2022 - Fonologia Apostila Graduação UFRJ - Versão 2022
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em
1
Teoria Fonológica
corrente de ar, vale ressaltar que, das seis possibilidades lógicas de associação desses dois
parâmetros, para dois não são atestados usos linguísticos: o pulmonar ingressivo e o velárico
egressivo, como mostra a hachura no esquema abaixo.
O esquema acima indica que o maior número que sons conhecidos nas línguas do
mundo são os pulmonares egressivos, marcado no esquema com ‘+’. Isso nos permite afirmar
que: 1) na maior parte das línguas do mundo, apenas são atestados sons desse tipo; 2) nas
línguas que dispõem de outros tipos de fones, há uma predominância de pulmonares
egressivos; 3) não há registros de língua que não disponha desse tipo de som; e 4) esse padrão
é mais recorrente no léxico das línguas, mesmo naquelas que apresentam outros padrões. O
tipo de som menos explorado pelas línguas do mundo é o velárico ingressivo (-), também
conhecidos como cliques.
Apontamentos em Teoria Fonológica
Apostila utilizada em Fundamentos de Análise Fonológica (Linguística II)
Versão 2021.1; Professor: Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)
Das possibilidades marcadas com hachura na tabela acima, há usos paralinguísticos de
sons pulmonares ingressivos em alguns idiomas, como no português ([], expressando susto
Como uso paralinguístico, como veremos mais adiante, nos referimos à falta de uso
recorrente e recombinável em raízes/palavras no léxico de sons ou padrões sonoros. Falantes
de várias línguas se utilizam de sons veláricos ingressivos com fins paralinguísticos: é o caso
do som [] para representar enfado ou contrariedade (conhecido como muxoxo; do quimbundo
muxôxu, segundo Mendonça (2012)) ou, repetidamente [], para representar desaprovação.
Como indicado no esquema acima, são poucas as línguas nas quais esse tipo de som,
conhecidos como clique, tem uso linguístico, estando sua ocorrência circunscrita à região sul e
sudoeste da África Subsaariana (mais especificamente restrita a línguas da família Khoisan
(Coisã; boxímane, hotetonte), mas também em algumas línguas Bantu dessa região, como
Xhosa [sa] e Zulu, na África do Sul).
Outro critério diz respeito ao tipo de interação que ocorre entre os articuladores (modo
de articulação). Por esse critério, os sons consonantais pulmonares podem ser: plosivos, 6
fricativos, africados, nasais, laterais, tepe/flepe, retroflexos e aproximantes. São
esquematizáveis na seguinte tabela (para maiores detalhes, ver Cristófaro-Silva (2003), Callou
& Leite (2003), entre outros).
Tipo Interação entre os articuladores
Plosivos Articuladores produzem uma interrupção momentânea da passagem do ar,
seguida de uma desobstrução brusca.
Fricativos Articuladores produzem uma restrição da passagem do ar, da qual decorre
fricção.
Africados Articuladores produzem uma interrupção momentânea da passagem do ar,
seguida de uma restrição dessa passagem, com fricção. Em resumo:
começam como plosivos e terminam como fricativos, com o mesmo ponto
ou muito próximo.
Nasais Articuladores produzem uma interrupção momentânea da passagem do ar,
durante a qual ocorre o abaixamento do véu palatino.
Laterais Articuladores produzem um bloqueio central, permitindo que haja fluxo de
ar pelas laterais dessa obstrução.
Muitas vezes, o termo oclusiva é utilizado como sinônimo de plosiva. Entretanto, vale
assinalar que plosiva é um subtipo de oclusiva, esta sendo entendida como qualquer som para
cuja produção haja obstrução do trato vocal. Assim, podemos pensar nas seguintes
classificações (entre parênteses estão as classificações com uso linguístico redundantemente
atestadas nas línguas humanas):
Boa parte das línguas do mundo não dispõe de um sistema de escrita. Com o objetivo
de analisar e descrever essas línguas, o pesquisador se vê, muitas vezes, diante de sons não
contemplados pela escrita de sua língua materna, o que torna necessária a existência de
símbolos específicos para a notação desses sons. Além do mais, a ortografia das línguas (nas
sociedades dotadas desta ferramenta cultural), frequentemente, não expressa detalhes, que
podem se mostrar reveladores de fenômenos nessa língua.
Foneticistas e fonólogos podem contar com um instrumento para a representação dos
sons da fala: o alfabeto fonético, que consiste em um conjunto de símbolos e diacríticos que
buscam significar, graficamente, os sons da fala. O mais utilizado presentemente é o alfabeto
fonético internacional, da Associação Internacional de Fonética (IPA, sigla em inglês). Esse
alfabeto pode ser utilizado em transcrições fonéticas, que são representações gráficas da fala
1
Para representar determinado som, além do símbolo, pode ser necessário um diacrítico: [b] (oclusiva bilabial
laringalizada), [z] (fricativa alveolar murmurada) etc. Para a representação de africadas, usam-se a plosiva e a fricativa
correspondentes, opcionalmente com diacrítico: [͜pf], [͜ts], [͡͡͡͡tʃ] etc.
2
Para mais informações sobre essas questões e seus efeitos sobre o processo de alfabetização, leia: LEMLE, Miriam.
Guia teórico do alfabetizador. São Paulo: Ática, 1988.
3
Letras como t e d mantêm relação biunívoca com o fonema /t/ e /d/, respectivamente, mas não com o som, como
veremos mais adiante, uma vez que esse fonema pode ter realização africada.
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1) Determinada letra pode representar mais de um som:
letra som classificação fonética do som da fala exemplos
<g> [] gente,
gengiva
[g] gato, guru
<s> [s] sopa, sul
[z] casa, trânsito
[] pasta, casca
4
No dialeto carioca, por exemplo. Em outros dialetos, pode representar o som [z].
6
Em algumas variedades do Português do Brasil.
7
No latim, essa letra representava uma fricativa glotal. No inglês e no alemão (em onset inicial), o <h> representa o
mesmo som. A ortografia do inglês também oferece exemplos de letras que não representam elementos sonoros, como a
sequência <gh> em light ‘leve’ e night ‘noite’; o mesmo vale para o <h> do alemão em sehen ‘ver’ ou Kohle ‘carvão’.
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O dígrafo (ou grafema composto de duas letras, para alguns) pode ser encarado como
uma sequência grafema-diacrítico. Sendo assim, teríamos alguns casos em que há univocidade
(ex.: o <lh> representa apenas o som [] e vice-versa), outros em que não há (ex.: o <ch>
apenas representa, no português, [ ], que também pode ser representado por outros grafemas,
como <x>). O <th> do inglês é um exemplo de dígrafo que representa dois sons (tanto []
quanto []) na ortografia de outra língua. Já o alemão apresenta o que poderíamos chamar de
o mesmo número não implica ter os mesmos segmentos no inventário. Os inventários do Rotokas e do
Pirahã, ambos com 11 elementos, têm as seguintes configurações, respectivamente:
[p,t,k,g,,,i,e,u,o,a] e [p,t,k,,g,b,s,h,i,o,a].
As línguas também se diferenciam pela forma como esses segmentos podem se combinar para
formar sílabas. Notemos o modelo abaixo, representando a sílaba do português, no qual A indica
ataque (também conhecido como onset), R indica Rima e Cd indica coda (veremos mais adiante o
conteúdo de traços distintivos, o que facilitará a leitura do diagrama):
12
Essas tendências, em conjunto, dão azo ao fato de que o padrão menos marcado
universalmente é a sílaba CV (sílaba destituída de coda, com um núcleo antecedido de onset simples).
Retornaremos à questão da sílaba mais adiante.
A decorrência direta dessas tendências são as implicações tipológicas: a existência de um tipo
de segmento ou padrão silábico menos frequente (mais marcado) nos leva a esperar a existência do
tipo mais frequente (menos marcado). Assim, pensando na tendência I – Vogais baixas tendem a ser
não-arredondadas –, podemos supor que, se uma língua tem vogais anteriores arrendondadas (menos
frequente), essa mesma língua terá vogais anteriores não-arrendondadas (mais frequente), como no
caso do alemão e do francês, por exemplo. Levando em consideração a tendência III – Vogais 13
posteriores tendem a ser arredondadas –, podemos antever que, se uma língua tem vogais posteriores
não-arredondadas (menos frequentes), ela também dispõe em seu inventário de vogais posteriores
arredondadas (mais frequente), como é o caso do Mebengokre.
Essas tendências costumam levar a duas implicações fundamentais:
a) A presença de um segmento ou padrão menos frequente (marcado) em uma língua sugere a
existência de seu membro equivalente mais frequente (não marcado) nessa mesma língua.
b) Nas línguas em que existirem os segmentos (e padrões) marcados e não marcados, os
últimos costumam ser mais frequentes no léxico.
Poderíamos dizer, por exemplo, que todas as línguas do mundo possuem raízes e alternâncias
fonológicas nessas raízes. Essas alternâncias são predominantemente de dois tipos: há algumas que
são condicionadas pela estrutura – a alofonia –, e outras que são favorecidas por fatores (internos ou
externos) – a variação. Dizemos que essas alternâncias são resultantes de processos. Sendo assim, em
termos fonológicos, essas duas características estão presentes em todas as línguas do mundo.
Todas as línguas do mundo exibem processos fonológicos, que se manifestam pela alternância
(ou queda, ou inserção) de elementos estruturais, em determinados ambientes. A maneira como a
Fonologia Gerativa dá conta desse fenômeno é através de regras fonológicas.
Podemos dizer que quaisquer discrepâncias entre as representações fonológica e fonéticas são
decorrentes de processos. Os processos são nomeados de acordo com o produto que deles surge.
Assim, do processo de nasalização surgem vogais nasais, e do processo de desvozeamento segmentos
desvozeados (ou surdos) aparecem.
i u
e o
14
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_________________________________________________________________________________
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15
Sabemos que todo ser humano é dotado de um conjunto de órgãos – conhecido como
aparelho fonador – cuja função primária se relaciona à digestão ou à respiração, mas que são
utilizados também para a produção dos sons da fala (também conhecidos como fones). São
muitas as possibilidades de produção de som. Apesar de esses sons serem muito variados, cada
língua particular utiliza apenas um subconjunto deles. A fonologia estuda como os elementos
desse subconjunto se relacionam entre si, formando um sistema, capaz de distinguir
significados. Sendo assim, à fonologia interessa como as línguas particulares compõem e
organizam seus respectivos sistemas sonoros, levando em consideração conceitos como
oposição/contraste. Além disso, a fonologia se interessa pela captura de características
universais, buscando dar conta das semelhanças entre os sistemas sonoros das línguas naturais.
A fonologia8 é o componente gramatical que trabalha com elementos advindos do
léxico, da sintaxe e da morfologia. Tais elementos têm uma estrutura gramatical que é lida
pela fonologia, a qual faz ajustes particulares, considerando essa estrutura, e os desemboca na
fonética. Boa parte das pesquisas em fonologia tenta dar conta do mapeameto entre o que é
externo (fonético) com o que está no âmbito mais interno (gramatical). Sendo assim, itens
como ‘bonita’ {bonit + a} e ‘bonitinha’ {bonit + ia} guardam uma relação semântica, 16
fonologia precisa estabelecer o mapeamento entre [t] e [t], considerando que, apesar de haver
alternância de sons, não houve mudança de significado na base. Dessa forma, devemos dizer
que ambos são sons atrelados ao mesmo elemento fonológico (ao qual chamamos de
‘fonema’). Esse mapeamento pode ser feito de maneiras distintas, a depender da teoria que
interpreta a noção de fonema.
Unidade importante para a fonologia, o fonema pode ser relacionado ao fone, mas é
mais abstrato que este, não podendo ser tomado como uma entidade concreta, mensurável
através de instrumentos, como ocorre com o fone. Há várias definições para o fonema, a
depender de como a linguagem é concebida. A maneira pela qual dada teoria (ou dada Escola)
encara o fenômeno da linguagem traz desdobramentos para definição desse elemento (assim
como para as demais unidades linguísticas). Veremos, neste curso, três maneiras básicas de
encarar o fonema: a partir de uma realidade próxima à fonética, uma realidade (propriamente)
8
Usamos o termo ‘fonologia’ de maneira ambígua, ora para se referir ao componente da gramática do falante, ora para
se referir à subdivisão da linguística que estuda esse componente. O contexto deixará claro o sentido adotado.
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fonológica e como uma realidade psicológica (para uma exposição mais aprofundada dessas
concepções de fonema, ver Hyman, 1975).
Antes de falarmos sobre as escolas, convém abordar as relações que envolvem segmentos nas
línguas naturais. Dois (ou mais) sons quaisquer podem estar em três tipos básicos de relação: 1)
contraste (ou oposição); 2) variação alofônica (previsibilidade de ocorrência contextual; similaridade
fonética e alternância léxico-contextual) – costuma ser fonte de discussão sobre qual seria o
mecanismo formal capaz de capturar essa relação; ou 3) variação (estruturalmente) livre9 ou variação
fonética (sensíveis a fatores não estruturais, como origem, estilo, classe, grupo social do falante etc.).
Sons que apresentam contraste (ou oposição) costumam figurar no mesmo ambiente,
oferecendo a possibilidade de opor significados. Quando dois sons aparecem no mesmo ambiente,
opondo significado em dois itens lexicais, dizemos que esses itens formam um par mínimo. Assim,
sons capazes de opor significado em um mesmo ambiente estrutural (em pares mínimos) são
considerados contrastivos nessa língua, podendo figurar em pares mínimos.
Para termos uma variação alofônica, são necessárias três características básicas: 1)
17
similaridade fonética; 2) previsibilidade de ocorrência estrutural; e 3) alternância dependente do
ambiente no mesmo elemento lexical. Alguns dialetos do PB, como o carioca, apresentam o par de
sons [t] e [t], que podem ser considerados alofones, pois:
1) Têm similaridade fonética: trata-se de dois sons foneticamente semelhantes, pois são,
respectivamente, plosiva e africada de ponto de articulação muito próximo.
2) Ocorrem previsivelmente, em ambientes estruturais excludentes: o som [t] ocorre apenas
9
Há um outro tipo de relação que pode ser adicionada, que seria a de neutralização. Veremos mais adiante sobre esse
fenômeno.
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vezes, porém, fatores estruturais (linguísticos) podem ter influência nessa oscilação ou até mesmo
restringi-la, como veremos mais adiante.
10
O termo ‘segmento’ costuma ser utilizado de maneira neutra, ora se referindo a fone, ora a fonema.
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‘lixeira’, teremos pin ‘alfinete’, donde se depreende que [b] e [p] se relacionam a diferentes
fonemas nessa língua. Por outro lado, se substituirmos [p] por [ph] em spin ‘girar’, por
exemplo, não obtemos mudança de significado, apenas uma pronúncia diferente, talvez de
estrangeiro. Isso nos leva à conclusão que [p] e [ph] estão associados ao mesmo fonema da
língua inglesa, de sorte que nunca encontraremos um par de palavras que difiram por apenas
esses sons nessa língua (ressalte-se que esses segmentos podem contrastar em outras línguas;
ver exercícios na sequência). Duas palavras que diferem apenas por um som constituem um
par mínimo, situação na qual tais sons apresentam contraste no mesmo ambiente. No nosso
exemplo anterior, os itens ‘pin’ e ‘bin’ constituem um par mínimo no inglês, pois contrastam
no mesmo ambiente (#___in#)11. Sempre que pudermos estabelecer pares mínimos para
determinados sons, esses serão considerados manifestações de dois diferentes fonemas na
língua em questão. No caso em pauta, [p] e [b] são associáveis, respectivamente, aos fonemas
/p/ e /b/12.
Ao acharmos um par mínimo, ferramenta metodológica usada para comprovar
contrastes entre sons, podemos dizer que os sons sob análise estão associados a fonemas
distintos (leia-se, entretanto, a seção 1.1.2 Nota sobre par mínimo). No entanto, nem sempre
podemos encontrar um par mínimo, o que pode ser atribuído a uma lacuna eventual o fato de a
língua não oferecer, em seu vocabulário, duas palavras que difiram apenas pelos sons 19
analisados. Tal fenômeno também pode ser, mais frequentemente, decorrente de lacuna na
base de dados. Nesses casos, pode ser útil a busca por um par análogo (ou par quase mínimo –
near minimal pair).
Em alemão, nas palavras Goethe [g:th] e Götter [gth] ‘deuses’ encontramos um
par análogo, a partir do qual podemos afirmar, a priori, que as vogais tônicas contrastam. Em
casos como esses, devemos apenas nos certificar de que as diferenças em jogo não estejam
condicionando a ocorrência dos sons analisados (o ambiente análogo seria [g__thV], onde V
quer dizer vogal). A existência de par análogo é suficiente para concluir que as vogais médias
anteriores arredondadas [] e [] se distinguem entre si no alemão, sendo, portanto, fonemas
vocálicos distintos nessa língua. Não se pode dizer que a vogal [] condiciona a vogal [] (cf.
al. Stöcke [tk] ‘bengala’); tampouco que [] condiciona [] (cf. al. Hörer [h:r]
11
O símbolo # indica fronteira de palavra. Estando à esquerda, indica início de palavra; à direita, final.
12
É comum o uso de colchetes para indicar fones e barras inclinadas para indicar fonemas.
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Em português, os itens ‘bolo’ [bol] e ‘pulo’ [pul] também podem ser considerados
Para refletir...
De que maneira ‘bule’ e ‘povo’ podem ser considerados como itens validadores de que
não há condicionamento estrutural no par análogo composto por ‘bolo’ e ‘pulo’?
Diferentemente do que dissemos sobre o par ‘bolo’ e ‘pulo’ (que eles atestam o
contraste de [p] e [b]), não podemos dizer que o par ‘Tico’ [tik] e ‘Teco’ [tk] conseguem
evidenciar o contraste de [t] e [t]. Isso por que a ocorrência dos segmentos envolvidos é
condicionada estruturalmente, não permitindo que se encontrem itens validadores do par
análogo (desconsiderando empréstimos, como [], por exemplo; ver seção 3.2.2, a seguir).
20
3.2.2 Nota sobre par mínimo
O par mínimo é uma ferramenta teórico-metodológica muito útil, porém deve ser
utilizada com certo cuidado. Em primeiro lugar, é apressado dizer que a ocorrência de sons em
tal par caracteriza-os como fonemas em si; entretanto, é pertinente dizer que tal ocorrência
atesta o contraste (ou oposição) entre os mesmos. Sendo assim, a existência do par mínimo
[tia]:[dia] não caracteriza esses sons ([t] e [d]) como fonemas, embora o contraste entre
eles seja atestado pela existência desse par e de outros. Portanto, a existência de par mínimo
comprova que os sons envolvidos apresentam contraste, ou seja, tais sons não podem ser
considerados pertencentes ao mesmo fonema. Nesse caso, em português, [t] é pertencente ao
fonema /t/, e [d] pertence ao fonema /d/. Algo muito similar pode ser dito, no inglês, para o
para [kh] e [g] em itens como Kate [khejt] ‘antropônimo’ e gate [gejt] ‘portão’.
Outra questão envolvendo esse tema seria sobre considerar mínimos os pares como
[]:[], []:[taw] e []:[]. Pela definição mais corrente de ‘par mínimo’
13
Assim como em muitos casos, o par análogo apresentado também poderia ser utilizado para atestar o contraste entre
outros segmentos: aqui, as vogais [o] e [u].
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esses pares de palavras deveriam ser assim consideradas pares mínimos, uma vez que a
oposição entre os dois está estabelecida pela alternância dos sons [t] e [t]. Desse raciocínio
poderia resultar a assunção de que esses sons constituem fonemas separados na língua
portuguesa, o que não é o caso.
Entretanto, podemos verificar a falta de produtividade desse contraste. Evidência
paralela para não considerar a existência de um fonema [] no português é o fato de alguns
falantes do PB não produzirem esse som em ambientes como [], preferindo as formas
[], [] e [], para as palavras tcheco, tchau e tchaco, respectivamente. Esse
Casos há em que o analista não detecta par mínimo nem par análogo para uma dupla de
sons. Muitas vezes, nesses casos, a falta de ocorrência de sons em um par mínimo (ou
análogo) pode estar condicionada pelo ambiente fonético. Nessa situação, onde ocorre um
som, o outro não ocorre e vice-versa: estamos diante de uma distribuição complementar.
Voltando ao exemplo do inglês, [p] e [ph] não são encontrados no mesmo ambiente. No início
de palavra, podemos encontrar [ph] (mas não [p]); porém, depois de /s/, não ocorrem oclusivas
Para refletir...
Para aos sons [d] e [d, ocorrentes no português, podemos encontrar um par
mínimo? Tente explicar sua resposta com base no que foi visto acima.
entretanto, não é capaz de causar mudança de significado, de maneira que os sons se alternam
e o significado permanece. Nesse caso, dizemos que os sons envolvidos estão em variação
livre, sendo, portanto, variantes livres de um mesmo fonema.
Mais recentemente o termo ‘livre’, não sem razão, tem sido rebatido. Pesquisadores,
sobretudo sociolinguistas, veem o termo com certa reserva. De fato, de certa forma o termo
parece indicar a ideia de assistematicidade, de caos. Com a contribuição desses pesquisadores,
fatores externos à estrutura têm sido estudados e têm trazido muita luz à questão da variação,
presente em qualquer língua natural. Para este curso, o termo ‘livre’ será usado como
sinônimo de ‘sem condicionamento estrutural’.
Para identificarmos o status (ou comportamento) fonêmico entre dois sons quaisquer,
podemos nos valer de um passo a passo de perguntas e respostas como a seguir, que é capaz
Sim. Não.
Sim. Não.
Sim. Não. 23
2) Procure definir, dando exemplos com os dados acima e do português, os seguintes termos.
a) Par mínimo.
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
b) Par análogo.
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
c) Alofone.
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__________________________________________________________________________
d) Variante livre.
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
3) Em dada variedade de espanhol, ocorrem dados como os que seguem (Dados em Hyman, 25
1975):
a. [baka] ‘banco’ d. [saer] ‘saber’ g. [la aka] ‘o banco’
5) A aspiração é marcada na transcrição fonética por um h sobrescrito (h). Assim sendo, comente
a diferença, em termos fonêmicos, da atuação dessa coarticulação nas duas línguas abaixo
(dados em Fromkin, V. & Rodman, R, 1993:84-85)
Inglês Tai
[pl]~[phl] ‘pílula’ [paa] ‘floresta’ [phaa] ‘separar’
[tl]~[thl] ‘até’ [tam] ‘esmagar’ [tham] ‘fazer’
[kat] ‘morder’ [khat] ‘interromper’ 26
[kl]~[khl] ‘matar’
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
Como cada sistema fonológico tem suas próprias oposições, o conteúdo fonológico de cada
fonema depende da língua em questão. Mais precisamente, depende das oposições apresentadas pelo
fonema nesse sistema.
No português, por exemplo, os segmentos labiais são /p b f v m/; no espanhol, por seu turno,
são /p b f m/. Assim, o fonema /f/ no português será uma ‘fricativa’ (por oposição a /p/, que é uma
plosiva), ‘labial’ (por oposição a /s/, coronal), e ‘surdo’ (por oposição a /v/). Já no espanhol, o fonema
/f/ será apenas ‘fricativa labial’, por não haver o fonema /v/.
Fonema Língua Opõe-se a Conteúdo fonológico
/f/ Português /p/, /v/ e /s/ Fricativa labial surda.
/f/ Espanhol /p/ e /s/ Fricativa labial.
Quadro 1
14
Veremos mais adiante que a unidade mínima reconhecida hoje na fonologia é o traço distintivo, que é menor que o
fonema.
15 TRUBETZKOY (1939:59).
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O conteúdo fonológico também leva em consideração os segmentos opositivos da língua em
análise. Vejamos a seguir a tradução de um excerto de Trubetzkoy (1939), no qual o autor fala das
relações entre conteúdo fonológico e sistema fonológico16.
“Mediante a utilização correta de todas as regras citadas acima, um inventário completo de
todos os fonemas de dada língua pode ser estabelecido. Agora, entretanto, também o conteúdo
fonológico17 de cada fonema deve ser determinado. Como conteúdo fonológico, entendemos a
essência de todas as características fonologicamente relevantes de um fonema, ou seja, aquelas
características que são comuns a todas as variantes desse fonema e que o diferem de todos os outros
fonemas da mesma língua, sobretudo os mais aparentados. O “k” alemão não pode ser definido como
“velar”, porque essa característica ocorre a apenas uma parte de suas variantes, ao passo que, por
exemplo, diante de i e ü [ [y] ], o “k” se realiza como palatal. Por outro lado, a definição do “k”
alemão como “dorsal” (som com o dorso da língua) não seria suficiente, porque o “g” e o “ch” [ [ç] e
[x] ] também são “dorsais”. O conteúdo fonológico do fonema “k” alemão só pode ser formulado
assim: “oclusiva dorsal não-nasalizada fortis (gespannt – tenso)”. Em outras palavras, para o fonema
“k” alemão são fonologicamente relevantes as seguintes características: 1. a formação de completa
oclusão (em oposição a “ch” [ [x], [ç] ]), 2. o bloqueio do acesso à cavidade nasal (em oposição a
“ng” [ [] ]), 3. a tensão da musculatura da língua mediante o relaxamento simultâneo da musculatura
da laringe (em oposição a “g”) e 4. a participação do dorso da língua (em oposição a “t” e “p”). A 28
primeira das quatro características k tem com t, p, tz [ [ts] ], pf, d, b, g, m, n e ng; a segunda, com g, t,
d, b; a terceira, com p, t, ss [ [s] ], f; a quarta, com g, ch, ng; e apenas a totalidade das quatro
características é pertencente apenas ao k. Disso se conclui que a determinação do conteúdo
fonológico de um fonema no dado sistema fonológico pressupõe a incorporação desse fonema ao
sistema de oposições fonológicas existentes na respectiva língua. A definição do conteúdo de um
fonema depende de qual posição esse fonema assume no dado sistema fonológico, isto é, depende,
em última análise, de quais outros fonemas se opõem a ele. Assim um fonema pode receber uma
definição completamente negativa. Tome-se em consideração, por exemplo, todas as variantes
facultativas e combinatórias do fonema alemão r, dever-se-á definir esse fonema apenas como
“líquida não-lateral” – o que é uma definição completamente negativa, já que “líquida” em si é uma
“sonorante não-nasal” (...)”18. (grifos nossos)
16
Phonemgehalt und Phonemsystem – ao pé da letra ‘conteúdo do fonema e sistema de fonemas’.
17
Phonologischer Gehalt – usado como sinônimo de “Phonemgehalt’.
18
Excerto de “TRUBETZKOY, N. S. Grundzüge der Phonologie. TCLP 7, Prague, 1939”, p. 59-60. Tradução: Gean
Damulakis.
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3.3.2 Oposições distintivas de Trubetzkoy
I. Oposições bilaterais versus multilaterais. Nas oposições bilaterais (ou ‘unidimensionais’: cf.
al. eindimensional), a totalidade das características fonéticas comuns a ambos os membros da
oposição – chamada de base de comparação – é comum a apenas esses dois membros. Em português,
/p/ e /b/ estão em oposição e têm em comum o fato de serem oclusivas labiais. A oposição é bilateral,
porque não há outras consoantes sob o rótulo de ‘oclusivas labiais’ no português. A afirmação pode
ser estendida para a oposição desses segmentos em línguas como o alemão e o espanhol, por exemplo.
Se tomarmos, por exemplo, os fonemas /v/ e /p/, do português (que são obstruintes19 labiais),
notaremos que essa oposição é multilateral (ou ‘multidimensional’: cf. al. mehrdimensional), porque
/f/ e /b/ também são ‘obstruintes labiais’. Para Trubezkoy, esse tipo de oposição está presente em
qualquer sistema opositivo. Como exemplo, o autor cita, no sistema ortográfico de base latina
(sistema opositivo visual, portanto!), a oposição existente entre os grafemas E e F, por um lado, e P e
R, por outro. Ao compararmos E e F, podemos observar que eles têm em comum uma haste vertical e
duas hastes horizontais: nenhum outro elemento do alfabeto partilha dessas características: a oposição
entre E e F é, portanto, bilateral. Se compararmos, por outro lado, os grafemas P e R, vemos que a
semelhança entre ambos são a haste vertical e a semicircunferência na parte superior, características
que o grafema B também tem: sendo assim a oposição entre P e R seria multilateral, uma vez que a 29
base de comparação entre ambos também é compartilhada por B.
II. Oposições proporcionais versus isoladas. A oposição entre dois fonemas é dita proporcional
se a relação entre seus membros é idêntica à relação entre membros de outra oposição ou outras
oposições no mesmo sistema. Do contrário, será uma oposição isolada. A oposição estabelecida entre
os fonemas /p/ e /b/ do português, por exemplo, é proporcional, pois a relação entre esses fonemas é
idêntica àquela encontrada entre /t/ e /d/ ou mesmo /k/ e /g/, ou seja, uma relação entre pares de sons
distintos apenas por dada característica (no caso, vozeamento). Em contrapartida, a oposição entre /l/
e // é isolada, pois não há outros segmentos no Português que tenham a mesma oposição. Note que a
oposição /l/ : // é proporcional à oposição /n/ : //. Tanto as oposições em 2 quanto aquelas em 1 se
referem à relação estabelecida entre a oposição (ou o par opositivo) e o sistema como um todo.
19
Termo que recobre oclusivas, fricativas e africadas. N. do T.
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fonética. A oposição /t/:/d/, no português, é privativa, pois o vozeamento falta ao /t/. Oposições
graduais ocorrem quando há gradação de dada característica fonética, como no caso das vogais no
português. A oposição /i/:/e/ do português, por exemplo, é gradual, pois a vogal // seria o terceiro
grau da mesma característica que diferencia /i/ de /e/, ou seja, a altura. Membros de uma oposição
equipolente são considerados ‘logicamente equivalentes’. Na oposição /t/:/p/, cada um tem uma
característica que falta ao outro, sendo essa oposição, portanto, equipolente.
IV. Oposições constantes e neutralizáveis. Essa classificação é feita de acordo com a extensão
distintiva da oposição dentro do sistema linguístico considerado. Se uma oposição se mantém em
todos os contextos, será constante, como ocorre na oposição /p/:/b/ e /k/:/g/, do português, por
exemplo. Caso contrário, a oposição será neutralizável, como ocorre com as sibilantes e chiantes do
português /s/:/z/ e //://, que perdem a possibilidade de opor significado em posição de coda silábica.
polonês.
Segundo Trubetzkoy, há uma implicação universal que envolve oposições bilaterais e
neutralizáveis: “Wenn aber eine Sprache einen aufhebbaren Gegensatz besitzt, so ist dieser immer
eindimensional20” (Se uma língua possui uma oposição neutralizável, essa será sempre bilateral).
Essas classificações são cumulativas, de forma que uma mesma oposição poderá ser
classificada em quatro rótulos, a depender das características consideradas. Pensemos, por exemplo,
20
TRUBETZKOY (1939:71). Tradução minha. Uma vez que o autor se referia a oposições definidas dualmente,
neutralizações que alcançam mais de dois segmentos, como nas nasais do português, por exemplo, não são abarcadas
nessa implicação.
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nos inventários consonantal e vocálico do português do Brasil (descartados os assim chamados
arquifonemas), expresso a seguir:
p t k i u
b d g
e o
f s
v z
m n a
l
O sistema fonológico do português, por exemplo, oferece 171 oposições consonantais (assim
como o alemão) e 21 vocálicas21. A seguir, classificamos algumas delas:
Quadro 2
21
Sendo 19 segmentos, temos n.(n-1)/2 = 19x18/2 = 171. Para as vogais, temos: 7x6/2: 21.
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Exercícios (Grupo II)
4) Considere o seguinte sistema vocálico do turco. As oposições /u/:/o/ e /i/:/e/ são graduais?
Justifique sua resposta.
i y u
e a o
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
Considere os inventários segmentais abaixo como referência para as questões que os seguem:
Sistema 1
p t k i y u
b d g e o
ts t ɛ ɔ
f s x a
v z
Sistema 2
p t k i y u
e o
f s
z
m n ŋ
l
p t k y i u
b d g e a o
f s x
v
m n
l
j w
i. p t k f s x _______________________________________
ii. p t k b d g _______________________________________
iii. b d g v _______________________________________
iv. f s x v _______________________________________
v. w j l m n a e i o u y _______________________________________ 34
vi. m n l j w _______________________________________
vii. t d s n l j _______________________________________
viii. a e i o u y _______________________________________
ix. y u o _______________________________________
x. y i u _______________________________________
xi. i e _______________________________________
xii. j w _______________________________________
a) /t/ ___________________________________________________
b) // ___________________________________________________
f) /õ/ ___________________________________________________
g) /e/ ___________________________________________________
h) /i/ ___________________________________________________
i) /ã/ ___________________________________________________
j) /o/ ___________________________________________________
35
O fonema pode ser visto como uma unidade possuidora de realidade psicológica. Por essa
forma de ver, o fonema é encarado como uma unidade psicológica à qual são associadas realizações
fonéticas. A associação entre esses níveis pode ser feita de maneiras diferentes a depender da teoria
adotada.
A visão mentalista sobre o fonema é antiga e pode ser atribuída originariamente a Badouin
de Courtenay, que defendeu que o fonema seria “um som imaginado ou intencionado, oposto ao som
emitido como um fenômeno psicofonético para um fato fisiofonético” (Jakobson e Halle, 1956: 11).
Sendo assim, quando um falante de português, por exemplo, em dialetos em que haja palatalização
de plosivas alveolares, realiza [ti], esse falante está intentando [ti], ou seja, essa seria a imagem
abstrata do que produz. Em línguas como o inglês ou o alemão, por exemplo, realizações de [th]
costumam ser feitas, em determinados contextos, quando os respectivos falantes intentam /t/.
Uma passagem de Sapir (1933) ficou famosa dentro desta visão de fonema. O autor explica
que, certa vez, ao solicitar de um falante nativo de Paiute (família Uto-Asteca), que este falasse
palavras sílaba por sílaba, ele pronunciou a sequência ‘pa:ah’, da seguinte forma: [pa:], pausa,
[pah], sem que percebesse que sua realização das sequência [pah] era diferente da realização em 36
contexto intervocálico. Desse fato, Sapir concluiu que o som [] era apenas uma realização do que o
mesmos falantes relatam dificuldade de perceber a diferença, embasada no mesmo parâmetro, entre
as médias anteriores arredondadas [] e [], ao se depararem com línguas como o alemão e o
francês.
Mais recentemente, a visão de fonema como realidade psicológica é adotada por teorias
fonológicas de base gerativa. Desde a publicação de The Sound Pattern of English, de Noam
Chomsky e Morris Halle, em 1968, que lançou as bases para a fonologia gerativa padrão, o
mapeamento entre fonema e suas realizações se dá através de regras fonológicas. Conceito
O primeiro sistema de traços distintivos foi apresentado por Jakobson, Fant & Halle (1952,
Preliminaries to speech analysis, PSA) e Jakobson & Halle (1956, Fundamentals of Language),
embora a ideia de traço já estivesse latente desde os trabalhos de Trubetzkoy (1939)22. Foi dada
ênfase, em PSA, à caracterização de segmentos em traços baseada em propriedades acústicas. No
trabalho de Chomsky e Halle (1968, The Sound Pattern of English, doravante SPE) houve alguns
acréscimos, sobretudo porque este último procurou caracterizar os segmentos baseados em traços
articulatórios, uma vez que havia o interesse em descrever regras fonológicas. Do modelo
jakobsoniano, permaneceram, em SPE, alguns traços23. O aluno interessado na história desses traços
poderá consultar a bibliografia. Aqui nos ateremos a alguns traços em SPE e algumas alterações
subsequentes. Embora algumas propostas recentes não sejam contempladas, o conjunto de traços
aqui trabalhados serve ao propósito deste curso.
37
Os traços, em sua maioria, costumam ser binários, ou seja, têm dois valores: o positivo (+) e
o negativo (–). Alguns, porém, são monovalorados (unários ou monovalentes), ou seja, possuem
apenas o valor de presença; quando não for especificado para dado segmento (ou seja, indicar uma
característica ausente no segmento), não será assinalado para o mesmo. É o caso dos principais
traços de ponto de articulação, aqui assinalados em VERSALETE. As definições abaixo se referem aos
segmentos valorados positivamente para o traço, no caso de traços binários.
22
Muito embora Trubetzkoy afirme que fonema seja a menor unidade, ele já prenunciara a decomposição do fonema em
características fonéticas (phonetische Eigenschaften).
23
Permaneceram os traços [consoantal], [tenso], [sonoro] (ou [vozeado]), [contínuo], [nasal] e [estridente]. Os demais
foram substituídos em SPE.
24
Em Clements & Hume (1995), os traços de classe maior são [soante], [aproximante] e [vocoide].
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O chamado vozeamento espontâneo pode ser entendido como a vibração involuntária das
cordas vocais em decorrência da abertura de cavidade acima da glote, durante a produção de alguns
tipos de segmentos, como vogais, nasais etc.
Vejamos a tabela abaixo, na qual podemos ver a capacidade que esses traços têm de
distinguir as grandes classes de sons das línguas do mundo. Acrescentamos o traço [nasal] para dar
conta da distinção entre consoantes nasais e líquidas.
Traço Vogais: Glides: Obstruintes: Nasais: Líquidas:
(a, e, i, o, u ...) (j, w...) (p, b, t, s...) (m, n, , ...) (l, r, , ...)
[±silábico] + – – – –
[±soante] + + – + +
[±consonantal] – – + + +
[±nasal] – – – + –
Quadro 3
Vogais25:
[±alto] – o corpo da língua está acima da posição neutra; a língua fica próxima ao palato.
[±baixo] – o corpo da língua está abaixo da posição neutra; a língua se distancia do palato.
[±recuado] – o corpo da língua está retraído a partir da posição neutra; retrai-se a partir do centro da
cavidade oral para trás.
[±arredondado] – envolve protrusão labial.
[±tenso] – envolve considerável esforço muscular.
[±ATR] – levantamento da raiz da língua para cima (advanced tongue root). 26
Vemos no quadro 4, a distinção em um sistema de 7 (sete) vogais (como no português ou no
italiano), dispensando [ATR] e [tenso]. No quadro 5, vemos a representação com algumas das
redundâncias assinaladas entre parênteses:
i e a o u
25
Traços também aplicáveis a consoantes.
26
Os traços sublinhados não serão abordados de maneira exaustiva neste curso. Para alguns fonólogos, um desses traços
pode ser necessário para a distinção entre médias (caso em que todas as médias seriam [- baixo]).
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[±alto] + – – – – – +
[±baixo] – – + + + – –
[±recuado] – – – + + + +
[±arredondado] – – – – + + +
Quadro 4
i e a o u
i e a o u
[±alto] + – – – – – + 39
[±baixo] – – – + – – –
[±ATR] + + – – – + +
[±recuado] – – – + + + +
[±arredondado] – – – – + + +
Quadro 6.
Outra maneira de indicar os valores dos traços para o mesmo conjunto de vogais é
demonstrada no quadro 7. No 8, outra maneira, agora com uso de [ATR]:
[– recuado] [+ recuado]
[+ alto] i u ([– baixo])
[– alto] e o [– baixo]
([–alto]) a [+ baixo]
[– arredondado] [+ arredondado]
Quadro 7
[–baixo]
[– ATR]
[+ baixo] a
[– arredondado] [+ arredondado]
Quadro 8
Consoantes:
[CORONAL] – sons produzidos com a lâmina e o ápice da língua.
[±anterior] – sons produzidos com uma obstrução na ou à frente da região alveolar 27. Esse traço é
aplicável apenas a sons assinalados por [CORONAL].
[±distribuído] – sons cuja obstrução se estende por distância considerável ao longo da direção do
40
fluxo de ar.
[LABIAL] – sons produzidos com os lábios.
[DORSAL] – sons produzidos com o dorso da língua.
[±estridente] – sons produzidos com maior barulho. Traço exclusivo de fricativas e africadas. As
fricativas (fonológicas) do português são todas [+ estridente]28.
fv sz x
[±estridente] – + – + + – +
[±anterior] NA NA + + – NA NA
[±distribuído] + – + – + + –
[LABIAL] [CORONAL] [DORSAL]
Quadro 9
27
O traço [anterior] se referia, em SPE, a qualquer obstrução antes da região alveolar, sendo, portanto, os segmentos
labiais considerados [+ anterior]. Propostas ulteriores restringiram esse traço apenas a segmentos coronais. Isso torna o
traço [anterior] não aplicável a segmentos labiais e dorsais.
28
Realizações fonéticas como [x h] são [ – estridente].
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Mais recentemente, tem-se advogado que não apenas [±anterior] como também de
[±distribuído] têm poder distintivo apenas no âmbito das coronais, não sendo, portanto, aplicável a
segmentos que não sejam [coronal]. De fato, como vemos na tabela acima, no caso das fricativas
labiais e dorsais, não é necessário dispor tanto de [±estridente] quanto de [±distribuído] para
distingui-las entre si. Note que, entre as labiais e as dorsais, esse traço pode ser relevante, uma vez
que [±distribuído] não as abrange29. Assim:
fv sz x
[±estridente] – + – + + – +
[±anterior] + + –
[±distribuído] + – +
[LABIAL] [CORONAL] [DORSAL]
Quadro 10
Traços de modo
[±contínuo] – sons produzidos sem bloqueio da corrente de ar (na cavidade oral). Esse traço
diferencia oclusivas e africadas (–) de fricativas (+), entre as obstruintes; e separa as nasais (–) das
líquidas (+).
[±soltura retardada] – sons produzidos com bloqueio seguido de fricção. Apenas as africadas são 41
marcadas positivamente com esse traço. Sendo assim, o mesmo distingue oclusivas (–) de africadas
(+).
[±nasal] – sons produzidos com abaixamento do véu palatino. Diferencia sons orais (–) de nasais
(+).
[±lateral] – sons produzidos com a seção medial da língua abaixada pelos lados.
Traços laríngeos
[±vozeado] – são produzidos com vibração das pregas vocais. Diferencia sons vozeados (+) de
desvozeados (–).
29
No caso das dorsais, o traço [±alto] tem sido evocado para distinguir [x ], (+), de [ ], (–).
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[±glote espalhada] – sons produzidos com as pregas vocais separadas. Distingue obstruintes
vozeadas e desvozeadas (–) das aspiradas e murmuradas (+).
[±glote constrita] – sons produzidos com fechamento da glote. Costuma ser usado para marcar
positivamente as consoantes glotal ([]), ejectivas e implosivas.30
[+ ant] [– ant]
[-voz] p t [– contínuo]
[– soante] [+voz] b d ɡ [– nas]
[-voz] f s ʃ (x) [+ contínuo]
[+voz] v z ʒ
m [+ nas] [– contínuo]
[+ soante] l [+ lat] [– cont]
ɾ [– nas] [– lat] [+ cont] 42
(r) [+ contínuo]
Quadro 11
Para o segmento [l], o valor para o traço [±contínuo] costuma variar translinguisticamente.
Defendemos aqui que, no português, esse segmento é [– contínuo]. Temos duas evidências, uma de
caráter histórico e outra, sincrônica. Em palavras como ‘alma’[anima>anma>alma], por exemplo,
houve uma dissimilação da nasalidade, que transformou [n] em [l]. Essa transformação de caráter
dissimilatório operou apenas na mudança para o traço [±nasal], o que nos leva a intuir que os demais
traços que caracterizam os dois segmentos têm o mesmo valor, aí incluído [±contínuo]. Sendo
assim, [n] e [l] são igualmente [– contínuo]. De caráter sincrônico, podemos relatar a variação entre
esses segmentos, ocorrente em itens como neblina ~ lebrina, nutrido ~ lutrido, Leblon ~ Neblon,
fenomenal~felomenal.
A adoção de traços distintivos torna a descrição de regras fonológicas mais econômica.
Também mostra a motivação para o processo, além de permitir a notação de que o processo ocorre
com classes naturais (ver a seguir).
30 A maior parte dos sons nas línguas naturais é [– glote espalhada] e [– glote constrita].
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Traços redundantes
Dizemos que traço é redundante quando seu valor pode estar previsto a partir da
especificação do valor de outro. Por exemplo, se soantes são sempre vozeadas, podemos dizer que a
especificação positiva do traço [soante] pressupõe a especificação também positiva de [vozeado].
Essa previsibilidade, entretanto, pode estar circunscrita a um sistema linguístico específico. Por
exemplo, no inventário vocálico do português ou do italiano, todas as vogais [+arredondado] são,
necessariamente, [+recuado]. Da mesma forma, todas as vogais [-recuado] são [-arredondado].
Exercícios
1) Complete a tabela abaixo com os valores dos traços relativos aos segmentos em pauta e
responda às questões a seguir (para traços monovalorados, indique onde for pertinente).
±soante ±silábico ±contínuo ±nasal ±vozeado LABIAL CORONAL DORSAL
[p]
[b]
[m]
[f]
[v]
[t]
[s] 43
[n]
[l]
[k]
[x]
Como dissemos, a noção de traços distintivos é muito útil, pois torna a descrição de regras
mais econômica e mostra a motivação para o processo, além de demonstrar que o processo ocorre
com classes naturais. Classe natural é um grupo de segmentos, identificados sob um rótulo comum,
que apresentam características partilhadas apenas por eles dentro de um sistema. Um bom sistema
de traços fonológicos permite reunir classes naturais com um número pequeno de traços: número
menor que seria utilizado para identificar um cada elemento desse grupo.
Note que, para definir [p, t, k] no português (no espanhol, no alemão ou no inglês), é
necessária a utilização dos seguintes traços: [– soante], [– contínuo] e [– vozeado]. Através dessa
combinação, abrangemos apenas esses segmentos (não há outros, nessas línguas, que possam ser
definidos por esses traços). Disso decorre que [p, t, k] constituem uma classe natural (e que o
sistema de traços adotado consegue dar conta disso!). Por outro lado, para definir apenas o [p], é
preciso usar mais traços: além dos traços [– soante], [– contínuo] e [– vozeado], teríamos de
acrescentar [LABIAL]. Se pensarmos no conjunto [p, s, l], o único traço que poderíamos utilizar para 44
esse grupo, seria [+ consonantal], que envolve outros segmentos do inventário do português,
digamos [f, t, g]. Isso significa que o grupo [p, s, l] não constitui uma classe natural nessa língua.
Além disso, devemos dizer que os segmentos reunidos em uma classe natural costumam estar
envolvidos nos mesmos processos (esses processos costumam ser tomados como indicadores
constituição de classe natural). Por exemplo, há, em espanhol, um processo chamado de
espirantização (ou fricativização), que transforma [b], [d] e [g] em [], [] e [], respectivamente,
a) pode ser descrita com um conjunto de traços que abrange apenas os elementos desse
grupo;
b) tem número de traços usados para sua descrição menor que o utilizado para descrever
qualquer dos elementos desse grupo individualmente;
c) costuma participar solidariamente de processos fonológicos.
Os fonemas /t/ e /d/ fazem parte de uma classe natural chamada de oclusivas ([–soante], [–
contínuo]) coronais ([CORONAL]). Formalizando o mesmo processo por meio de traços, teremos o 45
esquema abaixo. Notem que a formalização da regra da maneira que segue dá conta tanto da
palatalização que ocorre com /t/ e com /d/:
A B C
Quadro 12
1) Formalize, através de traços distintivos, as regras dos seguintes processos, alguns vistos em
sala de aula.
2) Formalize as regras dos processos nos itens a, b e c em uma única regra (como ocorre no
Espanhol). Lembre-se de que, nesse caso, você deverá pensar no conceito de classe natural
(ver acima). 46
+ contínuo
Temos os seguintes principais tipos de regras fonológicas (nomeadas pelo processo que
desencadeiam):
Transformação: A e B são segmentos foneticamente distintos. É o tipo de regra que
captura a relação entre alofones (também podendo expressar regras neutralizadoras, se B estiver
associado a outro segmento diferente de A). As regras R = /p/ [ph]/ #___ (do inglês), P = /t/ [t
/ __i (do português) e Q = /b/ [] / V___ (do espanhol) são exemplos de regras de transformação.
De acordo com a transformação que ocorra, esse processo pode ter outros nomes: nasalização,
palatalização, fricativização (ou espirantização) etc.
desse processo em outras línguas latinas. Realizações como vrido [] para ‘vidro’ ou gaviota
para ‘gaivota’ também podem ser consideradas exemplos de aplicação (variável) de regra de
metátese (ou descritos como processos de metátese).
/net/ /advogado/
R – Inserção: net
Outras regras: … …
Saída: net
Quadro 13 49
O exemplo acima mostra providências de adaptação de empréstimo em [net]. Nele, vemos
que a inserção da vogal alta diante de /t/ cria o contexto para a palatalização (ou africação) do
plosiva coronal. Algo semelhante ocorre com o item []. Sendo assim, podemos dizer
que a regra R alimenta a regra P, fornecendo-lhe o contexto de aplicação: sem a inserção do [i] não
ocorreria a palatalização.
Sangramento. Dizemos que duas regras R e P estão em relação de sangramento, quando a
aplicação de uma regra (R, por exemplo) retira o contexto de aplicação da regra P. Vejamos o
seguinte exemplo, válido para vários falantes de PB.
Rep. Subj. /dor##aguda/
R – Apagamento doØ##a.gu.da
P – Silabificação do. Øa.gu.da
Saída: do.a.gu.da
Quadro 14
Na situação acima, a regra de apagamento retida a possibilidade de a coda // virar o onset da
sílaba seguinte (ressilabação), vaga disponível na sílaba que inicia a palavra ‘aguda’. Em outras
palavras, a regra R sangra a regra P, ao retirar-lhe o contexto de aplicação.
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Há casos em que a situação se inverte: uma regra que alimentaria a outra ocorre antes desta,
situação na qual teríamos a contra-alimentação. De maneira análoga, se uma regra que sangraria
outra ocorre depois desta, teremos o que chamamos de contrassangramento. Em ambos os casos,
temos formas opacas, que contrariam uma generalização fonológica na língua. Notem-se, a seguir,
exemplos do português de casos de contra-alimentação (quadro 15) e contrassangramento (quadro
16).
/prta#insenso/
A – Alteamento [pxta# ises]
B – Africação n.a
C – Res. de Hiato [pxtØ# ises]
D – Silabificação [px.t i.se.s]
Subaplicação de regra (contra-alimentação; cf. Damulakis, 2010)
Quadro 15
/pte#ama/
A – Alteamento [pt#ama]
B – Africação [pt#azuw]
C – Res. de Hiato [ptØ#azuw]
D – Silabificação [p.ta.zuw] 50
Sobreaplicação de regra (contrassangramento)
Quadro 16
Quadro 17
Quadro 18
O segundo conjunto (em 18) de dados nos mostra que a regra de vozeamento ocorre depois
da regra de espirantização nesse dialeto. Se fosse o oposto, para /la kama/, teríamos *[la ama], o
que não é atestado.
Exercícios
51
1) Para os itens do espanhol abaixo, indique a derivação (regras pertinentes: vozeamento e
espirantização; v. quadro 18 e 19), de maneira a obter as realizações adequadas com os dados
(com contra-alimentação).
Rep. Subjacente /roba/ /tipiko/ /nada/ /la kama/
A – Espirantização
B – Vozeamento
Saída
2) Mostre que o sequenciamento inverso daria formas agramaticais como *[la ama] (a partir
Vimos que a fonologia, não lidando diretamente com elementos portadores de significados –
embora aqueles sejam relevantes para a distinção destes –, atua na pronunciação de elementos
significativos, advindos da morfossintaxe. Foram dadas algumas concepções distintas para o
fonema. Além de fonemas, há unidades menores que estes, como os traços distintivos, e alguns
podem ser maiores, como a sílaba e o pé métrico, por exemplo.
As unidades morfossintáticas e as fonológicas não são isomórficas: não há como fazer um
mapeamento de um para um entre elementos morfossintáticos e elementos fonológicos, ocorrendo a
isomorfia apenas acidentalmente. Assim, em pintor, temos dois morfemas pint+or31, mas o primeiro
morfema se separa em duas sílabas: pin.tor; já em pré-sal, os dois morfemas estão cada qual em
52
uma sílaba. A palavra paraíso se separa em quatro sílabas, que se agrupam em dois pés métricos,
assim divididos (pa.a)(i.z)32, embora sua divisão morfológica (em dois morfemas) seja
/pa.ai.z+/. Para este curso, optamos por resumir os princípios universais que regem essas
unidades, deixando algumas sugestões de leitura para que os alunos se aprofundem no assunto.
No que ficou conhecido como Fonologia Linear (SPE), o segmento era visto como uma
matriz de traços distintivos, que não apresentavam níveis hierárquicos. Entre esses traços, postulava-
se a existência de [silábico], que seria positivo para o núcleo da sílaba, e [acentuado], que indicaria a
proeminência acentual. Os valores relacionais de acento e de silabicidade levaram os fonólogos a
considerar desnecessários esses traços.
5.1 A sílaba
Os diacríticos ‘’ e ‘’ indicam, respectivamente, os acentos primário e secundário. O ponto ‘.’ indica o limite de sílaba.
32
Em algumas publicações, usam-se os símbolos ‘´’ e ‘`’ nas respectivas vogais com a mesma finalidade: (pà.a)(í.z).
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A sílaba pode ser vista como uma unidade fonológica constituída de um onset (ou ataque),
seguida de um núcleo (ou pico) e uma coda (ou declive). Esses dois últimos constituintes formam a
rima. Esquematicamente, temos (usa-se a letra grega sigma ‘σ’ para indicar a categoria sílaba):
Uma sílaba completa seria, então, do tipo ONC. Desses elementos, apenas o núcleo é
obrigatório. Sem este elemento não há sílaba. Podemos encontrar, portanto, sílabas desprovidas de
onset e sílabas desprovidas de coda. O padrão mais comumente encontrável nas línguas do mundo é
ON, ou seja onset seguido de núcleo. Isso significa que há línguas que não apresentam sílabas
(O)NC, mas não há aquela que repila ON(C).
No português, o onset e a coda podem ser ramificados. Alguns defendem que o núcleo pode
ser ramificado no inglês. Essa ramificação é bastante restringida nessas línguas, não sendo admitidos
quaisquer elementos. No onset do português, por exemplo, está proibida uma sequência como [st],
permitida no inglês ou no holandês, por exemplo. 53
Forma muito comum de tratar a sílaba seria através do que chamamos de ‘camada CV’,
postulada como estrutura intermediária entre os segmentos e a sílaba. Para preencher essa camada,
duas características dos segmentos são avaliadas: a) a representação de sua duração, e b) sua
designação de silabicidade, ou seja, se pode ocupar o pico da sílaba ou, alternativamente, o onset ou
a coda.
Outra maneira de representar a estrutura interna da sílaba é através de moras. A mora é tida
como uma unidade de peso silábico. Nessa perspectiva, apenas os elementos da rima são dotados
dessa unidade. Assim o onset se liga diretamente à silaba. Nas línguas que têm vogais longas, esses
segmentos recebem duas moras (como em b, a seguir). Em outras línguas, a coda silábica pode
receber uma mora, situação na qual as sílabas travadas receberão duas moras (compare d e c).
Sílabas trimoraicas (ou superpesadas) costumam ser evitadas nas línguas do mundo.
Esquematicamente:
54
Para expressar sua duração, as consoantes geminadas devem contar peso. Dessa forma, esses
segmentos, em ambiente intervocálico, esses segmentos não contam mora no onset, mas o fazem na
coda. Vale ressaltar que, nesse caso, esses elementos são considerados ambissilábicos. Veja o
exemplo de par mínimo do italiano para duração consonantal, formado pelos itens fato ‘destino’ (em
a) e fatto ‘fato’ (em b).
33
Vogais longas e ditongos podem ser representados como uma sequência de VV vinculadas à mesma sílaba (σ).
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Como dito acima, o núcleo é o único constituinte obrigatório em uma sílaba. Em uma palavra
portuguesa como há [a], existe apenas o núcleo silábico, não existindo onset nem coda. O padrão
silábico mais recorrente translinguisticamente, porém, é o CV, ou seja, sílaba constituída de onset
(simples) e núcleo.
Isso significa que há uma assimetria no que se refere aos constituintes da sílaba: o onset é
mais frequente que a coda. Consequentemente, há várias línguas do mundo em cujas sílabas o onset
é obrigatório, entre as quais estão línguas muito distantes geneticamente, como o alemão, o havaiano
e o japonês. A ampla maioria das línguas do mundo não faz exigência da existência de coda, e até
muitas delas proíbem esse constituinte. Dessa forma, podemos dizer que existe uma tendência
(universal) nas línguas de exigir onset e de proibir a coda. Em outras palavras, a configuração
silábica CV é não-marcada e sua emergência é frequente em vários processos fonológicos.
Outra assimetria verificada nesses constituintes é que muito frequentemente todos os
segmentos consonantais de dada língua costumam figurar na posição de onset; o inverso ocorre com
a coda: muito comumente, apenas um subconjunto dos segmentos de uma língua costuma figurar em
coda silábica. Além disso, no onset contrastes costumam ser mantidos, ao passo que na coda é
comum ocorrer a neutralização34. A complexidade nesses constituintes também costuma ser muito
restrita nas línguas do mundo, e costuma ser limitada por vários fatores, alguns dos quais vistos a
seguir. 55
34
Sendo assim, podemos dizer que segmentos proibidos na coda estão mais propensos a figurarem em oposições
constantes, ao passo que aqueles presentes permitidos na coda costumam figurar em oposições neutralizáveis.
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Observe o perfil de sonoridade das sílabas [plas], como na palavra plástico, e [fas], como
em frasco, do português:
pé (i.z) é o mais proeminente e porta, em seu núcleo ([i]), o acento primário (indicado por ‘’). O
pé métrico dominado, (pa.a), é portador do acento secundário (indicado por ‘’). Em alguns casos,
temos três pés binários, ao passo que em (le)(gali)(dade), temos dois pés binários e um pé, o
primeiro, degenerado.
Em relação à segunda tendência, verifica-se, nas línguas do mundo, que uma reatribuição de
acento primário, decorrente de processo morfológico, por exemplo, pode fazer que acentos se
desloquem para evitar a colisão. Assim: (ka)(f) + (zio) resulta em (kaf)(zio); (ka)(u)+(ejro)
resulta em (kau)(ejro).
Os tipos de pés mais frequentes nas línguas do mundo são os troqueus (com núcleo à
esquerda) e os iambos (com núcleo à direita). Troqueus podem ser silábicos ou moraicos, ou seja,
podem contar sílabas ou unidades de peso silábico. Sobre o português, afirma Collischonn (1994:
44):
“Nas palavras em que o número de sílabas pretônicas é par, o padrão é sempre este: a primeira sílaba é 57
acentuada e cada segunda sílaba à direita desta. Nas palavras em que o número de sílabas pretônicas é
ímpar, observamos dois padrões possíveis: (a) a segunda sílaba é acentuada e cada segunda sílaba à
direita desta; ou (b) a primeira sílaba é acentuada e o acento seguinte somente cai sobre a terceira
sílaba à direita desta”.
35
Em alguns casos, adoto essa forma, conjugada com a ortografia convencional.
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6. Fonologia de Empréstimo
58
6.1 Inserção e apagamento de segmentos
Ao se deparar com um padrão fonológico (uma sequência de segmentos) inexistente na
língua receptora, como um cluster inicial #CCV, por exemplo, falantes podem optar por reparos
através de dois processos básicos: a inserção e o apagamento, sendo o primeiro processo mais
recorrente translinguisticamente (Kang, 2010). Vejamos alguns exemplos de empréstimos com
epêntese utilizada como estratégia de reparo36.
Para refletir:
36
A maior parte dos exemplos são encontrados em Kang (2011).
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1) Notem que a qualidade da epêntese vocálica varia de língua para língua. É possível
encontrar alguma sistematicidade (intralinguística)? E quanto à qualidade da consoante
na adaptação? Indique as sistematicidades que encontrar.
2) Existe uma ‘conspiração’ para o resultado final dos empréstimos apresentados. Qual
seria?
Quando a epêntese é o processo escolhido, ela pode se dar em locais diferentes. Notem que,
no PB, a epêntese costuma ocorrer no início do cluster #sCV, como em [i]scanner, [i]start, (Will)
[i]Smith; há casos, entretanto, nos quais a fricativa coronal (nesse caso #CV) pode ser seguida de
da Guiana)
spoon [pun] plastic [pattik] Gramme [gam] ~ [garam]
(Krio) (Thai) (Vietnamita)
A fonologia de empréstimos está condicionada por fatores de ordem gramatical, como restrições
de output, processos fonológicos, alofonia, conhecimento linguístico inato e adquirido. Entretanto,
fatores externos também podem atuar, como o grau de bilinguismo (que favorece até mesmo a
importação de segmentos e padrões), o canal de empréstimo (se oral [propaganda, filmes, música,
interação com falante(s) nativo(s) etc.], ou escrito [livros, gibis, rótulos etc.], uma vez que a
ortografia pode favorecer a manutenção de material, ou seja, epêntese em vez de apagamento).
37
Dados em Kang (2011).
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6.3 Examinando empréstimos à luz de restrições
Em uma análise através de um modelo que opera apenas com restrições, como é o caso da Teoria
da Otimalidade, as línguas que recorrem ao apagamento e à epêntese de elementos violam restrições
de fidelidade ao input, uma vez que desrespeitam a quantidade de elementos segmentais existentes
na base: S1S2S3... S1SXS2S3, no caso de epêntese; S1S2S3... S2S3..., no caso de apagamento, por
exemplo. As restrições violadas são as seguintes:
MAX-IO: apagamento de segmentos está proibido.
DEP-IO: inserção de segmentos está proibida.
Vamos examinar o caso do Taitiano acima. Considere que o input possa ser abstraído do filtro
inicial (nível perceptual, de Silverman, 1992), no qual o falante analisa os segmentos a partir do
próprio inventário fonológico). Seguindo o inventário do Taitiano (HERD, 2005), podemos dispor
em traços da seguinte maneira:
[LABIAL] [CORONAL]
([LINGUAL])
[-soante] p t [-contínuo]
f h [+contínuo]
v 60
[+soante] m n [+nasal]
r [-nasal]
Para o filtro de primeiro nível (segmental), equivalente ao nível perceptual, como dito acima,
o falante precisa interpretar a sequência como um input de segmentos em sua própria língua, ou seja,
em seu sistema fonológico (aqui analisado no âmbito do traço distintivo). No caso do Taitiano,
podemos descrever da seguinte maneira:
d t [-soante, CORONAL, -contínuo]. Não interpretável no sistema: [+vozeado]
i i
a a
b p [-soante, LABIAL, -contínuo]. Não interpretável no sistema: [+vozeado]
l r [+soante, -nasal, (CORONAL)]. Não interpretável no sistema: [+lateral]
o o
O Taitiano não tem plosivas vozeadas, de maneira que [d] é percebida como [t] e o [b] como [p].
De forma similar, nessa língua não há a lateral, de forma que a única líquida (soante não nasal)
disponível no sistema é o [ɾ]. Dessa forma, temos o input /tiapɾo/.
No tableau acima, vemos que a restrição COMPLEXONSET não é dominada, sendo a mais altamente
hierarquizada. As restrições MAX-IO e CONTIGUIDADE não estão hierarquizadas entre si (fato
indicado pela linha descontínua) e a restrição que milita contra a inserção (epêntese) de segmentos,
DEP-IO, é dominada por essas três restrições. Por esse motivo, a estratégia de reparo para a
proibição de onset complexo (presente no candidato a, mais fiel ao input) nessa língua é a inserção 61
de segmento, não o apagamento (candidato c, barrado por MAX-IO), nem a metátese (candidato b,
barrado por CONTIGUIDADE). Portanto, o candidato que emerge no taitiano é [tiapoɾo] – o que é
indicado, no tableau pela seta () no candidato d.
Referências
BISOL, Leda (Org.). Introdução a estudos de fonologia do português. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2005.
CHOMSKY, Noam & HALLE, Moris. The Sound Pattern of English. Arper and Row: Nova Iorque,
1968.
COLLISCHONN, Gisela. Acento secundário em português. Fonologia – Análises não-lineares. In:
BISOL, L. (Org.) Letras de Hoje. Volume 29. Número 4. PUC-RS. Porto Alegre, 1994.
DAMULAKIS, G. N. Fonologias comparadas de algumas línguas Macro-Jê. Tese de Doutorado.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010.
DAMULAKIS, Gean N. Opacidade da inserção vocálica em contexto de fricativa coronal: o caso de
empréstimos no PB. ReVEL, vol. 15, n. 28, 2017. [www.revel.inf.br].