2022 - Fonologia Apostila Graduação UFRJ - Versão 2022

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 62

Apontamentos

em
1

Teoria Fonológica

Disciplina: Fundamentos de Análise Fonológica


Versão 2022.1
Prof. Gean Damulakis
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
Sumário
Introdução ............................................................................................................................................. 3
1. Fonética ......................................................................................................................................... 5
1.1 Sobre a ortografia e sobre a transcrição fonética ................................................................... 7
2. Alguns universais linguísticos .................................................................................................... 11
2.1 Composição do inventário fonológico ...................................................................................... 11
2.2 Padrões silábicos .................................................................................................................. 12
2.3 Processos .............................................................................................................................. 14
3. Fonologia. Fonema ..................................................................................................................... 16
3.1 Relações básicas entre sons ...................................................................................................... 17
3.2 Fonema como uma realidade fonética .................................................................................. 18
3.2.1 Sons em contraste: par mínimo e par análogo .............................................................. 18
3.2.2 Nota sobre par mínimo.................................................................................................. 20
3.2.3 Distribuição complementar ........................................................................................... 21
3.2.4 Variação (estruturalmete) livre ..................................................................................... 22
3.2.5 Algoritmos para identificação de status fonêmico ........................................................ 22
3.3 Fonema como uma realidade fonológica ............................................................................. 27
3.3.1 Conteúdo fonológico ..................................................................................................... 27
3.3.2 Oposições distintivas de Trubetzkoy ............................................................................ 29
3.4 Fonema como uma realidade psicológica ............................................................................ 36
3.4.1 Traços distintivos .......................................................................................................... 37
4. Classes naturais. Regras fonológicas. Interações entre regras .................................................... 44
4.1 Classe Natural ........................................................................................................................... 44 2
4.2 Regras fonológicas ............................................................................................................... 45
4.2.1 Regras e interação entre regras: mudando a estrutura .................................................. 47
4.2.2 Tipos de regra ............................................................................................................... 48
4.2.3 Interação entre regras. Derivação. Opacidade .............................................................. 48
5. Fonologia Não-Linear – sílaba, acento e pé métrico .................................................................. 52
5.1 A sílaba ..................................................................................................................................... 52
5.1.1 Teoria CV versus Teoria Moraica................................................................................. 53
5.1.2 Constituintes silábicos: propriedades ............................................................................ 54
5.1.3 Formando a sílaba ......................................................................................................... 55
5.2 Pé métrico. Acento ............................................................................................................... 56
6. Fonologia de Empréstimo ........................................................................................................... 58
6.2 Fatores gramaticais versus fatores extralinguísticos ............................................................ 59
6.3 Examinando empréstimos à luz de restrições ...................................................................... 60
Referências .......................................................................................................................................... 61

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
Introdução

Esta apostila foi concebida para apoio ao curso de Fundamentos de Análise


Fonológica (antiga Linguística II), ministrado para os cursos de graduação na Faculdade de
Letras da UFRJ. Nela, são fornecidos, de maneira muito sucinta, alguns conceitos importantes
para a área de Fonologia, bem como são citados textos-base que poderão (ou deverão, a
depender dos objetivos do aluno) ser consultados.
A fonologia é a área da linguística que se dedica ao estudo do mapeamento entre
estruturas dotadas de significação, produzidas no âmbito da morfossintaxe, por um lado, e suas
manifestações concretas na fala, por outro, através de unidades linguísticas (não dotadas de
significados), como traços, segmentos, sílabas, pés métricos etc. Os tópicos estão desdobrados
em capítulos, como segue.
No primeiro capítulo, faremos algumas recordações sobre conceitos da fonética,
necessários para entender a fonologia. No segundo capítulo, falaremos sobre concepções de
fonema, bem como sobre as relações envolvendo fonemas, como contraste (ou oposição),
distribuição complementar (ou alofonia) e variação. No terceiro capítulo, trataremos de classes
naturais, de processos e de regras fonológicas, assim como da interação entre essas. No quarto
3
capítulo, daremos uma breve introdução à fonologia não-linear, na qual abordaremos temas
como a geometria de traços e unidades prosódicas (sílaba, acento e o pé métrico).

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
4

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
1. Fonética

A Fonética é a área do conhecimento que estuda os sons produzidos pelos seres


humanos com objetivos linguísticos, também chamados de sons da fala (ou fones). Os sons da
fala podem ser classificados a partir de suas características articulatórias, ou seja, disposições
dos órgãos do aparelho fonador, tais como véu palatino, pregas vocais, língua, lábios etc., bem
como a partir das interações entre esses. Para uma revisão sobre a questão, ver Christófaro-
Silva (2003) e Callou & Leite (2003), Seara et al (2011). De maneira simplificada, podemos
classificar os sons da fala a partir dos critérios a seguir.
Um dos critérios é o mecanismo aerodinâmico, que se refere ao circuito da corrente de
ar utilizada na produção do som. Quando esse circuito envolve os pulmões, dizemos que esse
som é pulmonar. Se esse circuito apenas envolve a parte supraglótica, tendo a glote fechando
esse circuito, dizemos que o som é glotálico. Caso esse circuito envolva apenas a cavidade
oral, a partir do véu palatino, dizemos que esse som é velárico. Outro critério é o sentido da
corrente de ar: se o som é produzindo com o sentido dessa corrente de dentro para fora,
dizemos que o som é egressivo. Se o sentido é oposto, ou seja, de fora para dentro, dizemos
que esse som é ingressivo.
Em relação ao mecanismo aerodinâmico de produção de sons da fala e o sentido da 5

corrente de ar, vale ressaltar que, das seis possibilidades lógicas de associação desses dois
parâmetros, para dois não são atestados usos linguísticos: o pulmonar ingressivo e o velárico
egressivo, como mostra a hachura no esquema abaixo.

O esquema acima indica que o maior número que sons conhecidos nas línguas do
mundo são os pulmonares egressivos, marcado no esquema com ‘+’. Isso nos permite afirmar
que: 1) na maior parte das línguas do mundo, apenas são atestados sons desse tipo; 2) nas
línguas que dispõem de outros tipos de fones, há uma predominância de pulmonares
egressivos; 3) não há registros de língua que não disponha desse tipo de som; e 4) esse padrão
é mais recorrente no léxico das línguas, mesmo naquelas que apresentam outros padrões. O
tipo de som menos explorado pelas línguas do mundo é o velárico ingressivo (-), também
conhecidos como cliques.
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
Das possibilidades marcadas com hachura na tabela acima, há usos paralinguísticos de
sons pulmonares ingressivos em alguns idiomas, como no português ([], expressando susto

ou surpresa), no francês (surpresa) ou mesmo como marcador discursivo em línguas


escandinavas. Ainda como pulmonar ingressivo, temos, em PB, a expressão de dor (ou
suposição de dor): [] (o diacrítico ‘’ indica que o som é ingressivo).

Como uso paralinguístico, como veremos mais adiante, nos referimos à falta de uso
recorrente e recombinável em raízes/palavras no léxico de sons ou padrões sonoros. Falantes
de várias línguas se utilizam de sons veláricos ingressivos com fins paralinguísticos: é o caso
do som [] para representar enfado ou contrariedade (conhecido como muxoxo; do quimbundo

muxôxu, segundo Mendonça (2012)) ou, repetidamente [], para representar desaprovação.

Como indicado no esquema acima, são poucas as línguas nas quais esse tipo de som,
conhecidos como clique, tem uso linguístico, estando sua ocorrência circunscrita à região sul e
sudoeste da África Subsaariana (mais especificamente restrita a línguas da família Khoisan
(Coisã; boxímane, hotetonte), mas também em algumas línguas Bantu dessa região, como
Xhosa [sa] e Zulu, na África do Sul).

Outro critério diz respeito ao tipo de interação que ocorre entre os articuladores (modo
de articulação). Por esse critério, os sons consonantais pulmonares podem ser: plosivos, 6
fricativos, africados, nasais, laterais, tepe/flepe, retroflexos e aproximantes. São
esquematizáveis na seguinte tabela (para maiores detalhes, ver Cristófaro-Silva (2003), Callou
& Leite (2003), entre outros).
Tipo Interação entre os articuladores
Plosivos Articuladores produzem uma interrupção momentânea da passagem do ar,
seguida de uma desobstrução brusca.
Fricativos Articuladores produzem uma restrição da passagem do ar, da qual decorre
fricção.
Africados Articuladores produzem uma interrupção momentânea da passagem do ar,
seguida de uma restrição dessa passagem, com fricção. Em resumo:
começam como plosivos e terminam como fricativos, com o mesmo ponto
ou muito próximo.
Nasais Articuladores produzem uma interrupção momentânea da passagem do ar,
durante a qual ocorre o abaixamento do véu palatino.
Laterais Articuladores produzem um bloqueio central, permitindo que haja fluxo de
ar pelas laterais dessa obstrução.

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
Retroflexos Produzidos com a ponta da língua voltada para trás, em direção ao palato.
Aproximantes Articuladores produzem restrição da passagem do ar, sem que haja fricção.
Tepe O ápice da língua bate rapidamente na região anterior superior da cavidade
oral.
Vibrantes Os articuladores se tocam múltiplas vezes.

Muitas vezes, o termo oclusiva é utilizado como sinônimo de plosiva. Entretanto, vale
assinalar que plosiva é um subtipo de oclusiva, esta sendo entendida como qualquer som para
cuja produção haja obstrução do trato vocal. Assim, podemos pensar nas seguintes
classificações (entre parênteses estão as classificações com uso linguístico redundantemente
atestadas nas línguas humanas):

Mecanismo Sentido da corrente Tipo


Oclusivas Pulmonar (Egressivo) Plosivas [p, t, k, b, d, g...]
Nasais [m, n,  ...]

Glotálico Egressivo Ejectivas [p, t, k...]


Ingressivo Implosivas [, , ...]
7
Velárico (Ingressivo) Cliques [, , ...]

1.1 Sobre a ortografia e sobre a transcrição fonética

Boa parte das línguas do mundo não dispõe de um sistema de escrita. Com o objetivo
de analisar e descrever essas línguas, o pesquisador se vê, muitas vezes, diante de sons não
contemplados pela escrita de sua língua materna, o que torna necessária a existência de
símbolos específicos para a notação desses sons. Além do mais, a ortografia das línguas (nas
sociedades dotadas desta ferramenta cultural), frequentemente, não expressa detalhes, que
podem se mostrar reveladores de fenômenos nessa língua.
Foneticistas e fonólogos podem contar com um instrumento para a representação dos
sons da fala: o alfabeto fonético, que consiste em um conjunto de símbolos e diacríticos que
buscam significar, graficamente, os sons da fala. O mais utilizado presentemente é o alfabeto
fonético internacional, da Associação Internacional de Fonética (IPA, sigla em inglês). Esse
alfabeto pode ser utilizado em transcrições fonéticas, que são representações gráficas da fala

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
ou da sua linearização (em sílabas, palavras, enunciados etc.). Dessa maneira, podemos
reproduzir graficamente essas unidades linguísticas, de maneira que elas possam ser lidas por
qualquer um que conheça esse alfabeto. Os símbolos fonéticos mantêm com os sons da fala
uma relação biunívoca, ou seja: para cada som há apenas um símbolo1, e cada símbolo pode
representar apenas um som.
Notemos que a ortografia tradicional não apresenta, via de regra, uma relação
biunívoca entre sons e letras – nem é essa sua finalidade2. Além disso, a ortografia não espelha
as diferenças dialetais ou idioletais, já que um de objetivos dela é neutralizar essas diferenças.
Portanto, espera-se do usuário desse sistema que represente, por exemplo, ortograficamente o
<r> em <professor> ou <falar> mesmo que em sua fala o som referente a esse grafema não
apareça: [pɾofeˈso] e [faˈla]. Mesma disparidade pode ocorrer em [piˈɾiɡʊ]/<perigo>, mesmo
que em muitos dialetos haja o alçamento da vogal pretônica (de /e/ para [i]).

Ortografia Transcrição fonética


Unidade gráfica letras (ou grafemas) e diacríticos símbolos fonéticos e diacríticos
Representação um para um, um para zero, zero para um, um para um para um (ressalve-se o uso de
(grafia para som) mais de um (dífono), mais de um para um (no item diacríticos; v. nota 5, abaixo,
[dígrafos etc.] ou no sistema [correspondência sobre africadas).
8
múltipla]).

Na ortografia da língua portuguesa, é possível encontrar algumas letras que apresentam


relação biunívoca com o som que representa3.

letra som classificação fonética do som da fala exemplos


<p> [p] pote, puro
<b> [b] bravo, lobo
<v> [v] vaca, livro
<f> [f] faca, foice

A seguir, enumeramos alguns exemplos da falta de biunivocidade na ortografia de


língua portuguesa (preencha as lacunas!!!!):

1
Para representar determinado som, além do símbolo, pode ser necessário um diacrítico: [b] (oclusiva bilabial
laringalizada), [z] (fricativa alveolar murmurada) etc. Para a representação de africadas, usam-se a plosiva e a fricativa
correspondentes, opcionalmente com diacrítico: [͜pf], [͜ts], [͡͡͡͡tʃ] etc.
2
Para mais informações sobre essas questões e seus efeitos sobre o processo de alfabetização, leia: LEMLE, Miriam.
Guia teórico do alfabetizador. São Paulo: Ática, 1988.
3
Letras como t e d mantêm relação biunívoca com o fonema /t/ e /d/, respectivamente, mas não com o som, como
veremos mais adiante, uma vez que esse fonema pode ter realização africada.
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
1) Determinada letra pode representar mais de um som:
letra som classificação fonética do som da fala exemplos
<g> [] gente,
gengiva
[g] gato, guru
<s> [s] sopa, sul
[z] casa, trânsito
[] pasta, casca

2) Determinado som pode ser representado por mais de uma letra.


som letra classificação fonética do som da fala exemplos
[s] <s> sapo
<c> cenoura
<x> máximo
[] <g> gesto
<j> jeito
<s> asno4

3) Duas letras, em conjunto, representam apenas um som (dígrafo)5.


som dígrafo classificação fonética do som da fala exemplos
[] <ch> chuva 9
[] <lh> malha
[c] <qu> quieto
[x]6 <rr> marra

4) Determinada letra representa uma sequência dois sons (dífono):


letra som classificação fonética do som da fala exemplos
<x> [] [k] táxi, nexo,
complexo...
[s]

5) Determinada letra pode não representar som algum:


letra som classificação fonética do som da fala exemplos
<h>7 hora, horta,

4
No dialeto carioca, por exemplo. Em outros dialetos, pode representar o som [z].

6
Em algumas variedades do Português do Brasil.
7
No latim, essa letra representava uma fricativa glotal. No inglês e no alemão (em onset inicial), o <h> representa o
mesmo som. A ortografia do inglês também oferece exemplos de letras que não representam elementos sonoros, como a
sequência <gh> em light ‘leve’ e night ‘noite’; o mesmo vale para o <h> do alemão em sehen ‘ver’ ou Kohle ‘carvão’.
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
O dígrafo (ou grafema composto de duas letras, para alguns) pode ser encarado como
uma sequência grafema-diacrítico. Sendo assim, teríamos alguns casos em que há univocidade
(ex.: o <lh> representa apenas o som [] e vice-versa), outros em que não há (ex.: o <ch>

apenas representa, no português, [ ], que também pode ser representado por outros grafemas,
como <x>). O <th> do inglês é um exemplo de dígrafo que representa dois sons (tanto []

quanto []) na ortografia de outra língua. Já o alemão apresenta o que poderíamos chamar de

trígrafo: a sequência <sch> representa a fricativa [ʃ]. A sequência de grafemas <tch> é


exemplo de trígrafo no português, como em ‘tchau’, ‘tcheco’, representando,
ortograficamente, o som [tʃ], usado em alguns estrangeirismos. Por fim, acrescentemos que a
representação de sons africados, no IPA, é feita através de ‘dígrafos’, acrescido ou não de
diacrítico de união: ([pf], [ts], [tʃ], [͜pf], [͡͡ts], [t͡͡ʃ] etc.).
A transcrição fonética, portanto, provê um sistema biunívoco de representação dos
sons da fala muito útil, servindo para indicar pronúncias de formas linguísticas, produzidas por
indivíduos ou por grupos. A sua utilização torna a descrição de línguas e de variedades
linguísticas (sobretudo na área da fonologia, mas não só) uma tarefa mais objetiva e
econômica, porque, uma vez que se grafe o símbolo, não é necessário explicar nem descrever
a articulação do som que ele representa. 10

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
2. Alguns universais linguísticos

Da mesma forma que em outros níveis da gramática, as línguas humanas também se


distinguem entre si pelas suas fonologias. A começar pelo número de segmentos que têm: até onde se
tem registro, esse número pode variar de 11 (por exemplo: Rotokas, Papua Nova Guiné; Pirahã,
Brasil, Colômbia) a 141 (!Xũ, Namíbia e Angola). Também variam em quais segmentos possuem: ter

o mesmo número não implica ter os mesmos segmentos no inventário. Os inventários do Rotokas e do
Pirahã, ambos com 11 elementos, têm as seguintes configurações, respectivamente:
[p,t,k,g,,,i,e,u,o,a] e [p,t,k,,g,b,s,h,i,o,a].

Algumas características linguísticas (que podemos chamar de padrões não-marcados)


parecem estar presentes em um número muito grande de línguas, quando não em todas. Essas
características partilhadas pelas línguas do mundo são conhecidas como universais. Boa parte desses
universais podem ser mais considerados como tendências que propriamente pertencente a todas as
línguas humanas. Dividimos aqui essas tendências em duas categorias: quanto à composição do
inventário segmental e quanto à composição silábica.

2.1 Composição do inventário fonológico 11

A divisão entre vogais e consoantes é uma tendência encontrada potencialmente em todas as


línguas humanas. Essas parecem compor seus sistemas sonoros levando em consideração algumas
tendências universais, como, por exemplo, algumas características inerentes aos segmentos. Dois
critérios parecem atuar na construção dos inventários linguísticos: facilidade de articulação e
facilidade de discriminação. Em outras palavras, é importante, por um lado, que os segmentos sejam
de fácil articulação e que, por outro, seja mais simples a percepção de suas diferenças. Nesse último
caso, o objetivo é funcional: quanto maior a diferença entre os sons, menor é o potencial de haver
ruído na comunicação.
Não são muitos os universais fonológicos seguidos por todas as línguas (como a existência de
vogais e consoantes e o fato, por exemplo, de as vogais serem sempre vozeadas, contrastivamente).
Algumas tendências – consideradas apenas estatisticamente - nas formações dos sistemas sonoros são:
I. Vogais baixas tendem a ser não-arredondadas.
II. Vogais anteriores tendem a ser não-arredondadas.
III. Vogais posteriores tendem a ser arredondadas.
IV. Vogais orais são mais frequentes que vogais nasais.

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
V. Todas as línguas do mundo têm consoantes plosivas.
VI. Plosivas são mais frequentes que fricativas.
VII. Obstruintes (plosivas, fricativas e africadas) desvozeadas são mais frequentes que suas
contrapartes vozeadas.
VIII. Líquidas e nasais são, mais frequentemente, vozeadas.

2.2 Padrões silábicos

As línguas também se diferenciam pela forma como esses segmentos podem se combinar para
formar sílabas. Notemos o modelo abaixo, representando a sílaba do português, no qual A indica
ataque (também conhecido como onset), R indica Rima e Cd indica coda (veremos mais adiante o
conteúdo de traços distintivos, o que facilitará a leitura do diagrama):

12

Sobre a configuração silábica nas línguas humanas, podemos dizer que:

a) O núcleo é o único elemento universalmente obrigatório. Dessa forma, a sílaba mais


simples seria aquela composta apenas pelo núcleo (sendo essa simplicidade maior se o
núcleo for breve). O mais comum é que esse núcleo seja uma vogal, mas algumas línguas
permitem algumas consoantes nessa posição: (C)V.

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
b) O onset pode ser obrigatório em muitas línguas. Assim, em algumas línguas, a sílaba não
pode começar com vogal: CV(C); *V(C) (o asterisco significa que a estrutura é mal-
formada).
c) A coda pode ser proibida: *(C)VC. De todo modo, a aparição em coda costuma estar
restrita para apenas alguns dos segmentos do respectivo inventário.
d) O onset pode ser complexo. A complexidade, porém, está reduzida a algumas
configurações.
e) O núcleo pode ser complexo.

Essas tendências, em conjunto, dão azo ao fato de que o padrão menos marcado
universalmente é a sílaba CV (sílaba destituída de coda, com um núcleo antecedido de onset simples).
Retornaremos à questão da sílaba mais adiante.
A decorrência direta dessas tendências são as implicações tipológicas: a existência de um tipo
de segmento ou padrão silábico menos frequente (mais marcado) nos leva a esperar a existência do
tipo mais frequente (menos marcado). Assim, pensando na tendência I – Vogais baixas tendem a ser
não-arredondadas –, podemos supor que, se uma língua tem vogais anteriores arrendondadas (menos
frequente), essa mesma língua terá vogais anteriores não-arrendondadas (mais frequente), como no
caso do alemão e do francês, por exemplo. Levando em consideração a tendência III – Vogais 13
posteriores tendem a ser arredondadas –, podemos antever que, se uma língua tem vogais posteriores
não-arredondadas (menos frequentes), ela também dispõe em seu inventário de vogais posteriores
arredondadas (mais frequente), como é o caso do Mebengokre.
Essas tendências costumam levar a duas implicações fundamentais:
a) A presença de um segmento ou padrão menos frequente (marcado) em uma língua sugere a
existência de seu membro equivalente mais frequente (não marcado) nessa mesma língua.
b) Nas línguas em que existirem os segmentos (e padrões) marcados e não marcados, os
últimos costumam ser mais frequentes no léxico.

Poderíamos dizer, por exemplo, que todas as línguas do mundo possuem raízes e alternâncias
fonológicas nessas raízes. Essas alternâncias são predominantemente de dois tipos: há algumas que
são condicionadas pela estrutura – a alofonia –, e outras que são favorecidas por fatores (internos ou
externos) – a variação. Dizemos que essas alternâncias são resultantes de processos. Sendo assim, em
termos fonológicos, essas duas características estão presentes em todas as línguas do mundo.

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
2.3Processos

Todas as línguas do mundo exibem processos fonológicos, que se manifestam pela alternância
(ou queda, ou inserção) de elementos estruturais, em determinados ambientes. A maneira como a
Fonologia Gerativa dá conta desse fenômeno é através de regras fonológicas.
Podemos dizer que quaisquer discrepâncias entre as representações fonológica e fonéticas são
decorrentes de processos. Os processos são nomeados de acordo com o produto que deles surge.
Assim, do processo de nasalização surgem vogais nasais, e do processo de desvozeamento segmentos
desvozeados (ou surdos) aparecem.

1) Considerando o sistema a seguir, do Terena (MARTINS, 2009), indique quais tendências


universais são verificadas nesses inventários.

i u

e o

14

_________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________

1) Considere as sílabas presentes na palavra abaixo ([ajnapo] ‘obrigado’; língua Terena;


MARTINS, 2009), indique, explicando, quais os tipos de sílaba permitidos na língua.

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
_________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________

15

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
3. Fonologia. Fonema

Sabemos que todo ser humano é dotado de um conjunto de órgãos – conhecido como
aparelho fonador – cuja função primária se relaciona à digestão ou à respiração, mas que são
utilizados também para a produção dos sons da fala (também conhecidos como fones). São
muitas as possibilidades de produção de som. Apesar de esses sons serem muito variados, cada
língua particular utiliza apenas um subconjunto deles. A fonologia estuda como os elementos
desse subconjunto se relacionam entre si, formando um sistema, capaz de distinguir
significados. Sendo assim, à fonologia interessa como as línguas particulares compõem e
organizam seus respectivos sistemas sonoros, levando em consideração conceitos como
oposição/contraste. Além disso, a fonologia se interessa pela captura de características
universais, buscando dar conta das semelhanças entre os sistemas sonoros das línguas naturais.
A fonologia8 é o componente gramatical que trabalha com elementos advindos do
léxico, da sintaxe e da morfologia. Tais elementos têm uma estrutura gramatical que é lida
pela fonologia, a qual faz ajustes particulares, considerando essa estrutura, e os desemboca na
fonética. Boa parte das pesquisas em fonologia tenta dar conta do mapeameto entre o que é
externo (fonético) com o que está no âmbito mais interno (gramatical). Sendo assim, itens
como ‘bonita’ {bonit + a} e ‘bonitinha’ {bonit + ia} guardam uma relação semântica, 16

advinda da base comum (‘bonit’). Considerando realizações como [bonita] e [bonitĩɲa], a

fonologia precisa estabelecer o mapeamento entre [t] e [t], considerando que, apesar de haver

alternância de sons, não houve mudança de significado na base. Dessa forma, devemos dizer
que ambos são sons atrelados ao mesmo elemento fonológico (ao qual chamamos de
‘fonema’). Esse mapeamento pode ser feito de maneiras distintas, a depender da teoria que
interpreta a noção de fonema.
Unidade importante para a fonologia, o fonema pode ser relacionado ao fone, mas é
mais abstrato que este, não podendo ser tomado como uma entidade concreta, mensurável
através de instrumentos, como ocorre com o fone. Há várias definições para o fonema, a
depender de como a linguagem é concebida. A maneira pela qual dada teoria (ou dada Escola)
encara o fenômeno da linguagem traz desdobramentos para definição desse elemento (assim
como para as demais unidades linguísticas). Veremos, neste curso, três maneiras básicas de
encarar o fonema: a partir de uma realidade próxima à fonética, uma realidade (propriamente)

8
Usamos o termo ‘fonologia’ de maneira ambígua, ora para se referir ao componente da gramática do falante, ora para
se referir à subdivisão da linguística que estuda esse componente. O contexto deixará claro o sentido adotado.
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
fonológica e como uma realidade psicológica (para uma exposição mais aprofundada dessas
concepções de fonema, ver Hyman, 1975).

3.1 Relações básicas entre sons

Antes de falarmos sobre as escolas, convém abordar as relações que envolvem segmentos nas
línguas naturais. Dois (ou mais) sons quaisquer podem estar em três tipos básicos de relação: 1)
contraste (ou oposição); 2) variação alofônica (previsibilidade de ocorrência contextual; similaridade
fonética e alternância léxico-contextual) – costuma ser fonte de discussão sobre qual seria o
mecanismo formal capaz de capturar essa relação; ou 3) variação (estruturalmente) livre9 ou variação
fonética (sensíveis a fatores não estruturais, como origem, estilo, classe, grupo social do falante etc.).
Sons que apresentam contraste (ou oposição) costumam figurar no mesmo ambiente,
oferecendo a possibilidade de opor significados. Quando dois sons aparecem no mesmo ambiente,
opondo significado em dois itens lexicais, dizemos que esses itens formam um par mínimo. Assim,
sons capazes de opor significado em um mesmo ambiente estrutural (em pares mínimos) são
considerados contrastivos nessa língua, podendo figurar em pares mínimos.
Para termos uma variação alofônica, são necessárias três características básicas: 1)
17
similaridade fonética; 2) previsibilidade de ocorrência estrutural; e 3) alternância dependente do
ambiente no mesmo elemento lexical. Alguns dialetos do PB, como o carioca, apresentam o par de
sons [t] e [t], que podem ser considerados alofones, pois:

1) Têm similaridade fonética: trata-se de dois sons foneticamente semelhantes, pois são,
respectivamente, plosiva e africada de ponto de articulação muito próximo.
2) Ocorrem previsivelmente, em ambientes estruturais excludentes: o som [t] ocorre apenas

diante de vogal alta anterior, e [t] nos demais contextos/ambientes.


3) Alternam-se a depender do ambiente no mesmo item lexical: note-se que em ‘pa[t]o’ e em
seu diminutivo ‘pa[tinho', os sons [t] e [t] se alternam no mesmo item lexical {pat-}

‘pato’; o mesmo ocorre com ‘noi[t]e’ e ‘noi[t]ada’.

Sons são considerados variantes (estruturalmente) livres ou variantes (socio)fonéticas quando


ocorrem no mesmo contexto, sem opor significados lexicais. Notem os sons [h] e [x] em ‘[h]ua’ e
‘[x]ua’. Os itens ‘[h]ua’ e ‘[x]ua’ formam o que chamamos de falsos pares mínimos. Vários estudos
variacionistas se dedicam a mensurar a influência de fatores sociais nesse tipo de alternância. Muitas

9
Há um outro tipo de relação que pode ser adicionada, que seria a de neutralização. Veremos mais adiante sobre esse
fenômeno.
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
vezes, porém, fatores estruturais (linguísticos) podem ter influência nessa oscilação ou até mesmo
restringi-la, como veremos mais adiante.

3.2 Fonema como uma realidade fonética

Para a Fonêmica estadunidense, o fonema representa uma realidade físico-fonética. A


seguir, duas definições de fonema dentro dessa concepção são fornecidas. Segundo Daniel
Jones (1974), fonema pode ser visto como “uma família de sons em uma determinada língua
consistindo em um importante som da língua juntamente com outros sons relacionados que
ocorre em uma sequência particular de sons”. Visão semelhante partilha Gleason (1955), ao
definir fonema como “uma classe de sons que: (1) são foneticamente similares e (2) exibem
certos padrões de distribuição na língua ou dialeto em consideração”. Desta forma, o fonema
/p/ pode ser visto como uma família de sons que pode reunir, por exemplo, a depender da
língua, [p], [ph], [pw], [p’] etc. Como vemos, para estudiosos dessa escola, o fonema é um
conjunto de variantes fonéticas, determinadas paradigmaticamente.
Apresentaremos a seguir as relações fonêmicas entre os sons em determinada língua.
18

3.2.1 Sons em contraste: par mínimo e par análogo

Para determinar se sons pertencem a uma mesma classe – entenda-se: representam o


mesmo fonema – em determinada língua, faz-se necessário examinar a distribuição desses
sons. Sons foneticamente distintos costumam pertencer a fonemas diferentes entre si; dessa
forma, espera-se que tais sons contrastem nas línguas humanas. Se dois sons foneticamente
semelhantes ocorrem no mesmo ambiente fonético e se a substituição de um por outro implica
mudança de significado, esses sons estão associados a fonemas distintos (diga-se: há contraste
entre esses segmentos10). Desta forma, se substituirmos [p] por [b] na palavra portuguesa
‘pato’, teremos ‘bato’, outra palavra portuguesa, donde resulta que esses sons contrastam, ou
seja, têm de ser associados a fonemas diferentes na língua em questão. Similarmente, o par
‘suco’ e ‘soco’ indica o mesmo para as vogais [o] e [u].
Em inglês, temos a ocorrência de [b], [p] e [ph]. Esses sons são foneticamente
semelhantes (os três segmentos são plosivas labiais). Se substituirmos [b] por [p] em bin

10
O termo ‘segmento’ costuma ser utilizado de maneira neutra, ora se referindo a fone, ora a fonema.
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
‘lixeira’, teremos pin ‘alfinete’, donde se depreende que [b] e [p] se relacionam a diferentes
fonemas nessa língua. Por outro lado, se substituirmos [p] por [ph] em spin ‘girar’, por
exemplo, não obtemos mudança de significado, apenas uma pronúncia diferente, talvez de
estrangeiro. Isso nos leva à conclusão que [p] e [ph] estão associados ao mesmo fonema da
língua inglesa, de sorte que nunca encontraremos um par de palavras que difiram por apenas
esses sons nessa língua (ressalte-se que esses segmentos podem contrastar em outras línguas;
ver exercícios na sequência). Duas palavras que diferem apenas por um som constituem um
par mínimo, situação na qual tais sons apresentam contraste no mesmo ambiente. No nosso
exemplo anterior, os itens ‘pin’ e ‘bin’ constituem um par mínimo no inglês, pois contrastam
no mesmo ambiente (#___in#)11. Sempre que pudermos estabelecer pares mínimos para
determinados sons, esses serão considerados manifestações de dois diferentes fonemas na
língua em questão. No caso em pauta, [p] e [b] são associáveis, respectivamente, aos fonemas
/p/ e /b/12.
Ao acharmos um par mínimo, ferramenta metodológica usada para comprovar
contrastes entre sons, podemos dizer que os sons sob análise estão associados a fonemas
distintos (leia-se, entretanto, a seção 1.1.2 Nota sobre par mínimo). No entanto, nem sempre
podemos encontrar um par mínimo, o que pode ser atribuído a uma lacuna eventual o fato de a
língua não oferecer, em seu vocabulário, duas palavras que difiram apenas pelos sons 19
analisados. Tal fenômeno também pode ser, mais frequentemente, decorrente de lacuna na
base de dados. Nesses casos, pode ser útil a busca por um par análogo (ou par quase mínimo –
near minimal pair).
Em alemão, nas palavras Goethe [g:th] e Götter [gth] ‘deuses’ encontramos um

par análogo, a partir do qual podemos afirmar, a priori, que as vogais tônicas contrastam. Em
casos como esses, devemos apenas nos certificar de que as diferenças em jogo não estejam
condicionando a ocorrência dos sons analisados (o ambiente análogo seria [g__thV], onde V

quer dizer vogal). A existência de par análogo é suficiente para concluir que as vogais médias
anteriores arredondadas [] e [] se distinguem entre si no alemão, sendo, portanto, fonemas

vocálicos distintos nessa língua. Não se pode dizer que a vogal [] condiciona a vogal [] (cf.

al. Stöcke [tk] ‘bengala’); tampouco que [] condiciona [] (cf. al. Hörer [h:r]

‘ouvinte’). Chamaria os itens Stöcke e Hörer de itens validadores do par análogo.

11
O símbolo # indica fronteira de palavra. Estando à esquerda, indica início de palavra; à direita, final.
12
É comum o uso de colchetes para indicar fones e barras inclinadas para indicar fonemas.
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
Em português, os itens ‘bolo’ [bol] e ‘pulo’ [pul] também podem ser considerados

formadores de um par análogo. Se não contássemos com um sem-número de exemplos de


pares mínimos para /p/ e /b/, poderíamos utilizar para o par análogo acima, no qual contraste
entre [p] e [b] é atestado13. O ambiente análogo seria [__Vl]. Para comprovar que não existe

condicionamento, podemos citar a existência de itens como ‘bule’ e ‘povo’.

Para refletir...
De que maneira ‘bule’ e ‘povo’ podem ser considerados como itens validadores de que
não há condicionamento estrutural no par análogo composto por ‘bolo’ e ‘pulo’?

Diferentemente do que dissemos sobre o par ‘bolo’ e ‘pulo’ (que eles atestam o
contraste de [p] e [b]), não podemos dizer que o par ‘Tico’ [tik] e ‘Teco’ [tk] conseguem

evidenciar o contraste de [t] e [t]. Isso por que a ocorrência dos segmentos envolvidos é
condicionada estruturalmente, não permitindo que se encontrem itens validadores do par
análogo (desconsiderando empréstimos, como [], por exemplo; ver seção 3.2.2, a seguir).

20
3.2.2 Nota sobre par mínimo

O par mínimo é uma ferramenta teórico-metodológica muito útil, porém deve ser
utilizada com certo cuidado. Em primeiro lugar, é apressado dizer que a ocorrência de sons em
tal par caracteriza-os como fonemas em si; entretanto, é pertinente dizer que tal ocorrência
atesta o contraste (ou oposição) entre os mesmos. Sendo assim, a existência do par mínimo
[tia]:[dia] não caracteriza esses sons ([t] e [d]) como fonemas, embora o contraste entre

eles seja atestado pela existência desse par e de outros. Portanto, a existência de par mínimo
comprova que os sons envolvidos apresentam contraste, ou seja, tais sons não podem ser
considerados pertencentes ao mesmo fonema. Nesse caso, em português, [t] é pertencente ao

fonema /t/, e [d] pertence ao fonema /d/. Algo muito similar pode ser dito, no inglês, para o

para [kh] e [g] em itens como Kate [khejt] ‘antropônimo’ e gate [gejt] ‘portão’.
Outra questão envolvendo esse tema seria sobre considerar mínimos os pares como
[]:[], []:[taw] e []:[]. Pela definição mais corrente de ‘par mínimo’

13
Assim como em muitos casos, o par análogo apresentado também poderia ser utilizado para atestar o contraste entre
outros segmentos: aqui, as vogais [o] e [u].
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
esses pares de palavras deveriam ser assim consideradas pares mínimos, uma vez que a
oposição entre os dois está estabelecida pela alternância dos sons [t] e [t]. Desse raciocínio

poderia resultar a assunção de que esses sons constituem fonemas separados na língua
portuguesa, o que não é o caso.
Entretanto, podemos verificar a falta de produtividade desse contraste. Evidência
paralela para não considerar a existência de um fonema [] no português é o fato de alguns

falantes do PB não produzirem esse som em ambientes como [], preferindo as formas

[], [] e [], para as palavras tcheco, tchau e tchaco, respectivamente. Esse

‘contraste’ apenas ocorre em alguns itens, todos envolvendo empréstimos linguísticos.


Devemos atentar, nesse caso, para o fato de que essas palavras têm um status especial. Sendo
assim, esse ‘contraste’ está restrito a alguns itens, não envolvendo o sistema como um todo.
Nesse caso, isso poderia ser considerado um caso de contraste limitado (ou restrito), resultado
de processos decorrentes da história externa da língua (no caso, empréstimos lexicais).
Outro ponto digno de nota se refere ao que chamo de informatividade do par mínimo.
Pares como [lapa] e [kapa] nos informam que os segmentos [l] e [k] estão associados a
fonemas distintos, o que ocorre presumivelmente em toda língua natural na qual esses sons
ocorram, devido à grande diferença fonética entre ambos. Sendo assim, [lapa] e [kapa] 21
constituem um par mínimo pouco informativo. Pares mínimos mais eficientes são aqueles que
apontam o contraste de segmentos muito próximos foneticamente.
Mais hodiernamente, aceitamos o par mínimo como uma ferramenta teórico-científica
utilizada para comprovar quais são os traços distintivos efetivamente operantes em
determinada língua. Em outras palavras, o par mínimo deve apontar a capacidade distintiva de
determinado(s) traço(s) em uma língua particular (ver ‘Traços distintivos’, mais adiante).

3.2.3 Distribuição complementar

Casos há em que o analista não detecta par mínimo nem par análogo para uma dupla de
sons. Muitas vezes, nesses casos, a falta de ocorrência de sons em um par mínimo (ou
análogo) pode estar condicionada pelo ambiente fonético. Nessa situação, onde ocorre um
som, o outro não ocorre e vice-versa: estamos diante de uma distribuição complementar.
Voltando ao exemplo do inglês, [p] e [ph] não são encontrados no mesmo ambiente. No início
de palavra, podemos encontrar [ph] (mas não [p]); porém, depois de /s/, não ocorrem oclusivas

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
aspiradas. Assim, para as palavras [phin] e [spin], temos dois ambientes: #____ in e #s___in.
Nesse caso, em que os sons ocorrem em ambientes exclusivos, ou seja, em certo(s)
ambiente(s) ocorre um som, nos demais, o outro. Diremos, no caso do inglês, que [p] e [ph] se
encontram em uma distribuição complementar e que os mesmos são considerados alofones de
um mesmo fonema /p/ (daí, também chamarmos o fenômeno mais recentemente de alofonia).
É comum fazer a notação de uma distribuição complementar através de um esquema de
arranjo, como segue:

/p/ ocorre como [p] antes de [s];


ocorre como [ph] nos demais ambientes (n.d.a).

Para refletir...
Para aos sons [d] e [d, ocorrentes no português, podemos encontrar um par
mínimo? Tente explicar sua resposta com base no que foi visto acima.

3.2.4 Variação (estruturalmete) livre


22
Há situações nas quais encontramos os chamados falsos pares míninos. Nas palavras
[bax] e [bah], vemos a alternância de sons no mesmo ambiente. Essa alternância,

entretanto, não é capaz de causar mudança de significado, de maneira que os sons se alternam
e o significado permanece. Nesse caso, dizemos que os sons envolvidos estão em variação
livre, sendo, portanto, variantes livres de um mesmo fonema.
Mais recentemente o termo ‘livre’, não sem razão, tem sido rebatido. Pesquisadores,
sobretudo sociolinguistas, veem o termo com certa reserva. De fato, de certa forma o termo
parece indicar a ideia de assistematicidade, de caos. Com a contribuição desses pesquisadores,
fatores externos à estrutura têm sido estudados e têm trazido muita luz à questão da variação,
presente em qualquer língua natural. Para este curso, o termo ‘livre’ será usado como
sinônimo de ‘sem condicionamento estrutural’.

3.2.5 Algoritmos para identificação de status fonêmico

Para identificarmos o status (ou comportamento) fonêmico entre dois sons quaisquer,
podemos nos valer de um passo a passo de perguntas e respostas como a seguir, que é capaz

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
de nos guiar nessa tarefa. A primeira sequência se inicia com a identificação da similaridade
fonética dos sons envolvidos.

São SFS (sons foneticamente semelhantes)?

Sim. Não.

Ocorrem no mesmo ambiente/contexto? Contraste/oposição!

Sim. Não.

Há mudança de significado? Distribuição Complementar!

Sim. Não. 23

Contraste/oposição! Variação (livre)!

A segunda sequência se inicia com a identificação da distribuição dos sons envolvidos na


análise. Outra possibilidade é indicada no algoritmo abaixo:

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
Exercícios (Grupo I)

1) Considere os seguintes dados do grego moderno (dados em Odden, 2005):


1. [kano] ‘fazer’ 9. [kori] ‘filha’
2. [xano] ‘perder’ 10. [xori] ‘danças’ 24
3. [xjino] ‘pobre’ 11. [kjino] ‘cinema’
4. [krima] ‘vergonha’ 12. [xrima] ‘dinheiro’
5. [xufta] ‘punhado’ 13. [kufeta] ‘bombons’
6. [kali] ‘charme’ 14. [xali] ‘sofrimento’
7. [xjeli] ‘enguia’ 15. [kjeri] ‘vela’
8. [xjeri] ‘mão’ 16. [oxji] ‘não’

a) Dê exemplos de pares mínimos, indicando o ambiente idêntico: ________________________


___________________________________________________________________________
b) Dê exemplo de pares análogos, indicando o ambiente análogo: _________________________
___________________________________________________________________________
c) Qual a relação fonêmica das velares [x] e [k]? ______________________________________
____________________________________________________________________________
d) Qual o comportamento fonêmico dos segmentos [x] e [xj], por um lado, e dos segmentos [k] e
[kj], por outro? _______________________________________________________________
____________________________________________________________________________

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
e) Nos casos de distribuição complementar, monte o esquema de arranjo.
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________

2) Procure definir, dando exemplos com os dados acima e do português, os seguintes termos.

a) Par mínimo.
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________

b) Par análogo.
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________

c) Alofone.
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________

d) Variante livre.
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________

3) Em dada variedade de espanhol, ocorrem dados como os que seguem (Dados em Hyman, 25
1975):
a. [baka] ‘banco’ d. [saer] ‘saber’ g. [la aka] ‘o banco’

b. [demora] ‘demora’ e. [naa] ‘nada’ h. [la emora] ‘a demora’

c. [ana] ‘vontade’ f. [lao] ‘lago’ i. [la ana] ‘a vontade’

Considerando os dados acima:

a) Verifique o comportamento fonêmico estabelecido entre oclusivas e fricativas homorgânicas.


______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
b) Se houver distribuição complementar, esquematize-a em ‘item e arranjo.
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
4) Considere os dados do italiano, abaixo. Há pares mínimos nesses dados? Descreva o
comportamento fonêmico das consoantes nasais (dados de www.cefala.org/fonologia.
Exercício adaptado).

a. [tinta] ‘tinta’ g. [tio] ‘eu pinto’

b. [tenda] ‘barraca’ h. [to] ‘eu tenho’

c. [dansa] ‘dança’ i. [fuo] ‘fungo’

d. [nero] ‘negro’ j. [bjaka] ‘branca’

e. [ente] ‘pessoas’ l. [ake] ‘também’

f. [sapone] ‘sabão’ m. [fao] ‘lama’

5) A aspiração é marcada na transcrição fonética por um h sobrescrito (h). Assim sendo, comente
a diferença, em termos fonêmicos, da atuação dessa coarticulação nas duas línguas abaixo
(dados em Fromkin, V. & Rodman, R, 1993:84-85)

Inglês Tai
[pl]~[phl] ‘pílula’ [paa] ‘floresta’ [phaa] ‘separar’
[tl]~[thl] ‘até’ [tam] ‘esmagar’ [tham] ‘fazer’
[kat] ‘morder’ [khat] ‘interromper’ 26
[kl]~[khl] ‘matar’

____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
3.3Fonema como uma realidade fonológica

Para os estudiosos do Círculo Linguístico de Praga, o fonema representa uma realidade


fonológica, intrinsecamente ligada ao sistema de determinada língua. O próprio termo fonologia, com
o sentido em que o empregamos hoje, deve-se aos primeiros trabalhos desse grupo, a partir do final da
década de 1920. Trubetzkoy define fonema como “a soma de características fonologicamente
relevantes de um som”. Dessa forma, fonema deve ser definido em termos de oposições em um
sistema fonológico. Importante noção para o grupo de Praga era a função: “O fonema não pode ser
definido satisfatoriamente nem com base em sua natureza psicológica nem com base em sua relação
com variantes fonéticas, mas tão-somente com base em sua função no sistema da língua”
(Trubetzkoy, 1939: 41, grifo nosso). Sendo assim, o fonema seria uma abstração, um construto
teórico, que é definido em termos de suas oposições dentro do sistema linguístico, uma unidade
mínima14 cuja função é distinguir significados.
Importante conceito dentro dessa concepção de fonema é o de conteúdo fonológico. O
conteúdo fonológico de um fonema é “a essência de todas as características fonologicamente
relevantes de um fonema, isto é, daquelas propriedades que são comuns a todas as variantes desse
fonema e que o diferenciam de outros fonemas da língua, sobretudo os mais próximos” 15.
27

3.3.1 Conteúdo fonológico

Como cada sistema fonológico tem suas próprias oposições, o conteúdo fonológico de cada
fonema depende da língua em questão. Mais precisamente, depende das oposições apresentadas pelo
fonema nesse sistema.
No português, por exemplo, os segmentos labiais são /p b f v m/; no espanhol, por seu turno,
são /p b f m/. Assim, o fonema /f/ no português será uma ‘fricativa’ (por oposição a /p/, que é uma
plosiva), ‘labial’ (por oposição a /s/, coronal), e ‘surdo’ (por oposição a /v/). Já no espanhol, o fonema
/f/ será apenas ‘fricativa labial’, por não haver o fonema /v/.
Fonema Língua Opõe-se a Conteúdo fonológico
/f/ Português /p/, /v/ e /s/ Fricativa labial surda.
/f/ Espanhol /p/ e /s/ Fricativa labial.

Quadro 1

14
Veremos mais adiante que a unidade mínima reconhecida hoje na fonologia é o traço distintivo, que é menor que o
fonema.
15 TRUBETZKOY (1939:59).
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
O conteúdo fonológico também leva em consideração os segmentos opositivos da língua em
análise. Vejamos a seguir a tradução de um excerto de Trubetzkoy (1939), no qual o autor fala das
relações entre conteúdo fonológico e sistema fonológico16.
“Mediante a utilização correta de todas as regras citadas acima, um inventário completo de
todos os fonemas de dada língua pode ser estabelecido. Agora, entretanto, também o conteúdo
fonológico17 de cada fonema deve ser determinado. Como conteúdo fonológico, entendemos a
essência de todas as características fonologicamente relevantes de um fonema, ou seja, aquelas
características que são comuns a todas as variantes desse fonema e que o diferem de todos os outros
fonemas da mesma língua, sobretudo os mais aparentados. O “k” alemão não pode ser definido como
“velar”, porque essa característica ocorre a apenas uma parte de suas variantes, ao passo que, por
exemplo, diante de i e ü [ [y] ], o “k” se realiza como palatal. Por outro lado, a definição do “k”
alemão como “dorsal” (som com o dorso da língua) não seria suficiente, porque o “g” e o “ch” [ [ç] e
[x] ] também são “dorsais”. O conteúdo fonológico do fonema “k” alemão só pode ser formulado
assim: “oclusiva dorsal não-nasalizada fortis (gespannt – tenso)”. Em outras palavras, para o fonema
“k” alemão são fonologicamente relevantes as seguintes características: 1. a formação de completa
oclusão (em oposição a “ch” [ [x], [ç] ]), 2. o bloqueio do acesso à cavidade nasal (em oposição a
“ng” [ [] ]), 3. a tensão da musculatura da língua mediante o relaxamento simultâneo da musculatura
da laringe (em oposição a “g”) e 4. a participação do dorso da língua (em oposição a “t” e “p”). A 28
primeira das quatro características k tem com t, p, tz [ [ts] ], pf, d, b, g, m, n e ng; a segunda, com g, t,
d, b; a terceira, com p, t, ss [ [s] ], f; a quarta, com g, ch, ng; e apenas a totalidade das quatro
características é pertencente apenas ao k. Disso se conclui que a determinação do conteúdo
fonológico de um fonema no dado sistema fonológico pressupõe a incorporação desse fonema ao
sistema de oposições fonológicas existentes na respectiva língua. A definição do conteúdo de um
fonema depende de qual posição esse fonema assume no dado sistema fonológico, isto é, depende,
em última análise, de quais outros fonemas se opõem a ele. Assim um fonema pode receber uma
definição completamente negativa. Tome-se em consideração, por exemplo, todas as variantes
facultativas e combinatórias do fonema alemão r, dever-se-á definir esse fonema apenas como
“líquida não-lateral” – o que é uma definição completamente negativa, já que “líquida” em si é uma
“sonorante não-nasal” (...)”18. (grifos nossos)

Na sequência, veremos as oposições trubetzkoyanas, presentes no mesmo livro, e que


representam o primeiro insight para os traços distintivos.

16
Phonemgehalt und Phonemsystem – ao pé da letra ‘conteúdo do fonema e sistema de fonemas’.
17
Phonologischer Gehalt – usado como sinônimo de “Phonemgehalt’.
18
Excerto de “TRUBETZKOY, N. S. Grundzüge der Phonologie. TCLP 7, Prague, 1939”, p. 59-60. Tradução: Gean
Damulakis.
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
3.3.2 Oposições distintivas de Trubetzkoy

I. Oposições bilaterais versus multilaterais. Nas oposições bilaterais (ou ‘unidimensionais’: cf.
al. eindimensional), a totalidade das características fonéticas comuns a ambos os membros da
oposição – chamada de base de comparação – é comum a apenas esses dois membros. Em português,
/p/ e /b/ estão em oposição e têm em comum o fato de serem oclusivas labiais. A oposição é bilateral,
porque não há outras consoantes sob o rótulo de ‘oclusivas labiais’ no português. A afirmação pode
ser estendida para a oposição desses segmentos em línguas como o alemão e o espanhol, por exemplo.
Se tomarmos, por exemplo, os fonemas /v/ e /p/, do português (que são obstruintes19 labiais),
notaremos que essa oposição é multilateral (ou ‘multidimensional’: cf. al. mehrdimensional), porque
/f/ e /b/ também são ‘obstruintes labiais’. Para Trubezkoy, esse tipo de oposição está presente em
qualquer sistema opositivo. Como exemplo, o autor cita, no sistema ortográfico de base latina
(sistema opositivo visual, portanto!), a oposição existente entre os grafemas E e F, por um lado, e P e
R, por outro. Ao compararmos E e F, podemos observar que eles têm em comum uma haste vertical e
duas hastes horizontais: nenhum outro elemento do alfabeto partilha dessas características: a oposição
entre E e F é, portanto, bilateral. Se compararmos, por outro lado, os grafemas P e R, vemos que a
semelhança entre ambos são a haste vertical e a semicircunferência na parte superior, características
que o grafema B também tem: sendo assim a oposição entre P e R seria multilateral, uma vez que a 29
base de comparação entre ambos também é compartilhada por B.

II. Oposições proporcionais versus isoladas. A oposição entre dois fonemas é dita proporcional
se a relação entre seus membros é idêntica à relação entre membros de outra oposição ou outras
oposições no mesmo sistema. Do contrário, será uma oposição isolada. A oposição estabelecida entre
os fonemas /p/ e /b/ do português, por exemplo, é proporcional, pois a relação entre esses fonemas é
idêntica àquela encontrada entre /t/ e /d/ ou mesmo /k/ e /g/, ou seja, uma relação entre pares de sons
distintos apenas por dada característica (no caso, vozeamento). Em contrapartida, a oposição entre /l/
e // é isolada, pois não há outros segmentos no Português que tenham a mesma oposição. Note que a

oposição /l/ : // é proporcional à oposição /n/ : //. Tanto as oposições em 2 quanto aquelas em 1 se

referem à relação estabelecida entre a oposição (ou o par opositivo) e o sistema como um todo.

III. Oposições privativas, graduais e equipolentes. Nessas oposições, é relevante a relação


entre os membros da oposição. Em oposições privativas, um membro carrega uma característica
fonética que falta ao outro, o que significa ser uma questão de presença/ausência de uma característica

19
Termo que recobre oclusivas, fricativas e africadas. N. do T.
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
fonética. A oposição /t/:/d/, no português, é privativa, pois o vozeamento falta ao /t/. Oposições
graduais ocorrem quando há gradação de dada característica fonética, como no caso das vogais no
português. A oposição /i/:/e/ do português, por exemplo, é gradual, pois a vogal // seria o terceiro

grau da mesma característica que diferencia /i/ de /e/, ou seja, a altura. Membros de uma oposição
equipolente são considerados ‘logicamente equivalentes’. Na oposição /t/:/p/, cada um tem uma
característica que falta ao outro, sendo essa oposição, portanto, equipolente.

IV. Oposições constantes e neutralizáveis. Essa classificação é feita de acordo com a extensão
distintiva da oposição dentro do sistema linguístico considerado. Se uma oposição se mantém em
todos os contextos, será constante, como ocorre na oposição /p/:/b/ e /k/:/g/, do português, por
exemplo. Caso contrário, a oposição será neutralizável, como ocorre com as sibilantes e chiantes do
português /s/:/z/ e //://, que perdem a possibilidade de opor significado em posição de coda silábica.

Decorrência direta do último tipo de oposição é a neutralização, caracterizada pela perda da


força distintiva entre dois (ou mais) fonemas. Na posição de neutralização, é postulado um
arquifonema (indicada na transcrição fonêmica em caixa alta), que seria a totalidade das
características distintivas comuns aos dois fonemas ou, em outras palavras, uma unidade fonológica
que compartilha das propriedades comuns aos fonemas cuja oposição foi neutralizada. No caso do
30
português, em contexto final de sílaba, haveria um arquifonema /S/, representando as fricativas
coronais (articuladas com a parte anterior da língua). Assim, a representação fonológica de ‘pasta’
seria /paSta/.
No alemão, a oposição entre obstruintes surdas e sonoras não é constante, uma vez que em
final de palavras, apenas a surda se manifesta: Rad [rat] ‘roda’: Rat [rat] ‘conselho’; Räder
[rd]‘roda – pl’: Räte [rt] ‘conselho – pl’. Fenômeno similar ocorre no iídiche, no russo e no

polonês.
Segundo Trubetzkoy, há uma implicação universal que envolve oposições bilaterais e
neutralizáveis: “Wenn aber eine Sprache einen aufhebbaren Gegensatz besitzt, so ist dieser immer
eindimensional20” (Se uma língua possui uma oposição neutralizável, essa será sempre bilateral).

Essas classificações são cumulativas, de forma que uma mesma oposição poderá ser
classificada em quatro rótulos, a depender das características consideradas. Pensemos, por exemplo,

20
TRUBETZKOY (1939:71). Tradução minha. Uma vez que o autor se referia a oposições definidas dualmente,
neutralizações que alcançam mais de dois segmentos, como nas nasais do português, por exemplo, não são abarcadas
nessa implicação.
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
nos inventários consonantal e vocálico do português do Brasil (descartados os assim chamados
arquifonemas), expresso a seguir:

p t k i u
b d g
e o
f s 
 
v z 

m n  a

l 



O sistema fonológico do português, por exemplo, oferece 171 oposições consonantais (assim
como o alemão) e 21 vocálicas21. A seguir, classificamos algumas delas:

/t/:/d/ bilateral proporcional privativa constante


/m/:/n/ multilateral proporcional equipolente neutralizável 31
/o/:/u/ multilateral proporcional gradual neutralizável
//:/l/ bilateral isolada privativa constante

Quadro 2

21
Sendo 19 segmentos, temos n.(n-1)/2 = 19x18/2 = 171. Para as vogais, temos: 7x6/2: 21.
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
Exercícios (Grupo II)

1) Considerando o sistema fonológico do português, diga se as oposições abaixo são


multilaterais ou bilaterais.
a) /p/:/b/ _______________________________
b) /k/:/g/ _______________________________
c) /n/:/l/ _______________________________
d) /m/:/n/ _______________________________
e) /p/:/f/ _______________________________
f) /f/:/s/ _______________________________

2) Classifique as mesmas oposições entre isoladas e proporcionais.


__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________

3) Há, nos itens da questão 1, oposições privativas? E equipolentes?


__________________________________________________________________________ 32
__________________________________________________________________________

4) Considere o seguinte sistema vocálico do turco. As oposições /u/:/o/ e /i/:/e/ são graduais?
Justifique sua resposta.
i y  u

e  a o
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________

Considere os inventários segmentais abaixo como referência para as questões que os seguem:

Sistema 1

p t k i y u
b d g e o
ts t ɛ ɔ
f s x a
v z

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
m n ŋ
l
r

Sistema 2

p t k i y u
e  o
f s   
z
m n ŋ
l

1) Classifique as oposições em bilateral ou multilateral. Indique a base de comparação (BC).

Oposição Sistema 1 Sistema 2


/f/:/s/ BC: BC:
Classificação: Classificação:
/p/:/m/ BC: BC:
Classificação: Classificação:
/k/:/ŋ/ BC: BC:
Classificação: Classificação:
/t/:/s/ BC: BC: 33
Classificação: Classificação:
/i/:/e/ BC: BC:
Classificação: Classificação:

2) Classifique as oposições abaixo em isolada ou proporcional, indicando, quando possível,


outro par proporcional (PP).

Oposição Sistema 1 Sistema 2


/f/:/s/ PP: PP:
Classificação: Classificação:
/k/:/ŋ/ PP: PP:
Classificação: Classificação:
/t/:/d/ PP: PP:
Classificação: Classificação:
/s/:/z/ PP: PP:
Classificação: Classificação:

3) Indique o conteúdo fonológico dos fonemas nos respectivos sistemas.

Fonema Conteúdo fonológico (Sistema 1) Conteúdo fonológico (Sistema 2)


/p/
/k/
/s/
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
/e/

Exercícios (Grupo II)

6) Considere o seguinte sistema segmental como referência.

p t k y i u
b d g e a o
f s x
v 
m n
l

j w

Defina os grupos de segmentos (classes naturais) em termos de traços distintivos:

i. p t k f s x _______________________________________
ii. p t k b d g _______________________________________
iii. b d g v  _______________________________________
iv. f s x v  _______________________________________
v. w j l m n a e i o u y _______________________________________ 34

vi. m n l j w _______________________________________
vii. t d s n l j _______________________________________
viii. a e i o u y _______________________________________
ix. y u o _______________________________________
x. y i u _______________________________________
xi. i e _______________________________________
xii. j w _______________________________________

7) Considere os inventários consonantal e vocálico do Mebengokré (família Jê; Stout &


Thomson, 1974) e indique o conteúdo fonológico de alguns segmentos dessa língua.

a) /t/ ___________________________________________________
b) // ___________________________________________________

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
c) /r/ ___________________________________________________
d) /g/ ___________________________________________________
e) /u/ ___________________________________________________

f) /õ/ ___________________________________________________
g) /e/ ___________________________________________________
h) /i/ ___________________________________________________
i) /ã/ ___________________________________________________
j) /o/ ___________________________________________________

35

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
3.4Fonema como uma realidade psicológica

O fonema pode ser visto como uma unidade possuidora de realidade psicológica. Por essa
forma de ver, o fonema é encarado como uma unidade psicológica à qual são associadas realizações
fonéticas. A associação entre esses níveis pode ser feita de maneiras diferentes a depender da teoria
adotada.
A visão mentalista sobre o fonema é antiga e pode ser atribuída originariamente a Badouin
de Courtenay, que defendeu que o fonema seria “um som imaginado ou intencionado, oposto ao som
emitido como um fenômeno psicofonético para um fato fisiofonético” (Jakobson e Halle, 1956: 11).
Sendo assim, quando um falante de português, por exemplo, em dialetos em que haja palatalização
de plosivas alveolares, realiza [ti], esse falante está intentando [ti], ou seja, essa seria a imagem

abstrata do que produz. Em línguas como o inglês ou o alemão, por exemplo, realizações de [th]
costumam ser feitas, em determinados contextos, quando os respectivos falantes intentam /t/.
Uma passagem de Sapir (1933) ficou famosa dentro desta visão de fonema. O autor explica
que, certa vez, ao solicitar de um falante nativo de Paiute (família Uto-Asteca), que este falasse
palavras sílaba por sílaba, ele pronunciou a sequência ‘pa:ah’, da seguinte forma: [pa:], pausa,

[pah], sem que percebesse que sua realização das sequência [pah] era diferente da realização em 36
contexto intervocálico. Desse fato, Sapir concluiu que o som [] era apenas uma realização do que o

falante tinha como [p] em sua mente.


Experimentos têm demonstrado que falantes conseguem mais facilmente perceber como
‘diferentes’ sons que são contrastivos em sua língua nativa, ao passo que não detectam tão
facilmente diferenças entre sons que sejam nela alofones. Falantes de espanhol, por exemplo, não
percebem tão facilmente diferenças entre [e] e [], uma vez que sua língua não explora essa

diferença contrastivamente, mas apenas alofonicamente. De forma análoga, embora falantes de


português percebam (e produzam) contraste de altura entre as médias anteriores [e] e [], esses

mesmos falantes relatam dificuldade de perceber a diferença, embasada no mesmo parâmetro, entre
as médias anteriores arredondadas [] e [], ao se depararem com línguas como o alemão e o

francês.
Mais recentemente, a visão de fonema como realidade psicológica é adotada por teorias
fonológicas de base gerativa. Desde a publicação de The Sound Pattern of English, de Noam
Chomsky e Morris Halle, em 1968, que lançou as bases para a fonologia gerativa padrão, o
mapeamento entre fonema e suas realizações se dá através de regras fonológicas. Conceito

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
importante também para esse mapeamento será o de traço distintivo, como veremos a seguir. Aqui, o
fonema é encarado como um conjunto de traços distintivos, que pode ser mapeado com suas
manifestações fonéticas a partir da mudança de valores de traços, como veremos na sequência.

3.4.1 Traços distintivos

O primeiro sistema de traços distintivos foi apresentado por Jakobson, Fant & Halle (1952,
Preliminaries to speech analysis, PSA) e Jakobson & Halle (1956, Fundamentals of Language),
embora a ideia de traço já estivesse latente desde os trabalhos de Trubetzkoy (1939)22. Foi dada
ênfase, em PSA, à caracterização de segmentos em traços baseada em propriedades acústicas. No
trabalho de Chomsky e Halle (1968, The Sound Pattern of English, doravante SPE) houve alguns
acréscimos, sobretudo porque este último procurou caracterizar os segmentos baseados em traços
articulatórios, uma vez que havia o interesse em descrever regras fonológicas. Do modelo
jakobsoniano, permaneceram, em SPE, alguns traços23. O aluno interessado na história desses traços
poderá consultar a bibliografia. Aqui nos ateremos a alguns traços em SPE e algumas alterações
subsequentes. Embora algumas propostas recentes não sejam contempladas, o conjunto de traços
aqui trabalhados serve ao propósito deste curso.
37
Os traços, em sua maioria, costumam ser binários, ou seja, têm dois valores: o positivo (+) e
o negativo (–). Alguns, porém, são monovalorados (unários ou monovalentes), ou seja, possuem
apenas o valor de presença; quando não for especificado para dado segmento (ou seja, indicar uma
característica ausente no segmento), não será assinalado para o mesmo. É o caso dos principais
traços de ponto de articulação, aqui assinalados em VERSALETE. As definições abaixo se referem aos
segmentos valorados positivamente para o traço, no caso de traços binários.

Traços de classe maior24

[±silábico] – forma pico silábico (pode, portanto, ser acentuado).


[±soante] – sons produzidos com tal configuração do trato vocal, que o vozeamento espontâneo é
possível. Diferencia obstruintes (–) de soantes (+).
[±consonantal] – sons produzidos com uma maior obstrução na cavidade oral.

22
Muito embora Trubetzkoy afirme que fonema seja a menor unidade, ele já prenunciara a decomposição do fonema em
características fonéticas (phonetische Eigenschaften).
23
Permaneceram os traços [consoantal], [tenso], [sonoro] (ou [vozeado]), [contínuo], [nasal] e [estridente]. Os demais
foram substituídos em SPE.
24
Em Clements & Hume (1995), os traços de classe maior são [soante], [aproximante] e [vocoide].
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
O chamado vozeamento espontâneo pode ser entendido como a vibração involuntária das
cordas vocais em decorrência da abertura de cavidade acima da glote, durante a produção de alguns
tipos de segmentos, como vogais, nasais etc.
Vejamos a tabela abaixo, na qual podemos ver a capacidade que esses traços têm de
distinguir as grandes classes de sons das línguas do mundo. Acrescentamos o traço [nasal] para dar
conta da distinção entre consoantes nasais e líquidas.
Traço Vogais: Glides: Obstruintes: Nasais: Líquidas:
(a, e, i, o, u ...) (j, w...) (p, b, t, s...) (m, n, ,  ...) (l, r, , ...)

[±silábico] + – – – –
[±soante] + + – + +
[±consonantal] – – + + +
[±nasal] – – – + –

Quadro 3

Traços de ponto de articulação


38

Vogais25:
[±alto] – o corpo da língua está acima da posição neutra; a língua fica próxima ao palato.
[±baixo] – o corpo da língua está abaixo da posição neutra; a língua se distancia do palato.
[±recuado] – o corpo da língua está retraído a partir da posição neutra; retrai-se a partir do centro da
cavidade oral para trás.
[±arredondado] – envolve protrusão labial.
[±tenso] – envolve considerável esforço muscular.
[±ATR] – levantamento da raiz da língua para cima (advanced tongue root). 26
Vemos no quadro 4, a distinção em um sistema de 7 (sete) vogais (como no português ou no
italiano), dispensando [ATR] e [tenso]. No quadro 5, vemos a representação com algumas das
redundâncias assinaladas entre parênteses:

i e  a  o u

25
Traços também aplicáveis a consoantes.
26
Os traços sublinhados não serão abordados de maneira exaustiva neste curso. Para alguns fonólogos, um desses traços
pode ser necessário para a distinção entre médias (caso em que todas as médias seriam [- baixo]).
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
[±alto] + – – – – – +
[±baixo] – – + + + – –
[±recuado] – – – + + + +
[±arredondado] – – – – + + +

Quadro 4

i e  a  o u

[±alto] + – (–) (–) (–) – +


[±baixo] (–) – + + + – (–)
[±recuado] – – – + + + +
[±arredondado] (–) (–) (–) – + + +
Quadro 5.

Distinção em um sistema de 7 (sete) vogais (como no português), considerando [ATR]:

i e  a  o u

[±alto] + – – – – – + 39

[±baixo] – – – + – – –
[±ATR] + + – – – + +
[±recuado] – – – + + + +
[±arredondado] – – – – + + +
Quadro 6.

Outra maneira de indicar os valores dos traços para o mesmo conjunto de vogais é
demonstrada no quadro 7. No 8, outra maneira, agora com uso de [ATR]:
[– recuado] [+ recuado]
[+ alto] i u ([– baixo])
[– alto] e o [– baixo]
([–alto])  a  [+ baixo]

[– arredondado] [+ arredondado]
Quadro 7

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
[– recuado] [+ recuado]
[+ alto] i u
[+ ATR]
[–alto] e o

[–baixo]  
[– ATR]
[+ baixo]  a

[– arredondado] [+ arredondado]
Quadro 8

Consoantes:
[CORONAL] – sons produzidos com a lâmina e o ápice da língua.
[±anterior] – sons produzidos com uma obstrução na ou à frente da região alveolar 27. Esse traço é
aplicável apenas a sons assinalados por [CORONAL].
[±distribuído] – sons cuja obstrução se estende por distância considerável ao longo da direção do
40
fluxo de ar.
[LABIAL] – sons produzidos com os lábios.
[DORSAL] – sons produzidos com o dorso da língua.
[±estridente] – sons produzidos com maior barulho. Traço exclusivo de fricativas e africadas. As
fricativas (fonológicas) do português são todas [+ estridente]28.

 fv  sz  x 

[±estridente] – + – + + – +
[±anterior] NA NA + + – NA NA
[±distribuído] + – + – + + –
[LABIAL] [CORONAL] [DORSAL]
Quadro 9

27
O traço [anterior] se referia, em SPE, a qualquer obstrução antes da região alveolar, sendo, portanto, os segmentos
labiais considerados [+ anterior]. Propostas ulteriores restringiram esse traço apenas a segmentos coronais. Isso torna o
traço [anterior] não aplicável a segmentos labiais e dorsais.
28
Realizações fonéticas como [x  h] são [ – estridente].
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
Mais recentemente, tem-se advogado que não apenas [±anterior] como também de
[±distribuído] têm poder distintivo apenas no âmbito das coronais, não sendo, portanto, aplicável a
segmentos que não sejam [coronal]. De fato, como vemos na tabela acima, no caso das fricativas
labiais e dorsais, não é necessário dispor tanto de [±estridente] quanto de [±distribuído] para
distingui-las entre si. Note que, entre as labiais e as dorsais, esse traço pode ser relevante, uma vez
que [±distribuído] não as abrange29. Assim:
 fv  sz  x 

[±estridente] – + – + + – +
[±anterior] + + –
[±distribuído] + – +
[LABIAL] [CORONAL] [DORSAL]
Quadro 10
Traços de modo

[±contínuo] – sons produzidos sem bloqueio da corrente de ar (na cavidade oral). Esse traço
diferencia oclusivas e africadas (–) de fricativas (+), entre as obstruintes; e separa as nasais (–) das
líquidas (+).
[±soltura retardada] – sons produzidos com bloqueio seguido de fricção. Apenas as africadas são 41
marcadas positivamente com esse traço. Sendo assim, o mesmo distingue oclusivas (–) de africadas
(+).
[±nasal] – sons produzidos com abaixamento do véu palatino. Diferencia sons orais (–) de nasais
(+).
[±lateral] – sons produzidos com a seção medial da língua abaixada pelos lados.

Utiliza-se [±soltura retardada] para diferenciar as plosivas das africadas correspondentes. A


necessidade desse traço, contudo, tem sido afrouxada ultimamente: é possível distinguir africadas
das plosivas correspondentes através do traço [±estridente], tendo as primeiras o valor positivo de
traço (correspondente à fase fricativa), conforme indicam Gussenhoven & Jacobs, 2010.

Traços laríngeos

[±vozeado] – são produzidos com vibração das pregas vocais. Diferencia sons vozeados (+) de
desvozeados (–).

29
No caso das dorsais, o traço [±alto] tem sido evocado para distinguir [x ], (+), de [ ], (–).
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
[±glote espalhada] – sons produzidos com as pregas vocais separadas. Distingue obstruintes
vozeadas e desvozeadas (–) das aspiradas e murmuradas (+).
[±glote constrita] – sons produzidos com fechamento da glote. Costuma ser usado para marcar
positivamente as consoantes glotal ([]), ejectivas e implosivas.30

Uma possibilidade de esquematizar os traços fonológicos efetivamente contrastivos para os


segmentos consonantais do português, por exemplo, é proposta a seguir. Vale dizer que todos eles
são [+consonantal] e [–silábico]. Os segmentos entre parênteses correspondem a análises
alternativas sobre o status do fonema conhecido como “r forte” do português (desconsideradas as
interpretações desse fonema como glotal ou vibrante velar):

[LABIAL] [CORONAL] [DORSAL]

[+ ant] [– ant]
[-voz] p t  [– contínuo]
[– soante] [+voz] b d ɡ [– nas]
[-voz] f s ʃ (x) [+ contínuo]
[+voz] v z ʒ
m   [+ nas] [– contínuo]
[+ soante] l  [+ lat] [– cont]
ɾ [– nas] [– lat] [+ cont] 42
(r) [+ contínuo]
Quadro 11

Para o segmento [l], o valor para o traço [±contínuo] costuma variar translinguisticamente.
Defendemos aqui que, no português, esse segmento é [– contínuo]. Temos duas evidências, uma de
caráter histórico e outra, sincrônica. Em palavras como ‘alma’[anima>anma>alma], por exemplo,
houve uma dissimilação da nasalidade, que transformou [n] em [l]. Essa transformação de caráter
dissimilatório operou apenas na mudança para o traço [±nasal], o que nos leva a intuir que os demais
traços que caracterizam os dois segmentos têm o mesmo valor, aí incluído [±contínuo]. Sendo
assim, [n] e [l] são igualmente [– contínuo]. De caráter sincrônico, podemos relatar a variação entre
esses segmentos, ocorrente em itens como neblina ~ lebrina, nutrido ~ lutrido, Leblon ~ Neblon,
fenomenal~felomenal.
A adoção de traços distintivos torna a descrição de regras fonológicas mais econômica.
Também mostra a motivação para o processo, além de permitir a notação de que o processo ocorre
com classes naturais (ver a seguir).

30 A maior parte dos sons nas línguas naturais é [– glote espalhada] e [– glote constrita].
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
Traços redundantes
Dizemos que traço é redundante quando seu valor pode estar previsto a partir da
especificação do valor de outro. Por exemplo, se soantes são sempre vozeadas, podemos dizer que a
especificação positiva do traço [soante] pressupõe a especificação também positiva de [vozeado].
Essa previsibilidade, entretanto, pode estar circunscrita a um sistema linguístico específico. Por
exemplo, no inventário vocálico do português ou do italiano, todas as vogais [+arredondado] são,
necessariamente, [+recuado]. Da mesma forma, todas as vogais [-recuado] são [-arredondado].

Exercícios
1) Complete a tabela abaixo com os valores dos traços relativos aos segmentos em pauta e
responda às questões a seguir (para traços monovalorados, indique  onde for pertinente).
±soante ±silábico ±contínuo ±nasal ±vozeado LABIAL CORONAL DORSAL
[p]
[b]
[m]
[f]
[v]
[t]
[s] 43
[n]
[l]
[k]
[x]

a) Quais traços distinguem [b] de [m]?


_____________________________________________________________________________
b) Que traço distingue [p] de [f], [t] de [s], e [k] de [x]? Que generalização pode ser feita a
partir dessa observação?
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
c) Que traço distingue [t] de [p]? E de [k]?
_____________________________________________________________________________

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
4. Classes naturais. Regras fonológicas. Interações entre regras

4.1 Classe Natural

Como dissemos, a noção de traços distintivos é muito útil, pois torna a descrição de regras
mais econômica e mostra a motivação para o processo, além de demonstrar que o processo ocorre
com classes naturais. Classe natural é um grupo de segmentos, identificados sob um rótulo comum,
que apresentam características partilhadas apenas por eles dentro de um sistema. Um bom sistema
de traços fonológicos permite reunir classes naturais com um número pequeno de traços: número
menor que seria utilizado para identificar um cada elemento desse grupo.
Note que, para definir [p, t, k] no português (no espanhol, no alemão ou no inglês), é
necessária a utilização dos seguintes traços: [– soante], [– contínuo] e [– vozeado]. Através dessa
combinação, abrangemos apenas esses segmentos (não há outros, nessas línguas, que possam ser
definidos por esses traços). Disso decorre que [p, t, k] constituem uma classe natural (e que o
sistema de traços adotado consegue dar conta disso!). Por outro lado, para definir apenas o [p], é
preciso usar mais traços: além dos traços [– soante], [– contínuo] e [– vozeado], teríamos de
acrescentar [LABIAL]. Se pensarmos no conjunto [p, s, l], o único traço que poderíamos utilizar para 44
esse grupo, seria [+ consonantal], que envolve outros segmentos do inventário do português,
digamos [f, t, g]. Isso significa que o grupo [p, s, l] não constitui uma classe natural nessa língua.
Além disso, devemos dizer que os segmentos reunidos em uma classe natural costumam estar
envolvidos nos mesmos processos (esses processos costumam ser tomados como indicadores
constituição de classe natural). Por exemplo, há, em espanhol, um processo chamado de
espirantização (ou fricativização), que transforma [b], [d] e [g] em [], [] e [], respectivamente,

em ambiente pós-vocálico. Se o fenômeno é descrito atomicamente, ao se afirmar que são três


processos distintos, perderemos a generalização de que o processo leva todas as plosivas sonoras do
espanhol, a serem realizadas, sob certas circunstâncias, como as fricativas homorgânicas
correspondentes. Em suma, uma classe natural:

a) pode ser descrita com um conjunto de traços que abrange apenas os elementos desse
grupo;
b) tem número de traços usados para sua descrição menor que o utilizado para descrever
qualquer dos elementos desse grupo individualmente;
c) costuma participar solidariamente de processos fonológicos.

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
4.2 Regras fonológicas

A fonologia gerativa também proveu a teoria fonológica da noção de regras fonológicas.


Regra pode ser entendida como um comando (internalizado) responsável por um ajuste sonoro (ou
uma adequação de outra ordem) em um determinado contexto estrutural. Uma das funções do
analista é a de ‘descobrir’ quais são as regras que atuam em determinado sistema e qual é a sua
ordem de aplicação. No caso da fonologia, essas regras podem ser de vários tipos (como veremos a
seguir). O formato dessas regras costuma ser apresentado na forma: A  B / C __ D. Leia-se: A
passa a (se transforma em) B quando estiver depois de C e antes de D; frequentemente ou C ou D é
vazio; se A ou B for vazio, teremos uma regra se inserção ou de apagamento, respectivamente, como
veremos adiante. Podemos usar como exemplo o processo de palatalização de plosivas alveolares do
português, que pode ser considerado como decorrente da aplicação das seguintes regras:
a) /t/  [t] / ___ i b) /d/  [d] / ___ i

Os fonemas /t/ e /d/ fazem parte de uma classe natural chamada de oclusivas ([–soante], [–
contínuo]) coronais ([CORONAL]). Formalizando o mesmo processo por meio de traços, teremos o 45
esquema abaixo. Notem que a formalização da regra da maneira que segue dá conta tanto da
palatalização que ocorre com /t/ e com /d/:

A B C
Quadro 12

O elemento A indica a descrição estrutural (o alvo da regra); B indica a mudança estrutural; e


C indica o ambiente – também conhecido como gatilho (ou trigger) da regra. Vale observar que C
pode não ser um segmento, mas indicar uma posição estrutural (como coda silábica, final de palavra
etc.). Em A, não precisa ser indicado o traço modificado, uma vez que já sabemos que os traços em
A têm o valor contrário dos encontrados em B. Em contrapartida, em B, não é necessário repetir os
traços cujos valores não forem alterados.

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
Exercícios de Revisão (Grupo IV):

1) Formalize, através de traços distintivos, as regras dos seguintes processos, alguns vistos em
sala de aula.

a) /d/  [] / V__V

b) /b/  [] / V__V

c) /g/  [] / V__V

d) /p/  [b] / V__V


e) /s/  [] / ___ i

2) Formalize as regras dos processos nos itens a, b e c em uma única regra (como ocorre no
Espanhol). Lembre-se de que, nesse caso, você deverá pensar no conceito de classe natural
(ver acima). 46

3) Considere o seguinte inventário segmental: [k t d s z n p f  b g x m v i u e o a w j].

a) Preencha o quadro abaixo com os segmentos consonantais ([-silábico]).

Labial coronal dorsal


+ant / -ant
- soante - contínuo - vozeado
+ vozeado
+ contínuo - vozeado
+ vozeado
+ soante - contínuo

+ contínuo

b) Classifique as oposições a seguir em bilaterais ou multilaterais:

Par Base de comparação Tipo de oposição


/p/:/b/

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
/s/://
/s/:/t/
/s/:/k/
/d/:/z/
/j/:/w/
/n/:/m/
/z/:/l/

c) Classifique as oposições a seguir em proporcionais ou isoladas:

Par Tipo de oposição Par proporcional


/p/:/b/
/s/://
/s/:/t/
/z/:/l/
/d/:/z/
/j/:/w/
/n/:/m/
/s/:/k/

d) Classifique as oposições a seguir em equipolente, privativa ou gradual:

Par Tipo de oposição Característica fonética distintiva 47


/p/:/b/
/s/://
/s/:/t/
/e/:/i/
/n/:/m/
/d/:/n/

4.2.1 Regras e interação entre regras: mudando a estrutura

Dentro da fonologia de base gerativa, as regras fonológicas são ferramentas explanatórias


para dar conta do mapeamento entre níveis distintos de representação. Dentro dessa teoria, podemos
dizer que uma regra fonológica atua transformando um segmento, em dada sequência estrutural, em
outro. De sua aplicação também pode acontecer o apagamento ou a intrusão de segmentos, como
veremos a seguir.
Como já dissemos anteriormente, a regra apresenta os seguintes elementos, representados na
seção 2.2: o elemento A indica a descrição estrutural; B indica a mudança estrutural; e C indica o
ambiente – também conhecido como gatilho (ou trigger) da regra. Em A, não precisa ser indicado o

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
traço modificado, uma vez que já sabemos que os traços em A têm o valor contrário dos de B; em B,
não precisamos indicar os traços que contenham os mesmos valores em A.

4.2.2 Tipos de regra

Temos os seguintes principais tipos de regras fonológicas (nomeadas pelo processo que
desencadeiam):
 Transformação: A e B são segmentos foneticamente distintos. É o tipo de regra que
captura a relação entre alofones (também podendo expressar regras neutralizadoras, se B estiver
associado a outro segmento diferente de A). As regras R = /p/  [ph]/ #___ (do inglês), P = /t/  [t

/ __i (do português) e Q = /b/  [] / V___ (do espanhol) são exemplos de regras de transformação.

De acordo com a transformação que ocorra, esse processo pode ter outros nomes: nasalização,
palatalização, fricativização (ou espirantização) etc.

 Inserção: A é Ø, ou seja: Ø  B/ C__D. Esse tipo de regra costuma acontecer para


promover algum reparo estrutural, como por exemplo, para evitar hiatos. A presença do [j] em ‘(eu) 48
passe[j]o’ pode exemplificar a aplicação desse tipo de regra.

 Apagamento: B é Ø, ou seja: A  Ø. Muitas vezes também reparadora de estrutura,


a regra de apagamento pode ser exemplificada com itens como ‘psicologia’, do espanhol, no qual a
primeira sílaba é pronunciada [si].

 Metátese: A e B indicam posições distintas do mesmo segmento dentro do item. No


português arcaico, havia metátese em itens como ‘fejro’ (subjacentemente /fer+i+o/). A passagem de
‘(lat) crocodilus’ > cocodrilo (esp.) ou coccodrillo (it.) são bons exemplos de resultados diacrônicos

desse processo em outras línguas latinas. Realizações como vrido [] para ‘vidro’ ou gaviota

para ‘gaivota’ também podem ser consideradas exemplos de aplicação (variável) de regra de
metátese (ou descritos como processos de metátese).

4.2.3 Interação entre regras. Derivação. Opacidade

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
Muitas vezes, para garantir o mapeamento entre uma forma subjacente e sua realização
fonética, é necessário atribuir a aplicação de mais de uma regra. Dessa forma, pode-se dizer que as
regras se aplicam sequencialmente. A essa sequência de aplicação de regras, chamamos de
derivação. Representação fonológica é o ponto de partida de uma regra e a saída fonética é o
resultado da aplicação das regras. Podemos dizer que, na derivação, uma regra toma como input o
output da anterior, produzindo representações intermediárias. Sendo assim, podemos dizer que as
regras são ordenadas. Do ordenamento de regras, podem surgir quatro tipos de interação:
alimentação (do ing. feeding), sangramento (bleeding), contra-alimentação (counter-feeding) e
contrassangramento. (counter-bleeding)
Alimentação. Dizemos que duas regras R e P quaisquer estão em relação de alimentação,
quando uma regra (digamos, R) cria o contexto para que a regra P, seguinte, seja aplicada. Vejamos:

/net/ /advogado/
R – Inserção: net  

P – Palatalização: net  

Outras regras: … …
Saída: net 

Quadro 13 49
O exemplo acima mostra providências de adaptação de empréstimo em [net]. Nele, vemos

que a inserção da vogal alta diante de /t/ cria o contexto para a palatalização (ou africação) do
plosiva coronal. Algo semelhante ocorre com o item []. Sendo assim, podemos dizer

que a regra R alimenta a regra P, fornecendo-lhe o contexto de aplicação: sem a inserção do [i] não
ocorreria a palatalização.
Sangramento. Dizemos que duas regras R e P estão em relação de sangramento, quando a
aplicação de uma regra (R, por exemplo) retira o contexto de aplicação da regra P. Vejamos o
seguinte exemplo, válido para vários falantes de PB.
Rep. Subj. /dor##aguda/
R – Apagamento doØ##a.gu.da
P – Silabificação do. Øa.gu.da
Saída: do.a.gu.da
Quadro 14
Na situação acima, a regra de apagamento retida a possibilidade de a coda // virar o onset da

sílaba seguinte (ressilabação), vaga disponível na sílaba que inicia a palavra ‘aguda’. Em outras
palavras, a regra R sangra a regra P, ao retirar-lhe o contexto de aplicação.
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
Há casos em que a situação se inverte: uma regra que alimentaria a outra ocorre antes desta,
situação na qual teríamos a contra-alimentação. De maneira análoga, se uma regra que sangraria
outra ocorre depois desta, teremos o que chamamos de contrassangramento. Em ambos os casos,
temos formas opacas, que contrariam uma generalização fonológica na língua. Notem-se, a seguir,
exemplos do português de casos de contra-alimentação (quadro 15) e contrassangramento (quadro
16).

/prta#insenso/
A – Alteamento [pxta# ises]
B – Africação n.a
C – Res. de Hiato [pxtØ# ises]
D – Silabificação [px.t i.se.s]
 Subaplicação de regra (contra-alimentação; cf. Damulakis, 2010)

Quadro 15

/pte#ama/
A – Alteamento [pt#ama]
B – Africação [pt#azuw]
C – Res. de Hiato [ptØ#azuw]
D – Silabificação [p.ta.zuw] 50
 Sobreaplicação de regra (contrassangramento)

Quadro 16

Casos de contra-alimentação e contrassangramento produzem o que que chamamos de


opacidade, um fenômeno que se constitui na existência de dados que contrariam uma generalização
(ou regra) fonológica. Nos exemplos acima, vê-se a falha na generalização ‘as plosivas coronais no
PB sofrem africação quando estão diante da vogal alta anterior. No caso de ‘porta-incenso’, essa
generalização falha, pois há o contexto para africação (‘diante de vogal alta anterior’), mas esta não
ocorre: casos de contra-alimentação. No caso de ‘pote amarelo’, houve falha ao se atestar a africação
em um contexto não predito pela regra (ou generalização): caso de contrassangramento.
Note-se que, em ambos os casos, encontramos exemplos que contrariam a alofonia
estabelecida para o fonema /t/. Opacidade é um fenômeno frequente nas línguas do mundo. Vejamos
exemplos de opacidade decorrente de contra-alimentação no espanhol das Ilhas Canárias (Oftedal,
1985, apud Gussenhoven, 2010: 118):

a) Vozeamento: oclosivas surdas tornam-se sonoras em ambiente intervocálico.


b) Espirantização (fricativização): oclusivas sonoras tornam-se fricativas com o mesmo
ponto.

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
Rep. Subjacente Espirantização
/roba/ [roa] ‘ele/ela rouba’

/nada/ [naa] ‘nada’

/la gana/ [la ana] ‘a vontade’

Quadro 17

Rep. Subjacente Vozeamento


/tipiko/ [tibigo] ‘tipico’
/la kama/ [la gama] ‘a cama’
/una tjenda/ [una djnda] ‘a vontade’

Quadro 18

O segundo conjunto (em 18) de dados nos mostra que a regra de vozeamento ocorre depois
da regra de espirantização nesse dialeto. Se fosse o oposto, para /la kama/, teríamos *[la ama], o
que não é atestado.

Exercícios
51
1) Para os itens do espanhol abaixo, indique a derivação (regras pertinentes: vozeamento e
espirantização; v. quadro 18 e 19), de maneira a obter as realizações adequadas com os dados
(com contra-alimentação).
Rep. Subjacente /roba/ /tipiko/ /nada/ /la kama/
A – Espirantização
B – Vozeamento
Saída

2) Mostre que o sequenciamento inverso daria formas agramaticais como *[la ama] (a partir

de /la kama/), por exemplo.


Rep. Subjacente /roba/ /tipiko/ /nada/ /la kama/
B–
A–
Saída

3) Quais os traços envolvidos nesses processos? Quais são os valores modificados?


Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
a) Vozeamento: ______________________________________
b) Fricativização: _____________________________________

5. Fonologia Não-Linear – sílaba, acento e pé métrico

Vimos que a fonologia, não lidando diretamente com elementos portadores de significados –
embora aqueles sejam relevantes para a distinção destes –, atua na pronunciação de elementos
significativos, advindos da morfossintaxe. Foram dadas algumas concepções distintas para o
fonema. Além de fonemas, há unidades menores que estes, como os traços distintivos, e alguns
podem ser maiores, como a sílaba e o pé métrico, por exemplo.
As unidades morfossintáticas e as fonológicas não são isomórficas: não há como fazer um
mapeamento de um para um entre elementos morfossintáticos e elementos fonológicos, ocorrendo a
isomorfia apenas acidentalmente. Assim, em pintor, temos dois morfemas pint+or31, mas o primeiro
morfema se separa em duas sílabas: pin.tor; já em pré-sal, os dois morfemas estão cada qual em
52
uma sílaba. A palavra paraíso se separa em quatro sílabas, que se agrupam em dois pés métricos,
assim divididos (pa.a)(i.z)32, embora sua divisão morfológica (em dois morfemas) seja

/pa.ai.z+/. Para este curso, optamos por resumir os princípios universais que regem essas

unidades, deixando algumas sugestões de leitura para que os alunos se aprofundem no assunto.
No que ficou conhecido como Fonologia Linear (SPE), o segmento era visto como uma
matriz de traços distintivos, que não apresentavam níveis hierárquicos. Entre esses traços, postulava-
se a existência de [silábico], que seria positivo para o núcleo da sílaba, e [acentuado], que indicaria a
proeminência acentual. Os valores relacionais de acento e de silabicidade levaram os fonólogos a
considerar desnecessários esses traços.

5.1 A sílaba

O símbolo ‘+’ delimita o limite entre elementos morfológicos.


31

Os diacríticos ‘’ e ‘’ indicam, respectivamente, os acentos primário e secundário. O ponto ‘.’ indica o limite de sílaba.
32

Em algumas publicações, usam-se os símbolos ‘´’ e ‘`’ nas respectivas vogais com a mesma finalidade: (pà.a)(í.z).
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
A sílaba pode ser vista como uma unidade fonológica constituída de um onset (ou ataque),
seguida de um núcleo (ou pico) e uma coda (ou declive). Esses dois últimos constituintes formam a
rima. Esquematicamente, temos (usa-se a letra grega sigma ‘σ’ para indicar a categoria sílaba):

Uma sílaba completa seria, então, do tipo ONC. Desses elementos, apenas o núcleo é
obrigatório. Sem este elemento não há sílaba. Podemos encontrar, portanto, sílabas desprovidas de
onset e sílabas desprovidas de coda. O padrão mais comumente encontrável nas línguas do mundo é
ON, ou seja onset seguido de núcleo. Isso significa que há línguas que não apresentam sílabas
(O)NC, mas não há aquela que repila ON(C).
No português, o onset e a coda podem ser ramificados. Alguns defendem que o núcleo pode
ser ramificado no inglês. Essa ramificação é bastante restringida nessas línguas, não sendo admitidos
quaisquer elementos. No onset do português, por exemplo, está proibida uma sequência como [st],
permitida no inglês ou no holandês, por exemplo. 53

Forma muito comum de tratar a sílaba seria através do que chamamos de ‘camada CV’,
postulada como estrutura intermediária entre os segmentos e a sílaba. Para preencher essa camada,
duas características dos segmentos são avaliadas: a) a representação de sua duração, e b) sua
designação de silabicidade, ou seja, se pode ocupar o pico da sílaba ou, alternativamente, o onset ou
a coda.

5.1.1 Teoria CV versus Teoria Moraica

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
Há duas propostas que dão conta da intermediação entre os segmentos e a sílaba: a teoria CV
(McCarthy, 1979) e a teoria moraica (Hayes, 1985). Pela primeira proposta teórica, os segmentos
são incorporados à sílaba através de uma estrutura CV, onde C seria a posição de consoante e V a
posição de vogal, conforme o esquema abaixo33:

Outra maneira de representar a estrutura interna da sílaba é através de moras. A mora é tida
como uma unidade de peso silábico. Nessa perspectiva, apenas os elementos da rima são dotados
dessa unidade. Assim o onset se liga diretamente à silaba. Nas línguas que têm vogais longas, esses
segmentos recebem duas moras (como em b, a seguir). Em outras línguas, a coda silábica pode
receber uma mora, situação na qual as sílabas travadas receberão duas moras (compare d e c).
Sílabas trimoraicas (ou superpesadas) costumam ser evitadas nas línguas do mundo.
Esquematicamente:

54

V breve V longa Coda não-moraica Coda moraica

Para expressar sua duração, as consoantes geminadas devem contar peso. Dessa forma, esses
segmentos, em ambiente intervocálico, esses segmentos não contam mora no onset, mas o fazem na
coda. Vale ressaltar que, nesse caso, esses elementos são considerados ambissilábicos. Veja o
exemplo de par mínimo do italiano para duração consonantal, formado pelos itens fato ‘destino’ (em
a) e fatto ‘fato’ (em b).

5.1.2 Constituintes silábicos: propriedades

33
Vogais longas e ditongos podem ser representados como uma sequência de VV vinculadas à mesma sílaba (σ).
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
Como dito acima, o núcleo é o único constituinte obrigatório em uma sílaba. Em uma palavra
portuguesa como há [a], existe apenas o núcleo silábico, não existindo onset nem coda. O padrão

silábico mais recorrente translinguisticamente, porém, é o CV, ou seja, sílaba constituída de onset
(simples) e núcleo.
Isso significa que há uma assimetria no que se refere aos constituintes da sílaba: o onset é
mais frequente que a coda. Consequentemente, há várias línguas do mundo em cujas sílabas o onset
é obrigatório, entre as quais estão línguas muito distantes geneticamente, como o alemão, o havaiano
e o japonês. A ampla maioria das línguas do mundo não faz exigência da existência de coda, e até
muitas delas proíbem esse constituinte. Dessa forma, podemos dizer que existe uma tendência
(universal) nas línguas de exigir onset e de proibir a coda. Em outras palavras, a configuração
silábica CV é não-marcada e sua emergência é frequente em vários processos fonológicos.
Outra assimetria verificada nesses constituintes é que muito frequentemente todos os
segmentos consonantais de dada língua costumam figurar na posição de onset; o inverso ocorre com
a coda: muito comumente, apenas um subconjunto dos segmentos de uma língua costuma figurar em
coda silábica. Além disso, no onset contrastes costumam ser mantidos, ao passo que na coda é
comum ocorrer a neutralização34. A complexidade nesses constituintes também costuma ser muito
restrita nas línguas do mundo, e costuma ser limitada por vários fatores, alguns dos quais vistos a
seguir. 55

5.1.3 Formando a sílaba

Dois princípios gerais são importantes para o nosso curso:


Princípio de maximização do onset: ‘forme o onset com o número máximo de elementos até
onde ele possa legitimamente; apenas depois disso, forme a coda’. De acordo com o primeiro
princípio, o onset tem prioridade sobre a coda em sua formação. Isso garante, para uma sequência
como [kata], que ela seja silabada como [ka.ta], mas não [kat.a] ou [k.at.a], por exemplo.
Princípio do sequenciamento de sonoridade: ‘a sílaba deve crescer em sonoridade em direção
ao núcleo e decrescer em direção às margens’. Segundo esse princípio, em um onset de uma sílaba,
os segmentos devem se suceder com sonoridade crescente até o pico silábico, local onde haverá
maior nível de sonoridade; a partir daí, em direção à coda, a sonoridade deve decrescer. Para esse
princípio, consideremos a seguinte escala de sonoridade: 0. Oclusivas < 1. Fricativas < 2. Nasais <
3. Líquidas < 4. Glides < 5. Vogais.

34
Sendo assim, podemos dizer que segmentos proibidos na coda estão mais propensos a figurarem em oposições
constantes, ao passo que aqueles presentes permitidos na coda costumam figurar em oposições neutralizáveis.
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
Observe o perfil de sonoridade das sílabas [plas], como na palavra plástico, e [fas], como

em frasco, do português:

Note-se que em um onset complexo, para o português, é necessária que a diferença de


sonoridade seja de 2: 3(líquida) – 1(fricativa)= 2. Na formação da sílaba nessa língua, entretanto, deve-se
admitir outras restrições, uma vez que nem todas as possibilidades com essa diferença é admitida
como boa formação silábica nessa língua: grupos consonantais como [sl], [s [l], [ não são
permitidos em onset complexo.

5.2 Pé métrico. Acento


56
O acento pode ser entendido como uma proeminência relativa de uma sílaba em comparação
a outra. Essa proeminência se manifesta foneticamente através de indicadores como duração e
intensidade. Fonologicamente, o acento tem sido considerado como uma posição estrutural no pé
métrico, constituinte fonológico intermediário entre a sílaba e a palavra, o que descarta a
necessidade de postular o traço distintivo referente a ele.
O pé métrico é constituído por uma sílaba fraca (dominada; abreviada por w, de weak, ing.) e
uma sílaba forte (dominante; abreviada por s, de strong, ing., id.), sendo esta chamada
correntemente de núcleo (ou cabeça) do pé. Em uma palavra com mais de um pé, um deles é mais
proeminente e portará, em seu núcleo, o acento primário. O pé métrico dominado será o portador do
acento secundário.
Retomando nosso exemplo, (pa.a)(i.z), vemos aqui dois pés métricos: (pa.a) e (i.z). O

pé (i.z) é o mais proeminente e porta, em seu núcleo ([i]), o acento primário (indicado por ‘’). O

pé métrico dominado, (pa.a), é portador do acento secundário (indicado por ‘’). Em alguns casos,

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
utiliza-se o acento (gráfico) agudo (´) para indicar o acento primário, e o acento grave (`) para o
secundário: [pà.ra.í.zo], [kàfezío]35.

Duas tendências universais tratadas aqui serão: 1) binarismo do pé e 2) evitação de choque


acentual (stress clash). Em relação à primeira tendência, pode-se dizer que pés métricos tendem a
ser binários, ou seja, tendem a conter duas sílabas (ou duas moras). Pés que não se enquadrem nessa
categoria serão considerados pés degenerados. Assim, em uma palavra como (ile)(gali)(dade),

temos três pés binários, ao passo que em (le)(gali)(dade), temos dois pés binários e um pé, o

primeiro, degenerado.
Em relação à segunda tendência, verifica-se, nas línguas do mundo, que uma reatribuição de
acento primário, decorrente de processo morfológico, por exemplo, pode fazer que acentos se
desloquem para evitar a colisão. Assim: (ka)(f) + (zio) resulta em (kaf)(zio); (ka)(u)+(ejro)

resulta em (kau)(ejro).

Os tipos de pés mais frequentes nas línguas do mundo são os troqueus (com núcleo à
esquerda) e os iambos (com núcleo à direita). Troqueus podem ser silábicos ou moraicos, ou seja,
podem contar sílabas ou unidades de peso silábico. Sobre o português, afirma Collischonn (1994:
44):
“Nas palavras em que o número de sílabas pretônicas é par, o padrão é sempre este: a primeira sílaba é 57
acentuada e cada segunda sílaba à direita desta. Nas palavras em que o número de sílabas pretônicas é
ímpar, observamos dois padrões possíveis: (a) a segunda sílaba é acentuada e cada segunda sílaba à
direita desta; ou (b) a primeira sílaba é acentuada e o acento seguinte somente cai sobre a terceira
sílaba à direita desta”.

Por esse padrão, podemos citar os seguintes casos como exemplos:


1) àto.nìci.dáde; 2) (a) razòabìlidáde; (b) ràzoabìlidáde.

Em alguns dialetos do inglês, da atribuição de acentos primário e secundário decorre a


neutralização vocálica em favor do xuá (schwa: []): photograph [] e photography

[:], ou atom []. Esses dados também mostram que o

flapeamento da consoante plosiva coronal também é dependente do agrupamento em pés: o


segmento alvo do processo precisa estar em uma sílaba dominada no âmbito do pé para que o
processo ocorra.

35
Em alguns casos, adoto essa forma, conjugada com a ortografia convencional.
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
6. Fonologia de Empréstimo

O contato linguístico frequentemente leva à incorporação (ou adoção) de itens lexicais de


uma língua (língua fonte ou doadora, LD) em outra (língua alvo ou receptora, LR). Muitas vezes,
esses itens oferecem segmentos e padrões prosódicos (sobretudo silábicos) que não são encontrados
na língua receptora, sendo estruturas não aceitas na língua. Diante disso, dessa incorporação podem
resultar a importação de segmentos e padrões fonológicos ou a adaptação (também conhecido por
nativização) desses elementos à fonologia da língua receptora.
Provavelmente por envolver altos custos (gramaticais, perceptuais, de processamento etc.), a
importação de elementos estranhos à língua costuma ser evitada, sendo o caminho mais frequente a
adaptação (embora a importação possa ser mais frequente em situações de alto grau de bilinguismo).
As investigações sobre o tema nos conduzem a achados sobre as gramáticas (sobretudo as
fonologias) das línguas, que, de outra maneira, a se considerar apenas as adaptações (ou reparos)
internos ao sistema da LR, não seriam alcançados. Vários trabalhos têm se devotado à investigação
da adaptação. Boa parte dos autores se dedicam ao estudo de como e por que os reparos acontecem.
Vemos alguns exemplos adiante.

58
6.1 Inserção e apagamento de segmentos
Ao se deparar com um padrão fonológico (uma sequência de segmentos) inexistente na
língua receptora, como um cluster inicial #CCV, por exemplo, falantes podem optar por reparos
através de dois processos básicos: a inserção e o apagamento, sendo o primeiro processo mais
recorrente translinguisticamente (Kang, 2010). Vejamos alguns exemplos de empréstimos com
epêntese utilizada como estratégia de reparo36.

(Inglês) Japonês (Inglês) Havaiano Taitiano


Christmas [kurisumasu] Christmas [kalikimaki] president [peretiteni]
(ing.)
Film [fiumu] Blessing [pele’kine] diablo (esp.) [tiaporo]

Para refletir:

36
A maior parte dos exemplos são encontrados em Kang (2011).
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
1) Notem que a qualidade da epêntese vocálica varia de língua para língua. É possível
encontrar alguma sistematicidade (intralinguística)? E quanto à qualidade da consoante
na adaptação? Indique as sistematicidades que encontrar.
2) Existe uma ‘conspiração’ para o resultado final dos empréstimos apresentados. Qual
seria?

Quando a epêntese é o processo escolhido, ela pode se dar em locais diferentes. Notem que,
no PB, a epêntese costuma ocorrer no início do cluster #sCV, como em [i]scanner, [i]start, (Will)
[i]Smith; há casos, entretanto, nos quais a fricativa coronal (nesse caso #CV) pode ser seguida de

epêntese, sobretudo se C é vozeada: (Oscar) Sch[i]midt (Damulakis, 2017).


Quando o apagamento é o processo usado, há oscilação translinguística no que se refere ao
elemento apagado. No caso de um cluster sC, em algumas línguas pode haver tanto o apagamento de
fricativa quanto da consoante seguinte. Em caso de apagamento em clusters CL (obstruinte seguida
de líquida), o mais comum é a líquida ser eliminada. Acrescente-se a isso que pode haver, ainda,
variação entre um processo determinado e a importação do padrão. Esse último caso pode ser um
indicador do bilinguismo dos falantes. Note os exemplos das línguas abaixo37.

(Inglês) (Inglês) (Francês)


59
story [tri] glass [gasu] ~ [galasu] Crème [kem]

(Crioulo (Telugu) (Vietnamita)

da Guiana)
spoon [pun] plastic [pattik] Gramme [gam] ~ [garam]
(Krio) (Thai) (Vietnamita)

6.2 Fatores gramaticais versus fatores extralinguísticos

A fonologia de empréstimos está condicionada por fatores de ordem gramatical, como restrições
de output, processos fonológicos, alofonia, conhecimento linguístico inato e adquirido. Entretanto,
fatores externos também podem atuar, como o grau de bilinguismo (que favorece até mesmo a
importação de segmentos e padrões), o canal de empréstimo (se oral [propaganda, filmes, música,
interação com falante(s) nativo(s) etc.], ou escrito [livros, gibis, rótulos etc.], uma vez que a
ortografia pode favorecer a manutenção de material, ou seja, epêntese em vez de apagamento).

37
Dados em Kang (2011).
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
6.3 Examinando empréstimos à luz de restrições

Em uma análise através de um modelo que opera apenas com restrições, como é o caso da Teoria
da Otimalidade, as línguas que recorrem ao apagamento e à epêntese de elementos violam restrições
de fidelidade ao input, uma vez que desrespeitam a quantidade de elementos segmentais existentes
na base: S1S2S3...  S1SXS2S3, no caso de epêntese; S1S2S3...  S2S3..., no caso de apagamento, por
exemplo. As restrições violadas são as seguintes:
MAX-IO: apagamento de segmentos está proibido.
DEP-IO: inserção de segmentos está proibida.
Vamos examinar o caso do Taitiano acima. Considere que o input possa ser abstraído do filtro
inicial (nível perceptual, de Silverman, 1992), no qual o falante analisa os segmentos a partir do
próprio inventário fonológico). Seguindo o inventário do Taitiano (HERD, 2005), podemos dispor
em traços da seguinte maneira:
[LABIAL] [CORONAL]
([LINGUAL])
[-soante] p t  [-contínuo]

f h [+contínuo]
v 60
[+soante] m n [+nasal]
r [-nasal]

Para o filtro de primeiro nível (segmental), equivalente ao nível perceptual, como dito acima,
o falante precisa interpretar a sequência como um input de segmentos em sua própria língua, ou seja,
em seu sistema fonológico (aqui analisado no âmbito do traço distintivo). No caso do Taitiano,
podemos descrever da seguinte maneira:
d  t [-soante, CORONAL, -contínuo]. Não interpretável no sistema: [+vozeado]
i i
a a
b  p [-soante, LABIAL, -contínuo]. Não interpretável no sistema: [+vozeado]
l  r [+soante, -nasal, (CORONAL)]. Não interpretável no sistema: [+lateral]
o o
O Taitiano não tem plosivas vozeadas, de maneira que [d] é percebida como [t] e o [b] como [p].
De forma similar, nessa língua não há a lateral, de forma que a única líquida (soante não nasal)
disponível no sistema é o [ɾ]. Dessa forma, temos o input /tiapɾo/.

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
Tal input é mal-formado no Taitiano e precisa, portanto, de reparos. O principal problema, nesse
caso, é a presença de onset complexo, estrutura não admitida nessa língua. Vejamos a avaliação,
com os reparos de segundo nível (nível operativo, nas palavras de Silverman, 1992). Outras
restrições consideradas importantes para esse caso são as seguintes:
COMPLEXONSET: onsets complexos estão proibidos
CONTIGUIDADE: A disposição dos elementos do output não diverge daquela encontrada no input
(a partir de Kager, 1999)
Input: tiapɾo COMPLEXONSET MAX-IO CONTIGUIDADE DEP-IO
a. tiapɾo *!
b. tiapoɾ *!
c. tiapo *!
 d. tiapoɾo *

No tableau acima, vemos que a restrição COMPLEXONSET não é dominada, sendo a mais altamente
hierarquizada. As restrições MAX-IO e CONTIGUIDADE não estão hierarquizadas entre si (fato
indicado pela linha descontínua) e a restrição que milita contra a inserção (epêntese) de segmentos,
DEP-IO, é dominada por essas três restrições. Por esse motivo, a estratégia de reparo para a
proibição de onset complexo (presente no candidato a, mais fiel ao input) nessa língua é a inserção 61

de segmento, não o apagamento (candidato c, barrado por MAX-IO), nem a metátese (candidato b,
barrado por CONTIGUIDADE). Portanto, o candidato que emerge no taitiano é [tiapoɾo] – o que é
indicado, no tableau pela seta () no candidato d.

Referências
BISOL, Leda (Org.). Introdução a estudos de fonologia do português. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2005.
CHOMSKY, Noam & HALLE, Moris. The Sound Pattern of English. Arper and Row: Nova Iorque,
1968.
COLLISCHONN, Gisela. Acento secundário em português. Fonologia – Análises não-lineares. In:
BISOL, L. (Org.) Letras de Hoje. Volume 29. Número 4. PUC-RS. Porto Alegre, 1994.
DAMULAKIS, G. N. Fonologias comparadas de algumas línguas Macro-Jê. Tese de Doutorado.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010.
DAMULAKIS, Gean N. Opacidade da inserção vocálica em contexto de fricativa coronal: o caso de
empréstimos no PB. ReVEL, vol. 15, n. 28, 2017. [www.revel.inf.br].

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
EKLUND, Robert. Pulmonic ingressive phonation: Diachronic and synchronic characteristics,
distribution and function in animal and human sound production and in human speech. Journal of the
International Phonetic Association, 38/3, 2008.
FROMKIN, V; RODMAN, R. Introdução à linguagem. Tradução Portuguesa: Coimbra, Almeidina,
1993. PP: 37-71.
GUSSENHOVEN, C. & JACOBS, H. Understanding Phonology. Londres: Hodder Arnold, 2005.
HAYES, Bruce. Iambic and Trochaic rhythm in stress rules. Berkeley Linguistics Society 13:
249-49, 1985.
HERD, Jonathon. Loanword adaptation and the evaluation of similarity. Toronto Working Papers in
Linguistics 24: 65-116, 2005.
HYMAN, Larry. Phonology: theory and analysis. Holt, Rinehart and Winston. Nova Iorque, 1975.
JAKOBSON, Roman & HALLE, M. Fundamentals of Language. The Hague: Mouton, 1956.
JAKOBSON, Roman; FANT, G. & HALLE, M. Preliminaries to speech analysis: the distinctive
features and their correlates. The MIT Press: Cambridge, 1952.
KAGER, René. Optimality Theory. Cambridge: CUP, 1999.
KANG, Yoonjung. Loanword Phonology. In: VAN OOSTENDORP, M.; EWEN, C. J.; HUME, E.;
RICE, K. The Blackwell Companion to Phonology. Blackwell Publishing, 2011.
McCARTHY, John. On stress and syllabification. Linguistic Inquiry. Cambridge, Mass, v. 10, n. 3,
p. 443-466, 1979. 62
MENDONÇA, Renato. A influência africana no português do Brasil. Fundação Alexandre de
Gusmão, Brasília: 2012.
ODDEN, David. Introducing Phonology. Cambrigde University Press: Cambridge, 2005.
SAPIR, Edward. The psychological reality of phonemes. In: MANDELBAUM, D. (ed.). Selected
Writings of Edward Sapir. Berkeley e Los Angeles: California Press, 1933. (apud. HYMAN, 1975).
SEARA, Izabel Christine; NUNES, Vanessa Gonzaga; LAZZAROTTO-VOLCÃO, Cristiane.
Fonética e Fonologia do Português Brasileiro. Universidade Federal de Santa Catarina:
Florianópolis, 2011.
SILVA, Thaïs Cristófaro. Fonética e Fonologia do Português: roteiro de estudos e guia de
exercícios. São Paulo: Contexto, 2003.
SILVERMAN, Daniel. 1992. Multiple scansions in loanword phonology: Evidence from Cantonese.
Phonology 9. 289–328.
TRUBETZKOY, N. S. Grundzüge der Phonologie. Travaux du cercle linguistique de Prague 7,
1939.

Apontamentos em Teoria Fonológica


Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)

Você também pode gostar