Cemitérios Joao G Cendretti

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

INSTITUTO DE ARTES E DESIGN


Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens

JOÃO G. CENDRETTI

Cemitérios:
Notas sobre a estória, o silêncio e elefantes.

Juiz de Fora
2024
João G. Cendretti

Cemitérios:
Notas sobre a estória, o silêncio e elefantes.

Artigo apresentado como trabalho final da disciplina


Tópicos em Artes, Cultura e Linguagens III – História da
arte como história das exposições: circuito, instituições,
crítica, curadoria, acervos, coleções e arquivos.
Ministrado pela Prof. Dr. Renata Zago.

Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos Gonçalves de Oliveira Júnior

Juiz de Fora
2024
RESUMO

O presente artigo busca discorrer sobre a ideia de estória presente no ensaio A teoria da bolsa
da ficção de Ursula K. Le Guin e analisar sobre as relações entre cinema e colonialismo a
partir do ensaio. Usando dois filmes como objeto - Los Silencios de Beatriz Seigner e
Cemetery de Carlos Casas, o artigo busca analisar e relacionar as modalidades de estória
trabalhada nos filmes e em seus arredores, assim como explorar o conceito de Orientalismo
de Edward Said na busca de ampliar modos contracoloniais de contar estórias.

Palavras-chave: Estória; Colonialismo; Orientalismo; Cinema de Aventura;

ABSTRACT

This article seeks to discuss the idea of story present in the essay The theory of the bag of
fiction by Ursula K. Le Guin and analyze the relations between cinema and colonialism from
the essay. Using two films as object - Los Silencios by Beatriz Seigner and Cemetery by
Carlos Casas, the article seeks to analyze and relate the modalities of story worked in the
movies and their surroundings, as well as exploring the concept of Orientalism by Edward
Said in the search to expand counter-colonial ways of telling stories.

Key-words: Story; Colonialism; Orientalism; Adventure Cinema;

Importa quais estórias contam estórias, quais conceitos pensam


conceitos. [...] todas estórias são grandes demais e pequenas demais.
(HARAWAY, Donna. 2019. p.40.)
Da Estória
Na busca incessante por atribuir significado ao mundo, contamos histórias. Estas
narrativas, mediadas por pinturas rupestres, escritos cuneiformes ou imagens projetadas,
entrelaçam-se em um princípio fundamental: o encontro com o outro. Esse encontro -
pós-colonial, por sua vez, é profundamente marcado por narrativas basilares de caráter
colonial e extrativista. A natureza – e o outro – neste contexto, são percebidos como grandes
bestas a serem adestradas. “Tanto o adestrador quanto o colonizador começam por
desterritorializar o ente atacado quebrando-lhe a identidade, tirando-o de sua cosmologia,
distanciando-o de seus sagrados, impondo-lhe novos modos de vida e colocando-lhe outro
nome.” (SANTOS, Antônio Bispo dos. P.12)
O outro então se transforma na besta, e a besta vira monstro. Recorrendo à
Paleontologia podemos explicar a consolidação históricas dessas imagens (que eram
entendidos como bestas naturais, e não criaturas de dimensão outra), ossadas de
elefantes-pigmeus que sua cavidade nasal suportaria um olho, como ciclopes, ossos imensos
supra-humanos, talvez pertencentes a gigantes, e crânios de répteis enormes, dinossauros ou
dragões? Mas para além da fabulação acima de mortalhas, a consolidação da besta obteve
outra significância nas narrativas ocidentais.
A imagem da besta se aproxima categoricamente com a imagem do monstro. O
monstro, na literatura folclórica e de aventura, se configura como uma metáfora do que
antagoniza o espírito humano-ocidental. A monstruosidade encarna uma ameaça existencial à
vida social, subvertendo o projeto humano. O monstro, como “forma extrema de alteridade,
[...] é sempre definido a partir de uma comunidade de não-monstros [...] o outro, o estranho, o
estrangeiro, o ‘inimigo natural’ pronto a encarnar o Mal e contaminar, com sua simples
presença, a humanidade”. (NAZÁRIO, Luiz. 1998, p. 29.) Os monstros estão
geograficamente associados ao conceito de fronteira. Eles habitam um espaço periférico,
marginal, em todas as tradições culturais, “[...] Eles emergem de uma espécie de exílio
metafórico, de lugares fronteiriços. [...] Onde quer que o povo ou uma cultura particular
demarque como espaço selvagem, aculturado, inexplorado, há monstros”. (GILMORE,
David D. 2003, p. 192. Tradução livre.)1
Mas pensar na imagem, ou história, das bestas orientadas ao sul, ao mar, à natureza,
nos faz retomar ao estatuto primordial do que compõe uma estória. Nesse caso, Estória com

1
Do original: “[...] [they] emerge from a kind of metaphorical exile, from borderline places. [...] whatever the
people in a particular culture demarcate as wilderness, as non- cultural space, as unexplored territory, there are
monsters.” (GILMORE, David D. 2003, p. 192.)
E, como a diferença na língua inglesa entre Story e History. Esse termo, não inaugurado -
mas precisamente exemplificado pela obra “A teoria da bolsa da ficção” de Ursula Le Guin,
se faz necessário tanto para entender como as estórias são contadas, quanto para contar outras
estórias, fora da do herói. Ursula remonta a um tempo longínquo e como as estórias de
coletor e caçador se configuram.
É difícil contar uma história realmente emocionante de como
arranquei uma semente de aveia selvagem da casca, e depois mais
uma, e mais outra e depois mais uma, e então cocei minhas picadas de
mosquito, e Ool disse algo engraçado, e de como fomos ao riacho,
bebemos um pouco de água e observamos as salamandras por um
tempo, até eu encontrar outro campo de cereais… Não, não se
compara, essa minha história não consegue competir com aquela que
narra o modo como enfiei minha lança profundamente no titânico
flanco peludo enquanto Ooh, empalado por uma enorme presa, se
contorcia gritando, com o sangue jorrando por toda parte em torrentes
carmesins, e Boob foi esmagado como geleia quando o mamute caiu
sobre ele, enquanto eu atirava minha infalível flecha diretamente em
seu cérebro através de seu olho. (LE GUIN, Ursula K. 2021. p.
17-18)

Le Guin também perpassa sobre a abrangência desse grande herói na cultura visual,
Arte Rupestre2. E constata que embora a epopeia da caça - cristalizada em paredes grutas,
possa indicar a importância da carne, não foi ela que fez a diferença, foi a estória. (LE GUIN,
Ursula K. 2021. p. 17). Mas essa história já foi contada, há espaço para outras, a história das
bolsas, vasos, garrafas e cestos.
2
Arte rupestre (do latim ars rupes “arte sobre rocha”) ou registro rupestre comporta um amplo conjunto de
imagens produzidas sobre suportes rochosos abrigados (cavernas e grutas) ou ao ar livre (paredões e lajedos).
(VIANA, Verônica; BUCO, Cristiane; SANTOS, Thalison dos; SOUSA, Luci Danielli. 201, p. 1.)
Do Silêncio
Tomo aqui um exemplo dessas outras formas de contar, contar a pequena estória,
não a do herói, o longa Los Silencios (Beatriz Seigner, 2018.). Dentro da bruma, uma canoa
solitária navega em baixa luz pelo Rio Amazonas e atraca na Ilha da Fantasia, conjunto de
palafitas no limiar da terra firme e o alagado, entre três países - Brasil, Colômbia e Peru, e em
nenhum deles, assim como Amparo e Fábio, assim como os habitantes daquela ilha, num
local que não pertence a nenhum local, mas é afetados por todos. Los Silencios retrata locais e
sujeitos liminares, entre passados traumáticos e futuros incertos, o filme se institui num
presente longo, dilatado. A palafita é o local do outro, do monstro, da besta… a palafita é o
terreiro que se inunda em águas superabundantes. Viver sob as águas e sobre a terra, onde
passam pessoas, animais - terrestres e aquáticos, onde passam fantasmas, e conflui num
caminho sinuoso.

Pouca coisa acontece no filme, muita coisa acontece em sua estória. Ou melhor, as
estórias: a estória da brisa que bate à porta, do vento que faz as madeiras rangerem, da voz
dos pássaros entrando pelas frestas, da água que bate no assoalho, do fogo que farfalha. Essa
ilha apátrida, é paisagem ruidosa de suas estórias, de seus habitantes vivos e não vivos, de
humanos e mais que humanos, socialidades marcadas por ações intencionais e não
intencionais, políticas e financeiras. Diante da grande tarefa que talvez a proposta do filme
imponha: desembolar o emaranhado político da tripla fronteira e seus imigrantes, vindos de
conflitos políticos da Colômbia; E desenvolver a trama da especulação imobiliária sobre a
Ilha; Seigner resolve colocar fora de cena o retrato da violência - política e simbólica, essa
violência circunda o filme, intervém em locais, age em memórias bruscas, mas não está dada
como o enredo. Como cita Anna Tsing:
Esta é uma estória conhecida. É a estória dos pioneiros, do
progresso e da transformação de espaços “vazios” em campos de
recursos industriais. [...] A industrialização se mostrou uma bolha de
promessas, seguida pela destruição de meios de vida e a devastação
de paisagens. (TSING, Ana. 2015. p. 60.)

Seigner constrói uma rede de pequenas histórias que se atravessam e se contaminam.


O filme caminha para os cantos, para as margens, para o limiar fantasma. Como o título
sugere, produz um silêncio profundo sobre o conflito armado, aqui envolto numa camada
translúcida de poesia e detalhes do cotidiano, através da qual a realidade só pode penetrar
como uma luz vacilante e furtiva. Que se expande em uma lacuna que coloca em contato o
real com o imaginário, o fantástico e principalmente o fantasmático.

O filme procura o sutil, o emocional cru, fugindo de uma ficção melodramática e se


colocando em um lugar quase meditativo de entender o que o circula. E isso culmina em seu
final neon - quando Amparo exuma os pertences de seu marido e sua filha, alegorizando o
imaginário e a cosmovisão indígena que transpassa o filme e seus entes. O neon, que destoa
dos tons naturalistas que a fotografia do filme trabalha, se coloca como uma mobilização
entre o real e o fantasmático. Tomo aqui de aproximação Jaider Esbell, que conta a história da
cosmologia Makuxi através de suas obras.
A energia das corres me alimenta a alma. Minha alma é
plenamente colorida, pois assim me mostra meu avô ancestral
Makunaimî. Somos de uma linhagem que tem na transformação as
bases de nossa forma. As cores são, portanto, assim como o som de
nossa música, nossa plataforma de existir e proporcionar existência.
Já estivemos em outros momentos diante de total escuridão e foram
os fragmentos de luz que nos guiaram nessa travessia. (ESBELL,
Jaider. 2021.)
Do Oriente
Em contraste, uma obra que conta uma grande estória de maneira pequena é Cemetery
(Carlos Casas, 2019). Numa espécie de colisão conceitual de Tarzan of The Apes (Scott
Sidney, 1918.) e La région centrale (Michael Snow, 1971.), Casas concebe o grande mito que
circunda o sul geopolítico com uma pequena-grande estória de procura ao cemitério dos
elefantes.3 Mas para entender esse fantasma contextual é preciso assimilar a abrangência do
Orientalismo nessas narrativas. O orientalismo, segundo Edward Said, se define como “um
modo de escrita, visão e estudo regularizado (ou orientalizado), dominado por imperativos,
perspectivas e preconceitos ideológicos, ostensivamente adequados ao Oriente”. Said diz:
Juntamente com todos os demais povos variadamente
designados como atrasados, degenerados, incivilizados e retardados,
os orientais eram enquadrados em uma estrutura concebida a partir do
determinismo biológico e da admoestação político-moral. O Oriente
foi assim ligado a elementos da sociedade ocidental (delinquentes,
loucos, mulheres, pobres), que tinham em comum uma identidade que
era mais bem descrita como lamentavelmente estrangeira. Os
orientais raramente eram vistos ou olhados; a visão passava através
deles, e eram analisados não como cidadãos nem como um povo, mas
como problemas a serem resolvidos, ou confinados, ou – posto que as

3
O cemitério de elefantes é um lugar onde, segundo a lenda, os velhos elefantes instintivamente se dirigem quando atingem
uma certa idade. Segundo esta lenda, estes elefantes morreriam sozinhos, longe do grupo. Se tornando um local desejado por
contrabandistas de marfim para seu comércio ilegal.
potências ocidentais cobiçavam abertamente o território deles –
conquistados. (SAID, Edward W.1998. p.207)

A retórica orientalista então se foca na concepção de que o “Oriente" não é capaz de


se representar, seu imaginário é muito confuso e animista, logo é papel do "Ocidente"
representá-lo e configurá-lo na teia cultural vigente, reafirmando sua posição subjetiva como
basilar e primitiva, enquanto as potências imperialistas seguem no topo dessa estrutura
cultural. Assim como a monstruosidade é verificada pelos não-monstros, a orientalidade é
significada pela Europa, o “Oriente" em si é uma invenção européia , funcionando para ela
como um museu vivo de socialidades extintas, remarcando um retorno à antiguidade
imaginária marcada por narrativas evolucionistas tendo o Ocidente como fluxo natural do
espírito humano e o Oriente como um local/metáfora de um “passado imaginado”,
intensificando cada vez mais a narrativa colonial da cultura ocidental para/com os países do
Sul Geopolítico.4
Shangri-La é um lugar fictício nas Montanhas Kunlun. Shangri-La é descrito como
um vale místico e harmonioso, e tornou-se sinônimo de qualquer paraíso terrestre,
particularmente uma utopia mítica dos Himalaias - uma terra duradoura e feliz, isolada do
mundo, o que fez a cidade mítica se tornar motivo diretos e indiretos de diversos filmes
(principalmente de aventura). Um paralelo a Shangri-Lá seria o Eldorado americano ou a
Atlantis afundada, sempre funcionando como esse sítio utópico que guarda tesouros e
riquezas.

Do Cemitério
Um paralelo em nome e estilo ao filme de Casas é Cemetery of Splendour
(WEERASETHAKUL, Apichatpong. 2015), que em vez de trabalhar a superfície da
história, a superfície do espaço e a superfície do drama e da realidade, penetra o subterrâneo.
O cenário carregado do filme é emblemático em sua abordagem: situado no que já foi uma
escola, as construções agora são usadas como um hospital temporário, com a construção
iniciada fora para mais uma encarnação. Mais tarde, aprendemos que há eras este local foi um
"cemitério de reis" sobre o qual foram travadas batalhas pela supremacia da cidade de Khon
Kaen, no nordeste da Tailândia. Esta mistura casual de nostalgia e pressentimento na

4
O sul global é uma expressão que entende a ideia de nações em processo de desenvolvimento. Geralmente se
refere a países que compartilham uma história marcada por colonialismo, neocolonialismo e uma organização
social e econômica com significativas disparidades em termos de qualidade de vida, expectativa de vida e acesso
a recursos.
sobreposição das funções de um edifício discreto ao longo do tempo é uma metonímia do
enterro de histórias de um povo, uma supressão empurrada para os recessos escuros de
sonhos, pesadelos e seus mundos fantasmas.

Abaixo estão os demônios: o hospital de fato abriga soldados tailandeses assediados por uma
doença do sono insolúvel, e de fato as linhas entre sonho e história, pesadelo e memória são
sutilmente transgredidas pelo filme e tornadas quase indistinguíveis. Quando os médicos
percebem que nada pode ser feito para acordar os soldados, eles são ligados em máquinas
brilhantes que os ajudam a "dormir com bons sonhos". Se tais máquinas são necessárias, que
sonhos eles estão tendo? E o que viram quando acordados?
É a partir desses mitos, ou estórias, que Carlos Casas começa seu trabalho de campo
em “Cemetery (Archive Works)” desenvolvido como uma pesquisa para o filme, utilizando
como base os filmes de aventura clássicos, adaptações literárias de aventura e filmes exóticos
de aventura dos anos 30, 40 s, 50 s, 60 s, o período de ouro da aventura no cinema. Ao trazer
como referência esse período, Casas trabalha num âmbito possivelmente contracolonial.

Acredito que estamos vivendo o mais radical dos tempos


como espécie. Bloqueados por nossa incapacidade de agir contra
nossos maus tratos acelerados ao planeta, vítimas das mudanças
climáticas e agora empurrados para terra por ondas pandémicas,
estamos invadindo o Antropoceno. Acredito que, se não mudarmos
nosso curso, nos próximos anos a maioria das espécies e ambientes
que agora sabemos que desaparecerão. Nossa relação com a natureza
atingiu um pico à medida que nossa população cresce e o avanço da
civilização e da tecnologia remodela nosso planeta. (CASAS, Carlos.
2020. Tradução livre.)5

Casas desenvolve em seu livro uma extensa pesquisa visual de arquivo formatada
em 7 eixos: A Narrativa; A Locação; Os Personagens; Os Imaginários; O Som; Os Filmes. A
partir dessa pesquisa de arquivo, Casas criou artefatos visuais que compõem a exposição
homônima na Galeria Patricia Condé como parte do projeto Kino.

A partir de suas colagens, Casas nos instala num local que se aproxima de um
realismo mágico. Formalmente e esteticamente, o seu projeto visa quebrar certas leis da
experiência cinematográfica; ele quer de alguma forma se tornar um rito de passagem para o
espectador, desde as primeiras influências de filmes de aventura clássicos até referências de
cinema mais experimentais, juntando isso na obra Cemetery Archive works (Magnum Opus)
de 2020, exibida na Galeria àngels barcelona.

5
Do original: “I believe we are living through the most radical of times as a species. Blocked by our inability to
act against our accelerating mistreatment of the planet, victims to climate change and now pushed ashore by
pandemic waves, we are storming into the Anthropocene. I believe, if we don’t change our course, in the coming
years most of the species and environments we now know will disappear. Our relation to nature has reached a
peak as our population grows and the advance of civilization and technology reshape our planet.” (CASAS,
Carlos. 2020.)
Esta instalação de vídeo funciona como um quebra-cabeça experimental, onde notas
de vídeo são apresentadas em diferentes monitores. Através deles, Casas submete os clássicos
do cinema, que forjaram o seu imaginário a uma espécie de processo alquímico audiovisual;
experimentando com seus tempos, modalidades narrativas, cores, texturas e estruturas
formais. Todos eles são filmes de aventura em que a selva serve como palco para o encontro
entre humanos e animais, bem como a quebra de fronteiras e limites da natureza em seu
estado puro, realidade e imaginário.6 (CASAS, Carlos. 2020. Grifos meus.) Se por realismo
mágico queremos dizer representação que combina realidade/imaginário e
moderno/tradicional - visual e culturalmente - então esta justaposição alerta-nos para uma
forma de imagem visual que é desejada no consumo de filmes:
As linhas entre 'realistas' e as paisagens ficcionais são
borradas, de modo que quanto mais longe esses públicos estão das
experiências diretas da vida metropolitana, mais provável é que eles
construam 'mundos imaginados' que são quiméricos, estéticos, até

6
Do Original: “This video installation functions as a puzzle of audiovisual experimentation and video notes
presented on different monitors. Through them, Casas subjects the classics of cinema, which have forged his
imaginary to a kind of audiovisual alchemical process; experimenting with their times, narrative modalities,
colours, textures and formal structures, of films such as S. Van Dyke’s Tarzan (1932), The Jungle Book (1942),
and Elephant Boy by Zoltan Korda, or Chang (1927) by Merian C. Cooper & Ernest B. Schoedsack. All of them
adventure films in which the jungle serves as a stage for the encounter between humans and animals, as well as
the breaking of borders and limits of nature in its pure state.” (CASAS, Carlos. 2020.)
mesmo objetos fantásticos, Particularmente se avaliado pelos critérios
de alguma outra perspectiva, algum outro 'mundo imaginado.' A
atração de consumir imagens de filmes reside precisamente nos
atributos quiméricos e fantásticos das imagens, que impressionam o
olhar do espectador de forma afetiva semelhante às práticas visuais
darshanicas, fixando-o e retornando o olhar com mundos imaginados
estimulantes. (APPADURAI, Arjun. 2020. p. 35-36)

O mito do cemitério continua sendo extremamente relevante nos dias de hoje, e é


justamente agora que sua importância é mais evidente: trazer à tona uma nova perspectiva
sobre a natureza e nosso lugar nela. Contar pequenas-grandes estórias é desvendar esse mito
de maneira a apresentá-lo de forma inovadora, realizar uma interpretação para além de
decolonial, mas contracolonial. Como diz Antonio Bispo dos Santos, contar estórias é
“Semear as sementes que eram nossas e as que não eram nossas. Transformar as nossas
mentes em roças e jogar uma cuia de sementes.” (SANTOS, Antonio Bispo dos. 2023. p 15.
Grifos meu).
Filmografia

CASAS, Carlos. 2019. Cemetery. Carlos Casas, 2019. França, Polônia, Reino Unido,
Uzuberquistão.

SEIGNER, Beatriz. 2018. Los Silencios. Brasil, França, Colômbia.

WEERASETHAKUL, Apichatpong. 2015. Cemetery of Splendor. Tailândia.


Bibliografia

APPADURAI, Arjun. The Future as Cultural Fact: Essays on the Global Condition.
London: Verso, 2020.

CASAS, Carlos. Carlos Casas Introduces His Film "Cemetery". Mubi, Notebook Column, 18
nov. 2020.

ESBELL, Jaider. Também temos o que mostrar: a nossos modos, com nossos protocolos.
Contemporary And América Latina, Editorial, 13 mai. 2021.

GILMORE, David D. Monsters. Evil being, mythical beasts and all manner of imaginary
terrors. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2003.

HARAWAY, Donna. Ficar com o Problema: fazer parentes no Chthluceno. São Paulo: Ubu
Editora, 2019.

LE GUIN, Ursula. K. A teoria da bolsa da ficção. São Paulo: N-1, 2021.

NAZÁRIO, Luiz. Da natureza dos monstros. São Paulo: Arte & ciência, 1998.

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo:


Companhia das Letras, 2007 (tradução de Rosaura Eichenberg).

SANTOS, Antônio Bispo dos. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu
Editora/PISEAGRAMA, 2023.

TSING, Anna Lowenhaupt. 2022. O cogumelo no fim do mundo: Sobre a possibilidade de


vida nas ruínas do capitalismo. São Paulo: n-1 edições.

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