de
ética e Pesquisa da UFAM sob o CAAE 64651822.2.0000.5020
(CEP/UFAM). Os participantes são estudantes do ensino superior
de duas universidades: a Universidades Federal do Amazonas
(UFAM), campi de Manaus, Parintins, Humaitá e Benjamim
Constante e o campus da Universidade do Estado do Amazonas em
Tabatinga. O estudo tem sido realizado em duas etapas. A primeira
abrange um levantamento de dados sociodemográficos,
informações sobre a comunidade de origem, organização familiar,
trajetória de escolarização e condição de saúde. A segunda etapa
envolve o emprego de multimétodos qualitativos com a realização
de grupos focais e quatro tipos de entrevistas individuais: entrevista

23
narrativa aberta, entrevista semiestruturada, entrevista mediada por
objetos ou imagens e entrevistas móveis.
Acredita-se que os resultados científicos dessa pesquisa
fornecerão informações que poderão ser aplicadas em setores de
organização das universidades relacionados ao acolhimento e
acompanhamento estudantil, durante sua permanência nas
universidades, contribuindo para o desenvolvimento regional
amazônico. O desenvolvimento do projeto de pesquisa em parceria
possibilitará a colaboração científica entre os campi da UFAM de
Manaus, Parintins, Humaitá e Benjamim Constant e Campi da
Universidade Estadual do Amazonas (UEA) em Tabatinga, todos no
estado do Amazonas, contribuindo para o aperfeiçoamento na
produção de conhecimentos e o fomento à formação de futuros
grupos de colaboração científica em parcerias entre os três campi,
possibilitando o incremento na avaliação nacional das pós-
graduações envolvidas. No âmbito das instituições, espera-se que os
resultados desses estudos possam ser utilizados na organização de
protocolos de acolhimento, atendimento e acompanhamento de
estudantes com diferentes bases culturais durante sua estadia na
universidade e, por exemplo, fomentar o protagonismo estudantil.
Realizado a partir da parceria estabelecida entre
Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Universidade Federal
de Rondônia (UNIR) e Universidade de Brasília (UnB), o primeiro
Projeto, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas da UFAM, em
2019, sob o número CAAE 15366619.1.1001.5020 (CEP/UFAM),
intitula-se “Os significados das trajetórias de escolarização de jovens
estudantes Amazônidas” (PROCAD/Amazônia-CAPES) e tem
como objetivo geral analisar como os(as) estudantes Amazônidas
significam a sua trajetória de escolarização e vivências no ensino
superior, sua participação e protagonismo e o quanto a universidade
responde às suas demandas, em narrativas e argumentações, a partir
de sua inscrição socioinstitucional.
Suas atividades investigativas buscam propiciar a ampliação
da produção científica nos estados do Amazonas e Rondônia,
integrantes da Amazônia Ocidental, correlacionada aos desafios da
Amazônia, a partir da compreensão de seus processos humanos, de
modo a consolidar uma política de ciência e educação, assim como

24
INTERSECCIONALIDADE E PESQUISA NA AMAZÔNIA: DIÁLOGOS ENTRE A
PSICOLOGIA E A EDUCAÇÃO

a formação de recursos humanos em abordagens qualitativas com


aspectos metodológicos inovadores que investem na participação
dos sujeitos, na valorização das suas vozes e de seus saberes. Nessa
perspectiva, abarcam estudantes de comunidades ribeirinhas,
indígenas, campesinas e urbanas; sustentam-se nos estudos voltados
aos processos de desenvolvimento e educação em contextos
socioculturais específicos na região Amazônida brasileira, a partir
de três recortes de análise: políticas educacionais, comunidade de
pertencimento (ribeirinha, indígena, urbana e campesina) e gênero
(Silva et al., 2018).
As atividades das pesquisas realizadas com financiamento
CAPES e FAPEAM possibilitaram, também, a realização de
intercâmbios sediados na cidade de Manaus, em atividades
promovidas pela Faculdade de Psicologia da UFAM, das quais
participaram tanto estudantes de graduação como de pós-graduação
da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) em novembro de
2022 e de estudantes dos campi das cidades de Parintins e Benjamim
Constant do interior do Amazonas, em janeiro de 2023. Os
desdobramentos dessas participações já geraram dados e
publicações em andamento que indicam o protagonismo estudantil
e as implicações desse tipo de pesquisa na vida de estudantes
Amazônidas.
As pesquisas realizadas possibilitam o acercamento da
diversidade de condições de acesso e permanência ao ensino
superior em meios materiais e imateriais, assim como das
subjetivações de modos de ser e de existir de estudantes em dada
sociedade, cultura e universidade. Por meio do percurso
investigativo-participativo-formativo, o(a) pesquisador(a) e os
sujeitos participantes da pesquisa, podem tomar consciência de que
a realidade é histórica, construída numa relação dialética entre cada
sujeito e seu meio, portanto passível de ser modificada por suas
ações, visto que é também por eles(as) produzida, e construírem, a
partir disso e das mudanças em suas consciências, uma práxis
consciente, reflexiva, humanizadora e emancipatória (Duarte, 2013;
Vygotski, 2001).
A procura das relações entre o campo da pesquisa e a
realidade como totalidade concreta – “[...] como um todo

25
estruturado em curso de desenvolvimento e de autocriação” (Kosik,
2002, p. 43) é um desafio premente no percurso investigativo, posto
que se assume o compromisso ético-político com o
desenvolvimento humano. Ao nos debruçarmos sobre o acervo das
pesquisas já citadas, observamos que a abordagem da
interseccionalidade amplia nossas possibilidades de compreensão
da complexidade das especificidades e das desigualdades, bem como
da sobreposição de opressões e discriminações ainda existentes em
nossa sociedade, as quais impactam as vivências de estudantes em
suas trajetórias, a conquista de direitos, a formação com qualidade
formal, ética e política, as possibilidades profissionais como
egressos(as) e as de contribuir para a valorização dos saberes e
fazeres Amazônidas.
Embora o conceito de interseccionalidade tenha se
debruçado inicialmente em relação ao impacto dos sistemas de
opressão sobre as mulheres negras, assumimos sua relevância como
uma ferramenta analítica relevante para as pesquisas que se
propõem a contribuir para a formulação, implementação e
acompanhamento de políticas públicas, atravessadas por
marcadores sociais como raça, etnia, classe, gênero, território e
orientação sexual, os quais se relacionam e se sobrepõem
estruturando mecanismos discriminatórios e excludentes, como os
relacionados ao acesso e à permanência no ensino superior. A
interseccionalidade, na pesquisa, substancia, como uma ferramenta
de luta política, a afirmação dos Direitos Humanos e a justiça social.
Ambos os projetos aqui apresentados, empenham-se em
realizar pesquisas sustentadas no compromisso ético-político com a
dignidade e a emancipação humana e a conquista dos direitos
humanos no ensino superior. Aliados à abordagem sócio-histórico,
tais pesquisas representam um importante salto no modo de se
produzir ciência no contexto do ensino superior Amazônida.
Nessa acepção, efetivar pesquisas a partir de um viés que
considere as intersecções entre raça, etnia, classe, gênero, território e
orientação sexual é fundamental. Os estudos até então realizados
convergem ao buscar promover avanços relevantes que permitam a
compreensão da complexidade da trajetória de estudantes que
vivem no contexto Amazônida. Isso implica em ir além das visões

26
INTERSECCIONALIDADE E PESQUISA NA AMAZÔNIA: DIÁLOGOS ENTRE A
PSICOLOGIA E A EDUCAÇÃO

superficiais e abordar as especificidades de maneira profunda e


contextualizada.
A Interseccionalidade na pesquisa, portanto, aparece como
ferramenta potente para produção de dados, análise e
transformação. Termo cunhado inicialmente por Kimberlé
Crenshaw (2002), essa abordagem permite uma análise mais
profunda das interconexões entre diferentes formas de opressão e
marginalização presentes na realidade Amazônida e de estudantes
que fazem parte das comunidades locais. A interseccionalidade
possibilita não apenas identificar, mas também abordar de maneira
eficaz as complexas camadas de desigualdades presentes na região.
A interseccionalidade, ao ser incorporada nas pesquisas
vinculadas aos Projetos aqui mencionados, possibilitam que
profissionais, pesquisadores(as), gestores(as) e estudantes
identifiquem problemas e elaborem estratégias de enfrentamento e
superação de vicissitudes atreladas às vivências nas trajetórias de
escolarização. A presença de um olhar permeado pela
interseccionalidade permite uma análise holística, considerando
não apenas as dimensões isoladas de raça, etnia, classe, gênero,
território e orientação sexual, mas também as interações complexas
entre essas dimensões e as imbricadas pelas especificidades
Amazônidas.
A abordagem interseccional nas/das e sobre as pesquisas
reforça a importância de se tomar consciência e, a partir disso,
considerar as interações entre diversas formas de opressão,
discriminação e exclusão que obstaculizam a equidade no acesso e
na permanência no ensino superior. Assim, a interseccionalidade
emerge como uma ferramenta essencial nesse processo, capacitando
os sujeitos da pesquisa, pesquisadores(as) e participantes, e demais
leitores(as) a compreender e elaborar propostas de enfrentamento
de desafios complexos da região de maneira mais abrangente e
inclusiva.
A questão da interseccionalidade é traduzida como termo
originário do movimento feminista, inscrito no pensamento
acadêmico pela jurista negra Kimberlé Crenshaw no final dos anos
de 1960, amplamente trabalhado e difundido por mulheres negras
acadêmicas, sendo utilizado para auxiliar na compreensão dos

27
atravessamentos entre raça, classe, gênero, territórios, orientação
sexual e demais demarcadores de desigualdade econômica e social
que permeiam as estruturas da sociedade contemporânea. Diante da
necessidade de um olhar interseccional para realização de pesquisas
coerentes com os modelos investigativos preconizados pelo
Materialismo Histórico-Dialético, pela Teoria Histórico-Cultural, e
por outras abordagens desnaturalizantes da realidade humana,
pode-se afirmar que se faz necessário conceber epistemologias e
metodologias outras, condizentes com que tem sido debatido por
pesquisadores(as) que pautam as repercussões nocivas do racismo,
sexismo e classismo (Akotirene, 2019).
A Psicologia pode contribuir para a compreensão das
múltiplas diferenças e desigualdades que perpassam a vida social ao
levar em consideração os marcadores sociais/interseccionais em
seus processos formativos. Isso implica em problematizar os
agenciamentos e suas potências na produção de subjetividades,
compreendendo que essas são produzidas no campo coletivo e não
individual, constantemente atravessadas por dispositivos de poder
que delimitam, por vezes, a ampliação da vida e da percepção das
realidades. Compreender as dinâmicas das relações de poder que
(re)produzem desigualdades múltiplas, constroem visões parciais e
dicotômicas no tratamento das diferenças ainda se constitui um
desafio para a Psicologia enquanto ciência (Perpétuo, 2017).

Pesquisas, interseccionalidades e compromisso com a


produção de equidade social

Em virtude do objetivo elencado para este texto, optamos


por trazer nossas reflexões, a partir de um estudo de cunho
qualitativo sustentado pelos pressupostos da Teoria Histórico-
Cultural, a partir da análise de sete dissertações vinculadas aos
Projetos desenvolvidos pelo LADHU, concluídas no período de
2019 a 2022, que tiveram como objeto de estudo as trajetórias de
mulheres estudantes pertencentes a comunidades ribeirinhas,
indígenas e urbanas no ensino superior, sendo duas da UFAM e
cinco da UNIR.

28
INTERSECCIONALIDADE E PESQUISA NA AMAZÔNIA: DIÁLOGOS ENTRE A
PSICOLOGIA E A EDUCAÇÃO

Isso posto, as pesquisas de Alves (2022), Cunha (2021),


França (2022), Lemos (2021), Lima (2021), Queiroz (2021) e Storch
(2019) nos possibilitam compreender que o acesso e a permanência
no ensino superior pelas mulheres na/da Amazônia são constituídos
pelas especificidades históricas, políticas, geográficas, econômicas,
sociais e culturais dessa região, inter-relacionadas a questões de
raça, etnia, classe e gênero. Tais aspectos explicitam
vulnerabilidades oriundas de estigmas e das condições de
desvalorização instituídas pelos processos históricos formativos da
região e pelos vários indicadores sociais que colocam a Amazônia
em desvantagem com relação aos outros estados brasileiros.
Dessa forma, embora haja avanços na ampliação do acesso
ao Ensino Superior para essas mulheres, apenas o ingresso não
assegura a permanência e nem a concretização de uma formação
com condições objetivo-subjetivas para dedicação aos estudos,
participação da/na rotina da vida acadêmica e conclusão da
graduação com qualidade formal, ética e política. Tais aspectos
apontam a necessidade de refletir, (re)conhecer e valorizar as
especificidades e as interseccionalidades em suas narrativas e, a
partir disso, construir possibilidades de superação dos mecanismos
de invisibilidade, exclusão e expulsão vivenciados.
A partir de Lukács (2013) compreendemos a totalidade (as
trajetórias das estudantes Amazônidas no ensino superior) como
um complexo constituído de complexos (as condições de acesso e de
permanência dessas estudantes no ensino superior, o ser mãe, ser
negra, ser ribeirinha, ser indígena, ser urbana e as vulnerabilidades
presentes em suas buscas por uma formação emancipatória e digna),
em que cada elemento constitutivo da realidade é por ela
determinado e a determina.
Tomar consciência de que a realidade é histórica e um todo
indivisível em movimento, compreender os nexos existentes entre o
singular, o particular e o universal (Lukács, 1970), concebê-la como
o mundo da práxis humana, fetichizada ou revolucionária (Sánchez
Vázquez, 2011), em que as coisas, as relações, os sentidos pessoais e
os significados culturais são produzidos pelas pessoas como sujeitos
históricos, exige, de nossa parte, intencionalidade no modo de
planejarmos, desenvolvermos e socializarmos cada estudo para

29
superarmos a naturalização da desigualdade, da alienação e da
desumanização na sociedade. A pesquisa, por meio da tomada de
consciência (subjetivação), pode comprometer-se com a luta
política pelos direitos humanos, os processos de desenvolvimento
humano, a mediação teórica e a explicitação das contradições
geradas pelas condições objetivas históricas que determinam a
produção e a apropriação do conhecimento na sociedade capitalista
na contemporaneidade.
Nas narrativas das trajetórias das estudantes, observamos
que as leis sócio-históricas condicionam a existência de cada uma
como ser social e, numa sociedade capitalista e, portanto, desigual,
produzem diferenças que potencializam, dificultam ou limitam seu
desenvolvimento como um processo essencialmente educativo
(Pino, 2005; Duarte, 2013). Tais situações se expressam nas
condições sociais e econômicas, nas relações de poder e gênero, nas
ideologias e preconceitos, na (des)valorização das culturas, nos
currículos dos cursos, no não acesso e não permanência na
universidade, nas propostas de gestão acadêmico-administrativo-
financeira do ensino superior, assim como no modo como as
políticas públicas educacionais são implementadas e avaliadas.
Nessa perspectiva, a formação para o desenvolvimento
humano genérico, como síntese das atividades humanas mais
elevadas (Duarte, 2013), em que o ensino superior é uma das
instâncias constituintes, depende das condições objetivas de vida
(do meio, das características de cada um dos sujeitos, das interações
que estabelecem consigo, com os outros e com o meio) (Duarte,
2007). Desse modo, todas as características do meio (cultural,
geográfico, político, ético, social e institucional) e as de cada sujeito
(raça, etnia, classe, gênero, território e orientação sexual) sua
situação social de desenvolvimento, necessidades, motivações,
personalidade, os sentidos e significados construídos - a sua
subjetividade) são importantes.
Tais pressupostos apontam a relevância de se considerar nas
pesquisas os sentidos pessoais e os significados culturais
construídos pelas estudantes em suas vivências como uma “[...]
união indivisível das particularidades da personalidade e das
particularidades da situação representada na vivência” (Vygotsky,

30
INTERSECCIONALIDADE E PESQUISA NA AMAZÔNIA: DIÁLOGOS ENTRE A
PSICOLOGIA E A EDUCAÇÃO

1994 citado por Vinha & Welcman, 2010, p. 686) que, em


consonância com a realidade em sua totalidade, na qual ou da qual
“[...] um fato qualquer (classes de fatos, conjuntos de fatos) pode vir
a ser racionalmente compreendido [...] (Kosik, 2002, p. 43-44, grifos
do autor) por meio de aproximações sucessivas. Nesse ínterim,
destaca-se também a relevância da consciência crítica dos
fundamentos teórico-metodológicos assumidos; das relações
ideológicas e de poder do/no/pelo percurso investigativo e na/da
realidade; do papel crítico-reflexivo do(a) pesquisador(a) em
relação ao seu trabalho como compromisso ético-político e dos
sujeitos em suas narrativas, bem como das possibilidades
humanizadoras e emancipatórias do percurso e dos seus resultados
para todos(as) os(as) participantes da pesquisa, além dos(as)
profissionais, instituições, políticas públicas e da sociedade.
Acreditamos que a pesquisa com compromisso ético-
político para o desenvolvimento humano, a educação emancipatória
e a conquista de direitos e a vida digna, engendra em si mesma um
processo formativo na medida em que os sentidos pessoais e os
significados culturais das vivências dos sujeitos participantes,
integram intencionalmente o percurso como um todo; as
concepções são submetidas à análise crítica de modo a manterem
com elas uma relação consciente e o conhecimento é construído
numa síntese dialética impulsionadora do movimento de
construção de conhecimentos gerados nas/pelas contradições da/na
realidade (Resende; Ferreira; Silva; Pedroza, 2022; Ferreira;
Resende; Silva; Barbato, 2022).
Nessa perspectiva, a compreensão de nosso papel como
mulheres, professoras formadoras e pesquisadoras, sujeitos
históricos, possibilita-nos que, ao buscarmos explicar criticamente a
realidade, compreendamos que podemos transformá-la e nos
transformarmos, assumindo a própria prática como critério de
verdade e a atividade teórica como orientadora da intervenção
prática transformadora da realidade social (Delari Jr, 2015; Pinto,
1969; Sánchez Vázquez, 2011).
Ao longo do percurso podemos, então, construir a
compreensão do significado objetivo na medida em que criamos
para nós mesmas um sentido correspondente e dele tomamos

31
consciência, colocando-nos como parte integrante de todo o
processo da pesquisa, concretizando a unidade sujeito-objeto. Isso
se dá porque o nosso psiquismo é uma imagem subjetiva da
realidade objetiva (Martins, 2015), uma conversão em forma de
subjetividade individual do que é vivenciado, construído na nossa
interação com o meio, em movimentos intra e inter psíquicos que
envolvem a unidade apropriação-objetivação. Assim, a participação
na pesquisa e a apropriação dos seus resultados pode gerar “[...] na
atividade e na consciência dos seres humanos, novas necessidades,
forças, faculdades e capacidades”, bem como “[...] a necessidade de
novas apropriações e novas objetivações” (Duarte, 2013, p. 32).
Isso acarreta outro cuidado, a ciência, como um produto
histórico, não está isenta de tendências subjetivas ou
condicionamentos dos quais precisamos tomar consciência e
explicitar de onde partimos, a partir do que, para que, por que, com
quem, a favor do que e de quem estão sustentadas todas as nossas
escolhas, explicitando no percurso analítico o que é propriedade do
objeto ou fenômeno e o que é o conhecimento operado pelo(a)
pesquisador(a).

Considerações finais

A partir da tessitura do texto, apreendemos a importância


da interseccionalidade na pesquisa na medida em que enfoca a
maneira como diferentes formas de opressão, discriminação e
desvantagem social na intersecção entre marcadores sociais que se
entrelaçam e se sobrepõem, produzem diferenças que afetam as
trajetórias das estudantes universitárias Amazônidas de modo
complexo e interconectado. Assim, podemos avançar na
compreensão sobre de que modo fatores como raça, etnia, gênero,
classe social, território, dentre outros, interrelacionam-se nas
vivências dessas estudantes.
Na pesquisa, a interseccionalidade pode contribuir para
ampliar o conhecimento sobre a diversidade, pois reconhece que as
experiências, tanto individuais quanto coletivas, são moldadas por
múltiplos fatores, o que nos possibilita compreender as suas
complexidades, superar as análises reduzidas baseadas em uma

32
INTERSECCIONALIDADE E PESQUISA NA AMAZÔNIA: DIÁLOGOS ENTRE A
PSICOLOGIA E A EDUCAÇÃO

única característica como gênero ou raça e evitar a exclusão e a


invisibilidade passível de ocorrer quando a produção dos dados e os
estudos são simplificados. Além disso, tal abordagem promove uma
análise mais precisa das desigualdades ao contemplar como
diferentes sistemas de opressão se interligam, o que contribui para
desenvolver políticas e intervenções mais inclusivas, eficazes,
abrangentes e também direcionadas. Há, ainda, a possibilidade de
identificarmos áreas não exploradas em pesquisas, especialmente
quando se trata de grupos marginalizados, ao explicitar as estruturas
sociais que perpetuam injustiças, bem como de enriquecimento de
teorias e de adoção de metodologias inclusivas, dialógicas e
participativas que garantam que as vozes dos sujeitos sejam
incluídas em pesquisas e seus lugares de fala respeitados. A
interseccionalidade nas pesquisas como processos essencialmente
formativos, ao oportunizar uma compreensão mais ampla e crítica
das desigualdades e injustiças sociais, pode contribuir para a
formação de profissionais mais sensíveis e capacitados para lidar
com a diversidade e as demandas sociais, inclusive, trazendo o
marcador de classe social como um pano de fundo histórico que
contextualiza os embates entre diferentes agentes da sociedade
capitalista.
Em síntese, assumimos que a interseccionalidade é uma
lente importante para analisar e entender as complexidades das
experiências humanas em uma sociedade diversa, neste caso,
especificamente, das trajetórias de escolarização de estudantes
Amazônidas. Ao aplicarmos essa abordagem nas pesquisas,
podemos alcançar uma compreensão mais completa e precisa dos
fenômenos sociais e contribuir para a construção de um ensino
superior inclusivo. A interseccionalidade é, portanto, uma escolha
importante quando projetamos a promoção de Direitos Humanos
por meio de pesquisas.
O conhecimento construído a partir de pesquisas passa a
integrar a compreensão do todo, influenciando nesse conjunto em
diferentes níveis, inclusive até em ressignificações substanciais por
meio das contradições que conduzem à superação por incorporação
do estabelecido e processos revolucionários voltados para a
transformação dos sujeitos e da estrutura social. Como toda

33
concepção científica está relacionada a uma compreensão da
realidade em que a correlação entre os aspectos que a constituem
solicita uma conclusão e a apreensão histórica do processo de
construção do conhecimento, assumimos que toda pesquisa é
também um produto histórico como o são os sujeitos envolvidos,
pesquisadores(as) e participantes.
O compromisso ético-político de percursos investigativos-
participativos-formativos com as necessidades emancipatórias e
humanizadoras, fundamentadas nos níveis mais elevados da
produção histórica da humanidade, sustenta-se na descoberta das
múltiplas determinações ontológicas do real e na identificação de
fatores constituintes das relações de poder, que funcionam como
articuladores entre tais sistemas no âmbito do objeto investigado,
para constituir uma atividade teórica orientadora da intervenção
prática transformadora e concretização da inclusão de estudantes
Amazônidas em ambientes educacionais universitários nos quais se
possa reconhecer, valorizar e promover a presença, a participação e
a aprendizagem de cada um e de todos(as).
O conhecimento produzido, a partir de uma abordagem
interseccional, possibilita a superação da invisibilidade vivenciada
por estudantes e de suas vulnerabilidades pela compreensão das
desigualdades e injustiças produzidas pela organização social
capitalista excludente e desigual e de como as múltiplas diferenças e
desigualdades se articulam e produzem desvantagens para
determinados grupos sociais, incluindo-as.
Esperamos que este texto possa contribuir com a
problematização de questões que podem ser aprofundadas em
futuras pesquisas. O desafio de continuar o processo de construção
de uma educação superior cuja principal referência seja a pessoa e o
seu desenvolvimento permanece atual e convoca pesquisadoras/es a
construírem novas perguntas e percursos de construção de
conhecimentos.

34
INTERSECCIONALIDADE E PESQUISA NA AMAZÔNIA: DIÁLOGOS ENTRE A
PSICOLOGIA E A EDUCAÇÃO

Referências

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo, SP: Sueli


Carneiro; Pólen, 2019.

ALVES, Shirley de Almeida. Escolarização de mulheres indígenas


Purunorá, Suruí, Apurinã e a licenciatura em Educação Básica
Intercultural da UNIR. 2022. Dissertação (Mestrado não
publicada) - Universidade Federal de Rondônia, Rondônia, 2022.

BRASIL. Política Nacional de Assistência Social. Brasília:


Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome/
Secretaria Nacional de Assistência Social, 2004. Disponível em:
https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_
social/Normativas/PNAS2004.pdf . Acesso em: 20 maio de 2022.

BRASIL. Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES).


Decreto nº 7.234 de 19 de julho de 2010. Brasília: Casa Civil, 2010.
Disponível em: Pnaes - Ministério da Educação (mec.gov.br).
Acesso em: 20 maio de 2022.

BRASIL. Lei de cotas. Lei Federal nº 12.711 de 29 de agosto de


2012. Brasília: Casa Civil, 2012. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm
Acesso em: 20 maio de 2022.

BRASIL. Lei de Cotas. Lei nº 14.723 de 13 de novembro de 2023.


Brasília: Casa Civil, 2023. Disponível em: L14723 (planalto.gov.br).
Acesso em: 20 de dezembro de 2023.

BRITO, Cristiane de Sousa; GUIMARÃES, André Rodrigues. A


expansão da educação superior e a desigualdade regional brasileira:
uma análise nos marcos dos planos nacionais de educação. EccoS –
Rev. Cient., São Paulo, n. 44, p. 43-66, set./dez. 2017.

CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de


especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao
gênero. Revista estudos feministas, v. 10, p. 171-188, 2002.

35
CUNHA, Sínthia Constancia Mar da. Entre Sífiso e Fênix:
Trajetórias impossíveis a partir do não diálogo entre assistência e
educação superior. 2021. Dissertação (Mestrado não publicado] -
Universidade Federal do Amazonas, Manaus, Amazonas, 2021.

DELARI JR., Achilles. Questões de método em Vigotski: busca da


verdade e caminhos da cognição. In: TULESKI, Silvana Calvo;
CHAVES, Marta; LEITE, Hilusca Alves (Orgs.). Materialismo
Histórico-Dialético como fundamento da Teoria Histórico-
Cultural: método e metodologia de pesquisa. Maringá: EDUEM,
2015. p. 43-82.

DUARTE, Newton. Educação escolar, teoria do cotidiano e a


escola de Vigotski. 4. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2007.

DUARTE. Newton. A individualidade para si: contribuições a


uma teoria histórico-cultural da formação do indivíduo. 3. ed.
Campinas: Autores Associados, 2013.

FERREIRA, Isabel Cristina Fernandes; RESENDE, Gisele Cristina;


SILVA, Iolete Ribeiro da; PEDROZA, Regina Lúcia Sucupira.
Ensino Superior e Amazônia: um panorama das pesquisas do
projeto “Significados das trajetórias de escolarização de jovens
estudantes Amazônidas” (PROCAD/Amazônia-CAPES). In:
URNAU, Lílian Caroline; ZIBETTI, Marli Lúcia Tonatto (Orgs).
Percursos de Jovens no Ensino Superior: Análises à luz da
Psicologia. Alexa Cultural: São Paulo / Edua: Manaus, 2023.

FRANÇA, Jairo Maia. Às margens do rio madeira: mulheres


negras na universidade federal de Rondônia. 2022. Dissertação
(Mestrado não publicado) - Universidade Federal de Rondônia,
Rondônia, 2022.

HELLER, Agnes. Sociología de la vida cotidiana. 2.ed. Barcelona:


Ediciones Península, 1987.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA.


IBGE. Índice de Desenvolvimento Humano, 2022. Brasil, 2022.
Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/am/pesquisa/

36
INTERSECCIONALIDADE E PESQUISA NA AMAZÔNIA: DIÁLOGOS ENTRE A
PSICOLOGIA E A EDUCAÇÃO

37/30255?localidade1=35&localidade2=53 . Acesso em: 14 de abril


de 2023.

JESUS, Marcineuza Santos de. Política de cotas e democratização


do ensino superior: desdobramentos na Universidade Federal do
Amazonas. 2020. Dissertação. (Mestrado. Universidade Federal do
Amazonas). Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da
Universidade Federal do Amazonas, Manaus, Amazonas, 2020.
Disponível em: https://www.tede.ufam.edu.br/handle/tede/8339.
Acesso em: 20 de maio de 2023.

KOSIK, Karel. Dialética do concreto. 2.ed. São Paulo: Paz e Terra,


2002.

LEMOS, Cassandra Torres. Migração nos caminhos de rios:


juventude, resistência e formação universitária na região
amazônica. 2022. Dissertação. (Mestrado da Universidade Federal
do Amazonas]. Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da
Universidade Federal do Amazonas, Manaus, Amazonas, 2022.
Disponível em: https://tede.ufam.edu.br/handle/tede/889. Acesso
em: 14 de abril de 2023.

LIMA, Jéssica Fabrícia Silva. Rios, margens e trajetórias:


Estudantes ribeiras da universidade. 2021. Dissertação (Mestrado,
Universidade Federal de Rondônia). Programa de Pós-Graduação
em Psicologia, Rondônia, 2021. Disponível em: https://mapsi.unir.
br/pagina/exibir/18842. Acesso em: 13 de abril de 2023.

LIRA, Talita de Melo; CHAVES, Maria do Perpétuo Socorro


Rodrigues. Comunidades ribeirinhas na Amazônia: organização
sociocultural e política. Interações, Campo Grande, MS, v. 17, n. 1,
p. 66-76, jan./mar. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.20435/1518-
70122016107

LUKÁCS, Georg. Introdução a uma estética Marxista. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.

LUKÁCS, Georg. Por uma ontologia do ser social II. São Paulo.
Boitempo, 2013.

37
LUZ, Itacir Marques. Compassos Letrados: artífices negros entre
instrução e ofício no Recife (1840-1860). Recife: Ed. Universitária
da UFPE, 2013. Disponível em: https://editora.ufpe.br/books/
catalog/view/469/458/1378. Acesso em: 13 de abril de 2023.

MARTINS, Lígia Márcia. A internalização de signos como


intermediação entre a psicologia histórico-cultural e a pedagogia
histórico-crítica. Germinal: marxismo e Educação em Debate,
Salvador, v. 7, n. 1, p. 44-57, jun. 2015.

MANZI, Maya; ANJOS, Maria Edna dos Santos Coroa dos. O


corpo, a casa e a cidade: territorialidades de mulheres negras no
Brasil. Revista brasileira de estudos urbanos e regionais, v. 23,
e202132pt, 2022.

MATTA, Cristiane Maria Barra; LEBRÃO, Susana Marraccini


Giampietri; HELENO, Maria Geralda Viana. Adaptação,
rendimento, evasão e vivências acadêmicas no ensino superior:
revisão da literatura. Psicologia Escolar e Educacional, 21(3), 583-
591, 2017. https://doi.org/10.1590/2175-353920170213111118.
Acesso em 15 de abril de 2023.

MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. Education


Beyond capital. [Tradução de Isa Tavares]. 2.ed. São Paulo:
Boitempo, 2008.

OLIVEIRA, Carolina Bessa Ferreira. Por um olhar interseccional na


universidade durante e pós-pandemia: entrevista com a Dra Joana
Angélica Guimarães da Luz. SCIAS-Educação, Comunicação e
Tecnologia, v. 2, n. 2, p. 52-58, 2020.

PEREIRA, Denilson Diniz. Contextos históricos dos desafios do


ensino superior na Região Amazônica. Revista do Instituto de
Ciências Humanas, vol. 16, n. 24, 2020. http://periodicos.
pucminas.br/index.php/revistaich/issue/view/1147. Acesso em:
10.10.2023.

PERPÉTUO, Cláudia Lopes. O conceito de interseccionalidade:


contribuições para a formação no Ensino Superior. V Simpósio

38
INTERSECCIONALIDADE E PESQUISA NA AMAZÔNIA: DIÁLOGOS ENTRE A
PSICOLOGIA E A EDUCAÇÃO

Internacional de Educação Sexual SIES. Paraná: Universidade


Estadual de Maringá (UNIPAR-PR), 2017.

PINO, Angel. As marcas do humano: às origens da constituição


cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo:
Cortez, 2005.

QUEIROZ, Arthur Antunes Gomes. Rosas Negras na UNIR: Cotas


e as perspectivas das beneficiárias negras. 2021. Dissertação
(Mestrado, Universidade Federal de Rondônia). Programa de Pós-
Graduação em Psicologia, Rondônia, 2021. https://mapsi.unir.br/
uploads/25252525/Rosas%20Negras%20Na%20Unir%20-
%20Cotas%20e%20as%20Perspectivas%20das%20Benefici%C3%A
1rias%20Negras.pdf. Acesso em: 20 de abril de 2023.

RESENDE, Gisele. Cristina; FERREIRA, Isabel Cristina Fernandes;


SILVA, Iolete Ribeiro da; BARBATO, Silviane. Desafios para a
permanência no ensino superior na Amazônia e os significados de
trajetórias estudantis. Psicologia, Educação e Cultura, Portugal, v.
XXVI, p. 139-161, 2022.

SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo. Filosofia da Práxis. 2. ed. Buenos


Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales/Clasco: São
Paulo: Expressão Popular, 2011.

INSTITUTO SEMESP. Mapa do Ensino Superior: 11. ed.


Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação. São Paulo,
2021. Disponível em: https://www.semesp.org.br/mapa-do-ensino-
superior/edicao-11/dados-estados-e-regioes/norte/amazonas/#:
~:text=Com%20um%20PIB%20de%20100,
estado%20est%C3%A3o%20em%20institui%C3%A7%C3%B5es%2
0privadas Acesso em: 20 de abril de 2023.

SILVA, Iolete Ribeiro; BARBATO, Silviane Bonaccorsi; URNAU,


Lilian Caroline; ZIBETTI, Marli Lúcia Tonatto; PEDROZA, Regina
Lúcia Sucupira. Os significados das trajetórias de escolarização
de jovens estudantes Amazônidas. Projeto de Pesquisa financiado
pelo Programa Nacional de Cooperação Acadêmica na Amazônia,
Edital nº 21/2018. BRASIL/CAPES, Brasília, 2018.

39
SILVA, Iolete Ribeiro. Itinerários e condições de desenvolvimento
de jovens estudantes do ensino superior: desafios para a
permanência. Projeto de pesquisa financiado pelo Programa
Humanitas, Edital nº 005/2022. CT&I/FAPEAM, Manaus,
Amazonas, 2022.

SOARES, Adriana. Benevides; MONTEIRO, Marcia Cristina;


MAIA, Fatima de Almeida; SANTOS, Zeimara de Almeida.
Comportamentos sociais acadêmicos de universitários de
instituições públicas e privadas: o impacto nas vivências no ensino
superior. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 14(1), p. 1-16, 2019.
Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S1809- 89082019000100011&lng=pt&tlng=pt. Acesso
em: 20 de abril de 2023.

STORCH, Cleude Alcantara Alves. Professores indígenas de


Rondônia: Formação e carreira docente. 2019. Dissertação
(Mestrado, Universidade Federal de Rondônia). Programa de Pós-
Graduação em Psicologia, Rondônia, 2019. Disponível em: https://
mapsi.unir.br/pagina/exibir/12158. Acesso em 20 de abril de 2023.

VIEIRA, Vera Maria Sérgio de Abreu; TORRENTÉ, Mônica de


Oliveira Nunes de. Saúde mental e interseccionalidade entre
estudantes em uma universidade pública brasileira. Interface-
Comunicação, Saúde, Educação, v. 26, 2022.

VYGOTSKI Lev. Seminovich. The problem of the environment. In


J. Valsiner (Ed.), TheVygotsky reader (T. Prout, trad., pp. 338-354).
Oxford-UK: Blackwell.02 Psicologia.pmd21/1/2011, 13:56700,
1994. In: VINHA, Márcia Pileggi & WELCMAN, Max. Quarta aula:
a questão do meio na pedologia, Lev Semionovich Vigotski.
Psicologia USP, 21(4), p. 681-701, 2010. Disponível em: https://doi.
org/10.1590/S0103-65642010000400003. Acesso em: 20 de abril de
2023.

VYGOTSKI, Lev. Seminovich. Obras Escogidas – II. Tradução José


María Bravo. Madrid: A. Machado Libros, 2001.

40
INTERSECCIONALIDADE E PESQUISA NA AMAZÔNIA: DIÁLOGOS ENTRE A
PSICOLOGIA E A EDUCAÇÃO

Mini currículos

Adria de Lima Sousa


Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Pesquisadora do grupo de pesquisa Subjetividades, povos
amazônicos e processos de desenvolvimento humano (FAPSI/
UFAM). Pós-doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em
Psicologia da UFAM. Bolsista HUMANITAS/FAPEAM. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2255133603023472 E-mail adriapsique@gmail.
com

Isabel Cristina Fernandes Ferreira


Doutora em Educação pela Universidade Federal do Amazonas
(UFAM). Pesquisadora do grupo de pesquisa Subjetividades, povos
amazônicos e processos de desenvolvimento humano (FAPSI/
UFAM). Pesquisadora dos projetos PROCAD/Amazônia-CAPES e
HUMANITAS/FAPEAM. Lattes: http://lattes.cnpq.br/
2527241349294798 E-mail: [email protected]

Iolete Ribeiro da Silva


Doutora em Psicologia, Professora Titular da Universidade Federal
do Amazonas (UFAM), credenciada como docente no Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da UFAM, Programa de Pós-
Graduação em Educação da UFAM. Bolsista Produtividade CNPq.
Coordenadora do Projeto Itinerários e condições de
desenvolvimento de jovens estudantes no ensino superior: desafios
para a permanência (Edital Nº 005/2022 - HUMANITAS CT&I
FAPEAM). Lattes: http://lattes.cnpq.br/6024598140248335 E-mail:
[email protected]

Regina Lúcia Sucupira Pedroza


Professora Associada da Universidade de Brasília no Instituto de
Psicologia. Orientadora de mestrado e doutorado no Programa de
Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Escolar
(PGPDE) e no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e
Cidadania. Coordenadora na UnB do Projeto PROCAD/CAPES-
Amazônia. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7232661674377520 E-mail:
[email protected]

41
INTERSECCIONALIDADES -
CONQUISTANDO DIREITOS
AINDA VOLÁTEIS
Silviane Barbato
Kristine R. Medeiros Alves
Victoria Goulart da Silva
Ana Beatriz Goyanna

Introdução

Ao longo da história, em diferentes partes do mundo, as


mulheres foram e ainda são impedidas de acessar direitos humanos
básicos, incluindo os relacionados ao estudo e qualificação
profissional, enfrentando obstáculos relacionados à informação de
seus direitos de acesso aos diferentes cursos na educação superior, à
permanência nos cursos de graduação e à realização profissional
com remuneração justa, igualitária. Apesar disso, buscam
conquistar espaço para finalizar os estudos e no mercado de
trabalho, enfrentando adversidades, inclusive políticas nacionais e
internacionais, que imprimem diferentes forças subordinadoras que
as invisibilizam, em suas etnias, na pobreza, e de acordo com leis
religiosas que governam ainda muitos países. Ao longo da vida, há o
aumento das responsabilidades nas famílias, como quando, em
muitas situações no Brasil e no mundo, quando, ainda crianças,
passam a cuidar dos seus irmãos, se casam, têm filhos e cuidam dos
pais e parentes vulneráveis.
O conceito de interseccionalidade é aplicado originalmente
e, sobretudo, às análises das condições estruturais, políticas e
representacionais das mulheres negras, e o reconhecemos como
ferramenta epistemológica e metodológica (Haynes; Joseph; Patton;
Stewart; Allen, 2020), pois apoia avanços na compreensão das suas
condições de socialização e de desenvolvimento humano. Neste
texto, expandimos a utilização deste conceito para analisar
condições de desenvolvimento de mulheres desta e, também, de
outras etnias que são subalternizadas, invisibilizadas e inviabilizadas
histórica e culturalmente, nos diferentes territórios mundiais.
Sendo assim, neste capítulo, propomos apresentar dois exemplos de
condições de socialização de estudantes universitárias e, propostas
de incentivo à visibilização da agencialidade das mulheres, em três
iniciativas implementadas que visam promover suas participações
nas comunidades, no estudo e produção de conhecimento.

A conquista do ser mulher

Entendemos que a conquista de direitos de escolha das


mulheres, do ser mulher como esperam e sonham, varia
dependendo das políticas de governos, raça, condição de cidadania,
condição de direito da mulher e seu grupo étnico, no território que
habitam num certo momento histórico. Exemplo clássico é o relato
de Sojourner Truth em sua fala Ain´t I a woman? (port. Não sou eu
uma mulher?) (Haynes; Joseph; Patton; Stewart; Allen, 2020),
quando narra cruamente o impacto da dor das mães negras
escravizadas nos Estados Unidos, do final do século XVIII e começo
do XIX, que tinham seus filhos ainda bebês separados delas e
vendidos.
Quando comparamos diversos períodos históricos ou os
mais diferentes tipos de comunidades existentes, percebemos que a
masculinidade e a feminilidade não são fixas - constroem-se de
acordo com a conjuntura de cada sociedade, se adequando à
necessidade de cada povo. No entanto, ao longo dos séculos, se
formou a dicotomia entre as funções sociais de gênero: a elas o
exercício doméstico, as atividades sociáveis e sensíveis, enquanto
eles se colocavam como seu oposto, agressivos, expansivos e
responsáveis pelos assuntos públicos (Due Billing; Alvesson, 2000).
Tais características, então, orientam os significados, ações e
consequências dos papéis sociais que dividem a força de trabalho e a
sociedade. Esses significados passaram a habitar gerações de
mulheres, ensinando-as a se submeter com naturalidade a tais
comportamentos, pois a hierarquia funcionaria dessa forma, e o
poder e a liderança seriam naturalmente violentos, unicamente
masculinos.

44
INTERSECCIONALIDADES - CONQUISTANDO DIREITOS AINDA VOLÁTEIS

Quando enfocamos as culturas africanas tradicionais,


construídas no contexto de famílias estendidas e parentesco, temos
exemplos de liderança feminina muito diferentes dos padrões
ocidentais atuais. Suas posições de poder se sustentavam na noção
de comunidade e família com a construção de redes femininas
tendo a maternidade como um tópico constante na formulação de
padrões e hierarquias sociais (King; Ferguson, 2011). Em acordo
com as conjunturas das comunidades, as mulheres se estabeleceram
em espaços extremamente segregados no quesito de gênero,
organizando-se como um grupo com estruturas próprias onde a
liderança se construiu de forma personalizada ao mesmo passo das
relações de proteção, cuidado e sustento que abarcavam toda a
comunidade, influenciando-a política e socialmente.
O cuidado maternal tinha a colaboração do grupo,
contando com redes de mulheres de diferentes idades na criação das
crianças da comunidade. Tais hábitos foram mantidos nos costumes
da população negra, durante o período da escravidão, no qual
mulheres construíam laços e dividiam o cuidado como uma forma
de cooperação e apoio perante a violência que experienciaram,
sendo comum assumirem papéis de othermothering (em port.:
maternagem do outro), se responsabilizando pela criação e cuidado
das crianças. Essas mulheres eram extremamente respeitadas, sendo
vistas como líderes da comunidade, oferecendo não só seu trabalho
doméstico e maternal, mas também prestando auxílio médico e
emocional, atuando como guias espirituais e na resolução de
conflitos. Esses costumes não eram exclusivos às comunidades
africanas, sendo encontrados de formas semelhantes em diversas
outras etnias de modo adaptado à realidade de cada povo. Tais
hábitos foram passados por gerações e se apresentam hoje como
parte da cultura de muitos grupos nos quais a liderança feminina
está presente como um processo de construção constante de valores
e condutas - abrindo espaço para pluralidade nas posições de poder,
desassociando tal arranjo a um direito natural de homens
(Domingue, 2015).
Atualmente, compreendemos que tais qualidades não são,
obrigatoriamente, as necessárias para uma liderança efetiva, muito
menos naturalmente masculinas. E, o estabelecimento dessa

45
conjuntura enfrentada, se mostra apenas como um reflexo da
sociedade. A liderança se distancia da competência e se funde com o
poder no intuito de gerar submissão e obediência, possibilitando
preferencialmente posicionamentos que refletem o modelo
econômico vigente: a agressão e o desligamento de valores pessoais
e comunitários. Homens lideram no intuito de se tornarem porta-
vozes e aplicadores do capitalismo, e mulheres são associadas com o
mundo privado na intenção de garantir a mão de obra doméstica
que possibilita a dedicação dos homens ao mundo corporativo
(Rubin, 1975) e a outros tipos de lideranças como as religiosas e
políticas.

Direitos voláteis

O mundo contemporâneo fornece, diariamente, exemplos


de como as condições de socialização e desenvolvimento das
mulheres podem piorar, e muito, de um dia para o outro, de um
momento para outro. A desumanização do outro, dos seus
sentimentos, do seu ser e devir, ainda persiste. Exercer os direitos
humanos, ser visível e valorizada como interlocutora viável ainda
estão por ser conquistados em diferentes espaços e territórios.
Mulheres de certas etnias, refugiadas, migrantes estão em risco
permanente, vulneráveis, e com potencial de tornarem-se
subitamente vítimas de violência devido às mudanças nos contextos
em que se encontram.
Na condição feminina, os direitos são voláteis, e a
possibilidade de exercê-los varia de momento a momento, de
território a território. Mesmo direitos como andar desacompanhada
pelas cidades e vilas, poder entrar e sair do país desacompanhada e
com os filhos menores, direito a continuar a viver e viver com
dignidade, sem ser desumanizada, são voláteis. Basta uma mudança
ou acirramento de uma situação enfrentada, gerada por algumas
crenças e valores tornados ideologia, praticados por políticas de
regime autoritários e violência terrorista. Basta desconhecer os
perigos possíveis no cotidiano de convivências, em espaço em que
há violência patriarcal, de tráfico, de milícias, de invasão de
garimpo, assaltos, guerras, uma leitura diferente do que está posto

46
INTERSECCIONALIDADES - CONQUISTANDO DIREITOS AINDA VOLÁTEIS

como lei, para experienciamos a fragilidade do ser mulher e haver


mudança permanente nas nossas condições de desenvolvimento, de
vida, gerando experiências liminares e traumáticas, em que a
violência contra nossos corpos é concretizada como instrumento de
guerra.
Recentemente, vivenciamos a insegurança dos direitos que
julgamos assegurados mundialmente. Vivenciamos, ao vivo e em
cores, redobradamente pelas redes sociais, como as mulheres de
certas etnias são alijadas de seus direitos, sofrendo mortes violentas
em circunstâncias de crueldade inimagináveis. Como a política
discrimina, desumaniza, culpa as próprias mulheres pela violência
que sofreram. A violência machista estrutural generaliza-se e
embota até mesmo a análise crítica de assassinatos em evento
terrorista, com a omissão imposta pela própria seção de direitos das
mulheres de uma das mais importantes agências internacionais, que
se define como multilateral.
A pergunta se refaz, atualiza-se na brutalidade do evento
presente que repercute, reverbera em significados que realizam sua
festa de retorno (Bakhtin, 1996): Não sou eu também uma mulher?
A violência extrapola a si mesma quando se torna a cegueira
escolhida que generaliza-se do fundante patriarcal à atuação de
organizações de mulheres que são sustentadas com recursos de
governos, aos quais nós pagamos impostos, para defender nossos
direitos. A violência se concretiza com força redobrada quando as
organizações que deveriam denunciar e exigir reparação e punição
tomam a decisão pela omissão, tomam lado, e preferem continuar
impondo, reafirmando a violência máxima, capital, com atividade
contínua e avassaladora, orientada por discursos que se camuflam
como virtuosos, inclusivos e defensores dos direitos de todas,
mesmo impetrando profundamente o que há de mais desumano,
que é a violência de mulheres contra suas irmãs.
Todos acompanhamos a resistência das mulheres afegãs
para poderem permanecer em seus trabalhos ou mesmo na escola e
formação profissional sob o regime talibã. Ou mesmo o direito que
defendem de não usar certas vestimentas ou mesmo cobrir a cabeça
sem terem suas vidas ameaçadas; o direito a reger seus próprios
corpos e de resistir à violência machista, de não terem seus corpos

47
violados, castrados, arrastados, chicoteados e mortos, incluindo
pelas polícias morais que ainda existem em vários países.
Ter acesso e poder exercer os direitos ainda exige resistência
persistente. Poder exercer a cidadania varia de um a outro momento
histórico. As políticas, crenças e valores de uma época podem
potencializam ou não a permanência de meninas e mulheres na
educação nos diferentes países, incluindo nos ocidentais (Goldin;
Katz; Kuziemko, 2006) e ocidentalizados. Por exemplo, quando
enfocam o incentivo ou não à igualdade de condições de estudo com
aprimoramento e geração de novos mecanismos, políticas públicas,
que garantam às mulheres acessar e, sobretudo, permanecer
estudando, inclusive quando exercem a maternidade.
Em diferentes países, como o Brasil, em que questões de
gênero, etnia e condições sociais são estruturais, a dimensão
política, regida por crenças e valores que sublinham interações que
invisibilizam e inviabilizam a mulher trabalhadora (França; Barbato,
2020), impede percepções da valoração do trabalho e expertise das
mulheres em suas trajetórias, provocando diferenciações que as
distanciam da igualdade de oportunidades, de trajetórias que
garantam a igualdade de remuneração, pois na medida em que se
desenvolvem, assumem cada vez mais responsabilidades de cuidado
com o outro, tornando-se multifacetárias, como malabaristas para
darem conta das duplas e triplas jornadas (Gonzalez; Barbato, 2023).
A violência se camufla no cotidiano, em questões que
parecem não ser importantes. No entanto, são estruturais,
econômicas, e podem incluir as distâncias a serem percorridas. As
distâncias, em um país com a extensão do Brasil, dificultam o acesso
e a escolha dos cursos que uma etnia ou grupo pode fazer, visto as
dificuldades de estudantes migrarem e viverem em cidades maiores
para poderem se formar em certas profissões, e que envolvem a
interiorização das universidades públicas de cursos mais caros como
os de saúde, incluindo a medicina; as engenharias; e, tecnológicos.
Somam-se aos problemas de permanência, a falta de informação
sobre o direito assegurado de continuarem a escolarização,
escolherem cursar o ensino superior, acesso a bolsas de
permanência e outras políticas públicas, informação e incentivos
para que exerçam liderança e escolham a profissão que quiserem, no

48
INTERSECCIONALIDADES - CONQUISTANDO DIREITOS AINDA VOLÁTEIS

momento e experiência de ser mulher em que estiverem, durante o


percurso de escolarização e na graduação e pós-graduação.

Maternidades na graduação

O tornar as estudantes mães acompanhadas de seus filhos


invisíveis é um ato ainda frequente nas universidades pelo mundo.
Quando são visibilizadas, ainda há a manifestação de insatisfação
com a presença da criança que, muitas vezes, tem que ser retirada da
sala com a mãe ou alguma colega (Lima; Barbato; Gonzalez; Mietto,
2023). Em ambos os casos, uma estudante deixa de assistir à aula.
Assim, ocorre com as políticas atuais que apoiam as mães
estudantes, pois oportunizam o reconhecimento de sua condição e
oferecem possibilidades para que finalizem com qualidade sua
formação profissional inicial e continuada. No entanto, são políticas
que fazem o mesmo percurso: afastam as mães do convívio dos
colegas e, muitas vezes, do estudo presencial.
Apesar dessas políticas facilitarem as mães na continuidade
dos estudos, mesmo tendo que ficar em casa, outras, de alternância
casa-universidade e de incentivo à frequência no campus presencial,
devem ser criadas. As mães, em sociedades democráticas, também
devem poder frequentar fisicamente os campi, e acompanhadas de
seus filhos, inclusive porque muitas vezes não conseguem o apoio
necessário para não os levar. O apoio tem que ser oferecido pelas
instituições e pelos diferentes órgãos e departamentos de uma
universidade, por meio de creches, estágios em espaços adequados e
seguros que organizem oficinas de atividades e brincadeiras, grupos
de interesse que se reúnam institucionalmente para possibilitar a
guarda temporária e segura das crianças, incluindo também a
possibilidade de a criança ser acolhida de fato, junto com sua mãe,
em sala de aula, considerando-se as circunstâncias específicas que
enfrentam.
Novas políticas introduzem e exigem mudanças de crenças
e valores e nas condições de socialização e desenvolvimento de mães
e crianças na universidade. Assim novas possibilidades de estar
presencialmente nos campi podem ser criadas, alteradas e
diversificadas, oferecendo novos incentivos à permanência das

49
estudantes no curso superior. No Brasil, a Lei 6.202, de abril de 1975
garante às estudantes a possibilidade de, a partir do oitavo mês, o
direito a quatro meses de licença-maternidade (Brasil, 1975).
Porém, a LDB (Lei de Diretrizes e Bases - Lei 9394/96) não
menciona em nenhum dos artigos regime especial para as
estudantes lactantes, puérperas ou mesmo grávidas (Brasil, 1996).
Ficando a critério das instituições de ensino garantir o acesso e a
permanência à educação durante o período de gravidez e pós-parto.
Exemplo a Resolução 023/2017 (UFAM, 2017) da Universidade
Federal do Amazonas (UFAM), que dispõe sobre o regime didático
dos cursos de graduação, em seus artigos 15 ao 20, descreve as
condições para solicitação e encaminhamentos da coordenação do
curso no que se refere ao regime de exercícios domiciliares.
Em sua dissertação de mestrado Alves (2023), a partir de
entrevistas narrativas de estudantes universitárias da UFAM que
enfrentam a dupla jornada de trabalho, identificou que, para
finalizarem seus cursos, as estudantes necessitam conciliar suas
funções de cuidado dentro da família com as demais jornadas fora
de casa como trabalho remunerado e estudos. Não somente as
estudantes mães pa ssam pela conciliação como também estudantes
sem filhos, pois mesmo sem responsabilidades maternais as
mulheres e meninas têm responsabilidades de cuidados com outros
membros da família, pessoas idosas ou doentes - basta ser mulher
para ter responsabilidades de cuidados.
Ser responsável por cuidados restringe o tempo livre das
mulheres, dificultando muitas vezes a permanência no Ensino
Superior. Estudos de Barbosa e Montino (2020) mostraram como as
mulheres acadêmicas enfrentam jornadas duplas/triplas de
atividades, que resultam, muitas vezes, em cansaço físico e mental,
comprometendo o rendimento acadêmico. Dentre as principais
dificuldades enfrentadas pelas mães universitárias estão: (i) cansaço
físico e mental, (ii) dificuldades em encontrar alguém para deixar os
filhos, (iii) gravidez, (iv) questões financeiras, e (v) desafios para
manter o curso.
A sobrecarga nas responsabilidades domésticas pode
orientar o ato de renunciar, pela falta de tempo e pelo acúmulo de
papéis, pois as estudantes precisam priorizar cuidados com a família

50
INTERSECCIONALIDADES - CONQUISTANDO DIREITOS AINDA VOLÁTEIS

aos estudos. O ingresso das participantes na universidade é motivo


de muita alegria, mas vem acompanhado de várias preocupações,
devido às obrigações que essas mulheres tinham antes da aprovação.
Mesmo com as lutas travadas pelos movimentos feministas que
visavam a inclusão das mulheres nos assuntos da sociedade no
século XXI, questões como a divisão desigual do trabalho doméstico
e do trato com os/as filhos/as ainda pesam mais sobre os ombros
femininos, tratando-se de obrigações impostas, histórica e
socialmente às mulheres, e que vinham sendo questionadas por uma
minoria, mas somente nos últimos anos passaram a ser reverberadas
no espaço público (Aguiar; Paes; Reis, 2019. p 49).
O trabalho doméstico merece destaque, visto ser a dupla
jornada de mulheres vinculada, desde muito tempo, à psique
feminina, como crença largamente utilizada nas diferentes culturas
como atividade natural à feminilidade (Federici, 2019). E, por ser
considerado natural, é exercido pelas mulheres como demonstração
de amor e cuidados com a família. Sendo essa vinculação
compulsória, feita dentro dos lares, na esfera privada, o trabalho no
lar não é visibilizado, reconhecido, não é valorizado e na maioria das
culturas não é partilhado pelos outros membros da família que
habitam o lar.
O trabalho doméstico, imposto cultural e historicamente às
mulheres, transformou-se em um atributo natural da psique e da
personalidade feminina, uma necessidade interna, uma aspiração,
supostamente vinda das profundezas da nossa natureza feminina.
Foi transformado em um atributo natural em vez de ser reconhecido
como trabalho, porque foi destinado a não ser remunerado. O
capital nos convenceu de que o trabalho doméstico, sendo natural, é
atividade diária inevitável e que nos traz plenitude, para que
aceitássemos trabalhar sem uma remuneração. Por sua vez, a
condição não remunerada do trabalho doméstico tem sido a arma
mais poderosa no fortalecimento do senso comum de que o
trabalho doméstico não é trabalho, qualquer um faz, mas ninguém
faz, além das mulheres da casa, impedindo assim que elas lutem
contra ele, exceto na querela privada do quarto-cozinha, que toda
sociedade concorda em ridicularizar, reduzindo ainda mais o
protagonismo da luta. Se não o executamos, somos classificadas

51
como mal-amadas, não como trabalhadoras em luta (Federici, 2019,
p. 42-43).
A partir desse conjunto de significados, impactados pelo
valor: cuidado, atribuído ao trabalho doméstico não remunerado, as
crenças reverberam e se estendem naturalmente ao trabalho fora de
casa. As mulheres, assim, podem ser menos remuneradas, pois já
acostumadas ao cuidado de todos no espaço doméstico, seu
trabalho no espaço organizacional também é atrelado a esse valor,
dentre outros como passividade, com o sentido de falta de
iniciativas agressivas, competitivas. E podem, inclusive, não ser
remuneradas, por exemplo, em ciência, onde por anos trabalhavam
fora dos espaços comuns dos laboratórios sem remuneração ou
menos remuneradas, sem reconhecimento do valor de seu trabalho.
Atualmente, a não remuneração em ciência dá-se pelo trabalho
como bolsista voluntária ou estudantes de pós-graduação e pós-
doutoranda(o)s sem bolsa, sem qualquer remuneração.
Mesmo que as mulheres adentrem a esfera pública através
do trabalho remunerado e os estudos, ainda prevalece a ideia de que
são responsáveis pelos cuidados com a família, ser mãe cuidar dos
filhos (Zanello, 2018) e dos pais idosos. A maternidade na divisão
sociossexual do trabalho assume o papel principal na vida das
mulheres. Uma vez mãe, a maior prioridade serão os cuidados com
os filhos, restringindo a participação em outras esferas da vida
(Biroli, 2018). A maternidade, dessa forma, pode ser compreendida
como fator de vulnerabilidade por conta da dedicação desigual de
tempo nos cuidados com os filhos, reduzindo a autonomia relativa,
individual e coletiva das mulheres, contribuindo para o incremento
da desigualdade de possibilidade de mobilidade empregatícia e
salarial (Goldin; Kerr; Olivetti; Barth, 2017).
As trajetórias educacionais, também, oferecem exemplos
concretos dos diversos obstáculos enfrentados pelas mulheres. Em
narrativas analisadas pelas autoras e colegas colaboradoras, as mães
estudantes tecem como suas vidas e sonhos mudam durante a
graduação. Na narrativa de Juliana (Alves, 2023), por exemplo,
identificam-se três reviravoltas marcantes: a gravidez, o
trancamento do curso e a pandemia de COVID-19, entre a entrada
no curso de graduação em Psicologia e a futura conclusão.

52
INTERSECCIONALIDADES - CONQUISTANDO DIREITOS AINDA VOLÁTEIS

Juliana escolheu desde a adolescência a carreira profissional


que seguiria. Ao final do ensino médio foi aprovada no curso de
Psicologia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) por
meio do Processo Seletivo Contínuo (PSC). O primeiro ponto de
mudança em sua narrativa foi a gravidez, no segundo ano da
graduação, pois por se tratar de uma gravidez de risco gerou
dificuldades para continuar os estudos. Precisou se ausentar das
aulas e contou com o apoio de colegas e professoras para concluir o
semestre. Com o nascimento do filho, há o trancamento do curso
para se dedicar às demandas da maternidade e problemas
relacionados à saúde.
Quando voltou à faculdade, teve início a pandemia da
COVID-19, as aulas passaram a ser na modalidade remota. Durante
o período de distanciamento social, como muitas mulheres,
enfrentou a tripla jornada formada por estudos, trabalho e
maternidade. Essa conciliação não é fácil, pois organizar os horários
e separar os espaços e limites de cada posicionamento se tornou um
desafio. Com o retorno ao estudo, além de encontrar apoio nos
colegas e professores, também passou a enfrentar obstáculos, como
por exemplo, discursos com comentários desnecessários, como o
comentário de um professor ao se dirigir a estudante como “aquela
que foi reprovada por faltas”, e pouco suporte institucional, que a
lembraram, inclusive, das dificuldades durante a gravidez de risco,
complicando a sua trajetória de permanência na universidade.
O sonho de exercer a profissão, com a experiência de mãe,
sofreu uma modificação, a conclusão do curso de Psicologia passou
a significar: proporcionar ao filho um futuro melhor. Para a
estudante, o motivo principal para continuar e concluir os estudos
passou a ser a própria maternidade. Em seu relato enfatizou que ser
mãe jamais a impedirá de nada, pelo contrário é motivação para
continuar.
Em outra universidade federal (Lima; Barbato; Gonzalez;
Mietto, 2023), as estudantes mães enfrentaram a oposição dos
próprios colegas que criticavam abertamente a presença das
crianças em sala de aula, levando-as a retirarem-se de sala ou a
colegas, estudantes mulheres, o fazerem para que as mães pudessem
assistir às aulas. Em suas narrativas, Clara, uma das estudantes,

53
classificou sua vivência como complicada, em tensão com os colegas
que não são mães ou pais e com a instituição, num jogo entre sentir-
se incluída-excluída, pois a posicionavam como diferente, quando
estava com criança na universidade. Ao analisar sua própria
narrativa dessas situações no cotidiano da universidade, incluindo
suas interações com os coordenadores de graduação, desencadeou
críticas em relação ao processo de acolhimento e inclusão de
estudantes mães.
Apesar de seguir as políticas existentes, e da situação que
descreve como privilegiada, por contar com o apoio cotidiano da
família e do cônjuge, há momentos imprevistos que implicam em ela
ter que levar a criança à universidade. Clara critica, sobretudo, a
burocratização da universidade. Com a fragilização de sua saúde
durante a gravidez e na hora de obter a licença maternidade, teve
dificuldades de solicitar os apoios à continuidade da educação a que
tinha direito. É importante desburocratizar as solicitações
necessárias à continuidade das trajetórias das estudantes.
Há, assim, a necessidade de criação de políticas que apoiem
e ofereçam suporte às mães em seu cotidiano e no enfrentamento de
imprevistos momentâneos, para motivar a permanência das
estudantes, também, frequentando fisicamente o campus, se assim o
quiserem. A criação de creches, pré-escolas e/ou centros de
educação infantil apoia e muito, no entanto, a demanda continuará a
ser maior do que as vagas existentes. Como gerar alternativas que
sejam iniciativas apoiadas pela instituição?

Promovendo o empoderamento das mulheres

As mudanças de crenças e valores necessárias para


incentivar o acesso e a permanência das estudantes nos processos de
escolarização e formação profissional inicial e continuada implicam
em mudanças nas instituições educacionais e comunidades, assim
como em incentivos permanentes às meninas e mulheres para que
adquiram e exerçam o poder saber e atuar na sua profissionalização
e no cuidado de si. Atuações em políticas públicas que incentivam a
autonomia e a independência intelectual das meninas e mulheres
promovem o desenvolvimento de estratégias que podem gerar novas

54
INTERSECCIONALIDADES - CONQUISTANDO DIREITOS AINDA VOLÁTEIS

formas de ser, estar, sentir e agir reflexivamente e proporcionar


mudanças nos processos de si e institucionais que garantem
ultrapassar as dificuldades que se apresentam e transformar o que
está posto.
Com o maior alcance dos movimentos políticos de
igualdade e a difusão de ideais feministas em diversas esferas sociais,
assistimos ao nascimento da expressão girl power (meninas
empoderadas) no início da década de noventa. O lema logo se
tornou um símbolo popular da luta feminina e se solidificou com
fontes do pós-feminismo, a corrente de pensamentos se diferenciava
do debate feminista posterior ao se focar em uma abordagem de
empoderamento, autonomia, liberdade sexual e financeira e
participação de mercado (BAE, 2011).
Por conta de suas especificidades, o movimento foi aceito
pela audiência geral rapidamente se tornando com ainda mais
velocidade uma ferramenta comercial para capitalizar lutas sociais.
Assim, adotado pelo neoliberalismo, camisetas, canecas e chaveiros
com o lema se tornaram o ápice da luta contra a misoginia, trajando
profissionais mulheres em suas jornadas profissionais e ofuscando
os discursos que não se enquadrassem em seus padrões ou não
fossem proferidos por seu público-alvo.
Apesar de nascer de iniciativas que buscavam mais espaços
femininos em posições de liderança e independência, o movimento
girl power logo se mostrou problemático não só por hegemonizar a
experiência feminina e a luta feminista, mas também por não
considerar outros recortes sociais e excluir mulheres que
pertencessem a outros grupos minoritários - reivindicou pelo
direito de mulheres brancas e ricas ocuparem posições de poder em
padrões que perpetuavam a estrutura hierárquica e opressora já
estabelecida (BAE, 2011).
Atuando na promoção do poder das meninas e mulheres,
no Brasil, há várias iniciativas para estudantes da Educação Básica e
graduação como o Mulheres na ciência, programa do Ministério da
Ciência, Tecnologia e Informação que apoia projetos que estimulem
o ingresso e a formação de meninas e mulheres nas Ciências Exatas,
Engenharias e na Computação, além de combater a evasão dos
cursos de graduação nessas áreas.

55
Uma das autoras deste texto participou do Projeto Jovens
Líderes pela Paz (ver liderespelapaz.com), uma iniciativa criada com
o objetivo de diminuir os níveis de violência em escolas públicas,
tendo surgido em um momento de crise enfrentado pela educação
no país, com frequentes ameaças de massacres e violência. Nesse
projeto, estudantes são eleitos "Líderes Pela Paz" e têm a
responsabilidade de incentivar atividades no colégio que promovam
interações saudáveis, de união, em atuações partilhadas entre pares.
A organização é responsável por medidas e atividades relacionadas à
Saúde Mental e Violência contra a mulher. Por exemplo, há
psicólogos voluntária(o)s que promovem palestras mensais sobre
tais assuntos no colégio, além de disponibilizarem algumas sessões
gratuitas para as(os) estudantes. Sendo formado por 3 ex-estudantes
de escola pública, o projeto conta com uma forte participação
feminina, que lidera e é responsável por tocar o projeto de perto,
diariamente. A organização, que simboliza a superação das meninas
e sua luta contra a violência, foi reconhecida recentemente com a
conquista do Prêmio LED - Luz na Educação - da Rede Globo, um
dos maiores prêmios de educação do Brasil.
Um outro exemplo a ser mencionado, como uma iniciativa
que provoca reflexão, é a da Associação das Mulheres Indígenas em
Mutirão (AMIM). O movimento indígena no Oiapoque foi por
muito tempo focado e coordenado por homens, tendo a presença
feminina limitada aos arredores e aos serviços domésticos. Porém,
na década de 80 a situação começou a mudar quando a missionária
do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), irmã Rebecca Spires,
iniciou um processo de incentivo da participação feminina,
reunindo grupos de mulheres para a formação de redes e criação de
vínculo e posteriormente, a realização de oficinas, cursos, palestras e
debates focados na experiência como mulher indígena com a
abertura de um espaço para a troca de ideias, opiniões e relatos (Dos
Santos; Machado, 2019).
Tais encontros foram ganhando popularidade e suas
participantes se empoderando sobre suas narrativas, formando
grupos de mulheres que iniciaram a Associação das Mulheres
Indígenas em Mutirão (AMIM) de forma institucionalizada e
regulamentada, dando início a primeira assembleia geral de

56
INTERSECCIONALIDADES - CONQUISTANDO DIREITOS AINDA VOLÁTEIS

mulheres indígenas na cidade de Oiapoque. Tal evento foi a base


para a aprovação do estatuto, nomeação de membros da diretoria e
conselho fiscal com o propósito de legitimar e organizar a mão de
obra feminina (IEPÉ, 2016).
O objetivo principal da organização é proteger mulheres
indígenas, seja promovendo sua valorização e presença na
comunidade e nos debates políticos, seja lutando contra a violência
direcionada a esse grupo. As participantes destacam a importância
da educação e formação dessas mulheres a fim de garantir o acesso
dessas a saúde, lazer, cultura e segurança. Abarca assuntos sobre
feminilidade, defende bandeiras do movimento indígena geral e
realiza parcerias com organizações e representantes do estado a fim
de promover o respeito entre etnias, a proteção do meio ambiente, a
valorização da cultura e economia indígenas e a defesa judicial de
seus direitos (Brasil, 2018). É possível acompanhar as ações da
associação e suas participantes pela página do Facebook da
iniciativa, na qual participações, eventos, oficinas e outros
dispositivos da organização são comunicados para o público geral.
Desde os anos 80, o movimento vem acompanhando as
transformações e se atualizando às novas gerações e necessidades
que lhe são confrontadas, formando redes femininas de suporte e
advogando pelas presenças destas em posições de liderança no
objetivo de representar suas pautas - se afirmando assim como um
grande exemplo brasileiro de empoderamento.

Mulheres em jogos de poder

Mulheres em posição de poder sempre existiram, porém,


observamos o esvaziamento do prestígio de tais funções e a
atribuição de uma responsabilidade natural que descredibiliza e
desvaloriza os esforços femininos. Com o esforço e as lutas sociais
por acesso e inclusão educacional e profissional, a conjuntura social
e econômica se adapta e grupos minoritários, antes excluídos,
ingressaram na força de trabalho remunerada. Porém, a chegada
dessas pessoas a posições de liderança impõe expectativas para que
esses atuem da mesma maneira que impossibilitou a sua presença
posteriormente. No caso das mulheres, formou-se um limbo onde

57
suas ações se tornam uma exceção ao seu gênero, carregando o peso
de representá-lo. É exigido dureza ao mesmo passo que são
condenadas à beleza, paciência e gentileza, para que cuidem dos
funcionários como esperado, como uma mãe, mas sem de fato
deixar transparecer tais características, pois apenas qualidades
masculinas evocam respeito (Hoyt; Simon, 2011).
O mundo profissional despiu essas mulheres das
características das quais foram socializadas para exercer, porém
ainda são cobradas das mesmas - se esforçam para mostrar que
podem ocupar espaços de comando enquanto têm seus direitos
sociais, financeiros, reprodutivos e pessoais impossibilitados por
jornadas duplas ou até mesmo triplas de trabalho.
Vivendo em condições de socialização ambivalentes,
conquistar a igualdade e sair da invisibilidade requer a continuidade
da luta em diferentes espaços societais com mudanças discursivas
que concretizem crenças e valores modificados e modificáveis.
Mudar e atualizar os significados que valoram negativamente o
trabalho feminino realizado tanto nos espaços privados quanto nos
públicos, impedirá algumas possibilidades de trabalho não ou mal
remunerado. Dividir as responsabilidades na família, estabilizar os
ganhos e estabelecer reconhecimentos institucionais e de governo
orientam os próximos passos. Avançar nas propostas de políticas
públicas que garantam os direitos e o reconhecimento das mulheres,
exige participação cotidiana na política e nas diferentes iniciativas
da democracia, com mudança de valores relacionados às trajetórias
educacionais e profissionais das mulheres, abrindo mais
oportunidades de lideranças também nos diferentes cargos mais
valorizados nos governos e empresas.

Considerações finais

Os jogos de poder produzem ambivalências, com


significados e ações que convivem num mesmo sistema que, mesmo
sendo complementares, opostos e multivalentes, são orientados por
valores que produzem tensões que facilitam a desestabilização das
conquistas e iniciativas, pois a qualquer momento, pode-se perdê-
las com a mudança da situação, na mão da violência que marca os

58
INTERSECCIONALIDADES - CONQUISTANDO DIREITOS AINDA VOLÁTEIS

atos avassaladores, de subordinação, fortemente assentados em


crenças que reificam as mulheres, promovendo a permanência de
significados que orientam os significados do ser mulher e seus
direitos à inviabilização e invisibilizarão de nossas conquistas. Com
as mudanças de ventos, as conquistas podem ser revertidas, as
submetendo a situações de servidão, e dependência, sinalizando a
elas, mesmo em situações públicas, o menosprezo em relação a suas
falas, reflexões e agencialidades, em tentativas de torná-las
interlocutoras não-viáveis, repercutindo na não-valorização de sua
força de trabalho e inovação. Nessas trajetórias, faz-se necessário
aprender a recomeçar com a reinvenção de si ao longo do percurso,
a fim de manter e (re)conquistar os direitos ainda tão voláteis.
Não sou eu também uma mulher? Neste texto, percorremos
falas e condições de socialização e desenvolvimento de diferentes
mulheres em diferentes culturas e apresentamos iniciativas que
incentivam seu empoderamento. Os jogos de poder produzem
ambivalências, com significados e ações que convivem num mesmo
sistema que, mesmo sendo complementares, opostos e
multivalentes, são orientados por valores que produzem tensões que
facilitam a desestabilização das conquistas e iniciativas, pois a
qualquer momento, pode-se perdê-las com a mudança da situação,
na mão da violência que marca os atos avassaladores, de
subordinação, fortemente assentados em crenças que reificam as
mulheres. Com as mudanças de ventos, conquistas podem ser
revertidas, as submetendo a situações de servidão, e dependência,
sinalizando a elas, mesmo em situações públicas, o menosprezo em
relação a suas falas, reflexões e agencialidades, em tentativas de
torná-las interlocutoras não-viáveis, repercutindo na não-
valorização de sua força de trabalho e inovação. Nessas trajetórias,
faz-se necessário aprender a recomeçar com a reinvenção de si ao
longo do percurso, a fim de se retomar as lutas, manter e
(re)conquistar os direitos ainda tão voláteis.

Referências

AGUIAR, Samara Gomes; PAES, Valquiria Normanha; REIS, Sônia


Maria Alves de Oliveira. Mulher, mãe, dona de casa e esposa:

59
dificuldades e superações para ingressar e permanecer na
Universidade Pública. Seminário Nacional e Seminário
Internacional Políticas Públicas, Gestão e Práxis Educacional, v.
7, n. 7, 2019.

ALVES, Kristine Renata Medeiros. Trajetórias escolares de


mulheres universitárias e a dupla jornada de trabalho. 2023. 114f.
Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal do
Amazonas, Manaus - AM, 2023.

BARBOSA, Rosimar Morais; MONTINO, Mariany Almeida.


Mulher universitária: dificuldades e superações para concluir o
ensino superior. Multidebates, v. 4, n. 6, p. 170-182, 2020.
Disponível em: <http://revista.faculdadeitop.edu.br/index.php/
revista/article/view/305/275>. Acesso em 20 de abril de 2023.

BAE, Michelle. Interrogating Girl Power: Girlhood, Popular


Media, and Postfeminism. Buffalo: Visual Arts Research, 2011.

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Estética da criação verbal.


Martins fontes, 1996.

BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: Limites da democracia


no Brasil. São Paulo: Editora Boitempo, 2018.

BRASIL. Lei nº 6.202, de 17 de 1975. Atribui à estudante em


estado de gestação o regime de exercícios domiciliares instituído
pelo decreto-lei nº 1.044, de 1966. Diário Oficial da União, Brasília,
DF, 1975. Disponível em:<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/
lei/1970-1979/lei-6202-17-abril-1975-357541-publicacaooriginal-1-
pl.html>. Acesso em 15 de abril de 2023.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº


9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional. Brasília, DF, 1996. Disponível em: <http://www.
portal.mec.gov.br>. Acesso em 13 de novembro de 2023.

Encontro de troca de saberes das mulheres indígenas do Baixo


Oiapoque e Assembleia anual da Associação das Mulheres
Indígenas em Mutirão (AMIM), 2018. Disponível em: <https://

60
INTERSECCIONALIDADES - CONQUISTANDO DIREITOS AINDA VOLÁTEIS

www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2018/i-encontro-de-
troca-de-saberes-das-mulheres-indigenas-do-baixo-oiapoque-e-
assembleia-anual-da-associacao-das-mulheres-indigenas-em-
mutirao-amim>. Acesso em 20 de abril de 2023.

DOMINGUE, Andrea D. “Our leaders are just we ourself ”: Black


women college student leaders’ experiences with oppression and
sources of nourishment on a predominantly White college
campus. Equity & Excellence in Education, v. 48, n. 3, p. 454-472,
2015.

DOS SANTOS, Ariana; MACHADO, Tadeu Lopes. As mulheres no


movimento indígena de Oiapoque: uma reflexão a partir da
associação das mulheres indígenas em mutirão. Espaço
Ameríndio, v. 13, n. 1, p. 6-67, 2019.

DUEILLING, Yvonne; ALVESSON, Mats. Questioning the notion


of feminine leadership: A critical perspective on the gender
labelling of leadership. Gender, Work & Organization, v. 7, n. 3, p.
144-157, 2000.

FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho


doméstico, reprodução e luta feminista. Editora Elefante, 2019.

FRANÇA, Rômulo Ataides; BARBATO, Silviane Bonaccorsi.


Meaning production in transition: interpretations of domestic work
through a new law. Human Arenas, v. 3, n. 3, p. 404-420, 2020.

HOYT, Crystal L.; SIMON, Stefanie. Female leaders: Injurious or


inspiring role models for women?. Psychology of Women
Quarterly, v. 35, n. 1, p. 143-157, 2011.

GOLDIN, Claudia; KATZ, Lawrence Francis; KUZIEMKO, Ilyana.


The homecoming of American college women: The reversal of the
college gender gap. Journal of Economic perspectives, v. 20, n. 4,
p. 133-156, 2006.

GOLDIN, Claudia; KERR, Sari Pekkala; OLIVETTI, Claudia;


BARTH Erling. The expanding gender earnings gap: Evidence from

61
the LEHD-2000 Census. American Economic Review, v. 107, n. 5,
p. 110-114, 2017.

GONZÁLEZ, Maria Fernanda; BARBATO, Silviane Bonaccorsi. "Eu


Estudo Enquanto Toda Minha Família Está Dormindo". Gênero,
Tempo e Espaço na Educação Online na Pandemia de Covid-
19. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 39, p. e39302, 2023.

HAYNES, Chayla et al. Toward an understanding of


intersectionality methodology: A 30-year literature synthesis of
Black women’s experiences in higher education. Review of
Educational Research, v. 90, n. 6, p. 751-787, 2020.

INSTITUTO DE PESQUISA E FORMAÇÃO INDÍGENA (IEPÉ).


(2016). Associação das Mulheres Indígenas em Mutirão realiza
assembleia. Disponível em: <https://institutoiepe.org.br/2016/11/
associacao-das-mulheres-indigenas-em-mutirao-realiza-
assembleia/>. Acesso em 20 de abril de 2023.

KEY, Susan et al. An exploration of leadership experiences among


white women and women of color. Journal of Organizational
Change Management, v. 25, n. 3, p. 392-404, 2012.

KING, Toni C.; FERGUSON, S. Alease (Ed.). Black womanist


leadership: Tracing the motherline. State University of New York
Press, 2011.

LIMA, Layanne; BARBATO, Silviane; GONZALEZ, Maria


Fernanda; MIETTO, Gabriela. Trajetórias Educacionais. In:
BARBATO, S; SILVA, C.C.F; RESENDE, G.; ALVES, C.;
GONZALEZ, M.F.; SILVA, I.R. (Org.). Narrativas de mulheres.
Manaus e São Paulo: EDUA e ALEXA, no prelo.

RUBIN, Gayle. O tráfico de mulheres: notas sobre a “economia


política” do sexo. 2012. Disponível em: <http://repositorio.ufsc.br/
xmlui/handle/123456789/1919>. Acesso em 09 de maio de 2023.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS. Plano de ensino


remoto e movimentos sociais e educação. Modelo obrigatório
estabelecido pela Resolução nº 023/2017, aprovada no dia 03 de

62
INTERSECCIONALIDADES - CONQUISTANDO DIREITOS AINDA VOLÁTEIS

maio de 2017 – Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão, 2017.


Disponível em: <https://www.icet.ufam.edu.br/wpcontent/uploads/
2017/03/RESOLU%C3%87%C3%83O-023.2017-Consepe-
RegimeDid%C3%A1tico.pdf>. Acesso em 20 de abril de 2023.

ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura


e processos de subjetivação. Editora Appris, 2018.

Mini currículos

Silviane Barbato
Professora Associada do Dept. de Psicologia Escolar e do
Desenvolvimento, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília.
É líder do Grupo de Pesquisa Pensamento e Cultura e estuda
narrativas e explicações nas interpretações de si em processos de
transição de graduandos (PROCAD Amazônia/FAPEAM/CAPES) e
no DF, e em eventos de impacto. E-mail: [email protected] Lattes:
http://lattes.cnpq.br/8809856521908528

Kristine Renata Medeiros Alves


Mestra em Psicologia pela Universidade Federal do Amazonas -
UFAM, pesquisadora pelo Procad-Amazônia. Atualmente
doutoranda em Psicologia do Desenvolvimento e Escolar pela
Universidade de Brasília - UnB. Tem interesses em: Feminismo,
Maternidade, Mulheres e Trabalho, Direitos Humanos,
Decolonialidade e Gênero na América Latina. E-mail:
[email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/
0696415683431620

Victoria Goulart da Silva


Estudante de graduação do curso de psicologia e bolsista CNPq por
sua participação na pesquisa de desenvolvimentos de si em períodos
de crise, com foco na pandemia de covid 21. Atualmente se interessa
por questões de gênero, sexualidade e anticoloniedade. E-mail:
[email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/
7632285789125911

63
Ana Beatriz A. Santa Cruz Goyanna
Estudante do Colégio Militar D. Pedro II. É bolsista PIBIC Ensino
Médio (CNPq), estudando narrativas da pandemia. Tem interesse
em como eventos inesperados afetam o comportamento humano.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0235044997631360
A TRAJETÓRIA E
PERMANÊNCIA DE JOVENS
INDÍGENAS EM INSTITUIÇÕES
DE ENSINO SUPERIOR NO
AMAZONAS: A
TRANSFORMAÇÃO DO
ESTIGMA EM PROTAGONISMO
Rosemary Amanda Lima Alves
Raniele Alana Lima Alves
Socorro Gamenha
Vanderlécia Ortega dos Santos (Wanda Witoto)
Consuelena Lopes Leitão
Iolete Ribeiro da Silva

Introdução

A universidade possui importante papel na trajetória sócio-


histórica de estudantes, visto que nesse ambiente ampliam-se
oportunidades na vida educacional e profissional, com
contribuições que se somam às suas experiências pessoais e no
campo das relações sociais. No entanto, é necessário discutir as
políticas públicas de educação, acesso e permanência, dada às
singularidades de cada estudante e do seu contexto social,
econômico e cultural. Nesses aspectos, vale ressaltar que as
universidades brasileiras são instituições relativamente recentes, em
sua maioria fundadas sobre propostas importadas de países da
Europa, a partir de uma realidade diferente das populações
originárias que habitam o Brasil desde antes do período da
colonização (Ayres; Brando; Ayres, 2023).
Nesse sentido, torna-se importante discutir a ampliação de
políticas públicas com ações afirmativas iniciadas, a partir da
Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988), para essas populações,
as quais necessitam se adaptar às especificidades desses grupos em
seus diversos espaços. Para tanto, é necessário um debate sobre as
particularidades trazidas por essas pessoas, de modo que suas
vivências acadêmicas possam ser experienciadas de forma mais
ampliada e menos excludente. Nessa perspectiva, este trabalho tem
o objetivo de analisar narrativas de mulheres indígenas a partir de
suas vivências no meio universitário. Para isso, busca-se, como
objetivos específicos, (1) destacar como essas mulheres significam as
suas trajetórias de escolarização e vivências no ensino superior; (2)
descrever as dificuldades e os conflitos que envolvem desde a saída
de seus territórios / aldeias até o campus universitário; e, (3)
discorrer sobre as Políticas Públicas de acesso, como práticas
afirmativas e mecanismos que possibilitam o ingresso e a
permanência dessas estudantes indígenas no ensino superior.
A realidade das mulheres indígenas, enquanto pessoas
constituídas em suas aldeias, reproduz uma dupla exclusão pela
dupla invisibilidade de etnia e de gênero, tanto para com as
sociedades em geral, quanto para as comunidades em que vivem, e
estar na universidade se caracteriza como a possibilidade de
tornarem-se visíveis (Faustino et al., 2010). Para essas mulheres, a
inserção na universidade representa a oportunidade de serem vistas,
resistindo à mentalidade de um senso comum que, historicamente,
não aprova a igualdade de gênero, a igualdade de direitos entre
homens e mulheres, além do fato de questionarem se esse espaço
pode ser ocupado por uma pessoa indígena e, sobretudo, por
mulheres (Molina; Ribeiro, 2021). Nesse sentido, destacar as
trajetórias dessas mulheres faz-se importante para criarmos a
possibilidade de respeito à diversidade cultural, presente na
realidade amazônica e da necessidade de dar maior visibilidade à
realidade de mulheres que não estão dentro do padrão hegemônico
das universidades.
Desse modo, pesquisas e ações afirmativas que envolvam as
necessidades das populações indígenas podem contribuir para uma
reparação histórica de direitos que foram negados, durante séculos,
para essas pessoas, reafirmando a necessidade de implantação e
ampliação de políticas públicas. Dessa maneira, o impacto das ações
governamentais no crescimento do acesso indígena ao ensino

66
A TRAJETÓRIA E PERMANÊNCIA DE JOVENS INDÍGENAS EM INSTITUIÇÕES DE
ENSINO SUPERIOR NO AMAZONAS: A TRANSFORMAÇÃO DO ESTIGMA EM
PROTAGONISMO

superior, deve-se aos movimentos indígenas que elegeram as


universidades, dentre outros, como um espaço de afirmação, de
modo que se configurem como uma aliada nesse processo
(Bergamaschi; Kurroschi, 2013).
Esse capítulo aborda a trajetória de mulheres estudantes
indígenas no ensino superior em instituições públicas no Estado do
Amazonas, na capital Manaus, mais especificamente na
Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Universidade
Estadual do Amazonas (UEA). Para coletar as informações,
realizamos entrevistas on-line em plataformas digitais, previamente
agendadas com as participantes, em função de a pesquisa ter sido
realizada no período do pico da Pandemia de COVID – 19, no ano
de 2020.
O aporte epistemológico da discussão foi fundamentado a
partir da Psicologia Sócio-Histórica, com análise das narrativas
trazidas pelas participantes, as quais envolveram suas experiências e
como essas contribuíram ou dificultaram a permanência delas nas
universidades. O estudo teve como premissa o projeto de pesquisa
do Programa de Iniciação Científica da UFAM, intitulado “A
Trajetória e Permanência de Jovens Indígenas em instituições de
Ensino Superior no Amazonas: A Transformação do Estigma em
Protagonismo”, o qual resultou em uma pesquisa qualitativa
realizada com recorte temporal (2019/2020), em busca do
entendimento sobre a trajetória de escolarização até a universidade,
identificando as possibilidades de acesso, permanência e evasão,
bem como os espaços de sociabilidade proporcionados pelas
universidades.
Importa ressaltar que essa discussão é recente, uma vez que
pesquisas a respeito da vida universitária no Brasil têm se
intensificado em razão do desenvolvimento gradativo da
democratização de universidades públicas, por meio das políticas
que reservam vagas para alunos(as) pretos(as), pardos(as) e
indígenas, além de oriundos de escolas públicas. O ingresso
desses(as) estudantes, com perfis que divergem daqueles aos quais,
predominantemente, de modo habitual e constante acessaram a
educação superior brasileira, ocasionou a criação de intensos

67
debates dentro da comunidade universitária (Rodrigues; Santos;
Cruz, 2022).
Entende-se que, ainda que haja a democratização do acesso,
tal prática não é suficiente para assegurar uma educação com êxito,
demandando, portanto, o início de modificações no sistema
universitário, bem como a elaboração de políticas de permanência
que ofereçam fixação material e simbólica aos(às) acadêmicos(as)
no ambiente universitário e diminuam as hostilidades cotidianas.
O presente estudo se apresenta como uma pesquisa de
natureza qualitativa dividida em três estágios: Levantamento de
referências bibliográficas, através de autores(as) que tratam do tema,
produção de dados através de entrevistas narrativas de três
mulheres, estudantes indígenas moradoras da área urbana da cidade
de Manaus. Para as análises, interpretação e tratamento dos dados,
foi utilizada a Análise de Discurso (AD) (Rocha; Silva; Oliveira,
2022), em articulação a Psicologia Sócio-Histórica (Freitas, 2002).
A seguir serão descritos os procedimentos éticos da
pesquisa, mas antes importa ressaltar que no curso da pesquisa de
campo surgiram alguns impasses que mudaram as intenções iniciais
da proposta. O primeiro foi o de encontrar jovens indígenas na
Universidade Federal do Amazonas que estivessem disponíveis para
participar da pesquisa. O segundo, foi o recesso das universidades a
partir de março de 2020, em função da Pandemia de COVID-19.
Inicialmente, buscamos jovens que cursavam os períodos iniciais
dos cursos de graduação da Universidade Federal do Amazonas,
mas a logística e protocolos impostos pelo período de afastamento
social dificultaram o acesso a essas jovens. Assim, o perfil foi
ampliado para jovens indígenas de cursos graduação ou de pós-
graduação de universidades públicas e, através da técnica bola de
neve (Oliveira et al., 2021), foram recrutadas 8 participantes, sendo
que 3 aceitaram participar da pesquisa, uma delas vinculada à
graduação na Universidade do Estado do Amazonas e as outras duas
à pós-graduação da Universidade Federal do Amazonas.
A pesquisa atende as Resoluções nº 466/2012 (Brasil, 2012),
tendo sido aprovada pelo Comitê de Ética da UFAM com o
Certificado de Apresentação de Apreciação Ética – CAAE de
número 15366619.1.1001.5020. As participantes, durante as

68
A TRAJETÓRIA E PERMANÊNCIA DE JOVENS INDÍGENAS EM INSTITUIÇÕES DE
ENSINO SUPERIOR NO AMAZONAS: A TRANSFORMAÇÃO DO ESTIGMA EM
PROTAGONISMO

entrevistas, preencheram o termo de consentimento livre


esclarecido (TCLE) e seus nomes foram ocultados para preservar
suas identidades com o uso apenas da letra inicial do seu primeiro
nome, junto ao título que os autores identificaram como relevante
nas trajetórias dessas discentes na universidade. Portanto, as três
entrevistadas são identificadas no decorrer deste trabalho da
seguinte forma: 1 - S. Militância indígena, 2 - MS. Estigma e olhar
do diferente, 3 - A. Luta pessoal e as oportunidades. A seguir, no
Quadro 1, apresentamos um recorte do perfil das estudantes
entrevistadas.
Quadro 1 – Perfil das Participantes

Fonte: Elaborado pelos(as) autores(as)

Para os procedimentos de coleta de dados, utilizaram-se as


seguintes estratégias: Os dados foram coletados através de
entrevistas on-line, com encontros agendados pela plataforma google
meet, com perguntas disparadoras para que as entrevistadas
narrassem suas histórias de vida e vivências no espaço universitário.
Pela perspectiva Vygotskyana, a pesquisa ocorre através da relação
entre sujeitos e é promotora de desenvolvimento em que é possível
perceber a mediação do pesquisador provocando alterações de
comportamento que possibilitam a compreensão de seu
desenvolvimento Freitas (2002) . A coleta de dados realizada em
ambiente virtual envolve a utilização da internet, e é mais
econômica, diminui as barreiras geográficas e de deslocamento,
possibilitando a disseminação da informação com facilidade e
comodidade para os participantes (Pedroso et al., 2022).

69
As narrativas foram transcritas e analisadas através da
Análise de Discurso (AD) (Rocha; Silva; Oliveira, 2022), com a
busca da compreensão atenta ao sentido do discurso presente nas
narrativas das estudantes, o que deu origem às categorias empíricas
ou unidades de sentido, transformadas em títulos neste capítulo.
Portanto, para discussão, foram utilizados três enfoques: o primeiro
aborda Políticas afirmativas versus diversidade cultural; o segundo
trata da presença e da luta indígena na realidade das universidades;
e o terceiro discute a realidade social dessas estudantes a partir do
enfoque sócio-histórico, destacando as oportunidades e desafios.

Políticas afirmativas versus Diversidade cultural

Ao longo da história, o processo de educação formal foi


utilizado como estratégia de subordinação e colonização das
populações indígenas. Por meio de escolas e da igreja se propagou
um modelo escolar ocidental, branco e cristão que desconsiderava
as particularidades culturais daqueles que se diferenciavam das
características predominantes na população colonizadora (Viana;
Maheirie, 2017).
A violência física e simbólica era legitimada por esta
educação, na figura de mestres, que enfraqueceram e até
suprimiram línguas, cosmologias e práticas socioculturais. Nas
narrativas expressas pelas mulheres, esta realidade ainda deixou
seus resquícios e a população indígena continua enfrentando muitas
dificuldades quando saem de suas comunidades e vêm para área
urbana.

Eram sete filhos, na comunidade, na aldeia....


Então ela resolveu vim porque prometeram
que as meninas vinham estudar, que teriam
melhores condições. Essas coisas... e não foi
isso que aconteceu, né?[...] eles vieram para
Manaus sofreram abusos e violências. Essas
coisas que nós indígenas sofremos ainda mais
tendo esse impacto social. Esse impacto! De
repente vim para cidade, e não conhecer como
as coisas funcionam (S. Militância Indígena,
2020).

70
A TRAJETÓRIA E PERMANÊNCIA DE JOVENS INDÍGENAS EM INSTITUIÇÕES DE
ENSINO SUPERIOR NO AMAZONAS: A TRANSFORMAÇÃO DO ESTIGMA EM
PROTAGONISMO

O processo educacional formal se coloca na sociedade


brasileira, como um mecanismo de expropriação cultural e
simbólica das populações indígenas que tiveram, em muitos casos,
perdas irreparáveis do ponto de vista da sua etnicidade (Viana;
Maheirie, 2017). A escola foi utilizada como mecanismo de
colonização com o intuito de integrar a população indígena à
sociedade “civilizada”, desconsiderando suas matrizes cosmológicas,
étnicas e dialetos.
No período de colonização, era dentro dos espaços
dedicados à educação que os indígenas eram impedidos de falar
suas línguas, adorar seus deuses e exercer as práticas que os
tornavam singulares. O espaço educacional era utilizado pelos
colonizadores como um lugar de imposição cultural (Aurora, 2018).
Desse modo, as populações indígenas têm tentado se enquadrar a
essas realidades, no entanto, ainda têm encontrado muitas
dificuldades. A fala da entrevistada reafirmam essas realidades no
ambiente universitário:

[...] Você tem uma dificuldade imensa de


entender, você ouve os professores falando,
mas você não tem a capacidade de interpretar
o que ele tá dizendo, porque você tá
acostumado (sic) numa língua diferente, num
modo de vida diferente (MS. Estigma e Olhar
do Diferente, 2020).

Ao tratar de políticas afirmativas e diversidade cultural, é


possível identificar que o movimento indígena sempre precisou
persistir na luta contra as investidas por parte do Estado, no sentido
de incorporá-los a uma identidade única e universal. Vários foram
os movimentos e tentativas de neutralizar as identidades étnicas
destes povos que sempre estiveram na resistência. A luta indígena
foi encontrando, dentro da lógica dos “de fora”, o espaço para
continuar existindo conforme suas práticas socioculturais. No caso
do espaço escolar, foi buscando se mobilizar no sentido de modificar
a lógica anterior de supressão cultural para um novo modelo que,
não só atenda as necessidades específicas das populações indígenas,

71
mas que construa um diálogo entre formas de conhecimento
distintas (Aurora, 2018).
As reinvindicações por direitos à educação para os povos
indígenas foram mais expressivas a partir da década de 1980, mas
somente com a instituição da Constituição Federal de 1988 (Brasil,
1988) houve maior incentivo por parte da legislação, pois se passou
a garantir o reconhecimento de direitos básicos exigidos pela
população indígena, referente ao seu território e a sua cultura, além
da proposição de programas de inclusão da educação indígena
(Renault; Albuquerque, 2023). A partir desse fato, anos mais tarde,
surgiu a proposta da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
Lei de nº 9.394 do ano de 1996 (Brasil, 1996), a qual decreta o direito
a uma educação específica para essas populações, incluindo sua
linguagem bilíngue e as diversas culturas e tradições de cada grupo
(Ayres; Brando; Ayres, 2023).
Desde então, observou-se o aumento do número de escolas
indígenas, tendo como resultado a grande participação de
estudantes indígenas no ensino fundamental e médio, contribuindo
consequentemente para o surgimento da demanda pelo ensino
superior, bem como de discussões em torno da temática, para que
seja garantido também o acesso à universidade as estudantes
indígenas (Bergamaschi; Doebber; Brito, 2018).
Todas essas iniciativas, proporcionaram a implementação
das ações afirmativas para ensino superior, impulsionando a
consolidação da lei nº 12.711 de 29 de agosto de 2012 (Brasil, 2012),
conhecida popularmente como a “Lei de Cotas”, na qual dispõe em
seu artigo 3º, a obrigatoriedade de reserva de vagas para
autodeclarados indígenas, pretos e pardos nas universidades
públicas e instituições federais (Renault; Albuquerque, 2023).
Ao ingressar na universidade, os estudantes indígenas se
deparam com a metodologia de seleção e classificação social,
determinando quem continuará e quem ficará de fora da
universidade. Por essa razão, ofertar possibilidades de acesso e
permanência aos(às) estudantes indígenas tornou-se uma prática
indispensável para seu desenvolvimento. Além disso, se levarmos
em consideração que os(as) indígenas constituem um dos grupos a
quem foi por muito tempo negado o espaço universitário, a

72
A TRAJETÓRIA E PERMANÊNCIA DE JOVENS INDÍGENAS EM INSTITUIÇÕES DE
ENSINO SUPERIOR NO AMAZONAS: A TRANSFORMAÇÃO DO ESTIGMA EM
PROTAGONISMO

implementação de políticas públicas voltadas para a resolução dessa


problemática relacionada a ingresso e permanência na universidade,
torna-se ainda mais urgente no sentido de reparar a ausência
histórica de indígenas nesse espaço (Coulon, 2017).
Ainda que os avanços das políticas públicas direcionadas
aos(às) estudantes indígenas ao acesso ao ensino superior se
tornassem efetivas, outras questões que são essenciais para a
permanência nas instituições passaram a surgir, e, por conseguinte,
tornavam-se obstáculos para conclusão do curso (Angnest et al.,
2014).
Os debates em torno das problemáticas relacionadas à
permanência dos estudantes contaram com a participação dos
movimentos sociais indígenas do Brasil, que têm atuado como
mediadores, principalmente durante a década de 1970. Seus
esforços foram decisivos para colocar em evidência as
reivindicações das populações indígenas brasileiras, mostrando
tanto interna quanto externamente a realidade dessas populações e
agregando ainda mais atores à militância pela causa. Tais estratégias
perpetradas pelos movimentos sociais protagonizados pelas
populações indígenas se associam diretamente com a atuação desses
povos em relação ao Estado brasileiro que agiu, durante
considerável período da sua história, sustentado pela intenção da
assimilação ou do extermínio dessas populações (Amaral, 2010).
As instituições educacionais foram, e continuam sendo,
espaços que privaram as populações indígenas de suas práticas
étnicas e que frequentemente contribuem para apagar as
identidades culturais dessas populações, no entanto, a forte
organização do movimento indígena contribui significativamente
para o alcance de resultados importantes no que diz respeito à
educação, como o marco legal da Constituição Federal de 1988
(Brasil, 1988) que, finalmente, garante aos povos indígenas um
modelo educacional que respeite as diferenças socioculturais
(Bergamaschi; Doebber; Brito, 2018). A partir daí, organizações e
movimentos ligados à causa indígena passaram a colocar em suas
pautas de reivindicação a implementação de uma educação de
qualidade, gratuita e que considerasse as particularidades étnicas
desses povos. O meio acadêmico deveria ser um ambiente que

73
proporcionasse a continuidade desses direitos, mas, infelizmente,
tem demostrado ser um espaço com poucas, ou nenhuma, ações
educativas inclusivas, de acordo com as narrativas a seguir:

[...] os professores, eles não levam em


consideração as culturas dos acadêmicos
indígenas, mesmo com os acadêmicos
indígenas se auto-afirmando é como se não
fôsse todo mundo igual ali, todo mundo viesse
de um Lato Sensu, todo mundo viesse de um
Martha Falcão, todo mundo viesse de um
colégio militar e não é assim que.....É uma
universidade pública, e acho que isso deveria
ser levado em consideração. Pra (sic) mudar
esse cenário nós nos organizamos ali na
universidade (S. Militância Indígena, 2020).

Portanto, essa não é uma prática geral em todos os cursos e


lugares dentro das universidades, ocorrem como iniciativas
específicas de cursos e também pela iniciativa dos(as) estudantes em
buscar outros pares com os quais se identificam. Às vezes acontecem
também como iniciativas de professores(as) as quais podem auxiliar
ou não nesse processo de inclusão.

Alguns professores que nos deram aquele


apoio ali na universidade e nos ajudaram até a
criar a política de permanência para
acadêmicos indígenas, uma comissão que tem
na UEA, que é nova e que nós fazemos parte e
que vai tratar dessas questões de
heteroidentificação e tudo mais (S. Militância
Indígena, 2020).

Em cenários como esse, a universidade passa a ser buscada


pelas populações indígenas, tanto para a realização de licenciaturas
interculturais indígenas, como para outros cursos. Durante os
últimos anos, essa procura aumentou e se observa hoje uma
quantidade maior de estudantes indígenas nas universidades, sendo
que a efetivação de políticas afirmativas, o aumento de cursos
específicos, bem como a implementação da Lei de Cotas nº

74
A TRAJETÓRIA E PERMANÊNCIA DE JOVENS INDÍGENAS EM INSTITUIÇÕES DE
ENSINO SUPERIOR NO AMAZONAS: A TRANSFORMAÇÃO DO ESTIGMA EM
PROTAGONISMO

12.711/2012 (Brasil, 2012) ainda está em construção (Viana;


Maheirie, 2017). A referida lei dispõe sobre a reserva de vagas no
ensino superior e médio técnico nas universidades e institutos
federais, na proporção de 50% das vagas para estudantes oriundos
de escolas públicas, sendo que destes 50% ficam asseguradas vagas
para pretos(as), pardos(as) e indígenas e para pessoas com
deficiência. Esse instrumento legal fez com que o número de
estudantes indígenas crescesse, embora ainda se faça necessário a
criação de mais estratégias para ampliação do acesso (Bó, 2018).

Presença e Luta indígena: Uma realidade nas


universidades

Durante a pesquisa, e a partir do contato com as mulheres


indígenas universitárias e suas narrativas, foi possível constatar a
necessidade de espaços na universidade para acolher as suas vozes.
Elas levantaram questionamentos sobre como construir de forma
conjunta os estudos que abordam os conhecimentos tradicionais,
aliados aos conhecimentos acadêmicos; além de como considerar os
conhecimentos trazidos pelo movimento indígena, mas, sobretudo
sobre a apropriação dos próprios conhecimentos ocupando o lugar
de sujeito de fala, e, portanto, de direito.

Quando a gente entra e não encontra


ninguém, a tendência e se encolher, a gente
fica acanhada, fica com medo, quer desistir do
curso, tem vontade de não querer ir mais, eu
sentir isso quando comecei a sentir a
dificuldade [...] mas tínhamos que estudar ser
diferente, quebrar o estereotipo que pessoas
têm dos indígenas, que ele é preguiçoso, que
ele é burro [...] mostrar para as pessoas que os
indígenas podem qualquer coisa (S. Militância
Indígena, 2020).

A universidade, assim como a escola, converte-se em espaço


para instrumentalização da luta indígena no sentido de articular os
seus saberes tradicionais com aqueles saberes que são utilizados pelo
Estado para balizar suas ações (Lima; Barroso, 2013). Sendo assim,

75
além dos cursos específicos técnicos e de licenciatura indígena –
cursos mais gerais passam também a ser atrativos.
Para além das políticas públicas que abrem a possibilidade
de acesso ao ensino superior para estudantes indígenas, faz-se
necessário que a sua presença dentro do espaço universitário seja
evidenciada e que seus caminhos sejam mostrados também como
forma de construir o papel e a presença da universidade junto à
comunidade (Amaral, 2010; Renault; Albuquerque, 2023).
A presença indígena, no meio acadêmico, mostra-se como
uma forma de debater o papel da universidade pública, não apenas
em sua dimensão de formação acadêmico-profissional, mas também
com um papel na formação social e no compromisso com a
comunidade, além de proporcionar aos(às) acadêmicos(as) de
modo geral, o convívio com a diversidade (Ayres; Brando; Ayres,
2023).
O espaço universitário, portanto, apresenta-se como
construtor de conhecimento, mas ainda se diferencia das escolas
indígenas que já realizam diálogos interculturais evidenciando os
saberes locais. A universidade pública brasileira ainda se caracteriza
como um espaço de limite para as estudantes indígenas que
vivenciam incompreensões, reconexões e reinvenções identitárias
(Viana; Maheirie, 2017).

As pessoas acham que a universidade é o


espaço que não é para o indígena estar e ainda
tem aquele preconceito, aqueles estereótipos
formados, então é um desafio diariamente é
quebrar estes estereótipos das pessoas e essas
coisas (S. Militância Indígena, 2020).

O meio acadêmico tende a ser menos inclusivo e receptivo


do que as escolas de ensino básico, em função de não ser construído
e preparado para públicos específicos, como a comunidade indígena
(Molina; Ribeiro, 2021). Apesar de a academia ser um espaço de
encontro de múltiplas representações sociais, os encontros
promovidos pelos espaços, por vezes, geram atritos e curiosidades
em relação às origens e práticas de pessoas vistas como diferentes,
em relação ao perfil hegemônico de pessoas constantemente

76
A TRAJETÓRIA E PERMANÊNCIA DE JOVENS INDÍGENAS EM INSTITUIÇÕES DE
ENSINO SUPERIOR NO AMAZONAS: A TRANSFORMAÇÃO DO ESTIGMA EM
PROTAGONISMO

presentes no meio acadêmico, o que pode produzir estigmas e


preconceitos se essas pessoas, na condição hegemônica, não
possuírem a sensibilidade para lidar com a diferença com relação às
pessoas indígenas que, então, precisam lidar com cobranças e
posturas que têm maior relação com a lógica da universidade do que
com seus costumes e cultura (Bó, 2018).
Com o acesso ao espaço universitário, as estudantes
indígenas se deparam constantemente com questionamentos e
provocações por parte de professores(as) e colegas que, em função
do imaginário coletivo que estereotipa por vezes os cobram uma
“autenticidade indígena”, como se o fato de estarem cursando o
ensino superior as fizessem menos indígenas ou “aculturadas”.
Assim, não é tão simples para a maioria dos(as) estudantes que não
conviveram ou tiveram qualquer tipo de interação anterior com
populações indígenas não se apegar aos estereótipos amplamente
difundidos (Viana; Maheirie, 2017).

A experiência da graduação é um grande


impacto acaba sofrendo no decorrer da
trajetória [...] A graduação ela marca porque
pra cursa hoje é difícil [...] os métodos não são
adaptados pra tuas raízes [...] sofremos como
o preconceito com os olhares e
questionamentos dos colegas e dos professores
(M.S. Estigma e Olhar do Diferente, 2020).

Dessa forma as pessoas não estão separadas do meio social


que habitam. Para Bakhtin (1992) não é possível compreender os
seres humanos, sua vida, seu trabalho, suas lutas, senão por meio de
textos signos criados ou por criar. Nesse sentido, o homem não pode
ser estudado como um fenômeno da natureza, como coisa. A ação
física do homem precisa ser compreendida como um ato, porém,
esse ato não pode ser compreendido fora do que sua expressão
significa.
A universidade é hoje um lugar de encontro de realidades
distintas. Contudo, esse espaço vem sendo não apenas ocupado,
como demandado e ressignificado pelas populações indígenas. O
espaço universitário, para as pessoas indígenas, apresenta-se como

77
“transitável, transponível, como situação criativa na qual
conhecimentos são repensados, às vezes reforçados, às vezes
rechaçados, e na qual emergem e se constroem as diferenças étnicas”
(Tassinari, 2001, p. 68).
As narrativas das mulheres indígenas proporcionam a
ressignificação do campo, tanto para os(as) pesquisadores(as),
quanto para as participantes, o que indica que o imaginário social
pode ser ressignificado. Aqueles(as) que há séculos foram vistos no
processo de colonização como inferiorizados(as), entram no cenário
acadêmico com luta e resistência, buscando protagonizar e criticar
atitudes de preconceito, onde todos(as) têm a oportunidade de
refletir e aprender, dando novo sentido à pesquisa e à universidade.
Assim, para Bakhtin (1992) e Vygotsky (1987) o percurso da
pesquisa torna-se também um trabalho de educação e
desenvolvimento para ambas.
A experiência de cursar o ensino superior para estudantes
indígenas vai além das questões comuns enfrentadas pelos(as)
demais estudantes, pela necessidade de encarar e por vezes enfrentar
os estigmas relacionados à sua imagem, e a partir dessas
experiências, construírem o seu protagonismo. Protagonismo esse
que pode lhe servir como mecanismo de luta e é parte integrante da
construção social (Ames; Almeida, 2021).

A Compreensão da realidade social das estudantes a


partir do enfoque Sócio-Histórico: Oportunidade e desafios

Compreender essa realidade social a partir do olhar e da


vivência das estudantes indígenas em sua experiência na educação
superior, dá-nos um panorama das questões enfrentadas
cotidianamente por diversos outros sujeitos que se encontram em
posição semelhante. Em suas narrativas foram retratadas suas
experiências e as dificuldades enfrentadas na universidade, bem
como a maneira que organizavam sua vida social. Como a
historicidade não se caracteriza como uma simples sucessão
cronológica de fatos, mas sim como um movimento determinado
por relações de forças dialeticamente articuladas, as quais se
constituíram no decurso da existência cotidiana dos

78
A TRAJETÓRIA E PERMANÊNCIA DE JOVENS INDÍGENAS EM INSTITUIÇÕES DE
ENSINO SUPERIOR NO AMAZONAS: A TRANSFORMAÇÃO DO ESTIGMA EM
PROTAGONISMO

acontecimentos, muitas vezes, triviais, comuns, mas constituídos


pela totalidade histórica, compreendida sempre como em
movimento, como própria de um período determinado (Aguiar;
Machado, 2016), destacam-se a seguir alguns aspectos que
dificultam a permanência de estudantes indígenas na universidade.
Dentre estas dificuldades, uma das discentes aponta a questão da
linguagem, uma vez que nem todos têm grande fluência na língua
portuguesa, além do fato de muitos não morarem em Manaus:

Eu moro em Manaus, tem acadêmicos


indígenas que não moram em Manaus,
moram nas suas aldeias e precisam viajar pra
Manaus todo período e quando acabam as
férias eles voltam pras suas comunidades, eu
falo português desde que eu nasci, essa é uma
facilidade que outros acadêmicos indígenas
não têm (S. Militância Indígena, 2020).

A construção e reconstrução de relações de pertencimento,


tanto com a sua comunidade de origem, quanto com a comunidade
acadêmica, perpassam dimensões sociais, culturais e econômicas
inerentes a esse momento da trajetória acadêmico-universitária.
Essas relações são pautadas em determinados momentos pelas
necessidades, expectativas e contradições do sistema capitalista,
predominante no ambiente urbano e, em outros, pelas formas de
socialização das comunidades indígenas (Amaral, 2010).
O que mais uma vez se relaciona com as ideias da Psicologia
Sócio-Histórica, ao reafirmar que a necessidade de pertencimento
social é uma condição humana universal, pela qual todos os grupos
e indivíduos lutam incessantemente, ao mesmo tempo em que
sofrem quando não conseguem essa inserção (Tavares, 2014).
A percepção de receptividade encontrada no ambiente
acadêmico pelas estudantes entrevistadas varia em intensidade, mas
traz em comum o fato de inicialmente se sentirem isoladas ou o
estranhamento em relação ao convívio social. Isso ocorre por conta
dos questionamentos feitos às estudantes indígenas sobre quais
foram as motivações para buscar o ambiente universitário. Tais
questionamentos também podem ser identificados como uma

79
cobrança de se comprovar ser indígena (Bó, 2018). Por essa
perspectiva, as estudantes indígenas não enfrentam somente as
barreiras que os(as) estudantes não indígenas enfrentam, mas
precisam passar por todo um processo de validação de suas
identidades. Todo esse processo gera desigualdade social que pode
fazer com elas se isolem do convívio social.
A desigualdade social traz um problema que se traduz na
tensão interna entre o social e o individual, entre a adaptação e
transformação, dessa maneira, a desigualdade desencadeia um tipo
de sofrimento, nomeado como ético-político que se constitui pela
condição social de opressão e se dá devido à desigualdade social
(Sawaia, 2011).
Dessa forma a adaptação à universidade por esse grupo
acaba se complexificando pelo fato de que, além da compreensão
intelectual de conteúdos e regimentos da universidade, as estudantes
poderão vivenciar o sentimento de solidão por não se reconhecerem
nesse novo ambiente. Nesse caso, seria de competência da
universidade elaborar políticas de ensino que pensem esse espaço
social a partir das individualidades, para que as estudantes
identifiquem essa dificuldade, mas se sintam inseridas e não
excluídas dos espaços, para que as barreiras de linguagem e de
cultura sejam mitigadas. A narrativa a seguir demonstra a
dificuldade da participante nesse campo:

Ainda na minha concepção, o grande desafio é


entender a linguagem acadêmica, da matéria
em si. Que foi o que nós ficamos
compartilhando entre nós alunos indígenas.
Essa dificuldade porque, muitos são de áreas
diferentes, nós vamos então numa área que a
gente não conhece muito bem, mas nós
estamos conhecendo, a cada dia a gente
conhece mais (MS. Estigma e Olhar do
Diferente, 2020).

O projeto educacional específico para as populações


indígenas aparece nos discursos como um obstáculo a ser superado.
A relação entre sofrimento ético-político e autonomia, envolve a
dimensão ética dos afetos, com sofrimentos vinculado às relações

80
A TRAJETÓRIA E PERMANÊNCIA DE JOVENS INDÍGENAS EM INSTITUIÇÕES DE
ENSINO SUPERIOR NO AMAZONAS: A TRANSFORMAÇÃO DO ESTIGMA EM
PROTAGONISMO

com a sociedade, nas quais, mediante as afecções, o corpo vivencia


um abaixamento de potência proveniente da passividade, da
servidão ou heteronomia frente a situações de exclusão engendrada
pelas desigualdades sociais (Sawaia, 2011).

Pra cursar hoje uma graduação é difícil


porque você não tem uma educação, eu digo,
uma educação que você consegue absorver
dentro da esfera municipal e estadual, tem
uma dificuldade imensa de aprendizado, os
métodos não são adaptados pra tua realidade.
(sic) Então, muitas das vezes você não
consegue adentrar uma instituição pública,
como é o caso da UFAM, como é o caso da
UEA, quando você... quando você faz o teu
ensino médio, [...] é diferente (MS. Estigma e
Olhar do Diferente, 2020).

Eu tive meu ensino fundamental e médio todo


em Manaus em escolas públicas e já senti essa
dificuldade... e eu penso assim: imagina pra
acadêmicos indígenas que acabaram de
aprender a falar português ou tiveram seu
ensino médio e técnico em suas comunidades,
em suas aldeias e ou tiveram seu ensino médio
e técnico à distância, porque eu já vi vários
relatos assim. Lá no movimento dos
estudantes indígenas do Amazonas a gente vê
[...] indígenas que nasceram e cresceram em
Manaus, indígenas que fizeram o ensino
fundamental no interior ou que fizeram em
algum município ou que fizeram na própria
comunidade; indígenas que falam português
desde que nasceram e indígenas que acabaram
de aprender a falar português, então são
realidades diferentes, a gente não pode
generalizar os estudantes indígenas (S.
Militância Indígena, 2020).

Para falar de sua experiência no ingresso à universidade, a


discente resgata a história de gerações anteriores a sua que
militaram. A entrevistada ressalta a importância das lutas da mãe e

81
da avó, bem como da importância de ser a primeira a ingressar na
universidade pública junto com o irmão, ao mesmo tempo em que
ressalta a importância do acesso para outros(as) indígenas.

[...] eu sou a primeira pessoa da minha família


a entrar na universidade junto com meu
irmão, que ele entrou também no mesmo ano
que eu. Engraçado que a minha vó e a minha
mãe, elas fizeram parte da luta pela política de
cotas na UEA e eu fui uma das que
ingressaram nessa política de cotas, então eu
me sinto muito agradecida à elas e me sinto no
dever de [...] estar no movimento e manter
essas políticas afirmativas para acadêmicos
indígenas nas universidades para que outros
indígenas tenham a mesma oportunidade que
eu de ingressar no ensino superior, que eles
possam ter a oportunidade de ingressar nesses
espaços acadêmicos, que é um espaço nosso, e
que outras mulheres também possam ter essa
visão de que não, eu tenho que estudar , eu
posso fazer uma universidade, eu posso me
formar, ser o que eu quiser e não ser dependente
de um homem [grifo nosso] (S. Militância
Indígena, 2020).

No campo da Psicologia Sócio-Histórica, as formas de


pensar e sentir o mundo revelam uma integração, por vezes
contraditória, de experiências, de conhecimentos (aspectos
significados), de uma história social e pessoal (mediada pela
ideologia, pela classe social, pelas instituições etc.) e de emoções
vividas (Aguiar, 2000). A seguir a participante em sua narrativa
enfatiza esse conceito:

Eles vieram para Manaus e as meninas


tiveram que trabalhar em casa de família,
sofreram abusos, violências e essas coisas que
nós indígenas sofremos e ainda mais tendo
este impacto social, impacto de repente vir
para a cidade e não conhecer como as coisas
funcionam, aqui tudo tem que ser comprado.
Se quiser sair pra algum lugar tem que pagar

82
A TRAJETÓRIA E PERMANÊNCIA DE JOVENS INDÍGENAS EM INSTITUIÇÕES DE
ENSINO SUPERIOR NO AMAZONAS: A TRANSFORMAÇÃO DO ESTIGMA EM
PROTAGONISMO

passagem, se quiser comer alguma coisa tem


que comprar com dinheiro. É uma diferença
muito grande com que o indígena não está
acostumado. E foi isso que aconteceu, com a
minha avó e com as irmãs dela e entre idas e
vindas da terra indígena pra Manaus, cada
uma dessas filhas da minha bisavó formou
comunidades em Manaus (sic) (S. Militância
Indígena, 2020).

É preciso também que se evite a visão que considera o ser


humano como reflexo do meio social, como um ser passivo,
desprovido da possibilidade de criar, inovar. Trata-se de observar o
ser humano como mediador, justamente pelo fato de considerá-lo
um ser histórico, mais do que cultural ou determinado pelas
condições sociais presentes em seu tempo e espaço. Para que essas
ideias, próprias da perspectiva sócio-histórica, fiquem mais claras,
convém retomar uma questão fundamental: a de natureza humana
versus condição humana (Aguiar, 2000).
Para a autora, torna-se necessário abandonar a ideia de que
existe uma natureza humana, como ponto de partida de caráter
inato e imutável. Portanto faz-se necessário situar a pessoa em seu
contexto histórico e social. Na perspectiva sócio-histórica, a
psicologia, ao estudar a pessoa com este caráter, faz um trabalho
retórico de ocultamento das condições sociais que geram
desigualdades e indivíduos atomizados, passando a fazer parte do
aparato ideológico, o que nos impede de enxergar e compreender a
realidade social e, com ela, a realidade psíquica (Bock; Neves, 1995;
Aguiar, 2000). Portanto, ao pensar no ingresso e permanência dessas
estudantes no contexto acadêmico, devemos considerar o quanto
suas trajetórias interferiram diretamente na individualidade de cada
uma delas para que superassem obstáculos e construíssem seus
caminhos, considerando suas histórias de vida.
A permanência é outro tema importante a ser enfatizado,
pois apesar do acesso e das políticas oferecidas, existem muitos
obstáculos a serem superados para que a estudante se mantenha na
universidade (Bó, 2018). A discente também traz que a realidade
vivenciada ainda não é a ideal para a população indígena.

83
Eu entrei na universidade [...] pela política de
cotas, quando eu estava no ensino médio eu
não tinha nenhuma perspectiva de curso,
nenhuma perspectiva de cursar o ensino
superior, isso. porque a minha mãe, ela só tem
o ensino fundamental incompleto, então ela
dizia que a gente tinha que estudar (S.
Militância indígena, 2020).

A entrevistada ainda ressalta as políticas de assistência


estudantil, mas destaca que nem todos os(as) acadêmicos(as) em
situação de vulnerabilidade têm acesso.

Depois que eu fui me engajando mais no


movimento, eu fui ter acesso às políticas de
permanência que têm na universidade do
Amazonas, que é uma porcentagem bem
pequena, mas ela abrange alguns acadêmicos,
não é o ideal, porque o ideal seria que todos os
acadêmicos que tiverem em vulnerabilidade
tivessem acesso à essas políticas de
permanência; como auxílio transporte, auxílio
moradia, auxílio financeiro, auxílio aluguel e
casa do estudante, que são os auxílios que têm
lá. E ali não, se você tem uma bolsa de
Iniciação científica você já não pode ter o
auxílio financeiro, um auxílio aluguel; como se
R$ 400,00 fosse muito dinheiro. Isso eu passei
ali na universidade, e quando eu entrei em
2015 eu não tive nenhuma referência de
acadêmicos indígenas ali; as pessoas entram
na política de cotas como indígenas e se
escondem na universidade; não sei se por
medo deve ser sim com certeza por medo do
preconceito que há na universidade, mesmo a
universidade sendo um espaço em que as
pessoas são mais mente aberta e tudo mais,
mas há um preconceito, a universidade, ela
não está pronta para receber acadêmicos
indígenas [. ] nem estrutural e nem a política
que há ali dentro; (S. Militância Indígena,
2020).

84
A TRAJETÓRIA E PERMANÊNCIA DE JOVENS INDÍGENAS EM INSTITUIÇÕES DE
ENSINO SUPERIOR NO AMAZONAS: A TRANSFORMAÇÃO DO ESTIGMA EM
PROTAGONISMO

O exemplo que a entrevistada destaca abaixo se caracteriza


como uma dificuldade/desafio a ser enfrentado, pois a
desperiodização é a materialização da dificuldade enquanto aluna
da universidade para acompanhar os períodos regulares.

E a desperiodização também foi um desafio


que eu tive, porque eu precisei, não tinha
como focar só no estudo, precisava comer, eu
tive que trabalhar, eu tive que estagiar, eu tive
que fazer iniciação científica. Acho que estes
são os principais desafios da minha trajetória
acadêmica e as facilidades são essas em
comparação com outros acadêmicos
indígenas (S. Militância Indígena, 2020).

A trajetória acadêmica de mulheres indígenas a partir de


suas narrativas, a partir da abordagem sócio-histórica, não é
percebida somente como um encontro de psique individual, e sim,
como a relação de suas narrativas com o contexto que vivem.
Vygotsky (1987) em seus estudos ressaltava sobre estudar os
fenômenos em meio aos seus processos de mudanças que
acontecem em suas histórias de vida, sabendo que o
desenvolvimento e o aprendizado acontecem na relação social com
o outro. Desse modo, foi possível refletir sobre o percurso que as
mulheres indígenas realizaram até/na universidade, bem como a sua
permanência nesse lugar, articulando dialeticamente com os
aspectos externos e internos ao qual pertenciam (Araújo, 2020).

Considerações Finais

A instituição de uma política pública que garanta a reserva


de vagas para o acesso de estudantes indígenas nas universidades
públicas foi um marco importante, resposta a lutas e discussões
travadas durante muito tempo, e seu resultado se apresenta como
efeito positivo no sentido de trazer para dentro do ambiente
acadêmico, estudantes pertencentes a grupos culturais e étnicos que
historicamente não tiveram oportunidade de fazer parte da
comunidade acadêmica. No entanto, faz-se necessário criar ou rever

85
políticas institucionais que possibilitem a esses(as) estudantes
permanecerem na universidade até a conclusão de seus cursos.
O fato de a universidade ser situada, via de regra, em
ambiente urbano, faz com que muitos(as) estudantes indígenas que
vivem em suas comunidades precisem se deslocar para lugares onde
não possuem algum tipo de suporte para garantir sua estadia e
manutenção das suas necessidades materiais, uma vez que a lógica
vigente nesses espaços é a do capitalismo. Como foi mencionado em
uma das entrevistas, “na cidade tudo precisa ser comprado” (S.
Militância Indígena, 2020).
Pensar em políticas afirmativas que favoreçam maior
diversidade cultural, criar possibilidades para viabilizar a presença e
a luta indígena na realidade das universidades e tentar compreender
a realidade social dessas estudantes, a partir do enfoque sócio-
histórico, permitiu-nos entender que, apesar de existirem políticas
públicas de acesso e permanência, ainda nos falta compreensão e
iniciativa para transformarmos as universidades públicas em um
espaço inclusivo, de respeito à diversidade e que, sobretudo,
considere as subjetividades das estudantes.
A partir desse contexto, observa-se que as Universidades,
tais como as sabemos hoje, necessitam movimentar-se em direção
ao respeito à diversidade de forma mais ampla, buscando garantir
um espaço social democrático e plural em que seja possível discutir
temáticas dos mais variados assuntos, para que as pessoas possam
relacionar-se melhor consigo mesmas e com os demais,
proporcionando o respeito com os distintos grupos e culturas que
fazem parte dessa comunidade. Os espaços de interação oferecidos
pelas instituições universitárias, assim como os sujeitos envolvidos
nas dinâmicas dos processos educacionais oferecidos, devem ser
capazes de atender a pluralidade de identidades sociais que
adentram as universidades para a realização do ensino superior.
Cabe também destacar que as trajetórias nas narrativas são
cheias de obstáculos e vitórias. Histórias ricas, repletas de ações e
iniciativas mobilizadoras, singulares a cada mulher, as quais nos
serviram para repensar as políticas públicas para essa população,
principalmente no que diz respeito à trajetória educacional.

86
A TRAJETÓRIA E PERMANÊNCIA DE JOVENS INDÍGENAS EM INSTITUIÇÕES DE
ENSINO SUPERIOR NO AMAZONAS: A TRANSFORMAÇÃO DO ESTIGMA EM
PROTAGONISMO

Por essa razão, as falas das entrevistadas, apresentadas ao


longo deste trabalho, merecem destaque e expressam a necessidade
de um protagonismo em que essas mulheres se reconhecem como
tendo vez e voz, não necessariamente necessitando de um(a)
pesquisador(a) que fale por elas, afirmação levantada pelas
participantes para repensarmos formas de pesquisar. As narrativas
proporcionaram compreender que as mulheres indígenas enfrentam
ainda mais dificuldades do que as mulheres não indígenas. Pois, o
fato de serem indígenas e mulheres implica em uma série de
situações de enfrentamentos, tais como sexismo, preconceitos por
conta de seus estereótipos e problemas relacionados à destruição de
seus territórios que, consequentemente, contribui para perda da sua
identidade cultural.
Por fim, ressaltamos a importância de construções coletivas
em todos os campos da academia, mas que envolvam essas
estudantes como donas de suas vozes e as coloquem como
protagonistas, de fato e de direito.

Referências

AGUIAR, Wanda Maria Junqueira. Reflexões a partir da psicologia


sócio-histórica sobre a categoria consciência. Cadernos de
Pesquisa, São Paulo, nº 110, p. 125-142, julho/ 2000. Disponível
em: <https://www.scielo.br/j/cp/a/
QHT4tkkNMMhD7dDnfwKpffF/abstract/?lang=pt>. Acesso em:
20 de outubro de 2023.

AGUIAR, Wanda Maria Junqueira de. MACHADO, Virgínia


Campos. Psicologia Sócio-histórica como fundamento para a
compreensão das significações da atividade docente. Estudos de
Psicologia, Campinas, v. 33, n. 2, junho, 2016. Disponível em:
<https://www.scielo.br/j/estpsi/a/9j9Dk8S6PjT7MGjnNZTRKBr/
abstract/?lang=pt#>. Acesso em: 03 de set. de 2023.

AMARAL, Wagner Roberto do. As Trajetórias dos Estudantes


Indígenas nas Universidades Estaduais do Paraná: Sujeitos e
Pertencimentos. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação
em Educação. Universidade Federal do Paraná. 2010. Disponível

87
em: <https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/23999?show=full>.
Acesso em: 15 de outubro de 2023.

AMES, Valesca Daiana Both; ALMEIDA, Marilis Lemos. Indígenas


e ensino superior: as experiências universitárias dos estudantes
Kaingang na UFRGS. Sociologias, Porto Alegre, ano 23, n. 56, p.
244-275. jan-abr, 2021. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/
soc/a/RyzKkWdwLxzxKf94kfb3rfC/?format=pdf>. Acesso em: 20
de set. de 2023.

ANGNEST, Juliane Sachser; FREITAS, Maria de Fátima Quintal de;


KLOZOVSKI, Marcel Luciano; MATTOS, Sandra Mara Matuisk;
COSTA, Zoraide Fonseca da. Permanência na universidade: o que
dizem os estudantes indígenas da universidade Estadual do Centro
Oeste do Paraná. Holo. Rio Grande do Norte. Vol. 6, dezembro de
2014. Disponível em:<https://www2.ifrn.edu.br/ojs/index.php/
HOLOS/article/view/1658>. Acesso em 10 de outubro de 2023.

ARAÚJO, Ivone Sampaio Rocha de. Conselho de Classe: as


significações de professores e estudantes acerca da presença e da
participação discente: um estudo na perspectiva da sócio-
histórica. Dissertação (Mestrado em Educação: Formação de
Formadores) – Programa de Estudos Pós- Graduados em
Educação: Formação de Formadores, Pontifícia Universidade
Católica, São Paulo, 2020. Disponível em: <https://sapientia.pucsp.
br/handle/handle/23557>. Acesso em: 10 de outubro de 2023.

AURORA, Braulina. Estudantes indígenas: a invisibilidade nas


instituições de ensino e nos dados estatísticos. Revista de Estudos
em Relações Interétnicas | Interethnica, Brasília [S. l.], v. 21, n. 3,
p. 3–7, 2018. Disponível em: <https://periodicos.unb.br/index.php/
interethnica/article/view/21197>. Acesso em: 13 de outubro de
2023.

AYRES, Ariadne Dall’acqua; BRANDO, Fernanda da Rocha;


AYRES, Olavo Martins. Presença indígena na universidade como
retomada de território. Revista Brasileira de Educação, v. 28,
e280060, 2023. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rbedu/a/
4TPxh9Xgf4FL5QCKG7MbkYw/>. Acesso em: 09 de setembro de
2023.

88
A TRAJETÓRIA E PERMANÊNCIA DE JOVENS INDÍGENAS EM INSTITUIÇÕES DE
ENSINO SUPERIOR NO AMAZONAS: A TRANSFORMAÇÃO DO ESTIGMA EM
PROTAGONISMO

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins


Fontes, 1992.

BERGAMASCHI, Maria Aparecida; KURROSCHI, Andreia Rosa


da Silva. Estudantes Indígenas no Ensino Superior: o Programa de
Acesso e Permanência na UFRGS. Dossiê Políticas Educativas,
Porto Alegre, v. 6, n.2, p. 1-20, 2013. Disponível em: <https://seer.
ufrgs.br/index.php/Poled/article/view/45654>. Acesso em: 10 de
setembro de 2023.

BERGAMASCHI, Maria Aparecida; DOEBBER, Michele Barcelos;


BRITO, Patrícia Oliveira. Estudantes indígenas em universidades
brasileiras: um estudo das políticas de acesso e permanência.
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Brasília. v. 99, n. 251,
p. 37-53, 2018. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rbeped/a/
dx8gDkg34fWLQw7DvCbjhyz/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em:
04 de outubro de 2023.

BÓ, Talita Lazarin Dal’. A presença de estudantes indígenas nas


universidades: entre ações afirmativas e composições de modos
de conhecer. Tese (Doutorado em Antropologia Social,
Universidade de São Paulo, 2018). Disponível em: <https://www.
teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-25102018-105344/pt-br.
php>. Acesso em: 05 de outubro de 2023.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República


Federativa do Brasil. Brasília/DF: Senado Federal. Disponível em:
Constituição (planalto.gov.br). Acesso em: 01 de outubro de 2023.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. LDB nº


9.394 de 20 de dezembro de 1996. Brasília/DF: MEC, 1996.
Disponível em: L9394 (planalto.gov.br). Acesso em: 01 de outubro
de 2023.

BRASIL. Lei de cotas. Lei Federal nº 12.711 de 29 de agosto de


2012. Brasília: Casa Civil, 2012. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm>.
Acesso em: 20 de outubro de 2023.

89
BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Resolução nº 466/2012.
Brasília: Conselho Nacional de Saúde, 12 de dezembro de 2012.

COULON, Alain. O ofício de estudante: a entrada na vida


universitária. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 43, p 1239-
1250,2017. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/ep/a/
Y8zKhQs4W7NYgbCtzYRP4Tb/?format=pdf&lang=pt>. Acesso
em: 04 de outubro de 2023.

FAUSTINO, Rosângela Célia; NOVAK, Simone Jacomini; LANÇA,


Vanessa de Souza. Educação, trabalho e gênero na sociedade
indígena: estudo sobre os Kaingang de Faxinal no Paraná. Revista
Emancipação, 2010. Disponível em: <https://revistas.uepg.br/
index.php/emancipacao/article/view/Emancipacao.v.10i1.341350>.
Acesso em: 04 de outubro de 2023.

LIMA, Antonio Carlos de Souza; BARROSO, Maria Macedo


(Orgs.). Povos indígenas e universidade no Brasil: contextos e
perspectivas, 2004-2008. E-papers, Rio de Janeiro, 2013. Disponível
em: <http://laced3.hospedagemdesites.ws/laced/pdfs/
LivroPovosIndigenas.pdf>. Acesso em: 02 de outubro de 2023.

MOLINA, Karina da Silva Paula; RIBEIRO, Regina Costa.


Mulheres Indígenas Universitárias: Problematizando Ações
Afirmativas. Revista Diversidade e Educação, v. 9, n. Especial, p.
287-313, 2021. Disponível em: <https://periodicos.furg.br/divedu/
article/view/12633>. Acesso em 12 de setembro de 2023.

OLIVEIRA, Guilherme Sacheto; PACHECO, Zuleyce Maria Lesa;


SALIMENA, Anna Maria de Oliveira; RAMOS, Camila Messias;
PARAÍSO, Alanna Fernandes. Método bola de neve em pesquisa
qualitativa com travestis e mulheres transexuais. Saúde Coletiva,
(11) n. 68, 2021. Disponível em: <https://revistasaudecoletiva.com.
br/index.php/saudecoletiva/article/view/1832>. Acesso em: 05 de
outubro de 2023.

RENAULT, Cláudia Regina Nunes dos Santos; ALBUQUERQUE,


Alessandra Rocha de. Perfil e trajetória acadêmica de estudantes
indígenas da Universidade de Brasília. Educação, [S. l.], v. 48, n. 1,
p. e127/1–22, 2023. Disponível em: <https://periodicos.ufsm.br/

90
A TRAJETÓRIA E PERMANÊNCIA DE JOVENS INDÍGENAS EM INSTITUIÇÕES DE
ENSINO SUPERIOR NO AMAZONAS: A TRANSFORMAÇÃO DO ESTIGMA EM
PROTAGONISMO

reveducacao/article/view/67784>. Acesso em 23 de outubro de


2023.

ROCHA, Termisia Luiza; SILVA Gilson Pequeno; OLIVEIRA


Guilherme Saramago. Metodologia de pesquisa científica: análise
do discurso - conceitos e possibilidades. Cadernos da Fucamp,
Minas Gerais, v.21, n.53, p.215-225 /2022. Disponível em: <https://
revistas.fucamp.edu.br/index.php/cadernos/article/view/2913>.
Acesso em 10 de setembro de 2023.

SAWAIA, Bader Burihan. Da consciência à potência de ação: um


movimento possível do sujeito revolucionário na psicologia social
laneana. Psicologia Social e seus movimentos: 30 anos de
ABRAPSO. Editora Universitária UFPE. Recife, 1. ed. (pp. 35-51),
2011. Disponível em: <https://site.abrapso.org.br/wp-content/
uploads/2021/11/Livro-XVI-Encontro-Nacional-da-ABRAPSO-
Psicologia-social-e-politicas-de-existencia.pdf>. Acesso em: 23 de
outubro de 2023.

TASSINARI, Antonella. Escola indígena: novos horizontes teóricos,


novas fronteiras de educação. In: SILVA, Aracy Lopes; FERREIRA,
Mariana Kawall Leal (Orgs.). Antropologia, História e Educação:
a questão indígena e a escola (pp. 44-70). São Paulo: Global, 2001.

TAVARES, Rosana Carneiro. O sentimento de pertencimento social


como um direito universal. Cad. de Pesq. Interdisc. em Ci-s.
Hum-s., Florianópolis, Santa Catarina, ISSN 1984-8951 v.15, n.106,
p. 179-201 – jan./jun. 2014. Disponível em: <https://periodicos.
ufsc.br/index.php/cadernosdepesquisa/article/view/1984-
8951.2014v15n106p179>. Acesso em: 24 de setembro de 2023.

VIANA, Iclicia; MAHEIRIE, Kátia. Identidades em Reinvenção: O


Fortalecimento Coletivo de Estudantes Indígenas no Meio
Universitário. Rev. Polis e Psique. 7(3): 224–249.20. Disponível em:
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S2238-
152X2017000300013&script=sci_abstract>. Acesso em: 20 de
outubro de 2023.

91
VYGOTSKY, Lev Semionovich. História del desarrollo de las
funciones psíquicas superiores. Habana: Editorial Científico
Técnica,1987.

Mini Currículo

Rosemary Amanda Lima Alves


Psicóloga clinica, atua na prevenção e intervenção em casos de
abuso sexual infanto-juvenil e outras violências. Mestranda do
Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal
do Amazonas, na linha de Pesquisa Processos Psicossociais.
Desenvolve pesquisas para prevenção de violências sexuais contra
crianças e adolescentes na Amazônia. E-mail:rosemary.alves@ufam.
edu.br Lates: http://lattes.cnpq.br/7216458960306096

Raniele Alana Lima Alves


Mestre em saúde pública do ILMD - FIOCRUZ/Amazônia,
vinculada ao Laboratório de Histórias e Políticas de Saúde na
Amazônia - LAHPSA. Pós-graduada em Saúde Pública com ênfase
em Saúde da Família e Saúde indígena. Possui graduação em
Enfermagem e atualmente é Professora do Departamento de Saúde
Coletiva da Faculdade de Medicina da UFAM. E-mail: raniele.
[email protected]. Lates: http://lattes.cnpq.br/3457522272610602

Maria do Socorro Elias Gamenha


Mulher indígena do Povo BANIWA do Amazonas. Possui
graduação em Serviço Social pela Escola Superior Batista do
Amazonas(2019). Mestrado em andamento em Antropologia Social
(2020). E-mail: [email protected]. Lates: http://lattes.cnpq.
br/1715290658680521

Vanderlécia Ortega dos Santos (Wanda Witoto)


Mulher indígena do Povo Witoto do Amazonas. Profissional de
Enfermagem pelo Centro Literatus (2012), atuou como servidora
pública na Fundação Alfredo da Matta, Cursa Licenciatura em
Pedagogia na Universidade do Estado do Amazonas, Coordenadora
do Movimento dos Estudantes Indígenas do Estado do Amazonas-

92
A TRAJETÓRIA E PERMANÊNCIA DE JOVENS INDÍGENAS EM INSTITUIÇÕES DE
ENSINO SUPERIOR NO AMAZONAS: A TRANSFORMAÇÃO DO ESTIGMA EM
PROTAGONISMO

MEIAM.E-mail: [email protected]. Lates: http://lattes.cnpq.


br/6730787634026380

Consuelena Lopes Leitão


Formação em Psicologia pela Ulbra. Mestrado em Psicologia Social
pela UFPB e Doutorado em Antropologia pela UFAM. Trabalha
com ensino, pesquisa e extensão em atividades coletivas.
Atualmente professora da Faculdade de Psicologia e do PPGPSI/
UFAM. E-mail: [email protected] Lates: http://lattes.cnpq.
br/6269837680965021

Iolete Ribeiro da Silva


Doutora em Psicologia, Professora Titular da Universidade Federal
do Amazonas (UFAM), credenciada como docente no Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da UFAM, Programa de Pós-
Graduação em Educação da UFAM. Bolsista Produtividade CNPq.
E-mail: [email protected]; Lattes: http://lattes.cnpq.br/
6024598140248335

93
OS ATRAVESSAMENTOS DO
RACISMO ESTRUTURAL NO
BRASIL: HERANÇAS DE UMA
SOCIEDADE COLONIAL
ESCRAVOCRATA
Melquides Felipe de Gois Maia Neto
Caní Jakson Alves da Silva

Introdução

O racismo, como fenômeno estrutural e institucional, é um


componente ativo das relações sociais que incide na política,
economia, cultura, educação, mercado de trabalho nas instituições e
em todo o conjunto da vida social (Almeida, 2019). Desse modo,
analisar a violência racial a partir da realidade brasileira requer
apreender primeiramente a sua trama histórica e indicar prováveis
determinantes da questão racial que podem contribuir, cedo ou
tarde, direta ou indiretamente, para o aumento das Mortes Violentas
Intencionais (MVI’s) da população negra.
Os níveis de violência contra a população negra no Brasil,
em função do racismo estrutural e dos resquícios de uma sociedade
escravocrata, são advindos de um processo de formação social com
base na colonização, seguido do modelo econômico moldado pela
escravização de pessoas traficadas de diferentes países da África, à
qual homens brancos, colonizadores europeus, estabeleceram suas
lógicas, através da violência, por cerca de quatro séculos (Souza,
2017; Almeida, 2019). Essas lógicas atravessam a cultura e moldam
subjetividades até os tempos atuais, pois o preconceito e a
discriminação racial aparecem como resultado de lógicas coloniais,
que marginalizam e exterminam corpos negros.
O infográfico “Violência contra pessoas negras no Brasil
2022” publicado pelo Fórum de Segurança Pública, com dados
referentes a 2021, expõe que 408 mil pessoas negras no Brasil foram
assassinadas na última década, indicando 1,8% do aumento da
violência racial no Brasil no último ano (ABSP, 2023). O racismo
tem funções relacionadas ao poder do Estado, estabelece grupos que
merecem viver e os que merecem morrer, entre os que terão a vida
prolongada e os que serão deixados para morte (Almeida, 2019).
Nessa perspectiva, o presente capítulo objetiva apresentar
dados sobre a dinâmica contemporânea da violência no Brasil sobre
a população negra, considerando os efeitos do racismo estrutural na
sociedade. Assim, o estudo é fundamentado no materialismo
histórico, articulado com dados de natureza documental, utiliza as
informações disponíveis no Anuário Brasileiro de Segurança
Pública (ABSP, 2023), dialoga de forma crítica com a realidade
social e pensa formas de enfrentamento dessas violências
estruturais.
O presente estudo contextualiza inicialmente a
historicidade do povo negro no Brasil, comentando sobre as
condições de vida do negro nos últimos séculos. Em seguida são
expostos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e
Mortes Violentas Intencionais (MVI’s) em 2022 e é detalhado, em
seguida, o perfil de vítimas de violências sexuais no país. Por fim, os
dados relativos à população carcerária no país são abordados de
forma crítica.

A Escravidão no Brasil

Historicamente, a escravidão se estruturou no Brasil


colonial, na conquista, povoamento e no aproveitamento econômico
dos portugueses que expulsaram, mataram e escravizaram os
indígenas, legítimos donos das terras (Holanda, 2014). A
colonização gerou diversas reações dos povos indígenas, dentre as
quais a promoção de grandes deslocamentos para escapar da
escravidão e, principalmente, das consequências das enfermidades
trazidas pelos europeus provocadoras da disseminação
populacional dos povos originários das terras brasileiras (Schwarcz;
Starling, 2015).

96
OS ATRAVESSAMENTOS DO RACISMO ESTRUTURAL NO BRASIL: HERANÇAS DE
UMA SOCIEDADE COLONIAL ESCRAVOCRATA

Os diferentes trabalhos compulsórios impostos aos povos


indígenas, resultaram em conflitos entre o projeto colonial dos
missionários e as culturas indígenas, dificultando o avanço da
escravidão desses povos no período de 1540 até 1570 (Cunha, 2013).
No final do século XVI, com o declínio da mão de obra escrava
indígena nos engenhos, os colonos recorrerem aos traficantes de
mercadorias europeus, que passaram a comercializar os povos
africanos para servirem de escravos (Schwarcz; Starling, 2015). Tal
prática de violência colonial resulta na desumanização sistemática e
estrutural da população negra brasileira, apresentando
consequências até os dias atuais.
Na época da colonização, os escravizados eram retirados de
seu habitat e levados à força para outro continente para atender aos
desejos dos homens brancos, colonizadores. Eram amarrados pelo
pescoço com cabo de madeira e um pedaço de couro seco,
transportados por caravanas até alcançar a costa litorânea da região
compreendida entre Senegal e Moçambique, onde eram colocados
no porão do navio negreiro (Leite, 2017). O navio negreiro
brasileiro era uma embarcação grande e bem armada, de convés
amplo, três mastros, velas latinas e tripulada por 161 homens
(Figueiredo; Mello, 2019).
Os negros escravizados vinham presos no porão do navio
negreiro com escotilhas gradeadas, amontoados num
compartimento cuja altura raramente ultrapassava cinco pés (1,5
metro); o teto era baixo e o lugar apertado, onde a luz e a ventilação
não entrava; havia ainda uma divisão separando-os pelo sexo e
idade (Araújo, 2021). Todos ficavam sentados entre as pernas uns
dos outros, formando fileiras compactas impossível deitar-se ou
mudar de posição, noite e dia, eram algemados nos pés, nas mãos e
presos uns aos outros por uma comprida corrente, vigiados, mal
alimentados e reprimidos (Duraes, 2023).
Ao chegar no Brasil, os escravos eram colocados em grandes
barracões a fim de melhorarem suas condições físicas, ganhar peso e
melhorar a aparência, antes de serem comercializados em praça
pública (Araújo, 2021). Em todo o período colonial, o tráfico
negreiro foi a atividade importadora mais lucrativa do comércio

97
exterior brasileiro, sendo a maior nação escravista do Novo Mundo
e a que mais dependia de escravos (Leite, 2017).
O tráfico negreiro era uma atividade admitida por lei e
envolvia diferentes nações. No comércio brasileiro os escravos eram
absorvidos pelo cultivo do açúcar, do fumo e do algodão, economia
mineradora e serviço doméstico (Araújo, 2021). Com o passar dos
anos, a abolição da escravatura passou a ser uma exigência
internacional, porém, esse interesse ia além do respeito pela
humanidade, calculava-se os econômicos, acreditavam que um
trabalhador livre custaria menos ao patrão que o escravo, pelo
menos como custo corrente e como investimento, pois, quando
desnecessário, o operário poderia ser dispensado sem qualquer
direito (Mattos, 2023).
As leis foram gradativamente proibindo o tráfico e a
escravidão no Império e nas suas colônias, mas foram ineficazes no
combate à escravidão (Filho, 2018). Em 1781, ocorreu a abolição da
escravatura em Portugal, mas em suas colônias ainda era permitida
essa prática. Em 25 de fevereiro de 1869 proclamou-se a abolição da
escravatura em todo o Império Português, porém, essa prática ainda
persistia no Brasil (Neves e Matos, 2023). Somente em 13 de maio de
1888 ocorreu a emancipação completa através da promulgação da
Lei nº 3.353, conhecida como Lei Áurea, assinada pela Princesa
Isabel (Brasil, 1888).
A Lei de Terras e as políticas de imigração em nada
favoreceram os negros livres daquela época e a Abolição da
Escravidão não foi seguida por nenhum tipo de reforma agrária,
inviabilizando que essas pessoas, agora “livres”, tivessem uma fonte
formal de sustento e trabalho (Filho, 2018). O Brasil, por meio dessa
lei, foi o último país do continente americano a extinguir a
escravidão. No entanto, os proprietários foram isentos de qualquer
indenização, sendo o povo negro recebendo um grau de liberdade
da escravidão, porém sem qualquer tipo de indenização ou amparo
do Estado (Neves; Matos, 2023). Esta libertação foi apenas uma
conquista legal, formal e de interesse puramente comercial, sem
preocupação social nem efeitos práticos (Teixeira, 2023).
Os escravos foram libertados sem condições de ascender na
sociedade, não possuíam emprego, qualificação, direito à moradia

98
OS ATRAVESSAMENTOS DO RACISMO ESTRUTURAL NO BRASIL: HERANÇAS DE
UMA SOCIEDADE COLONIAL ESCRAVOCRATA

ou meios de subsistência e, sendo expostos a condições desumanas


de trabalho, mantendo a condição de explorados, mesmo com uma
“certa liberdade” (Mattos, 2023). A condição de escravo ainda
proporcionava um lugar para morar, roupas e comida, para alguns
deles isso era considerado melhor (Alves; Alencar; Pinheiro e Mota,
2020).
A miséria no Brasil aumentou, os libertos seguiram para
outros estados à procura de oportunidades de trabalho e acabaram
por se sujeitar a qualquer tipo de trabalho, mesmo os mais precários
e explorados para garantirem a sua sobrevivência (Filho, 2018).
Com o fim da escravidão o país necessitava de pessoas que
soubessem cultivar a terra, então o governo brasileiro permitiu a
imigração de estrangeiros europeus com dois objetivos: o cultivo da
terra e o aumento da população branca (Matos, 2023).
Os negros, por sua vez, libertos da escravidão, ainda eram
mantidos nas lógicas da escravidão, pois trocava farinha e feijão
pelas fadigas diárias de trabalho impostas em seus corpos, sofrendo
inclusive, até os dias atuais, o preconceito e a discriminação
oriundos daquela época (Bastos, 2016). Atualmente a desigualdade
persiste nos dias atuais, pois, apesar de não existir mais permissão
legal para a escravidão no Brasil, desde a abolição da escravatura,
permeia o tecido social da sociedade brasileira (Alves; Alencar;
Pinheiro e Mota, 2020).
A análise de Almeida (2019) sobre o racismo estrutural,
destaca-se a importância da relação entre raça e classe social, e
pensar outras intersecções em um problema complexo como o
racismo, se mostra fundamental para uma compreensão crítica mais
aprofundada desse fenômeno. Nesse sentido, a contribuição de
Almeida para o debate crítico sobre o tema se faz importante e
significativa, podendo ser relacionada com os debates sobre
interseccionalidade. O termo interseccionalidade demarca um
paradigma teórico-metodológico do feminismo negro sobre as
condições estruturais do racismo, sexismo e violências correlatas
(Akotirene, 2019). Assim, dialogar com o fenômeno do racismo
estrutural com a interseção de classe faz-se necessária para
compreender de forma crítica a estrutura social do Brasil.

99
A estrutura social brasileira não sofreu alterações
significativas e suficientes para eliminar as desigualdades sociais,
pois as transformações das formas de exploração persistem sob uma
nova roupagem, na qual os velhos conceitos são readequados à nova
realidade social influenciada pela economia de mercado neoliberal
(Ribeiro, 2019). O racismo, fruto desse processo escravocrata,
complexifica-se e se transforma ao longo da trajetória das relações
desiguais de produção e reprodução do capital, nas desigualdades
políticas econômicas e jurídicas (Almeida, 2019).
A sociedade brasileira se encontra hoje essencialmente
desigual, caracterizada pela concentração da renda. O Brasil ostenta
a 87ª posição no ranking mundial de qualidade de vida das Nações
Unidas (IDH/PNUD), no ano de 2021. Segundo o levantamento
divulgado pelo IBGE (2021), entre 10% com maior rendimento per
capita, brancos são 70,5%, enquanto pretos e pardos 27,7%; já entre
os 10% mais pobres, isso se inverte: 74,1% são pretos e pardos, e
25%, brancos, cargos gerenciais são mais ocupados por brancos,
com 69%. Os dados apresentados nos possibilitam vislumbrar os
efeitos do racismo estrutural – conceito melhor desenvolvido na
obra de Sílvio de Almeida – se apresentam na nossa sociedade
através da intersecção de classe (Almeida, 2019).
Para Carneiro (2011), a herança escravista continua
mediando nossas relações sociais, além disso, as relações de poder
geradas durante o período de dominação colonial permanecem até
hoje produzindo efeitos que se traduziram na formação de um
sistema de opressão e dominação racial. Como diz Almeida (2019),
o racismo está enraizado na sociedade e exposto com normalidade
na vida cotidiana, ele institui as ações conscientes e inconscientes,
como estruturante nas relações sociais e na formação do sujeito, ou
seja, a sociedade naturaliza a violência contra pessoas negras.

As vítimas de mortes violentas no Brasil: os negros no


centro do alvo

A partir do avanço no combate ao racismo com matéria


constitucional, internacional e nacional, seria coerente a diminuição
de casos e o alcance aos direitos fundamentais que os negros e

100
OS ATRAVESSAMENTOS DO RACISMO ESTRUTURAL NO BRASIL: HERANÇAS DE
UMA SOCIEDADE COLONIAL ESCRAVOCRATA

negras necessitam. No entanto, o cenário é outro, o povo negro


ainda é subjugado quanto ao acesso a bens sociais coletivos e é
destinado a um processo contínuo de violência (Jesus, 2022). Para
Almeida (2019), essa violência molda a vida social contemporânea,
torna o racismo estrutural e fundamental para toda e qualquer
forma de exploração econômica, isso reforça a condição de que
qualquer um que não esteja dentro dos padrões sociais brancos seja
dado como objeto para o outro.
A Tabela 1 apresenta a distribuição das Mortes Violentas
Intencionais (MVI) da população negra, são formativas do
genocídio negro, tipificadas como homicídio doloso, latrocínio,
lesão corporal seguida de morte, Policiais Civis e Militares Vítimas
de CVLI (Crimes Violentos Letais Intencionais) e Morte por
Intervenção Policial (MIP), feminicídio. Essas variações de crimes
comportam um conjunto de determinantes do racismo estrutural
no Brasil, definidos pela segregação das raças, naturalização da
desigualdade, legitimação do de grupos sociologicamente
considerados minoritários (Almeida, 2019).

Tabela 1 - Mortes violentas intencionais 2022

Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública / Fórum Brasileiro de Segurança Pública. –


1 (2006). – São Paulo: FBSP, 2023.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023 apresenta


dados referentes a 2022, registrando 47.948 (100%) MVI. Dessa
totalidade, 36.872 (76,9%) foram pessoas negras, enquanto brancos
foram 10.884 (22,7%). Esse resultado indica a predominância do
racismo no Brasil. Funciona, de acordo com Danner (2020), como
um recorte na delimitação de quem deve ser mais explorado, mais

101
oprimido, quem deve morrer e quem deve viver, estabelecendo
hierarquias de violência, controle e justiça para que o poder e o
privilégio da população branca esteja sempre se legitimando e
alimentado.
Os resultados da Tabela 1 são condizentes com as ideias
debatidas por Almeida (2019) ao discorrer sobre racismo estrutural,
pois os dados expostos atestam que a relação de violência estrutural
imposta sobre corpos negros, resulta na exclusão, morte e
marginalização dos corpos e da cultura negra no país. Assim,
observa-se que a realidade da história da escravidão negra, mesmo
no período pós-abolição, ainda reflete na sociedade nos dias de hoje,
considerando que as lógicas de opressão e dominação ainda
mantém a população negra em um lugar de marginalização.
Pela Tabela 1 são identificadas cinco formas predominantes
de violentar letalmente pessoas negras, ocorrências que estão
constantemente acima da taxa de 50%, como formas
contemporâneas de violência que substituíram os troncos, as
correntes, o açoite, os grilhões e o capitão do mato. A escravatura,
abolida em termos legislativos em 1888, parece se limitar ao campo
simbólico, pois mesmo tendo sido um grande avanço, não efetivou
de fato a liberdade do povo negro da condição de escravo (Zamora,
2012).
Para Almeida (2019), o racismo torna uma raça subjugada a
outra, justificada por vezes pelas normativas estatais. Nesse sentido,
a Tabela 1 mostra um grande quantitativo da população negra
vítima de Homicídio doloso 30.232 (76,5%), Latrocínio 719 (58,5%),
Lesão corporal seguida de morte 440 (72,1%), Policiais Civis e
Militares Vítimas de CVLI 108 (36,7%), Morte por intervenção
policial 5.342 (83,1). Esses dados nos levam a constatar que a
população negra está exposta a maior grau de violência, nesse caso,
cometidas por forças do Estado que, assim como no decorrer da
história deste país, legitimam a morte sistemática do povo negro.
Estes dados tornam evidente que o racismo é uma herança
inevitável da ordem senhorial e escravocrata, enquanto uma é
tornada essência, a outra é feita apêndice, definida como perigosa,
um risco eminente, uma degeneração biológica, humana, social e

102
OS ATRAVESSAMENTOS DO RACISMO ESTRUTURAL NO BRASIL: HERANÇAS DE
UMA SOCIEDADE COLONIAL ESCRAVOCRATA

racial, que se prolonga e se reproduz em nossos dias na medida que


se mantêm e se revitaliza (Fernandes, 2008)
Chama a atenção o recorte de mulheres, vítimas de
violência letal. Dentre as vítimas de feminicídio, têm-se que 61,1%
eram negras e 38,4% brancas. Nos homicídios, o percentual de
vítimas negras é ainda maior, com 68,9% dos casos, para 30,4% de
brancas (Tabela 1). Esse recorte reafirma os elementos de racismo
no país, advindos de um sistema opressor que é racista, sexista e
classista. Segundo o filósofo camaronês Mbembe (2016), a
necropolítica detém o poder nefasto de decidir quem pode viver e
quem precisa morrer, por isso existem os corpos matáveis, logo é
promovido o extermínio de corpos negros de mulheres periféricas
que não possuem um “valor” perante o Estado. A seguir, serão
observados os gráficos relativos à faixa etária e localidade de mortes
decorrentes de intervenções policiais:

Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública / Fórum Brasileiro de


Segurança Pública. – 1 (2006)- . – São Paulo: FBSP, 2023.

103
Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública / Fórum Brasileiro
de Segurança Pública. – 1 (2006) – São Paulo: FBSP, 2023.

Outro fator central, é a violência policial. A Tabela 1


apresenta que 83,1% das mortes decorrente de intervenções policiais
foram negras; o Gráfico 1 mostra que 75,6% tinham entre 12 e 29
anos e o Gráfico 2 traz que 68,1% do local de ocorrência foram
espaços públicos, ao passo que 15,8% das vítimas de letalidade
policial foram mortas dentro de casa. O cenário aqui analisado
demonstra que o alvo preferencial da letalidade policial são jovens
negros, pobres, residentes nas periferias. Esses indicadores revelam
que a violência policial está diretamente relacionada e atingida pelo
racismo, sendo o funcionamento de suas engrenagens movido por
essa estrutura de opressão.
Os dados permitem construir o perfil das vítimas da
letalidade policial, consolidada historicamente, do racismo que
estrutura a sociedade brasileira. Santos, Freitas e Araújo (2021)
fazem uma ligação ideológica entre o policial da atualidade e o
capitão do mato do regime escravocrata, colacionando as principais
funções mediante o uso de métodos repressores e hostis, alicerçados
pelo poder armado.
Hoje, a segregação racial é vista na relação entre a favela e
seu entorno, em que tais comunidades, historicamente, em sua
maioria, ocupadas por negros que passaram a migrar para as
periferias das cidades após a abolição da escravidão brasileira, são
palco de técnicas de policiamento extremistas herdadas dos
períodos ditatoriais nacionais, e, nesse panorama formado por

104
OS ATRAVESSAMENTOS DO RACISMO ESTRUTURAL NO BRASIL: HERANÇAS DE
UMA SOCIEDADE COLONIAL ESCRAVOCRATA

relações desiguais e conflitantes entre moradores e policiais, ganham


uma forma de segurança tipicamente letal e genocida proposta pelo
Estado e pelas instituições policiais para proteger as elites brancas e
racistas (Oliveira, 2016).

Violência sexual no Brasil: o perfil das vítimas

A violência sexual está presente na construção histórica do


Brasil e recai até os dias de hoje nos corpos femininos negros, os
abusos e violências sexuais por conta da raça e o fator de
permanecer com o preconceito racial, vez que, diariamente vivência
agressão e discriminação, por conta de sua cor de pele (Davis, 2016).
A seguir, veremos dados sobre vítimas de violência sexual no Brasil
no ano de 2022.

Tabela 2: Vítimas de estrupo e estupro de vulnerável, por cor e raça 2022

Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública / Fórum Brasileiro de Segurança Pública. – 1


(2006) – São Paulo: FBSP, 2023.

105
Em relação à violência sexual, a Tabela 2 apresenta o
quantitativo de estrupo e estupro de vulnerável. No total da primeira
variável, das 74.930 pessoas que sofreram dessa violência, 88% das
vítimas eram mulheres e 56% do total eram de pessoas. Na segunda
variável, correspondente à faixa etária, notamos que 40.659 (54%)
eram de crianças e adolescentes de 0 a 13 anos de idade, sendo
22.850 (56,2%) negras. Esses dados demonstram que as pessoas
negras são as principais vítimas de violência sexual no Brasil, em sua
maioria mulheres e crianças. As crianças e adolescente vêm sendo as
maiores vítimas de estupros de vulnerável. Chama a atenção a
proporção de crianças negras vítimas dessa violência. Isso sugere
que elas estão no centro do alvo dos agressores, como um padrão de
vítimas que podem atacar e não chamar tanta atenção da justiça e da
mídia.
A realidade exposta na Tabela 2 vem, de acordo com Davis
(2016), destacando que as mulheres negras brasileiras receberam a
herança cruel de serem o objeto de prazer dos colonizadores. Nos
dias de hoje, a mulher negra, por meio das condições de pobreza,
ausência de status social, e ainda total desamparo, continua a vítima
“fácil”, vulnerável a qualquer agressão sexual.
Tal realidade social é oposta à prevalecente ideia de que a
formação do Brasil se formou obedecendo a um processo imune de
qualquer preconceito e violência, a convicção de que as relações de
raça no Brasil, apresentam-se como características positivas, na
busca de justificar a violência sexual sofrida por mulheres negras,
corroborando para a institucionalização de um crime que remete ao
contexto histórico da escravatura (Nascimento, 2016).
De acordo com Davis (2016), durante a escravidão, a
violência sexual do homem branco sobre as mulheres negras foi
institucionalizada, bem como o direito alegado pelos proprietários e
seus agentes sobre pessoas negras como um todo. Esses atos
seguiram mesmo após a escravidão, junto ao linchamento de
homens negros que teve outros mitos como desculpa para gangs de
homens brancos matarem homens negros e estuprarem as mulheres
negras.

106
OS ATRAVESSAMENTOS DO RACISMO ESTRUTURAL NO BRASIL: HERANÇAS DE
UMA SOCIEDADE COLONIAL ESCRAVOCRATA

O perfil da população carcerária e a reprodução do


racismo estrutural

Segundo Frantz Fanon (2008), a hierarquização racial se


inicia quando o homem branco questiona a humanidade do negro,
colocando este no lugar de selvagem, de não humano. Na
escravidão, o corpo do negro foi objetificado e animalizado,
servindo como instrumento de trabalho e como instrumento de
exploração e abuso sexual (Almeida, 2019). Davis (2018) assinala
que a perseguição contra a população negra se mostrou clara através
dos tempos, desde a escravidão, passando pela construção de leis,
perpetrada pela sociedade e, hoje, mostra o seu reflexo no sistema
prisional brasileiro. Observamos a seguir a Tabela 3 que nos
apresenta os índices da população carcerária no Brasil no decorrer
dos anos no que concerne a raça:

Tabela 3 - Evolução da população prisional por cor/raça Brasil, 2005-


2022

Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública / Fórum Brasileiro de Segurança Pública. – 1


(2006) – São Paulo: FBSP, 2023.

Para Borges (2019) o sistema prisional é a nova senzala,


apresentada como um complexo falido e imerso em uma realidade
de violências em alto grau, que leva aos massacres e se caracteriza
como uma tragédia anunciada. Dessa forma, o sistema prisional é

107
uma das políticas que têm a função de combater, dominar e punir
esse inimigo, tendo como base de seu funcionamento o racismo
institucional na reprodução de práticas discriminatórias
direcionadas à população negra e pobre, apontada como a ameaça
social (Almeida, 2019).
Em relação ao delito de ser negro e aos atravessamentos do
racismo estrutural no sistema prisional brasileiro, a Tabela 3
apresenta o crescimento de 57% de 2005 a 2022 na taxa de pessoas
privadas de liberdade, equivalente a 832.295 pessoas sob a tutela do
Estado. Entre o crescimento da população carcerária, a população
branca apresenta uma variação de 215%, com o percentual reduzido
de 39,8% para 30,4% no ano mais recente, enquanto a população
negra apresenta crescimento de 381,3%, passando de 58,4% do total
de presos negros para 68,2%, o maior da série. Esse crescimento
evidencia o racismo estrutural brasileiro, a predominância de
violência letal com pessoas negras, a qual opera como um fator
determinante na política prisional brasileira, dela sendo integrante.
A análise da Tabela 3 sustenta o olhar para o racismo
estrutural como um fator operante e determinante na política
prisional brasileira, dela sendo integrante. De acordo com Almeida
(2019), o sistema de justiça tem reproduzido padrões
discriminatórios, naturalizando a desigualdade racial. E, para
corroborar esse argumento, em cotejo com os dados apresentados, o
encarceramento é uma ferramenta de manutenção do poder no
sentido de manter a opressão racial, de diferentes formas, com o
objetivo de controlar socialmente a população negra brasileira,
perpetuado principalmente pelo sistema carcerário e pela tentativa
de extermínio desse povo (Borges, 2019).

Considerações Finais

Com base nos dados presentados neste breve ensaio,


tornou-se possível identificar que o racismo determina e homologa
formas de violência contra o segmento negro, ao passo que gera na
sociedade brasileira omissão, menosprezo e negligência diante das
Mortes Violentas Intencionais, da violência sexual e da superlotação
da população negra nos presídios.

108
OS ATRAVESSAMENTOS DO RACISMO ESTRUTURAL NO BRASIL: HERANÇAS DE
UMA SOCIEDADE COLONIAL ESCRAVOCRATA

Esse resultado decorre das condições ultrajantes às quais os


negros africanos foram submetidos durante o processo de
escravização, quando negros e negras perderam a sua “humanidade”
ao terem seus corpos, suas vidas, suas histórias e culturas reduzidos
a uma condição de objeto.
Dessa forma, a opressão revela-se como um fenômeno
persistente e progressivo na sociedade. O Estado, por sua vez,
coloca-se como burguês, racista e segregador, assumindo a cor
branca como hegemônica, empurrando os que estão fora do padrão
branco para a beira da sociedade. Prevalece, assim, o seu aparato
institucional, nesse caso a polícia pondo em prática um verdadeiro
genocídio dos corpos negros, contribuindo para a preocupante
situação de extermínio no Brasil.
Desse modo, o racismo mantém uma sociedade desigual e
hierárquica, potencializada pelo próprio Estado que não avança
para outro lugar, senão em direção a negação desses problemas,
exploração e violência de grupos sociais e a instabilidade civil. Nesse
cenário maniqueísta, parafraseando a obra de Fanon (1961), espera-
se dos condenados da terra o cumprimento de determinados papéis
sociais e a circulação restrita a determinados espaços sociais.
Com séculos de luta, resistência e reinvenção, a cultura e
população negra continua fortalecida, pois mesmo com as
atualizações nas formas de opressão e violências coloniais, o povo
negro continua se reinventando para sobreviver. O racismo
enquanto fenômeno social é uma manifestação complexa nas
formas de relações humanas, por isso não só para compreendermos,
mas para superarmos o racismo, precisamos objetivar respostas
críticas, complexas, concisas e comprometidas com a emancipação
das lógicas de opressão presentes na sociedade.

Referências

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli


Carneiro; Pólen, 2019. Disponível em: <https://files.cercomp.ufg.br/
weby/up/1154/o/Interseccionalidade_(Feminismos_Plurais)_-_
Carla_Akotirene.pdf?1599239359>. Acesso em: 9 julho. 2023.

109
ALVES, Christiane Luci Bezerra; ALENCAR, Jaqueline Kelândia
Ferreira; PINHEIRO, Valéria Feitosa; MOTA, João Luís do
Nascimento. Padrão de inserção da mulher negra no mercado de
trabalho nordestino: notas para o período 2005-2014. Redes.
Revista do Desenvolvimento Regional, 2020, 25.2, p. 2713-2736.
Disponível em: <https://www.redalyc.org/articulo.oa?
id=552068861034>. Acesso em: 9 julho. 2023.

ARAÚJO, Luis Gustavo Costa. A morte feita de pedra: o mercado


de escravizados do Valongo e a necroarquitetura. Rio de Janeiro:
Ed. PUC-Rio, 2021. Disponível em: <http://www.editora.puc-rio.
br/media/A%20morte%20feita%20de%20pedra_book.pdf>. Acesso
em: 20 set. 2023.

ALMEIDA, Sílvio Luiz. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli


Carneiro; Pólen, 2019.

BASTOS, Maria Helena Camara. A educação dos escravos e libertos


no Brasil: vestígios esparsos do domínio do ler, escrever e contar
(Séculos XVI a XIX). Cadernos de História da Educação, [S. l.], v.
15, n. 2, p. 743–768, 2016. Disponível em: <https://seer.ufu.br/
index.php/che/article/view/35556>. Acesso em: 20 set. 2023.

BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli


Carneiro; Pólen, 2019. Ebook, Versão Kindle, 1576p. Disponível
em: <https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/1154/o/
Encarceramento_em_Massa_Feminismos_Plurais_Juliana_Borges.
pdf?1599239135>. Acesso em: 15 de novembro de 2023.

BRASIL. Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888. Lei Áurea. Rio de


Janeiro-RJ, mai. 1888. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/lim/LIM3353.htm>. Acesso em: 15 de novembro de
2023.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil /


Sueli Carneiro — São Paulo: Selo Negro, 2011. Disponível em:
<https://institutoressurgir.org/wp-content/uploads/2018/07/
Racismo-Sexismo-e-Desigualdade-Sueli-Carneiro-1.pdf>. Acesso
em: 15 de novembro de 2023.

110
OS ATRAVESSAMENTOS DO RACISMO ESTRUTURAL NO BRASIL: HERANÇAS DE
UMA SOCIEDADE COLONIAL ESCRAVOCRATA

CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos


e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2013.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo,


2016.

DANNER, Fernando. Biopolítica e racismo de estado: uma leitura


do curso Em Defesa da Sociedade (1975-1976) de Michel Foucault.
Aufklärung, João Pessoa, v. 7, p. 65-80, dez., 2020. Disponível em:
<https://periodicos.ufpb.br/index.php/arf/article/view/56953>.
Acesso em 10 de jul de 2023.

DURAES, Ivan Oliveira. Meio Ambiente do Trabalho Escravo no


Brasil do Século XIX: O testemunho de Mahommah Baquaqua.
Diálogos Interdisciplinares. v. 12, n. 1, p. 308-315, 11 abr. 2023.
Disponível em: <https://revistas.brazcubas.edu.br/index.php/
dialogos/article/view/1248/1063>. Acesso em 10 de julho de 2023.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1961.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato de


Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de


classe. São Paulo: Globo, 2008.

FILHO, Walter Fraga. Pós-abolição: o dia seguinte. In:


SCHWARCZ, Lilia Moritz; GOMES, Flávio (orgs.). Dicionário da
escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

FIGUEIREDO, Barbara Maria Dias; MELLO, Marcella da Silva.


Todo camburão tem um pouco de navio negreiro: a
superpopulação negra nos presídios brasileiros.
16º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais. Brasília, 2019.
Disponível em: <https://broseguini.bonino.com.br/ojs/index.php/
CBAS/article/view/1830/1787>. Acesso em 10 de julho de 2023.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário do


Fórum Brasileiro de Segurança Pública (ABSP). Ano 17. 2023.

111
Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wp-content/
uploads/2023/07/anuario-2023.pdf>. Acesso em 10 de julho de 2023.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 27. ed. São


Paulo: Companhia das Letras, 2014.

LEITE, Maria Jorge dos Santos. Tráfico atlântico, escravidão e


resistência no Brasil. Sankofa -Revista de História da África e de
Estudos da Diáspora Africana Ano X, n. XIX, 2017. Disponível em:
<https://www.revistas.usp.br/sankofa/article/view/137196/132982>.
Acesso: 07 jun. 2023.

MATTOS, Leandra Iriane. As Desigualdades Sociais como Reflexo


da Falta de Políticas Públicas como Mecanismos de Integração dos
Negros Libertos no Brasil República. Revista Avant, Florianópolis,
v. 7, n. 1, p. 110-125, julho, 2023. Disponível em: <https://
repositorio.ufsc.br/handle/123456789/248381>. Acesso em 10
agosto de 2023.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios, n. 32, dez. 2016.


Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/
8993>. Acesso em: 28 junho de 2023.

NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro:


processo de um racismo mascarado. 3. ed. São Paulo:
Perspectivas, 2016.

NEVES, Cleuler Barbosa das; MATOS, Gisele Gomes.


Criminologia do Preconceito: Uma Perspectiva Histórico-
Legislativa do Brasil Colônia à Pré-Abolição da Escravatura.
Revistas de Ciências Jurídicas e Sociais da UNIPAR, 2023, 26.1:
74-98. Disponível em: <https://doi.org/10.25110/rcjs.v26i1.2023-
005>. Acesso em 10 de agosto de 2023.

OLIVEIRA, Enio Walcácer de. A criminalização do negro e das


periferias na história brasileira. Vertentes do Direito. v.3, n.1,
2016.

RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. 1. ed. São


Paulo: Companhia das Letras, 2019.

112
OS ATRAVESSAMENTOS DO RACISMO ESTRUTURAL NO BRASIL: HERANÇAS DE
UMA SOCIEDADE COLONIAL ESCRAVOCRATA

SANTOS, Elizier; FREITAS, Jordânia; ARAÚJO, Shagaly. Todo


camburão tem um pouco de navio negreiro possíveis analogias
entre o capitão do mato e o policial. Salvador, 2010. Facom –
UFBA. Disponível em: <http://www.vienecult.ufba.br/modulos/
submissao/Upload/24834.pdf>. Acesso em 15 de jul de 2023

SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão a lava jato. Rio de


Janeiro: Leya, 2017.

SCHWARCZ, Lia Moritz; STARLING, Helisa Murgel. Brasil: uma


biografia. Editora: Companhia das letras, 2015.

TEIXEIRA, Diana do Carmo. A continuidade da escravidão


brasileira na demora das atualizações jurídicas. Anais do Encontro
Internacional e Nacional de Política Social, 2023, 1.1. Disponível
em: <https://periodicos.ufes.br/einps/article/view/41155>. Acesso
em 10 de agosto de 2023.

UMBERLANDIA, Cabral; GOMES, Irene. Agência de Notícias,


Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Brasil tem 1,7
milhão de indígenas e mais da metade deles vive na Amazônia
Legal. Atualizado em: 27/10/2023. Disponível em: <https://
agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-
denoticias/noticias/37565-brasil-tem-1-7-milhao-de-indigenas-e-
mais-da-metade-deles-vive-na-amazonia-legal>. Acesso em 10 de
agosto de 2023.

ZAMORA, Maria Helena Rodrigues Navas. Desigualdade racial,


racismo e seus efeitos. Fractal: Revista de Psicologia, v. 24, n. 3, p.
563–578, 2012. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/fractal/a/
Qnm4D67j4Ppztvz3tfb4kwx/?lang=pt#>. Acesso em: 28 maio 2023.

Mini currículo

Melquides Felipe de Gois Maia Neto


Amazonense, pardo, psicólogo. Mestrando no Programa de Pós-
graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Amazonas -
UFAM. Membro do Grupo de Pesquisa em Contexto Clínico e
Avaliativos (GePCa) certificado pelo Laboratório de Psicologia e

113
Sociedade da Amazônia (LAPSAM). E-mail: Melquides.
[email protected] Lattes:
https://lattes.cnpq.br/252908607176358

Caní Jakson Alves da Silva


Paraense, negra, psicóloga, não-binária. Mestranda no Programa de
Pós-graduação em Psicologia pela Universidade Federal do
Amazonas - UFAM. Pesquisadora no Laboratório de
Desenvolvimento Humano - LADHU. Compõe a diretoria nacional
da Associação Brasileira de Psicologia Social. Atua também na Miriã
Mahsã e Manifesta/AM. E-mail: [email protected] Lattes:
http://lattes.cnpq.br/7048215293853083

114
A QUESTÃO RACIAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: DESAFIOS E
POSSIBILIDADES

A QUESTÃO RACIAL NA
FORMAÇÃO DE PROFESSORES:
DESAFIOS E POSSIBILIDADES
Fernanda Priscilla Pereira Calegare

Introdução

Este capítulo tem o objetivo de problematizar a atenção


dispensada ao tema do racismo na formação de professores e
professoras, de modo a propor um rompimento com a invisibilidade
dos atravessamentos raciais nos processos educativos nos espaços
escolares. Assim, foi composto a partir das leituras de autoras e
autores que debatem a questão racial e sua interface com a educação.
Passa por questões conceituais básicas sobre Direitos Humanos e
reflexões acerca da estruturação do racismo, sexismo e classismo na
organização da vida e na produção de subjetividades, bem como
reflete sobre os atravessamentos na educação, na Psicologia e nas
diversas dimensões da vida humana.
A metodologia utilizada foi uma revisão bibliográfica sobre
o tema, com base em uma busca avançada no Periódico CAPES de
artigos publicados sobre o tema, com recorte temporal para busca
de produção dos últimos 10 anos.
Na busca avançada com os descritores raça E formação de
professores, no idioma Português, foram encontrados 53 (cinquenta
e três) artigos, destes 44 (quarenta e quatro) em periódicos revisados
por pares. Na distribuição por assuntos, o panorama encontrado foi:
Education & Educational Research (7); Raça (7); Education (7);
Educação (7); Gênero (6); Race (6); Formação (4); Gender (4);
Formação De Professores (3); Special Aspects Of Education (3);
Diversidade (3); History (3); Formação Docente (3); Teacher
Training (3); Social Issues (3); Linguistics (3); Educação Superior (2);
Educação Básica (2); Docência (2); Afro (2).
Já na busca avançada com os descritores racismo E formação
de professores, no idioma Português, foram achados 58 (cinquenta e

115
oito) artigos, destes 42 (quarenta e dois) publicados em periódicos
revisados por pares. Na distribuição de áreas temáticas mais
significativas foram Education & Educational Research (13),
Racismo (9), Racism (8); Formação De Professores (7); Education
(5); Currículo (4).
A partir da leitura do material encontrado, é possível inferir
que os temas de maior recorrência são (i) contribuições da formação
para o trabalho com o tema da diversidade racial; (ii) concepções,
discursos e representações sobre diversidade racial; (iii)
enfrentamentos de desafios para o trabalho com o tema nas escolas;
(iv) implementação dos marcos legais; (v) fragilidades no percurso
formativo para o trabalho com o tema. Também presentes, entre os
temas trabalhados pelos artigos, estão (vi) as estratégias de
formação; (vii) multiculturalismo; (viii) propostas de recursos para
o trato pedagógico da diversidade, com vistas a favorecer a
implementação da Lei nº 10.639/2003 no cotidiano das escolas e,
por fim, (ix) currículo, docência e diversidade.
Dentre os artigos encontrados, destacou-se para esta autora
que alguns trouxeram experiências propositivas em relação ao
debate da temática racial em cursos de formação inicial e em
propostas efetivadas em disciplinas. Foi possível perceber,
analisando a produção, uma conjugação de esforços para promoção
de formação continuada que privilegiam a temática, como forma de
complementar a formação básica que porventura tenha deixado
uma lacuna em relação ao tema. Também despontam como
contribuição para importantes reflexões, artigos que trouxeram
iniciativas de análise e compreensão sobre a identidade profissional
docente em diálogo com a trajetória profissional de pessoa negra e
sua respectiva correlação com a atuação docente.
A partir da leitura do material encontrado, este capítulo será
composto na seguinte estrutura (i) a concepção sobre raça (ii) o
fenômeno do medo como fator estruturante e fortalecedor do
racismo; (iii) a potencialidade da educação no enfrentamento da
estrutura de desigualdades raciais e (iv) a centralidade da questão
racial necessária à formação de professores e professoras.

116
A QUESTÃO RACIAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: DESAFIOS E
POSSIBILIDADES

Concepção de raça

Escrever sobre racismo nos remete inevitavelmente a fatos


do cotidiano que apontam para o debate sobre a questão racial no
Brasil. Não só a denúncia e a interpretação da realidade social e
racial brasileira, mas também o posicionamento da população em
geral, do meio político, acadêmico e científico sobre essas questões
trazem apontamentos importantes para uma discussão. Um dos
conceitos centrais nesse âmbito é o conceito de raça, discutido por
Almeida (2018), que destaca a importância de compreender o seu
significado e coloca que não é um termo estagnado, mas dinâmico,
cujo “sentido está inevitavelmente atrelado às circunstâncias
históricas”. Assim, vemos que “a história da construção política e
econômica das sociedades contemporâneas” está diretamente
relacionada com a história da raça (p. 24). Portanto, com base na
leitura de Almeida, podemos inferir que antes de se consolidar
enquanto estrutura, o racismo se fez nas instituições. “No caso do
racismo institucional, o domínio se dá com o estabelecimento de
parâmetros discriminatórios baseados na raça, que servem para
manter a hegemonia do grupo racial no poder” (p. 40). É nesse
contexto em que as instituições brasileiras, públicas e privadas, são
dominadas por homens brancos como consequência “da existência
de regras e padrões que direta ou indiretamente dificultam a
ascensão de negros e/ou mulheres”.
A partir da compreensão da gênese e estruturação do
conceito de raça como contextualizada, pois histórica e social e,
principalmente, como base para a construção de nossa sociedade do
modo como se dá na atualidade, é possível também pensar como
negros se posicionam e se encontram na sociedade, sobre quais as
possibilidade para as suas formas de viver. Pensando nisso, no
processo de construção da história e da vida das pessoas negras,
refletimos sobre a questão do ser negro/a e/ou tornar-se negro/a,
que se dá, conforme Gomes (2005), a partir de processos culturais,
sócio-políticos e históricos, nos quais os sujeitos vão assumindo as
identidades possíveis, produzidas gradativamente, num movimento
que envolve diversas variáveis, desde as primeiras relações com os

117
grupos sociais em que estão inseridos e as outras relações que
experimentam na sociedade.
As múltiplas identidades sociais que os negros e as negras
vão construindo possuem dimensões pessoais e sociais que não
podem ser separadas. Elas se entrecruzam e estabelecem uma
conexão com a vida social dos sujeitos. Ser negro é um “tornar-se
negro” (Souza, 1983), pois vai muito além dos estereótipos
determinados pela sociedade. É importante, portanto, buscar
entender a construção da identidade negra não somente na sua
dimensão subjetiva e simbólica, mas, sobretudo, no seu sentido
político (Gomes, 2005).
Nesse sentido, dialogamos com a ideia de que é necessário
ouvir e dar visibilidade às histórias, ao ponto de vista e ao modo de
pensar, conceber e viver de pessoas negras, tal como nos inquieta
Chimamanda Adichie (2019) quando nos alerta sobre o perigo das
histórias únicas. Segundo a escritora, cria-se uma única história
quando mostramos um povo como se fosse somente uma coisa, um
objeto do discurso dos outros. Para a escritora, é impossível falar da
história única sem se falar de poder, uma vez que quem conta a
história única é quem detém poder, seja ele econômico, político ou
epistêmico. O poder, para além de ter a capacidade de contar a
história de outra pessoa, consegue fazer com que esta história seja
definitiva (Adichie, 2019).
Partindo dessa reflexão, inquieta-nos a forma como o termo
raça vem sendo concebido e utilizado na sociedade, de maneiras que
podem, inclusive, se contrapor. Um exemplo dessa contraposição é
o uso do termo raça de modo a contribuir com a ressignificação
política atribuída aos próprios negros e negras, principalmente no
campo da militância ou quando é utilizado de forma a categorizar
socialmente um grupo para promover formas de exclusão, violando
direitos e reafirmando estereótipos.
Assim, destacamos que a sociedade brasileira, de modo
geral, faz uso do termo “raça” para nomear, identificar ou falar sobre
pessoas negras, evidenciando o racismo e a inferioridade do negro.
Quando se fala de raça não se inclui o branco. Com isso, o termo
raça se apresenta carregado pelo ranço da escravidão e pelas
imagens construídas do negro e do branco no Brasil (Gomes, 2005).

118
A QUESTÃO RACIAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: DESAFIOS E
POSSIBILIDADES

Daí́ a importância de se perceber o sentido em que esse termo é


utilizado, em qual contexto ele surge, quem fala e o que fala
(Ribeiro, 2017), pois a “raça” foi utilizada em outros tempos com a
ideia de “raças superiores e inferiores”, legitimando atrocidades
contra a humanidade, como aconteceu na Alemanha no século XX.

O fenômeno do medo como fator estruturante e


fortalecedor do racismo

É a partir da ideia da raça, vinculada massivamente à


população negra, tanto como forma de excluir e fortalecer as
exclusões, quanto como forma de fortalecer o protagonismo da
população negra na luta pelos seus direitos, que nos remetemos a
ideia do medo como forma de fortalecimento da estrutura de
desigualdades raciais em nossa sociedade.
Ao discorrer sobre a Psicologia Social do racismo no Brasil,
Bento (2014) menciona que, mormente as diferentes concepções e
práticas políticas desses grupos, há algo semelhante a um acordo no
que diz respeito ao modo como explicam as desigualdades raciais: o
foco da discussão é o negro e há um silêncio sobre o branco. Parece
existir, portanto, uma espécie de pacto, um acordo tácito entre os
brancos de não se reconhecerem como parte absolutamente
essencial na permanência das desigualdades raciais no Brasil.
Entendemos como necessário, portanto, pensar sobre os
diversos fenômenos envolvidos na discriminação racial e, mais
ainda, na manutenção da estrutura de desigualdade racial. Bento
(2014) menciona que a discriminação racial pode ter origem em
outros processos sociais e psicológicos que extrapolam o
preconceito. Nesse sentido, é possível pensar na discriminação
ancorada no desejo de manter o próprio privilégio branco, que seria
a teoria da discriminação com base no interesse, combinado ou não
com um sentimento de rejeição aos negros e negras.
Diante dessa possibilidade explicativa, parece-nos relevante
a questão do sentimento de medo como mantenedor da estrutura
racial de nossa sociedade. A presença de pessoas negras,
historicamente marcadas pela imagem de agressivas, violentas,
violadoras de direitos e criminosas, ocasiona o medo pela própria

119
vida, pela manutenção da ordem e pela segurança dos bens de
consumo da vítima em potencial. Não são raros os casos em que as
pessoas cruzam a rua ao encontrarem pessoas negras, ou apertam a
bolsa contra o próprio corpo com medo de serem vítimas de assaltos
ou situações nas quais pessoas negras são abordadas por seguranças
ou policiais, simplesmente por estarem passando por um local onde
não deveriam estar, ao qual não pertencem, como lojas de luxo,
shopping center etc. Essa é a dimensão mais primária e explícita do
medo. Especialmente direcionado a homens negros, pois como
vimos em Fanon (2008), a imagem do homem negro costuma ser
associada a ideia de violência, força e virilidade.
Assim, os homens negros ainda são associados à imagem de
quem comete assaltos, são julgados e condenados sem provas
quando ocorrem crimes de roubo ou assalto, por exemplo. Um
levantamento feito pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, em
parceria com o Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais
mostrou que os homens negros são, na maioria absoluta (83%) entre
as vítimas de prisões injustas baseadas no reconhecimento facial.
Por outro lado, o Anuário de Segurança Pública mostra que do total
de 47.508 homicídios, 76,9% eram pessoas negras, os registros de
racismo saltaram de 1.464 casos em 2021 para 2.458 no ano passado,
os registros de injúria racial chegaram a 10.990 (FÓRUM, 2023).
O homem negro é, portanto, inserido em um contexto
desde sua infância, onde é identificado como a face do inimigo, a
personificação do crime e da periculosidade, como foi ilustrado no
livro O Avesso da Pele de Jefferson Tenório (2020). A obra conta a
história de Pedro que, após a morte do pai, assassinado numa
desastrosa abordagem policial, sai em busca de resgatar o passado
da família e refazer os caminhos paternos. Com uma narrativa
sensível e tão verossímil que chega a ser brutal, Tenório evidencia
um país marcado pelo racismo e por um sistema educacional falido,
em um denso relato sobre as relações entre pais e filhos. Assim,
embora seja uma ficção, a obra fala muito da realidade vivenciada
pela população negra e o medo mais primário e arcaico é o que mata
as pessoas negras sem prova e sem causa justa, simplesmente
motivado pela cor da pele, que representa o risco à vida.

120
A QUESTÃO RACIAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: DESAFIOS E
POSSIBILIDADES

Associado a esse medo mais primário, existe um medo que


aqui classificamos como secundário, o medo de perder os
privilégios, o medo do que representa a construção da igualdade. É
possível encontrarmos diversas críticas, por exemplo, aos sistemas
de cotas raciais, aos direitos trabalhistas de empregadas domésticas
(em sua maioria mulheres negras). As justificativas são as mais
diversas, desde que são práticas assistencialistas, até o fato de que
são discriminatórias, com base na falácia de racismo contra brancos,
até usando o argumento de que diminui o nível e a qualidade da
formação acadêmica dos egressos das universidades, resultando
posteriormente numa baixa empregabilidade de profissionais que
foram estudantes cotistas.
É importante compreender nesse cenário que existe uma
resistência ao reconhecimento da desigualdade da qual se beneficia,
pois o sistema de cotas é a afirmação concreta das desigualdades, de
que existe um grupo privilegiado por essas desigualdades - pessoas
brancas - e que é preciso combatê-las, utilizando-se para isso, ações
afirmativas. Nesse sentido, a branquitude se torna ponto essencial de
compreensão, pois torna-se sinônimo de vantagens estruturais, de
privilégios raciais, também é um modo de ver e existir no mundo, o
ponto de vista a partir do qual as pessoas brancas olham a si
mesmas, aos outros e à sociedade, além de ser um conjunto de
práticas culturais que são normalmente não-marcadas e não-
nomeadas, pois são tidas como neutras/padrões, portanto, não
precisam ser demarcadas, por exemplo, pela palavra raça como o
caso das práticas culturais da população negra.
Esse é o cenário que favorece o não reconhecimento da
diferença como legítima, pois a branquitude se privilegia da sua
pretensa neutralidade e não quer abrir mão desse privilégio, não
quer olhar de frente o seu próprio racismo (Bento, 2014). Ancorados
na máxima "todos são iguais perante a lei" e na falseada ideia de que
que todos têm a mesma oportunidade, basta que a competência
esteja garantida, os grupos favorecidos pelas desigualdades
reafirmam seus privilégios, mas no fundo, existe um grande medo
da transformação social que é projetada pela luta pela igualdade
racial.

121
As desigualdades raciais evidentes em dados estatísticos de
nossa sociedade evidenciam que alguns são menos iguais que
outros. Cabe-nos, então, o questionamento de quais ameaças estão
em jogo e o que se busca calar, com esses dois tipos de medo
associados. A branquitude busca, portanto, manter com todas as
forças o privilégio construído por séculos, em cima da opressão, do
suor, do sangue e da vida de pessoas negras. Em suma, esses dois
tipos de medo associados, compõem alianças fortes e resistentes em
relação à mudança no perfil racial nos lugares de poder e de decisão
na sociedade.

A potencialidade da educação no enfrentamento da


estrutura de desigualdades raciais

Diante dessa realidade, é importante o questionamento


sobre quais os caminhos possíveis de mudança. Já que a
branquitude, em seus séculos de supremacia e manutenção, não
abrirá mão de seus privilégios, como pode a população negra se
fortalecer e se articular como protagonista dessa luta, pela ocupação
de lugares de poder, de decisão? Como pode a população negra se
articular em favor da construção de uma sociedade mais justa, em
que vidas negras tenham o mesmo valor, oportunidades
semelhantes e, a longo prazo, atuar para uma sociedade mais justa e
igualitária?
Por conta da formação de mulher negra, educadora, que se
constitui e se percebe como pessoa negra na sociedade a partir das
diversas experiências educacionais, desde a educação básica
(experiências que são revividas e ressignificadas a cada vez que é
feita uma leitura ou discussão sobre questões raciais), este capítulo
baseia-se na ideia de que a educação tem grande potencial no
enfrentamento das desigualdades raciais, em especial se pensarmos
o lugar possível para as questões raciais desde a formação inicial de
professores e professoras. Isso pode ter início no reconhecimento da
configuração da população negra, mais pobre e que geralmente é
atendida pela educação pública, nas questões de evasão escolar, nos
dados de violência relacionados à educação, bem como na questão
do currículo etc. É preciso, portanto, pensar a construção de uma

122
A QUESTÃO RACIAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: DESAFIOS E
POSSIBILIDADES

escola que seja antirracista, que tenha suas práticas embasadas na


realidade da população que é por ela atendida.
Quando analisamos os indicadores de escolaridade da
população com recorte de raça, os dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística IBGE (2018) apontam uma evidente
desvantagem da população negra ou parda. Já na Educação Infantil,
o acesso a esse direito apresenta índices diferentes, conforme o
grupo racial: 53% das crianças pretas ou pardas de 0 a 5 anos de
idade frequentavam a creche ou escola em 2018, contra 55,8% das
crianças brancas.
Entre a população preta ou parda, a taxa de analfabetismo
das pessoas de 15 anos ou mais é de 9,1%, enquanto o mesmo
indicador é de 3,9% na população branca. Entre a população negra
ou parda, a proporção de pessoas de 25 anos ou mais com pelo
menos o Ensino Médio completo é de 40,3%. Já entre os brancos, o
índice é de 55,8%. A proporção da população preta ou parda entre
18 e 24 anos com menos de 11 anos de estudo e que não
frequentavam a escola em 2018 era de 28,8%, frente 17,4% de
brancos na mesma situação. Essa profunda desigualdade escolar tem
reflexos graves, como na renda e na expectativa de vida dessas
populações.
De acordo com os dados trazidos pelo Relatório
Reprovação, Distorção Idade-série e abandono escolar, do Fundo
das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, 2019), metade dos
mais de 910 mil estudantes que deixaram as escolas municipais e
estaduais de todo o país em 2018 eram pretos e pardos (453 mil).
Além disso, as populações preta, parda e indígena têm entre 9% e
13% de estudantes reprovados, enquanto entre brancos esse
percentual é de 6,5%.
Também vale notar que, de acordo com o documento do
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (Carvalho, 2018), Perfil do Educador da Educação Básica,
realizado com dados do Censo Escolar 2017, 42% de docentes da
educação básica eram brancos, contra 4,1% de pretos e 25,2% de
pardos. Esses dados refletem as desigualdades da sociedade
brasileira e são fruto do racismo estrutural presente em nosso país,
já discutido anteriormente, presente, nas ações e estruturas de

123
diferentes instituições da sociedade, como o próprio ambiente
escolar.
O racismo se configura como uma forma sistemática de
discriminação cujo fundamento é a raça e se manifesta por meio de
práticas conscientes e inconscientes que culminam em desvantagens
ou privilégios para os indivíduos de acordo com o grupo racial a que
pertencem (Almeida, 2018). Assim, é preciso reconhecer a luta de
muitos anos dos movimentos negros – e quais ações e políticas
públicas precisam ser priorizadas para que haja uma educação de
qualidade para todos e todas.
A escola, tal qual as demais organizações da sociedade
brasileira marcadamente influenciadas pelo processo de colonização
e escravização de pessoas negras, foram construídas com base na
estrutura cristalizada da branquitude. Atualmente, a educação
antirracista vem ganhando bastante força, e esse debate tem
produzido estranhamentos para que pessoas negras e não-negras,
brancas e não-brancas, não mais compactuem com essas estruturas.
Configura-se, portanto, uma espécie de chamamento ético, que se
impõe pela força da causa e pela não mais possibilidade de negação
ou silenciamento.
É histórico o processo de negação dos múltiplos locais
ocupados por negros e negras no período da escravatura, como um
reflexo do racismo impregnado em nossa sociedade, que
deliberadamente apaga traços e representações de negritude e
recusa o papel relevante ocupado pelos sujeitos classificados como
negros na construção da cultura brasileira, principalmente quanto a
colaborações pela via do trabalho intelectual. Exemplo disso é a falta
do reconhecimento das obras de intelectuais brasileiros negros
internacionalmente reconhecidos dentro das universidades, como é
o caso de Lélia Gonzalez.
A educação brasileira continua a ser historicamente elitista
e, apoiada na proposta de homogeneização cultural, reforçou a
construção da ideia de que africanidade, afrodescendência e suas
múltiplas representações culturais são inferiores e dignas de
demonização. Esse processo discriminatório se mantém até a
atualidade e tem sido, no decorrer dos anos, apropriado pelo
discurso hegemônico de acadêmicos que pretendiam apresentar

124
A QUESTÃO RACIAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: DESAFIOS E
POSSIBILIDADES

bases científicas para justificar o racismo e a segregação (Veiga,


2008). Algumas dessas “bases”, apesar de desmitificadas, residem no
imaginário do senso comum – como exemplo a democracia racial –
e continuam a afetar negativamente diversas esferas da vida dos
sujeitos negros e a dificultar o debate das questões raciais,
inviabilizando processos de desconstrução de conceitos e
fenômenos pertinentes ao racismo como problema social.
Desse modo, a percepção do racismo estrutural na escola,
assim como em outras instâncias, é algo que por vezes se torna
difícil porque, sendo estrutural, muitas vezes se manifesta nas
sutilezas. É mais óbvio quando se trata de uma discriminação, uma
injúria racial, em que um sujeito comete um ato contra o outro. Mas
como estamos falando de racismo estrutural, isso significa que não
está no sujeito, mas nas estruturas, ou seja, naquilo que dá base às
relações (Almeida, 2008).
Não ter a representatividade de pessoas negras nas imagens
que fazem parte da decoração do espaço escolar, seja no material
didático, nos materiais de pintura ou entre os brinquedos na
Educação Infantil (como bonecos e bonecas negras), também é um
indicativo de racismo estrutural na escola. Ou, por exemplo, quando
vemos pessoas negras apenas no quadro de apoio (responsáveis pela
limpeza e pela comida) e não em cargos de direção ou coordenação.
A Legislação atualmente já contribui com a educação
antirracista na prática, principalmente em três grandes leis
estruturantes do sistema de educação: a Constituição Federal
(Brasil, 1988), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(Brasil, 1996) e o Plano Nacional de Educação - PNE (Brasil, 2014).
Na Constituição Federal, existem vários artigos que
remetem ao tema. O art. 3º estabelece os objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil, e tem quatro incisos: I – construir
uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o
desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV –
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Ainda que
não falem de educação, obviamente não vamos superar as
desigualdades e combater as discriminações sem educação.

125
No art. 5º, que versa sobre os direitos fundamentais, temos o
inciso 42, o qual estabelece o racismo como crime inafiançável. Já
no art. 206, sobre os princípios da educação brasileira, temos o
inciso I, que trata da igualdade de condições para o acesso e a
permanência na escola. Não há menção necessariamente à educação
antirracista, mas nós sabemos que nem todos os grupos
populacionais têm as mesmas condições de acesso às escolas e daí a
necessidade da educação antirracista.
Na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº
9394/1996 (Brasil, 1996), o art. 3º reitera os princípios estabelecidos
na Constituição para a Educação, e insere outros. Mas o principal
artigo que ancora a educação antirracista na legislação educacional é
o 26, que foi primeiramente adicionado pela Lei nº 10.639/2003
(Brasil, 2003) e depois suplantado pela Lei nº 11.645/2008 (Brasil,
2008), definindo a obrigatoriedade do conteúdo das culturas
africana, afrobrasileira e indígena no currículo da Educação Básica.
Ademais, a Lei 10.639/2003 (Brasil, 2003) tornou
obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
no currículo da educação básica, o que teve uma importância
enorme ao pautar o debate da educação antirracista em todos os
âmbitos educacionais. Assim o debate sobre o racismo é
fundamental no contexto escolar, mesmo que ele circule em torno
da existência ou não do racismo na escola e a necessidade do
destaque ao tema, porque existir a discussão significa que há tensão.
Mesmo antes da lei, já existiam iniciativas aliadas ao
movimento negro que mereciam destaques na luta pela superação
das desigualdades raciais. Há muitas escolas e professores e
professoras realizando experiências de educação antirracista em
todo o Brasil, da Creche ao Ensino Superior. Isso sem contar as
iniciativas comunitárias, como cursinhos populares. Esses grupos
lutam pela inclusão, não apenas reivindicando, mas desenvolvendo e
criando propostas antirracistas (Abe, 2020). Neste aspecto, pontua-
se em concordância com Gomes (2003, p. 77), que:

A escola, enquanto instituição social


responsável pela organização, transmissão e
socialização do conhecimento e da cultura,
revela-se como um dos espaços em que as

126
A QUESTÃO RACIAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: DESAFIOS E
POSSIBILIDADES

representações negativas sobre o negro são


difundidas. E por isso mesmo ela também é
um importante local onde estas podem ser
superadas.

Desse modo, as iniciativas de superação devem ser amplas e


institucionais, e não apenas projetos pontuais de iniciativa
individual. No âmbito do sistema educacional, é necessário
instaurar instâncias que sejam núcleos ou coordenadorias de
educação antirracista dentro das secretarias estaduais e municipais
de educação, de modo a converter a promoção da igualdade raciais
de iniciativas individuais e pontuais, em política pública de Estado
(Abe, 2020).
Para tanto, é crucial perpassar pela questão orçamentária.
No âmbito do planejamento educacional é preciso destinar recursos
e equipes, para que exista de fato as instâncias responsáveis por essa
promoção e para que seja possível realizar diagnósticos das redes de
ensino e elaborar os planos de ação, de forma democrática. Esse
trabalho certamente resultaria em formações e outras ações, como
concursos que incentivem as escolas a desenvolverem projetos de
educação antirracista – o que seria bem interessante para fortalecer
quem já está fazendo isso e para incentivar quem ainda não
começou. As secretarias também poderiam realizar mostras
pedagógicas, com o tema da educação antirracista, para incentivar
os docentes a apresentarem suas ações e trocar experiências, e
incentivar a elaboração de materiais (Farias, 2023).
Uma pesquisa intitulada “Lei 10.639/03: a atuação das
Secretarias Municipais no ensino de história e cultura africana e
afro-brasileira” foi lançada em abril de 2023, por Geledés – Instituto
da Mulher Negra e Instituto Alana, com apoio da Imaginable
Futures, Uncme e Undime, mostra que 5% dos municípios brasileiros
afirmam ter implementado uma área técnica dedicada à agenda da
educação para as relações étnico-raciais e somente 8% das
secretarias dizem ter orçamento específico para tal (Portal ANDI,
2023)
Outro ponto importante é o incentivo à pesquisa, que pode
e deve ser feito pelos atores da educação - docentes, gestores e
estudantes - em parceria com a universidade e seus órgãos de

127
pesquisa. A partir delas, poderão ser criados conhecimentos sobre a
questão do racismo e o seu enfrentamento na escola, mantendo o
assunto em pauta permanentemente e extrapolando as fronteiras
acadêmicas para circular no espaço e na comunidade escolar. Nesse
sentido, a produção de conhecimento sobre práticas educativas
antirracistas se mostra um caminho profícuo e potente de
compreensão dessas práticas e de suas possíveis reverberações na
realidade educacional dos estudantes (Martins; Amaral, 2023).
A escola precisa, portanto, estar enraizada em sua
comunidade no sentido mais amplo possível, olhando para o
território, inclusive por meio do currículo, que abarque os anseios e
os saberes da comunidade. No caso do Brasil, onde o mito da
democracia racial é parte componente desse país estruturalmente
racista, esse enraizamento da escola no território tem um efeito
especial, principalmente em territórios periféricos, onde estão a
maior parte da população negra. Se esta instituição está em parceria
com o território, percebe e acolhe o que está acontecendo ao seu
redor e reconhece os sujeitos e a realidade local, precisa colocar as
questões da localidade em seu currículo. O racismo deverá ser
necessariamente discutido dentro da sala de aula, em vários
componentes curriculares, não negligenciando a dimensão histórica
e contextual do Brasil e das comunidades, de modo que se torne
possível que a escola desenvolva ações para enfrentar os problemas
da comunidade e para a criação e desenvolvimento de práticas
antirracistas (ABE, 2020; Martins; Amaral, 2023).
Assim, defende-se que a escola pública básica precisa ter a
questão racial como prioridade, de modo que questões relativas às
diferenças e as diversidades precisam ter centralidade. Isso significa
que ela vai disputar espaço com outros temas – por exemplo, a
política de avaliação externa, com base em testes de aprendizagem.
Assim, para que as escolas consigam implementar projetos político-
pedagógicos comprometidos com uma educação antirracista, é
preciso tempo de estudo e dedicação, para a elaboração,
implementação e avaliação dessas atividades. Sabemos que o tempo
de trabalho na escola é constantemente disputado por demandas de
diversas naturezas, que recaem sobre a direção e os professores e
professoras, o que interfere diretamente na prática pedagógica.

128
A QUESTÃO RACIAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: DESAFIOS E
POSSIBILIDADES

Diante desse cenário de disputa entre o que é de fato importante e


prioritário, é preciso que a escola pública de qualidade consiga
valorizar e vivenciar o protagonismo da comunidade local, no
reconhecimento do potencial dos estudantes negros e negras
contarem e construírem a sua própria história. Assim, a educação
antirracista se investe de potencial para a superação das
desigualdades e para a construção identitária, não apenas dos
negros e negras, mas de todos que estão inseridos em nossa
sociedade, de valorização histórica de nosso passado, que ganha
maior sentido se ocorrer o quanto antes na idade escolar dos
estudantes, não podendo-se perder de vista a dimensão histórica do
processo educativo.

A centralidade da questão racial e do racismo necessária


à formação de professores e professoras

A formação nos cursos de graduação, apesar dos avanços


vários, ainda merecem um olhar cuidadoso de quem constrói os
currículos, quando o enfoque é sobre as questões étnico-raciais
(Martins; Amaral, 2023). Apesar de reconhecermos a importância
de formações em níveis de especialização, mestrado e doutorado,
não se pode perder de vista a importância da formação básica dos
professores e professoras, visto que é o marco necessário para o
exercício da docência, embora se faça necessária a continuidade
infinda do processo formativo, pois conforme nos aponta Arroyo
(2011), não nos tornamos professores e professoras ao formar, o
diploma, em lugar de objeto de conclusão, deveria ser visto pelos
profissionais da educação como o bilhete de passagem para uma
viagem eterna de um profissional que não pode abrir mão de novos
conhecimentos e experiências.
No âmbito da formação docente é importante pontuar que
currículo é campo discursivo, espaço de significações,
representações, tensões, conflitos entre autores e teorias, logo, não é
neutro e acabado, é construído socialmente e, ao definirem o que
deve ser ensinando como conhecimentos válidos e legítimos,
estabelecem relação de poder e forja identidades (Silva, 2011).

129
É nesse sentido que, historicamente, tem-se percebido a
ausência do debate sobre relações étnico-raciais e educação no
currículo dos cursos de docência a qual aponta a necessidade de que
a formação de professores e professoras contemple, amplamente,
nos projetos políticos pedagógicos, nos planos de ensinos e, ao
longo da formação, conteúdos, metodologias, práticas e discussões
teóricas acerca história e cultura africana e afro-brasileira e sobre a
dinâmica do racismo no Brasil e suas implicações na educação
(Cardoso; Castro, 2015).
A partir de movimentos sociais e da pressão exercida pelo
movimento negro, no entanto, a educação antirracista, a abordagem
da temática racial e diversidade racial têm ganhado espaço no
cenário formativo de professores e professoras, embora ainda seja
incipiente a presença do tema no currículo de formação básica e se
constitua como cenário de disputas e contradições. Isso porque tem-
se construindo a compreensão de que o ato educativo é
eminentemente cultural e que a relação ensino/aprendizagem se
constrói no campo dos valores, das representações e de diferentes
lógicas (Gomes, 2003). O processo de ensino-aprendizagem está
para muito além dos aspectos meramente cognitivos e está
intimamente relacionado e conectado com os aspectos subjetivos,
históricos, contextuais e culturais.
Nesse sentido, ao exercer a docência, cabe ao educador e à
educadora compreender como os diferentes povos, ao longo da
história, classificaram a si mesmos e aos outros, como certas
classificações foram hierarquizadas no contexto do racismo e como
este fenômeno interfere na construção da autoestima e impede a
construção de uma escola democrática. É também tarefa do
educador e da educadora entender o conjunto de representações
sobre a pessoa negra existente na sociedade e na escola, e enfatizar
as representações positivas construídas politicamente pelos
movimentos negros e pela comunidade negra. A discussão sobre a
cultura negra poderá nos ajudar nessa tarefa (Gomes, 2003; Martin;
Amaral, 2023).
É crucial, no entanto, a busca por uma prática educativa
cada vez mais qualificada, pautada em elementos teóricos e práticos,
para além de mobilizações sazonais e em datas comemorativas,

130
A QUESTÃO RACIAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: DESAFIOS E
POSSIBILIDADES

reconhecida como elemento importante na estrutura curricular e


que envolva docentes e estudantes da escola, implica
necessariamente o domínio efetivo de conceitos centrais. Por mais
que as boas intenções e o entusiasmo sejam uma marca das escolas
de educação básica, somente isso não basta para que se desenvolva
um debate qualificado e eficiente que reverbere em outras instâncias
e sujeitos (Martin; Amaral, 2023).
Mas isso requer um posicionamento. Implica a construção
de práticas pedagógicas de combate à discriminação racial, um
rompimento com a “naturalização” das diferenças étnico/raciais,
pois esta sempre desliza para o racismo biológico e acaba por
reforçar o mito da democracia racial. Uma alternativa para a
construção de práticas pedagógicas que se posicionem contra a
discriminação racial é a compreensão, a divulgação e o trabalho
educativo que destaca a radicalidade da cultura negra.
Essa é uma tarefa tanto dos cursos de formação de
professores e professoras quanto dos profissionais e
pesquisadores/as que já estão na prática. A cultura negra pode ser
vista como uma particularidade cultural construída historicamente
por um grupo étnico/racial específico, não de maneira isolada, mas
no contato com outros grupos e povos.
Aprender sobre a diversidade étnico-racial, compreender e
enfrentar os efeitos do racismo parece ser um receio da pedagogia e
da educação escolar porque os educadores ainda são formados,
como profissionais, para lidar com a uniformidade e
homogeneidade. Para ela, essa pedagogia da homogeneidade
esconde-se atrás do discurso da igualdade, o que sempre recebeu
grande aceitação entre os docentes, de todos os segmentos:
progressistas, conservadores, de diferentes crenças e posições
ideológicas (Gomes, 2006).
Dessa forma, é de grande avanço para a formação de
professores e professoras e para o aprofundamento na temática
racial, que as formações e as pesquisas sejam enriquecidas pelo
diálogo com outras áreas das ciências humanas. No caso do estudo
sobre a questão racial, é importante que esse diálogo se dê com as
áreas do conhecimento que, pela sua história, possuem um acúmulo
na discussão sobre a cultura e, no caso específico deste artigo, a

131
cultura negra. Para o impulsionamento da qualidade e criticidade
do processo formativo docente no âmbito da diversidade racial é
preciso que se admita e se escancare a existência do racismo, e mais,
a forte e determinante presença do racismo na estruturação de nossa
sociedade, relações intra e interpessoais, profissionais,
mercadológicas e educativas. Não se pode perder de vista o enfoque
no racismo, com o risco de que sejamos conduzidos a um debate
despolitizado sobre o tema.

Considerações Finais

A proposta deste capítulo baseia-se no reconhecimento de


que o racismo está presente também na formação de professores e
professoras e, de um modo geral, muitos preconceitos concebidos e
introjetados ao longo da vida social são reproduzidos no espaço
escolar. Cabe-nos, então, o questionamento se poderíamos repensar
a formação de professores e professoras como um espaço de
discussão das relações raciais. Paulo Freire (1999) destaca a
necessidade de assumirmos uma “educação corajosa” que
conscientize o homem de sua necessidade de participação e de uma
educação que o leve a uma nova postura diante dos problemas de
seu tempo e de seu espaço, dentre eles o racismo.
Enquanto profissionais da educação, torna-se emergente
indagar sobre os processos de formação de professores e professoras
e o racismo, pois são questões que atravessam as práticas educativas.
Em primeiro lugar, evidenciamos a necessidade de superar o
discurso escolar que enaltece a longa tradição europeísta, na qual
uma cultura (negro, índio, mulher, homem do campo, marginal
urbano) é subalternizada e responsável por sua própria exclusão
socioeconômica, cultural e sociopolítica na sociedade brasileira.
Fica o questionamento, apesar das leis, sobre qual forma é
trabalhada a questão racial nos currículos dos cursos de formação
inicial de professores e professoras. Se existe de fato uma atenção
para essa questão. É importante destacar que a legislação vigente que
trata sobre as questões raciais no Brasil chegou muito mais como
uma obrigatoriedade do que como uma ferramenta de combate ao
racismo. Nesse sentido, a consciência crítica dos sujeitos sobre a

132
A QUESTÃO RACIAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: DESAFIOS E
POSSIBILIDADES

realidade será grande aliada para que se possa combater as ações das
elites opressoras (Freire, 1999), promovendo assim práticas
emancipatórias dentro das escolas. As questões raciais demandam
mobilização de toda a sociedade, na tentativa de desconstruir
qualquer forma de discriminação.
A árdua tarefa de pensar a formação de professores e
professoras e o racismo traz importantes discussões sobre as
questões raciais, focando na reflexão e reformulação dos currículos
e na promoção de políticas públicas antirracistas. Além da
necessidade de se fazer cumprir a legislação, é preciso que os sujeitos
abandonem práticas racistas enraizadas na sociedade e também
práticas de discriminação racial. Torna-se urgente respeitar as
diferenças e o outro em sua alteridade. Importante reafirmar ainda a
necessidade de se adotar na educação a produção de estratégias e
ações relacionadas à temática étnico-racial para aplicação nas
escolas, com vista ao cumprimento da Lei n. 10.639/2003 e do
Estatuto de Igualdade Racial. Com isso, é importante tratar a
questão da pessoa negra para todos, respeitando as várias formas de
ser e existir no mundo.
As discussões sobre educação e racismo não se encerram
por aqui. Elas continuam a movimentar a vida da estudante autora
deste ensaio, que vivencia o processo do “tornar-se negra” e de
construções múltiplas.

Referências

ABE, Stephanie Kim. O racismo estrutural na escola e a


importância de uma educação antirracista. Entrevistada: Iracema
Santos do Nascimento. Portal CEPEC Educação. 11 de novembro
de 2020. Disponível em: <O racismo estrutural na escola e a
importância de uma educação antirracista (cenpec.org.br)>. Acesso
em 05 de março de 2023.

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única.


Trad. Julia Romeu. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte:


Letramento, 2018.

133
ARROYO, Miguel Gonzalez. Currículo, território em disputa.
Petrópolis: Vozes, 2011.

BENTO, Maria Aparecida Silva. (Orgs). Psicologia social do


racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil.
6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República


Federativa do Brasil. Brasília/DF: Senado Federal. Disponível em:
<Constituição (planalto.gov.br)>. Acesso em: 01 de outubro de
2023.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. LDB nº


9.394 de 20 de dezembro de 1996. Brasília/DF: MEC, 1996.
Disponível em: <L9394 (planalto.gov.br)>. Acesso em: 01 de
outubro de 2023.

BRASIL. Lei nº 13.005 de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano


Nacional de Educação – PNE e dá outras providências. Brasília, DF:
Diário Oficial da União, 26 jun 2014. Disponível em:<https://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm>.
Acesso em 05 de outubro de 2023.

BRASIL. Lei nº 10.639 de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº


9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura
Afro-Brasileira’, e dá outras providências. Brasília, DF: Diário
Oficial da União, 2003. Disponível em: <https://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm>. Acesso em: 01 outubro 2023.

BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei no


9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639,
de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de
ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-
Brasileira e Indígena”. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2008.
Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2014/lei/l13005.htm>. Acesso em 05 de outubro de 2023.

134
A QUESTÃO RACIAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: DESAFIOS E
POSSIBILIDADES

CARDOSO, Ivanilda Amado; CASTRO, Rosane Michelli de. A


ausência/presença das relações étnico-raciais nos currículos dos
cursos de pedagogia: o caso da Unesp/Marília. Práxis Educacional.
Vitória da Conquista v. 11, n. 18 p. 91-115 jan./abr. 2015.

CARVALHO, Maria Regina Viveiros de. Perfil do professor da


educação básica. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira. Brasília, DF, 2018.

FARIAS, Erika. O papel da educação na luta antirracista. Conquista


do movimento negro, a Lei 10.639, que estabelece a obrigatoriedade
das disciplinas de História e Cultura Afro-Brasileira no currículo
escolar do ensino básico, completa 20 anos de sua implementação.
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio - Fiocruz. 22 de
março de 2023. Disponível em: <https://www.epsjv.fiocruz.br/
noticias/reportagem/o-papel-da-educacao-na-luta-antirracista>.
Acesso em 02 de novembro de 2023.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato de


Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário


Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, 2023. Disponível em: <https://forumseguranca.
org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf>. Acesso
em: 02 de outubro de 2023.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 23. ed. Rio


de Janeiro: Paz e Terra, 1999.

GOMES, Nilma Lino. Cultura negra e educação. Revista Brasileira


de Educação. Minas Gerais, n. 23, mar. 2003, p. 75-85.

GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no


debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. In:
BRASIL. Educação Anti-racista: caminhos abertos pela Lei federal
n. 10.639/03. Brasília, MEC, Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade, p. 39- 62, 2005.

135
MARTINS, Francisco André Silva; AMARAL, Felipe Bueno.
Educação Antirracista: Potencialidades e Obstáculos. SciELO
Preprints. julho de 2023. Disponível em: <https://preprints.scielo.
org/index.php/scielo/preprint/download/6305/12060>. Acesso em
30 de outubro de 2023.

Portal ANDI. Pesquisa inédita mostra engajamento das


secretarias de Educação com aplicação da Lei 10.639. 19 de abril
de 2023. Disponível em: <https://andi.org.br/2023/04/pesquisa-
inedita-mostra-engajamento-das-secretarias-de-educacao-com-
aplicacao-da-lei-10-639/>. Acesso em 01 de novembro de 2023.

SILVA. Tomaz Tadeu da. Documento de identidades: uma


introdução às teorias do currículo. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica,
2011.

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro - as vicissitudes da


identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro:
Graal, 1983.

VEIGA, C. G. Escola pública para os negros e os pobres no Brasil:


uma invenção imperial. Revista Brasileira de Educação, Rio de
Janeiro, v. 13, n. 39, dez. 2008, p. 502-516.

UNICEF, Reprovação, Distorção Idade-Série e Abandono Escolar.


Dados do Censo Escolar 2018 publicados no site da estratégia
Trajetórias de Sucesso Escolar (trajetoriaescolar.org.br) do UNICEF
e parceiros. Disponível em:<https://www.unicef.org/brazil/media/
6151/file/reprovacao_distorcao_idade-serie_abandono_escolar_
2018.pdf>. Acesso em 02 de outubro de 2023.

Mini Currículo

Fernanda Priscilla Pereira Calegare


Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Amazonas
(UFAM). Mestra em Psicologia pela UFAM. Pedagoga; Graduação
em Psicologia. Servidora do Tribunal de Justiça do Amazonas. E-
mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/
9677709786406509

136
BRANQUITUDE E SUBJETIVIDADE: UM ENSAIO SOBRE A IDENTIDADE
MANAUARA

BRANQUITUDE E
SUBJETIVIDADE: UM ENSAIO
SOBRE A IDENTIDADE
MANAUARA1
Alessandra dos Santos Pereira

Introdução

Manaus, capital do maior estado indígena do Brasil, tem


71.713 pessoas que se identificaram como indígenas, segundo as
informações prévias do Censo 2022 (IBGE, 2023). A historiografia
do município está relacionada à exploração portuguesa dos rios da
região. Os exploradores construíram o Forte São José do Rio Negro
e, segundo o historiador Ribamar Freire Bessa, em seu livro
“Amazônia Colonial”, a cidade de Manaus fora construída sobre um
cemitério indígena, sugerindo simbolicamente que essa informação,
sintetizaria todo o processo de colonização da região (Bessa, 1990).
Para o historiador, a construção da cidade sobre um cemitério
indígena configuraria uma demonstração de poder, onde os
chamados “conquistadores” destroem áreas de grande significado
para os indígenas da região.
Essa informação histórica, também nos permite
compreender o processo de ocupação e povoamento da cidade de
Manaus. A influência das políticas econômicas de caráter
mercantilista, com a busca pelas “drogas do sertão”, adotadas pela
coroa portuguesa, foram fundamentais para configurar o processo
de ocupação da Amazônia no período colonial e as relações de
contato entre os principais grupos étnicos envolvidos nesse período
(portugueses, africanos e indígenas) formam a trama histórica para

1
Este artigo foi elaborado com o apoio e financiamento da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES e FAPEAM (Bolsa
de Doutorado).

137
se pensar qualquer consideração sobre as características identitárias
da população.
Na história social da Amazônia, observa-se o registro de
que povos e comunidades indígenas foram amplamente afetados
pelas invasões dos europeus, tornando essas populações
marginalizadas e forçadas a abandonar suas tradições culturais e
adotar a cultura dominante europeia. Nesse sentido, na
historiografia “oficial” é fundamental considerar o caráter
etnocêntrico e europeu dos registros feitos por viajantes,
exploradores, missionários, naturalistas, dentre outros, que se
dispuseram a catalogar informações sobre as relações entre
sociedades indígenas da época e os colonizadores. O registro crítico
da história revela um agrupamento de famílias indígenas ao redor
do Forte São José do Rio Negro, dando início ao primeiro núcleo
populacional da cidade, não permitindo dúvidas de que a origem de
Manaus foi, eminentemente, indígena (Silva, 1999).
Não apenas o período colonial foi determinante na
constituição da identidade do manauara, bem como outros dois
grandes ciclos econômicos (borracha e zona franca), também
tiveram impactos estruturantes na maneira como pessoas nascidas
na cidade de Manaus se reconhecem. A expansão das atividades
econômicas, com a extração da borracha no período áureo, permitiu
que comunidades indígenas fossem exploradas e pessoas indígenas e
negras fossem submetidas a condições de trabalho precárias. Com a
instalação da Zona Franca de Manaus, ocorreu um grande fluxo
migratório de nordestinos para a região, resultando em uma
mudança na composição étnica e diminuindo a presença indígena e
negra na historiografia da população.
A partir desse cenário, observa-se que esses ciclos
econômicos, impulsionados por políticas de branqueamento da
população (processo histórico de miscigenação e assimilação
cultural) levaram a uma diminuição da população indígena e sua
consequente perda de diversidade cultural e marginalização das
identidades. Ao mesmo tempo, esses processos permitem-nos
reconhecer como os aspectos históricos contribuíram para a criação
de uma cultura e identidade dominante que valoriza a branquitude e
subalterniza povos e pessoas indígenas.

138
BRANQUITUDE E SUBJETIVIDADE: UM ENSAIO SOBRE A IDENTIDADE
MANAUARA

A proposta deste ensaio é fazer uma reflexão sobre os


aspectos que influenciaram a constituição de uma identidade
manauara e sua consequente não identificação com as culturas
indígenas. Usamos como referência as contribuições de Stuart Hall e
Cida Bento, propondo uma breve incursão sobre as ideias de
cultura, identidade e representação, além da noção do conceito de
branquitude, para se compreender como aspectos históricos e
sociais orientaram a constituição de uma identidade não-indígena.

Cultura, identidade e representação

As contribuições de Stuart Hall, a partir dos anos 70, foram


fundamentais para os estudos culturais. É inegável a maneira pela
qual a cultura, em suas diferentes manifestações e instrumentos,
produz novas subjetividades e novas formas de estar, ser e entender
o mundo. A compreensão da cultura como articuladora do discurso
e da produção subjetiva permite perceber os dispositivos sutis,
indiretos e plurais, disponíveis no tecido social, pelos quais as
identidades sociais são forjadas (Moraes, 2019).
O ponto central da cultura proposto por Hall tem uma
dimensão epistemológica, uma vez que se refere ao poder
instituidor do qual são dotados os discursos que circulam na
cultura, transformando compreensões, explicações e modelos
teóricos de mundo. Isso significa dizer que os discursos formam
redes de significações apropriadas pelos sujeitos de uma
determinada sociedade, configurando um processo de produção
subjetiva. Essas redes de significações consideram que as pessoas
utilizam esse dispositivo discursivo para se autointerpretar,
reproduzindo, compreendendo e explicando a si e ao mundo a
partir de determinado regime de verdade (Hall, 1997).
É na esfera cultural que ocorrem as lutas pela significação,
ou seja, os contextos culturais são o próprio local onde o significado
é negociado e fixado, desenvolvendo o caráter simbólico e
discursivo das lutas (política cultural) (Hall, 1997). Para os autores
dos estudos culturais, os significados são culturais e regulam as
práticas sociais. O reconhecimento desse significado faz parte do

139
senso de identidade e pertencimento das pessoas em uma
determinada cultura.
Já o conceito de representação é compreendido a partir da
forma como se constrói o significado. É através da linguagem, no
uso que se faz das coisas, do que se diz, do que se pensa e sente –
como representação – que surgem os significados. Isso implica
considerar que os significados dados aos objetos, pessoas e eventos
são construídos a partir de uma estrutura de interpretação que a
pessoa possui, ou seja, os significados surgem a partir das formas
como são utilizadas e integradas às práticas cotidianas (Hall, 2002).
Reconhecer o significado faz parto do senso de nossa
própria identidade, gerando uma sensação de pertencimento. Os
sinais – combinação de um significante (palavra, som ou gesto) e
um significado (conceito ou ideia associada) – são compartilhados
socialmente, dando formas aos nossos conceitos, ideias e
sentimentos de maneira que outras pessoas do grupo social
decodifiquem ou interpretem mais ou menos da mesma maneira.
Por isso, as linguagens funcionam através da representação,
configurando sistemas de representação. Sua construção é social e
diz respeito à própria constituição das coisas (Moraes, 2019).
Em suas contribuições, Hall (2002) aborda três teorias que
discutem a representação: a reflexiva, a intencional e a
construcionista. Cada uma delas propõem concepções diferentes
para a interpretação dos significados. Na teoria reflexiva, a
linguagem funciona como um espelho que reflete o verdadeiro
significado sobre as coisas já existentes no mundo. Na intencional,
aquele que fala impõe o significado através da linguagem. Já na
teoria construcionista, a linguagem é tomada como um produto
social, no qual os significados são elaborados através dos sistemas de
representação. É nesse último aspecto abordado pelo autor que
ancoramos a concepção de representação apresentada neste ensaio.
Sendo assim, as representações têm sérias implicações sobre
as identidades, uma vez que a maneira como somos representados e
como essa representação se relaciona, a maneira como nós podemos
representar, dão origem às narrativas do eu (Hall, 2000). Essa
consideração passa a assumir um caráter de importância a partir do
momento em que as mudanças sociais, por se tornarem cada vez

140
BRANQUITUDE E SUBJETIVIDADE: UM ENSAIO SOBRE A IDENTIDADE
MANAUARA

mais complexas e tecnológicas, passam a exigir novas maneiras de


pensar, estar e conviver, interferindo diretamente na cultura,
promovendo mudanças. As mudanças culturais têm um impacto
sobre os modos de viver e construir sentido para as gerações atuais e
futuras. Assim, é nesse contexto que a representação assume a
centralidade do debate, uma vez que os significados são partilhados
na linguagem para dizer algo com sentido sobre, ou para representar
de maneira significativa o mundo para outras pessoas (Hall, 2002).
A identidade é um constructo bastante discutido nas teorias
sociais, as quais buscam demonstrar que velhas identidades,
responsáveis pela estabilidade e conservação do mundo social, estão
entrando em declínio e sendo substituídas por novas identidades,
caracterizadas, dentre outras coisas, pela fragmentação das pessoas e
promoção de mudanças estruturais nas sociedades. O que Hall
(2006) chama de “crise de identidade” nada mais é do que um
processo de mudança maior, o qual desloca as estruturas e os
processos das sociedades modernas que produzem impactos nas
referências que davam às pessoas uma ancoragem estável no mundo
social.

O que denominamos “nossas identidades”


poderia provavelmente ser mais bem-
conceituado como as sedimentações através
do tempo daquelas diferentes identificações
ou posições que adotamos e procuramos
“viver”, como se viessem de dentro, mas que,
sem dúvida, são ocasionadas por um conjunto
especial de circunstâncias, sentimentos,
histórias e experiências única e peculiarmente
nossas, como sujeitos individuais. Nossas
identidades são, em resumo, formadas
culturalmente (Hall, 2000, p. 26, grifo do
autor).

Hall (2000) explica que o termo identidade é o ponto de


encontro entre os discursos e as práticas, de um lado, que nos
demandam para assumirmos um lugar como sujeitos sociais de
discursos particulares e, por outro lado, de processos que produzem
subjetividades que nos constroem como sujeitos aos quais se pode

141
falar. Nesse sentido, as fronteiras da identidade não são fixas, estão
sempre sendo reconstruídas e negociadas, sem nunca poder se
afirmar como um tecido por inteiro, mas sim como um conjunto de
retalhos superpostos, sempre em nova configuração.
Ao desenvolver uma concepção de identidade como
estratégica e posicional, Hall (2000) defende que as identidades,
cada vez mais fragmentadas e fraturadas, são construídas ao longo
de discursos, práticas e posições. A identidade seria algo que emerge
do diálogo entre os conceitos e definições, representados pelos
discursos de uma cultura e pelo nosso desejo de responder aos
apelos feitos por estes significados. Logo, as identidades sociais
devem ser pensadas como configuradas no interior da
representação, a partir da cultura, como resultado de um processo
de identificação que permite posicionamentos orientados pelas
definições fornecidas pelos discursos culturais. Desse modo, as
subjetividades são produzidas, parcialmente, de maneira discursiva
e dialógica.
Em Hall (2006), há três concepções de identidade: a do
sujeito do iluminismo, baseado na individualidade, unificada e
dotada de razão; do sujeito sociológico, com a ideia de que o mesmo
não é autônomo e autossuficiente, mas sim formado na relação com
outras pessoas; e a do sujeito pós-moderno, resultado das mudanças
estruturais e institucionais, permite que o processo de identificação
seja instável e provisório, tornando a identidade pouco fixa e
permanente, além de não unificadas ao redor de um “eu” coerente.
Isso significa dizer que o sujeito e a identidade, antes da era
moderna, estavam ancorados em estruturas e concepções
tradicionais estáveis, contudo com as mudanças introduzidas pela
era moderna as identidades tornaram-se mais descentradas e
ancoradas a partir de uma concepção mais social (Moraes, 2019).

Branquitude: inquietações sobre cultura e poder

Falar sobre Branquitude necessariamente remete aos


antigos questionamentos sobre a formação social do brasileiro e as
perguntas acerca das identidades raciais: quem é branco? quem é
negro? quem é indígena no Brasil? Existem inúmeros estudos,

142
BRANQUITUDE E SUBJETIVIDADE: UM ENSAIO SOBRE A IDENTIDADE
MANAUARA

principalmente, nas ciências humanas para compreender quem é o


negro no Brasil. Mais recentemente, há um boom de pesquisas para
compreender sobre a pessoa indígena. No entanto, existe uma
escassez de trabalhos dedicados a estudar sobre quem é o branco e o
que é ser branco na sociedade brasileira. As poucas pesquisas
existentes se dedicaram a descrever ou compreender a experiência e
as construções cotidianas de pessoas brancas como sujeitos
racializados (Schucman, 2014). Estamos nos referindo a ideia de
raça na própria constituição do sujeito, ou seja, na própria
experiência de identidade branca vivida imaginadamente, como
algo herdado e como um potencial que confere às pessoas poderes,
privilégios e aptidões intrínsecas (Frankenberg, 2004).
No campo da Psicologia, algumas hipóteses sustentam que a
ausência de estudos sobre a branquitude na área dizem respeito à
predominância de pesquisadores brancos e socializados em uma
população que se acredita desracializada, a qual sustenta a ideia de
que quem tem raça é o outro, mantendo a branquitude como
identidade racial normativa. Outra hipótese, é manter o privilégio
simbólico e material que pessoas brancas tem numa estrutura
racista. Nesse sentido, alguns autores (Bento; Carone, 2002)
sinalizam a necessidade de estudar os brancos, no sentido de
desvelar o racismo que, intencional ou não intencionalmente,
mantêm e legitimam as desigualdades raciais no Brasil.
Definir o que é branquitude e quem são as pessoas que
ocupam lugares sociais e subjetivos da branquitude é um problema
conceitual no âmago dos estudos contemporâneos sobre identidade
racial branca. Isso ocorre porque estão em jogo definições de
categorias sociológicas como etnia, raça, cor e cultura que se
entrecruzam e se descolam umas das outras, dependendo do país,
região, história, interesses políticos e épocas investigadas. Ser
branco, não é algo dado por condições genéticas, mas sim,
caracterizado por lugares sociais e simbólicos, ocupados por
sujeitos, numa determinada sociedade. Branquitude seria uma
posição da pessoa, oriunda da confluência de eventos históricos e
políticos determináveis (Steyn, 2004).
Os significados sobre Ser branco são compartilhados
socialmente e assumem diferentes contornos, dependendo do lugar.

143
Por exemplo, nos EUA, ser branco está relacionado à origem étnica
e genética de cada pessoa. Na África do Sul, o fenótipo e origem são
elementos importantes para demarcar branquitude. No Brasil, está
ligado à aparência, ao status, e ao fenótipo (Schucman, 2014). Dessa
maneira, ser branco na sociedade brasileira:

Exige pele clara, fisionomia europeia, cabelo


liso. Ser branco no Brasil é uma função social
e implica desempenhar um papel que carrega
em si uma certa autoridade ou respeito
automático, permitindo trânsito, eliminando
barreiras. Ser branco, não exclui ter sangue
negro (Sovik, 2004, p. 366).

Desse modo, a branquitude seria uma posição, um lugar, em


que pessoas que o ocupam foram sistematicamente privilegiadas, no
que diz respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados
pelo colonialismo e imperialismo que se mantêm preservados na
contemporaneidade. Logo, a chave para entender a branquitude é
compreender como as estruturas de poder foram construídas de
maneira concreta, histórica e subjetiva, observando em que aspectos
as desigualdades raciais se ancoram (Schucman, 2014).
Já, o conceito da Branquitude, proposto por Cida Bento,
surgiu a partir da experiência da autora no trabalho com instituições
públicas e privadas. Para ela, as organizações constroem narrativas
sobre si mesmas sem considerar a pluralidade da população com a
qual se relacionam. Essa maneira de funcionar define, regula e
transmite um modelo de valores, processos, normas, dentre outros
elementos, majoritariamente, masculino e branco. Esse processo
atravessa gerações e gerações e, pouco, influencia na hierarquia das
relações de dominação. Essa dinâmica de perpetuação de relações
de poder, Bento nomeia de pacto da branquitude, explicando que
sua continuidade ocorre devido um acordo de cumplicidade, não
verbalizado, entre pessoas brancas para manter seus próprios
privilégios (Bento, 2022).
Para a autora, o pacto da branquitude possui um aspecto
narcísico e de autopreservação, observando o “diferente” como
ameaçador da “normalidade”. Esse componente de medo está na

144
BRANQUITUDE E SUBJETIVIDADE: UM ENSAIO SOBRE A IDENTIDADE
MANAUARA

essência do preconceito, da representação que é feita sobre o outro,


delineando como as reações serão desencadeadas. Obviamente, é
possível identificar no cerne da sociedade brasileira um pacto
narcísico de segredo em relação a sua própria história ancestral,
entre famílias, organizações e coletivos que compõem a elite no
Brasil. Pessoas e instituições, descendentes dessas histórias,
reproduzem na vida concreta e simbólica, chegando até as gerações
mais atuais, discursos e práticas, carregados de lógicas repletas de
muita dor e violência, como herança de seus antepassados.
É urgente refletir, debater e falar sobre a herança histórica
das famílias e instituições que gozam de prestígio social, retirando o
silêncio imposto de maneira velada. O não reconhecimento desse
legado público, inscrito na subjetividade do coletivo, condena a
reprodução indefinida de atos anti-humanitários, expropriação,
violências, dentre outras brutalidades, permitidas socialmente,
como retratos de uma época que não faz mais sentido. As novas
gerações precisam reconhecer o que herdaram para terem a chance
de construir outra história e avançar na direção de outros pactos
civilizatórios, possíveis para todas as pessoas.

Manaus: da aldeia ao pólo industrial

O processo de colonização da região amazônica é marcado


pela história da formação dos grandes impérios coloniais impostos
por países europeus. No Brasil, o povoamento feito por pessoas
provenientes de diferentes partes da Europa, permitiu o
estabelecimento de um alicerce ideológico e imaginário de
inferiorização dos povos colonizados. O discurso europeu destacava
o tom da pele como base principal para distinguir o status e o valor
das pessoas (Bento, 2022). As concepções de primitivos, selvagens,
pagãos, bárbaros foi a tônica para evidenciar a cosmologia de povos
indígenas e a necessidade de “branquear” a população para que ela
se tornasse mais parecida com as sociedades europeias. A origem de
uma identidade branca foi sendo tecida no bojo do processo de
colonização.
Na região amazônica, especialmente na cidade de Manaus,
dois aspectos históricos se destacam na constituição de um

145
branqueamento populacional e consequente pacto da branquitude
na sociedade manauara: o período áureo da borracha e a
implantação do modelo econômico de desenvolvimento da região
através da Zona Franca de Manaus.
Durante a segunda metade do século XIX, Manaus viveu
um período de modernização proporcionado pela economia da
extração da borracha. O famoso teatro Amazonas, as praças e
palacetes, os casarões na área central, o porto, o mercado, dentre
outros lugares da cidade, retratavam Manaus como a “Paris dos
Trópicos” - um local de civilidade, de grandeza e riqueza exacerbada
por adotar o estilo francês (rococó ou art nouveau) e um lugar de
elite, na qual tudo vinha do exterior, mais precisamente da Europa.
Esse discurso de grandeza e modernidade, não ficava restrito aos
aspectos arquitetônicos e estruturais da economia que sustentava as
elites regionais, mas incluía também, o cultivo de uma visão de
mundo branca e europeia refletida nos hábitos, costumes, modos de
ser e de viver.

Este processo de europeização valia para


equalizar o seu “status” com os das famílias
abastadas da época. O grande valor e prestígio
da Europa está simbolizado no estilo dos
edifícios públicos que foram construídos
nessa época, como o Teatro Amazonas e o
Palácio da Justiça, estilizados segundo a moda
parisiense e renascentista (Benchimol, 1977,
p. 82).

Uma “Cidade Luz” em meio a selva amazônica era o


objetivo dos grandes homens públicos de transformação para
Manaus. Ela não poderia ser índia, nem mestiça, muito menos
cabocla, tinha que ser alva, branca e europeia. Então, era necessário
reurbanizá-la, para que ela saísse das características de “aldeia” para
se transformar no centro comercial do mundo. Suas inclinações
para “tapera” foram eliminadas, negadas ou silenciadas de modo
que o passado indígena não mais existisse (Braga, 2016).

Começava a incomodar à elite branca o fato de


Manaus parecer mais uma aldeia do que uma

146
BRANQUITUDE E SUBJETIVIDADE: UM ENSAIO SOBRE A IDENTIDADE
MANAUARA

cidade, uma vez que a esmagadora maioria de


seus habitantes era formada de índios e
mestiços, que davam os tons culturais da
capital da Província do Amazonas. Assim,
tornava-se imperioso para a minoria branca
eliminar a fisionomia índia que Manaus
possuía. Nesse período reiniciou-se o
processo gradativo de ocidentalização da elite
que, embora lento, entrava em choque com
formas culturais nativas, de fortes raízes
indígenas. Na ótica daquela minoria
econômica e politicamente dominante, a
situação se agravava pela ausência de uma
estrutura urbana que permitisse a separação
física entre os dois modos de vida. O espaço
de Manaus – dividido em cinco bairros
(Campinas, São Vicente, Remédios, Espirito
Santo e República) – era ocupado por índios,
mamelucos, portugueses, negros em número
reduzido, imigrantes nacionais e estrangeiros,
sem distinção de classe, cor ou profissão
(Santos, 2010, p. 187).

Esse incômodo, fez surgir nas elites uma preocupação com a


aparência da cidade e sua consequente semelhança com as cidades
europeias. Durante anos, vários políticos alcançaram status de
governança à custa do discurso embelezador da capital. Passaram a
existir dois cenários para Manaus: a Manaus Belle Époque, onde não
havia interesse em ter como vizinhos famílias tapuias ou indígenas e
a Manaus Aldeia, habitada por artífices e pessoas com matrizes da
identidade indígena que lutavam para sobreviver sem abrir mão de
sua própria cultura (Braga, 2016).
A existência desses dois cenários permitiu a ocorrência de
um hibridismo cultural, no qual a cultura branca adotou hábitos
nativos como: dormir em redes, comer peixes e frutas nativas, tomar
banhos diários, dentre outros, assim como, pessoas indígenas
passaram a assumir costumes de pessoas não-indígenas como andar
calçado, falar a língua portuguesa e até converter-se ao cristianismo,
como forma de utilizar a cultura branca adaptada a sua realidade.
Essa ideia de “pessoa indígena civilizada”, mais parecida com os

147
costumes europeus e imposta pela modernidade, fez com que os
costumes estrangeiros impusessem um modo de vida que
modificaria, inclusive, a própria moradia da população (Braga,
2016).

Começava a incomodar à elite branca o fato de


Manaus parecer mais uma aldeia do que uma
cidade, uma vez que a esmagadora maioria de
seus habitantes era formada de índios e
mestiços, que davam os tons culturais da
capital da Província do Amazonas. Assim,
tornava-se imperioso para a minoria branca
eliminar a fisionomia índia que Manaus
possuía. Nesse período reiniciou-se o
processo gradativo de ocidentalização da elite
que, embora lento, entrava em choque com
formas culturais nativas, de fortes raízes
indígenas.
Na ótica daquela minoria econômica e
politicamente dominante, a situação se
agravava pela ausência de uma estrutura
urbana que permitisse a separação física entre
os dois modos de vida. O espaço de Manaus –
dividido em cinco bairros (Campinas, São
Vicente, Remédios, Espírito Santo e
República) – era ocupado por índios,
mamelucos, portugueses, negros em número
reduzido, imigrantes nacionais e estrangeiros,
sem distinção de classe, cor ou profissão
(Santos, 2010, p. 187).

Essa empreitada de embelezamento da cidade necessitava


de um imperativo disciplinador. Seria necessário haver exclusões,
pressões, imposições e desapropriações na cidade para inscrever o
modelo de urbanização de cidades europeias. Essa lógica permitiu a
criação legal de um Código de Posturas, implementado à época e
que reprimia quem não estava nos padrões propostos. Esse
documento versava, basicamente, sobre proibições às pessoas
pobres e a todos os que se opusessem aos valores da modernidade.
Os pobres aqui não eram apenas pessoas vulneráveis socialmente,
mas também trabalhadores, estivadores, prostitutas, caboclos e

148
BRANQUITUDE E SUBJETIVIDADE: UM ENSAIO SOBRE A IDENTIDADE
MANAUARA

principalmente indígenas (Braga, 2016). Assim, Manaus


caracterizava-se como uma cidade:

Burguesa, bela, moderna, higiênica, ordenada


e, acima de tudo, branca. No entanto, os
conhecidos lugares de enclave, termo usado
para designar as ruas e habitações dos pobres,
mais particularmente dos negros, ou foram
demolidos e sua população expulsa para os
arrabaldes da cidade, ou permaneceram sendo
considerados locais inóspitos. Curiosamente,
lugares considerados insalubres – como os
becos – não eram atingidos pelos
melhoramentos urbanos pelos quais se
empenhava a municipalidade, ratificando
também as escolhas médicas de regiões e
pessoas que deveriam receber essa restauração
sanitária (Pesavento, 1998, p. 380).

Essa tendência gerou uma diferenciação na sociabilidade


local, uma vez que ninguém queria ser visto como indígena ou
muito menos como amigo, descendente ou familiar de pessoas
indígenas. Quem seguia essas regras prosperava e a cidade tornava-
se cada vez mais civilizada e um lugar onde poucos poderiam viver.
Muitas famílias tradicionais locais foram impedidas de manifestar
sua cultura ou prática cotidiana. Os indígenas desse período,
transformaram-se em trabalhadores urbanos e sua moradia, seus
trajes e sua cultura deveriam ser adaptados à nova sociabilidade
(Santos; Ramos, 2018).
Manaus estava se tornando outra cidade, ao sabor de uma
pequena parcela da população, a elite manauara, enriqueceu aos
louros dos trabalhos de outrem na extração do látex. A cidade
ganhava os contornos e as definições de perímetro urbano,
conforme os interesses políticos e econômicos de grupos elitizados.
O espaço público tornara-se um espaço político, que era
“arquitetado”, não apenas no sentido estético e urbano, mas também
no sentido de manipular, armar, fazer coisas para que esses grupos
permanecessem no poder (Braga, 2016).

149
Outro aspecto importante no processo de europeização da
sociedade manauara eram as estreitas relações e as recorrentes
viagens dos membros da elite da cidade à Europa. O estilo de vida
propagado evidenciava desde os estudos dos filhos na Europa, até a
lavagem de roupas que seguiam em navio por vários meses até
retornarem devidamente embranquecidas (Daou, 2014). Assim, o
viver manauara buscou semelhanças num viver europeu,
materializando-se nos hábitos e costumes que passaram a ser uma
prática unilateral e dominante.
Com o declínio do ciclo da borracha, nos vinte primeiros
anos do século XX, a região amazônica deixou de ser atrativa do
ponto de vista econômico. Os povos indígenas que habitavam as
florestas, mesmo sofrendo redução populacional drástica, deixaram
de ser escravizados. A população agora era composta,
principalmente, por pessoas miscigenadas (negros, indígenas e
brancos) conhecidos como ribeirinhos ou caboclos. Seus arranjos
econômicos estavam alicerçados na pesca e coleta de produtos da
floresta (fauna e flora), utilizando-os de maneira sustentável, ou seja,
sem afetar a capacidade da natureza de produzir novos recursos
para futuras gerações (Imazon, 2022).
Foi na década de 50 que o governo federal fez tentativas
para a retomada da Amazônia como capital a ser explorado. Mas, os
anos 60 foram decisivos, principalmente porque as ações do estado
brasileiro para a região estavam voltadas para a ocupação territorial.
A base da economia ainda era o extrativismo de produtos naturais.
Com o olhar do regime militar sobre a região, dois aspectos ficaram
evidentes: a) a elevada riqueza em recursos naturais e b) a baixa
densidade populacional. Sob o pretexto de integrar a Amazônia ao
resto do país, os militares pregaram a unificação e proteção da
floresta contra a “internacionalização” ou “cobiça de estrangeiros”
utilizando um discurso nacionalista e realizando várias obras de
infraestrutura para a ocupação da Amazônia, como, por exemplo, a
construção da Transamazônica. A abertura de estradas para
“facilitar” o povoamento deu início também ao período de
colonização agropecuária da região (Imazon, 2022).
Assim, pode-se dizer que a saída da Amazônia do
isolamento ocorreu por meio de um movimento centrípeto, num

150
BRANQUITUDE E SUBJETIVIDADE: UM ENSAIO SOBRE A IDENTIDADE
MANAUARA

movimento paradoxal e recorrente na qual uma força que vem de


fora para dentro conflita com a cultura. Como estratégia de
ocupação, sua finalidade é o domínio territorial, a violência e o
saque das riquezas e paisagens locais orientados por um modelo
econômico de um suposto desenvolvimento. Esse período foi
responsável pelo estabelecimento de uma concepção política
regional que visava explorar produtivamente e integrar a região ao
contexto nacional, eliminando o caráter “primitivo” (Paes Loureiro,
2019).
Foi o governo do regime militar que assinou o Decreto-Lei
no 288 de 1967 que instituiu a Zona Franca de Manaus (ZFM) como
área de livre comércio, beneficiária de incentivos fiscais e com
objetivo de ocupação do território amazônico. Consolidar a
soberania, ocupando e controlando a Amazônia era uma
preocupação frequente dos militares. O controle das fronteiras
tornara-se uma obsessão e a lógica que sustentava essa incidência
era de que essa seria a única maneira de fazer a Amazônia deixar de
ser um vazio demográfico para se transformar em fronteira de
expansão econômica do país, além de fonte provedora dos recursos
naturais (Brito, 2021).
Com a implantação da Zona Franca de Manaus foi
necessário a presença de imigrantes para compor a força de trabalho
nas indústrias do Polo Industrial de Manaus (PIM). A partir daí os
problemas de ordem social tanto para os imigrantes quanto para a
população começaram a surgir. Ocorreu um despovoamento do
interior amazônico e a consequente concentração de pessoas na
capital, Manaus, gerando uma superpopulação em periferias pobres,
sem nenhuma condição de infraestrutura urbana (Brito, 2021). Essa
superpopulação não se fixou apenas nos subúrbios de Manaus, mas
também se instalou nas proximidades das margens dos rios Negro e
Solimões, essa prática ficou conhecida como cidades flutuantes
(Salazar, 1985).
Essas alterações no modelo de desenvolvimento econômico
produziram profundas alterações na sociedade amazônica e gerou
impactos culturais irrecuperáveis, abrindo espaço para discussão
sobre o conceito de desterritorialização proposto por Haesbaert
(2004) nas quais aspectos simbólicos, políticos e econômicos

151
interferem diretamente nas pessoas e nas dinâmicas sociais dos
territórios geográficos. No caso, quando um governo com propósito
de integrar nacionalmente uma área, incentiva (política) a entrada
do capital estrangeiro (as empresas), tendo como resultado um
considerável número de imigrantes do interior para capital, que
levam consigo a identidade e cultura local (simbólico), com intuito
de compor a força de trabalho das indústrias, garantindo a renda
para si e para as corporações do grande capital (econômico) ocorre
o pacto narcísico da branquitude conforme nos revela Cida Bento
(2022).
Há a operacionalização das discriminações dentro das
instituições em questões éticas, morais e relacionadas a processos de
democratização de espaços institucionais, sendo sempre abordadas
de maneira “racional” justificando as desigualdades a partir da ideia
do mérito. Isso implica em considerar que existe um número
excessivo de pessoas brancas, no caso da cidade de Manaus,
principalmente sulistas, ocupando os lugares mais qualificados e
justificando essa ocupação a partir de ideias pré-concebidas sobre a
população da cidade, dentre elas: o amazonense é pouco instruído e
preguiçoso e as mulheres são facilmente acessíveis sexualmente,
dentre outros (Bento, 2022).
Isso implica considerar que o avanço histórico e econômico
da região, produziu menosprezo e desrespeito pela diversidade,
complexidade, fragilidade e superabundância da natureza,
considerando apenas a exploração da região e a negação do diálogo
com as características do território local. Além disso, ocorreu a
construção do caráter autoritário e lesivo das políticas públicas e a
progressiva perda da identidade cultural e desenraizamento de
grupos sociais que moram em Manaus (Loureiro, 2002).
Há, também, preconceitos expressos nos planos e nas
políticas institucionais de empresas públicas e privadas para região,
evidenciando, pelo menos, duas grandes vertentes: a) que indígenas
e caboclos viveriam em terras excessivamente vastas com atividades
pouco rentáveis para o Estado, gerando uma economia desfavorável
as sociedades modernas; b) as culturas de indígenas, negros e
caboclos seriam tribais, primitivas e pobres, consequentemente,
inferiores ao processo de desenvolvimento, não sendo priorizadas

152
BRANQUITUDE E SUBJETIVIDADE: UM ENSAIO SOBRE A IDENTIDADE
MANAUARA

nas políticas públicas. Como desdobramento desses estigmas ocorre


a “invisibilidade” de gênero, raça e classe no conjunto das políticas
públicas para a região (Loureiro, 2002).

Considerações finais

É inegável que boa parte da população da cidade de Manaus


não se identifica com as culturas indígenas como sendo originárias
da nossa constituição subjetiva e social. Há uma tentativa de
apagamento e uso de justificativas para aproximar características,
até mesmo fenotípicas, às figuras do colonizador europeu. Esse
movimento não ocorreu e nem permanece recorrente de maneira
aleatória. Faz parte da herança simbólica, política, econômica,
racista e colonizadora à qual todos nós, pessoas brancas, herdamos
ao nascer na cidade de Manaus, e da qual permanecemos como
reprodutores menos atentos, com vistas a manter nossos privilégios.
É o pacto da branquitude manauara.
Manaus, apesar de se apresentar como uma cidade com
mais de 2,5 milhões e meio de habitantes e representar a maior
densidade populacional do estado do Amazonas, aparece como uma
capital que não representa seu estado, uma vez que o Amazonas é o
estado mais indígena do Brasil. Essa informação, ao mesmo tempo
que causa espanto, também sugere que algo ocorreu na constituição
da subjetividade da população para que esse cenário fosse possível.
Compreender esse contexto, é a chave de leitura quando se observa
mais atentamente a história social, econômica e política da cidade
de Manaus, seus desdobramentos no processo de socialização entre
pessoas.
Marcada pela historicidade em tempos diferentes, porém
complementares, percebe-se que, tanto no período áureo da
borracha quanto na instalação do modelo de desenvolvimento
econômico da Zona Franca de Manaus, a cidade vivenciou ciclos de
organização social profundos e impactantes na subjetividade da
pessoa manauara. As tentativas de europeizar a cidade, também
estruturou um entendimento sobre si e sobre a sociedade
compatível com o modelo de sociedade que era propagado,

153
desenvolvendo um desprezo pela identidade indígena e um
silenciamento das origens ancestrais.
Noutro tempo, a chegada de mão de obra nas empresas
multinacionais exigia um “perfil” dominante que satisfizesse os
interesses dos grandes grupos internacionais, no caso homem e
branco com força de trabalho coerente para produzir. Colonizar as
identidades dentro do chão de fábrica era tarefa dos gerentes e
supervisores das indústrias. Com o arrefecimento do modelo
econômico do PIM, sobram os escombros e entulhos depositados
nas subjetividades do cidadão manauara que se perde em meio às
suas próprias origens, na época do festival de folclórico, mas que se
acha com relativa facilidade quando é orientado por discursos
racistas e colonizadores.
Porém, como as fronteiras do eu, são dialógicas, estão em
constante reconfiguração, acredito que reflexões, como essa que
busquei organizar neste texto, podem colaborar para uma mudança
efetiva na maneira como olhamos para a concepção que temos de
nós mesmos e nos aproximamos um pouco mais da nossa história,
por vezes invisibilizada e, muitas vezes, esquecida e desvalorizada.

Referências

BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: um Pouco Antes e Além


Depois. Manaus: Editora Umberto Calderaro, 1977.

BENTO, Cida. O Pacto da Branquitude. 1. ed. São Paulo:


Companhia das Letras, 2022.

BENTO, Maria Aparecida Silva; CARONE, Iray. (orgs.). Psicologia


Social do Racismo. 2. ed. São Paulo: Vozes, 2002.

BRAGA, Bruno Miranda. A Cidade, os Índios e a Belle Époque:


Manaus no Final do Século XIX (Amazonas – Brasil). Rev. Hist.
UEG - Anápolis, v.5, n.1, p. 103-123, jan./jul. 2016.

BRITO, Carlos Emílio Bessa de. Territorialidade: A Zona Franca de


Manaus e seu Impacto Socioeconômico no Estado do Amazonas.

154
BRANQUITUDE E SUBJETIVIDADE: UM ENSAIO SOBRE A IDENTIDADE
MANAUARA

Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação.


São Paulo, v.7, n.2, fev. 2021.

DAOU, Ana Maria Lima. A Cidade, o Teatro e o Paiz das


Seringueiras: Práticas e Representações da Sociedade Amazonense
na Passagem do século XIX-XX. Rio Janeiro: Rio Books, 2014.

FRANKENBERG, Ruth. A Miragem de uma Branquitude Não


Marcada. In: WARE, Vron (org.). Branquidade, Identidade Branca
e Multiculturalismo. Trad. Vera. Ribeiro. Rio de Janeiro:
Garamond, 2004, pp. 307-338.

FREIRE, José Ribamar Bessa. A Amazônia Colonial (1616-1798).


Manaus: Metro Cúbico, 1990.

HALL, Stuart. A Centralidade da Cultura: Notas sobre as


Revoluções Culturais do nosso Tempo. Educação & Realidade.
jul/dez. 1997. p. 15-46.

HALL, Stuart. Quem Precisa de Identidade? In: SILVA, Tomaz


Tadeu da (org.). Identidade e Diferença: a Perspectiva dos Estudos
Culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

HALL, Stuart. El Trabajo de la Representación. IEP – Instituto de


Estudios Peruanos: Lima, Maio, 2002.

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 11. ed.


. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

IMAZON. A Floresta Habitada: História da Ocupação Humana


na Amazônia. Disponível em: <https://imazon.org.br/a-floresta-
habitada-historia-da-ocupacao-humana-na-amazonia/>. Acesso
em: 10.09.2023

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA


(IBGE). Censo 2022. Disponível em: <https://censo2022.ibge.gov.
br/>. Acesso em: 10.09.2023

155
LOUREIRO, Violeta Refkalefsky. Amazônia: uma História de
Perdas e Danos, um Futuro a (Re)Construir. Estudos Avançados.
16 (45), 2002.

MORAES, Maria Laura Brenner. Stuart Hall: Cultura, Identidade e


Representação. Revista Educar Mais. v.3, n.2, 2019.

PAES LOUREIRO, João de Jesus. Cultura Amazônica: uma


Diversidade Diversa. 10 abr 2019. Disponível em: <https://www.
amazonialatitude.com/2019/04/10/cultura-amazonica-uma-
diversidade-diversa/>. Acesso em: 10.09.2023
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Entre práticas e representações. A
cidade do possível e a cidade do desejo. In: RIBEIRO, Luiz César de
Queiroz, PECHMAN, Robert (orgs.) Cidade, povo, nação. Gênese
do urbanismo moderno. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira,
1998, p. 377-396.

SALAZAR, João Pinheiro. O Abrigo dos Deserdados. Estudo sobre


a Remoção dos Moradores da Cidade Flutuante e os Reflexos da
Zona Franca na Habitação da População de Baixa Renda em
Manaus. São Paulo, 1985. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
São Paulo, 1985

SANTOS, Francisco Jorge. História do Amazonas. Rio de Janeiro:


MEMVAVMEM, 2010.

SANTOS, Tatiana de Lima Pedrosa; RAMOS, Tammy Rosas.


Voulez Vous un Café: Cultura e Consumo na Manaus do Século
XIX-XX. Rev. Arqueologia Pública, Campinas, SP, v.12, n.2, dez,
2018.

SCHUCMAN, Lia Vainer. Sim, Nós Somos Racistas: Estudo


Psicossocial da Branquitude Paulistana. Psicologia & Sociedade, 26
(1), p. 83-94, 2014.

SILVA, Raimundo Nonato Pereira da. De Aldeados a Urbanizados:


Aspectos da Identidade Étnica Indígena na Cidade de Manaus. Rua,
Campinas, v. 5, n.1, p. 109-119, 1999.

156
BRANQUITUDE E SUBJETIVIDADE: UM ENSAIO SOBRE A IDENTIDADE
MANAUARA

SOVIK, Liv. Aqui Ninguém é Branco: Hegemonia Branca no


Brasil. In: Vron Ware (org.). Branquidade, Identidade Branca e
Multiculturalismo. Trad. Vera. Ribeiro. Rio de Janeiro: Garamond,
2004, p. 363-386.

STEYN, Melissa. Novos Matizes da "Branquitude": a Identidade


Branca numa África do Sul Multicultural e Democrática. In: Vron
Ware (org.). Branquidade, Identidade Branca e
Multiculturalismo. Trad. Vera. Ribeiro. Rio de Janeiro: Garamond,
2004, p. 115-137.

Mini Currículo

Alessandra dos Santos Pereira


Doutora em Educação e pesquisadora do Laboratório de
Desenvolvimento Humano e Educação (LADHU), Faculdade de
Psicologia, Universidade Federal do Amazonas (UFAM). E-mail:
[email protected]
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4642752585045362

157
RACISMO ESTRUTURAL NOS
SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE
NO BRASIL
Henrique de Araújo Martins
Marck de Souza Torres

Introdução

A sociedade contemporânea enfrenta um desafio central: a


busca pela igualdade de direitos e a erradicação das diversas formas
de discriminação que persistem em suas estruturas. Nesse contexto,
o racismo emerge como um dos fenômenos mais insidiosos,
enraizado profundamente nas instituições e nas relações sociais.
Este ensaio objetiva uma análise do racismo nos serviços públicos
de saúde no Brasil, explorando a interseção entre a discriminação
racial e o acesso à saúde, duas dimensões cruciais que influenciam
significativamente a vida da população negra no país.
A importância desse tema é inegável, uma vez que a saúde é
um direito fundamental de todos os cidadãos e o sistema de saúde é
um reflexo direto da qualidade de vida de uma nação. No entanto, o
racismo institucional, que permeia as políticas, práticas e estruturas
das instituições, tem se revelado um obstáculo significativo para a
realização desse direito para a população negra. Compreender como
o racismo se manifesta nos serviços públicos de saúde é um passo
crucial para eliminar essa injustiça e promover a equidade no acesso
à saúde.
A presente análise se apoiará em uma sólida base teórica,
fundamentada nas obras de pensadores de renome, cujo papel
essencial consiste em aprimorar a compreensão das dinâmicas do
racismo. Esses autores fornecem as ferramentas conceituais
indispensáveis para desvelar as complexidades inerentes a esse
fenômeno no contexto do sistema de saúde brasileiro.
Além disso, este ensaio se sustentará em evidências
empíricas, provenientes de pesquisas realizadas em diferentes
regiões do país. Esses dados concretos oferecerão uma visão
detalhada das desigualdades raciais no acesso aos serviços de saúde,
permitindo-nos compreender como o racismo se manifesta na
prática e quais são seus impactos na vida da população negra.
Assim, ao longo deste ensaio, nosso objetivo primordial é
traçar um panorama das relações entre o racismo institucional nos
serviços de saúde e o acesso a esses serviços pela população negra no
Brasil. Nossa intenção é identificar barreiras, desafios e possíveis
soluções para promover uma saúde pública verdadeiramente
equitativa e inclusiva. Conforme avançamos nessa análise,
almejamos contribuir para a conscientização e o debate sobre esse
tema crucial, fornecendo valiosas perspectivas para a construção de
um sistema de saúde mais justo e equitativo para todas as brasileiras
e brasileiros.

Raça, racismo estrutural e desigualdades sociais

Desde que o ser humano se viu capaz de pensar e expressar


seu pensamento pela fala, utilizou a linguagem para nominar os
objetos e expressar o seu pensamento sobre eles. A linguagem, dessa
forma, sempre representou a maneira peculiar com que o indivíduo
percebe a sua realidade e, por isso mesmo, ela nunca foi neutra.
Muitos termos, como é o caso do lexema raça, estiveram
invariavelmente vinculadas ao contexto histórico no qual foram
produzidos e utilizados. De modo geral, a palavra raça é entendida
como um conjunto de traços psíquicos e biológicos que associam
ascendentes e descendentes numa mesma linhagem (Mendes, 2012).
Contudo, depois que o termo passou a ser empregado como
referência a diferentes categorias de seres humanos no século XVI,
passou a ser relacional e histórico, carreando consigo contingências,
conflitos, decisões e poderes que passaram a constituir a política e a
economia das sociedades hodiernas (Almeida, 2021).
Em meados dos séculos XIX e XX, formulações
antropológicas buscaram classificar os seres humanos a partir de seu
tipo morfológico e, com isso, terminaram por servir de fundamento
para a consolidação de um pensamento socialmente excludente,
onde determinados grupos humanos se viam justificados a
dominarem outros com base em sua suposta superioridade racial

160
RACISMO ESTRUTURAL NOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE NO BRASIL

(Stoczkowski, 1999). Quando uma discriminação dessas ocorre


sistematicamente tendo a raça por critério, manifestando-se
consciente ou inconscientemente por meio de práticas que
privilegiam ou desfavorecem os indivíduos segundo o grupo racial
ao qual pertençam, diz-se que houve aí a (re)produção do racismo
(Almeida, 2021).
No contexto brasileiro, o racismo científico, uma das
consequências legadas pelo período da escravidão, emergiu no final
do século XIX como uma crença pseudocientífica que se baseava
nas teorias científicas da época para fundamentar a classificação da
humanidade em diferentes raças e, consequentemente, para
estabelecer uma hierarquia entre elas (Guimarães, 2004).
Fortalecida posteriormente por outros movimentos, como o da
eugenia, essas ideias de hierarquização racial tiveram um impacto
significativo na perspectiva das elites intelectuais do país. O Brasil
era frequentemente retratado no cenário internacional como
possuindo uma inferioridade racial e sendo caracterizado como
uma nação incivilizada, isso devido à sua miscigenação, clima
tropical e percepção de uma suposta indolência física e moral. A
crença predominante era de que a pele não branca e o ambiente
tropical propiciavam o desenvolvimento de comportamentos
considerados imorais, lascivos e violentos, bem como eram
associados à suposta falta de inteligência. Por conseguinte,
advogava-se a necessidade de evitar a miscigenação racial, pois
acreditava-se que os indivíduos mestiços eram mais propensos à
degeneração (Almeida, 2021; Souza, 2022). Foi assim que a
hierarquização das raças passou a se tornar mais um elemento
estruturante das desigualdades sociais no Brasil, contribuindo para
os fenômenos de preconceito, discriminação racial e racismo.
Preconceito, racismo e discriminação são conceitos
interrelacionados, mas cada um possui características distintas no
contexto da questão racial. Segundo Almeida (2021), em sua obra
Racismo Estrutural, o preconceito racial refere-se ao julgamento
baseado em estereótipos e crenças pré-concebidas sobre indivíduos
pertencentes a grupos raciais específicos. É uma atitude negativa ou
positiva que pode ou não resultar em ações discriminatórias. Um
exemplo de preconceito racial seria considerar que certos grupos

161
raciais são naturalmente predispostos a características negativas,
como a violência ou a falta de inteligência.
A discriminação racial, por sua vez, é a atribuição de
tratamento diferenciado a pessoas com base em sua identificação
racial. Ela requer poder a fim de ter a capacidade efetiva de impor
vantagens ou desvantagens devido à raça. A discriminação pode ser
direta, manifestando-se como rejeição explícita de indivíduos ou
grupos com base em sua raça, como proibições de entrada em locais
públicos ou negação de serviços; ou pode ser indireta, quando as
práticas ou normas, aparentemente neutras em relação à raça,
resultam em impactos adversos para grupos racializados, muitas
vezes sem intenção explícita de discriminar. Um exemplo de
discriminação indireta é a aplicação de regras de "neutralidade
racial" que não levam em consideração diferenças sociais
significativas existentes (Almeida, 2021).
O racismo, por fim, é uma forma sistêmica de
discriminação racial que tem a raça como seu fundamento. Ele é
caracterizado por práticas conscientes ou inconscientes que levam a
desvantagens ou privilégios com base no grupo racial ao qual um
indivíduo pertence. O racismo não se limita a atos discriminatórios
isolados, mas é um processo em que as desigualdades sociais são
reproduzidas sistematicamente em diferentes esferas, como política,
economia e relações cotidianas. Além disso, o racismo muitas vezes
está ligado à segregação racial, envolvendo a divisão espacial de
grupos raciais em áreas específicas e a definição de estabelecimentos
e serviços como exclusivos para determinados grupos raciais. A
consequência dessas práticas é um fenômeno intergeracional de
estratificação social, onde o percurso da vida dos integrantes de um
grupo racial é afetado pelo impacto limitante que estes
experimentam em suas chances de reconhecimento, ascensão social
e sustento material. A raça, dessa forma, demonstra o seu verdadeiro
lugar enquanto elemento essencialmente político (Almeida, 2021).
O debate em torno das disparidades raciais no contexto
brasileiro tem sido influenciado por duas ideologias predominantes.
De um lado, há a persistência do mito da democracia racial, que
tende a minimizar as discrepâncias raciais, sugerindo uma suposta
harmonia entre grupos étnicos. Por outro lado, existe a perspectiva

162
RACISMO ESTRUTURAL NOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE NO BRASIL

da luta de classes, que tende a subordinar a questão racial à divisão


socioeconômica, negligenciando as complexas intersecções entre
raça, direitos humanos, justiça social e democracia. Ambas essas
abordagens, de acordo com a análise de Carneiro (2011), tendem a
ignorar ou subestimar a interconexão entre raça e questões de
direitos humanos, perpetuando assim um desafio substancial na
busca pela eliminação das desigualdades raciais por meio de
políticas públicas.
As persistentes desigualdades sociais no Brasil têm suas
raízes em uma questão fundamental relacionada aos direitos
humanos, segundo Carneiro (2011). Essa questão essencial é a
perniciosa concepção de que certos grupos humanos são
categorizados como mais ou menos humanos do que outros. Essa
percepção errônea acaba por naturalizar a desigualdade de direitos,
resultando em restrições desiguais no acesso aos direitos
fundamentais para aqueles considerados "menos humanos". Essas
desigualdades raciais derivam da discriminação e do racismo,
rompendo com a visão anterior que considerava as disparidades
raciais meros subprodutos das desigualdades de classe. A sociedade
brasileira continua profundamente fragmentada ao longo de linhas
raciais, como evidenciado por dados que revelam que a renda média
dos trabalhadores brancos é 75,7% maior do que a dos
trabalhadores negros (Rodrigues, 2022). Contrariamente à
perspectiva que atribui essa disparidade exclusivamente às
condições socioeconômicas e culturais da população negra, é
preciso reconhecer que outros elementos estão intrinsecamente
ligados a essa questão, incluindo o fenômeno da branquitude.
A branquitude é uma construção social que envolve uma
série de aspectos psicológicos, sociais e culturais, de acordo com
Bento (2002). Um deles é o medo, que alimenta a projeção dos
brancos sobre os negros. Esse medo encontra suas raízes na
paranoia em torno do diferente, do estranho, do não-branco.
Historicamente, o medo do negro esteve na gênese do
branqueamento, um processo inventado e mantido pela elite branca
brasileira. Esse processo buscava diluir as características raciais
negras na população, promovendo a ascensão da branquitude como
um modelo universal de humanidade. Essa apropriação simbólica

163
fortaleceu a autoestima e o autoconceito do grupo branco,
justificando assim sua supremacia econômica, política e social. A
branquitude também está associada ao narcisismo, onde os brancos
se veem como o padrão de referência da condição humana,
depositários do "lado bom", enquanto projetam sobre os negros as
características consideradas "ruins" ou inferiores. Essa projeção,
juntamente com a falta de reflexão sobre o papel dos brancos nas
desigualdades raciais, perpetua a ideia de que o racismo é
exclusivamente um problema do negro, desviando a atenção das
responsabilidades dos brancos na manutenção dessas desigualdades.
Além disso, o medo da sexualidade desempenhou um papel
importante na construção do racismo. A repressão da sexualidade
na sociedade branca europeia foi projetada sobre os negros, e essa
aversão à sexualidade negra contribuiu para a estigmatização dos
grupos não-brancos, resultando em inúmeros genocídios e políticas
discriminatórias. Contribui para a manutenção desse contexto o
recalcamento coletivo, expresso na transmissão intergeracional de
conteúdos inconscientes, que solidifica a persistência do "acordo
tácito" na sociedade brasileira de evitar o debate aberto acerca do
racismo e de encarar as desigualdades raciais como uma
problemática que recai unicamente sobre os ombros da população
negra.
O silenciamento diante do racismo e das desigualdades
sociais associadas desempenha um papel significativo no contexto
sócio-histórico da população negra, exercendo efeitos adversos em
sua saúde. No ensaio "O Preto e a Psicopatologia" de Fanon (2008),
o autor ilustra como muitos indivíduos negros são compelidos a
adotar a perspectiva dos brancos ao avaliar sua identidade,
resultando em impactos psicológicos profundos. Ao verem-se por
essa ótica externa, os negros buscam a aceitação branca, podendo
resultar no desenvolvimento de complexos de inferioridade,
autodesvalorização e, até mesmo, na adoção de uma "máscara
branca" para ocultar sua negritude.
Outrossim, as experiências de discriminação racial e o
racismo sistêmico acarretam problemas psicológicos, como
ansiedade, depressão e alienação, impactando negativamente na
autoestima e na formação da identidade dos negros (Barros et al.,

164
RACISMO ESTRUTURAL NOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE NO BRASIL

2022; Santos; Ricci, 2020). Tais problemas derivam da assimilação às


normas brancas que, frequentemente, os excluem e não os
reconhecem como iguais (Fanon, 2008). Essas consequências
psicológicas exacerbam as disparidades de saúde e agravam a
marginalização social da população negra.
A existência de uma "máscara" é concebida por Kilomba
(2019) como um elemento central na dinâmica do racismo,
simbolizando o silenciamento coercitivo das vozes negras e a
negação de suas verdades. No contexto colonial europeu, essa
máscara representava uma ferramenta concreta usada para
restringir os indivíduos negros, sendo um dispositivo colocado na
boca deles para impedir a ingestão de alimentos enquanto
trabalhavam nas plantações. Sua função principal, no entanto,
residia na imposição de um silêncio opressivo e na instilação do
medo, transformando a boca, que simboliza a expressão verbal e a
comunicação, em um local de tortura e coibição. Essa prática
simboliza o colonialismo como um todo, refletindo políticas cruéis
de conquista e domínio, juntamente com a supressão das vozes
daqueles considerados diferentes e inferiores. A máscara também
serve para ilustrar o temor dos colonizadores brancos de confrontar
as verdades desconfortáveis que as vozes negras poderiam revelar.
Nesse contexto, ela representa a negação e a projeção, mecanismos
de defesa do ego empregados para evitar o reconhecimento do
racismo e a manutenção de uma sensação de superioridade branca.
Em última análise, a máscara, hoje simbólica, mas ainda real,
funciona como um dispositivo de silenciamento que perpetua a
opressão racial.
Para uma compreensão abrangente do fenômeno do
racismo, Almeida (2021) propõe três perspectivas conceituais
distintas: a concepção individualista, a institucional e a estrutural. A
individualista aborda o racismo como um problema ético ou
psicológico, restringindo-o a comportamentos individuais ou
coletivos e frequentemente o reduzindo a um mero "preconceito". O
foco principal recai sobre a dimensão psicológica do racismo,
sugerindo que a conscientização e a educação são meios para sua
resolução, enfatizando a responsabilização dos indivíduos racistas.
Por sua vez, a perspectiva institucional reconhece que o racismo

165
pode ser perpetuado através das instituições, direcionando a
atenção para o funcionamento dessas entidades e como elas, ainda
que de maneira indireta, podem criar desigualdades e privilégios
com base na raça. Nesse contexto, a raça é considerada uma parte
intrínseca das instituições, sugerindo a implementação de políticas
antirracistas dentro delas para promover a igualdade racial.
Entretanto, essa abordagem pode ser considerada limitada se não
considerar o contexto mais amplo da estrutura social em que essas
instituições operam. Por fim, a perspectiva estrutural transcende as
instituições e argumenta que o racismo não é meramente um
problema de indivíduos ou instituições isoladas, mas é uma parte
inerente da própria estrutura da sociedade. O racismo é visto como
um componente orgânico da sociedade e suas diversas relações
políticas, econômicas e jurídicas. Isso implica que as instituições,
mesmo quando buscam promover a igualdade racial, estão
arraigadas em uma estrutura social que normaliza o racismo. Nesse
contexto, a implementação de políticas antirracistas é considerada
necessária, mas insuficiente, sendo enfatizada a necessidade de
mudanças profundas nas relações sociais, políticas e econômicas
para combater efetivamente o racismo.
Com vistas a intensificar o enfrentamento do racismo no
Brasil, emergiu, ao longo do século XX, o movimento social negro,
cujo propósito era promover a igualdade racial no país. Esse
movimento foi influenciado por figuras históricas de resistência,
como Zumbi e Dandara dos Palmares, dentre outros. Ele englobou a
ativa participação de artistas, intelectuais, políticos e ativistas em
diversos eventos cruciais para o debate e a implementação de
políticas públicas voltadas para a população negra (França, 2019;
Pereira, 2011). A Constituição de 1988, também conhecida como
Constituição Cidadã, foi um desses eventos fundamentais que
contaram com a contribuição do movimento social negro. Essa
Constituição posteriormente serviu como base para a elaboração da
Lei 8.080/1990, que estabeleceu o Sistema Único de Saúde (SUS) no
país (Brasil, 1990). No entanto, apesar desses avanços, não se
alcançou a pela incorporação, no âmbito do SUS, de dispositivos
eficazes para mitigar as barreiras de acesso enfrentadas pela
população negra, as quais são resultantes do racismo estrutural.

166
RACISMO ESTRUTURAL NOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE NO BRASIL

O acesso da população negra aos serviços de saúde

No Brasil, a saúde é concebida como um direito inalienável


concedido a todos os cidadãos e, simultaneamente, uma
responsabilidade atribuída ao Estado. Como estabelecido na
Constituição Federal de 1988, o Estado é designado como o
provedor primário dos serviços de saúde, com o compromisso de
assegurar que esses serviços sejam acessíveis a todos de maneira
igualitária e universal, promovendo a equidade no sistema (Brasil,
1988). Contudo, é crucial reconhecer que, mesmo com uma base
legal que preconiza a disponibilidade indiscriminada de serviços de
saúde, a simples existência dessa previsão legal não garante a efetiva
implementação de ações que proporcionem, de fato, o acesso a esses
serviços.
O acesso aos serviços de saúde no Brasil é influenciado
significativamente por fatores como nível de escolaridade, renda,
status socioeconômico e outros determinantes sociais. A população
negra, em particular, enfrenta notáveis vulnerabilidades sociais e
epidemiológicas que exacerbam essas barreiras de acesso. Esta
parcela da população tende a residir em regiões caracterizadas pela
escassez ou ausência de infraestrutura básica, a ocupar empregos
com menor qualificação e remuneração, e a enfrentar maior
exposição a serviços de saúde de qualidade inferior (Araújo et al.,
2009). Estas adversidades, combinadas com a estigmatização racial
persistente, não apenas prejudicam a saúde da comunidade negra,
mas também suas condições gerais de subsistência.
Uma consideração política que parece agravar a persistente
dificuldade de acesso aos serviços de saúde pela população negra
está relacionada à contradição destacada por Carneiro (2011),
previamente mencionada aqui – os direitos humanos não são
aplicáveis a todos indiscriminadamente, mas sim a certos indivíduos
considerados "mais humanos" do que outros. Nesse contexto, as
raças consideradas inferiores, como a raça negra, muitas vezes não
têm acesso aos mesmos direitos de assistência à saúde que aqueles
que pertencem a raças historicamente concebidas como superiores,
como a raça branca. Um estudo realizado por Silva, Lima e Hamann

167
(2010) revelou que as pessoas negras enfrentam maiores obstáculos
no acesso aos serviços de saúde, relatam sintomas de infecções
sexualmente transmissíveis com maior frequência e tendem a
recorrer mais à automedicação em comparação com indivíduos não
negros. Além disso, a população negra apresenta taxas elevadas de
mortalidade materna e infantil, óbitos prematuros, maior
prevalência de doenças crônicas e infecciosas, bem como altos
índices de violência em comparação com outros grupos étnicos
(Ministério Da Saúde, 2009). Para alterar essa realidade, é
fundamental reconhecer e atribuir significado às desigualdades
resultantes e perpetuadas pelo racismo.
Em várias circunstâncias, o Estado brasileiro desempenha
um papel na perpetuação das desigualdades raciais. De acordo com
a argumentação de Werneck (2016), o racismo institucional
representa possivelmente a dimensão mais subestimada do racismo.
O racismo institucional está intrinsecamente relacionado à
vulnerabilidade, pois se refere a práticas e políticas adotadas pelas
instituições que, de forma deliberada ou inadvertida, resultam na
produção e/ou manutenção da vulnerabilidade em grupos alvo do
racismo.
Diante dessa realidade, o Ministério da Saúde reconheceu a
necessidade de estabelecer estratégias para abordar o racismo
institucional no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Em 13 de
maio de 2009, foi promulgada a Portaria GM/MS no 992,
instituindo a Política Nacional de Saúde Integral da População
Negra. O principal objetivo dessa política é "promover a saúde
integral da população negra, priorizando a redução das
desigualdades étnico-raciais, o combate ao racismo e à
discriminação nas instituições e nos serviços do SUS" (Ministério
Da Saúde, 2009, p.24). No processo de formulação dessa política,
foram identificadas as doenças, agravos e condições mais frequentes
na população negra, abrangendo: a) Doenças relacionadas a fatores
genéticos, como anemia falciforme, deficiência de glicose 6-fosfato
desidrogenase, hipertensão arterial e diabetes mellitus; b) Doenças
adquiridas devido a condições socioeconômicas desfavoráveis,
como desnutrição, mortes violentas, alta mortalidade infantil,
abortos sépticos, anemia ferropriva, DST/AIDS, doenças

168
RACISMO ESTRUTURAL NOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE NO BRASIL

ocupacionais, transtornos mentais decorrentes da exposição ao


racismo e transtornos associados ao uso de substâncias psicoativas,
como alcoolismo e toxicomania; c) Condições com evolução
agravada ou dificuldades no tratamento, como hipertensão arterial,
diabetes mellitus, doenças coronarianas, insuficiência renal crônica,
câncer e miomas; d) Condições fisiológicas afetadas por condições
socioeconômicas, como crescimento, gravidez, parto e
envelhecimento (Werneck, 2016).
Não obstante os avanços observados nas iniciativas
relacionadas à saúde da população negra, diversas pesquisas
continuam a destacar as barreiras que esse grupo enfrenta no acesso
aos serviços de saúde. Por exemplo, o estudo de Goes e Nascimento
(2013) revelou que apenas 7,9% das mulheres negras têm um acesso
adequado aos serviços de saúde, em contraste com os 15,4% das
mulheres brancas que desfrutam de tal acesso. Em uma investigação
conduzida por Souza, Barroso e Guimarães (2014) em comunidades
quilombolas no sudoeste da Bahia, identificou-se uma taxa de perda
de oportunidade para o diagnóstico oportuno de diabetes mellitus
de 42,6%, ao passo que 28,4% dos entrevistados classificaram o
acesso aos serviços de saúde como insatisfatório. Por sua vez, Neto
et al. (2015) constataram que 90% dos participantes de seu estudo
sequer tinham conhecimento da existência de políticas de saúde
voltadas para a população negra, e 56,4% deles afirmaram que os
pretos enfrentam maiores dificuldades no acesso aos serviços de
saúde. Essas dificuldades sugerem um serviço que desconhece o seu
público-alvo destinatário.
O conhecimento do público-alvo dos serviços de saúde
representa um passo crucial na expansão do acesso e
aprimoramento da qualidade dos cuidados de saúde prestados.
Conhecê-lo não só em suas questões biológicas, mas igualmente
psicossociais e individuais. A população negra demonstra uma
propensão à incidência de trauma racial, caracterizado por
experiências traumáticas relacionadas a ameaças, preconceitos,
danos, vergonha, humilhação e culpa, associadas a diversos tipos de
discriminação racial, seja direcionada diretamente às vítimas ou
observada por elas. Segundo Cénat (2022), o trauma racial pode
manifestar-se em várias formas e etapas da vida de indivíduos

169
racializados. Isso abarca: a) Microagressões: Refere-se a ações ou
comentários frequentemente sutis, porém ofensivos, que espelham
preconceitos raciais. Por exemplo, alguém pode proferir
comentários depreciativos sobre a aparência de uma pessoa com
base em sua raça; b) Comportamentos inadequados: Envolve
discriminação racial mais explícita, como insultos, tratamento
injusto ou hostilidade direcionada a alguém com base em sua raça;
c) Violência: Abrange atos violentos dirigidos a indivíduos em
virtude de sua raça, como agressões físicas ou ameaças de morte; d)
Testemunhar assassinatos raciais: Refere-se à exposição de uma
pessoa à violência racial direta, como ser testemunha do assassinato
de alguém de sua própria raça motivado por razões raciais; e)
Outras formas de discriminação racial: Além das categorias acima, o
trauma racial também pode incluir discriminação sistêmica e
institucional que afeta as oportunidades de vida de pessoas
racializadas em áreas como educação, serviços de saúde, emprego e
habitação. O que singulariza o trauma racial é sua característica de
persistência e acumulação ao longo do tempo, em eventos
traumáticos relacionados à raça. Além disso, o trauma racial é
contínuo e está interconectado com a opressão sistêmica que as
pessoas racializadas continuam a enfrentar em suas vidas
cotidianas. Embora essas vitimizações frequentemente sejam
microagressões, elas exercem um impacto constante e cumulativo
na vida das vítimas, afetando vários aspectos, incluindo saúde
mental, bem-estar emocional e oportunidades econômicas, o que
também influencia na necessidade de um acesso e qualidade de
serviços de saúde ampliadas para essa população.
Reconhecer e combater o "perigo da história única" é
também uma abordagem eficaz na luta contra o racismo. Segundo
Adichie (2019), esse fenômeno da “história única” refere-se à
criação e perpetuação de narrativas unilaterais e estereotipadas
sobre grupos étnicos, localidades ou culturas, contribuindo para a
disseminação de preconceitos e estereótipos prejudiciais, resultando
na desumanização e desvalorização dos indivíduos retratados. Para
combater eficazmente o racismo, é imperativo desafiar e questionar
essas histórias unidimensionais, buscando uma compreensão
abrangente e multifacetada das pessoas, lugares e culturas em

170
RACISMO ESTRUTURAL NOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE NO BRASIL

questão. O reconhecimento da diversidade de histórias e


experiências dentro de qualquer grupo ou contexto possibilita a
superação de estereótipos prejudiciais, promovendo, assim, uma
visão mais inclusiva e humanizada do mundo. Portanto, ao abordar
e compreender o "perigo da história única", contribuímos
significativamente para a erradicação do racismo e para o cultivo de
uma compreensão autêntica e respeitosa entre todos os indivíduos
atendidos pelo SUS.
O papel central da gestão pública na formulação e execução
de estratégias e serviços que fortaleçam o SUS, incluindo a educação
permanente dos profissionais da saúde, é destacado por Anunciação
et al. (2022). Esta educação desempenha um papel crucial ao
capacitar esses profissionais na identificação e combate ao racismo,
resultando na transformação dos processos de trabalho e,
consequente, aprimoramento na prestação dos serviços de saúde,
promovendo a equidade e levando em consideração a diversidade e
necessidades específicas da população brasileira. Segundo as
autoras, no contexto da saúde, frequentemente se observa uma
abordagem predominantemente tecnicista e biologicista, com a
doença ocupando uma posição central, negligenciando a
consideração do indivíduo e de sua interação social. Isso resulta em
um modelo fragmentado que desconsidera as competências e
habilidades essenciais para humanizar o cuidado. Para abordar
efetivamente tanto o racismo interpessoal quanto o racismo
institucional, as autoras afirmam ser imperativo alinhar a Política
Nacional de Saúde Integral da População Negra com a Política
Nacional de Educação Permanente em Saúde, pois ambas as
políticas requerem uma revisão crítica da concepção histórica da
chamada "democracia racial", reconhecendo a necessidade urgente
de um processo educativo permanente que aborde os processos
históricos subjacentes às desigualdades socioeconômicas e às
determinantes sociais da saúde na prática cotidiana dos
profissionais. Adicionalmente, a implementação de políticas de
ações afirmativas e a criação de programas de pós-graduação em
saúde da população negra desempenham um papel essencial no
avanço da produção de conhecimento e na capacitação de
profissionais nesta área.

171
No contexto das experiências vividas por mulheres negras,
Crenshaw (2004) enfatiza a importância da intersecionalidade na
compreensão das discriminações de raça e gênero, evidenciando a
complexidade das vivências daquelas que enfrentam discriminação
em múltiplos níveis. Quando uma mulher negra é vítima de
discriminação, não é suficiente abordar isoladamente a
discriminação racial ou de gênero; ao contrário, é essencial
considerar como essas formas de discriminação se entrelaçam e se
amplificam mutuamente. Tanto a discriminação racial quanto a de
gênero são influenciadas por fatores interconectados, resultando em
uma intricada rede de desigualdades. No entanto, apesar do
reconhecimento da intersecionalidade, desafios persistem, como a
tendência de tratar raça e gênero como questões separadas e
mutuamente exclusivas. Essa abordagem invisibiliza as experiências
interseccionais das mulheres negras atendidas pelo SUS. Para
superar essas barreiras, é fundamental reformular práticas, integrar
movimentos e nomear líderes que representem a diversidade. Além
disso, é importante adotar abordagens que produzam dados que
capturem as complexas vivências interseccionais das pessoas,
possibilitando a formulação de políticas e práticas mais inclusivas e
eficazes. A intersecionalidade se apresenta como uma oportunidade
valiosa para alcançar esse objetivo e assegurar soluções mais efetivas
para as complexas questões de discriminação de raça e gênero.
A necessidade imperativa de implementar medidas para
uma abordagem eficaz das desigualdades em saúde é destacada por
Werneck (2016). Essas medidas devem abranger a criação de
programas direcionados às populações vulneráveis e o
desenvolvimento de estratégias para reduzir disparidades entre
grupos. Além disso, é essencial adotar ações afirmativas em diversos
níveis, envolvendo a instituição de medidas individualizadas, como
meio de mitigar as discrepâncias raciais no âmbito da saúde e
promover respostas adequadas para a promoção da saúde da
população negra. Fatores interconectados, como racismo, sexismo,
condições socioeconômicas e culturais, continuam a atuar de
maneira conjunta, influenciando a promoção do acesso universal e
equitativo à saúde.

172
RACISMO ESTRUTURAL NOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE NO BRASIL

Considerações finais

No contexto multifacetado e diversificado do Brasil, onde a


saúde é considerada um direito universal, porém persistem
disparidades significativas no acesso aos serviços de saúde pela
população negra, torna-se incontestável a imperatividade de
enfrentar e combater o racismo institucional presente nos sistemas
de saúde públicos. As disparidades identificadas demandam atenção
contínua e a adoção de medidas imediatas para significativo
aprimoramento desses serviços.
Para promover uma mudança efetiva nesse cenário, é
imperativo reconhecer e confrontar a branquitude e seus
mecanismos subjacentes. Uma abordagem eficaz envolve a
conscientização e aceitação da própria branquitude,
compreendendo suas implicações culturais, políticas e
socioeconômicas. Isso requer o desenvolvimento de uma identidade
racial branca não-racista, onde os indivíduos brancos podem
reconhecer e desafiar ativamente o racismo sistêmico.
Lidar com a intersecionalidade da discriminação de raça e
gênero também se torna fundamental. Isso envolve a coleta e análise
de dados desagregados por raça e gênero, a reformulação das
práticas que contribuem para a invisibilidade da discriminação
intersecional e o reconhecimento de que os direitos contra a
discriminação intersecional devem ser aplicados de forma
abrangente. Essa abordagem holística leva em consideração as
complexas interações entre raça e gênero na luta pelos direitos
humanos e pela igualdade.
Para enfrentar as limitações de acesso da população negra
aos serviços de saúde, é essencial compreender o racismo em sua
dimensão ideológica, que molda as relações de poder na sociedade e
determina a distribuição de poder e riqueza. É necessário um
esforço conjunto entre gestores, trabalhadores da saúde e usuários
do SUS para assegurar os direitos à saúde, levando em consideração
as desigualdades raciais que afetam o cotidiano das pessoas e suas
condições de saúde.
Reconhecer a interseção da raça nas questões de direitos
humanos e justiça social é fundamental. Isso implica na

173
implementação de políticas públicas eficazes que promovam a
igualdade racial e a inclusão da população negra no
desenvolvimento do país.
Outrossim, é essencial evitar o perigo de criar estereótipos
incompletos sobre grupos populacionais, como alertado por
Adichie (2019). Estudos contínuos que investigam aspectos
culturais, sociais, econômicos e políticos das comunidades
atendidas pelos serviços de saúde são essenciais para adaptar esses
serviços de forma a garantir disponibilidade, acessibilidade e
aceitabilidade dentro de contextos específicos.
A criação de políticas públicas voltadas para a equidade
racial representa um avanço significativo, mas o monitoramento e a
avaliação contínuos dos serviços prestados são igualmente cruciais
para garantir a qualidade do acesso e a adesão da população negra.
Ademais, a sensibilização contínua dos gestores e profissionais de
saúde para a atuação diante da diversidade é essencial.
É importante ressaltar que a discriminação positiva, por
meio de políticas de ação afirmativa, também é uma abordagem
relevante para corrigir as desigualdades raciais historicamente
perpetuadas. Essas políticas visam corrigir as desvantagens causadas
pela discriminação negativa, contribuindo para uma sociedade mais
justa e igualitária.
Em última análise, a busca pela equidade racial no acesso
aos serviços de saúde no Brasil requer uma abordagem abrangente
que envolva todos os segmentos da sociedade e reconheça a
interconexão entre raça, saúde, e justiça social. Somente por meio
do compromisso contínuo e da ação coordenada será possível
alcançar um sistema de saúde verdadeiramente inclusivo e
equitativo para todos os brasileiros.

Referências

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única.


Trad. Julia Romeu. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

ALMEIDA, Sílvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Jandaíra,


2021. 256 p.

174
RACISMO ESTRUTURAL NOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE NO BRASIL

ANUNCIAÇÃO, Diana; PEREIRA, Lucélia Luiz; SILVA, Hilton P.;


NUNES, Ana Paula Nogueira; SOARES, Jaqueline Oliveira.
(Des)caminhos na garantia da saúde da população negra e no
enfrentamento ao racismo no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, [s.
l.], v. 27, n. 10, p. 3861-3870, 2022.

ARAÚJO, Edna Maria de; COSTA, Maria da Conceição


Nascimento; HOGAN, Vijaya Krishna; ARAÚJO, Tânia Maria de;
BATISTA DIAS, Acácia; OLIVEIRA, Lúcio Otávio Alves. The use of
the race/color variable in Public Health: possibilities and
limitations. Interface, Botucatu, v. 5, n. 31, p. 383-394, 2009.

BARROS, Sônia; SANTOS, Jussara Carvalho; CANDIDO, Bruna de


Paula; BATISTA, Luís Eduardo; GONÇALVES, Mônica Mendes.
Atenção à Saúde Mental de crianças e adolescentes negros e o
racismo. Interface: Comunicação, saúde, educação, Botucatu, v. 26,
p. 1-18, 2022.

BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e branquitude no


Brasil. In: CARONE, Iracy; BENTO, Maria Aparecida Silva (org.).
Psicologia social do racismo: Estudos sobre branquitude e
branqueamento no Brasil. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. cap. 2, p.
25-57.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República


Federativa do Brasil. Brasília/DF: Senado Federal. Disponível em:
Constituição (planalto.gov.br). Acesso em: 01 de outubro de 2023.

BRASIL. Lei nº 8080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as


condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a
organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá
outras providências. Brasília, 20 set. 1990.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil.


São Paulo: Selo Negro, 2011.

CÉNAT, Jude Mary. Complex racial trauma: evidence, theory,


assessment, and treatment. Perspectives on Psychological Science,
[s. l.], v. 18, n. 3, p. 675-687, 2022.

175
CRENSHAW, Kimberle. A Intersecionalidade na discriminação de
raça e gênero. Cruzamento: raça e gênero, Brasília, p. 7-16, 2004.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato de


Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

FRANÇA, Ébano Francisco Souza. O movimento negro brasileiro


e a política de saúde da população negra: uma história de
conquistas pontuais (1988-2010). Orientador: Profa. Dra. Maria
Cláudia Ferreira Cardoso. 2020. 52 f. Trabalho de Conclusão de
Curso (Licenciatura em História) - Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, São Francisco do
Conde, 2019.

GOES, Emanuelle Freitas; NASCIMENTO, Enilda Rosendo do.


Mulheres negras e brancas e os níveis de acesso aos serviços
preventivos de saúde: uma análise sobre as desigualdades. Saúde
em Debate, Rio de Janeiro, v. 37, n. 99, p. 571-579, 2013.

GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Preconceito de cor e


racismo no Brasil. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 47, n. 1,
p. 9-43, 2004.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: Episódios de racismo


cotidiano. Trad. Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. 244 p.

MENDES, Maria Manuela. Raça e racismo: controvérsias e


ambiguidades. Vivência: Revista de antropologia, [s. l.], n. 39, p.
101-123, 2012.

MINISTÉRIO DA SAÚDE (Brasil). Secretaria de Gestão Estratégica


e Participativa. Política Nacional de Saúde Integral da População
Negra: uma política do SUS. 3. ed. Brasília: Editora do Ministério
da Saúde, 2017. 44 p.

MOREIRA, Marco Antônio. Linguagem e aprendizagem


significativa. Conferência de encerramento do IV Encontro
Internacional sobre Aprendizagem Significativa, Maragogi, v. 8,
2003.

176
RACISMO ESTRUTURAL NOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE NO BRASIL

NETO, José Antônio Chehuen; FONSECA, Geovane Mostaro;


BRUM, Igor Vilela; SANTOS, João Luís Carvalho Tricote;
RODRIGUES, Tamara Cristina Gomes Ferraz; PAULINO, Katia
Rocha; FERREIRA, Renato Erothildes. Política Nacional de Saúde
Integral da População Negra: implementação, conhecimento e
aspectos socioeconômicos sob a perspectiva desse segmento
populacional. Ciência & Saúde Coletiva, [s. l.], v. 20, n. 6, p. 1909-
1916, 2015.

PEREIRA, Amilcar Araújo. Movimento negro brasileiro: aspectos


da luta por educação e pela “reavaliação do papel do negro na
história do Brasil” ao longo do século XX. Anais do XXVI
Simpósio Nacional de História, São Paulo, 2011. XXVI Simpósio
Nacional de História.

RODRIGUES, Léo. IBGE: renda média de trabalhador branco é


75,7% maior que de pretos. In: AGÊNCIA BRASIL. Economia. Rio
de Janeiro, 2022. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/
economia/noticia/2022-11/ibge-renda-media-de-trabalhador-
branco-e-757-maior-que-de-pretos>. Acesso em: 25 set. 2023.

SANTOS, Gabriella da Cruz; RICCI, Éllen Cristina. Saúde mental


da população negra: relato de uma relação terapêutica entre sujeitos
marcados pelo racismo. Revista de Psicologia da UNESP, Assis, v.
19, n. spe, p. 220-241, 2020.

SILVA, Maria Josenilda Gonçalves da; LIMA, Francisca Sueli da


Silva; HAMANN, Edgar Merchan. Use of STD/HIV/AIDS-
Oriented public health care services by Quilombo communities in
Brazil. Saúde e Sociedade, [s. l.], v. 19, n. 2, p. 109-120, 2010.

SOUZA, Cláudio Lima; BARROSO, Sabrina Martins;


GUIMARÃES, Mark Drew Crosland. Oportunidade perdida para
diagnóstico oportunista de diabetes mellitus em comunidades
quilombolas do sudoeste da Bahia, Brasil. Ciência & Saúde
Coletiva, [s. l.], v. 19, n. 6, p. 1653-1662, 2014.

SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Eugenia, racismo científico e


antirracismo no Brasil: debates sobre ciência, raça e imigração no

177
movimento eugênico brasileiro (1920-1930). Revista Brasileira de
História, São Paulo, v. 42, n. 89, p. 93-115, 2022.

STOCZKOWSKI, Wiktor. La pensée de l‘exclusion et la pensée de la


différence: quelle cause pour quel effet ?. L´Homme: Revue
française d´anthropologie, [s. l.], v. 39, n. 150, p. 41-57, 1999.

WERNECK, Jurema. Racismo institucional e saúde da população


negra. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 3, p. 535-549, 2016.

Mini Currículo

Henrique de Araújo Martins


Estudante de mestrado vinculado ao Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da Universidade Federal do Amazonas. Campo de
interesse de pesquisa engloba tópicos da Psicologia relacionados à
saúde coletiva, trauma psicológico e avaliação psicológica. E-mail:
[email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/
7395362568297075.

Marck de Sousa Torres


Doutor em Psicologia pela Pontíficia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUCRS). Professor Permanente do Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do
Amazonas (PPGPsi UFAM). E-mail: [email protected]
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5839048686058921

178
RACISMO OBSTÉTRICO, INTERSECCIONALIDADE E A ASSISTÊNCIA A MULHERES
PRETAS NO CICLO GRAVÍDICO PUERPERAL

RACISMO OBSTÉTRICO,
INTERSECCIONALIDADE E A
ASSISTÊNCIA A MULHERES
PRETAS NO CICLO GRAVÍDICO
PUERPERAL
Karolayne Rodrigues Silva
Letícia Moura da Silva Patrício
Aline de Lima Sousa
Consuelena Lopes Leitão
Iolete Ribeiro da Silva

Introdução

O ensaio reflete sobre os fenômenos como o racismo e a


violência obstétrica, também reconhecida pelos profissionais de
saúde como violência institucional. Apesar de existirem inúmeras
discussões entre os profissionais da área da saúde, comitês de
violência de Universidades Federais, como o de Violência obstétrica
da Universidade Federal do Amazonas – UFAM, e os movimentos
sociais que lutam por uma padronização do termo e uma definição
do que seria a violência obstétrica, estes não deixam de enfatizar a
importância das práticas que se aproximam da humanização e
respeito aos direitos das mulheres.
Embora a violência obstétrica seja um termo que representa
essa violência, o termo racismo obstétrico é utilizado para
direcionar as violências sofridas por mulheres pretas e indígenas em
instituições de saúde e será usado ao longo deste ensaio. Para
Almeida (2019) o racismo pode ser debatido a partir de três
concepções: individualista, institucional e estrutural. Nessa
perspectiva, os racismos abordados são: o institucional e o
estrutural, pois são fatores implícitos que se manifestam nas práticas
de violência obstétrica, utilizando-se da interseccionalidade para
compreender como o racismo está ligado a essas práticas de

179
violência referentes a mulheres pretas. Apesar de existirem pessoas
pretas com vulvas que se encontram diante de violência obstétrica,
este ensaio será direcionado a mulheres pretas e cisgêneras.
O tema deste ensaio se articula com a temática violência
obstétrica estudada pela primeira autora em sua dissertação, além
disso integra os estudos voltados ao racismo, sexismo, classismo e
direitos humanos desenvolvidos pelas outras autoras.
Vale ressaltar que fazem parte da autoria deste estudo uma
mulher negra e uma mulher não-binária, pois essa diversidade de
perspectivas enriquece a discussão sobre questões relacionadas à
violência obstétrica. Ao reconhecer e valorizar as vozes e
experiências de mulheres de diferentes origens e identidades de
gênero, podemos trazer à tona uma análise mais abrangente e
sensível sobre o tema. Todavia, essa temática está sendo abordada
também por levar em conta nosso horizonte histórico, o qual se
apoia em bases binárias e misóginas que ditam os papéis sociais
aprisionadores de corpos e mentes de mulheres. Essas são vistas
apenas como corpos com função reprodutiva e de cuidado, cujas
decisões sobre seus corpos são limitadas, impostas por um sistema
patriarcal que não considera as existências femininas e despreza
ainda mais as mulheres pretas, gerando desse modo impacto na
assistência que estas recebem nas políticas de saúde. Por isso, é
necessário que se reflita não apenas sobre violência obstétrica de
forma geral, mas sobre o racismo obstétrico que atinge mulheres
pretas não apenas por seu gênero, mas por serem pretas e, por vezes,
de origens periféricas.
Assim, este ensaio busca compreender como as práticas do
racismo obstétrico afetam a existência de mulheres pretas, a partir
da perspectiva da interseccionalidade. Entende-se que certas
práticas terminam sendo rotineiras no âmbito hospitalar, as quais
podem representar violências normalizadas oriundas do racismo
institucional e, muitas vezes, passam despercebidas pelos
profissionais e pelas vítimas, especialmente quando dirigidas às
mulheres pretas, sendo por isso, necessário compreender as práxis
que sustentam tal lógica. Nesse sentido, o problema que delineia o
presente ensaio se norteia a partir da seguinte questão: Como a

180
RACISMO OBSTÉTRICO, INTERSECCIONALIDADE E A ASSISTÊNCIA A MULHERES
PRETAS NO CICLO GRAVÍDICO PUERPERAL

medicina hegemônica perpetua práticas caracterizadas como


violências no ciclo gravídico de mulheres pretas?

Racismo estrutural, institucional e interseccionalidade

Antes de compreender o racismo obstétrico,


interseccionalidade e assistência obstétrica direcionada às mulheres
pretas, é necessário compreender os fatores que influenciam essas
questões. Após a abolição da escravidão, pretos e pretas se
encontraram completamente marginalizados diante de uma
sociedade que acreditava que já tinha feito o suficiente por eles.
Estabelece-se a falsa ilusão de que os conflitos raciais haviam sido
superados após a Lei Áurea e o processo de mestiçagem, surgindo o
mito da democracia racial, a crença de que não existem raças no
Brasil. No entanto, a forma de tratamento a pessoas pretas continua
discriminatória e assim surge o racismo estrutural e institucional
(Oliveira; Kubiak, 2019).
O racismo estrutural se configura a partir do processo
histórico e político, visto que a sociedade brasileira tem uma dívida
com pessoas pretas, pardas e indígenas decorrente da colonização e
escravização (Silva et al., 2022). Ainda para os autores, essa visão
está arraigada a sociedade e contribui para a legitimação da
discriminação, gerando assim subordinação e opressão entre
grupos. Apesar de o racismo estar presente na estrutura social, isso
não significa que seja incontornável ou que as ações e políticas
institucionais antirracistas não funcionem, mas que se deve
considerar os aspectos histórico-sociais e políticos que sustentam o
racismo (Almeida, 2019).
O racismo institucional é reflexo do estrutural e está
presente em diferentes cenários como em instituições públicas ou
privadas, caracterizando-se por comportamentos discriminatórios
que se baseiam nos estereótipos e preconceitos sobre pessoas pretas
(Silva et al., 2022). Esses pensamentos e comportamentos surgem
para desvalidar as violências e ocultar as desigualdades sociais entre
brancos e pretos (Oliveira; Kubiak, 2019). Desse modo, o racismo
institucional é praticado de forma implícita visando a manutenção

181
do status quo da branquitude, refletindo na forma de tratamento de
como as instituições abordam os indivíduos pretos.
Na saúde, o racismo institucional se manifesta na prestação
de serviços dos profissionais que, por vezes, estigmatizam e
minimizam o sofrimento da população preta, especialmente
durante o pré-natal e parto de mulheres pretas (Oliveira; Kubiak,
2019). Durante o governo Lula, em 2009, foi aprovada a política
nacional de saúde integral da população preta, dentre essas situações
ligadas ao descaso na prevenção de doenças, mortalidade infantil,
destaca-se a mortalidade materna de mulheres pretas vítimas de um
descaso na assistência durante a gravidez, parto e puerpério - todas
questões atreladas ao racismo institucional e racismo obstétrico
(Carneiro, 2011). Mulheres pretas estão mais sujeitas a mortes
maternas e esse fenômeno está ligado ao termo que Crenshaw
determinou como superinclusão (Lima; Pimentel; Lyra, 2021). A
superinclusão se caracteriza como algo que afeta um grupo
específico de mulheres de forma desproporcional, a situação em que
é desproporcional e está ligada ao racismo, por exemplo, é lida como
uma questão de gênero apenas (Crenshaw, 2002).
Em uma pesquisa sobre a prevalência de disparidades
raciais na assistência pré-natal e parto no Brasil, observa-se que em
2018, 67,37% das mulheres pretas e 65,71% das mulheres pardas
tiveram o número mínimo de consultas recomendadas. No entanto,
esse percentual ficou abaixo do quantitativo de consultas necessárias
no pré-natal das mulheres brancas, que foi de 80,80% (Costa;
Mascarello, 2022). As diferenças raciais na realidade institucional
também se traduzem nos dados referentes à mortalidade materna,
possíveis reflexos da violência obstétrica (Diniz et al., 2015). As
mulheres pretas possuem mais chances de morrer por causas
relacionadas à gravidez, parto ou pós-parto, com cerca de 65%
acima da de mulheres brancas (Ferreira, 2018).
Considerando o Relatório Anual Socioeconômico da
Mulher – RASEAM, referente a 2020, observa-se que mulheres
pretas e pardas são as maiores vítimas da mortalidade materna, em
percentuais de 11,7% e 54,3% respectivamente, se comparadas à
30,1% de mulheres brancas em todo o Brasil. Na época, conforme o
relatório, o norte do país ocupava o terceiro maior índice de

182
RACISMO OBSTÉTRICO, INTERSECCIONALIDADE E A ASSISTÊNCIA A MULHERES
PRETAS NO CICLO GRAVÍDICO PUERPERAL

mortalidade, com 233 mortes, majoritariamente de mulheres pretas


sendo 7,3% e pardas com 70,4% em relação às brancas, de 12,9%
(RASEAM, 2021). Esses dados explicitam as faces violentas do
racismo contra mulheres pretas no âmbito da saúde, auxiliando-nos
a perceber a sua internalização dentro de instituições que deveriam
servir à proteção e cuidado.
O racismo institucional, mostra-se presente inclusive na
operacionalização de dados oficiais sobre mortalidade materna e
sobre a realidade de mulheres brasileiras. Nesse sentido, chama
atenção o fato desses últimos dados estarem desatualizados, vez que
houve uma descontinuidade do Relatório Socioeconômico da
Mulher, realizado anualmente desde 2013, em razão tanto do
panorama de saúde mundial com a COVID-19, de questões
relacionadas ao processo de pesquisa e recursos, à ausência de
coleta, destruição de dados oficiais, presença de informações
duvidosas e não construção de relatórios pelo último governo,
conforme aponta o Observatório Brasil da Igualdade de Gênero
(Brasil, 2023).
A realidade aqui apontada corrobora tanto com o racismo
que se dá para além de uma ação individual, entre grupos, e,
portanto, entranhada nas instituições, como reforça a concepção de
que as instituições operam e introduzem suas regras e
funcionamento que acabam por conceder privilégios e controle de
um grupo racial – brancos – sobre o outro – pretas e não brancas
(Almeida, 2019) e, neste caso, sobre o direito e garantia em relação à
gravidez, ao parto e ao pós-parto.
Ao relacionar o fenômeno da violência obstétrica a
mulheres pretas, entende-se que essa prática vai muito além da
discriminação de gênero, articula-se com a discriminação racial e,
por isso, conceitos como o da interseccionalidade podem servir
como pontes de sentido para explicar questões que envolvem
gênero, raça e classe (Crenshaw, 2004). A primeira teórica a utilizar
o termo interseccionalidade foi Kimberlé Crenshaw nos anos 80,
para quem a categoria ‘‘mulher’’ e ‘‘raça”, quando analisadas de
formas separadas não comportavam as diversas identidades e suas
diferenças internas. Em suma, a interseccionalidade deu nome às
realidades, um compromisso teórico e político já existente, além de

183
dar ênfase à matriz de opressão/ privilégio (Nogueira, 2021). Além
disso, essa é utilizada para explorar estudos direcionados à saúde
materna, às experiências de racismo, gênero, classe e ciclo puerperal
(Hemphill et al. 2023).
Desse modo, é importante considerar as discriminações
interseccionalizadas às quais mulheres pretas estão expostas. Alguns
marcadores acerca de mulheres pretas não são considerados em
pautas feministas, como raça, classe social, contudo afetam
diretamente a existência dessas mulheres, contribuindo com a
manutenção e formação de desigualdades (Crenshaw, 2002).
Durante o período de escravidão, as mulheres pretas
sofriam de formas diferentes, como maus tratos e abusos sexuais. A
partir da conveniência dos senhores, as mulheres eram lidas
enquanto sem gênero; para serem exploradas em atividades braçais,
eram lidas como homens; e, para serem violentadas e exploradas,
eram lidas como mulheres. Ao mesmo tempo que os homens pretos
eram açoitados e mutilados, as mulheres pretas eram açoitadas,
mutiladas e violentadas (Davis, 2016).
Essa realidade oriunda a partir do período de escravidão,
demonstra que existe uma particularidade no racismo sofrido entre
homens e mulheres. Mulheres pretas, além de serem vítimas do
racismo, também sofrem violência de gênero, existindo uma
especificidade quanto ao gênero (Crenshaw, 2002). Olhar para essas
particularidades é entender que, ainda que homens pretos sofram
racismo, o machismo e o sexismo lhes dão condições inclusive para
que violentem e oprimam as mulheres (hooks, 2015). São assim,
intersecções que se estabelecem em caminhos pouco horizontais e
lineares, ocorrendo em diferentes fluxos que perpassam o gênero, a
raça, o corpo, a classe social, a saúde e a informação sobre o racismo,
o processo de gravidez e o parto.
A partir disso, destaca-se que os atos de violência obstétrica
estão ligados a condições socioeconômicas das mulheres, e o
tratamento rude era destinado às mulheres pretas e em
vulnerabilidade social (Smith-Oka, 2015 apud Menezes et al., 2020).
Esses preconceitos e estereótipos arraigados, ainda presentes na
sociedade, desde o período da escravidão, são perpetuados por meio
de atitudes que reproduzem desigualdades. A realidade atual reflete

184
RACISMO OBSTÉTRICO, INTERSECCIONALIDADE E A ASSISTÊNCIA A MULHERES
PRETAS NO CICLO GRAVÍDICO PUERPERAL

a persistência dessas formas de discriminação e se manifestam


através de violências similares, como a violência obstétrica.
Na literatura, observa-se a escassez de artigos que foquem
nas experiências interseccionais de mulheres pretas, principalmente
quando se fala de racismo obstétrico, bem como o aumento da taxa
de mortalidade materna, as descrições de patologias, transtornos,
riscos e estressores ligados aos maus tratos que contribuem para as
narrativas que culpabilizam mulheres pretas por sofrerem as
violências (Hemphill et al., 2023).
Para Costa et al. (2022) as experiências de gravidez, parto e
pós-parto das mulheres pretas são um exemplo marcante da
interseccionalidade das opressões, onde diferentes formas de
discriminação se entrelaçam, tornando difícil distinguir práticas que
são violências daquelas que são consideradas apenas procedimentos
rotineiros. Essas experiências ocorrem dentro dos sistemas de
cuidados de saúde, onde é esperado que os atendimentos sejam
feitos com ética. Os autores também argumentam que, para as
mulheres pretas, as relações de gênero não ocorrem de forma
separada dos processos de racismo e de classe por não serem
neutros e resultarem no silenciamento e na exclusão. Ademais, o
consultório obstétrico se apresenta como um espaço de reprodução
de raça, reflexo do processo histórico e social, que reproduz as
mesmas discriminações através de procedimentos institucionais no
âmbito hospitalar.

Violência obstétrica contra a mulher: Encontrando uma


definição

As formas de violência contra a mulher acarretam diversas


consequências para a sua saúde mental e física, aumentando a busca
por serviços de saúde. Vale destacar que a saúde física e mental das
que sofreram alguma forma de violência termina sendo mais
prejudicada daquelas que não foram vítimas de atos violentos. No
geral, a violência contra a mulher é uma questão de ordem mundial,
e grande parte é cometida por conhecidos ou familiares da vítima,
sendo a violência física e psicológica as mais frequentes, seguidas da
violência sexual (Cruz; Irffi, 2019). A desigualdade de gênero é,

185
portanto, uma questão central, mantida por meio do modelo
patriarcal, baseado no poder, domínio e opressão que homens
exercem contra as mulheres (Leite et al., 2019).
A violência contra a mulher se manifesta de duas formas:
coletiva e interpessoal. A violência coletiva está ligada aos atos
perpetrados pelo Estado ou por instituições, como a violência
policial, terrorismo, escravização sexual em períodos de guerra ou
ditaduras e outras formas de subordinação. Já a interpessoal se
caracteriza pela violência praticada por indivíduos que tem ou não
vínculo com a vítima, manifestando-se na comunidade ou
domicílio, como a violência doméstica, a coerção reprodutiva,
assédio sexual, estupros e mutilações, dentre outras formas de
opressão (Leite et al., 2022).
Além das formas coletiva e interpessoal, a violência também
pode ser estrutural e simbólica. A violência estrutural está enraizada
nas normas, instituições e estruturas sociais, e perpetua
desigualdade de gênero e vários tipos de violência (física,
psicológica, patrimonial, moral e sexual). Já, a violência estrutural
manifesta-se por meio de sistemas e políticas que marginalizam as
mulheres, negando-lhes acesso a recursos e oportunidades,
limitando sua participação na tomada de decisões e reforçando
estereótipos de gênero. Essa forma de violência pode ser observada
em disparidades salariais, falta de representação política e
obstáculos enfrentados no mercado de trabalho. Na violência
estrutural, destaca-se como as desigualdades de gênero se
entrelaçam com o racismo, trazendo à tona formas sistemáticas de
opressão e discriminação, especialmente às mulheres pretas e
periféricas (Ribeiro, 2018).
A violência simbólica refere-se às práticas, discursos e
símbolos que perpetuam a subordinação das mulheres e reforçam as
desigualdades de poder. Ela se manifesta em estereótipos de gênero,
linguagem sexista, objetificação em diversos espaços, além de
padrões rígidos de comportamento e aparência. Essa forma de
violência contribui para a manutenção de uma cultura que
desvaloriza e silencia as mulheres, restringindo sua autonomia e
reforçando relações de poder desiguais.

186
RACISMO OBSTÉTRICO, INTERSECCIONALIDADE E A ASSISTÊNCIA A MULHERES
PRETAS NO CICLO GRAVÍDICO PUERPERAL

Bourdieu (2021) aborda a violência simbólica ao examinar


as produções de significados e sua relação com o exercício do poder
simbólico. Segundo ele, esse é um poder invisível entre o dominante
e o dominado, sendo capaz de impor significados como legítimos.
Bourdieu afirma que a violência simbólica ocorre quando o
dominado não pode deixar de aderir ao dominante e à dominação,
uma vez que ele não possui recursos para refletir criticamente sobre
essa relação, além dos instrumentos de conhecimento
compartilhados por ambos. Esses instrumentos são a forma
incorporada da relação de dominação, o que faz com que essa seja
vista como natural. Em outras palavras, os esquemas mentais
utilizados pelo dominado para se enxergar, avaliar a si mesmo e aos
dominantes (masculino/feminino, branco/negro, dentre outros),
são produtos da incorporação de classificações que foram
naturalizadas no seu ser social.
No Brasil, a violência contra a mulher no âmbito doméstico
tornou-se crime a partir da Lei Maria da Penha (Brasil, 2006), que
foi tipificada tardiamente, mostrando assim o atraso do país em
relação à proteção das mulheres. A lei do Feminicídio 13.104/2015
(Brasil, 2015), considera esse ato quando há violência doméstica ou
discriminação a mulheres, resultando no homicídio. Existem três
formas: o feminicídio íntimo, ocasionado pelo atual ou ex-parceiro
com o qual a mulher teve relações afetivas, conjugal, extraconjugal
ou familiar; o feminicídio não íntimo, quando a vítima não possui
vinculação afetiva com o autor do crime; e por conexão, quando o
autor planeja assassinar outra mulher, mas a vítima, por estar no
lugar e hora errada termina sendo assassinada (Caicedo-Roa;
Bandeira; Cordeiro, 2022).
Na condição de parto, a mulher fica vulnerabilizada e
suscetível a reproduções de violência simbólica que são
naturalizadas na sociedade. Essas violências podem ocorrer de
maneira velada no âmbito da violência obstétrica, por exemplo,
algumas mulheres são chamadas a atenção de forma invasiva e
agressiva por profissionais de saúde quando expressam sua dor
através de gritos. Da mesma forma, quando uma mulher se recusa a
realizar algum procedimento que acelere o parto, frente à
necessidade de respeitar seu tempo e o do bebê, ela pode ser

187
confrontada por profissionais que buscam concluir seu trabalho e
sair do plantão. Essas situações revelam a violência obstétrica, onde
poder e controle são exercidos sobre a mulher, desconsiderando
suas necessidades, desejos e direitos durante o processo de parto.
Chegar a um conceito do que seria a violência obstétrica
ainda é um longo caminho que está sendo trilhado. A literatura nos
disponibiliza um acervo de definições, dependendo do país e das
legislações que se destinam a essas violências. A falta de definição e
consenso não é algo exclusivo da América Latina ou do Brasil, e sim
uma questão mundial, visto que países da Ásia, África e Europa se
encontram no mesmo impasse. São poucos os países envolvidos em
legislações sobre Violência Obstétrica, e um deles é a Venezuela, que
tem uma legislação promulgada em 2007 a qual defende os Direitos
das mulheres a uma vida livre de violência. Essa legislação ainda
define que a violência obstétrica é toda conduta, ação ou omissão da
equipe de saúde, que oprima e se aproprie do corpo e dos processos
reprodutivos das mulheres, gerando a perda de autonomia.
Observa-se ainda que a Argentina aprovou uma Lei em 2009, que
define a violência obstétrica e a violência contra a liberdade
reprodutiva, caracterizando-as como: tratamento desumanizado,
abusos de medicamento, interrupções sem necessidades durante o
ciclo gravídico puerperal (Leite et al., 2022).
No Brasil, existem programas que buscam reverter o cenário
dramático no âmbito obstétrico: o Programa Nacional de
Humanização do Parto e Nascimento (Brasil, 2017), Lei do
Acompanhante, Rede Cegonha - Rede de Atenção Materno Infantil
e Diretriz Nacional de Atenção à Gestante (Brasil, 2005). Em 2019, o
Ministério da Saúde publicou um ofício (n° 017/19 - JUR/ SEC) que
torna inadequado o termo Violência Obstétrica em documentos
legais e em políticas públicas, o que gerou revolta entre os ativistas
(Henriques, 2021).
Uma das definições utilizadas no Brasil de violência
obstétrica, a classifica como uma das violências de gênero, porém,
essa violência é causada por profissionais da área da saúde que estão
assistindo às mulheres durante o pré-natal, parto, puerpério e
abortamento. Em síntese, a violência obstétrica se manifesta por
meio de maus-tratos físicos, psicológicos e verbais em práticas

188
RACISMO OBSTÉTRICO, INTERSECCIONALIDADE E A ASSISTÊNCIA A MULHERES
PRETAS NO CICLO GRAVÍDICO PUERPERAL

médicas que são invasivas, desnecessárias e às vezes não possuem


um grau elevado de comprovação científica, como acontece com a
prática da episiotomia e a manobra de Kristeller, podendo prejudicar
tanto o corpo da mulher quanto afetar a saúde do bebê (Menezes et
al., 2020).
Além disso, outras práticas intervencionistas também estão
associadas a violência obstétrica, como restringir o acesso de
acompanhantes, cesarianas realizadas sem qualquer consentimento
da pessoa, negar anestesia ao paciente, dentre outras questões
ligadas aos maus-tratos físicos, psicológicos e verbais. Rocha e
Ferreira (2020) pontuam que a mortalidade materna e neonatal está
ligada às práticas indiscriminadas de tecnologias na assistência, por
isso busca-se alterar o modelo obstétrico brasileiro, ainda pautado
no método intervencionista, para um modelo mais humanizado.
Mena-Tudela et al. (2020) consideram que, apesar de haver
legislações que criminalizam esses atos, as mulheres continuam alvo
dessas práticas da medicina tradicional. Na Espanha, a violência
obstétrica é definida como um ato de ignorar a autonomia sobre a
sexualidade, corpos e experiências das mulheres, desconsiderando
as necessidades emocionais da mãe e do bebê em qualquer fase da
gestação.
Apesar do termo Violência Obstétrica ser adequado para
descrever essas práticas que se distanciam da humanização, quando
levamos em conta a questão racial surge então o termo que melhor
se adequa a mulheres pretas e indígenas que vivenciaram tais
violências: Racismo Obstétrico, localizado na intersecção entre a
violência obstétrica e o racismo. Os termos ‘‘violência obstétrica’’ e
‘‘racismo’’ se fundem, pois, as práticas da medicina hegemônica que
possuem um passado racista e colonizador, ainda influenciam as
percepções dos profissionais (Davis, 2018).
O reflexo colonizador e racista na medicina atual é o
pensamento de que as mulheres pretas são mais resistentes à dor e,
por isso, não precisam de anestésico, além de serem férteis demais
(Davis, 2018). Mais uma vez, esse pensamento está ligado a
escravidão e ao controle dos senhores sobre a saúde reprodutiva das
mulheres. Alguns senhores chegavam a recompensar com presentes,

189
e em raros casos, com a alforria, as mães escravizadas que geravam
grandes quantidades de filhos (Cooper Owens, 2017).
Conforme a medicina avançava, a obstetrícia, que antes era
predominantemente realizada por parteiras, passou a ser explorada
e estudada por médicos brancos. Apesar dos avanços nesse campo,
como procedimentos cirúrgicos durante os partos e cirurgias de
remoção de ovários doentes, os quais contribuíram para a medicina
obstétrica se estabelecer como ciência, é importante reconhecer que
o passado dessa área está interligado às parcerias entre médicos e
senhores de escravos com acesso irrestrito aos corpos das mulheres
pretas (Cooper Owens, 2017). Em resumo, ao longo da história da
medicina, o corpo das mulheres pretas foi frequentemente visto
apenas como um objeto descartável, utilizado como experimento
pelos homens brancos, desconsiderando seus direitos reprodutivos e
sua dignidade.

Repercussões do racismo obstétrico

Historicamente, as mulheres pretas sempre foram vistas


como resistentes, capazes de suportar qualquer dor, diferente da
mulher branca, vista como delicada. Tal tratamento se reflete na
assistência materna, consequência dos racismos estrutural e
institucional, que se cruzam com raça, gênero e classe. Isso se torna
uma realidade, pois o cuidado pré-natal está articulado com os
fatores culturais, sociodemográficos e econômicos que, por sua vez,
tem uma base racista. É esse racismo institucional que irá
influenciar o tratamento do profissional diante da assistência de
mulheres pretas (Silva; Lima, 2021).
As consultas médicas pré-natais e pós-parto se configuram
no viés racializado, seja no serviço público ou privado. Ademais, as
mulheres pretas relatam sobre o estigma de não buscar atendimento
pré-natal, mas ao analisar essa questão precisa-se levar em conta as
experiências negativas que se tornam barreiras para essas mulheres
confiarem em profissionais da saúde desde o pré-natal (Davis,
2018). Nesse cenário dramático, é necessário dar atenção a essa
etapa, a fim de evitar a prematuridade iatrogênica que está

190
RACISMO OBSTÉTRICO, INTERSECCIONALIDADE E A ASSISTÊNCIA A MULHERES
PRETAS NO CICLO GRAVÍDICO PUERPERAL

relacionada à interrupção indevida da gravidez e ao alto índice de


cesarianas sem indicação técnica (Lansky et al., 2019).
No Brasil, a cobertura do pré-natal chegava a
aproximadamente 100%, não levando em conta a raça e classe das
gestantes. Todavia, quando avaliado a qualidade da assistência, essa
cobertura se revela insuficiente. Nesse sentido, a literatura indica
que as mulheres pretas tiveram chances 35% menores de iniciar o
pré-natal com 12 semanas ou menos, quando comparadas às
mulheres brancas, achados que se relacionam com o tratamento que
essas mulheres recebem durante a assistência à saúde (Lessa et al.,
2022).
Menezes et al. (2020) pontuam que o profissional da área da
saúde deve prestar um serviço que leve em conta as necessidades de
cada usuária do sistema de saúde e que esse atendimento seja livre
de preconceito e discriminação. Porém, Mattar e Diniz (2012)
apresentam uma realidade marcada por hierarquias reprodutivas
em instituições que determinam e legitimam algumas mães,
enquanto outras são deixadas de lado, geralmente as mulheres
pretas. Quanto maior a vulnerabilidade da mulher, o tratamento dos
profissionais poderá ser mais rude. Assim, mulheres pretas, pardas,
pobres, adolescentes, profissionais do sexo, usuárias de drogas,
mulheres em situação de rua estão mais propensas a sofrerem
violência obstétrica (Assis, 2018).
Sobre o atendimento obstétrico, é comum que mulheres
brancas se sintam mais satisfeitas do que mulheres pretas, reflexo da
desigualdade étnico-racial (Oliveira; Gouvêa; David, 2022). Cruz
(2004) argumenta que as soluções para os problemas raciais e de
gênero só serão aceitas pelos grupos hegemônicos, caso não ameace
o status quo. Porém, não podemos esquecer que o Brasil tem uma
estrutura social na qual a cidadania se encontra em constante
manutenção, legitimando as desigualdades (Holston, 2013).
Apesar do atendimento precário às mulheres pretas, notou-
se que nos últimos 15 anos o índice de mortalidade materna e de
acesso ao pré-natal tiveram uma melhora em decorrência ao
empenho da implantação da Política Nacional de Saúde Integral da
População Negra - PNISPN (Brasil, 2013) e de outras políticas que

191
promovem a redução das diferenças sociodemográficas (Oliveira;
Kubiak, 2019).
No contexto do Sistema Único de Saúde (SUS), em nome da
ciência e de um suposto saber superior médico, os profissionais
podem propagar discursos e práticas violentas, preconceituosas e
racistas contra mulheres pretas durante o ciclo gravídico puerperal.
Vale ressaltar que a ciência se fundamentou a partir de práticas que
fortaleceram o racismo no Brasil, com discursos que idealizam uma
suposta superioridade e inferioridade acerca das raças (Curi;
Ribeiro; Marra, 2020).
Apesar do racismo obstétrico ocorrer durante todo o ciclo
gravídico puerperal, é durante o parto que ocorrem algumas
intervenções invasivas, abusos, maus-tratos e agressões que violam
os direitos reprodutivos (Resende; França, 2021). Dessa forma,
apresentaremos alguns dos principais procedimentos e intervenções
que se distanciam da lógica da humanização e não possuem
evidências científicas, podendo até mesmo provocar complicações
graves no binômio mãe-bebê, não sendo recomendadas pela
Organização Mundial da Saúde (OMS). É válido ressaltar que
algumas práticas pontuadas ainda são perpetuadas no âmbito
hospitalar e discernir sobre elas é uma forma de contribuir para o
conhecimento do que se configura violência obstétrica.
A violência obstétrica pode se dividir em quatro categorias,
sendo elas: violência verbal e/ou psicológica, física, por negligência
e sexual (Barboza; Mota, 2016). Algumas dessas práticas, baseando-
se no estudo de Mena-Tudela et al. (2020), consistem no tratamento
desrespeitoso ou ofensivo, abuso físico ou verbal, humilhação,
realização de procedimentos médicos sem consentimento da
mulher ou sob coação, falta de confidencialidade, recusa em
administrar analgésicos alegando que a dor não é intensa, bater na
parturiente, forçar a mesma a ficar em uma posição que não a
agrade, dentre outras formas de abusos e maus-tratos. Outra prática
a ser pontuada é quando o profissional se nega a prestar
informações sobre os procedimentos que vão ser realizados no
corpo da puérpera (Barboza; Mota, 2016).
Outra forma de violência obstétrica é a proibição de
acompanhante durante o trabalho de parto e pós-parto. O suporte à

192
RACISMO OBSTÉTRICO, INTERSECCIONALIDADE E A ASSISTÊNCIA A MULHERES
PRETAS NO CICLO GRAVÍDICO PUERPERAL

parturiente classifica-se em dois grupos: suporte intermitente, que é


oferecido durante o processo da parturição, e o que ocorre durante
todo o período do trabalho de parto e parto. O suporte gera à
gestante o conforto físico, informações sobre a progressão do
trabalho de parto e a intermediação no diálogo entre a gestante e a
equipe de saúde. O suporte é considerado uma das formas de
intervenção mais benéficas durante o processo (Silva; Siqueira,
2020).
Outros dois procedimentos dizem respeito a episiotomia e a
manobra de Kristeller, já citados anteriormente. Em 1996, a OMS
considerou que a episiotomia, um corte na região do períneo,
utilizada sob a justificativa de facilitar a passagem do bebê, gera
traumas físicos, psicológicos, dor e desconforto nas mulheres
(Resende; França, 2021). Após esse procedimento, os médicos
realizavam a sutura conhecida como ‘‘o ponto do marido’’. Os
profissionais alegavam que o ponto iria gerar mais prazer nas
relações sexuais, porém as vítimas relatam dores durante o sexo,
além de incontinência urinária ou fecal (Freitas et al., 2020).
Outro procedimento utilizado, durante o período expulsivo,
que gera grande impacto para o binômio mãe-bebê é a manobra de
Kristeller, ineficaz, gera dor e possíveis sequelas físicas e
psicológicas, e cujas consequências são: fratura das costelas,
hemorragias, deslocamento da placenta entre outros riscos à saúde
de ambos (Nascimento et al., 2021).
Como a violência obstétrica pode ser evitada? A literatura
afirma que uma das formas de evitá-la seria durante o pré-natal,
quando a mulher recebe informações acerca do ciclo gravídico
puerperal, além dos procedimentos que podem ou não ser
realizados. Todavia, como não se consideram as questões
interseccionais que marcam as existências de mulheres pretas, sua
raça, gênero e classe social, o pré-natal acaba sendo uma forma de
intervenção eficaz para uma maioria branca, sendo necessário
pensar outras estratégias para evitar o racismo obstétrico, como
uma maior representação de mulheres pretas nas políticas públicas
de saúde. É válido ressaltar que, enquanto para Simone de Beauvoir
a mulher branca é o Outro sexo, para Grada Kilomba, a mulher
preta é a intersecção de Outro do Outro, ou seja, essa luta tanto

193
contra a dominação dos homens, quanto dos brancos, não
ocupando nenhum espaço na sociedade (Resende; França, 2021).

Considerações finais

A partir do que foi discutido, entende-se que para além de


compreender as bases que sustentam e tornam possível a violência
obstétrica contra mulheres pretas e cisgêneras, de modo estrutural e
institucional, faz-se necessário uma reflexão coletiva no âmbito da
saúde que possa, se não extinguir, minimizar as violações contra as
mulheres no ciclo gravídico puerperal. Desse modo, cabe aos
serviços de saúde interdisciplinares que lidam com mulheres pretas
em processo de gestação, repensarem e proporcionarem modos de
cuidado que acolham, considerando todo o caráter histórico de
vivência e as interseccionalidades que podem vir a marcar as
grávidas, parturientes e puérperas.
Além do aprimoramento dos serviços de saúde, é necessário
que os profissionais de saúde que atuem no campo da obstetrícia
tenham abordagens humanizadoras que levem em consideração
questões de raça, gênero e classe nos seus atendimentos, tendo em
vista que trabalham com uma diversidade de pessoas que estão no
momento da gestação. É imprescindível que essa discussão sobre
violência obstétrica em articulação ao racismo se faça presente
desde o processo inicial de formação acadêmica de futuras (os)
obstetras, técnicas(os) e equipe médica, ocorrendo ainda de forma
contínua para com profissionais que se encontram atuantes no
suporte e cuidado de mulheres pretas durante a gravidez, parto e
pós-parto nos mais diversos espaços de saúde públicos ou privados.
Ademais, considerando os direitos de acesso à informação
quanto a sua condição de saúde, cabe a conscientização das vítimas
em relação a formas de denúncia de violências durante o ciclo
gravídico puerperal. Nesse sentido, os espaços de saúde, tais como
Unidades Básicas de Saúde (UBS) e maternidades devem tanto
divulgar e promover amplamente o tema para mulheres pretas,
como possibilitar espaços seguros, suporte profissional para que
sejam ouvidas, a fim de que as denúncias e processos de tomada de
consciência sejam potencializados.

194
RACISMO OBSTÉTRICO, INTERSECCIONALIDADE E A ASSISTÊNCIA A MULHERES
PRETAS NO CICLO GRAVÍDICO PUERPERAL

Referências

ASSIS, Jussara Francisca de. Interseccionalidade, racismo


institucional e direitos humanos: compreensões à violência
obstétrica. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 133, p. 547-
565, set./dez. 2018. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0101-
6628.159>. Acesso em 06 de jun. 2023.

ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural: feminismos plurais. São


Paulo: Pólen, 2019. 256p.

BARBOZA, Luciana Pereira; MOTA, Alessivânia. Violência


obstétrica: vivências de sofrimento entre gestantes do Brasil.
Revista Psicologia, Diversidade e Saúde, Salvador, v. 5, n. 1, p.
119-129, mai. 2016. Disponível em: <https://doi.org/
10.17267/2317-3394rpds.v5i1.847>. Acesso em 06 de jun. 2023.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Editora 70, 2021. 510 p.

BRASIL. Lei nº 11.108, de 7 de abril de 2005. Acrescenta


dispositivos à Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para garantir
às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o
trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do
Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Brasília, DF, 8 abr. 2005. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/
l11108.htm>. Acesso em: 06 de julho de 2023.

BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos


para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Diário
Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 8 ago.
2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em: 06 de julho de
2023.

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.459, de 24 de junho de


2011. Institui a Rede Cegonha. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Brasília, DF, 27 jun. 2011. Disponível em:

195
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt1459_24_
06_2011.html>. Acesso em: 06 de julho de 2023.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e


Participativa. Política Nacional de Saúde Integral da População
Negra: uma política para o SUS. Brasília, DF: Ministério da Saúde,
2013. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/
politica_nacional_saude_integral_populacao_negra.pdf>. Acesso
em: 06 de julho de 2023.

BRASIL. Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o art. 121


do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal,
para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do
crime de homicídio, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de
1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, para incluir o
feminicídio no rol desses crimes. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Brasília, DF, 9 mar. 2015. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/
l13104.htm>. Acesso em: 06 de julho de 2023.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde.


Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Programa
Nacional de Humanização do Parto e Nascimento. Brasília, DF:
Ministério da Saúde, 2017. Disponível em: <http://www.saude.gov.
br/parto>. Acesso em: 06 de julho de 2023.

BRASIL. SECRETARIA DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES.


Relatório Anual Socioeconômico da Mulher de 2020 (RASEAM).
Brasil, 2021. Disponível em: <https://www.gov.br/mulheres/pt-br/
central-de-conteudos/noticias/2023/abril/observatorio-brasil-da-
igualdade-de-genero-retoma-producao-anual-do-raseam-2013-
relatorio-socioeconomico-da-mulher/relatorio-anual-
socioeconomico-da-mulher-2020.pdf>. Acesso em 07 de jun. 2023.

BRASIL. Ministério das Mulheres. Indicadores Sociais: Análise de


Indicadores de desigualdades de gênero é urgente para gestão de
Políticas Públicas para mulheres. Brasília, DF: Ministério das
mulheres, 19 de maio de 2023. Disponível em: <https://www.gov.br/
mulheres/pt-br/central-de-conteudos/noticias/2023/maio/
encontro-mostra-urgencia-na-analise-e-difusao-de-indicadores-

196
RACISMO OBSTÉTRICO, INTERSECCIONALIDADE E A ASSISTÊNCIA A MULHERES
PRETAS NO CICLO GRAVÍDICO PUERPERAL

de-desigualdades-de-genero-para-a-gestao-de-politicas-publicas>.
Acesso em 06 de jun. 2023.

CAICEDO-ROA, Mônica; BANDEIRA, Lourdes Maria;


CORDEIRO, Ricardo Carlos. Femicídio e Feminicídio: discutindo e
ampliando os conceitos. Revista Estudos Feministas, v. 30, n. 3.
2022. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1806-9584-
2022v30n383829>. acesso em 06 jun. 2023

CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil:


consciência em debate. São Paulo: Selo Negro, 2011.

COOPER OWENS, Deirdre. Medical Bondage: Race, Gender, and


the Origins of American Gynecology. Athens, GA: University of
Georgia Press, 2017.

COSTA, Ana Cecilia Oliveira; MASCARELLO, Keila Cristina.


Prevalência de disparidades raciais na assistência pré-natal e no
parto no Brasil no período entre 2007 e 2018. Práticas e Cuidado:
Revista de Saúde Coletiva, Salvador, v.3, n.e14204, p.1-19. 2022.
Disponível em: <https://www.revistas.uneb.br/index.php/
saudecoletiva/article/view/14204>. Acesso em 06 de jun. 2023.

COSTA, Karla Adriana Oliveira da; BRITO, Laura Elisabete


Figueiredo; COIMBRA, Carolina Vanessa da Silva; LOPES, Ninfa
Carina Costa; DEPUYDT, Diana Oliveira dos Santos; CORREIA,
Rita Nunes. Racismo obstétrico em Portugal: Relato de experiência
de um coletivo antirracista. Forum Sociológico [online], n. 41,
dez., 2022. Disponível em: <https://doi.org/10.4000/
sociologico.10673>. Acesso em 06 de jun. 2023.

CURI, Paula Land; RIBEIRO, Mariana Thomaz de Aquino;


MARRA, Camilla Bonelli. A violência obstétrica praticada contra
mulheres negras no SUS. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio
de Janeiro, v. 72, no. spe, p. 156-169. 2020. Disponível em: <http://
pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-
52672020000300012&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 06 de jun.
2023.

197
CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de
especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao
gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p.
171-188, jun. 2002. Disponível em: <http://educa.fcc.org.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0104-
026X2002000100011&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 06 de jun.
2023.

CRENSHAW, Kimberlé. A intersecionalidade na discriminação


de raça e gênero. Brasília: Unifem: Cruzamento: raça e gênero, p. 7-
16, 2004.

CRUZ, Isabel Cristina Fonseca da. A sexualidade, a saúde


reprodutiva e a violência contra a mulher negra: aspectos de
interesse para assistência de enfermagem. Revista da Escola de
Enfermagem da USP, v. 38, n. 4, p. 448-457, dez. 2004. Disponível
em: <https://doi.org/10.1590/S0080-62342004000400011>. Acesso
em 08 de jun. 2023.

CRUZ, Mércia Santos; IRFFI, Guilherme. Qual o efeito da violência


contra a mulher brasileira na autopercepção da saúde? Revisão
Review, [s. l], v. 7, n. 24, p. 2531-2542, 2019. Disponível em:
<https://doi.org/10.1590/1413-81232018247.23162017>. Acesso em
06 de jun. 2023.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. 1. ed. São Paulo:


Boitempo, 2016.

DAVIS, Dána-Ain. Obstetric Racism: The Racial Politics of


Pregnancy, Labor, and Birthing. Medical Anthropology, v. 38, n. 7,
p. 560-573, 2018. Disponível em: <https://doi.org/
10.1080/01459740.2018.1549389>. Acesso em 06 de jun. 2023.

DINIZ, Simone Grilo; SALGADO, Heloisa de Oliveira;


ANDREZZO, Halana Faria de Aguiar; CARVALHO, Paula Galdino
Cardin de; CARVALHO, Priscila Cavalcante Albuquerque;
AGUIAR, Claúdia Azevedo; NIY, Denise Yoshie. Violência
obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens,
definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas
para sua prevenção. Revista Brasileira de Crescimento e

198
RACISMO OBSTÉTRICO, INTERSECCIONALIDADE E A ASSISTÊNCIA A MULHERES
PRETAS NO CICLO GRAVÍDICO PUERPERAL

Desenvolvimento Humano, v. 25, n. 3, p. 377-384, Out. 2015.


Disponível em: <https://doi.org/10.7322/jhgd.106080>. Acesso em
07 de jun. 2023.

FERREIRA, Vitoria de Miranda. Mãe preta, estudo sobre o índice


de violência obstétrica entre as mulheres negras. In Anais do
Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, Universidade
Federal de Uberlândia, Minas Gerais, 2018. Disponível em: <https:/
/www.copene2018.eventos.dype.com.br/resources/anais/
8/1532453580_ARQUIVO_CopeneMG.pdf>. Acesso em 07 de jun.
2023.

FREITAS, Marcela Távora de; NOVAIS, Danielle Fiorin Ferrari;


BRITO, Alice Crespo; CAMPOS, Camilla Carolina Canedo;
IGLESIAS, Clara Dinalli Ornellas; GONÇALVES, Larissa Griffo;
GROSMAN, Leticia Uhling; OLIVEIRA, Maressa Melo;
ALCANTARA, Thays Sturzeneker de; CARVALHO, Vitória Lopes
Dornelas de. Os limites entre a episiotomia de rotina e a violência
obstétrica. Revista Eletrônica Acervo Científico, v. 13, e. 4696, out.
2020. Disponível em: <https://doi.org/10.25248/reac.e4696.2020>.
Acesso em 08 de jun. 2023.

HENRIQUES, Tatiana. Violência obstétrica: um desafio para saúde


pública no Brasil. Páginagrená: publicações do Centro de Ensino
e Pesquisa do IMS/UERJ, Rio de Janeiro, fev. 2021. Disponível:
<https://www.ims.uerj.br/2021/02/22/violencia-obstetrica-um-
desafio-para-saude-publica-no-brasil/>. Acesso em 07 de jun. 2023.

HEMPHILL, Nefertiti OjiNjideka; CROOKS, Natasha; ZHANG,


Wenqiong; FITTER, Fareeha; ERBE, Katherine; RUTHERFORD,
Julienne N.; LIESE, Kylea L.; PEARSON, Pamela; STEWART, Karie;
KESSEE, Nicollette; REED, Luecendia; TUSSING-HUMPHREYS,
Lisa; KOENIG, Mary Dawn. Obstetric experiences of young black
mothers: An intersectional perspective. Elsevier, v. 317, jan. 2023.
Disponível em: <https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2022.115604>.
Acesso em 08 de jun. 2023.

HOOKS, bell. Mulheres negras: moldando a teoria feminista.


Revista Brasileira de Ciência Política, n. 16, p. 193-210, jan./abr.

199
2015. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/0103-
335220151608>. Acesso em 06 de jun. 2023.

HOLSTON, James. Cidadania insurgente: disjunções da


democracia e da modernidade no Brasil. 1.ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2013.

LANSKY, Sônia; FRICHE, Amélia Augusta de Lima; SILVA,


Antônio Augusto Moura da; CAMPOS, Deise; BITTENCOURT,
Sonia Duarte de Azevedo; CARVALHO, Márcia Lazaro de; FRIAS,
Paulo Germano de; CAVALCANTE, Rejane Silva; CUNHA,
Antonio José Ledo Alves da. Pesquisa nascer no Brasil: perfil da
mortalidade neonatal e avaliação da assistência à gestação e ao
recém-nascido. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 30,
sup. S192-S207, ago. 2014. Disponível em: <https://doi.org/
10.1590/0102-311X00133213>. Acesso em 06 de jun. 2023.

LEITE, Franciéle Marabotti Costa; LUIS, Mayara Alves; AMORIM,


Maria Helena Costa; MACIEL, Ethel Leonor Noia; GIGANTE,
Denise Petrucci. Violência contra a mulher e sua associação com o
perfil do parceiro íntimo: estudo com usuárias da atenção
primária. Revista Brasileira de Epidemiologia, v. 22, n. 190056, p.
1-14. 2019. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1980-
549720190056>. Acesso em 06 de jun. 2023.

LEITE, Tatiana Henriques; MARQUES, Emanuele Souza;


ESTEVES-PEREIRA, Ana Paula; NUCCI, Marina Fisher;
PORTELLA, Yammê; LEAL, Maria do Carmo. Desrespeitos e
abusos, maus tratos e violência obstétrica: um desafio para a
epidemiologia e a saúde pública no Brasil. Ciência & Saúde
Coletiva, v. 27, n. 2, pp.483-491. 2022. Disponível em: <https://doi.
org/10.1590/1413-81232022272.38592020>. Acesso em 06 de jun.
2023.

LESSA, Millani Souza de Almeida; NASCIMENTO, Enilda


Rosendo; COELHO, Edméia de Almeida Cardoso; SOARES, Ieda
de Jesus; RODRIGUES, Quessia Paz; SANTOS, Carlos Antônio de
Souza Teles; NUNES, Isa Maria. Pré-natal da mulher brasileira:
desigualdades raciais e suas implicações para o cuidado. Ciência &
Saúde Coletiva, v. 27, n. 10, p. 3881-3890, out. 2022. Disponível

200
RACISMO OBSTÉTRICO, INTERSECCIONALIDADE E A ASSISTÊNCIA A MULHERES
PRETAS NO CICLO GRAVÍDICO PUERPERAL

em: <https://doi.org/10.1590/1413-812320222710.01282022>.
Acesso em 06 de jun. 2023.

LIMA, Kelly Diogo de; PIMENTEL, Camila; LYRA, Tereza Maciel.


Disparidades raciais: uma análise da violência obstétrica em
mulheres negras. Ciência & Saúde Coletiva, v. 26, supl. 3, p. 4909-
4918. 2021. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1413-
812320212611.3.24242019>. Acesso em 07 de jun. 2023.

MATTAR, Laura Davis; DINIZ, Carmen Simone Grilo. Hierarquias


reprodutivas: maternidade e desigualdades no exercício de direitos
humanos pelas mulheres. Interface-Comunicação, Saúde,
Educação, v. 16, p. 107-120, 2012. Disponível em: <https://doi.org/
10.1590/S1414-32832012005000001>. Acesso em 06 jun. 2023.

MARCIANO, Amanda Silva; MORAES FILHO, Iel Marciano de;


PEREIRA, Mayara Cândida; CARVALHO FILHA, Francidalma
Soares; SANTOS, Goiacymar Campos dos. Feminicídio: Uma
Análise Aplicada Sob a Lei Maria da Penha. Revista Processus de
Gestão, Jurídicos e Financeiros, v. 10, n. 39, p. 106-121, jul./dez.
2019. Disponível em: <https://periodicos.processus.com.br/index.
php/egjf/article/view/98>. Acesso em 08 de jun. 2023.

MENA-TUDELA, Desirée; CERVERA-GASCH, Agueda;


ALEMANY-ANCHEL, María José; ANDREU-PEJÓ, Laura;
GONZÁLEZ-CHORDÁ, Victor Manuel. Design and Validation of
the PercOV-S Questionnaire for Measuring Perceived Obstetric
Violence in Nursing, Midwifery and Medical Students. Int. J.
Environ. Res. Public Health, v. 17, n. 21. 2020. Disponível em:
<https://doi.org/10.3390/ijerph17218022>. Acesso em 08 de jun.
2023.

MENA-TUDELA, Desirée; IGLESIAS-CASÁS, Susana;


GONZÁLEZ-CHORDÁ, Victor Manuel; CERVERA-GASCH,
Águeda; ANDREU-PEJÓ, Laura; VALERO-CHILLERON, María
Jesús. Obstetric Violence in Spain (Part I): Women’s Perception and
Interterritorial Differences. Int. J. Environ. Res. Public. Health, v.
17, n. 21, 7726, set/out. 2020. Disponível em: <https://doi.org/
10.3390/ijerph17217726>. Acesso em 08 de jun. 2023.

201
MENA-TUDELA, Desirée; ROMAN, Pablo; GONZÁLEZ-
CHORDÁ, Victor Manoel; RODRIGUEZ-ARRASTIA, Miguel;
GUTIÉRREZ-CASCAJARES, Lourdes; ROPERO-PADILLA,
Carmen. Experiences with obstetric violence among healthcare
professionals and students in Spain: A constructivist grounded
theory study. Elsevier¸ v.36, n.2, pp. 219-226, mar. 2023. Disponível
em: <https://doi.org/10.1016/j.wombi.2022.07.169>. Acesso em 09
de jun. 2023.

MENEZES, Fabiana Ramos de; REIS, Gabriela Maciel dos; SALES,


Aline de Abreu Silvestre; JARDIM, Danubia Mariane Barbosa;
LOPES, Tatiana Coelho. O olhar de residentes em Enfermagem
Obstétrica para o contexto da violência obstétrica nas instituições.
Interface: comunicação, saúde, educação, v. 24, e.180664, p.1-14.
2020. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/Interface.180664>.
Acesso em 07 de jun. 2023.

NASCIMENTO, Ketre Iranmarye Manos; LIMA, Vitória de Souza;


NOVAES, Carla Dulcirene Parente; PONTE, Adrianne Raposo;
ARAGÃO, Camylla Rebbeca Bezerra de; TRINDADE, Gabriela
Blanco de Morais; CARDOSO, Lara Rosa Cardoso e;
ALCÂNTARA, Lorena da Motta; PINHEIRO, Raissa Maria
Albuquerque; BRITO, Deusa Meriam da Silva. Manobra de
Kristeller: uma violência obstétrica. Brasilian Journal of Health
Review, v. 4, n. 2, p. 7362-7380, mar./abr., 2021. Disponível em:
<https://doi.org/10.34119/bjhrv4n2-278>. Acesso em 06 de jun.
2023.

NOGUEIRA, Conceição. Interseccionalidade e a psicologia


feminista. Bahia: Editora Devires, 2021.

OLIVEIRA, Beatriz Muccini Costa; KUBIAK, Fabiana. Racismo


institucional e a saúde da mulher negra: uma análise da produção
científica brasileira. Saúde debate, Rio de Janeiro, v.43, n.122, p.
939-948, jul./set. 2019. Disponível em: <https://doi.org/
10.1590/0103-1104201912222>. Acesso em 07 de jun. 2023.

OLIVEIRA, Juliana Lana Querino de; GOUVÊA, Abilene do


Nascimento; DAVID, Marcos José Vilchez. Mulheres negras e a
violência obstétrica: uma revisão integrativa. Research, Society and

202
RACISMO OBSTÉTRICO, INTERSECCIONALIDADE E A ASSISTÊNCIA A MULHERES
PRETAS NO CICLO GRAVÍDICO PUERPERAL

Development, v. 11, n. 1, p. e46111125184, Jan. 2022. Disponível


em: <https://doi.org/10.33448/rsd-v11i1.25184>. Acesso em 07 de
jun. 2023.

RESENDE, Augusto César Leite de; FRANÇA, Júlia Marjorie Lima.


Racismo e violência obstétrica: a proteção interseccional da mulher.
Interfaces Científicas, v. 8, n. 3, p. 37-54, Set. 2021. Disponível em
<https://periodicos.set.edu.br/direito/article/view/10095>. Acesso
em 08 de jun. 2023.

RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. Companhia das


Letras, 2019.

ROCHA, Nathalia Fernanda Fernandes da; FERREIRA, Jaqueline.


A escolha da via de parto e a autonomia das mulheres no Brasil:
uma revisão integrativa. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 44, n. 125,
p.556-568, abr./jun. 2020. Disponível em: <https://doi.org/
10.1590/0103-1104202012521>. Acesso em 06 de jun. 2023.

SILVA, Ana Verônica Rodrigues da; SIQUEIRA, Arnaldo Augusto


Franco de. Nascimento e cidadania: entre a norma e a política.
Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 29, n. 1. 2020. Disponível em:
<https://doi.org/10.1590/S0104-12902020190875>. Acesso em 09
de jun. 2023.

SILVA, Helena Clécia Barbosa da; LIMA, Telma Cristiane Sasso de.
Racismo institucional: violação do direito à saúde e demanda ao
Serviço Social. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 24, n. 2, p. 331-
341, mai./ago. 2021. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1982-
0259.2021.e77586>. Acesso em 07 de jun. 2023.

SILVA, Jordany Molline; RABELO, Isadora de Oliveira; ARAÚJO,


João Raphael Calil Lemos; PEIXOTO, Julli Martins; PEREIRA,
Kellen Cristine. Violência obstétrica: racismo estrutural e
patriarcalismo como fatores que invisibilizam o sofrimento de
mulheres negras. Brasilian Journal of Health Review, v. 5, n. 4, pp.
13313-13333, jul./ago., 2022. Disponível em: <http://dx.doi.org/
10.35587/brj.ed.0002045>. Acesso em 06 de jun. 2023.

203
Mini Currículo

Karolayne Rodrigues Silva


Psicóloga clínica. Mestranda em Psicologia pelo PPGPSI/UFAM. Tem
proximidade com os temas voltados para as questões de gênero,
sexualidade, violências contra a mulher e ao público LGBTQIA+
(especialmente no cenário obstétrico). E-mail: [email protected] .
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6076072861430130

Letícia Moura da Silva Patrício


Psicóloga clínica. Mestranda em Psicologia pelo PPGPSI/UFAM. Pós-
graduanda em Saúde Pública (ESAP-UEA) e em psicologia clínica
fenomenológico-existencial (NUCAFE). Os temas de interesse são:
Mulheres, gênero, sexualidade e saúde pública. E-mail: letmoura_
@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8108202853838923

Aline de Lima Sousa


Psicóloga e mestranda pelo PPGPSI/UFAM. Pós-graduada em
Psicologia Educacional (FAVENI) e Psicologia Clínica
fenomenológico-existencial (NUCAFE). Tem interesse em temáticas
de gênero e sexualidade, pessoas LGBTQIA+, jogos virtuais e
educação. E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.
cnpq.br/7331513803194020

Consuelena Lopes Leitão


Professora titular da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal
do Amazonas, doutora em Antropologia Social. Os temas de interesse
são: prevenção da violência sexual e violência contra crianças,
adolescentes e mulheres, gênero e prevenção do suicídio. E-mail:
[email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/
6269837680965021

Iolete Ribeiro da Silva


Professora Titular da Universidade Federal do Amazonas, doutora em
Psicologia. Bolsista Produtividade CNPq. Os temas de interesse são:
movimentos sociais, interseccionalidade, processos de exclusão,
políticas públicas e promoção de direitos humanos à população
amazônica. E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.
cnpq.br/6024598140248335

204
INTERSECCIONALIDADE ENTRE RAÇA E GÊNERO: UMA REFLEXÃO ACERCA DA
VIOLÊNCIA SIMBÓLICA NAS ESCOLAS DE EJA DA REDE PÚBLICA MUNICIPAL DE
ENSINO DE MANAUS/AM

INTERSECCIONALIDADE
ENTRE RAÇA E GÊNERO: UMA
REFLEXÃO ACERCA DA
VIOLÊNCIA SIMBÓLICA NAS
ESCOLAS DE EJA DA REDE
PÚBLICA MUNICIPAL DE
ENSINO DE MANAUS/AM
Débora Napoleão de Sena
Márcio de Oliveira

Introdução

Este capítulo tem por objetivo compreender como a


interseccionalidade entre raça e gênero contribui para a violência
simbólica nas escolas de Educação de Jovens, Adultos/as e Idosos/as
da Rede Pública Municipal de Ensino de Manaus/AM. A busca por
estudos acerca de gênero e raça na área de educação se faz relevante,
visto que as aprendizagens iniciadas na família, na igreja e em outros
ambientes de socialização são refletidas no âmbito da escola. Assim,
às marcas identitárias que permeiam a existência dos sujeitos, são
atribuídas conotações culturalmente produzidas e exercidas
socialmente por meio de vinculações concretas de existência
expressas, muitas vezes, por meio de relações de poder que geram
desigualdades e sofrimentos às pessoas e/ou grupos vulneráveis.
De modo geral, na EJA há um grande contingente de
estudantes em situação de vulnerabilidade social, especialmente
mulheres que, em sua maioria, sofrem pela interseccionalidade das
discriminações geradas pelo fato de serem mulheres, pobres, negras/
pardas, jovens ou adultas, analfabetas ou semianalfabetas,
desempregadas ou exercendo trabalhos precários (Ruas; Quirino,
2018).

205
Diante dessas reflexões, realizou-se uma pesquisa com o
propósito de responder: Como a interseccionalidade de raça e
gênero contribui para a violência simbólica nas escolas de Educação
de Jovens, Adultos/as e Idosos/as da Rede Pública Municipal de
Ensino de Manaus/AM?
Para tanto, traçou-se como objetivo geral compreender
como a interseccionalidade de raça e gênero contribui para a
violência simbólica nas escolas de Educação de Jovens, Adultos/as e
Idosos/as da Rede Pública Municipal de Ensino de Manaus/AM. E
como objetivos específicos: a) Identificar os sujeitos que compõem o
público da Educação de Jovens, Adultos/as e Idosos/as; b)
Apresentar a interseccionalidade como uma possibilidade de análise
das exclusões de gênero e de raça; e, c) Analisar como a
interseccionalidade de gênero e raça contribui para a violência
simbólica nas escolas de EJA da Rede Pública Municipal de Ensino
de Manaus/AM.
Para atingir os objetivos, utilizou-se como abordagem
metodológica a pesquisa qualitativa, pois “[...] parte do fundamento
de que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, uma
interdependência viva entre o sujeito e o objeto, um vínculo
indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito”
(Chizzotti, 2000, p. 79). Como procedimento de coleta de dados,
utilizou-se a pesquisa bibliográfica, que consiste em utilizar-se “[...]
de dados ou de categorias teóricas já trabalhadas por outros
pesquisadores e devidamente registrados” (Severino, 2016, p.131).
Quanto à fundamentação teórica, o estudo dialoga com
autores/as como: Bourdieu (2010), Oliveira; Peixoto e Maio (2018),
Almeida (2019), Ruas e Quirino (2019), Collins e Bilge (2020), Sena
(2022), Valentim e Souza (2020), dentre outros/as. É oportuno
salientar que o presente capítulo está estruturado em 3 (três) seções,
denominadas de: Os sujeitos da Educação de Jovens, Adultos/as e
Idosos/as; A interseccionalidade: uma possibilidade de análise das
exclusões de gênero e de raça; e, A interseccionalidade de gênero e
raça: implicações para a violência simbólica nas escolas de EJA da
Rede Pública Municipal de Ensino de Manaus/AM. Ressalta-se que
as seções foram elaboradas a partir dos objetivos específicos da
referida pesquisa.

206
INTERSECCIONALIDADE ENTRE RAÇA E GÊNERO: UMA REFLEXÃO ACERCA DA
VIOLÊNCIA SIMBÓLICA NAS ESCOLAS DE EJA DA REDE PÚBLICA MUNICIPAL DE
ENSINO DE MANAUS/AM

Os sujeitos da Educação de Jovens, Adultos/as e Idosos/as

Para compreender o perfil dos/as estudantes da Educação


de Jovens, Adultos/as e Idosos/as faz-se necessário conhecer sua
história, sua cultura e seus costumes, de modo a entendê-los/as,
primeiramente, como sujeitos de direitos, com diferentes
experiências de vida e que, em algum momento, afastaram-se da
escola por problemas sociais, econômicos, políticos ou culturais
(Sena, 2022). São sujeitos que têm identidades, possuem marcas de
classe, raça, gênero, geração e de sexualidade que sofreram ou
sofrem processos de exclusão (Ruas; Quirino, 2018).
No Brasil, a EJA é composta predominantemente por
estudantes com menos de 30 anos, representando 50,3% das
matrículas. Nessa faixa etária, os estudantes do gênero masculino
são a maioria. Todavia, analisando os dados disponibilizados no
Censo Escolar da Educação Básica de 2022, observa-se que as
matrículas de estudantes acima de 30 anos são maioritariamente do
gênero feminino, correspondendo ao universo de 58,9% (Brasil,
2023).
Nesse contexto, observa-se que o público de EJA da Rede
Pública Municipal de Ensino de Manaus/AM é composto também,
em sua maioria, por adolescentes na faixa etária de 15 a 17 anos e
por jovens de 18 a 25 anos, representando juntos 52% das
matrículas. É oportuno destacar que as mulheres correspondem a
50,3% nesta modalidade de ensino.
O Gráfico 1 ilustra, em números absolutos e em percentuais,
o quantitativo de estudantes matriculados/as na Rede Pública
Municipal de Ensino de Manaus/AM, no 1º semestre de 2023 na
Educação de Jovens, Adultos/as e Idosos/as.

207
O predomínio de estudantes mulheres na EJA, tanto no
âmbito nacional como municipal, pode refletir as desigualdades de
gênero presentes na sociedade brasileira, como, por exemplo, a falta
de acesso dessas mulheres à educação formal em idades mais jovens;
uma gravidez precoce, em que a adolescente vê-se obrigada a
abandonar a escola para dedicar-se à maternidade, retomando os
estudos tardiamente; a interrupção da vida escolar em virtude das
responsabilidades familiares e domésticas – responsabilidades essas
que são historicamente destinadas ao gênero feminino. Dados do
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira – INEP reafirmam essa realidade, ao destacar que 58,9%
das matrículas nesta modalidade de ensino são de mulheres acima
de 30 anos (Brasil, 2023).
Desse modo, tal disparidade destaca a relevância de abordar
e combater as desigualdades de gênero, para isso, torna-se
necessário criar oportunidades educacionais para todos/as,
independentemente do gênero.
Em relação à raça/cor, percebe-se que os/as estudantes
autodeclarados/as como brancos/as, constituem apenas 6% do
público da EJA; e, os/as autodeclarados/as como pretos/as e

208
INTERSECCIONALIDADE ENTRE RAÇA E GÊNERO: UMA REFLEXÃO ACERCA DA
VIOLÊNCIA SIMBÓLICA NAS ESCOLAS DE EJA DA REDE PÚBLICA MUNICIPAL DE
ENSINO DE MANAUS/AM

pardos/as representam a maioria, o equivalente a 79%. O Gráfico 2,


foi construído a partir das informações fornecidas pelo Setor de
Estatística da SEMED-Manaus/AM e apresenta os números
absolutos/percentuais correspondentes aos/às estudantes
matriculados/as no 1º semestre de 2023, levando em consideração a
raça/cor.

No cenário nacional, essa realidade não é diferente, segundo


dados do Censo Escolar da Educação Básica de 2022, os/as
estudantes identificados/as como pretos/as e pardos/as representam
77,5% da EJA do Ensino Fundamental e 69,3% da EJA do Ensino
Médio em relação à matrícula dos/as estudantes com informação de
cor/raça declarada. Os/as estudantes declarados/as como brancos/as
representam apenas 20,2% da EJA de nível fundamental (Brasil,
2023). Em se tratando da renda familiar, 78% dos/as estudantes
sobrevivem com menos de 1 (um) salário mínimo (Sena, 2022).
As estatísticas apresentadas confirmam que historicamente
os sujeitos da EJA são: em sua maioria mulheres, pobres, negros/as,
pardos/as, desempregados/as, que vivem da economia informal e
nos limites da sobrevivência. São sujeitos sociais e culturalmente
marginalizados nas esferas socioeconômicas e educacionais,

209
privados do acesso à cultura letrada, aos bens culturais e sociais,
comprometendo uma participação mais ativa no mundo do
trabalho, da política e da cultura (Paiva, 1983).

A interseccionalidade: uma possibilidade de análise das


exclusões de gênero e de raça

A interseccionalidade pode ser entendida como uma


ferramenta analítica que considera que “[...] as categorias de raça,
classe, gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade, etnia e
faixa etária – entre outras – são inter-relacionadas e moldam-se
mutuamente”, sendo, portanto, uma forma de entender e explicar a
complexidade das experiências humanas (Collins; Bilge, 2020, p.
16).
Para as autoras, a investigação e a práxis críticas são dois
aspectos essenciais para o uso da interseccionalidade como uma
ferramenta analítica. Como forma de investigação, a
interseccionalidade “[...] invoca um amplo sentido de usos de
estruturas interseccionais para estudar uma variedade de
fenômenos sociais em contextos sociais locais, regionais, nacionais e
globais” (Collins; Bilge, 2020, p. 53). Como práxis críticas, a
interseccionalidade refere-se “[...] às maneiras pelas quais as
pessoas, como indivíduos ou parte de um grupo, produzem,
recorrem ou aplicam estruturas interseccionais na vida cotidiana”
(Collins; Bilge, 2020, p. 53).
Nesse contexto, a interseccionalidade relaciona-se às
estruturas de identidades das pessoas que, interligadas, determinam
o modo e as experiências de vida de um indivíduo ou de um grupo.
Como exemplo, as autoras Collins e Bilge (2020) mencionam que as
vivências de uma mulher negra são diferentes das de um homem
negro, apesar de ambos possuírem a mesma cor/raça.
Nesse sentido, Tenório (2020, p. 76), em O avesso da pele,
por meio da personagem Martha, traz à discussão a realidade da
mulher negra em uma sociedade racista e machista:

Temos que olhar para frente. O movimento


negro nunca fez nada para mim. O
movimento negro acha que tudo se resume à

210
INTERSECCIONALIDADE ENTRE RAÇA E GÊNERO: UMA REFLEXÃO ACERCA DA
VIOLÊNCIA SIMBÓLICA NAS ESCOLAS DE EJA DA REDE PÚBLICA MUNICIPAL DE
ENSINO DE MANAUS/AM

cor da pele. Se esquecem que ser homem


negro é diferente de ser uma mulher negra. E
às vezes vocês, por serem negros, acham que
está tudo resolvido, que estamos sempre no
mesmo barco e que o racismo justifica todas as
merdas que vocês fazem com as mulheres.
Além disso, eu queria saber onde o
movimento estava quando me assediavam na
praia quando eu tinha 13 anos.

É oportuno destacar que, na obra, o autor explora bem o


acontecimento, explicitando as diferentes vivências entre mulheres e
homens negros, sendo possível encontrar diversas encruzilhadas
interseccionais. Nessa perspectiva, Davis (2016) afirma que, mesmo
com a abolição, as mulheres negras continuam tendo seus corpos
violados por homens brancos, pois as vozes do corpo negro não são
ouvidas, sendo muitas vezes silenciadas.
Na tentativa de buscar diminuir as exclusões e violências em
relação às pessoas negras, no Brasil tem-se a Lei nº 10.639/2003
(Brasil, 2003) que respalda a inclusão no currículo oficial da Rede de
Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-
Brasileira”. Com isso, a história e a cultura das pessoas negras
passam a compor obrigatoriamente os currículos escolares, no
intuito de dar visibilidade à luta sobre o racismo, além de explorar as
contribuições sociais, culturais, políticas e históricas de pessoas
negras.
Crenshaw (2002, p. 177) afirma que a “[...]
interseccionalidade busca capturar as consequências estruturais e
dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação”,
tratando especificamente da “[...] forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas
discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as
posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras”
(Crenshaw, 2002, p. 177).
Metaforicamente, a autora afirma que os vários eixos de
poder, como a raça, o gênero e a classe constituem as avenidas que
estruturam os terrenos sociais, econômicos e políticos, sendo por
meio delas o movimento das dinâmicas do desempoderamento
(Crenshaw, 2002).

211
Nessa perspectiva, enquanto construção teórica, a
interseccionalidade visa analisar a complexidade das identidades e
das desigualdades sociais por intermédio de um enfoque integrado,
refutando o enclausuramento e a hierarquização dos grandes eixos
da diferenciação social que são as categorias de sexo/gênero, classe,
raça, etnicidade, idade, deficiência e orientação sexual.
Dessa forma, o uso da interseccionalidade como ferramenta
analítica vai além do simples reconhecimento da multiplicidade dos
sistemas de opressão que operam a partir dessas categorias e postula
sua interação na produção e reprodução das desigualdades sociais.
Portanto, o problema interseccional não consiste somente
em não abordar um único tipo de descriminação completo, mas em
não considerar as vulnerabilidades interseccionais de mulheres
marginalizadas, contribuindo para a violação de direitos humanos
(Crenshaw, 2002).
Em se tratando do conceito de gênero, Oliveira, Peixoto e
Maio (2018, p. 31) apontam que o seu objetivo é

distinguir as diferenças sociais e culturais do


homem e da mulher, de modo a enfatizar as
suas características, buscando ressaltar que há
a necessidade de que a sociedade atinja a
igualdade entre os gêneros, afirmando que
tanto o homem quanto a mulher podem
experimentar situações diversas daquelas
impostas socialmente, sem sofrer
discriminação ou rejeição.

Nesse contexto, o conceito de gênero é a principal


ferramenta analítica para afirmar que não são os aspectos biológicos
que definem os modos de ser homem e mulher em determinadas
sociedades, mas o que os tornam homens e mulheres são os aspectos
sociais, culturais, históricos e políticos que, articulados, dão
aparatos para a construção da identidade de gênero.
Sendo assim, não é apenas ser homem e mulher que define
as vivências humanas, como a interseccionalidade bem aponta,
existem estruturas diversas que constituem as identidades de um
indivíduo ou de um grupo, e aqui inclui-se o aspecto da raça. Nesse
sentido, é fundamental fazer uma análise ampla, de modo a

212
INTERSECCIONALIDADE ENTRE RAÇA E GÊNERO: UMA REFLEXÃO ACERCA DA
VIOLÊNCIA SIMBÓLICA NAS ESCOLAS DE EJA DA REDE PÚBLICA MUNICIPAL DE
ENSINO DE MANAUS/AM

considerar todas as possibilidades e características quando o intuito


é conhecer as pessoas dentro de uma estrutura social, cultural,
política e histórica. Os atravessamentos a que as pessoas estão
expostas fazem com que a corrida social seja desigual a depender de
tais características.
Nesse sentido, Almeida (2019, p. 15) destaca que “[...] a
sociedade contemporânea não pode ser compreendida sem os
conceitos de raça e de racismo”. Para o autor, na perspectiva
histórica, a raça opera a partir de dois registros básicos que se
entrecruzam e complementam, a saber: 1) como característica
biológica, “[...] em que a identidade racial é atribuída por algum
traço físico, como a cor da pele, por exemplo”; 2) como
característica étnico-cultural “[...] em que a identidade será
associada à origem geográfica, à religião, à língua ou outros
costumes, a uma certa forma de existir” (Almeida, 2019, p. 22).
Para Carneiro (2011), a identidade étnica e racial é um
fenômeno historicamente construído ou destruído. Dessa forma,
vem dos tempos da escravidão a manipulação da identidade do/a
negro/a de pele clara como paradigma de um estágio mais avançado
de ideal estético humano. Acreditava-se que todo/a negro/a de pele
escura deveria perseguir diferentes mecanismos de
embranquecimento.
Assim, a miscigenação ou a mestiçagem foi utilizada como
carta de alforria do estigma da negritude: “[...] um tom de pele mais
claro, cabelos lisos ou um par de olhos verdes herdados de um
ancestral europeu são suficientes para fazer alguém que descenda de
negros/as se sentir pardo/a ou branco/a”, sendo promovido/a
socialmente a essas categorias (Carneiro, 2011, p. 64).
Nesta perspectiva, o “[...] Censo ajuda não simplesmente a
contar, mas a criar categorias de raça ou cor” (Carneiro, 2011, p. 68).
Todavia, a autora alerta que a “[...] ciência vem revelando a falácia
do conceito de raça do ponto de vista biológico” (Carneiro, 2011, p.
68), assim as novas pesquisas destroem as bases do racialismo do
século XIX, o qual consagrou a superioridade racial dos/as
brancos/as em relação a outros grupos humanos, justificando
opressões e privilégios. Entretanto, ainda não tiveram impacto sobre

213
as diversas manifestações de racismo em ascensão no mundo
inteiro, inclusive no Brasil.
Desse modo, a raça tem sido o fundamento do racismo, em
que determinados grupos raciais se definem como superiores a
outros. Para Almeida (2019) o racismo se manifesta na sociedade de
forma individual, institucional e estrutural, estabelecendo os lugares
que podem ser ocupados por determinados grupos raciais. Vale
destacar que toda prática de racismo deve ser combatida, prevenida
e punida.
Na obra literária O avesso da pele, Tenório (2020) ilustra
muito bem o cotidiano de uma família negra na cidade de Porto
Alegre - RS, a qual vivencia o racismo impregnado na sociedade
brasileira e a ausência de políticas públicas por parte do Estado. O
autor discute o peso que a cor da pele exerce sobre as pessoas. Desde
muito cedo o personagem de Henrique sofre racismo, seja durante a
infância, em uma partida de futebol inocente com os amigos; seja na
adolescência, quando aos quatorze anos sentiu “[...] o ferro frio de
uma algema nos pulsos” ao ser confundido com um bandido
(Tenório, 2020, p. 18); seja na juventude, quando aos dezenove anos
durante uma entrevista de emprego foi vítima de racismo ao ouvir a
frase “[...] não gosto de negros” (Tenório, 2020, p. 18) e até mesmo
na vida adulta, ao ser parado pela polícia incontáveis vezes e
terminar sendo assassinado em uma abordagem policial.
Portanto, o racismo se materializa como uma discriminação
racial, caracterizada pelo caráter sistêmico de um processo em que
as condições de subalternidade de um grupo social e os privilégios
de outro, encontram condições de reprodução nos âmbitos da
política, da economia e das relações cotidianas. Uma das expressões
mais cruéis do racismo manifesta-se por meio da violência. No
Brasil, por exemplo, 76,5% das pessoas assassinadas em 2022 eram
negras; 83,1% das mortes por intervenção policial são de negros/as e
apenas 16,6% de brancos/as (FBSP, 2023).
O recorte, em termos de raça/cor das mulheres vítimas de
violência letal no Brasil, reafirma os elementos de racismo que
perpassam todas as modalidades criminosas no país, de um jeito ou
de outro. Entre as vítimas de feminicídio, têm-se que 61,1% eram
negras e 38,4% brancas. Nos demais assassinatos de mulheres, o

214
INTERSECCIONALIDADE ENTRE RAÇA E GÊNERO: UMA REFLEXÃO ACERCA DA
VIOLÊNCIA SIMBÓLICA NAS ESCOLAS DE EJA DA REDE PÚBLICA MUNICIPAL DE
ENSINO DE MANAUS/AM

percentual de vítimas negras é ainda maior, com 68,9% dos casos,


para 30,4% de brancas (FBSP, 2023).
Para Pimentel e Araújo (2020) a violência que vitimiza
recorrentemente as mulheres negras nos estados brasileiros não está
dissociada das violências estruturais que marcam o país, sobretudo
o racismo. Desse modo, a opressão deve ser pensada a partir de uma
perspectiva política ampla, e não apenas em sua dimensão
intersubjetiva singular.
Para Carneiro (2019), a raça e o gênero são categorias
construídas historicamente e, como tais, produzem desigualdades,
utilizadas como justificativas para as assimetrias sociais, que
explicitam que mulheres negras estão em situação de maior
vulnerabilidade em todos os âmbitos sociais.
Compartilhando desse entendimento teórico, Crenshaw
(2002) afirma que vários eixos de poder atravessam a vida das
mulheres negras, como o racismo, o patriarcalismo e a opressão de
classe. E, por diversas vezes, esses sistemas se sobrepõem e se
cruzam, criando, então, intersecções complexas. Dessa forma, não
existe hierarquia entre os eixos de opressão e, sendo assim, as
mulheres negras são marcadas por múltiplas opressões, em virtude
de identidades específicas que podem ser atingidas repetidas vezes
em cruzamentos, pelo fluxo que vem de várias direções.
Nesse aspecto, em busca da articulação entre raça, gênero e
outras categorias, o feminismo negro aborda as diferentes
experiências vividas por mulheres conforme o contexto em que
estão inseridas, afastando-se da universalidade e igualdade
idealizadas por feministas brancas em suas pautas alicerçadas
exclusivamente pela concepção de gênero.
Segundo Crenshaw (2002, p. 176), para “[...] apreender a
discriminação como um problema interseccional, as dimensões
raciais ou de gênero, que são parte da estrutura, teriam de ser
colocadas em primeiro plano, como fatores que contribuem para a
produção da subordinação”. Nesse sentido, a inseparabilidade entre
patriarcado e racismo é instrumentalizada pelo conceito de
interseccionalidade.
Para compreender como se constroem os percursos e os
cruzamentos da identidade interseccionada, deve-se pensar em

215
relação a expressão social mais perversa, a desigualdade, presente
em todos os âmbitos da vida social, em especial na EJA, considerada
por muito tempo como uma modalidade de ensino direcionada
apenas para adultos/as analfabetos/as.
Desse modo, a visão interseccional permite evidenciar a
fragilidade de alguns grupos sociais que possuem marcas
identitárias que revelam posições de vulnerabilidade social, o que
pode ser notado pela análise interseccional de gênero, classe, cor e
escolaridade (Ruas; Quirino, 2018).

A interseccionalidade entre gênero e raça: implicações


para a violência simbólica nas escolas de EJA da Rede Pública
Municipal de Ensino de Manaus/AM

Ao considerar a interseccionalidade entre gênero e raça, é


necessário refletir sobre como esses marcadores são utilizados na
constituição da violência simbólica no contexto escolar. Diante
disso, a interseccionalidade de gênero e raça pode estar relacionada
à constituição da violência simbólica no contexto escolar.
Bourdieu (2010) define a violência simbólica como aquela
que ocorre nas relações de dominação, em que os/as dominados/as
tomam para si as categorias construídas pelos/as dominantes e
passam a compreendê-las como naturais, deixando de entender tais
categorias como produto das relações de dominação. De acordo
com Bourdieu (2010, p. 50):

[...] a força simbólica é uma forma de poder


que se exerce sobre os corpos, diretamente, e
como que por magia, sem qualquer coação
física; mas essa magia só atua com o apoio de
predisposições colocadas, como molas
propulsoras, na zona mais profunda dos
corpos.

Assim, a violência simbólica consiste em uma violência “[...]


suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas”, sendo exercida
pelas vias simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais
precisamente do desconhecimento (Bourdieu, 2010, p. 7). Desse

216
INTERSECCIONALIDADE ENTRE RAÇA E GÊNERO: UMA REFLEXÃO ACERCA DA
VIOLÊNCIA SIMBÓLICA NAS ESCOLAS DE EJA DA REDE PÚBLICA MUNICIPAL DE
ENSINO DE MANAUS/AM

modo, o poder simbólico é, fundamentalmente, um poder de


construção da realidade. Tal poder detém os meios de afirmar o
sentido imediato do mundo, instituindo valores, classificações
(hierarquia) e conceitos que se apresentam aos agentes como
espontâneos, naturais e desinteressados.
Nas instituições de ensino, a violência simbólica pode ser
identificada por meio da imposição de uma cultura escolar própria à
classe dominante, que serve para a reprodução das estruturas de
poder. Na perspectiva de Bourdieu (1998), a escola não é uma
instituição imparcial, neutra, mas um lugar excludente, pois
seleciona os/as estudantes mais talentosos/as a partir de critérios
objetivos. Para ele, a escola cobra dos/as estudantes as crenças, os
valores e as posturas dos grupos dominantes, tida como cultura
universal. Desse modo, a cultura e a herança familiar que os/as
constituem como indivíduos de um grupo social são desvalorizadas,
pois não são consideradas legítimas.
Nesse contexto, a escola está longe de ofertar igualdade de
oportunidades para todos/as, pois o processo educacional e a ação
pedagógica agem como impulsionadores de reprodução e
legitimidade das desigualdades sociais. Dessa maneira, o ambiente
escolar torna-se mais um espaço da sociedade em que a violência
simbólica pode ser manifestada e vivenciada.
Cumpre destacar que os marcadores de gênero e raça
também estão presentes nas relações de dominação vivenciadas na
escola, contribuindo para que atitudes racistas, machistas e sexistas
passem a ser vistas como naturais por aqueles/as que sofrem tais
discriminações, fazendo com que se conformem e não denunciem a
dominação que vivem cotidianamente.
Geralmente, as manifestações discriminatórias vivenciadas
por estudantes negros/as da EJA partem quase sempre de colegas da
escola, por meio de xingamentos e apelidos pejorativos que, na
maioria das vezes, estão relacionadas ao corpo e ao cabelo. Uma das
características do racismo é a maneira pela qual aprisiona o/a
outro/a em imagens fixas e estereotipadas, enquanto reserva para
os/as racialmente hegemônicos/as o privilégio de serem
representados/as em sua diversidade (Carneiro, 2019).

217
Ressalta-se que, no Brasil, a população negra é discriminada
por seus traços fenotípicos. Assim, ao ter o corpo e cabelo
desvalorizados, reforçam-se estereótipos e representações negativas,
desqualificando a estética dos/as negros/as.
Para Coutrim (2014, p. 68), “[...] apesar de saber que a
estética negra é extremamente desvalorizada socialmente, manter e
resgatar o cabelo crespo demonstra um resgate da memória, da
cultura e espiritualidade ancestrais do/a negro/a”. Nesse sentido,
Gomes (2003) afirma o desafio enfrentado pela população negra
brasileira para construir uma identidade negra positiva em uma
sociedade que, historicamente, ensina aos/as negros/as, desde muito
cedo, que para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo.
Para Carneiro (2011, p. 73), “[...] a fuga da negritude é a
medida da consciência de sua rejeição social e o desembarque dela
sempre foi incentivado e visto com bons olhos pela sociedade”. Cada
negro/a claro/a ou escuro/a que celebre sua mestiçagem – ou
suposta morenidade – contra sua identidade negra tem aceitação
garantida. O mesmo ocorre com aquele/a que afirma que o
problema é somente de classe e não de raça (Carneiro, 2011).
Para Nogueira (1998), à medida que o/a negro/a se depara
com o esfacelamento de sua identidade negra, ele/a se vê obrigado/a
a internacionalizar um ideal branco. Entretanto, o caráter
inconciliável desse ideal de ego com sua condição biológica de ser
negro/a exigirá um enorme esforço a fim de conciliar um ego e um
ideal, e o conjunto desses sacrifícios pode acarretar um
desequilíbrio psíquico.
A violência simbólica no ambiente escolar também aparece
por meio de gestos, condutas, agressões hostis, mas principalmente,
por atitudes consideradas “normais” pela sociedade, como por
exemplo, quando o/a professor/a privilegia sempre determinados
estudantes brancos/as para certas atividades. Essa seletividade social
pode ser observada nas apresentações extracurriculares das escolas,
onde ao/à estudante branco/a está reservado o espaço de destaque,
enquanto ao/à estudante negro/a são direcionadas atividades mais
submissas dentro da estrutura social.
Para Carneiro (2011), a relação professor/a-estudante
mostra que os/as estudantes brancos/as recebem mais

218
INTERSECCIONALIDADE ENTRE RAÇA E GÊNERO: UMA REFLEXÃO ACERCA DA
VIOLÊNCIA SIMBÓLICA NAS ESCOLAS DE EJA DA REDE PÚBLICA MUNICIPAL DE
ENSINO DE MANAUS/AM

oportunidades de se sentirem aceitos/as e queridos/as que os/as


demais; os elogios são feitos a eles/elas como pessoas. Todavia, no
caso dos/as estudantes negros/as os elogios são feitos às tarefas que
estão benfeitas, mas não a eles/as como seres humanos dignos de
admiração e incentivo.
De acordo com Coutrim (2014), os/as estudantes que
sofrem esse tipo de violência possuem características comuns, como
fragilidade, autoestima baixa e desempenho escolar insatisfatório.
Esses indivíduos, por serem frutos de uma classe dominada, são
inseguros/as e submissos/as.
Para Carneiro (2011), as dinâmicas escolares
discriminatórias deixam os/as estudantes negros/as fragilizados/as,
hostilizados/as e catatônicos/as. Muitos/as deles/as, por não se
sentirem inseridos/as dentro do ambiente escolar, optam por
abandonar os estudos. Diante dessa situação, torna-se cada vez mais
urgente a necessidade de se discutir o preconceito e o racismo
dentro da escola.
Nas instituições de ensino, as situações de discriminação
racial são levadas a conhecimento dos/as professores/as e equipe
pedagógica. Em geral, o/a diretor/a convida os/as familiares para
uma conversa. Em algumas situações os/as jovens levam o ocorrido
às mães, em outras o omitem, a fim de poupá-las (Valentim; Souza,
2020).
Valentim e Souza (2020) asseveram o pouco envolvimento
dos/as profissionais das escolas em relação às situações de
discriminação e o enfrentamento ao racismo, o que pode ser
considerado uma forma de silenciamento, ao permitirem que
situações de discriminação racial perdurem, na medida em que, na
maioria das vezes, não existe intervenção efetiva.
Para Carneiro (2011, p. 76), “[...] a omissão e o silêncio
dos/as professores/as diante dos estereótipos e dos estigmas
impostos aos/as estudantes negros/as são a tônica de sua prática
pedagógica”. Para ilustrar o racismo no ambiente escolar, a autora
utiliza-se de alguns depoimentos como “[...] só porque eu sou preta
elas falam que não tomo banho. Ficam me xingando de preta cor de
carvão. Ela me xingou de preta fedida. Eu contei para a professora e
ela não fez nada” (Carneiro, 2011, p. 76).

219
Segundo Carneiro (2011), diante dessas atitudes racistas, a
autoestima dessas estudantes e sua autorrepresentação ficam
seriamente abaladas. A imagem de si mesmas seria inferiorizada e as
estudantes brancas que presenciaram as cenas provavelmente se
sentirão superiores a elas, estabelecendo-se assim, “[...] o círculo
vicioso do racismo que estigmatiza uns/umas e gera vantagens e
privilégios para outros/as” (Carneiro, 2011, p. 76).
É oportuno destacar que as práticas cotidianas no ambiente
escolar podem determinar tanto a manutenção e reprodução de
preconceitos, quanto a mudança de paradigmas e a construção de
novos valores a partir do respeito às diferenças e da promoção da
igualdade. Para Bourdieu (1998), a violência simbólica não acontece
apenas entre estudantes, mas também com os/as profissionais da
educação. Quanto mais elevado/a for a posição social do indivíduo
maior será a capacidade de impor algo sobre os/as demais. Por isso,
acredita-se que toda a ação pedagógica se trata de uma violência
simbólica, visto que todos/as impõem algo sobre seus “inferiores”,
inclusive os/as professores/as sobre seus/suas estudantes.
Nessa perspectiva, toda ação pedagógica se trata de uma
violência simbólica, porque o/a professor/a tenta, arbitrariamente,
impor uma cultura que não está inserida em alguns/algumas
estudantes. Para que esse fenômeno não ocorra no ambiente escolar
é necessário que esses/as profissionais estejam preparados/as para
lidar com as diferentes realidades de seus/suas estudantes,
especialmente na Educação de Jovens, Adultos/as e Idosos/as.
Assim sendo, a escola tem o papel de posicionar-se diante
das relações de dominação, definindo o que pretende promover
neste espaço de formação: uma Educação racista, machista e sexista
ou uma Educação que questiona as discriminações vivenciadas ao
longo da história por diferentes grupos sociais. Desse modo, ela
necessita desenvolver ações eficazes, visando à emancipação dos
diferentes sujeitos de direitos desenvolvendo práticas sociais para
superar o preconceito e a discriminação racial.

220
INTERSECCIONALIDADE ENTRE RAÇA E GÊNERO: UMA REFLEXÃO ACERCA DA
VIOLÊNCIA SIMBÓLICA NAS ESCOLAS DE EJA DA REDE PÚBLICA MUNICIPAL DE
ENSINO DE MANAUS/AM

Considerações finais

Este capítulo buscou compreender como a


interseccionalidade entre raça e gênero contribui para a violência
simbólica nas escolas de Educação de Jovens, Adultos/as e Idosos/as
da Rede Pública Municipal de Ensino de Manaus/AM. Desta
maneira, afirma-se que a escola de EJA tem se utilizado de práticas
que reforçam estereótipos, preconceitos e discriminações,
perpetuando desigualdades e dificultando o processo de
aprendizagem.
Nessa perspectiva, o aparelho educacional tem se
constituído, de forma quase absoluta, para os/as racialmente
inferiorizados/as, como fonte de múltiplos processos de
aniquilamento da capacidade cognitiva e da confiança intelectual.
Esse fenômeno ocorre pelo rebaixamento da autoestima que o
racismo e a discriminação provocam no cotidiano escolar e pela
negação aos/as negros/as da condição de sujeitos de conhecimentos.
Além disso, a escola acaba nutrindo a ideia de inferioridade
feminina, ideia essa oriunda de uma herança histórica vinculada a
aprendizados de diferentes culturas e do pensamento androcêntrico.
Desse modo, aparentemente, a escola reforça a desigualdade de
gênero.
Destaca-se que, entre as manifestações de violência
presentes na escola, a violência simbólica é a mais frequente nas
relações pedagógicas e de interações, tanto entre estudantes, como
também entre professor/a-estudante. Desse modo, a escola como
espaço apropriado para a socialização e convivência democrática e
solidária deve favorecer a formação para as relações étnico-raciais e
o respeito com o/a outro/a – o/a diferente.
Portanto, as instituições escolares e os/as profissionais da
educação devem coibir os abusos e as violências cotidianas na
educação, seguindo também as determinantes da Lei nº
10.639/2003 (Brasil, 2003) que combate o racismo. Neste sentido,
reitera-se que o público da EJA em sua maioria é constituído por
mulheres negras e pardas, diante desta realidade trazê-las para o
centro das discussões é uma forma de contribuir para a construção
de uma identidade positiva de gênero e raça. Para tanto, a escola

221
deve propor atividades no sentido de historicizar as ações e o
protagonismo de mulheres negras.

Referências

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen,


2019.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria


Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

BOURDIEU, Pierre. A escola conservadora: as desigualdades frente


à escola e à cultura. In: NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI,
Afrânio (Orgs.). Escritos da educação. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.

BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais


Anísio Teixeira - INEP. Censo Escolar da Educação Básica 2022:
Resumo Técnico. Brasília, 2023. Disponível em: < https://download.
inep.gov.br/publicacoes/institucionais/estatisticas_e_indicadores/
resumo_tecnico_censo_escolar_2022.pdf>. Acesso em: 07 ago.
2023.

BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei


no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura
Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Brasília, 2003. Disponível
em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm>.
Acesso em: 29 jul. 2023.

CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher


negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In:
HOLLANDA, Heloisa Buarque (Org). Pensamento feminista -
conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil.


São Paulo: Selo Negro, 2011.

CHIZZOTTI, Antônio. Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais.


São Paulo: Cortez, 2000.

222
INTERSECCIONALIDADE ENTRE RAÇA E GÊNERO: UMA REFLEXÃO ACERCA DA
VIOLÊNCIA SIMBÓLICA NAS ESCOLAS DE EJA DA REDE PÚBLICA MUNICIPAL DE
ENSINO DE MANAUS/AM

COLLINS, Patrícia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade.


Tradução de Rane Souza. São Paulo: Boitempo, 2020.

COUTRIM, Regina Recalde da Fonseca. PROJETO “LÁPIS COR


DE PELE – QUAL PELE?” Implementação da Lei 10.639/03 no
combate ao racismo e resgate da autoestima de estudantes negros
em escola da Ceilândia, DF. 2014. 82 f. Monografia (Especialização)
– Universidade de Brasília, Departamento de Educação - EaD,
Brasília, 2014.

CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de


especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao
gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, ano 10, 2002, p.
171-188. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/ref/a/
mbTpP4SFXPnJZ397j8fSBQQ/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em:
30 jul. 2023.

DAVIS, Ângela. Mulheres, raça e classe. Tradução Heci Regina


Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA - FBSP.


Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023. São Paulo: FBSP,
2023. Disponível em: < https://forumseguranca.org.br/wp-content/
uploads/2023/07/anuario-2023.pdf>. Acesso em: 09 ago. 2023.

GOMES, Nilma Lino. Educação, identidade negra e formação de


professores/as: um olhar sobre o corpo negro e o cabelo crespo.
São Paulo: Educação e Pesquisa, 2003.

MANAUS. Secretaria Municipal de Educação. Setor de Estatística.


Perfil dos estudantes da EJA. Manaus: SEMED, 2023.

NOGUEIRA, Izildinha Baptista. Significações do corpo negro.


1998. 146 f. Tese (Doutorado em Psicologia Escolar e
Desenvolvimento Humano) – Universidade de São Paulo, São
Paulo, 1998.

OLIVEIRA, Márcio de; PEIXOTO, Reginaldo; MAIO, Eliane Rose.


A Educação enquanto promotora de uma cultura de paz: o foco nas

223
questões de gênero e sexualidade. Revista Amazônida, Manaus,
vol. 03, n. 02, 2018, p. 27 – 39. Disponível em: < https://periodicos.
ufam.edu.br/index.php/amazonida/article/view/4893/4181>.
Acesso em: 07 ago. 2023.

PAIVA, Vanilda Pereira. Educação popular e educação de adultos.


2. ed. São Paulo: Loyola, 1983.

PIMENTEL, Elaine; ARAÚJO, Elita Isabella Morais Dorvillé de.


Gênero, violência e racismo: reflexões sobre violência contra as
mulheres no Brasil a partir de uma perspectiva feminista e
antirracista. Revista Liberdade, São Paulo, v. 11, n. 29, 2020, p.
360–385. Disponível em: < https://ibccrim.org.br/publicacoes/
redirecionaLeituraPDF/945>. Acesso em: 26 jul. 2023.

RUAS, Thatiane Santos; QUIRINO, Raquel. A interseccionalidade


das relações sociais de sexo, idade, raça/cor no contexto da EJA:
apontamentos teórico-metodológicos. 4º Seminário Internacional
Desfazendo o Gênero. Recife, 2019. Disponível em: < https://
editorarealize.com.br/editora/anais/desfazendo-genero/2018/
TRABALHO_EV129_MD1_SA27_ID257_08102019125429.pdf>.
Acesso em: 07 ago. 2023.

SENA, Débora Napoleão de. Representação social da violência


contra mulher: relatos de estudantes da EJA da rede pública
municipal de ensino de Manaus/AM. 2022. 117 f. Dissertação
(Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em
Educação, Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2022.

SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho


científico. São Paulo: Cortez, 2016.

TENÓRIO, Jeferson. O avesso da pele. São Paulo: Companhia das


Letras, 2020.

VALENTIM, Silvani dos Santos; SOUZA, Andréia Carvalho. Jovens


negras periféricas: afloradas interseccionalidades de raça e gênero.
Revista Teias, Seção Temática Raça e Cultura, v. 21, n. 62, julho/
setembro, 2020, p. 23–37. Disponível em: <https://www.e-

224
INTERSECCIONALIDADE ENTRE RAÇA E GÊNERO: UMA REFLEXÃO ACERCA DA
VIOLÊNCIA SIMBÓLICA NAS ESCOLAS DE EJA DA REDE PÚBLICA MUNICIPAL DE
ENSINO DE MANAUS/AM

publicacoes.uerj.br/index.php/revistateias/article/view/
49743/34967>. Acesso em: 07 ago. 2023.

Mini Currículo

Débora Napoleão de Sena


Doutoranda e Mestre em Educação pelo Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal do Amazonas
(PPGE/UFAM). Pesquisadora do tema Violência contra mulher. E-
mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/
2749047190737770.

Márcio de Oliveira
Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Maringá
(UEM). Mestre em Educação e Licenciado em Pedagogia pela UEM.
Docente na Faculdade de Educação da Universidade Federal do
Amazonas. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal do Amazonas. E-mail:
[email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/
2808188859997677.

225
FEMINISMO NEGRO
INTERSECCIONAL:
CONTRIBUIÇÕES PARA UM
(RE)PENSAR DA ENSINAGEM
Raescla Ribeiro de Oliveira

Introdução

Ao longo de toda minha formação, poucas foram as


oportunidades em que mulheres negras ou indígenas apareceram
representadas, homenageadas e/ou como leituras obrigatórias.
Quase que automaticamente o currículo obrigatório engolia, e
atrevo dizer enquanto professora da educação básica e discente da
pós-graduação, que ele ainda engole as contribuições de corpos que
se desvencilham do binômio homem-branco.
Nossa visão de mundo, intelecto, expressões artísticas,
invenções e produções científicas são permeadas pela invisibilidade
e o silenciamento. Nossa inexistência é quase uma regra inviolável
da pré-escola ao doutorado, nas mais variadas áreas do
conhecimento e disciplinas. Mas como romper com uma lógica
sexista e racista na Educação brasileira?
Os dispositivos legais nos garantem a obrigatoriedade da
história e cultura indígena, afro-brasileira e africana em todos os
níveis de ensino por meio da lei nº 11.645 de 2008 (Brasil, 2008).
Entretanto, recorrentemente, a aplicabilidade dessa lei se dá de
forma isolada nos meses de abril em referência ao dia 19, declarado
dia dos povos indígenas, e em novembro, devido ao dia da
consciência negra. Personalidades como Zumbi dos Palmares e
Ajuricaba chegam a ser homenageados, mas ainda há uma
recorrência de ações estereotipadas1.
1
Como no caso de um desfile da Independência em que crianças negras
foram vestidas como escravas pela escola no ano de 2022. Disponível em:
<https://revistacenarium.com.br/no-maranhao-desfile-da-independencia-
tem-criancas-negras-vestidas-de-escravas/>
Alguns anos atrás colaborei com o artigo “Representações
de Mulheres Negras e Indígenas nos Livros Didáticos da Rede
Pública de Manaus/AM” que se encontra disponível para acesso na
Revista Científica Gênero na Amazônia. Na oportunidade foi
possível evidenciar que quando interseccionalizamos gênero e raça
na educação é visível um recorrente apagamento das mulheres
negras e indígenas em materiais didáticos. Diante disso, venho
compreendendo, enquanto pesquisadora e educadora, a relevância
da teoria feminista negra interseccional para um (re)pensar da
ensinagem desde o planejamento ao uso dos materiais didáticos
disponíveis.
A interseccionalidade aparece pela primeira vez como
contribuição da pesquisadora e professora Kimberle Crenshaw
(2012). Em seu trabalho, ela analisou e reconheceu que as opressões
de gênero e raça podem aparecer de formas combinadas em
intersecções. Partindo dessa perspectiva, primeiramente, busco
apresentar neste capítulo alguns aspectos do racismo e do sexismo
na educação brasileira, na sequência em diálogo com a teoria
Feminista Negra Interseccional e a abordagem da Aprendizagem
Criativa proponho o modelo “Espiral da Ensinagem Interseccional”
que originou-se a partir do projeto “Gênero na Computação:
trajetórias e ciberativismo no Ensino Superior Pan-Amazônico”, sigo
expondo um breve relato de experiência em que exemplifico a
aplicação do modelo e concluo o capítulo com algumas
considerações iniciais para o amanhecer de uma educação
antirracista e antissexista.

Racismo e Sexismo na Educação brasileira

Em 1984, no artigo “Racismo e sexismo na cultura


brasileira”, a intelectual Lélia Gonzalez apresentou como o racismo e
o sexismo mobilizam imagens e estereótipos sobre as mulheres
negras brasileiras. Discorrendo sobre as noções de mulata,
doméstica e mãe preta, anunciou como a cultura brasileira tece e
reforça tais representações. Para a autora,

228
FEMINISMO NEGRO INTERSECCIONAL: CONTRIBUIÇÕES PARA UM (RE)PENSAR
DA ENSINAGEM

O lugar em que nos situamos determinará


nossa interpretação sobre o duplo fenômeno
do racismo e do sexismo. Para nós o racismo
se constitui como a sintomática que
caracteriza a neurose cultural brasileira. Nesse
sentido, veremos que sua articulação com o
sexismo produz efeitos violentos sobre a
mulher negra em particular (Gonzalez, 1984,
p. 224).

O reconhecimento da intersecção entre racismo e sexismo


na cultura brasileira enfatiza o que Gonzalez nomeia como efeitos
violentos para a vida das mulheres negras. Entendendo a partir de
tais estudos que a cultura brasileira está imersa em concepções
sexistas e racistas, ao olhar para a Educação não nos deparamos com
um cenário diferente.
No capítulo “O QUE NÃO TEM NOME NÃO EXISTE!
Feminismo negro e o percurso histórico do conceito de
Interseccionalidade” da pesquisadora Megg Rayara Gomes de
Oliveira (2018, p. 31) os desafios interpostos pelo sexismo e o
racismo na educação são desvendados indicando como mulheres
negras vêm sendo “silenciadas pela tradição machista da
historiografia brasileira que tem se dedicado a registrar os feitos de
homens brancos”.
Além disso, Megg Rayara demonstra que a luta das
mulheres negras pelo acesso à educação teve que se manter
constante mesmo após o processo de abolição da escravatura:

Outra questão que aparece de forma


recorrente na luta dessas mulheres, durante e
depois do regime escravista, é o direito de
acesso à educação formal, interpretado como
um mecanismo de promoção de ascensão
social. [...] Como resultado dessas ações, já no
início do século XX muitas mulheres negras
conseguiram não apenas o acesso à escola
normal, mas também passaram a atuar como
professoras e diretoras de muitas escolas,
principalmente nos estados de São Paulo e Rio
de Janeiro. Esse quadro, porém, não

229
permaneceu por muito tempo e no final da
década de 1920 tem início uma política estatal
para destituir essas professoras (e os
professores negros) de suas funções, bem
como do cargo de diretoras/es das escolas
primárias e técnicas. Nos anos iniciais da
década de 1930, as netas de ex-escravizadas
haviam sido expulsas da profissão de
normalistas (Oliveira, 2018, p. 34-35).

A menos de 100 anos atrás, mulheres negras estavam sendo


excluídas de atuar como professoras na educação formal. Esse
histórico de silenciamento e apagamento tem reverberado na
realidade educacional brasileira. Quando consideramos o Dossiê da
Mulher Negra do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA
(2013) as desigualdades entre mulheres negras e brancas no acesso à
Educação ficam evidentes:

Figura 01 – Reprodução do Gráfico 2 do Dossiê da Mulher


Negra IPEA

Fonte: IPEA (2013)

230
FEMINISMO NEGRO INTERSECCIONAL: CONTRIBUIÇÕES PARA UM (RE)PENSAR
DA ENSINAGEM

Optei por realizar a reprodução do gráfico neste capítulo


pois considero este material de suma relevância para a discussão em
torno do racismo e do sexismo na educação brasileira. De 1995 a
2009, as mulheres brancas aparecem no topo dos índices de
escolarização no Brasil. Se ignorássemos a intersecção gênero e raça,
seria anunciado que o grupo “mulheres” lidera os índices de
escolarização. A visão universal tende a falhar em compreender as
intersecções de cada grupo. Porém, ao interseccionarmos, o que
observamos é um abismo educacional entre mulheres brancas e
mulheres negras.
Um estudo mais recente intitulado “A educação de meninas
negras em tempos de pandemia: o aprofundamento das
desigualdades” organizado pelo Geledés Instituto da Mulher Negra
no ano de 2021, trouxe à tona como o racismo e o sexismo na
educação brasileira são problemáticas que ainda promovem abismos
educacionais. De acordo com a pesquisa,

Os estereótipos se manifestam de maneira


violenta na vida de meninas negras,
colocando-as como não-merecedoras de
carinho, dedicação, proteção e atenção. O
racismo, que dá sustentação a esses
estereótipos, chega às suas vidas já na primeira
infância e as acompanha ao longo de suas
trajetórias, comprometendo o percurso
escolar e o desenvolvimento integral. A falta
de atenção especial às desigualdades
enfrentadas pelas meninas negras reforça o
fato de que no período de isolamento social
elas se tornem progressivamente mais
vulneráveis, distanciando do Sistema de
Garantia de Direitos (SGD), isto é, dos
mecanismos de promoção, defesa e controle
para a efetivação dos direitos humanos da
criança e do adolescente (Carneiro, 2021, p.
110).

Muitos são os desafios para enfrentamento do racismo e do


sexismo na Educação brasileira, mas no esperançar dessas
mudanças podemos, enquanto educadoras e educadores, pensar ou

231
melhor repensar as nossas práticas cotidianas de planejamento.
Nesse sentido, elaborei um modelo Interseccional de Ensinagem
inspirado nos constructos da teoria Feminista Negra Interseccional
de Patrícia Hill Collins (2016) e no espiral da Aprendizagem
Criativa de Mitchel Resnick (2020).

Interseccionalidade no planejamento para uma


ensinagem antirracista e antissexista

Desde a adolescência tive contato com movimentos sociais e


ao longo dos anos colaborei com alguns grupos como a Coletiva
Banzeiro Feminista2, Coletivo Negro Alexandrina3, Articulação de
Jovens Negras Feministas4, Rede Fulanas de Negras da Amazônia
Brasileira5 e o coletivo de ativismo LGBTQIAPN6+ Miga Sua Lôca7.
Esses espaços mobilizaram e fomentaram minha formação para tal
preocupação com a realidade educacional. Os movimentos sociais
que participei carregavam em suas bases o pensamento
Interseccional. Meu contato com esta teoria se deu por meio das
rodas de conversa desses movimentos e não nos espaços de
educação formal.
Com isso, na minha experiência como professora-
pesquisadora me preocupo por diversas vezes em elaborar planos de
aula e projetos que tenham uma perspectiva inclusiva e
interseccional.
Como apresentado na introdução deste capítulo, a
Interseccionalidade enquanto teoria surge inicialmente nos estudos
da pensadora Kimberle Crenshaw, vinculados à área do Direito. O
intuito da autora era demonstrar como gênero e raça não aparecem
de forma isolada, mas que podem estar sobrepostos. Em seu estudo,
discute que “[...] parte do projeto da intersecionalidade visa incluir
questões raciais nos debates sobre gênero e direitos humanos e
2
Disponível em: https://www.instagram.com/banzeirofeminista/
3
Disponível em: https://www.facebook.com/ColetivoNegroAlexandrina/
4
Disponível em: https://www.instagram.com/am_anjf/
5
Disponível em: https://www.facebook.com/redefulanas/
6
Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Queer, Intersexo, Assexuais, Pansexuais, Não-
binárias e mais.
7
Disponível em: https://www.facebook.com/migasualocaculturadiversidade

232
FEMINISMO NEGRO INTERSECCIONAL: CONTRIBUIÇÕES PARA UM (RE)PENSAR
DA ENSINAGEM

incluir questões de gênero nos debates sobre raça e direitos


humanos” (Crenshaw, 2002, p.08).
Por sua vez, Patrícia Hill Collins e Sirma Bilge vão enfatizar
que a interseccionalidade vem sendo abordada por diversos grupos
sociais e que esses a interpretam e utilizam de diversos modos.
Portanto, no livro “Interseccionalidade” organizaram algumas ideias
que de certa forma explicam que:

A interseccionalidade investiga como as


relações interseccionais de poder influenciam
as relações sociais em sociedades marcadas
pela diversidade, bem como as experiências
individuais na vida cotidiana. Como
ferramenta analítica, a interseccionalidade
considera que as categorias de raça, classe,
gênero, orientação sexual, nacionalidade,
capacidade, etnia e faixa etária – entre outras –
são inter-relacionadas e moldam-se
mutuamente. A interseccionalidade é uma
forma de entender e explicar a complexidade
do mundo, das pessoas e das experiências
humanas (Collins; Bilge, 2020, p. 16).

Logo, esta “forma de entender e explicar a complexidade do


mundo” é um artefato de possibilidades para mobilizarmos uma
“ensinagem” inclusiva antirracista e antessexista. Mas o que estamos
chamando de “ensinagem”?
Quando estava na graduação durante uma orientação do
Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência - PIBID, o
professor comentou que, muitas vezes, iríamos nos deparar com
problemas de “ensinagem” e não de aprendizagem. Alertou a mim e
às outras estudantes sobre a importância de estarmos atentas sobre o
que se ensina e o como se ensina.
Tal fala me fez recorrentemente refletir sobre como ensinar
de uma forma que abrace as diferentes experiências dos estudantes e
como confrontar o currículo oficial quando a visão de mundo
predominante favorecer apenas o homem-branco.
A curiosidade sobre o termo ensinagem me fez visitar
repositórios virtuais em busca de artigos e outros trabalhos que

233
discorressem sobre seus significados. A partir disso, identifiquei por
meio das contribuições de Ricardo Lopes Correia, Samira Lima da
Costa e Marco Akerman (2017, p.24), no artigo “Processos de
ensinagem em desenvolvimento local participativo”, que o termo foi
“cunhado por Léa das Graças Camargo Anastasiou em 1994, para se
referir a uma prática social, crítica e complexa em educação entre
professor e estudante”. No trabalho de Léa Anastasiou há a seguinte
definição para o termo:

[...] consideramos ensinagem a ação de ensino


da qual resulte a aprendizagem do aluno;
trata-se, portanto, de algo que supere o
simples dizer do conteúdo por parte do
professor, pois é sabido que na aula
tradicional, que se encerra numa simples
exposição de tópicos, só há garantia da citada
exposição, e nada se pode afirmar acerca da
apreensão do conteúdo pelo aluno. Nesta
conceituação, consideramos a ensinagem uma
prática social complexa efetivada entre os
sujeitos, professor e aluno, em sala de aula
englobando tanto a ação de ensinar quanto a
de aprender, num processo contratual e de
parceria (Anastasiou, 2002, p. 66).

Assim, Ensinagem é a prática social do ensinar-aprender


que considera cada um dos sujeitos e seus saberes. Colocar a
interseccionalidade em diálogo com a ensinagem é um importante
exercício para o enfrentamento de práticas sexistas e racistas na
educação.
Para criar um modelo aplicável ao exercício de um pensar
interseccional no planejamento de aulas e projetos, me inspirei no
Espiral da Aprendizagem Criativa de Mitchel Resnick difundido no
Brasil pela Rede Brasileira de Aprendizagem Criativa:

234
FEMINISMO NEGRO INTERSECCIONAL: CONTRIBUIÇÕES PARA UM (RE)PENSAR
DA ENSINAGEM

Figura 02 – Espiral da Aprendizagem Criativa

Fonte: Resnick (2020, p.11)

Além dessa referência, considerei as características do


pensamento feminista negro interseccional expostos no artigo
“Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do
pensamento feminista negro” por Collins (2016, p.99) “1. a
autodefinição e a autoavaliação das mulheres negras; 2. a natureza
interligada da opressão”. A reflexão sobre esses aspectos e as minhas
vivências em sala de aula tornaram possível a criação do que
inicialmente estou nomeando como “Espiral da Ensinagem
Interseccional”:

Figura 03 – Espiral da Ensinagem Interseccional

Fonte: Elaborado pela autora (2023)

235
A proposta é que o espiral possa ser utilizado de forma
interativa pelas professoras e pelos professores durante o
planejamento de uma aula ou projeto. Ao planejar e passar pelo
espiral, a pessoa responsável pelo material pode se questionar “Meu
plano de aula é representativo para?”. Na primeira ondulação há o
aspecto gênero, se considerar o plano representativo para tal basta
colorir a ondulação gênero. Na sequência há outros aspectos como
raça-etnia, classe, território e sexualidade. Ao fim do espiral, há a
indicação “Adicionar mais cor ao plano”, as setas então vão indicar
“Pesquise”, depois “Crie”, planeje novamente. Com isso temos um
exercício importante para a elaboração e reelaboração de planos de
aula de formas mais inclusivas.
Esse é apenas um modelo inicial, considero ser necessário
ampliar as ondulações desse espiral. Compreendo também que nem
sempre será possível contemplar todas as ondulações, mas vejo que
esse exercício é um importante caminho para tornar as práticas em
sala de aula menos excludentes e mais antirracistas e antissexistas.
Lembrando de minhas vivências como estudante da
graduação e da pós-graduação, penso que, se o espiral fosse aplicado
no planejamento, teria tido contato com uma bibliografia menos
eurocêntrica, branca, cis-heteronormativa e masculina.
Para melhor demonstrar as possibilidades do uso deste
espiral trouxe como exemplo uma sequência didática que elaborei e
executei no ano de 2021 com uma turma da Educação Infantil. No
período, realizei o exercício de pensar a proposta em uma
perspectiva interseccional, mas ainda não dispunha do modelo
exposto neste trabalho. Vou exemplificar como seu uso pode
simplificar a elaboração de aulas de forma interseccional.

Breve relato de uma ensinagem interseccional

No ano de 2021, após o período de aulas remotas devido a


pandemia da COVID-19, houve o retorno das aulas presenciais na
cidade de Manaus. Observei que as crianças estavam demonstrando
certa recusa em desenhar ou pintar. Eram muito críticas consigo
mesmas. Para atuar diante disso criei, em colaboração com outra
colega, uma sequência didática que visava a realização de releituras

236
FEMINISMO NEGRO INTERSECCIONAL: CONTRIBUIÇÕES PARA UM (RE)PENSAR
DA ENSINAGEM

de obras de artes pelas crianças. O material que estava à nossa


disposição trazia apenas como referência Tarsila do Amaral
(Abaporu, 1928) e Leonardo Da Vinci (A Gioconda, 1503). A partir
do meu interesse em interseccionar as representações realizei
pesquisas sobre artistas negros e indígenas.
Precisei fazer o movimento Pesquise-Crie-Planeje diversas
vezes, o que oportunizou uma ampliação do meu próprio repertório
cultural. Com ausência de um modelo como o do espiral, fui
seguindo a busca sem um instrumento metodológico que me
ajudasse a exercitar minha visão interseccional.
Inicialmente, minha lista de artistas para releitura eram:
Tarsila do Amaral e Leonardo Da Vinci. Caso eu estivesse fazendo
do Espiral Interseccional de Ensinagem, ao passar pela primeira vez
minha sequência didática no espiral iria preencher apenas a
ondulação do gênero:

Figura 04 – Espiral da Ensinagem Interseccional (Gênero)

Fonte: Elaborado pela autora (2023)

Ao observar a aplicação, é notório que a perspectiva do


plano não combina gênero e raça. Naquele período, como explicitei
anteriormente, busquei ampliar as representações. Nessa busca foi
possível incluir na sequência didática artistas negros como Abdias
do Nascimento (Borboletas de Franca, 1973), Jean Michel-Basquiat
(Dispensador de Pez, 1984) e a artista amazonense e indígena
Duhigó (Maloca Tuyuca, 2018).

237
Se após essas inserções passasse novamente minha ideia
pelo espiral, teria novas ondulações coloridas:

Figura 05 – Espiral da Ensinagem Interseccional


(Gênero; Raça/Etnia; Território)

Fonte: Elaborado pela autora (2023)

Seria possível levar a sequência diversas outras vezes pelo


espiral no processo de planejamento e/ou até mesmo após a
aplicação. Assim, a sequência se tornaria cada vez mais abrangente e
representativa.
Ainda nos deparamos com alguns desafios para promover
uma ensinagem interseccional, já que o currículo oficial e os
materiais disponíveis nas escolas geralmente ainda não abrangem a
diversidade das narrativas e corpos que fizeram e fazem artística e
cientificamente o Brasil. Nessa sequência, por exemplo, precisei
criar palitoches para contar às crianças a biografia de Abdias
Nascimento:
Figura 06 - Palitoches Abdias do Nascimento

Fonte: Arquivo Pessoal

238
FEMINISMO NEGRO INTERSECCIONAL: CONTRIBUIÇÕES PARA UM (RE)PENSAR
DA ENSINAGEM

Por isso, o pesquisar e o criar são partes imprescindíveis do


Espiral Interseccional da Ensinagem. O exercício de aplicação do
espiral neste tópico, demonstra que ainda há necessidade de seu
aperfeiçoamento para pensar a intersecção entre gênero e raça.
Entretanto, esta proposta é apenas um esforço inicial para
impulsionar os processos de elaboração das aulas e projetos de
forma mais contemplativa das nossas diferenças.
Como resultado desta sequência didática as crianças das
turmas envolvidas passaram a demonstrar mais interesse nas
experiências com desenhos e tintas. Ao trazer diferentes artistas e
obras foi possível dialogar em roda de conversa sobre diferentes
temáticas, como por exemplo a relevância da atuação de Abdias do
Nascimento no combate ao racismo. As crianças faziam muitas
perguntas a cada novo artista que era apresentado a elas, e acredito
que ver diferentes formas de ser artista e fazer arte foi muito
importante para que as cobranças que elas estavam fazendo
inicialmente sobre os seus próprios desenhos fossem diluídas.

Considerações Iniciais para uma Ensinagem


Interseccional

Em acordo com Crenshaw (2002, p.16), penso que “A


intersecionalidade oferece uma oportunidade de fazermos com que
todas as nossas políticas e práticas sejam, efetivamente, inclusivas e
produtivas.”
Dessa forma, nós que fazemos educação precisamos
mergulhar nos itinerários da interseccionalidade para promover
uma ensinagem para todas, todes e todos. Precisamos de uma
ensinagem que se preocupe em questionar o currículo e os materiais
didáticos em busca de representar a diversidade de corpo, gênero,
raça, etnia, sexualidade, classe, religiosidade e território.
Para que todas as ondulações do espiral sejam coloridas é
preciso exercitar uma visão crítica e criativa diante do planejamento
dos conteúdos. Outro ponto importante é considerar os pontos de
vista dos estudantes sobre o planejamento. Penso que esse espiral
pode ser apresentado aos próprios estudantes para que contribuam
com suas visões sobre cada uma das ondulações. Uma aula de

239
matemática pode também trazer filmes como o “Estrelas além do
tempo” (Melfi, 2016) em que a história de mulheres negras como
Katherine Johnson e suas descobertas são enfatizadas. Chuvas de
ideias devem ser estimuladas com o recurso do espiral da
Ensinagem Interseccional e entrecruzadas com a perspectiva do
espiral da Aprendizagem Criativa.
Ao compartilhar ideias e incentivar os próprios estudantes a
participarem com ideias estaremos mais próximos de um futuro que
contemple nossas diferenças e receba assim o colorir do nosso giz,
conforme a imagem abaixo:

Figura 07 – Espiral da Ensinagem Interseccional (Completo)

Fonte: Elaborado pela autora (2023)

Por fim, nessas considerações iniciais desejo que este espiral


seja inspirador no processo de reflexão e criação de novas práticas
de ensino. Espero que ele possa ser mexido e remexido, ampliado e
melhorado como uma possibilidade para uma ensinagem cada vez
mais interseccional.

Referências

AMARAL, Tarsila do. Abaporu. In: ENCICLOPÉDIA Itaú


Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural,
2023. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/
obra1628/abaporu>. Acesso em: 03 de dezembro de 2023. Verbete
da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

240
FEMINISMO NEGRO INTERSECCIONAL: CONTRIBUIÇÕES PARA UM (RE)PENSAR
DA ENSINAGEM

ANASTASIOU, Lea das Graças Camargos. A ensinagem como


desafio à ação docente. Pedagógica, Chapecó, v.4, n.8, p.65-77,
2002.

ARTICULAÇÃO de Negras Jovens Feministas do Amazonas. [S.


l.], 2023. Disponível em: <https://www.instagram.com/am_anjf/>.
Acesso em: 2 dez. 2023.

BASQUIAT, Jean-Michel. Dispensador de Pez. 1984. Pintura em


acrílico e óleo sobre tela, 183 x 122 cm.

CARNEIRO, Suelaine (coord.). A educação de meninas negras em


tempos de pandemia: o aprofundamento das desigualdades. São
Paulo: Geledés, 2021.

COLETIVA Banzeiro Feminista. [S. l.], 2023. Disponível em:


<https://www.instagram.com/banzeirofeminista/>. Acesso em: 2
dez. 2023.

COLETIVO Negro Alexandrina. [S. l.], 2023. Disponível em:


<https://www.facebook.com/ColetivoNegroAlexandrina/>. Acesso
em: 2 dez. 2023.

COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade


[recurso eletrônico]. tradução Rane Souza. - 1. ed. São Paulo:
Boitempo, 2020.

COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a


significação sociológica do pensamento feminista negro. Tradução:
Juliana de Castro Galvão. Revisão: Joaze Bernardino Costa. Revista
Sociedade e Estado – Volume 31 Número 1 Janeiro/Abril, 2016.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/se/v31n1/0102-6992-se-
31-01-00099.pdf>. Acesso em: Jan. 2019.

CORREIA, Ricardo Lopes; COSTA, Samira Lima da; AKERMAN,


Marco. Processos de ensinagem em desenvolvimento local
participativo. Interações (Campo Grande), v. 18, n. 3, p. 23–29, jul.
2017.

241
CRENSHAW, Kimberle. A interseccionalidade na discriminação
de raça e gênero, 2012. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/
mod/resource/view.php?id=2295749&forceview=1>. Acesso em 10
nov. 2023.

DA VINCI, Leonardo. Mona Lisa. 1506. Pintura a óleo sobre


madeira de álamo, 77 cm × 53 cm.

GARCIA, Í. No Maranhão, desfile da Independência tem crianças


negras vestidas de escravas. Disponível em: <https://
revistacenarium.com.br/no-maranhao-desfile-da-independencia-
tem-criancas-negras-vestidas-de-escravas/> . Acesso em: 20 nov.
2023.

DUHIGÓ, Tukano. Maloca Tuyuka. 2018. 1 original de arte.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira.


Revista Ciências Sociais Hoje. São Paulo, 1984, pp. 223-244.

HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como uma


prática de liberdade. tradução de Marcelo Brandão Cipolla. - São
Paulo. Editora WMF Martins Fontes, 2013.

MARCONDES, Mariana Mazzini (ORGANIZADORA) et al.


Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida das
mulheres negras no Brasil. Brasília: Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada, 2013.

MIGA, Sua Lôca Cultura Diversidade. [S. l.], 2023. Disponível em:
<https://www.facebook.com/migasualocaculturadiversidade>.
Acesso em: 2 dez. 2023.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro:


processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1978.

NASCIMENTO, Abdias. Borboletas de Franca. In:


ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São
Paulo: Itaú Cultural, 2023. Disponível em: <http://enciclopedia.
itaucultural.org.br/obra66944/borboletas-de-franca>. Acesso em:

242
FEMINISMO NEGRO INTERSECCIONAL: CONTRIBUIÇÕES PARA UM (RE)PENSAR
DA ENSINAGEM

02 de dezembro de 2023. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-


7979-060-7

OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes de. O QUE NÃO TEM NOME


NÃO EXISTE! Feminismo negro e o percurso histórico do conceito
de Interseccionalidade. In: OLIVEIRA, Ligia Ziggiotti de; CUNHA,
Josafá Moreira da; KIRCHHOFF, Rafael dos Santos. Educação e
interseccionalidades. – 1. ed. - Curitiba : Ed. NEAB UFPR, 2018.

OLIVEIRA, Raescla Ribeiro de; RICARDO, Helenice Aparecida.


Representações de Mulheres Negras e Indígenas nos Livros
Didáticos da Rede Pública de Manaus/AM. Revista Científica
Gênero na Amazônia, n. 14, p. 95-106, 2022.

REDE Fulanas [S. l.], 2023. Disponível em: <https://www.facebook.


com/redefulanas/>. Acesso em: 2 dez. 2023.

RESNICK, Mitchel. Jardim de infância para a vida toda: por uma


aprendizagem criativa, mão na massa e relevante para todos
[recurso eletrônico] / Mitchel Resnick; tradução: Mariana Casetto
Cruz, Lívia Rulli Sobral; revisão técnica: Carolina Rodeghiero, Leo
Burd. Porto Alegre: Penso, 2020.

Mini currículo

Raescla Ribeiro de Oliveira


Pedagoga (UFAM), Especialista em Direitos Humanos, Gênero e
Sexualidade (ANHEMBI), Mestra e Doutoranda em Educação
(PPGE/UFAM) e Bolsista CAPES. Integrante do LADHU. Trabalha
como professora formadora na Gerência de Tecnologia Educacional
(DDPM/SEMED Manaus) e é autora de contos, poesias e livros,
como “Mamãe Noel de Nina” da Editora Metanoia. E-mail: raescla.
[email protected]. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/
9541659042081611

243
GÊNERO E SEXUALIDADE NAS
POLÍTICAS PÚBLICAS
EDUCACIONAIS: INDICADORES
SOCIAIS E MÉTRICAS PARA A
AVALIAÇÃO NA PROMOÇÃO DA
INCLUSÃO
Maise Caroline Zucco

Durante a década de 1990 os temas nomeados de forma


genérica como da “diversidade” ocupam as normativas educacionais
brasileiras. Fruto das disputas promovidas pela sociedade civil,
associada a oportunidades históricas e políticas, os debates étnico
raciais, de gênero e sexualidades compõem até os dias atuais normas
e orientações pedagógicas visando a transversalização temática, fato
exemplificado em documentos como as Leis de Diretrizes e Bases da
Educação (LDB) (BRASIL, 1996) e os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN) (BRASIL, 1997a; BRASIL, 1997b; BRASIL, 1997c;
BRASIL, 1997d; BRASIL, 1997e). As políticas públicas voltadas a
esse recorte, que podem ser exploradas de forma mais apropriada na
complexidade dos elementos históricos que atravessaram mais de
duas décadas, ganharam visibilidade nacional e participação
popular com a realização das conferências de políticas para as
mulheres e LGBT1, assim como foram fortalecidas pela
institucionalização das pautas ligadas aos movimentos sociais junto
ao Estado. A criação da Secretaria de Política para as Mulheres
(SPM), com caráter de ministério, e a vasta oferta de cursos através
1
Utilizo a sigla LGBT reproduzindo o que foi datadamente empregue.
Informo que utilizarei, ao longo do texto, as expressões e siglas adotadas
pela bibliografia debatida. Compreendo as implicações desses usos, que
refletem desde temporalidades distintas, concepções diferenciadas e
alinhamentos com as tendências mais recentes dos movimentos sociais.
Contudo, esse exercício analítico representaria um texto à parte diante de
sua complexidade.
da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e
Inclusão (SECADI), órgão do Ministério da Educação (MEC),
propiciaram a capacitação e aperfeiçoamento de uma grande
quantidade de docentes atuantes na rede básica e pública de ensino
brasileira2.
Desde a conjuntura da discussão do último Plano Nacional
de Educação, aprovado em 2014, os tensionamentos ligados ao que
foi nomeado como pautas identitárias estiveram popularizadas
entre a sociedade civil, mesmo que o combate ligado principalmente
a grupos católicos e evangélicos seja anterior. As narrativas da
ameaça sobre o que supostamente seria uma “ideologia de gênero” a
dissolver os limites sociais de uma compreensão antagonicamente
binária entre o feminino e o masculino ganharam a mídia e se
estenderam entre as gestões dos governos federais até o ano de 2022.
Considerando essa trajetória nacional, de avanços e
retrocessos nas políticas públicas educacionais voltadas às pautas
identitárias, a proposta deste texto é trazer considerações em torno
dos dados que dão suporte à construção das mesmas. Os objetivos
desta reflexão estão associados à relevância dos indicadores sociais
na construção de diagnósticos das realidades escolares e, por sua
vez, na identificação dos aspectos estruturais dos problemas sociais
narrados dentro do campo das políticas públicas. Sua importância
ainda está ligada a produção de ações, por parte o Estado, que visem
incidir de forma mais efetiva otimizando recursos financeiros e
humanos, em uma preocupação com a efetividade, eficiência e
economicidade da gestão governamental3.
2
Extinta no ano de 2019, a Secretaria ofertou capacitações e especializações
em um projeto de formação continuada docente que alcançou distintos
estados brasileiros, em diferentes áreas e as informações governamentais
foram retiradas do site. É o caso do das especializações intituladas Gênero
e Diversidade na Escola, que fizeram parte das Ações e programas da
Diretoria de Políticas da Educação em Direitos Humanos e Cidadania da
SECADI, mas também de iniciativas voltadas à educação especial,
licenciaturas interculturais indígenas, em educação quilombola e indígena,
focada em meio ambiente e direitos humanos, conforme Vanessa Campos
de Lara Jakimiu (2021).
3
Reforço aqui que avaliações qualificadas das políticas públicas consideram
a eficiência, o custo-benefício empreendido na ação; a efetividade, que
representa o cumprimento das metas estabelecidas; a economicidade, que
preza pelos baixos custos; e a efetividade, que mensura o impacto da ação

246
GÊNERO E SEXUALIDADE NAS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS:
INDICADORES SOCIAIS E MÉTRICAS PARA A AVALIAÇÃO NA PROMOÇÃO DA
INCLUSÃO

Dessa forma, este trabalho é um exercício ensaístico em


torno da definição do problema da pesquisa em desenvolvimento
em meu pós-doutoramento junto ao Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da Universidade Federal do Amazonas sob a
supervisão da professora Dra. Iolete Ribeiro Silva. Pretendo discutir
as políticas públicas educacionais e os desafios na construção de
diagnósticos e na sistematização de indicadores ligados a
marcadores identitários que fundamentam as ações empreendidas
pelas Secretarias de Educação e Organismos de Políticas ligados às
pautas LGBTQIAP+, raciais e de mulheres (em nível estadual), mas
também pelos Ministérios (em nível federal). Nesta reflexão,
pretendo discutir essa temática embasada na revisão bibliográfica e
nos dados publicamente acessíveis, delimitando a problemática que
orienta a pesquisa, mas não adentrar em programas e iniciativas
específicas, como os estudos já iniciados no estado da Bahia.
Os estudos técnicos e acadêmicos, que têm como proposta
discutir o abandono e a evasão escolar que antecederam a Pandemia
de Covid-19, com foco nas suas causas, identificam fatores como: a
gravidez na adolescência, a necessidade de renda, a violência ou
ainda a não identificação com os conteúdos trabalhados no espaço
escolar (dentre outros) (Ver a esse respeito: MARTINS, Paulo de
Sena, 2018). O fato é que alguns marcadores sociais, historicamente
excluídos, representam os maiores números de pessoas que param
de frequentar a educação básica depois de manterem a matrícula
por pelo menos um ano ou mesmo que não integram o sistema
educacional, como discutiremos mais adiante. A oferta de uma
estrutura física e profissional apropriada, considerando a
importância da proximidade da escola e das moradias, também se
encontra entre as preocupações desse campo investigativo e são
identificados como elemento que carece de investimento para o
combate à evasão escolar. Contudo, é nas questões relativas aos
marcadores identitários que a discussão deste texto irá focar.
O pesquisador Rodrigo Ednilson de Jesus (2018) em
investigação que mapeou adolescentes entre 15 e 17 anos, cursando
o Ensino Médio entre os anos de 2012 e 2013 nas cidades de Belo

no intuito e combater ou erradicar o problema social caracterizados nos


objetivos de um programa intervenção promovida.

247
Horizonte, Brasília, São Paulo, Fortaleza e Belém identifica que para
meninas e meninos negros o peso do racismo estruturado nas
práticas e cotidiano escolares impactavam diretamente na sua
relação com os estudos. Embora o grupo investigado estivesse
cursando a escola e não represente o universo de evasão e
desistência, o desinteresse pelos estudos e desânimo em ir para a
instituição foram narrados a partir da experiência de práticas
discriminatórias e naturalização das injúrias raciais e racismo.
Esse foi um contexto histórico nacional em que uma série
de iniciativas por parte do Estado estavam em vigor para promoção
dos debates nos ambientes escolares. Desde 1989, com a Lei de
Crime Racial (nº. 7.716) (BRASIL, 1989), as discriminações e os
preconceitos relativos à raça, cor, etnia foram tipificados
juridicamente, pontuando que a injúria racial, antes prevista apenas
no Código Penal, viesse a ganhar nova estrutura com o aumento da
pena na Lei 14.532, no ano de 2023 (BRASIL, 2023). No que se
refere à documentação que orienta a prática docente, o debate
étnico racial esteve, assim como está, presente nos temas
transversais dos Parâmetros Curriculares Nacionais desde a segunda
metade da década de 1990 e com as leis 10.639 de 2003 (BRASIL,
2003) e 11.645 de 2008 (BRASIL, 2008), passou a integrar o
currículo da educação básica, do ensino superior, principalmente
nas licenciaturas. Em acréscimo, ainda podemos destacar a série de
cursos de formação continuada e especialização promovidos pela
SECADI nos anos 2000, possibilitando a instrumentalização de
docentes atuantes na Rede. Esse movimento permitiu que
professoras e professores com conclusão das licenciaturas anteriores
aos novos currículos pudessem receber capacitação e, ainda, como
iniciativa voltada à reestruturação em vigor naquele período, foi
incentivada a inclusão do tema nos materiais com o acréscimo do
recorte étnico racial promovido pelo Plano Nacional do Livro
Didático. Essas são apenas algumas das iniciativas, dentro do campo
das políticas públicas educacionais, direcionadas ao combate do
racismo e das desigualdades sociais provenientes dessa opressão.
Entretanto, mesmo diante de uma trajetória de proposições
governamentais, cabe destacar a parcialidade da efetividade dessas
ações com as constantes ponderações sobre como as temáticas

248
GÊNERO E SEXUALIDADE NAS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS:
INDICADORES SOCIAIS E MÉTRICAS PARA A AVALIAÇÃO NA PROMOÇÃO DA
INCLUSÃO

integraram os livros escolares de forma não satisfatória, a


dificuldade da transversalização do tema nas escolas – que ainda fica
restrito a datas comemorativas – e a porcentagem desproporcional
de pessoas negras e pardas em relação às pessoas brancas em
espaços educacionais. Por outro viés, a política de cotas nas
instituições de ensino superior promoveu o crescimento de cerca de
205% de estudantes negras, negros e procedentes de escolas
públicas, conforme investigação do Laboratório de Estudos e
Pesquisas em Educação (LEPES) da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), mostrando os avanços e os desafios de uma questão
estrutural e histórica no país (CARREIRA, Denise; HERINGER,
Rosana, 2022). Dentro dessa lógica, a mensuração é possível pela
existência desses dados desagregados4, em que podemos identificar
a diferença entre a experiência social de pessoas negras, pardas ou
autodeclaradas brancas, ponto fundamental para a identificação das
especificidades e direcionamento dos investimentos a serem
destinados por parte do Estado para mitigar problemas sociais
brasileiros.
Ainda nesse movimento de pensar alguns dados referentes à
educação, mas direcionados a outro marcador, na segunda edição
das “Estatísticas de Gênero: Indicadores sociais das mulheres no
Brasil”, material produzido pelo IBGE em 2021, podemos identificar
que 29,7% das mulheres entre 18 e 24 anos estavam frequentando o
ensino superior no ano de 2019, enquanto homens representavam
21,5%. Essa prevalência de mulheres está entre as pessoas que
cursam as universidades, pessoas qualificadas com ensino superior
completo, que concluem o ensino médio, mas não na ocupação de
cargos de liderança, na vida pública, ou representam a maioria das
pessoas atuantes no mercado de trabalho formal e com recebimento
dos maiores salários. Há mudanças positivas, mas há permanências
nos grupos que ocupam majoritariamente determinadas posições.
Embora na pesquisa mencionada não seja possível o levantamento
4
O termo “dados desagregados” é utilizado no campo das políticas públicas
ao tratarmos da separação das informações em partes menores. No caso
dos indicadores sociais, me refiro à identificação dos marcadores de raça,
dentro das informações estatísticas referentes ao gênero, por exemplo. Essa
preocupação possibilita traçar especificidades, padrões das desigualdades e,
principalmente, as opressões articuladas.

249
de algumas especificidades, em dados coletados do INEP, as
mulheres correspondiam, em 2019, a 60% das pessoas concluintes
nas instituições de ensino superior. Entretanto, ao pensarmos no
marcador racial em associação com o gênero, a diferença entre as
mulheres negras (21%) concluintes é inferior a de brancas (27%).
A publicização dessas informações e a possibilidade de
análise com base na interlocução desses números excedem a função
de instrumentalização das pesquisas acadêmicas. Como observado
anteriormente, os dados desagregados e a possibilidade de
entrecruzamento desses, com a maior especificação das diferenças
entre as experiências sociais e das desigualdades, são relevantes para
a construção de um diagnóstico apropriado e para a identificação
das maiores necessidades de intervenção por parte do Estado.
Os indicadores sociais, dentro das políticas públicas,
cumprem a função de atribuir significado qualitativo a um dado
estatístico, ou quantificável, que possibilita mensurar
constantemente uma realidade social. Para Paulo Martino Januzzi
(2004), os indicadores sociais são instrumentos para monitorar uma
dada realidade social e cumprem uma relevante função de dar
suporte à construção e ao monitoramento das políticas públicas.
Nesse sentido, conhecer a realidade educacional das mulheres, em
sua diversidade, é importante para acompanharmos as
transformações sociais e as mudanças promovidas a partir das
iniciativas empreendidas pelos governos, conhecendo variações
históricas, dentre outras características consideradas positivas aos
indicadores sociais.
Em associação às preocupações políticas pertinentes ao
campo dos estudos feministas, atentar para a identificação dos
marcadores que promovem experiências sociais específicas, frente à
associação de opressões que passam por outros marcadores não
mencionados, como as deficiências e as territorialidades, traz um
alinhamento com o debate interseccional. Dessa forma, tal qual o
conceito de interseccionalidade a preocupação não está apenas na
identificação e na desagregação dos marcadores sociais nos dados
quantitativos e qualitativos levantados pelos organismos
governamentais e institutos de pesquisas, mas nos efeitos desse
levantamento que promovem a identificação das especificidades de

250
GÊNERO E SEXUALIDADE NAS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS:
INDICADORES SOCIAIS E MÉTRICAS PARA A AVALIAÇÃO NA PROMOÇÃO DA
INCLUSÃO

opressões articuladas, que geram dadas experiências e


desigualdades. Preocupações nesse sentido trazem um diagnóstico
qualificado, propiciam o monitoramento das questões, evidenciam o
nível de prioridade de intervenção, definem o perfil das pessoas a
serem assistidas, bem como sinalizam caminhos para a construção
da agenda governamental atentando para a manutenção
politicamente engajada do termo, tal qual enunciado por Sirma
Bilge (2018).
Como dados produzidos de forma sistemática sobre as
pessoas assistidas pela estrutura educacional fornecida pelo Estado
encontramos nos levantamentos do IBGE, como a Pesquisa
Nacional de Saúde do Escolar5 (PeNSE), informações sobre faixa
etária, “cor-raça”, além de dados socioeconômicos de pessoas entre
13 e 17 anos que frequentam as escolas. O Censo Escolar, pesquisa
declaratória coordenada pelo Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), produz dados com
maior periodicidade em uma amostragem dos diversos municípios
brasileiros tanto de escolas públicas e privadas. Seu levantamento
identifica aspectos como a “raça/cor” de pessoas matriculadas nas
distintas etapas do ensino; dados relativos à matrícula, suas etapas e
participação em classes comuns de “pessoas com deficiência,
transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades”; e,
utilizando a nomenclatura adotada, informações de matrículas e
etapas do ensino por “sexo feminino e masculino” incluindo a
distorção idade-série. Anualmente coletadas, as informações
sistematizadas pelo Censo Escolar se alinham às expectativas em
relação aos indicadores sociais, pois possuem uma boa cobertura
territorial, de fácil comunicação e inteligibilidade favorecida pelos
gráficos sistematizados em um amplo caderno sumarizado. Com
marcadores sociais desagregados, esse documento registra as
variações históricas em um material de relevância social e possuem
um padrão de confiabilidade diante da metodologia adotada e da
instituição pública responsável por sua execução.
5
Não me refiro aqui a um dos relatórios específicos da pesquisa, mas nos
indicadores utilizados em 2009, 2012, 2015 e 2019. A pesquisa, realizada de
forma eventual, sem uma periodicidade específica, pode ser acessada no
endereço eletrônico: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/educacao/
9134-pesquisa-nacional-de-saude-do-escolar.html?=&t=microdados.

251
Em síntese, podemos considerar que são produzidos dados
positivamente qualificados para construção de diagnósticos
referentes à educação dentro das especificidades dos indicadores
sociais no que tange à raça, gênero e deficiências, mas não significa
que esse levantamento técnico instrumentaliza a construção de
políticas públicas educacionais alinhadas a essas informações.
Assim, perguntas precisam ser lançadas como, por exemplo, em que
medida aspectos técnicos e números sobre as especificidades
regionais embasam programas e iniciativas estaduais voltadas ao
combate de problemas ligados à educação no que tange o recorte
identitário? Como os dados governamentais produzidos são
avaliados pelo corpo técnico construtor das políticas públicas
educacionais e quais as principais fontes de dados para a construção
dos diagnósticos e delimitações dos problemas a sofrerem
intervenção do Estado? Essas seriam apenas algumas ponderações
diante da breve explanação sobre os números aqui apresentados,
mas que pode ser problematizada sob outra ótica. O exemplo da
pesquisa sobre estudantes negras e negros em diferentes regiões do
Brasil, nos possibilita avaliar que esses dados não dão conta da
complexidade das experiências escolares e das questões que devem
receber atenção e estarem presentes na agenda governamental para
educação. É através de investigações que se debruçam em aspectos
qualitativos, de ordem mais sensível, que podemos ter indicativos
dos formatos mais apropriados de combate às opressões e a
sinalização de metodologias de maior impacto.
Compreender os aspectos históricos dos indicadores no
Brasil, em especial os ligados à população em vulnerabilidade social,
ajudam a entender um campo que é relativamente recente. Embora
a origem da área de indicadores sociais no IBGE seja atribuída ao
ano de 1973, com a criação do Grupo Projeto de Indicadores Sociais
(GPIS) durante a ditadura civil militar, é no final desta década que
novas preocupações alinhadas aos interesses de organismos
internacionais passam a ganhar o empenho institucional. Em
parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF), estabelecida no ano de 1979, pesquisas voltadas ao
mapeamento da situação da infância e da adolescência passaram a
ser desenvolvidas pelo IBGE até 1990. A produção desses dados

252
GÊNERO E SEXUALIDADE NAS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS:
INDICADORES SOCIAIS E MÉTRICAS PARA A AVALIAÇÃO NA PROMOÇÃO DA
INCLUSÃO

expôs uma realidade de altas taxas de mortalidade infantil,


analfabetismo e de evasão escolar em um cenário de poucas
políticas públicas destinadas a esse grupo. A década de 1990
também foi um período de transformação em torno do conceito de
desenvolvimento e documentações como a publicação do Relatório
de Desenvolvimento Humano (RDH) pelo Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) que evidenciou, por
exemplo, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), indicador
composto que versa sobre a educação, a longevidade e a renda.
Nesse sentido, a percepção em relação ao mercado muda, e as ações
passam a ser previstas no sentido de expandir essa área, mas
também de mitigar os danos e desigualdades produzidas pelos
efeitos desse desenvolvimento por ele proposto (SIMÕES, André;
ALKMIM, Antônio Carlos; SANTOS, Caroline, 2017).
Essa mudança de paradigma deve ser somada a outros
fatores que influenciaram na construção dos atuais indicadores
sociais produzidos pelo IBGE. As questões que fizeram parte das
pautas da década de 1990 são um exemplo. As agendas
internacionais com os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio
(ODM), que agrupavam oito proposições, dentre elas a de garantia
da igualdade de gênero e da qualidade da educação, historicamente
foram sucedidas por outro acordo entre países integrantes da
Organização das Nações Unidas (ONU). Como projeto a ser
seguido, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), com
dezessete metas, pensa também na igualdade de gênero e na
qualidade da educação, mas pontua o combate às desigualdades e
preocupações com o meio ambiente que impactam diretamente nas
comunidades tradicionais e ribeirinhas. Nesse formato, que traça
um plano com horizonte até 2030, o comprometimento com metas e
indicadores foram acordados e determinados marcadores sociais
ganharam evidência e passaram a fazer parte do escopo
investigativo do Instituto.
Essa breve trajetória, que não dá conta da complexidade das
relações e elementos presentes, tem a função de pontuar que a
constituição e seleção dos indicadores sociais produzidos por
instituições públicas – e a mesma ponderação cabe às organizações
da sociedade civil e preocupações acadêmicas – está relacionada às

253
conjunturas, aos debates internacionais e, ainda, às pressões
populares para a coleta e sistematização de dados. Portanto, os
movimentos sociais também fazem parte dessa narrativa e estão
presentes nas reivindicações e na conquista de indicadores como
uma das respostas sociais possíveis. Não sem disputas, esse
movimento pode ser observado nos debates em torno da inclusão de
questões referentes à orientação sexual no Censo, produzido pelo
IBGE.
De forma geral, o último Censo (2022) passou por desafios
dos mais diversos. Não é possível ignorar uma resistência social que
foi criada em relação ao fornecimento de respostas e ao recebimento
de pessoas do recenseamento, assim como o noticiado corte de
verbas para sua realização. Isso pode ser observado na apresentação
dos primeiros resultados, transmitido pelo canal do IBGE na
plataforma Youtube, em que o então presidente substituto do
Instituto Cimar Azeredo sinalizou para a falta de pessoas para a
coleta de dados e para o atraso de dez meses (IBGE, 2023). Em
entrevista à Agência Brasil complementou a questão pontuando a
dificuldade de contratação com a limitação de recursos que
resultaram em pagamentos baixos (BRASIL, Cristina Índio do,
2023). É nesse contexto, de um Censo brasileiro que deveria ser
referente ao ano de 2020, adiado em 2021 pela Pandemia de Covid-
19 e com resultados divulgados no ano de 2023, que a inclusão da
orientação sexual como item a ser respondido passa a ser
reivindicada de forma pública com maior visibilidade e noticiada
nos meios de comunicação. Essa pressão foi fruto dos movimentos
sociais em um momento histórico de recrudescimento das pautas
ligadas ao debate de gênero e sexualidades. Em relação ao executivo
federal nesse período, suas manifestações públicas antes e durante
sua gestão foram invariavelmente contrárias às pautas LGBTQIAP+,
declarando um combate ao que intitulava “ideologia de gênero” e
que, por sua vez, encontrou ressonância na sociedade civil e em
grupos que se manifestaram nas redes sociais.
Tratando de alguns eventos relativos a essa disputa, em três
de junho de 2023 a inclusão de questões sobre a orientação sexual e
identidade de gênero no Censo 2022 foi determinada por uma
liminar do juiz Herley da Luz Brasil, da 2ª Vara Federal Civil e

254
GÊNERO E SEXUALIDADE NAS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS:
INDICADORES SOCIAIS E MÉTRICAS PARA A AVALIAÇÃO NA PROMOÇÃO DA
INCLUSÃO

Criminal da Justiça Federal do Acre, a atender uma ação civil


pública do Ministério Público do mesmo estado. A argumentação
da ação divulgada nos meios de comunicação pontuava que a
população LGBTQIAP+ representava parcela não identificada e que
a falta dessas informações dificultava o desenvolvimento de políticas
públicas voltadas a essas pessoas (MINISTÉRIO PÚBLICO
FEDERAL ACRE, 2022). No dia 17 de junho a liminar foi suspensa,
desobrigando a inclusão e no dia 27 de junho do mesmo ano o IBGE
declarou que não iria se pronunciar sobre o caso até que a Advocacia
Geral da União (AGU) fosse intimada e examinasse a decisão
(BRASIL, Cristiane, 2022). O desfecho do evento foi a não inclusão
e realização do Censo, conforme últimas previsões.
Nesse ínterim, várias manifestações por parte do Instituto
versaram sobre a inviabilidade de inclusão considerando aspectos
técnicos. Com o início da coleta em primeiro de agosto e uma
solicitação apresentada em menos de um mês desse início, a fase de
testes e os estudos em torno das questões não seria possível e
atrasaria um processo consideravelmente adiado. A adição,
conforme sinalizado, ainda poderia representar a inclusão de
questões abertas, acarretando um maior tempo de aplicação do
questionário; novas visitas, impactando nos custos de pessoal,
locações e treinamento; e representar uma menor produtividade em
um orçamento já reduzido. Em nenhum momento os
pronunciamentos institucionais questionaram a relevância da
solicitação que foi identificada como inspirada em “legítimas causas
e boas intenções” (G1, 2022). Entretanto, essa pauta antecede o ano
de 2022. A Defensoria Pública da União na ação civil no. 5019543-
02.2018.4.02.5101, em 2018, solicitou a inclusão de dados sobre a
população transexual no Censo 2020 (adiado para 2021 e
posteriormente para 2022). A ação foi considerada improcedente
diante dos argumentos apresentados pelo IBGE que, no item
Comunicados, do site oficial, publica notas em resposta a essas
demandas. Em referência à Ação acima mencionada, no dia 18 de
novembro de 2021, em Comunicado intitulado “Nota sobre o
questionário do Censo 2022”, são apresentados os seguintes
argumentos, além do ligado à complexidade do processo de coleta:

255
Países como Reino Unido, Nova Zelândia e
Estados Unidos vêm realizando testes há anos
e, até o momento, não conseguiram introduzir
o levantamento ora pretendido em seus censos
por motivos técnicos e operacionais.

A investigação de gênero é considerada como


quesito sensível, ou seja, quesito que pode ser
considerado invasivo e pessoal pelo
respondente, podendo impactar na coleta de
todas as demais informações.

Dentro dessa exposição os desafios de ordem técnica são


traçados, como em outras manifestações públicas do Instituto, mas
também podemos identificar que estes são atravessados pela
pessoalidade da pauta. O comprometimento do levantamento,
diante de resistências às questões, é passível de especulação segundo
a exposição do argumento, o que evidencia a identificação de que a
abordagem da pauta não é lida como confortável. Cabe destacar que
em Comunicado de 23 de março de 2022, com o título “IBGE
divulgará em maio PNS com pergunta sobre orientação sexual”, a
dificuldade de cumprimento da Ação civil pública através do Censo
é mencionada, uma vez que a questão deveria ser respondida,
segundo o Instituto, por cada uma das pessoas, diferente da
amostragem que acontece no Censo, em que uma pessoa fornece
informações sobre todas as moradoras da residência. Isso poderia
promover distorções na coleta, mesmo considerando que nessa
última edição meios de preenchimento voluntário, em plataforma
online, estavam disponíveis como instrumento. Assim, o Módulo
Atividade Sexual, inserido na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS),
seria uma instância mais apropriada de coleta dessas informações,
segundo o próprio IBGE.
Em síntese, tomando o exemplo acima como ilustrativo, a
construção de indicadores é um movimento também político e que
é tensionado por demandas sociais. Gênero, raça, deficiência e faixa
etária constam nos números governamentais levantados; a
sexualidade e a expressão de gênero estão em disputa e, ao
pensarmos na construção de dados sobre esses últimos marcadores
no espaço escolar estes são inviáveis, pois envolve a infância e a

256
GÊNERO E SEXUALIDADE NAS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS:
INDICADORES SOCIAIS E MÉTRICAS PARA A AVALIAÇÃO NA PROMOÇÃO DA
INCLUSÃO

adolescência, faixa etária de grande parte das pessoas presentes na


educação básica e que está em desenvolvimento durante a
escolarização. Temos assim um paradoxo, pois a situação de
vulnerabilidade vivenciada pela população LGBTQIAP+ nas
escolas, agravada pelo entrecruzamento de outras opressões, está
presente em uma série de pesquisas.
No artigo “ ‘Mar de bullying’: turbilhão de violências contra
lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais na escola”, de autoria
de Mateus Aparecido de Faria, Maria Carmen Aires Gomes e Celina
Maria Modena, encontramos uma pesquisa amostral com nove
pessoas maiores de idade e suas experiências de violência no espaço
escolar que foram interseccionadas pelo racismo. Através dessa
análise é possível identificar que o não enquadramento na cis-
heteronorma e até mesmo os estereótipos atribuídos às sexualidades
são utilizados como instrumento de desqualificação e ganham um
caráter ofensivo promovendo sofrimento no ambiente escolar,
espaço em que essas pessoas não existem como indicador social
oficial dos governos. Não que o texto tenha se debruçado sobre a
questão, mas o mesmo abre margem para refletir sobre a utilização
da palavra estrangeira bullying para caracterizar agressões verbais,
físicas e tratamentos diferenciados. Este termo acabou por
popularizar a identificação das formas de violência, embora não
possamos deixar de considerar que dadas opressões possuem suas
particularidades e são criminalizadas nacionalmente de acordo com
elas (FARIA, Mateus Aparecido de; GOMES, Maria Carmen Aires;
MODENA, Celina Maria, 2022). Portanto neste texto, me atenho a
utilizar as nomenclaturas e terminologias próprias dos materiais e
bibliografias utilizados, o que não impede o estabelecimento de
críticas decorrentes dos aspectos políticos e sociais de seus usos6.

6
A utilização da primeira pessoa é intencional e embasada nos debates
feministas sobre a produção do conhecimento científico. Como instiga
Donna Haraway, no texto Saberes Localizados, a produção do saber é
atravessada pelo sujeito da investigação e o reconhecimento dessa
parcialidade expõe uma honestidade analítica possibilitando reconhecer
das escolhas que levam a determinados resultados de pesquisa. Nesse
sentido, o apagamento da pessoa autora na escrita, corrobora com
afirmações universalizantes que historicamente favoreceram a exclusão das
mulheres, da população negra e das sexualidades dissidentes, por exemplo.

257
Embora a pesquisa anterior tenha um universo
investigativo limitado, podemos identificar o crescimento
progressivo de estudos que enfocam a experiência de pessoas
LGBTQIAP+ durante o processo educacional e dos desafios
recorrentes dessa experiência. Em publicação sobre violência nas
escolas realizada para UNESCO, publicizada no ano de 2002, o
abuso sexual e o racismo são identificados como violências
praticadas tanto por estudantes como por docentes. A sexualidade
não aparece na pesquisa e não há menção a palavras como
homossexualidade, lésbicas, gays ou termos correlatos
(ABRAMOVAY, Miriam; RUA, Maria das Graças, 2002). Em
pesquisa mais recente ligada ao Ministério da Educação (2015),
coordenada também pela professora Miriam Abramovay com o foco
nos motivos que levam jovens a frequentarem as escolas, a
sexualidade e as identidades de gênero aparecem. A referida
pesquisa explorou aspectos da sociabilidade sobre os interesses
estudantis em um campo investigativo constituído de todas as
regiões do Brasil, capitais e uma cidade do interior definida
aleatoriamente e neste levantamento temos uma dimensão de como
os marcadores sociais operam. Para os rapazes, 31,3% manifestaram
não querer ter colegas de turma homossexuais, transgênero,
transexuais e travestis, enquanto para as meninas essa proporção é
de 8% (ABRAMOVAY, Miriam; CASTRO, Mary Garcia;
WAISELFISZ, Júlio Jacobo, 2015, p. 94). Segundo a publicação, após
o debate de cotas, que nega a existência do racismo e atribui a
prática a outras pessoas, retirando a autorresponsabilidade diante da
pauta, a homossexualidade foi o tema que mais mobilizou os grupos
focais realizados pela pesquisa. Entre estudantes que se
autodeclararam homossexuais o medo era da violência e a oposição
à manifestação afetiva desse grupo por estudantes em geral foi
justificada por premissas religiosas e morais (ABRAMOVAY,
Miriam; CASTRO, Mary Garcia; WAISELFISZ, Júlio Jacobo, 2015,
p. 174-177). Dos grupos investigados, foi pequeno o número de
pessoas que acreditavam que esses temas não deveriam ser
debatidos no ambiente escolar e cerca de 80% identificaram que a
instituição de ensino deveria se engajar nas questões relativas aos
preconceitos.

258
GÊNERO E SEXUALIDADE NAS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS:
INDICADORES SOCIAIS E MÉTRICAS PARA A AVALIAÇÃO NA PROMOÇÃO DA
INCLUSÃO

Cabe a ponderação que a escola é uma instância da


sociedade e não está isolada dos conflitos e questões da conjuntura
histórica e territorial que reside. Ao mesmo tempo, em dadas
organizações familiares, é o primeiro contato com as diferenças,
sejam elas raciais, de valores diversos, crenças e possibilidades
outras de existência até então não identificadas em suas
sociabilidades. Em dados momentos, família e escola representam a
estrutura de formação na infância e juventude, mas, esses mesmos
espaços que podem trazer consigo a premissa do cuidado e do
acolhimento, podem produzir a violência em suas distintas
modalidades. Em pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo
essas duas instâncias são identificadas como os locais de piores
discriminações homofóbicas (VENTURI, Gustavo; BOKANY,
Vilma, 2011). Entre as pessoas lésbicas e gays 59% reconhecem que
já sofreram alguma forma de discriminação e é com esse grupo que
uma série de outras perguntas são realizadas. Ao questionarem essas
pessoas quando sofreram a primeira violência homofóbica, 13%
indicam que foi das/dos colegas da escola, 11% da família e 10% dos
pais. Esses três grupos também estão no topo das discriminações
que avaliam como piores entre as que já sofreram. Para a população
em geral, o que representam 70% das pessoas não LGBT –
utilizando a sigla designada pela pesquisa – os governos não teriam
obrigação de combater a discriminação contra homossexuais,
bissexuais, travestis e transexuais e esse seria um problema da
própria pessoa. Ao mesmo tempo, tanto a população em geral
quanto pessoas gays e lésbicas que fizeram parte da amostragem em
todas as regiões do Brasil identificam, em sua maioria, que a
educação deveria ser a área de intervenção governamental para o
combate da discriminação.
Em relatório sobre a situação mundial da violência e do
bullying, a UNESCO identifica que essas experiências ocasionam as
ausências, as baixas notas e as desistências. Nesse cenário, as
violências homofóbicas são sofridas tanto por pessoas LGBT7
quando não identificadas pela sigla, mas que performam e se
expressam socialmente fora de padrões de feminilidade e
7
Conforme informado anteriormente, os termos utilizados reproduzem as
nomenclaturas das bibliografias discutidas.

259
masculinidade normativos, por exemplo. Estabelecendo um avanço
nesse diagnóstico frente às preocupações do início dos anos 2000
em torno da violência escolar, o documento identifica que esse perfil
identitário possui três vezes mais chance de sofrer violência no
espaço escolar, onde 85% das pessoas LGBT nos Estados Unidos
sofreram bullying. Na Tailândia, 31% dos estudantes que sofreram
violências de natureza homofóbica narraram, durante o período
investigado, terem se ausentado na escola no último mês. Austrália,
Chile, Dinamarca, El Salvador, Itália e Polônia avaliaram que o
desempenho em relação às pessoas heterossexuais foi pior e, na
Argentina, 45% das pessoas transgêneros abandonaram a escola
(UNESCO, 2019, p. 28-29). No Brasil, essa situação, no ano de 2016,
era de 82% de evasão escolar de pessoas travestis e transgêneros
segundo dados divulgados na mídia pelo então defensor público
João Paulo Carvalho Dias que ocupava a presidência da Comissão
de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil. Nesse
ano a média de permanência escolar era de quatro anos e a evasão e
desistência era sucedida de desemprego, a realização de trabalhos
clandestinos e a prostituição (ALMEIDA, Aline, 2016).
Em suma, indicadores sociais e dados quantificáveis das
experiências vivenciadas pela população a partir de seus marcadores
identitários estabelecem padrões e a possibilidade de replicarmos
essas pesquisas, seguindo os mesmos moldes, favorece a construção
e a identificação das variações históricas, podendo sinalizar as
mudanças sociais promovidas. Como observado no movimento
estabelecido por este ensaio, o levantamento dessas informações
possui relação direta com as demandas sociais e são produzidos
nesses entrecruzamentos com os limites técnicos de coleta e
confiabilidade para garantia de informações que sejam
representativas e possivelmente fidedignas de uma dada realidade. A
sua construção por instâncias do Estado que não oscilem a partir
das transições governamentais faz parte de um dos caminhos
possíveis para a construção de diagnósticos qualificados que
orientem as políticas públicas educacionais no combate às opressões
identitárias. Ainda assim, dentro desse recorte, o universo de
construção é consideravelmente complexo, conforme os fragmentos
aqui apresentados.

260
GÊNERO E SEXUALIDADE NAS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS:
INDICADORES SOCIAIS E MÉTRICAS PARA A AVALIAÇÃO NA PROMOÇÃO DA
INCLUSÃO

A partir dessa perspectiva, os indicadores sociais seriam


instrumentos técnicos, entretanto a construção das agendas
governamentais e implementação de ações e programas segundo
debates do campo das políticas públicas possuem outros fluxos.
Dentro do ciclo das políticas públicas estamos tratando da fase
inicial, em que há um grupo de questões sociais, mas que nem
sempre entram na agenda para que alternativas interventivas
passem a ser pensadas. Nesse contexto de etapas, os indicadores
subsidiam a identificação do problema, mas fazem também parte do
monitoramento e avaliação, fase intermediária e final do ciclo, uma
vez que esses dados deveriam ser periodicamente coletados para
acompanhamento e ajuste garantindo a transformação social
pretendida (SECCHI, Leonardo, 2020). Refletir sobre outros fluxos
que compõem a transição de uma questão para o reconhecimento
como problema social, mais do que marcar um possível
alinhamento pessoal com os modelos teóricos e explicativos da
construção da agenda, busca analisar os movimentos políticos.
Ao estabelecer uma investigação em torno das políticas
públicas educacionais tomando como base os programas, reconheço
que essas são iniciativas que entraram nas agendas e foram
escolhidas para serem implementadas, enquanto outras não. Temos
mais questões e opressões do que as ações financiadas e executadas
pelo Estado, e, como o debate do próprio campo pontua, a não
intervenção em dadas realidades também pode ser lido como uma
política pública, pois é uma escolha da gestão (HAM, Cristopher;
HILL, Michael, 1993, p. 92-110). Assim, atrizes e atores
governamentais e não governamentais compõem esse cenário de
relações de poder e de disputa de pautas a partir de seus interesses e
de interesses de grupos na constituição da agenda. Dentro da
estrutura do governo, o executivo e o legislativo fazem parte desses
sujeitos, mas também os cargos de gestão, as equipes técnicas sendo
pessoas as quais conseguimos ou não identificar, muitas vezes pela
sua atuação nos bastidores do processo. Entre as figuras não
governamentais podemos enunciar os partidos políticos, os grupos
de pressão e interesse constituídos pela sociedade civil, a opinião
pública, a mídia bem como pessoas ligadas ao universo acadêmico,
de pesquisas e que prestam consultoria na construção desses

261
programas (VIANA; Ana Luiza, 1996, p.6-43). Em acréscimo, ainda
poderíamos pontuar alguns fluxos como o político, impactado pelo
humor nacional, as forças políticas estabelecidas em uma dada
conjuntura e as mudanças governamentais como pontos a serem
considerados na definição da agenda. Esses se articulariam com os
fluxos de problemas, que é visibilizado pelos indicadores que
constroem o diagnóstico de uma realidade; pelas devolutivas
recebidas diante de ações anteriormente empreendidas; assim como
acontecimentos e crises pontuais que poderiam evidenciam uma
questão. As decisões governamentais ainda seriam pautadas pelos
fluxos de soluções, mobilizado pela aceitação social da ação e da
forma como a questão poderá ser encaminhada, a anuência da
sociedade em relação aos gastos, bem como a viabilidade técnica. É
nesse grupo extenso de fatores em convergência que as janelas de
oportunidades estariam constituídas e uma determinada iniciativa
passaria a integrar a agenda (CAPELLA, Ana Cláudia N., 2006,
p.25-52). Portanto, refletir sobre os indicadores sociais na
construção das políticas públicas não pode ocorrer de forma
ingênua, apenas na crença de que a instrumentalização técnica
possa assegurar escolhas governamentais de maior impacto, até
mesmo pela pluralidade de grupos envolvidos e de instâncias a
qualificarem o que seria a ação mais pertinente.
Em suma, quando tratamos das pautas educacionais
historicamente nomeadas como da “diversidade”, atravessadas por
marcadores identitários múltiplos em suas experiências de opressão,
temos cenários diferenciados de produção e coleta de dados. Uma
solução investigativa seria a escolha de um marcador específico, mas
a necessidade de uma leitura interseccional que produza dados
desagregados sobre cada um desses marcadores é politicamente
importante e o presente exercício não busca dar conta dessa
demanda em sua totalidade, mas promover problematizações. Ao
longo deste ensaio, conseguimos identificar que nem todos os
marcadores identitários estão entre os indicadores produzidos pelo
Estado e os enfrentamentos em torno das inclusões fazem parte da
trajetória desses números. Em complementaridade, organismos
internacionais, pesquisas pontualmente financiadas e as
investigações acadêmicas complementam um diagnóstico social

262
GÊNERO E SEXUALIDADE NAS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS:
INDICADORES SOCIAIS E MÉTRICAS PARA A AVALIAÇÃO NA PROMOÇÃO DA
INCLUSÃO

indicando espaços interventivos necessários. Entretanto, os dados


podem ser insuficientes para escolhas qualificadas da agenda
necessitando de avanços.
Mesmo diante de um cenário ideal, em que o Estado
produzisse indicadores dos distintos marcadores identitários, em
dados desagregados, mostrando padrões e alterações históricas, as
relações de poder entre as figuras envolvidas nesse processo
decisório ainda estariam presentes como elemento na construção da
agenda. Isso, associado à perspectiva das pessoas governantes, aos
eventos que promovem a comoção popular e à forma como dadas
pautas são noticiadas pelos meios de comunicação, em acréscimo a
outros elementos.
De forma muito pontual, esse material identifica os desafios
bibliograficamente disponíveis frente ao recorte da pesquisa. Diante
da explanação promovida por esse texto poderia não fazer sentido o
estudo dos dados que instrumentalizam as políticas públicas
educacionais voltadas às identidades, pensando na relevância dos
indicadores para sua construção. Contudo, a problematização é
necessária para que não se estabeleçam análises inocentes e
produtos reflexivos que ignorem as possíveis parcialidade para que
possamos pensar em ações que instrumentalizem transformações
sociais.

Referências

ABRAMOVAY, Miriam; CASTRO, Mary Garcia; WAISELFISZ,


Júlio Jacobo. Juventudes na escola, sentidos e buscas: Por que
frequentam? Brasília-DF: Flacso - Brasil, OEI, MEC, 2015

ABRAMOVAY, Miriam; RUA, Maria das Graças. Violências nas


escolas: versão resumida. Brasília, DF:UNESCO Brasil, 2002.

ALMEIDA, Aline. Evasão escolar entre travestis é bem maior.


Diário de Cuiabá. Cuiabá, 23 de maio de 2016 APUD: FLACSO.
Flacso na Mídia. Disponível em: <https://flacso.org.br/2016/05/23/
evasao-entre-travestis-e-bem-maior/>. Acesso em: 23 de outubro
de 2023.

263
BILGE, Sirma. Interseccionalidade desfeita: Salvando a
interseccionalidade dos estudos feministas sobre
interseccionalidade. Revista Feminismos. v. 6 n. 3, 2018.
Disponível em: <https://periodicos.ufba.br/index.php/feminismos/
article/view/33680>. Acesso em: 30 out. 2023. Acesso em: 25 de
outubro de 2023.

BRASIL, Cristina Índio do. Censo: cai liminar que mandava incluir
perguntas de orientação sexual. Agência Brasil. Economia. 27 de
junho de 2022. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/
justica/noticia/2022-06/censo-cai-liminar-que-mandava-incluir-
perguntas-de-orientacao-sexual>. Acesso em 21 de outubro de
2023.

BRASIL, Cristina Índio do. IBGE aponta dificuldades para a


realização do Censo 2022. Agência Brasil. Economia. 28 de junho
de 2023. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/
economia/noticia/2023-06/ibge-aponta-dificuldades-para-
realizacao-do-censo-2022>. Acesso em 21 de outubro de 2023.

BRASIL. Lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003. Inclusão no currículo


oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e
Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Brasília, DF: Diário Oficial da
União, 11 de março de 2008.

BRASIL. Lei nº 9394 de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes


e Bases da Educação Nacional. Brasília, DF: Diário Oficial da
União, 23 de dezembro de 1996.

BRASIL. Lei no. 10.639 de 9 de janeiro de 2003. Diretrizes


Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana. MEC. Brasília, DF: Diário Oficial da União,10 de janeiro
de 2003.

BRASIL. Lei no. 14.532, de 11 de janeiro de 2023. Altera a Lei de


Crime Racial. Brasília, DF: Diário Oficial da União Edição extra,
Brasília, DF, 11 de janeiro de 2023.

264
GÊNERO E SEXUALIDADE NAS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS:
INDICADORES SOCIAIS E MÉTRICAS PARA A AVALIAÇÃO NA PROMOÇÃO DA
INCLUSÃO

BRASIL. Lei no. 7.716, de 05 de janeiro de 1989. Define os crimes


e preconceitos de raça e de cor. Brasília, DF: Diário Oficial da
União, 06 de janeiro de 1989.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros


curriculares nacionais: apresentação dos temas transversais, ética /
Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1997a.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros


curriculares nacionais: apresentação dos temas transversais, Meio
Ambiente / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/
SEF, 1997b.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros


curriculares nacionais: apresentação dos temas transversais,
Pluralidade Cultural / Secretaria de Educação Fundamental. –
Brasília: MEC/SEF, 1997c.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros


curriculares nacionais: apresentação dos temas transversais, Saúde
/ Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1997d.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros


curriculares nacionais: apresentação dos temas transversais,
Orientação Sexual / Secretaria de Educação Fundamental. –
Brasília: MEC/SEF, 1997e.

CAPELLA, Ana Claudia N. Perspectivas teóricas sobre o processo


de formulação de políticas públicas. IBI – Revista Brasileira de
Informação Bibliográfica em Ciências Sociais. v.61, p. 25-52,
2006. Disponível em: <https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revista/
article/view/291>. Acesso em 30 de outubro de 2023.

CARREIRA, Denise; HERINGER, Rosana. 10 anos das Lei de


Cotas: Conquistas e perspectivas. Rio de Janeiro: Faculdade de
Educação -UFRJ, Ação Educativa, 2022.

CAVENAGHI. Suzana. Indicadores de Gênero e Cor/Raça no


Programa de Transferência de Renda com condicionalidade no
PPA. In: Gênero e Raça no Ciclo Orçamentário e controle Social

265
das Políticas Públicas. Indicadores de Gênero e Raça no PPA
2008-2011. Brasília: CFEMEA. 2012. p. 37-60.

FARIA, Mateus Aparecido de; GOMES, Maria Carmen Aires;


MODENA, Celina Maria. “Mar de bullying”: turbilhão de
violências contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais na
escola. Educação e Pesquisa. v. 48, p. 1-16, 2022.

G1. IBGE Diz que não é possível incluir questões sobre orientação
sexual no Censo 2022. Economia. G1: Portal de notícias da Globo.
09 de junho de 2022. Disponível em: <https://g1.globo.com/google/
amp/economia/noticia/2022/06/09/ibge-vai-recorrer-de-decisao-
da-justica-de-incluir-questoes-sobre-orientacao-sexual-no-censo-
2022.ghtml>. Acesso em: 18 de outubro de 2022.

HAM, Cristopher; HILL, Michael. O processo de elaboração de


políticas no Estado capitalista moderno. Campinas-SP: Editora da
Unicamp, 1993. p.92-110. Disponível em: <https://ainterpol.files.
wordpress.com/2014/05/texto-iepp-processo-de-elaboracao-de-
politicas-no-estado-capitalista-moderno-hill.pdf>. Acesso em 04 de
agosto de 2021.

HARAWAY, Donna. SABERES LOCALIZADOS: a questão da


ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial.
Cadernos Pagu. n. 5, 1995. p. 07-41.

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatísticas de


Gênero: Indicadores sociais das mulheres no Brasil. 2ª. Edição.
Estudos e Pesquisas. Informação Demográfica e Socioeconômica,
n. 38, 2021.

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. IBGE Divulga


os primeiros resultados do Censo Demográfico 2022. IBGE.
Transmissão realizada em 28 de junho de 2023. Disponível em:
<https://www.youtube.com/live/7ij6MwAqsl0?feature=shared>.
Acesso em 21 de outubro de 2023.

INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas


Educacionais. Censo Escolar 2022. Resumo Técnico. Brasília:
MEC, 2023.

266
GÊNERO E SEXUALIDADE NAS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS:
INDICADORES SOCIAIS E MÉTRICAS PARA A AVALIAÇÃO NA PROMOÇÃO DA
INCLUSÃO

JAKIMIL, Vanessa Campos de Lara. Jakimiu. Extinção da SECADI:


A negação do direito à educação (para e com a diversidade).
Revista de Estudos em Educação e Diversidade. v.2. n.3, p. 115-
137. Disponível em: <https://doi.org/10.22481/reed.v2i3.8149>.
Acesso em: 15 de outubro de 2023.

JANNUZZI, Paulo de Martino. Indicadores Sociais no Brasil:


conceitos, fontes de dados e aplicações. 3. ed. Campinas: Alínea,
2004.

JESUS, Rodrigo Ednilson de. Mecanismos eficientes na produção


do fracasso escolar de jovens negros: Estereótipo, silenciamento e
invisibilização. EDUR – Educação em Revista. v.34, p. 1-18, 2018.

MARTINS, Paulo de Sena. Possíveis causas da evasão escolar e o


arcabouço legal para combatê-la. Consultoria Legislativa: Estudo
Técnico. Câmara dos Deputados. 2018. Disponível em: <https://
bd.camara.leg.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/36259/possiveis_
causas_martins.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 18 de
outubro de 2023.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL ACRE. Justiça Federal


ordena que IBGE inclua campos sobre “orientação sexual” e
"identidade de gênero” no Censo 2022. Sala de Imprensa: Notícias.
30 de junho de 2022. Disponível em: <https://www.mpf.mp.br/ac/
sala-de-imprensa/noticias-ac/justica-federal-ordena-que-ibge-
inclua-campos-sobre-201corientacao-sexual201d-e-identidade-de-
genero201d-no-censo-2022>. Acesso em: 18 de outubro de 2022.

SECCHI, Leonardo. Análise de políticas públicas: Diagnóstico de


problemas, recomendação de soluções. São Paulo: Cengage
Learning, 2020.

SIMÕES, André; ALKMIM, Antônio Carlos; SANTOS, Caroline.


Passado, presente e futuro da produção e análise dos Indicadores
Sociais no IBGE. In: SIMÕES, André; ALKMIM, Antônio Carlos.
Indicadores sociais: passado, presente e futuro. Gerência de
Biblioteca e Acervos Especiais. Rio de Janeiro: IBGE, 2017. p. 17-27.

267
UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura. Violência escolar e bullying: relatório sobre a
situação mundial. Brasília: UNESCO, 2019.

VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma. Diversidade sexual e


homofobia no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo,
2011.

VIANA; Ana Luiza. Abordagens metodológicas em políticas


públicas. Revista de Administração Pública. v. 30. n. 2, p. 6-43,
1996.

Mini currículo

Maise Caroline Zucco


Possui graduação, mestrado, doutorado em História e pós-
doutorado em Antropologia Social pela UFSC. Atualmente é
professora do Bacharelado em Gênero e Diversidade e do Programa
de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres,
Gênero e Feminismo (PPGNEIM) da UFBA. Atua principalmente
no campo dos estudos de gênero, história das mulheres e dos
movimentos feministas e políticas públicas educacionais. E-mail:
[email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/
7069192545517678

268
SENTIDOS E TRAJETÓRIAS DE MULHERES CAMPONESAS NA AMAZÔNIA:
RELATOS DA LUTA PELA PERMANÊNCIA NA TERRA E NA UNIVERSIDADE

SENTIDOS E TRAJETÓRIAS DE
MULHERES CAMPONESAS NA
AMAZÔNIA: RELATOS DA LUTA
PELA PERMANÊNCIA NA
TERRA E NA UNIVERSIDADE
Angélica de Souza Lima
Juliana da Silva Nóbrega

Introdução

A história do campo está diretamente vinculada às


desigualdades sociais e pobreza no espaço rural. Configurada
política e historicamente no país desde a colonização portuguesa, a
concentração fundiária que se estabeleceu por meio da falsificação
de documentos, permeia um processo marcado por violências,
genocídios e expropriações de famílias camponesas de seus
territórios (Lima, 2022).
A partir disso, a formação de ligas camponesas e
movimentos sociais do campo são marcos identitários essenciais no
enfrentamento e resistência na luta pela permanência na terra.
Desse modo, pensar as questões de gênero que atravessam essas
lutas são pontos importantes para o entendimento de como os
movimentos sociais do campo ganham fortalecimento e
protagonismo ao longo da história (Silva, 2019).
Nesse sentido, quando olhamos para as lutas das mulheres
por reivindicação de direitos dentro dos movimentos feministas não
podemos segmentar o olhar para uma organização apenas urbano
centrada. No campo, a figura da mulher como agente de cuidado
também é um aspecto que perpassa alguns territórios, e é a partir
dos coletivos e na luta pela permanência na terra que o
protagonismo feminino bem como políticas de direito e espaços de
pertencimento são possíveis (Silva, 2019).

269
Dentre as reivindicações que surgem nesses movimentos, a
educação do campo torna-se uma das principais pautas, pensando
não somente na viabilização do acesso ao ensino para a população
camponesa, como também em processos de escolarização e
formação que fossem voltadas para a realidade dos povos do campo
(Munarim, 2006).
Assim, o curso em nível superior de Licenciatura em
Educação do Campo (LEDOC) de modo geral surge como uma
estratégia oriunda das lutas em torno de uma educação que tem
como objetivo considerar na formação de educadores e educadoras
para a educação básica, os interesses e necessidades do campo,
utilizando-se da pedagogia da alternância como metodologia para o
desenvolvimento das práticas e da pesquisa na graduação, bem
como possibilita a entrada na universidade de pessoas que antes
fossem excluídas desses espaços, tais como as mulheres
trabalhadoras camponesas (Brasil, 2003).
Diante disso, é necessário pensar produções em psicologia
voltada às questões relativas à terra, é visto que cada vez mais,
profissionais e pesquisadoras da psicologia se voltam para práticas
em comunidades rurais e os desafios que se constituem nesta
relação. Na polêmica sobre ser ou não ser um campo de
conhecimento/atuação específico ou geral, tecer, construir a relação
entre Psicologia e as ruralidades consiste na direção de uma práxis
descolonizadora (Hur; Calegare, 2022).
A partir disso, o estudo originou-se da pesquisa “Os
significados das trajetórias de escolarização de jovens estudantes
Amazônidas”1, tendo como objetivo conhecer o cotidiano e os
sentidos das trajetórias de estudantes do curso de LEDOC da
Universidade Federal de Rondônia- UNIR. Pautado na pesquisa do
cotidiano do construcionismo social, realizou-se um grupo focal,
observação participante e duas entrevistas narrativas com
estudantes da LEDOC em Rondônia.
A fim de apresentar as narrativas de mulheres camponesas
no acesso ao ensino superior por meio da LEDOC, o presente texto
1
Programa de Cooperação Acadêmica (PROCAD/CAPES-Amazônia -
Edital 21/2018). Projeto, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas da
UFAM, em 2019, sob o número CAAE 15366619.1.1001.5020 (CEP/
UFAM).

270
SENTIDOS E TRAJETÓRIAS DE MULHERES CAMPONESAS NA AMAZÔNIA:
RELATOS DA LUTA PELA PERMANÊNCIA NA TERRA E NA UNIVERSIDADE

está estruturado a partir dos seguintes tópicos: a história e o


reconhecimento da mulher camponesa na luta pela terra, percurso
metodológico, A LEDOC como posicionamento identitário e lugar
de pertencimento, e considerações finais.

A história e o reconhecimento da mulher camponesa na


luta pela terra

As relações de gênero no processo histórico se estruturam a


partir da concepção colonial e capitalista, operando a partir da
lógica do patriarcado, em que as relações de poder se configuram na
ideia de que as mulheres são subordinadas aos homens. A partir
dessa estrutura, se estabelece um conjunto de relações desiguais
associadas a colonialidade do poder e acumulação primitiva de
capital. Dessa forma, assim como no caso do racismo, as opressões
de gênero se fundamentam como uma organização de classificação
hierárquica que determina as relações de gênero na sociedade
(Gonçalves, 2022).
Nesse contexto, as histórias de luta, organização e
resistência de mulheres a partir do movimento feminista surge no
intuito de romper com os paradigmas estruturais nessas relações de
poder. No Brasil a primeira onda do feminismo, em meados do
século XIX, esteve associada ao movimento de mulheres operárias
na reivindicação do direito ao voto, mas foi no decorrer da história e
de forma compassada que outros movimentos passaram a integrar
essa luta, dentre elas o movimento das mulheres camponesas
(Caetano, 2017).
Assim, “durante séculos senão milênios, as mulheres
camponesas permaneceram em grande invisibilidade, inclusive, não
sendo consideradas sujeitos políticos”. Apenas a partir de 1970
houve certa evidência motivada pela força organizativa dos
movimentos populares (Conte; Weschenfelder, 2012, p. 11).
Dentre as organizações que sucedem, em 2004 surge o
Movimento das Mulheres Camponesas (MMC), que contempla
agricultoras, arrendatárias, meeiras, ribeirinhas, posseiras, boias-
frias, diaristas, parceiras, extrativistas, quebradeiras de coco,
pescadoras artesanais, sem-terra, assentadas, mulheres indígenas e

271
negras, o que não somente contribui o fortalecimento da luta para
implementação da política de reforma agrária, como faz
representação das mulheres trabalhadoras rurais em todo o país que
tinham o seu trabalho invisibilizado e não recebiam direitos
(Mesquita; Silva, 2019).
Ressalta-se que os conflitos por terras afetavam diversas
populações, em contexto amazônico, os conflitos agrários e a luta
por territórios aumentavam progressivamente devido ao
crescimento do latifundiário e do agronegócio, especialmente no
período da ditadura militar em que as terras eram vendidas por
preços irrisórios, o que acarretava na expropriação de diversas
famílias camponesas (Lima, 2022).
Com isso, na luta pela defesa dos territórios, o direito de
permanência e dos modos de vidas tradicionais, “mulheres e
crianças tiveram um papel fundamental, pois, elas é que tomavam à
linha de frente para ‘empatar’ os peões dos fazendeiros de destruir a
floresta, arriscando as próprias vidas” (Silva, 2019, p. 04).
A partir de 1988, como um fruto da resistência histórica e
cotidiana das mulheres que, integradas ao Movimento Leigo para a
América Latina (MLAL) e do Setor Mulher da Comissão Pastoral da
Terra (CPT), começaram a surgir organizações específicas. O
movimento que já se expandia em todo o país, especialmente em
Santa Catarina, firmou-se em território amazônico acreano a partir
de organizações que tinham como intuito promover a
conscientização e valorização das mulheres camponesas a partir do
desenvolvimento de: “atividades produtivas (corte e costura,
artesanato, pintura em guardanapos, plantios comunitários, criação
comercial de galinha caipira)” o que possibilitaria o aumento da
renda familiar, bem como incentivar a participação das mulheres
nas lutas reivindicatórias (Cruz, 2012, p. 01).
Destaca-se que a invisibilidade feminina é histórica,
inclusive no trabalho do campo e na luta por território. De tal modo,
em território amazônico estudos apontam que, no processo de
ocupação dos seringais até o estabelecimento das colônias agrícolas,
a figura feminina sempre esteve atrelada à “rainha do lar”. Com isso
buscou-se através do MMC romper com essa designação nas
trajetórias históricas dessas mulheres e traçar caminhos para o

272
SENTIDOS E TRAJETÓRIAS DE MULHERES CAMPONESAS NA AMAZÔNIA:
RELATOS DA LUTA PELA PERMANÊNCIA NA TERRA E NA UNIVERSIDADE

enfrentamento das discriminações, especialmente no âmbito de


trabalho, com a luta por salários dignos, reconhecimento
profissional e previdenciário, direitos sociais básicos e proteção as
diversas formas de violência e opressão, fortalecendo e ganhando
espaços na luta por liberdade e autonomia e no resgate de saberes
tradicionais esquecidos no tempo e no espaço pelos homens
(Mesquita; Silva, 2019, p. 04).
Ressalta-se que a luta por reconhecimento e garantia de
direitos da mulher e trabalhadora camponesa ainda é um desafio.
Embora tenham-se conquistados espaços de pertencimento ao
longo da história, sejam, “nos embates no âmbito privado das
relações, assim como, nas lutas massivas e publicizadas”, a
construção de um feminismo desde o campo é um grande desafio
tanto para o MMC como para o conjunto da Via Campesina/Brasil
(Conte; Weschenfelder, 2012).
Desse modo, a abordagem sobre a luta das mulheres
camponesas é uma forma de colocá-las em evidência e discuti-las,
inclusive promovendo reflexões sobre os atravessamentos que
perpassam o cotidiano na luta por pertencimento e posicionamento
identitário em diversos espaços.

Percurso metodológico

A luz da perspectiva teórica do construcionismo social, que


reconhece as produções de sentido como construções que se
estabelecem nas relações cotidianas (Spink, 2010), a pesquisa foi
realizada por meio de observação participante, grupo focal e
entrevistas narrativas abertas com estudantes do curso de LEDOC
da Universidade Federal de Rondônia, campus de Rolim de Moura,
buscou-se na proposta de análise compreender os sentidos
apresentados acerca do processo de formação.
A LEDOC em Rondônia teve início no segundo semestre de
2015 e é destinado ao público composto por assentados e
acampados da reforma agrária, ribeirinhos, pequenos agricultores,
remanescentes de quilombolas, indígenas, seringueiros, pescadores,
‘pequenos produtores’, assalariados rurais, dentre tantos outros
camponeses. O curso tem como principal objetivo formar

273
professores para atuarem na educação básica em escolas voltadas
para o campo tendo como a existência de uma “consonância do
processo de educação e escolarização com a realidade
socioeconômica e cultural” específica das populações do campo
(UNIR, 2016, p. 01).
Ao todo, participaram desse estudo, 15 estudantes
matriculadas(os) no 4º período da LEDOC/UNIR, mas para fins de
análise e discussão neste capítulo nos ateremos ao recorte das
narrativas apresentadas no grupo focal, que foram guiadas pela
seguinte pergunta disparadora: o que é cursar Licenciatura em
Educação do Campo? Sendo aqui explanados e analisados os relatos
das narrativas gravadas e transcritas de sete mulheres camponesas
do estado de Rondônia, aqui apresentadas com nomes fictícios,
sendo elas: Ana 34 anos, Patrícia 41 anos, Dandara 28 anos, Helena
42 anos, Amanda 19 anos, Larissa 18 anos e Daniela 18 anos.

A LEDOC como posicionamento identitário e lugar de


pertencimento

Reconhecer as experiências anteriores de escolarização,


bem como a própria vida dentro dos movimentos, são importantes
propulsores para o entendimento sobre a produção de sentidos no
curso de LEDOC, como: quais as motivações para entrar na
universidade permanecer no curso e retornar como profissionais
para as suas comunidades?
Denota-se que se trata de um curso oriundo de uma luta
política dos movimentos do campo e que, portanto, os sentidos
construídos dialogam com as trajetórias a partir da relação com a
terra. Nesse sentido, a percepção de si e do coletivo sobre ser
camponesa posiciona uma localização identitária que é possível
justamente devido ao processo de formação:

Pelo menos a gente está reconhecendo que a


gente é camponês né?... que a partir de quando
nós chegamos aqui as pessoas tinham até
vergonha de dizer. Os professores até
perguntavam: “porque você tem vergonha de
falar que você mora na roça, de falar que você

274
SENTIDOS E TRAJETÓRIAS DE MULHERES CAMPONESAS NA AMAZÔNIA:
RELATOS DA LUTA PELA PERMANÊNCIA NA TERRA E NA UNIVERSIDADE

é camponesa?” Então, muita das vezes, as


pessoas escondem sua própria identidade, e
nós chegamos aqui e nós abrimos o horizonte,
né, de conhecimento. Que você não deve se
esconder a sua origem, da onde você veio.
Então, esse curso dá assim bem aprofundado.
A gente está vendo bastante conhecimento. A
gente tem que dar valor, né? Aquilo que a
gente aprendeu com os pais, com os avós estão
se perdendo e nesse curso a gente tá
resgatando essas origens da família dos
camponeses. Então, assim, está sendo muito
maravilhoso (Helena, 42 anos).

Essa especificidade do curso né, ele, como


dizer, ele traz o conhecimento do povo do
campo, ele dá essa oportunidade para as
pessoas que vivem no campo (Larissa, 18
anos).

As falas acima carregam um dos sentidos mais importantes


do curso para essas estudantes: a questão da produção de si e os
posicionamentos identitários possíveis, o que possibilita a
experiência de si e dos modos como nos identificamos uns com os
outros. Tal fator compartilha da proposta de Spink (2011, p. 20) para
quem “a noção de pessoa era intrinsecamente relacional” e de que é
produzida no intenso processo de negociação: trocas simbólicas que
se dão, sempre ou quase sempre, na intersubjetividade, numa
historicidade que envolve não apenas as socialidades, mas também
as materialidades presentes em nossas práticas sociais.
Por entendermos que as práticas discursivas envolvem um
processo de interanimação dialógica, adotamos também a ideia de
posicionamentos para nos referirmos à processualidade e à
concomitante produção discursiva de pessoas em interação. Desse
modo, ao produzirmos sentidos do mundo, pelas práticas
discursivas, também produzimos sentidos de nós mesmos.
Nossas interlocutoras se percebem compartilhando práticas
sociais, trajetórias de vida semelhantes, lutas e sonhos. Poder agora
estar na universidade e, ao mesmo tempo, poder estar também em
contato com sua comunidade, permanecendo no campo, é parte

275
disso. Sentem-se pertencentes a um grupo que adentra a
universidade e que carrega em seus corpos as marcas da história do
campesinato, das lutas dos povos do campo e todas as dificuldades e
desafios.
Assumir-se, reconhecer-se como camponesa dentro da
universidade é olhar para si mesma e para o grupo a partir de
experiências/trajetórias de vida com muitas semelhanças, tanto pelo
que foi, como é no presente e o que se espera do futuro. De tal modo,
as falas evidenciam, igualmente, a marca colonial que perdura por
entre os tempos na possibilidade que o povo do campo tem de
acessar as produções da modernidade (Gonçalves, 2016).
Entrar na universidade, espaço marcado por princípios
positivistas de cientificidade, neutralidade, objetividade;
predominantemente urbano, com cursos ofertados para o público
das cidades, numa lógica produzida pela racionalidade técnica do
capitalismo é, portanto, uma resistência significativa para estas
mulheres. E perceber-se camponesa e universitária ao mesmo
tempo foi algo inimaginável para gerações anteriores (Quijano,
2005; Santos, 2018).
O curso produz novos sentidos do que se pensava antes
acerca do ser camponês(a), permitindo pensar agora sobre essa
forma de posicionar-se aqui também, politicamente, inclusive para
as mulheres na luta por espaços, direito e reconhecimento no acesso
à universidade. Esse fenômeno vai de encontro com a lógica da
ecologia dos saberes de Boaventura Souza Santos (2018), para quem
o conhecimento vai além do aprimoramento dos saberes científicos
instaurados, contemplando todas as formas de saberes, sendo essa
junção a ampliação de um caráter emancipatório na ciência.
Considerar os saberes do campo dentro do espaço universitário é
sair, como o autor chama, do ponto de ignorância, que é o saber a
rigor do colonialismo, e seguir para um conhecimento chamado
solidariedade.
Nesse sentido, as falas apresentam o quanto o curso é
importante para a formação profissional e para o reconhecimento
social. A partir dessas vivências, os sentidos são produzidos em uma
perspectiva tanto pessoal quanto coletiva acerca da configuração
política urbano centrada. Para quem é do campo, estar em um curso

276
SENTIDOS E TRAJETÓRIAS DE MULHERES CAMPONESAS NA AMAZÔNIA:
RELATOS DA LUTA PELA PERMANÊNCIA NA TERRA E NA UNIVERSIDADE

de formação oriundo de uma luta social resistente a esse sistema, e


tem a educação como uma ferramenta política que possa permitir a
emancipação da população camponesa é fortalecer a luta pela
permanência na terra, resgatando o que Paulo Freire (2011)
apresenta como sendo a educação transformadora e como potencial
para a autonomia.
Vale pensar que a entrada da população camponesa na
universidade por uma política voltada a esse público e sua realidade
é um enfrentamento ao sistema, configurando-se como uma prática
descolonizadora e que possibilita estratégias de ser e estar no
mundo, rompendo com um sistema opressor (Gonçalves, 2016).
Um dos aspectos que se diferencia no curso de LEDOC em
relação a outras formações é a pedagogia da alternância, que
consiste em uma das especificidades do curso, que colaboram para a
entrada e permanência de estudantes camponeses, e são aspectos
fundamentais do processo formativo da educação do campo. Esse
modelo de ensino possibilita a ampliação de horizontes, entre o
conhecimento teórico científico e a práxis social e a relação entre
universidade e comunidade.
Para as estudantes participantes, o sonho de cursar LEDOC
só foi possível por conta da pedagogia da alternância. Iniciamos,
então, com os relatos das mulheres em diferentes idades que falam
da condição mulher camponesa neste curso:

Pra mim também é um sonho né, cursar


Licenciatura em Educação do campo, por
muitas vezes, a pessoa que mora no campo,
não tem acesso né. A oportunidade pra estar
estudando e fazendo uma educação em
licenciatura. E, no meu caso, eu já comecei
uma vez fazendo né, faculdade, daí eu tive que
trancar e parei e nunca mais voltei. Então,
treze anos fora de uma sala de aula, e hoje na
idade né, mãe, esposa que trabalha fora... então
assim, pra gente juntar essas coisas tudinho e
encaixar, pra tá estudando não é fácil. E ainda
morar no campo, né, que é mais difícil ainda.
E pra mim é uma realização enorme tá
fazendo essa Educação do Campo (Patrícia, 41
anos).

277
A gente tem várias dificuldades, né, que
encontramos, mas pela alternância, pelo
tempo universitário, pra nós é bom. Como ela
falou que nós somos dona de casa, né, temos
serviço. Então, pra nós ajuda muito desse jeito,
agora se fosse todos os dias, pra muitos isso aqui
não teria como, mesmo sendo na
universidade, tinha alunos que não tinha
como (Ana, 34 anos).

Bom, pra mim que já tenho uma idade bonita


né, 42 anos, cursar Licenciatura em Educação
do Campo é uma realização, é um sonho que
quando era mais jovem não consegui realizar,
e agora na idade que eu estou é um sonho pra
mim, que está sendo realizado. Apesar das
dificuldades, mas é o que vem me deixando
bastante feliz, é esse curso, e é o modo, como a
gente coloca sempre, é o modo da alternância
né. Devido eu ficar aqui na universidade só
uma semana e ficar em casa no outro tempo
né, eu posso conciliar com meu trabalho
também. Então para mim cursar a licenciatura
dessa maneira é excelente (Helena, 42 anos).

Eu acho que cursar educação no campo é


como ela disse: também é um sonho. Eu já
com idade mais nova, pra mim é um sonho,
né? Porque é o sonho de todo jovem entrar
numa universidade... E a ideia da educação do
campo, em específico, é a entrada do povo na
universidade. Então é mostrar que nós, povo,
que estamos nos inserindo no espaço público
que nos é de direito (Larissa, 18 anos).

Nas falas acima, vemos as diferenças de idade e em como a


pedagogia da alternância é um ponto chave para o acesso de
mulheres, mães e trabalhadoras na universidade. Três participantes
abordaram as dificuldades de estudar quando mais jovens e das
possibilidades atuais que o curso oferece, destacando que embora
um direito social a todas as pessoas, ao longo da história de

278
SENTIDOS E TRAJETÓRIAS DE MULHERES CAMPONESAS NA AMAZÔNIA:
RELATOS DA LUTA PELA PERMANÊNCIA NA TERRA E NA UNIVERSIDADE

construção do Brasil, não chegava à classe social do campo.


Também é marcada na fala da estudante mais jovem, Larissa, a
própria juventude camponesa no espaço universitário, os
sentimentos envolvidos e a consciência política do espaço que está
ocupando.
O sistema de alternância do curso de LEDOC foi o que
possibilitou que estas mulheres pudessem estudar; do contrário, não
conseguiriam. A pedagogia da alternância é significativa para a
mulher que é trabalhadora e estudante, ao mesmo tempo. Nesse
sentido, percebe-se a junção de marcadores sociais, e as divisões
classificatórias que operam na manutenção de grupos
vulnerabilizados, como aqui no caso os marcadores de gênero,
território, raça e etnia (Goulart, 2019; Gonçalves, 2016).
Na exclusão desse acesso à universidade, evidencia-se o
desempenho de tarefas domésticas e que limitam o estudo, assim
como o exercício do trabalho no campo e o distanciamento dos
espaços universitários (Hirata; Guimarães, 2012).
Nessa constante, os cursos tradicionais que possuem um
Projeto Político Pedagógico (PPP) que dificulta essa conciliação
entre universidade e vida no campo, não possibilitam o acesso de
mulheres camponesas ao ensino superior, uma vez que os ciclos de
trabalho no campo são bem organizados e necessitam que os
produtores estejam na terra. Assim, a única possibilidade existente
de entrar na universidade seria desconsiderar toda a dinâmica de
vida no campo.
Vê-se, assim, que o curso é efetivo, justamente pela
oportunidade de acesso e de condições para fazê-lo. A divisão sexual
do trabalho, principalmente do trabalho doméstico e da
maternidade, é um aspecto que marca a dificuldade de as mulheres
adentrarem no espaço universitário (Hirata; Guimarães, 2012), e
esse fenômeno é ainda mais intenso no campo (Nóbrega, 2013).
Acerca disso, o curso em sua estruturação político-pedagógica
amplia acessos, possibilitando a conciliação do trabalho doméstico e
do campo com a universidade (Leonarde; Simões, 2017).
Ressalta-se que não se trata somente de pensar políticas de
acessos diferenciados para garantia da educação, mas de rever as
causas que impedem a inserção e a permanência. Nesse sentido, a

279
pedagogia da alternância se destaca como uma alternativa para
alguns cursos, e para a inserção de muitos camponeses e
camponesas na universidade, abrindo espaço para se pensar outras
políticas para resolver essa problemática em questão.
Nessa constante, entende-se que o curso de LEDOC, através
da pedagogia da alternância. beneficia, em muitos aspectos, boa
parte da população camponesa, principalmente, mulheres que
precisam conciliar seus trabalhos com a universidade. Vemos,
assim, que a possibilidade de estar na universidade vem ao encontro
de uma população que, por tantas violências, nunca se imaginou
nesse espaço e, agora, o ocupa reconhecendo como um direito a ser
vivido.

E o maior orgulho eu estar aqui também


cursando licenciatura com meu filho. Esse daí
é o meu filho, e eu sou vó já, sou mãe, sou vó,
esposa, trabalho e estudo, então faz com que
eu consiga conciliar tudo, eu estou
conseguindo ainda conciliar mesmo levando,
porque tem horas que a gente né, eu acredito
que assim, os meninos não quero dizer que
eles não fazem nada, mas para os meninos
mais jovens, que não tem a responsabilidade
de uma família, pra eles se torna mais fácil de
estudar, agora pra gente que já tem família,
tem emprego, tem marido né, se torna bem
mais difícil, é, a licenciatura, e isso eu acho
que aqui pra nós foi principalmente nessa
turma que a gente está agora, que aqui temos
humanas e natureza juntos né, pra nos foi uma
troca de experiência, pra mim eu quebrei
todos os meus preconceitos, aqui eu estou
convivendo com a diferença, porque eu nunca
tive contato, com uma pessoa LGBT, nunca!
Sou uma sem-terra, mas nunca assumi que eu
era uma sem-terra sou uma camponesa e
nunca me assumi como camponesa, que até
então eu nem sabia o que eu era né. Porque a
gente fala assim, e aqui a gente com dois anos
de licenciatura a gente já estava há mais ou
menos caminhando, já sei o que eu quero. [...]
gente hoje tem um amigo, né, que é LGBT, e

280
SENTIDOS E TRAJETÓRIAS DE MULHERES CAMPONESAS NA AMAZÔNIA:
RELATOS DA LUTA PELA PERMANÊNCIA NA TERRA E NA UNIVERSIDADE

estou fazendo, eu brinco muito com ele sobre


isso, ele é nossa bichona querida, então foi
uma diversidade que eu encontrei aqui, as
meninas que eu fui no acampamento, eu como
trabalho de agente de saúde, eu atendo um
assentamento, e a partir dessa licenciatura, eu
descobri que lá não é assentamento, tudo fala
que é assentamento mas eu falo que é o povo
que comprou e Incra foi e demarcou, então até
isso passou a ser um conhecimento que eu não
tinha. Então, é uma grande maravilha isso
(Helena, 42 anos).

Novamente, vemos como a vivência dentro do curso e o


processo formativo contribuem para o posicionamento identitário
(Spink; Frezza, 2013). Embora moradora e trabalhadora do campo,
a estudante só consegue referir-se como camponesa por causa do
curso. Nesse sentido, o vai e vem da pedagogia da alternância
possibilita pensar sobre os efeitos dessa alternância, seja da
universidade para a comunidades, seja da comunidade para a
universidade. Quando produzem seus próprios trabalhos, pesquisas
de iniciação científicas, trabalhos de conclusão de curso, projetos de
extensão ou atividades avaliativas, transitam com os saberes de um
lugar para o outro, ampliando os conhecimentos e possibilitando
novas formas de ser e estar nos lugares que ocupam.
Do mesmo modo, o sonho de retorno às comunidades para
lecionar nas escolas do campo, contribuindo e valorizando o campo
no processo de escolarização, também se apresenta como um
posicionamento identitário que transcende de si para a própria
comunidade:

Na região que a gente vive né, a gente vive a


setenta quilômetros de Alta Floresta no
distrito né, e a gente tem uma escola, que a
gente fez o inventário dela, e quando a gente
conversa com os outros professores eles falam
“nossa que bom, ao menos assim vai ter
alguém daqui que vai se formar, pra ajudar
nossa escola, a nossa comunidade”, porque lá é
longe de tudo e a maioria dos professores ou

281
vão de Alto Floresta ou vão de Alto Alegre pra
dar aula lá né, e vai e volta todos os dias e
acaba que acontece de algum dia não ir né, a
gente sabe que é estrada de chão e o tempo
não ajuda (Daniela, 18 anos).

Minha proposta é levar o retorno pra nossa


comunidade, que lá as escolas tão tendo muita
dificuldade no município de Alta Floresta com
os professores, tem vez que vai, tem vez que
não vai e a diretora lá da escola, esses dias a
gente estava conversando ela disse assim que,
[nome da escola], pra seis pessoas da mesma
escola ter passado no vestibular da UNIR, pra
ela é muito gratificante né, mas era sete, mas
uma desistiu, na mesma escola, né ela falou né
filhos do [nome da escola], né o nome da
escola, então a comunidade sente orgulho né,
eles estão esperando o retorno, nos nós
formamos e voltamos a trabalhar na escola,
com esse trabalho (Amanda, 19 anos).

Que nem a gente que estudou, eu estudei lá


desde pequena e a gente ver as dificuldades
que a escola passa, mas mesmo com as
dificuldades que ela, teve ela teve uma
excelente educação, tanto que eu estou aqui,
então a gente sente a necessidade de devolver
tudo o que ela fez pra gente, então esse curso,
terminar esse curso e tentar ingressar na
escola aonde a gente estudou, eu acho que é o
sonho de qualquer um que está aqui
(Dandara, 28 anos).

Essas falas apresentam o protagonismo da juventude na


discussão da permanência da terra. Estudar LEDOC, nesse sentido,
está intimamente ligado com a luta camponesa e tem, portanto, o
desejo de retorno como um sentido que leva inclusive ao
pertencimento nessa história. Trata-se de estudantes que passam a
se identificar e reconhecer os seus próximos como camponeses,
resgatam as suas próprias vivências e produzem sonhos. Isso torna
ainda mais consistente a importância de uma escola do campo e

282
SENTIDOS E TRAJETÓRIAS DE MULHERES CAMPONESAS NA AMAZÔNIA:
RELATOS DA LUTA PELA PERMANÊNCIA NA TERRA E NA UNIVERSIDADE

com condições para escolarizar com qualidade, uma vez que pelas
próprias experiências entendem a relevância de uma escolarização
que contemple a realidade do campo.
Dessa forma, o protagonismo da juventude do campo
também possui história e significância para a luta da permanência
no campo e, também, na universidade. A organização juvenil
começou a partir dos anos 2000, e veio ganhando cada vez mais
espaço na agenda dos movimentos sociais, tornando-se uma “[...]
importante categoria de identificação política” (Castro, 2016, p. 194-
195).
Desse modo, a presença da juventude, rural, indígena, de
povos e comunidades tradicionais nos movimentos sociais, marcam
a luta histórica do campo, uma nova relação no processo de
configuração social, situando dois importantes campos, “o campo
das políticas públicas e o do campo político da juventude” (Castro,
2016, p. 195).

Considerações finais

Pensar e discutir os processos políticos na sociedade não é


um caminho fácil, principalmente no que incide na luta das
mulheres por direitos, representação e reconhecimento. Ao mesmo
tempo em que os movimentos feministas reivindicam novos espaços
de pertencimento, não podemos deixar de olhar e proteger o que
arduamente já foi conquistado.
A conquista de cidadania, autonomia e liberdade da mulher
camponesa em sua identidade e em seu território, demarcam um
rompimento na lógica patriarcal e urbano centrada, contudo, como
diz Simone de Beauvoir (1980), basta uma crise política ou religiosa
para que nossos direitos sejam questionados, o que pode ser
pensado para todas as classes que sofrem retaliações político-
sociais. Quando estes grupos conquistam seus direitos e se veem
legitimados, incomodam ou ameaçam aqueles cujos privilégios se
perpetuam há muitos séculos, inferindo que mesmo as conquistas já
instauradas, o lugar de pertencimento nunca está seguro.
Ressalta-se que a história da questão agrária do país e as
violências decorrentes ainda estão longe de acabar, continuam

283
acontecendo violências, genocídios, assassinatos, expulsões e
despejos sob a égide do agronegócio. Nesse sentido, a luta da mulher
camponesa também consiste na luta por território, pelo direito de
plantar e colher, de acessar espaços de direito.
A educação do campo, nesse constructo, possui um grande
sentido, no enfrentamento a essa estruturação homogênea, bem
como a perspectiva de Paulo Freire (2018) de que é por meio da
educação que se promove a libertação e a emancipação humana.
Contudo, o sistema educacional só é emancipatório se permitir e
fortalecer o pensamento crítico do entorno social, viabilizando um
acesso cujo processo de formação escolar seja de qualidade. Se o
sistema educacional é excludente, hegemônico e inacessível a povos
que historicamente são colocados às margens da sociedade,
inclusive as mulheres, os fenômenos de desigualdades sociais
tendem a aumentar e a população camponesa a ficar cada vez mais
reprimida nesse sistema.
Diante disso, este estudo buscou trazer os sentidos
produzidos por mulheres no processo de formação em LEDOC e
possibilitou compreender como as trajetórias de escolarização são
atravessadas por processos de desvalorização do campo,
preconceitos, marcadores sociais de gênero e falta de políticas
públicas principalmente voltadas aos contextos rurais.
Nesse sentido, o curso de LEDOC possui um significado
que vai além do processo formativo, mas que também promove um
resgate identitário de povos, culturas e identidades, bem como
colabora no fortalecimento dessas comunidades, inclusive na luta
pela permanência da terra e na universidade, almejando a garantia
de direitos sociais, inclusive para as mulheres do campo.
Desse modo, as estudantes que se formam em LEDOC e
planejam atuar em suas comunidades a partir da licenciatura,
apresentam a partir das próprias experiências de escolarização, a
importância de um ensino horizontal, crítico, inclusivo e adaptado a
sua realidade. Entendem, também, que não fornecer um ensino que
rotule, discrimine ou exclua, é promover uma educação libertadora.
A partir disso, este estudo pretendeu, de modo geral, tecer
contribuições no sentido de ampliar a discussão sobre os contextos
rurais dentro da psicologia, entendendo-a como campo de

284
SENTIDOS E TRAJETÓRIAS DE MULHERES CAMPONESAS NA AMAZÔNIA:
RELATOS DA LUTA PELA PERMANÊNCIA NA TERRA E NA UNIVERSIDADE

produção de conhecimento e da práxis profissional a partir das suas


várias áreas de atuação. Fundamentalmente, a psicologia corrobora
na organização dos processos educativos a partir de uma
intencionalidade que visa o desenvolvimento de uma formação
crítica e que influencia na mudança de sentidos. Por fim, é
reconhecido que o campo é plural e merece seguir sendo
sistematizado e analisado, considerando e valorizando suas
singularidades.

Referências

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. Rio de


Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1980. Disponível em: <https://
materialfeminista.milharal.org/files/2012/08/O-Segundo-Sexo-
vol1-Fatos-e-Mitos-Simone-de-Beauvoir1.pdf >. Acesso em 05 de
dez. 2023.

BRASIL. Referências para uma Política Nacional de Educação do


Campo: caderno de subsídios. Brasília: Ministério da Educação,
2003. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/
educacaodocampo/referencias.pdf>. Acesso em 04 de dez. 2023.

CAETANO, Ivone Ferreira. O feminismo brasileiro: uma análise a


partir das três ondas do movimento feminista e a perspectiva da
interseccionalidade. Rio de Janeiro: Escola da magistratura do
estado do Rio de Janeiro (EMERJ), 2017. Disponível em: <https://
www.emerj.tjrj.jus.br/revistas/genero_e_direito/edicoes/1_2017/
pdf/DesIvoneFerreiraCaetano.pdf >. Acesso em 02 de dez. 2023.

CASTRO, Elisa Guaraná. Juventude rural, do campo, das águas e


das florestas: a primeira geração jovem dos movimentos sociais no
Brasil e sua incidência nas políticas públicas de juventude. Política
& Trabalho, n. 45, 2016. Disponível em: <https://periodicos.ufpb.
br/index.php/politicaetrabalho/article/view/30734/17809>. Acesso
em 02 de dez. 2023.

CONTE, Isaura Isabel; WESCHENFELDER, Noeli Valentina.


Mulheres camponesas em luta: resistência, libertação e
empoderamento. Revista da Faculdade de Educação, v. 17, n. 1, p.

285
11-27, 2012. Disponível em: <http://www2.unemat.br/revistafaed/
content/vol/vol_17/artigo_17/11_27.pdf>. Acesso em 02 de nov.
2023.

CRUZ, Tereza Almeida. Movimento de Mulheres Camponesas do


Acre: 25 anos de organização e lutas. Universidade Federal do Acre.
Rio Branco – Acre, 2012. Disponível em:<https://www.
encontro2014.historiaoral.org.br/resources/anais/8/1398902318_
ARQUIVO_Textocompleto.25anosdeMMCAC.pdf >. Acesso em 02
de nov. 2023.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à


prática educativa. São Paulo, Paz e Terra, 2011. Disponível em:
<https://nepegeo.paginas.ufsc.br/files/2018/11/Pedagogia-da-
Autonomia-Paulo-Freire.pdf >. Acesso em 30 de out. 2023.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da libertação em Paulo Freire. Editora


Paz e Terra, 2018. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/
pluginfile.php/7543713/mod_resource/content/1/E4%20-
%20Texto%203.pdf >. Acesso em 30 de out. 2024

GONÇALVES, Bruno Simões. A Dupla Consciência Latino-


Americana: contribuições para uma psicologia descolonizada.
Revista Psicologia Política, v. 16, n. 37, p. 397-413, 2016.
Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rpp/v16n37/
v16n37a11.pdf>. Acesso em 22 de set. 2023.

GOULART, Vincent Pereira. Marcadores sociais da diferença e


colonialidade. In: Zachello, Camilla. et al. Colonialidades e ódio às
diferenças, Porto Alegre: Abrapso, 2019, p. 107. Disponível em:
<https://site.abrapso.org.br/wp-content/uploads/2021/09/colecao_
encontros_2020_volume2.pdf >. Acesso em 02 de nov. 2023.

HIRATA, Helena; GUIMARÃES, Nadya Araujo. Cuidado e


cuidadoras: as várias faces do trabalho do care. In: Cuidado e
cuidadoras: as várias faces do trabalho do care. 2012. p. 236-236.
Disponível em: < https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/
4120827/mod_resource/content/2/
Zelizer%20%282012%29%20CuidadoCuidadoras_Cap1.
compressed.pdf>. Acesso em 15 de nov. 2023.

286
SENTIDOS E TRAJETÓRIAS DE MULHERES CAMPONESAS NA AMAZÔNIA:
RELATOS DA LUTA PELA PERMANÊNCIA NA TERRA E NA UNIVERSIDADE

HUR, Domenico Uhng; CALEGARE, Marcelo Gustavo Aguilar.


Psicologia Política e Ruralidades. Revista Psicologia Política, 2016,
16.37: 277-283. Disponível em: < http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rpp/
v16n37/v16n37a02.pdf>. Acesso em 10 de set. 2023.

LEONARDE, Charlini da Rocha; SIMÕES, Renata Duarte.


Licenciatura em educação do campo-UFES: uma trajetória de lutas
e reivindicações sociais. Anais do Encontro Estadual de Política e
Administração da Educação-Anpae/ES. 2017. Disponível em:
<https://docplayer.com.br/73287216-Licenciatura-em-educacao-
do-campo-ufes-uma-trajetoria-de-lutas-e-reivindicacoes-sociais.
html>. Acesso em 10 de set. 2023.

LIMA, Angélica de Souza. “É um ato de luta estar aqui dentro”:


Licenciatura em Educação do Campo e os sentidos da formação na
Universidade Federal de Rondônia. 113 f. Porto Velho, 2022.
Dissertação (Mestrado Acadêmico em Psicologia) – Fundação
Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho, Rondônia, 2022.
Disponível em: <https://mapsi.unir.br/pagina/exibir/18842>.
Acesso em 12 de jun. 2023.

MESQUITA, Rogério Nogueira; SILVA, Maria das Graças Silva


Nascimento. Feminismo(S) rural (IS) em Tela – contribuições do
movimento de mulheres camponesas do ACRE para o
empoderamento feminino no PAs rural Antônio de Holanda e
Espinhara II no município de Bujari-ACRE. Caribeña de Ciencias
Sociales, sl, 2019. Disponível em: < https://dialnet.unirioja.es/
servlet/articulo?codigo=9117690>. Acesso em 14 de out. de 2023.

MUNARIM, Antônio. Elementos para uma Política Pública de


Educação do Campo. In: MOLINA, Mônica Castagna. Brasil.
Ministério do Desenvolvimento Agrário. Educação do Campo e
Pesquisa: questões para reflexão. Brasília: Ministério do
Desenvolvimento Agrário, 2006. Disponível em: < https://educanp.
weebly.com/uploads/1/3/9/9/13997768/educao_do_campo_e_
pesquisa_-__questes_para_reflexo.pdf>. Acesso em 13 de set. 2023.

NÓBREGA, Juliana da Silva. A produção da vida como política no


cotidiano: a união de terras, trabalho e panelas no “Grupo Coletivo

287
14 de Agosto” em Rondônia. 2013. 277 f. Tese (Doutorado em
Psicologia) Instituto de Psicologia da Universidade Estadual de São
Paulo, São Paulo, 2013. Disponível em: < https://www.teses.usp.br/
teses/disponiveis/47/47134/tde-31032014-122418/publico/
nobrega_do.pdf>. Acesso em 17 de jul. 2023.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e


América Latina. In: LANDER, Edgardo. et al. (Ed.). A
colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais:
perspectivas latino-americanas. CLACSO, Consejo
Latinoamericano de Ciencias Sociales, Conselho Latino-americano
de Ciências Sociais, 2005. Disponível em: < https://edisciplinas.usp.
br/pluginfile.php/2591382/mod_resource/content/1/colonialidade_
do_saber_eurocentrismo_ciencias_sociais.pdf>. Acesso em 17 de
jul. 2023.

SANTOS, Boaventura de Souza. Construindo as epistemologias


do Sul. Buenos Aires: CLACSO, 2018. Disponível em: < https://
estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/81476/1/
Construindo%20as%20Epistemologias%20do%20Sul_Vol%202.
pdf>. Acesso em 15 de set. 2023.

SPINK, Mary Jane. Linguagem e produção de sentidos no


cotidiano. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais,
2010. Disponível em: < https://static.scielo.org/scielobooks/w9q43/
pdf/spink-9788579820465.pdf>. Acesso em 10 de set. 2023.

SPINK, Mary Jane. Pessoa, Indivíduo e Sujeito: notas sobre efeitos


discursivos de opções conceituais. In: SPINK, Marry Jane;
FIGUEIREDO, Pedro; BRASILINO, Julliany. (Org). Psicologia
social e pessoalidade. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de
Pesquisas Sociais; ABRAPSO, 2011, p. 1-22. Disponível em: <
https://static.scielo.org/scielobooks/xg9wp/pdf/spink-
9788579820571.pdf>. Acesso em 12 de out. 2023.

SPINK, Mary Jane; FREZZA, Rose Mary. Práticas Discursivas e


Produção de Sentido. In: SPINK, Mary Jane. Práticas discursivas e
produção de sentidos no cotidiano. Centro Edelstein de Pesquisas
Sociais, 2013. Disponível em: <https://www.academia.edu/
37485408/SPINK_Mary_Jane_Pr%C3%A1ticas_Discursivas_e_

288
SENTIDOS E TRAJETÓRIAS DE MULHERES CAMPONESAS NA AMAZÔNIA:
RELATOS DA LUTA PELA PERMANÊNCIA NA TERRA E NA UNIVERSIDADE

Produ%C3%A7%C3%A3o_de_Sentido_no_Cotidiano>. Acesso em
12 de out. 2023.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA. Educação do


Campo. Rolim de Moura: UNIR, 2016. Disponível em: <http://
www.educampo.unir.br/pagina/exibir/1056>. Acesso em: 22 out.
2023.

Mini currículo

Angelica de Souza Lima


Graduada (2018) e Mestra em Psicologia (2022) pela Universidade
Federal de Rondônia (UNIR). Docente de psicologia no Centro
Universitário São Lucas-PVH e Psicóloga Clínica. Área de pesquisa:
psicologia e ruralidades. E-mail: [email protected]
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0479056710449635

Juliana da Silva Nóbrega


Doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (IP-
USP). Docente do Departamento de Psicologia e do Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Rondônia
(PPGPSI-UNIR). Área de pesquisa: psicologia e ruralidades. Email:
[email protected] Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/
2230904574804336

289
REFLEXÕES SOBRE AS
VIVÊNCIAS DE PESSOAS
BISSEXUAIS À LUZ DA
INTERSECCIONALIDADE1
Victor Lucas da Silva Carvalho
Paulo Guilherme da Encarnação Matos
Gisele Cristina Resende
Breno de Oliveira Ferreira

Introdução

A interseccionalidade é um conceito que contribui para a


compreensão de questões sociais, como as disparidades e
discriminações sofridas por algumas pessoas, classes e categorias
sociais. Crenshaw (2002) define interseccionalidade como sendo a
articulação de eixos de poder e de discriminação que
estruturalmente produzem opressão. A autora destaca eixos que se
interseccionam, como, racismo, patriarcado e estrutura de classe
socioeconômica. Na atualidade há, ainda, o cisheteropatriarcado,
adicionando a esses eixos as categorias de identidade de gênero e de
sexualidade, as quais podem produzir mais opressões. O
cisheteropatriarcado pode ser entendido como um sistema
sociopolítico no qual a heterossexualidade masculina e cisgênero é
concebida como superior sobre as demais formas de identidade de
gênero e orientações sexuais, enfatizando, assim, o princípio social
machista (Coêlho Santana; Akotirene, 2019). Neste princípio, não
são reconhecidas como pertencentes à sociedade as sexualidades
dissidentes, ou seja, aquelas que são diferentes da norma, como a de
pessoas bissexuais que, em suas múltiplas vivências, envolve
relações, afetos, práticas e identidade. Por esse motivo, a

1
Agradecimentos: CAPES pelo apoio ao Projeto PROCAD-Amazônia/
CAPES “Os significados das trajetórias de escolarização de jovens
estudantes Amazônidas” e ao CNPq pelas bolsas de Iniciação Científica.
interseccionalidade está presente na vivência deste grupo de
pessoas.
A partir da identificação da interseccionalidade que
perpassa as vivências humanas, estudos sobre as especificidades de
um grupo social são de fundamental importância para a
compreensão da pluralidade da existência humana como um todo.
Nessa pluralidade ocorrem os processos psicossociais, isto é,
processos que constituem o psiquismo por meio da interação com o
contexto social e com outros humanos.

não existe ser humano que constitua sua


interioridade sem a existência e relação com
um outro, interno e externo simultaneamente.
Somos paradoxalmente um representante
único e legítimo – uma peça única – em uma
coletividade que nos iguala enquanto
humanos (Calegare, 2021, p.28).

Essa constituição humana e psicossocial ocorre por meio


das vivências grupais nos diversos locais em que as pessoas
convivem e desenvolvem suas subjetividades. As subjetividades são
derivadas desses processos e se constituem por meio dos
relacionamentos e interações sociais, por isso os estudos dos grupos
sociais e a forma como são representados para a sociedade
representam um avanço e uma renovação na epistemologia dos
paradigmas das ciências psicossociais (Franco, 2004). Assim, um
grupo social pode ter suas vivências apuradas a partir de recortes,
como a sexualidade de pessoas bissexuais. Para iniciar qualquer
debate que envolva a sexualidade humana, é necessário
contextualizar historicamente, entender e se apropriar de alguns
conceitos que são essenciais nessa temática e, assim, poder construir
um discurso social.
Durante a história da humanidade, o meio científico
determinou o sexo exclusivamente através da condição biológica e
física do corpo, dividindo-o entre masculino e feminismo. Esse
determinismo biológico serviu, e continua a servir, como
embasamento para práticas e discursos que criam espaços sociais a
partir dessa dicotomia entre os corpos.

292
REFLEXÕES SOBRE AS VIVÊNCIAS DE PESSOAS BISSEXUAIS À LUZ DA
INTERSECCIONALIDADE

Ao remontar a história da sexualidade a partir de Michel


Foucault (1988), vê-se que ao longo de todo o século XIX, o sexo foi
inscrito nos corpos através de dois campos do saber: o das ciências
biológicas e da medicina. O primeiro dá conta das questões da
reprodução dos seres, enquanto o segundo constitui uma noção de
sexo que se submete a origens e regras diversas.
O autor ainda indica as diferentes racionalidades que
transpassam os saberes, o que cria uma dificuldade dialógica entre
os campos mencionados. Segundo Foucault, todas as diferenças que
desabrocharam nos corpos e as existências que fugiam do modelo
aceitável pela sociedade eram encobertas, não lhes sendo oferecido
vez nem voz, além disso as ciências médicas embasaram um
discurso de suposta cura aos corpos considerados desviantes e
anormais.
Por trás da diferença entre a fisiologia da reprodução e a
medicina da sexualidade seria necessário ver algo diferente e a mais
do que um progresso desigual ou um desnivelamento nas formas da
racionalidade: uma diria respeito a essa imensa vontade de saber
que sustentou a instituição do discurso científico no Ocidente, ao
passo que a outra corresponderia a uma vontade obstinada de não-
saber (Foucault, 1988).
Na concepção foucaultiana, a sexualidade é correlata às
práticas discursivas desenvolvidas ao longo do século XIX, sendo
caracterizada pela “natureza” – isso é, pela biologia –, e dominada
por processos de patologização através de procedimentos cirúrgicos
e/ou terapêuticos para a normalização corporal. Foucault (1988)
afirma que sexualidade é a denominação para um dispositivo
histórico que atua como estratégia de saber e poder sobre os corpos.
A partir do século XVII, a concepção de sexo e corpos, focou-se em
dois polos interligados por todo um feixe intermediário de relações.
O primeiro polo entende o corpo como máquina que deveria ser
adestrada, de modo que ampliasse suas aptidões em rumo a sua
utilidade e docilidade, para o uso em sistemas de controle eficazes e
econômicos, assegurado por procedimentos de poder das
disciplinas: anátomo-política do corpo humano. O segundo polo,
formou-se por volta da metade do século XVIII, centrando-se no
corpo-espécie, um corpo de processos biológicos com os ciclos

293
vitais, do nascimento até a morte, na qual a saúde, a duração da vida,
a longevidade torna-se objetos de estudo para a elaboração de
intervenções que controlam os corpos humanos, demonstrando
uma biopolítica da vida (Foucault, 1988). Segundo o filósofo, os
corpos e suas histórias não podem ser separados nem deslocados
dos dispositivos de construção do chamado biopoder, uma vez que
esses corpos são construídos e reconstruídos em um processo de
produção-reprodução sexual.
A preocupação acerca do gênero e da sexualidade emergiu
no final do século XX para reivindicar uma nova formulação social,
admitindo outras expressões de gênero e sexualidade, pois as teorias
existentes não foram capazes de explicar as desigualdades entre
homens e mulheres (Scott,1995). A sexualidade começa a ser
pensada para além das questões biológicas da genética e não mais se
reduzindo ao DNA ou a expressão visual/fenotípica do corpo, o que
trouxe um novo olhar sobre o ser humano e as possibilidades de
expressar sua sexualidade (Mação, 2017), desse modo, a
compreensão dos grupos humanos e de suas sexualidades torna-se
mais próximas da realidade e consegue qualificar as experiências e
vivências humanas.
É importante que se pense a sexualidade como um conjunto
de características construídas durante a trajetória individual e
coletiva e não como um desvio de um passado perfeito, que é, em
vários momentos, descrito como heterossexual. A visão de que
existem outras sexualidades que não são desvios da norma, pode
promover reflexões e evitar que a ideia cisheteronormativa e
patriarcal seja predominante e desencadeie vivências de
preconceito. Assim, a perspectiva da interseccionalidade pode
favorecer importantes diálogos.
Ao abrir um espaço de diálogo sobre sexualidades não-
heterossexuais, a bissexualidade pode ser debatida e pensada
enquanto uma possibilidade da expressão sexual, pois ainda se
encontra pouco estudada. Não somente está à margem dos estudos
sobre a sexualidade humana como também enfrenta preconceitos
tanto das pessoas heterossexuais quanto da comunidade
LGBTQIA+, pois associam, de maneira geral, aos bissexuais um
papel preconceituoso de infidelidade, alta transmissão de IST

294
REFLEXÕES SOBRE AS VIVÊNCIAS DE PESSOAS BISSEXUAIS À LUZ DA
INTERSECCIONALIDADE

(Infecção Sexualmente Transmissível) e não-monogamia, que é


visto como uma expressão da sexualidade inferior na sociedade
ocidental (Jaeger; Longhini; Oliveira; Toneli, 2019).
Esses e outros preconceitos vivenciados por bissexuais e
encontrados na literatura são chamados especificamente de
“bifobia”, pois se diferem da homofobia, termo mais amplo e
dirigido, muitas vezes, para toda comunidade LGBTQIA+; da
transfobia, usado para todo tipo de ataque físico, moral ou
psicológica contra pessoas transsexuais; e do preconceito, aversão a
um grupo por fatores gerais em comum. A bifobia, então, é a aversão
direcionada especificamente para pessoas bissexuais, com suas
vivências invisibilizadas e deslegitimadas (Jaeger; Longhini;
Oliveira; Toneli, 2019).
A bissexualidade é descrita como a atração física e sexual
que um indivíduo possui tanto por homens quanto por mulheres
(Miguel; Dalpizzol; DeMarco, 2017). Contudo, há uma miríade de
possibilidades de narrativas e de existência humana que vai para
além da questão binária homem-mulher. Para alguns membros da
comunidade bissexual, é preferível o termo “monodissidência”, pois
incluem outras letras da comunidade LGBTQIA+, como a
Pansexualidade, atração por pessoas independente do sexo ou da
sua identidade de gênero, e a Polisexualidade, atração por múltiplos
gêneros (Santos, 2018). Porém, nem todos os bissexuais aderem a
esse termo, por isso, é importante acolher a vivência pessoal e única
de cada sujeito.
Os impactos e influências da expressão de sua sexualidade
na vivência de jovens bissexuais podem estar atrelados aos mais
diversos fatores, como autoestima, afetividade, habilidades sociais,
engajamento acadêmico. A bissexualidade enfrenta questões que a
homossexualidade também enfrenta, como a “saída do armário”,
contudo, o momento de aceitação para muitos bissexuais é marcado
por vários estereótipos oriundos de variadas fontes. Dentre esses
estereótipos está a de que o(a) jovem bissexual apresenta confusão
psicológica, não aceitação da própria homossexualidade ou falta de
autoconhecimento (Calmon, 2019).
A partir das reflexões acerca da sexualidade e da
bissexualidade, percebeu-se que são elementos que podem gerar

295
relações de poder, preconceitos e compõem o campo das
interseccionalidades. Assim, o objetivo deste estudo é o de realizar
uma revisão da literatura científica para encontrar estudos
brasileiros dos últimos cinco anos sobre a bissexualidade e a bifobia,
de modo a ampliar a compreensão sobre essa expressão da
sexualidade.

Metodologia do Estudo

Este estudo é derivado de projetos de iniciação científica


vinculados a um projeto mais amplo intitulado: “Os significados das
trajetórias de escolarização de jovens estudantes Amazônidas”, o
qual busca entender as trajetórias de estudantes durante o ensino
superior e colaborar para que a universidade seja inclusiva e
acolhedora, pois nela há a vivência das subjetividades humanas nas
múltiplas especificidades. Ele está aprovado pelo Comitê de Ética
em Pesquisa da Universidade Federal do Amazonas.
A metodologia adotada para construção deste estudo foi a
de revisão narrativa de literatura, esta modalidade de revisão
permite descrever e discutir o desenvolvimento de um tema sob a
perspectiva teórica (Rother, 2007), permitindo uma reflexão acerca
da temática escolhida. Elegeu-se a base de dados SciELO (Scientific
Electronic Library Online) para a busca de artigos científicos e
delimitou-se o período entre 2018 e 2022, um espaço de cinco anos,
cuja busca foi realizada no mês de dezembro de 2022.
Escolheram-se os descritores: “bissexualidade” AND
“bifobia” e os critérios de inclusão para seleção e análise foram:
artigos científicos completos sobre o tema da bissexualidade e
bifobia, acesso livre ao texto, idioma em língua portuguesa. Os
critérios de exclusão foram: artigos em outros idiomas, repetidos e
aqueles que não tivessem como foco a pesquisa com o tema da
bissexualidade e bifobia.
Para a análise dos artigos selecionados, utilizou-se Análise
Temática, de acordo com a proposta de Braun e Clarke (2006), esse
método tem como objetivo identificar, analisar e relatar padrões
temáticos em um agrupamento de dados. Dá-se a partir de seis
passos, são eles: i) Familiarização com os dados; ii) Geração dos

296
REFLEXÕES SOBRE AS VIVÊNCIAS DE PESSOAS BISSEXUAIS À LUZ DA
INTERSECCIONALIDADE

códigos iniciais; iii) Busca por temas; iv) Revisão dos temas, v)
Definição e denominação dos temas; e, por fim, vi) Produção do
relatório.

Resultados e análises

Encontrou-se na base de dados SciELO quatorze (14)


artigos com os temas propostos (bissexualidade e bifobia), dentre
eles, um estava em inglês e três repetidos, sendo, então, excluídos.
Restaram, então, dez (10) artigos para a análise.
Após a leitura do material selecionado realizou-se uma
análise mais geral do campo de estudo (ano e área de publicação)
sobre a bissexualidade e bifobia, em seguida realizou-se a análise
temática do material para a elaboração de categorias.
Na análise geral do campo de estudo, verificou-se que no
ano de 2018 havia dois artigos publicados, no ano de 2019 nenhum
e nos anos de 2020, 2021 e 2022 havia três artigos por ano. Esse
achado evidenciou que esse tema é pouco publicado na literatura
científica e indexado na base de dados SciELO, desse modo,
acredita-se que haja demanda de pesquisas sobre a bissexualidade,
pois é um tema que carece de investigação científica. Sobre as áreas
de conhecimento que publicam sobre a temática foram: Psicologia
(3 artigos); Enfermagem e Saúde (3 artigos), Saúde Coletiva (2
artigos); Sexualidade (1 artigo); Feminismo (1 artigo), tal aspecto
possibilita entender que a bissexualidade é um tema transversal que
está em mais de uma área do conhecimento e que se intersecciona
com as demandas da saúde e da educação.
A partir da análise temática (Braun e Clarke, 2006), foram
elaboradas categorias que refletem os principais temas dos estudos:
Vivência de violência e preconceito; Saúde, Psicologia e Direito (os
cuidados e os direitos das pessoas bissexuais); e, Trajetória de
escolarização de pessoas bissexuais.

Vivência de Violência e Preconceito

A vivência da violência e do preconceito são experiências


que marcam as narrativas de qualquer pessoa. Enfatiza-se que há

297
muitas manifestações de bifobia das mais diversas fontes e formas:
violência e preconceito de dentro e de fora da comunidade
LGBTQIA+.
Dentre os artigos trazidos como referência para esta
pesquisa, é viável destacar o Faces da bifobia dentro (e fora) da
comunidade LGBTQIAP+: reflexões a partir de narrativas e pessoas
bissexuais (Cruz; Lima; Carneiro, 2022) que, através de entrevistas
narrativas e análise de conteúdo, investigou como a bifobia se
manifestava nas experiências de pessoas bissexuais, abordando
desde a hiperssexualização e obrigação de escolher um gênero
específico, e somente este, para se relacionar até o deslocamento e
distanciamento das pautas da comunidade.
Uma das violências simbólicas que traz maior prejuízo à
saúde mental, é a da fetichização da mulher bissexual, que é
reduzida a um objeto de prazer e desejo de um homem
normalmente heterossexual na sociedade cisnormativa, nestas
ocasiões a mulher bissexual vive preconceito, encontra-se
diminuída e desvalorizada. Já dentro da comunidade LGBTQIA+, a
mulher bissexual relata que em algumas vezes, é obrigada a escolher
um gênero para se relacionar e uma sexualidade para se identificar,
ou como hétero ou como lésbica, por exemplo. Os autores
encontraram narrativas de vivência de preconceitos, não aceitação
da própria sexualidade e a negação dela nos relacionamentos a fim
de demonstrar heterossexualidade. Tal fato reforça o preconceito e a
aceitação desta expressão da sexualidade na sociedade.
No artigo Violência interpessoal contra homossexuais,
bissexuais e transgêneros (Fernandes, 2022), o pesquisador traz
informações sobre como nas últimas três décadas os estudos sobre a
sexualidade e as vivências diferentes das heterossexuais
aumentaram. Relatam que havia um apagamento social e uma
subnotificação das violências sofridas por pessoas homossexuais,
bissexuais e transsexuais. A pesquisa teve metodologia exploratória,
descritiva, com delineamento transversal, orientada pela ferramenta
Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology
(STROBE). O artigo alega que as pessoas do gênero feminino de
orientação homossexual e bissexual apresentaram maior associação
com a violência moral ou psicológica.

298
REFLEXÕES SOBRE AS VIVÊNCIAS DE PESSOAS BISSEXUAIS À LUZ DA
INTERSECCIONALIDADE

Uma conexão direta é possível entre os dois artigos, pois


ambos relatam experiências comuns envolvendo a saúde mental, a
bissexualidade e o gênero. Além disso, os estudos discorrem sobre a
incidência da violência interpessoal contra essas minorias,
destacando que as mesmas ocorrem em maior proporção na faixa
etária da adolescência/juventude. Momento de transição para a vida
adulta em que existem diversas transformações corporais, sociais,
relacionais, a descoberta da sexualidade e a falta de liberdade
financeira que pode acarretar maior dependência nos
relacionamentos e ocasionar violência. Além disso, outra conclusão
importante é que pessoas LGBTQIA+ com baixa escolarização
apresentam maior risco de sofrer violências físicas e morais.

Saúde, Psicologia e Direito: os cuidados e os direitos das


pessoas bissexuais

Em Vivências de atendimentos ginecológicos por mulheres


lésbicas e bissexuais: (in)visibilidades e barreiras para o exercício do
direito à saúde (Rodrigues; Falcão, 2021), artigo científico publicado
na revista Saúde e Sociedade, tem-se que para o manejo correto da
saúde da mulher e do nascituro existe a necessidade de um
acompanhamento integral - o pré-natal que apresenta uma série de
etapas importantes e cruciais para o período de gestação. A
dificuldade em estabelecer e comunicar a bissexualidade da gestante
se dá pelo receio de não poder ter um parto humanizado. Além
disso, a pesquisa demonstrou que nenhuma das mulheres bissexuais
comunicou sua orientação sexual. Em relação ao contexto de
cuidado em saúde, é notório que a bissexualidade se torna invisível.
As mulheres bissexuais são tomadas, muitas vezes, como confusas e
indecisas, mesmo no contexto clínico e hospitalar.
A produção científica sobre a sexualidade humana,
enquanto questões referentes à saúde e vivência, são recentes. Os
estudos mais encontrados sobre a comunidade LGBTQIA+, quando
envolvem saúde física focalizam, em sua maioria, abordagens
relacionadas ao estigma do HIV/Aids. No artigo Saúde da população
LGBT: uma análise dos agentes, dos objetos de interesse e das disputas
de um espaço de produção (Abade; Chaves; Silva, 2020), os

299
pesquisadores se debruçaram nas produções internacionais e
notaram que os estudos tratam de temáticas mais diversas
relacionadas à saúde de pessoas da comunidade LGBT (Lésbicas,
Gays, Bissexuais e Transsexuais) e não somente nos estudos com
foco no HIV/Aids, cenário diferente do nacional, no qual as
produções precisam avançar na temática da saúde de maneira
ampliada. Os primeiros artigos que não envolvem a abordagem de
HIV/Aids na comunidade são de 2001. Observou-se que, para cada
letra da comunidade LGBTQIA+, há experiência e pensamentos
sobre a própria saúde de modo diferente e específico.
Utilizando a metodologia de revisão integrativa de literatura
entre 2016 e 2019, o artigo Violência contra mulheres lésbicas/
bissexuais e vulnerabilidades em saúde: revisão da literatura (Souza
et al., 2021) apontou que, dentre as violências específicas as quais as
mulheres LGBTQIA+ estão submetidas, são duplamente
vitimizadas, pois vivenciam as manifestações violentas devido à
orientação sexual em sobreposição à violência de gênero. Essa
problemática torna-se uma questão de saúde pública e o artigo
também discorre sobre o fato dessas mulheres se encontrarem em
um ambiente propenso à violência pode ser correlacionado à
suscetibilidade de se adquirir transtornos mentais.
Nem todos os profissionais de Psicologia concordam entre
si sobre alguma temática. Não é de se estranhar que o assunto sobre
manejo e cuidado da comunidade LGBTQIA+ apresente o mesmo
padrão. Em Relações entre Preconceito e Crenças sobre Diversidade
Sexual e de Gênero em Psicólogos/as Brasileiros/as (Gaspodini;
Falcke, 2018), foi observado que houve uma baixa ocorrência de
preconceito nos profissionais, entretanto, ao se avaliar as abordagens
teóricas, representadas pelas atribuições causais de perversão, má
resolução de conflitos com figuras parentais e abusos sexuais
sofridos na infância. Outro dado preocupante foi o de que
psicólogos/as heterossexuais manifestaram maior preconceito
comparados aos não heterossexuais. Considerou-se preocupante a
manifestação de preconceito entre os profissionais da psicologia,
mesmo com pequena magnitude, pois são profissionais que poderão
trabalhar com a diversidade sexual e de gênero, considerando que a
profissão deve combater quaisquer formas de violência.

300
REFLEXÕES SOBRE AS VIVÊNCIAS DE PESSOAS BISSEXUAIS À LUZ DA
INTERSECCIONALIDADE

Em Protocolo para Avaliar o Estresse de Minoria em Lésbicas,


Gays e Bissexuais (Costa et al., 2020), a aplicação do modelo de
Estresse de Minoria (EM), um protocolo que avalia estressores
vivenciados pelas minorias, isto é, pessoas lésbicas, gays e bissexuais,
o que os deixam em maior vulnerabilidade social. Embora o estudo
tenha sido desenvolvido para avaliar as qualidades psicométricas do
instrumento de avaliação psicológica, demonstrou também que a
utilização do protocolo pode informar o preconceito contra a
diversidade sexual. Portanto, o estudo demonstra que é necessária a
adaptação e construção de avaliadores de estresse de minoria para
que se compreenda como e o quanto suas vivências são prejudicadas
por estressores, como homofobia internalizada, ocultação da
própria sexualidade e estigmas referentes às suas identidades
sexuais.
A bissexualidade para o sistema jurídico, por exemplo, pode
abrir margem para decisão jurídica de anulação de casamento. Essa
anulação pode gerar ao réu prejuízo de cem salários por dano moral.
O artigo “Confusão, indecisão e incerteza”: enunciados de
bissexualidade na jurisprudência (Moreira et al., 2021), demonstrou
que a decisão tomada no processo jurídico citado teve um cunho
subjetivo e preconceituoso. Esse achado demonstra que, para o
sistema jurídico e para o caso estudado, foram consideradas
construções estereotipadas sobre pessoas bissexuais, pois a análise
documental no processo levou em consideração confusão, incerteza
e indecisão às decisões de bissexuais em relacionamentos e
casamentos, questionando o caráter, a índole e a honra de uma das
partes envolvidas, evidenciando, elementos estressores, baseados em
estigmas e desconhecimentos.

Trajetória de escolarização de e sobre pessoas bissexuais

É comum para muitas pessoas a falta de acesso a conteúdos


e vivências LGBTQIA+, isso porque a sociedade é heteronormativa
e não é de se estranhar a falta de compreensão ou manejo com ou
para com essas minorias. Há a presunção, errônea, de que todas as
pessoas são heterossexuais e que esse é o modo de vida “normal”.
Em Formação do Enfermeiro para o cuidado à população

301
homossexual e bissexual: percepção do discente (Nietsche et al.,
2018), discute-se os conhecimentos sobre bissexualidade em uma
pesquisa qualitativa, realizada com estudantes de graduação em
enfermagem. Os resultados indicam que os discentes apresentam
poucos conhecimentos acerca do conceito de homossexualidade e
bissexualidade, pois em sala de aula não são abordados conteúdos
sobre o tema, o que fragiliza a formação para o cuidado direcionado
a essa população. O artigo apontou também a invisibilidade e
banalização das sexualidades dissidentes.
A integralidade é um dos princípios mais importantes do
Sistema Único de Saúde (SUS). Para que ele funcione corretamente,
os profissionais da saúde necessitam ter uma formação ampla e clara
sobre os mais diversos aspectos biopsicossociais das comunidades,
pessoas, grupos e da sociedade. Mas nem sempre isso ocorre. No
artigo Cuidado às mulheres lésbicas e bissexuais na formação em
enfermagem: percepção de discentes (Nietsche et al., 2022), os autores
informam que ainda se carece de instruções durante seu período de
formação acadêmica sobre cuidado prestado às mulheres lésbicas e
bissexuais. Essa formação precária não permite que o profissional
aprenda e tenha contado com o conhecimento sobre as influências
sociais e culturais das minorias. Os autores trouxeram, em relatos
dos participantes, que ainda há o tabu sobre falar da
homossexualidade e que isso preciso ser rompido. A
homossexualidade é um termo mais conhecido, mas pouco
debatido e é preciso primeiro poder falar disso para depois abarcar
outras vivências como algo que não é feio. Logo, os participantes
bissexuais entrevistados para o estudo relataram uma invisibilidade
em sua trajetória acadêmica.

Considerações finais

O modo como a sexualidade é pesquisada numa sociedade


cisheteronormativa pode demonstrar que as diversas expressões de
gênero e sexualidade são desviantes e, nesse contexto, pessoas
bissexuais sofrem tensões, preconceitos em relação à sexualidade,
tornando o tema um elemento a ser considerado nos estudos que
enfocam as interseccionalidades. Pensar as interseccionalidades

302
REFLEXÕES SOBRE AS VIVÊNCIAS DE PESSOAS BISSEXUAIS À LUZ DA
INTERSECCIONALIDADE

significa compreender as questões sociais por outros prismas e luzes,


isto é, compreender como as disparidades encontradas na sociedade
perpassam por categorias de classe socioeconômica, etnia, raça,
sexualidade, aspectos que se relacionam e que são marcadores de
discriminações que denotam poderes historicamente delegados
para camadas sociais mais favorecidas economicamente, brancas,
heterossexuais e patriarcais que podem promover privilégios e
produzir opressão.
Entender a sexualidade humana também é dialogar com
questões de aspectos biológicos, socioculturais, afetivos,
psicológicos, ou seja, envolve diversos pontos importantes da
vivência e experiência humana que se entremeiam e se misturam.
Ser homossexual não se resume a apenas ter relações sexuais com
um indivíduo do mesmo sexo, vai além, também envolve questões
afetivas e emocionais. No mesmo sentido, a bissexualidade não se
resume a enxergar, tanto no gênero feminino e masculino ou quanto
ao não-binário, apenas o ato sexual em si, mas vivencia muitas e
ricas experiências enquanto alguém que se permite viver sua
sexualidade.
Com a revisão da literatura e análise dos textos constatou-se
que os estudos sobre a bissexualidade estão em fase embrionária,
pois não foram encontrados estudos em quantidades elevadas na
literatura nacional, mas apenas dez em uma base de dados
conceituada. Tal contexto revelou que a temática precisa de mais
investimento em pesquisas que abordem as diferentes características
das vivências de pessoas bissexuais, como os aspectos relacionados à
saúde, à educação, à justiça, à assistência social, de modo a não
deixá-las invisibilizadas.
Os estudos demonstraram que a vivência da bifobia pode
produzir prejuízos na autoestima, no desempenho acadêmico, nas
habilidades sociais, nos relacionamentos, sejam românticos ou não.
A bifobia lhes tira de sua humanidade e os caracteriza como algo
pejorativo. Ela lhes enche de preceitos e olhares que não lhes
pertencem. E, como relatado pelos artigos analisados, ela pode
partir tanto de dentro da comunidade LGBTQIA+, quanto da
sociedade em geral. Encontrou-se um consenso na literatura de que
as pessoas bissexuais podem vivenciar sofrimento por não terem sua

303
sexualidade reconhecida e, a partir dessas vivências, é possível
surgir o uso problemático de álcool e outras drogas, maiores taxas
de suicídio, dificuldades em sua formação profissional. Esse
sofrimento pode ser atenuado a partir do acolhimento social,
psicológico e afetivo das vivências únicas que as pessoas bissexuais
apresentam e quando essa interseccionalidade é compreendida e
combatida.
O atual estudo espera contribuir para as reflexões sobre a
bissexualidade e permitir que as pessoas que vivenciam essa
expressão da sexualidade sejam respeitadas e tenham acesso a uma
sociedade mais justa e que respeite a diversidade. Ele teve como
limitação a pesquisa em apenas uma base de dados, mas entende-se
que foi capaz de demonstrar as diversas possibilidades de pesquisa
envolvendo essa temática. Em estudos futuros poder-se-á pesquisar
em bases de dados internacionais, para que se tenha uma visão de
como encontram-se as pesquisas em outros países. Além disso, os
estudos futuros podem focalizar nas vivências de jovens bissexuais
em diversos ambientes, como em ambientes de trabalho, lazer e
educação para entender as múltiplas possibilidades de viver a
sexualidade na sociedade, contribuindo para a compreensão das
interseccionalidades. Espera-se que as vivências de sexualidades que
diferem da heterossexualidade e dos padrões estabelecidos na
sociedade cisnormativa e heterossexual sejam aceitos para evitar a
vivência de preconceitos que podem atravessar as trajetórias de vida
destas pessoas.

Referências

ABADE, Erik Asley Ferreira; CHAVES, Sonia Cristina Lima;


SILVA, Gisella Cristina de Oliveira. Saúde da população LGBT:
uma análise dos agentes, dos objetos de interesse e das disputas de
um espaço de produção científica emergente. Physis: Revista de
Saúde Coletiva, v. 30, n. 4, p. e300418, 2020. Disponível em:
<https://doi.org/10.1590/S0103-73312020300418>. Acesso em: 13
de setembro de 2023.

BRAUN, Virginia; CLARKE, Victoria. Using thematic analysis in


psychology. Qualitative Research in Psychology, v. 3 n. 2, p. 77-

304
REFLEXÕES SOBRE AS VIVÊNCIAS DE PESSOAS BISSEXUAIS À LUZ DA
INTERSECCIONALIDADE

101, 2006. Disponível em: <https://doi.org/


10.1191/1478088706qp063oa>. Acesso em: 13 de setembro de 2023.

CALEGARE, Marcelo Gustavo Aguilar. Processos e interatuação


psicossocial. In: CALEGARE, Marcelo Gustavo Aguilar.;
MEZZALIRA, Adinete Sousa da Costa. Processos psicossociais:
prática e reflexões sobre educação, saúde, ruralidades e política.
Volume 2. São Paulo/Manaus: Alexa Cultural e EDUA, 2021, p. 27-48.

CALMON, Diego Sousa Schiavo. Bissexualidade e gramáticas


emocionais em relatos de jovens universitários no Rio de Janeiro.
Cadernos de Campo (São Paulo-1991), v. 28, n. 2, p. 282-305, 2019.
Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/
article/view/164129>. Acesso em: 13 de setembro de 2023.

CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de


especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao
gênero. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 1, p. 171–188, jan.
2002. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0104-
026X2002000100011>. Acesso em: 15 de setembro de 2023.

COÊLHO SANTANA, Jaqueline. AKOTIRENE, Carla.


Interseccionalidade. São Paulo, SP: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. 152
p. ISBN 978-85-98349-69-5. Cadernos de Linguagem e Sociedade,
[S. l.], v. 20, n. 2, p. 270–273, 2019. Disponível em: <https://doi.org/
10.26512/les.v20i2.28624>. Acesso em: 15 de setembro de 2023.

COSTA, Angelo Brandelli; PAVELTCHUK, Fernanda; LAWRENZ,


Priscila; VILANOVA, Felipe; BORSA, Juliane Callegaro;
DAMÁSIO, Bruno Figueiredo; HABIGZANG, Luisa Fernanda;
NARDI, Henrique Caetano; DUNN, Trevor. Protocolo para Avaliar
o Estresse de Minoria em Lésbicas, Gays e Bissexuais. Psico-USF, v.
25, n. 2, abr. 2020. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1413-
82712020250201>. Acesso em: 13 de setembro de 2023.

CRUZ, Beatriz Fragoso; LIMA, Maria Lúcia Campos; CARNEIRO,


Larissa Raiza Costa. Faces da bifobia dentro (e fora) da comunidade
LGBTQIA+: reflexões a partir de narrativas de pessoas bissexuais.
Sexualidad, Salud y Sociedade (Rio de Janeiro), n. 38, p. e22207,

305
2022. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1984-6487.
SESS.2022.38.E22207.A>. Acesso em: 10 de setembro de 2023.

FERNANDES, Hugo; HINO, Paula; TAMINATO, Mônica; SILVA,


Luíza Csordas Peixinho da; ADRIANI, Paula Arquioli; RANZANI,
Camila de Morais. Violência interpessoal contra homossexuais,
bissexuais e transgêneros. Acta Paulista de Enfermagem, v. 35,
2022. Disponível em: <https://doi.org/10.37689/acta-ape/
2022AO014866>. Acesso em: 10 de setembro de 2023.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade (I): a vontade de


saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

FRANCO, Maria Laura Puglisi Barbosa. Representações sociais,


ideologia e desenvolvimento da consciência. Cadernos de
pesquisa, v. 34, p. 169-186, 2004. Disponível em: <https://www.
scielo.br/j/cp/a/Lng4HFC8fGVLmWxzDrTWCCs/?
format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 13 de setembro de 2023.

GASPODINI, Icaro Bonamigo; FALCKE, Denise. Relações entre


Preconceito e Crenças sobre Diversidade Sexual e de Gênero em
Psicólogos/as Brasileiros/as. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 38,
n.4, out. 2018. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1982-
3703001752017>. Acesso em: 18 de setembro de 2023.

JAEGER, Melissa Bittencourt; LONGHINI, Geni Nuñez;


OLIVEIRA, João Manuel de; TONELI, Maria Juracy Filgueiras.
Bissexualidade, bifobia e monossexismo: problematizando
enquadramentos. Revista Periódicus, v. 2, n. 11, p. 1–16, 2019.
Disponível em: <https://doi.org/10.9771/peri.v2i11.28011>. Acesso
em: 13 de setembro de 2023.

MAÇÃO, Izabel Rizzi. Bissexualidade: práticas, enunciados e


resistências. In: SILVA, Alacir de Araújo; VIANNA, Jorge Vinícius
Monteiro; OLIVEIRA, Luciana Domingos de; QUEIROZ, Priscila
de Oliveira (Org.). Escola e Liberdade. 1. ed. Vila Velha: Praia,
2017, v. 1, p. 121- 134.

MIGUEL, Samuel Santos Miguel Santos; DALPIZZOL, Gustavo


Dalpizzol; DEMARCO, Taisa Trombetta. Homossexualidade,

306
REFLEXÕES SOBRE AS VIVÊNCIAS DE PESSOAS BISSEXUAIS À LUZ DA
INTERSECCIONALIDADE

Homoafetividade e Bissexualidade. Anuário Pesquisa e Extensão


Unoesc Videira, v. 2, p. e13129, 2017. Disponível em: <https://
periodicos.unoesc.edu.br/apeuv/article/view/13129>. Acesso em:
18 de setembro de 2023.

MOREIRA, Lisandra Espíndula; SANTOS, Marcela Maria dos;


MARINHO, Míriam Ires Couto; SILVA, Mariana Moreira;
PIMENTA, Vitor Henrique Silva. Confusão, indecisão e incerteza:
enunciados de bissexualidade na jurisprudência. Revista Estudos
Feministas, v. 29, n. 2, 2021. Disponível em: <https://doi.org/
10.1590/1806-9584-2021v29n255739>. Acesso em: 13 de setembro
de 2023.

NIETSCHE, Elisabeta Albertina; TASSINARI, Tais Tasqueto;


RAMOS, Tierle Kosloski; SALBEGO, Cléton; COGO, Silvana
Bastos; ANTUNES, Andrei Pompeu; ILHA, Aline Gomes. Cuidado
às mulheres lésbicas e bissexuais na formação em enfermagem:
percepção de discentes. Educação em Revista, v. 38, n. 20, 2022.
Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0102-469826442>. Acesso
em: 13 de setembro de 2023.

NIETSCHE, Elisabeta Albertina; TASSINARI, Tais Tasqueto;


RAMOS, Tierle Kosloski; BELTRAME, Giana; SALBEGO, Cléton;
CASSENOTE, Liege Gonçalves. Formação do enfermeiro para o
cuidado à população homossexual e bissexual: percepção do
discente. Revista Baiana de Enfermagem‫‏‬, [S. l.], v. 32, 2018.
Disponível em: <https://doi.org/10.18471/rbe.v32.25174 >. Acesso
em 13 de setembro de 2023.

RODRIGUES, Julliana Luiz; FALCÃO, Marcia Thereza Couto.


Vivências de atendimentos ginecológicos por mulheres lésbicas e
bissexuais: (in)visibilidades e barreiras para o exercício do direito à
saúde. Saúde e Sociedade, v. 30, n. 1, 2021. Disponível em: <https:/
/doi.org/10.1590/S0104-12902021181062>. Acesso em: 23 de
setembro de 2023.

ROTHER, Edna Terezinha. Revisão sistemática X revisão narrativa.


Acta Paulista De Enfermagem, v. 20, n. 2, p. v–vi, 2007. Disponível
em: <https://doi.org/10.1590/S0103-21002007000200001>. Acesso
em: 20 de setembro de 2023.

307
SANTOS, Cinthya Giselle Coutinho Oliveira. Da invisibilidade ao
reconhecimento: experiência de roda de conversa e validação da
bissexualidade em São Paulo. BIS. Boletim do Instituto de Saúde,
v. 19, n. 2, p. 77-85, 2018. Disponível em: <https://doi.org/10.52753/
bis.2018.v19.34594>. Acesso em: 14 de setembro de 2023.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica.


Revista Educação e Realidade, v. 15, n. 2, jul/dez, p. 71-99, 1995.
Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/index.php/
educacaoerealidade/article/view/71721>. Acesso em: 14 de
setembro de 2023.

SOUZA, Carolina de; OLIVEIRA-CARDOSO, Erika Arantes et. al.


A. Violência contra mulheres lésbicas/bissexuais e vulnerabilidade
em saúde: revisão de literatura. Psicologia, Saúde e Doença, v. 22,
n. 2, p. 437-453, 2021. Disponível em: <https://doi.org/
10.15309/21psd220210>. Acesso em: 13 de setembro de 2023.

Mini currículo

Victor Lucas da Silva Carvalho


Bacharel em Psicologia da Universidade Federal do Amazonas.
Possui interesse em temas: sexualidade, bissexualidades,
interseccionalidade. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/
4305745839507282 E-mail: [email protected]

Paulo Guilherme da Encarnação Matos


Graduando no curso de Psicologia da Universidade Federal do
Amazonas. Graduado em Jornalismo. Membro do Núcleo de Saúde,
Sexualidade e Sociedade da UFAM (NÓS/UFAM). Possui interesse
nos temas: Saúde mental, Políticas públicas, Cultura, Educação,
Gênero e Sexualidade. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/
5244765547543157 E-mail: [email protected]

Gisele Cristina Resende


Psicóloga. Pós-doutora pela Universidade de Brasília, Doutora em
Ciências/Psicologia em Saúde pela Universidade de São Paulo.

308
REFLEXÕES SOBRE AS VIVÊNCIAS DE PESSOAS BISSEXUAIS À LUZ DA
INTERSECCIONALIDADE

Docente na Universidade Federal do Amazonas. Possui interesse em


temáticas: orientação profissional e de carreira, avaliação
psicológica, saúde e desenvolvimento humano. Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/0524959272545250. E-mail:
[email protected]

Breno de Oliveira Ferreira


Psicólogo e pedagogo sanitarista com Doutorado em Saúde Coletiva
pelo Instituto Fernandes Figueira/FIOCRUZ. Docente na
Universidade Federal do Amazonas. Possui interesse em temáticas:
saúde das populações LGBTQIA+; gênero, sexualidade; equidade
em saúde e direitos humanos; feminismos interseccionais;
vulnerabilidades e psicologia da saúde. Currículo Lattes: http://
lattes.cnpq.br/1349420367392809. E-mail: [email protected]

309
Interseccionalidades e produção de subjetividades
ORGANIZAÇÃO

Iolete Ribeiro da Silva


Doutora em Psicologia, Professora Titular da
Universidade Federal do Amazonas (UFAM), credenciada
como docente no Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da UFAM, Programa de Pós-Graduação em
Educação da UFAM. Bolsista Produtividade CNPq.
Coordenadora do Projeto Itinerários e condições de
desenvolvimento de jovens estudantes no ensino superior:
desafios para a permanência (Edital Nº 005/2022 -
HUMANITAS CT&I FAPEAM). Lattes: http://lattes.
cnpq.br/6024598140248335 E-mail: ioleteribeiro@ufam.
edu.br

Isabel Cristina Fernandes Ferreira


Doutora em Educação pela Universidade Federal do
Amazonas (UFAM). Pesquisadora do grupo de pesquisa
Subjetividades, povos amazônicos e processos de
desenvolvimento humano (FAPSI/UFAM). Pesquisadora
dos projetos PROCAD/Amazônia-CAPES e
HUMANITAS/FAPEAM. Lattes: http://lattes.cnpq.br/
2527241349294798 - E-mail: [email protected]

Adria de Lima Sousa


Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de
Santa Catarina. Pesquisadora do grupo de pesquisa
Subjetividades, povos amazônicos e processos de
desenvolvimento humano (FAPSI/UFAM). Professora da
Faculdade de Psicologia da UFAM. Pós-doutoranda pelo
Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFAM.
Bolsista HUMANITAS/FAPEAM. Lattes: http://lattes.
cnpq.br/2255133603023472 - E-mail adriapsique@gmail.
com

Regina Lúcia Sucupira Pedroza


Professora Associada da Universidade de Brasília no
Instituto de Psicologia. Orientadora de mestrado e
doutorado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia
do Desenvolvimento e Escolar (PGPDE) e no Programa de
Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania.
Coordenadora na UnB do Projeto PROCAD/CAPES-
Amazônia. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7232661674377520
310
- E-mail: [email protected]
Interseccionalidades e produção de subjetividades

ÍNDICE REMISSIVO DE AUTORES

A Borges, Juliana 109


Abe, Stephanie Kim 133 Bourdieu, Pierre 195
Abramovay, Miriam 263 Braga, Bruno Miranda 154
Adichie, Chimamanda Ngozi 133 Brasil, Cristina Índio do 264
Aguiar, Claúdia Azevedo 198 Brito, Alice Crespo 199
Aguiar, Samara Gomes 59 Brito, Carlos Emílio Bessa de 154
Akerman, Marco 241 Brito, Cristiane de Sousa 35
Akotirene, Carla 35, 109 Brito, Deusa Meriam da Silva 202
Alcântara, Lorena da Motta 202 Brito, Laura Elisabete Figueiredo 197
Alcantara, Thays Sturzeneker de 199
Alemany-Anchel, María José 201 C
Alencar, Jaqueline Kelândia Ferreira 109 Caetano, Ivone Ferreira 285
Alkmim, Antônio Carlos 267 Caicedo-Roa, Mônica 197
Almeida, Aline 263 Calegare, Fernanda P. Pereira 13; 115, 136
Almeida, Silvio 133, 195 Calegare, Marcelo Gustavo Aguilar 287
Almeida, Sílvio Luiz 109 Campos, Camilla Carolina Canedo 199
Alves, Cândida Beatriz 9 Campos, Deise 200
Alves, Christiane Luci Bezerra 109 Capella, Ana Claudia N 265
Alves, Kristine Renata Medeiros 60 Cardoso, Ivanilda Amado 135
Alves, Rainele Alana Lima 12; 65, 92 Cardoso, Lara Rosa Cardoso e 202
Alves, Rosemary Amanda Lima 12; 65, 92 Carneiro, Suelaine 241
Alves, Shirley de Almeida 35 Carneiro, Sueli 109; 197
Alvesson, Mats 61 Carone, Iray 154
Amaral, Felipe Bueno 136 Carreira, Denise 265
Amaral, Tarsila do 240 Carvalho Filha, Francidalma Soares 201
Amorim, Maria Helena Costa 200 Carvalho, Márcia Lazaro de 200
Anastasiou, Lea das Graças Camargos 241 Carvalho, Maria Regina Viveiros de 135
Andreu-Pejó, Laura 201 Carvalho, Paula Galdino Cardin de 198
Andrezzo, Halana Faria de Aguiar 198 Carvalho, Priscila C. Albuquerque 198
Anjos, Maria Edna dos Santos Coroa dos 38 Carvalho, Victor Lucas da 15; 291, 308
Aragão, Camylla Rebbeca Bezerra de 202 Carvalho, Vitória Lopes Dornelas de 199
Araújo, João Raphael Calil Lemos 203 Castro, Elisa Guaraná 285
Araújo, Luis Gustavo Costa 109 Castro, Mary Garcia 263
Arroyo, Miguel Gonzalez 134 Castro, Rosane Michelli de 135
Assis, Jussara Francisca de 195 Cavalcante, Rejane Silva 200
Cavenaghi, Suzana 265
B Cervera-Gasch, Agueda 201
Bae, Michelle 60 Chaves, Maria do Perpétuo S. Rodrigues 37
Bakhtin, Mikhail Mikhailovich 60 Coimbra, Carolina Vanessa da Silva 197
Bandeira, Lourdes Maria 197 Coletiva Banzeiro Feminista 241
Barbato, Silviane 62 Coletivo Negro Alexandrina 241
Barbato, Silviane Bonaccorsi 61 Collins, Patricia Hill 241
Barbosa, Rosimar Morais 60 Conte, Isaura Isabel 285
Barboza, Luciana Pereira 195 Cooper Owens, Deirdre 197
Basquiat, Jean-Michel 241 Cordeiro, Ricardo Carlos 197
Bastos, Maria Helena Camara 109 Correia, Ricardo Lopes 241
Beauvoir, Simone 285 Correia, Rita Nunes 197
Benchimol, Samuel 154 Costa, Ana Cecilia Oliveira 197
Bento, Cida 154 Costa, Karla Adriana Oliveira da 197
Bento, Maria Aparecida Silva 134, 154 Costa, Samira Lima da 241
Bilge, Sirma 241, 264 Crenshaw, Kimberle 35; 198; 242
Biroli, Flávia 60 Crooks, Natasha 199
Bittencourt, Sonia Duarte de Azevedo 200 Cruz, Isabel Cristina Fonseca da 198

311
Interseccionalidades e produção de subjetividades

Cruz, Mércia Santos 198 Gigante, Denise Petrucci 200


Cruz, Tereza Almeida 286 Goldin, Claudia 61
Cunha, Antonio José Ledo Alves da 200 Gomes, Irene 113
Cunha, Manuela Carneiro da 110 Gomes, Maria Carmen Aires 266
Cunha, Sínthia Constancia Mar da 36 Gomes, Nilma Lino 135
Curi, Paula Land 197 Gonçalves, Bruno Simões 286
Gonçalves, Larissa Griffo 199
D González Chordá,Victor Manoel 201
Da Vinci, Leonardo 242 Gonzalez, Lélia 242
Danner, Fernando 1011 Gonzalez, Maria Fernanda 62
Daou, Ana Maria Lima 154 González-Chordá, Victor Manuel 201
David, Marcos José Vilchez 202 Goulart, Vincent Pereira 286
Davis, Angela 111; 198 Gouvêa, Abilene do Nascimento 202
Davis, Dána-Ain 198 Grosman, Leticia Uhling 199
Delari Jr., Achilles 36 Guimarães, André Rodrigues 35
Depuydt, Diana Oliveira dos Santos 197 Guimarães, Nadya Araujo 286
Diniz, Carmen Simone Grilo 201 Gutiérrez-Cascajares, Lourdes 201
Diniz, Simone Grilo 198
Domingue, Andrea D. 61 H
Dos Santos, Ariana 61 Hall, Stuart 155
Duarte, Newton 36 Ham, Cristopher 266
Dueilling, Yvonne 61 Haraway, Donna 266
Duhigó, Tukano 242 Haynes, Chayla 62
Duraes, Ivan Oliveira 111 Heleno, Maria Geralda Viana 38
Heller, Agnes 36
E Hemphill, Nefertiti Ojinjideka 199
Erbe, Katherine 199 Henriques, Tatiana 199
Esteves-Pereira, Ana Paula 20 Heringer, Rosana 265
Hill, Michael 266
F Hirata, Helena 286
Fanon, Frantz 111, 135 Holanda, Sérgio Buarque de 112
Faria, Mateus Aparecido de 266 Holston, James 200
Farias, Erika 135 Hooks, Bell 199, 242
Federici, Silvia 61 Hoyt, Crystal L. 61
Ferguson, S. Alease 62
Fernandes, Florestan 111 I
Ferreira, Breno de 15; 291, 308 Iglesias, Clara Dinalli Ornellas 199
Ferreira, Isabel Cristina Fernandes 5; 6; Iglesias-Casás, Susana 201
11; 17, 41; 36; 310 Irffi, Guilherme 198
Ferreira, Jaqueline 203
Ferreira, Vitoria de Miranda 199 J
Figueiredo, Barbara Maria Dias 111 Jakimil, Vanessa Campos de Lara 267
Filho, Walter Fraga 111 Jannuzzi, Paulo de Martino 267
Fitter, Fareeha 199 Jardim, Danubia Mariane Barbosa 202
França, Jairo Maia 36 Jesus, Marcineuza Santos de 37
França, Júlia Marjorie Lima 203 Jesus, Rodrigo Ednilson de 267
França, Rômulo Ataides 61
Frankenberg, Ruth 155 K
Freire, José Ribamar Bessa 155 Katz, Lawrence Francis 61
Freire, Paulo 135; 286 Kerr, Sari Pekkala 61
Freitas, Jordânia 113 Kessee, Nicollette 199
Freitas, Marcela Távora de 199 Key, Susan 62
Frias, Paulo Germano de 200 King, Toni C. 62
Friche, Amélia Augusta de Lima 200 Koenig, Mary Dawn 199
Kosik, Karel 37
G Krenak, Ailton 15
Gamenha, Socorro 12; 65, 92 Kubiak, Fabiana 202
Garcia, Í. 242 Kuziemko, Ilyana 61

312
Interseccionalidades e produção de subjetividades

L N
Lansky, Sônia 200 Nascimento, Abdias 242
Leal, Maria do Carmo 200 Nascimento, Abdias do 112
Lebrão, Susana Marraccini Giampietri 38 Nascimento, Enilda Rosendo 200
Leitão, C. Lopes 12, 13; 65, 93; 179, 204 Nascimento, Ketre Iranmarye Manos 202
Leite, Franciéle Marabotti Costa 200 Neves, Cleuler Barbosa das 112
Leite, Maria Jorge dos Santos 112 Niy, Denise Yoshie 198
Leite, Tatiana Henriques 200 Nóbrega, Juliana da Silva 15; 269, 288, 289
Lemos, Cassandra Torres 37 Nogueira, Conceição 202
Leonarde, Charlini da Rocha 287 Novaes, Carla Dulcirene Parente 202
Liese, Kylea L 199 Novais, Danielle Fiorin Ferrari 199
Lima, Angélica de Souza 15; 269, 287, 289 Nucci, Marina Fisher 200
Lima, Jéssica Fabrícia Silva 37
Lima, Kelly Diogo de 201 O
Lima, Layanne 62 Oliveira, Beatriz Muccini Costa 202
Lima, Telma Cristiane Sasso de 203 Oliveira, Enio Walcácer de 112
Lima, Vitória de Souza 202 Oliveira, Juliana Lana Querino de 202
Lira, Talita de Melo 357 Oliveira, Márcio de 14; 205, 225
Lopes, Ninfa Carina Costa 197 Oliveira, Maressa Melo 199
Lopes, Tatiana Coelho 202 Oliveira, Megg Rayara Gomes de 243
Loureiro, Violeta Refkalefsky 155 Oliveira, Raescla Ribeiro de 14; 227, 243
Luis, Mayara Alves 200 Olivetti, Claudia 61
Lukács, Georg 37
Luz, Itacir Marques 368 P
Lyra, Tereza Maciel 201 Paes Loureiro, João de Jesus 156
Paes, Valquiria Normanha 59
M Patrício, Letícia Moura da Silva 13; 179, 204
Machado, Tadeu Lopes 61 Pearson, Pamela 199
Maciel, Ethel Leonor Noia 200 Pedroza, Regina Lúcia S. 5; 6; 11; 17, 41; 310
Maia Neto, Melquíades F. Gois 12; 95, 113 Peixoto, Julli Martins 203
Manzi, Maya 38 Pereira, Alessandra dos Santos 13; 137, 157
Marciano, Amanda Silva 201 Pereira, Kellen Cristine 203
Marcondes, Mariana Mazzini 242 Pereira, Mayara Cândida 201
Marques, Emanuele Souza 200 Pinheiro, Raissa Maria Albuquerque 202
Marra, Camilla Bonelli 197 Pinheiro, Valéria Feitosa 109
Martins, Francisco André Silva 136 Ponte, Adrianne Raposo 202
Martins, Henrique de Araújo 13; 159, 178 Portella, Yammê 200
Martins, Lígia Márcia 38
Martins, Paulo de Sena 267 Q
Mascarello, Keila Cristina 197 Quijano, Aníbal 288
Matos, Paulo G. da Encarnação 15; 291, 308
Matta, Cristiane Maria Barra 38 R
Mattar, Laura Davis 201 Rabelo, Isadora de Oliveira 203
Mattos, Leandra Iriane 112 Ramos, Tammy Rosas 156
Mbembe, Achille 112 Reed, Luecendia 199
Mello, Marcella da Silva 111 Reis, Gabriela Maciel dos 202
Mena-Tudela, Desirée 201 Reis, Sônia Maria Alves de Oliveira 59
Menezes, Fabiana Ramos de 202 Resende, Augusto César Leite de 203
Mesquita, Rogério Nogueira 287 Resende, Gisele Cristina 15; 291, 308
Mietto, Gabriela 62 Resnick, Mitchel 243
Modena, Celina Maria 266 Ribeiro, Djamila 112; 203
Montino, Mariany Almeida 60 Ribeiro, Mariana Thomaz de Aquino 197
Moraes Filho, Iel Marciano de 201 Ricardo, Helenice Aparecida 243
Moraes, Maria Laura Brenner 155 Rocha, Nathalia Fernanda Fernandes da 203
Mota, Alessivânia 195 Rodriguez-Arrastia, Miguel 201
Mota, João Luís do Nascimento 109 Ropero-Padilla, Carmen 201
Munarim, Antônio 287 Rua, Maria das Graças 263

313
Interseccionalidades e produção de subjetividades

Rubin, Gayle 62 W
Rutherford, Julienne N 199 Waiselfisz, Júlio Jacobo 263
Weschenfelder, Noeli Valentina 285
S Witoto, Wanda 12; 65, 92
Salazar, João Pinheiro 156
Sales, Aline de Abreu Silvestre 202 Z
Salgado, Heloisa de Oliveira 198 Zamora, Maria Helena Rodrigues Navas 113
Santos, Boaventura de Souza 288 Zanello, Valeska 63
Santos, Caroline 267 Zhang, Wenqiong 199
Santos, Elizier 113 Zucco, Maise Caroline 14; 245, 268
Santos, Francisco Jorge 156
Santos, Goiacymar Campos dos 201
Santos, Tatiana de Lima Pedrosa 156
Schucman, Lia Vainer 156
Schwarcz, Lia Moritz 113
Secchi, Leonardo 267
Sena, Débora Napoleão de 14; 205, 225
Silva, Ana Verônica Rodrigues da 203
Silva, Antônio Augusto Moura da 200
Silva, Caní Jakson Alves da 12; 95, 114
Silva, Helena Clécia Barbosa da 203
Silva, Iolete Ribeiro da 5; 6; 11, 12, 13; 17,
41; 65, 93; 179, 204; 310
Silva, Jordany Molline 203
Silva, Karolayne Rodrigues 13; 179, 204
Silva, Maria das Graças S. Nascimento 287
Silva, Raimundo Nonato Pereira da 156
Silva, Tomaz Tadeu da 136
Simões, André 267
Simões, Renata Duarte 287
Simon, Stefanie 61
Siqueira, Arnaldo Augusto Franco de 203
Sousa, Adria de Lima 5; 6; 11; 17, 41; 310
Sousa, Aline de Lima 13; 197, 204
Souza, Jessé 113
Souza, Neusa Santos 136
Sovik, Liv 156
Spink, Mary Jane 288
Starling, Helisa Murgel 113
Stewart, Karie 199
Steyn, Melissa 156

T
Teixeira, Diana do Carmo 113
Torres, Marck de Souza 12; 159, 178
Trindade, Gabriela Blanco de Morais 202
Tussing-Humphreys, Lisa 199

U
Umberlandia, Cabral 113

V
Valero-Chilleron, María Jesús 20
Veiga, C. G. 136
Venturi, Gustavo 268
Viana, Ana Luiza 268

314
Interseccionalidades e produção de subjetividades

315

Você também pode gostar