Novos Lugares e Olhares de Memoria

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Ensaio

NOVOS LUGARES E OLHARES


DE MEMÓRIA: (RE)PENSANDO O PAPEL
DO DOCUMENTÁRIO
FELIPE CAMPO DALL’ORTO
Doutorando em Estudos Culturais pela Universidade do Minho
E-mail: [email protected]

Recebido em 13/abril/2019
Aprovado em 30/abril/2019
Sistema de Avaliação: Double blind review

Resumo: O presente artigo se propõe a analisar a importância do documen-


tário para a construção de memórias sociais, debatendo assim, o seu papel
como uma ferramenta de comunicação, ao mesmo tempo, que assume o lu-
gar de ‘armazenador’ da memória. A memória sendo entendida como um
fenômeno social, fluido, que contribui para a construção de significados in-
dividuais e coletivos. Dessa forma, documentário e memória se apropriam
dos avanços tecnológicos para construir e armazenar histórias e narrativas
a partir das recordações. Realizou-se uma pesquisa exploratória, a partir de
um levantamento bibliográfico, aplicando o método indutivo para atingir o
objetivo proposto.
Palavras-chave: Memória. Documentário. Novas tecnologias

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INTRODUÇÃO

O ser humano é um ser criativo, repleto de ideias e da vonta-


de de contá-las. Há vários estímulos para se contar uma história, seja
pela vivência pessoal, pela vontade de contar a experiência do outro
ou relatar um fato presenciado. É importante entender que a ideia não
surge do nada, é um processo mental, fruto da imaginação e do desen-
volvimento desse pensamento. Dessa forma, é preciso desenvolver esse
potencial para vivenciá-las e desenvolver a capacidade de relatá-las. O
desafio de um ‘contador de história’, é dar forma a essa ideia em sua
plenitude, a partir do desenvolvimento criativo, ampliando assim, o
conhecimento do mundo, de quem a conta e de quem a ouve.
Ao contar uma história, o ser humano expressa a própria voz,
manifestando uma opinião a partir da maneira de pensar e enten-
der o mundo, agindo, interagindo ou reagindo a ele. A utilização
do documentário para contar histórias, permite ao diretor que ele
ofereça essa opinião, apresentando uma visão específica que repre-
senta os fatos pesquisados. Assim, é preciso entender como as his-
tórias que são oferecidas pelos meios de comunicação resultam na
construção de pensamentos sociais, sendo necessário entender que
o ser humano é reativo à elas. Para estabelecer essa relação de diá-
logo com o outro, de contar a história de alguém, é preciso entender
a própria percepção do mundo e utilizá-la para estabelecer uma
conexão, essa interação a partir da linguagem faz parte da comuni-
cação em sua essência.
A comunicação é um processo social e simbólico constituído
que estabelece uma partilha de experiências, pensamentos e reflexões,
pelas quais se busca um registro da sociedade na qual estamos inseri-
dos. É importante observar que as novas tecnologias estão mudando
não apenas as formas de armazenamento da recordação, mas influen-
ciando em várias esferas sociais, como a tradição, as perspectivas cul-
turais e a própria mídia, buscando cada vez mais interação entre as
memórias individuais, levando em consideração as subjetividades, o
esquecimento e a tentativa de construir novos significados culturais.
Assim, é preciso entender, qual a importância do documen-
tário para a construção de memórias sociais? Dessa forma, o artigo
pretende mostrar, a partir de uma pesquisa exploratória, com levan-
tamento bibliográfico, aplicando o método indutivo, como o docu-
mentário assume esse lugar de ‘armazenador’ da memória, ao mesmo
tempo que precisa ser revisto como um produto de comunicação em
transformação, impactado pela revolução tecnológica atual, onde há
uma mudança social em curso que provoca transformações nas em-
presas de comunicação e nos consumidores, que passam a assumir o
papel de protagonistas das próprias histórias, criando uma comuni-

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cação que começa a circular de uma nova maneira, pois é gerada a
partir de diferentes visões de mundo.

DOCUMENTÁRIO – UM PRODUTO DE COMUNICAÇÃO

Ao longo da história, a comunicação serviu para expressar


ideias, eternizar fatos e auxiliar na formação da sociedade, pois pos-
sibilitou que os indivíduos se estabelecessem em grupos sociais, de-
finindo regras e valores próprios que contribuíram para a formação
do cidadão, levando-os às primeiras experiências de cooperação e
conflito entre grupos, contribuindo de alguma forma para o cresci-
mento pessoal e social.
Ao mesmo tempo, a comunicação se tornou uma ferramenta
importante de controle social e econômico, influenciando na mer-
cantilização da cultura, na criação de uma indústria do entreteni-
mento e da informação, atuando na construção simbólica e cultural
da sociedade, pois

As formas simbólicas foram produzidas e reproduzidas em escala sem-


pre em expansão; tornaram-se mercadorias que podem ser compradas e
vendidas no mercado; (...) De uma forma profunda e irreversível, o desen-
volvimento da mídia transformou a natureza da produção e do intercâmbio
simbólicos no mundo moderno (THOMPSON, 1998, p. 19).

A comunicação cresceu de forma rápida enquanto mercado e


indústria, propagando a cultura de massa como única cultura vigen-
te, “De uma forma ou de outra, todos somos consumidores de pro-
dutos culturais. (...) Os media, em particular, e as indústrias culturais,
em geral, fazem parte do nosso dia, do nosso mundo, de nós” (SOU-
SA, 2009, p. 59). A cultura midiática faz valer do seu potencial global
ainda forte para contribuir na construção de um pensamento hege-
mônico ligado a determinados grupos econômicos onde, segundo
Boudieu (2011) a cultura dominante legitima as outras subculturas
para exercer mais facilmente seu domínio, pois reforça valores e des-
mobiliza a cultura das classes dominadas, produzindo dessa forma,
novas representações sociais. Para Moscovici (2007, p. 08) “(...) as
representações sustentadas pelas influências sociais da comunicação
constituem a realidade de nossas vidas cotidianas e servem como o
principal meio para estabelecer as associações com as quais nós nos
ligamos uns aos outros”. Dessa forma, a influência da comunicação
nas relações humanas, está diretamente relacionada aos interesses
sociais e à expressão cultural de uma sociedade.
Dentre os diversos produtos culturais midiáticos, o documen-
tário tem destaque quando se trata de contribuir para a construção

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de memória e identidade, visto que, tem exercido importante função
como ferramenta de registro social, com a preocupação de contar
histórias, através da construção de uma realidade. O documentário
é, assim, uma produção cinematográfica, que segue a lógica da pro-
dução audiovisual na qual as etapas de produção facilitam a criação
do filme, que une de forma gradativa a perspectiva do diretor e as
histórias dos atores sociais. Para Nichols (2016, p. 35) “Sempre há um
pouco de cada. A história que um documentário conta tem origem
no mundo histórico, mas, ainda assim, é contada do ponto de vista
do cineasta e na voz dele”.
Essa forma particular de contar histórias, tem se transformado
ao longo dos anos, e se, no início o documentário era visto apenas
como uma ferramenta de registro, com as novas linguagens e expe-
rimentações - tanto na estética, como na técnica – tem-se visto uma
safra de produções com concepções de narrativas cada vez mais cria-
tivas, onde o documentarista pode testar mais, sem perder o foco em
descrever aquele momento, visto que

No cinema documentário se descreve bem mais que no cinema de ficção.


Descrever é gravar o que registram nossos olhos; é gravar o nosso olhar.
Descrever é observar… olhar, escutar, percorrer, acompanhar, examinar.
Descrever é contemplar o mundo sem maior alteração do que a do próprio
olhar (GUZMÁN, 2017, p. 49).

A partir do momento que os meios assumem essa função do


olhar, se apropriam do lugar de ‘contadores de história’ e passam a
determinar uma forma de noticiar os acontecimentos. “Os meios
de comunicação eletrônica, que pareciam destinados a substituir a
arte culta e o folclore, agora o difundem maciçamente” (CANCLINI,
2003, p. 18). Surge aí, um novo desafio para o lugar do documentário,
como mais um produto de comunicação mercantilizada, ou como
uma ferramenta transcultural, que constrói uma comunicação mais
diversificada e representativa, onde “As representações sociais devem
ser vistas como uma maneira específica de compreender e comunicar
o que já sabemos. (...) e têm como objetivo abstrair sentido do mun-
do e introduzir nele ordem e percepções, que reproduzam o mundo
de forma significativa” (MOSCOVICI, 2007, p. 46).
Assim, ao assumir um papel transcultural, o documentário
enfatiza a produção de uma diversidade cultural que contribui para
que diferentes grupos ou indivíduos deem forma a novos padrões
transculturais tanto na apropriação como na estrutura. “Um novo
tipo de diversidade toma forma: a diversidade de diferentes cul-
turas e formas de vida, cada uma delas decorrente de permeações
transculturais” (WELSCH, 1999, p. 201).
Dessa forma, é preciso levar em consideração que existem outras

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histórias a serem representadas, a partir de outras perspectivas, pois o
ser humano vem aprendendo a ter a sua própria interpretação de mun-
do. Para Cavalcanti (2002), essa visão torna o indivíduo mais sensível
e crítico, desenvolvendo a necessidade de se expressar, em “paredes de
cavernas ou em aparelhos de computação” (CAVALCANTI, 2002, p.
13). Já Freire (1983) mostra que a versão de cada um, é resultado da vi-
vência pessoal, das experiências e relações sociais, de interação com o
outro e com o mundo, pois assim, se apropria da realidade para recriá-
-la. “(...) vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescen-
tando a ela algo de que ele mesmo é o fazedor. Vai temporalizando os
espaços geográficos. Faz cultura” (FREIRE, 1983, p. 43).
Ter essa percepção do mundo não é tarefa fácil, visto que, cada
experiência provoca uma interpretação particular da história, mas isso
não inviabiliza a possibilidade de comunicar, pois cada experiência hu-
mana representativa pode ser compartilhada, construindo assim, um
repertório coletivo e plural, já que “cada um registra o que pode, cons-
trói uma visão diferente e, portanto, parcial” (CANCLINI, 2003, p. 21).
Para Benjamin (1994, p. 197), “são cada vez mais raras as pes-
soas que sabem narrar devidamente”, e o documentarista precisa
aprender a lidar com a realidade que lhe é apresentada, para interagir
a ela e transformá-la em conteúdo fílmico, criando um material que
leva em consideração as subjetividades, na tentativa de construir no-
vos significados culturais.
Alguns autores já buscaram estabelecer definições em relação
às narrativas do documentário, para Bernard (2007) a utilização de
storytelling é uma poderosa ferramenta para o documentarista, Go-
doy (2017) destaca a estruturação da linguagem como potencial in-
vestigativo, já Puccini (2009) destaca a importância da estruturação
do discurso e da produção na criação dos elementos que constituirão
o documentário. Nichols (2016) e Penafria (1999) tiveram a preocu-
pação de classificá-los.
Nichols (2016) caracteriza seis modos de documentários: ex-
positivo, observativo, reflexivo, participativo, poético e performático,
já Penafria (1999), aponta quatro tipos de documentários: de exposi-
ção, de observação, interativo, e reflexivo.
Para os autores, o expositivo dá ênfase ao comentário verbal
(geralmente a voz off) e a lógica argumentativa, onde prevalece o tex-
to e não a imagem, no qual se busca a impressão objetiva. No modo
observativo o documentarista procura não interferir nos aconteci-
mentos, priorizando à observação espontânea da realidade, assim “o
isolamento do cineasta na posição de observador pede que o espec-
tador assuma um papel mais ativo na determinação da importância
do que se diz e faz” (NICHOLS, 2016, p. 183).

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O modo reflexivo propõe uma relação mais próxima com o
espectador, na qual (PENAFRIA, 1999) deixa clara a percepção da
forma cinematográfica. Já no modo interativo/participativo, há in-
tervenção direta do documentarista, que pode ser ouvido e visto, in-
teragindo de forma dinâmica com as personagens ou com a própria
narrativa fílmica, para Nichols (2016, p. 188) “o envolvimento trans-
forma-se em um padrão de colaboração ou confronto”, assim, a par-
ticipação do documentarista geralmente influencia “de maneira sig-
nificativa para o impacto geral do filme” (NICHOLS, 2016, p. 190).
Além desses quatro, Nichols (2016) apresenta o modo poético,
que enfatiza o caráter lírico, com uma preocupação estética em que a
forma é mais valorizada. E o performático permite mais experimen-
tação, é mais subjetivo, busca compreender o que é conhecimento e
“intensificam o desejo retórico de ser convincente e o vinculam mais
a um objetivo afetivo do que persuasivo” (NICHOLS, 2016, p. 210).
Dessa forma, o ponto de vista é um ponto essencial na produ-
ção de documentários, pois irá determinar a perspectiva que se pre-
tende adotar na construção de um material audiovisual que contribui
na estruturação da memória material e imaterial, pois “agora não se
considera mais a memória como vestígio e armazenamento, e sim
como uma massa plástica que é sempre reformulada sob as diferentes
perspectivas do presente” (ASSMANN, 2011, p. 170).

LUGAR DE MEMÓRIA

Os espaços e lugares de memória estão em constante transfor-


mação, não por serem temporários, mas por dialogarem com as mu-
danças sociais em curso. Assmann (2011) debate sobre esses lugares,
da recordação e das representações ao longo da história, e como esses
elementos que contribuem para a construção de memória e identida-
de são apropriados pela arte, pelos meios de comunicação, e também
pela sociedade, além de buscar compreender a noção de passado,
presente e futuro, na criação de uma memória social e coletiva. Para
a autora, a escrita apareceu “como o medium mais seguro da memó-
ria” (ASSMANN, 2011, p. 195), pois era uma forma de eternizar e ser
um suporte material da memória. Santaella (2004) reforça esse ponto
de vista ao dizer que a cultura da escrita fez com que os conteúdos
se tornassem menos efêmeros, alcançando lugares até então inalcan-
çáveis, “ela continua viva por que ainda se preserva na memória da
espécie” (SANTAELLA, 2004, p. 26).
Como a memória, a humanidade não é estática, e a medida
que evolui, vão surgindo outras formas de representação e registro.
Assim, a escrita deixa de ser o registro fiel, já que outras mídias como
a imagem surgem, dando mais valor à memória, não substituindo-a,

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mas se apropriando do que a escrita tem em potencial, dando conti-
nuidade à essa evolução do registro. No campo imagético há a valo-
rização da “manifestação de um afeto ou inconsciente” (ASSMANN,
2011, p. 237), que amplia as capacidades de representação tanto de
quem produz a imagem, como de quem a consome, além de ser um
registro ‘fiel’ daquele momento eternizado.
A imagem faz com que a memória permaneça no fluxo do
tempo, pois atinge lugares que a escrita não consegue alcançar,
construindo arquétipos e símbolos carregados de significados. Para
Bourdieu (2002, p. 9), “os símbolos são instrumentos de conheci-
mento e comunicação e eles tornam possível a reprodução da or-
dem social”, dessa forma, o caráter ideológico da imagem, está a
serviço de interesses individuais, que se tornam coletivos. Assim, as
imagens são interpretações singulares que se perpetuam ao longo
do tempo, servindo tanto para registrar o momento, como provo-
car sensações e recordações.
A memória precisa ser entendida como um fenômeno indivi-
dual, algo relativamente íntimo, e também como um fenômeno co-
letivo e social, que serve como um registro a partir da história oral,
na qual possa relatar acontecimentos vividos pessoalmente ou como
classifica Pollak (1992, p. 201) acontecimentos “vividos por tabela”.
Essa memória individual, passível de mudanças, é na verdade um
elemento para a construção da identidade social de diversos grupos.
Para Olick (2008, p. 151) “A memória, nosso senso comum nos
diz, é um fenômeno fundamentalmente individual”, mas que passa
por um processo de transição da memória individual para uma me-
mória coletiva como resultado de interesses políticos e comerciais do
século XIX, para tanto, pensadores da época, como Maurice Halbwa-
chs, Emile Durkeim e Henri Bergson, contribuíram para transformar
esse pensamento, objetivando e padronizando o lugar da memória,
variando não de acordo com a experiência subjetiva, mas de acordo
com as formas mutáveis de estrutura social.
Os filósofos e cientista s são fundamentais nesse processo de
transformação da memória, assim como, os sistemas de armazena-
mento e as tecnologias, que estão em constante evolução, influen-
ciando diretamente esses pontos de vista. O registro e o comparti-
lhamento dessas experiências de memória, por meio do audiovisual,
contribuem para que as recordações avancem além do espaço-tem-
po, construindo momentos marcantes para a sociedade em uma nar-
rativa identitária. Nesse sentido,

A memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto


individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extrema-
mente importante do sent imento de continuidade e de coerência de uma
pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si (POLLAK, 1992, p. 204).

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E, porque não dizer, em negociação também com as tecnolo-
gias que colaboram para a formação do indivíduo e da sociedade.
O desenvolvimento tecnológico amplia as capacidades de armazena-
mento, assim, a digitalização de dados permite que as informações
“sejam traduzidas, manipuladas, armazenadas, reproduzidas e dis-
tribuídas digitalmente” (SANTAELLA, 2004, p. 60). Para Assmann,
os arquivos passam a ser dependentes das mídias tecnológicas, “Os
armazenadores digitais em massa prometem livrar o conhecimento
das suas amarras de espaço e matéria, e torna-lo acessível em qual-
quer lugar” (ASSMANN, 2011, p. 381).

METODOLOGIA

Para que os objetivos deste artigo fossem alcançados, alguns


procedimentos metodológicos foram utilizados, tanto para a constru-
ção do conhecimento, como para a contribuição prática que este estu-
do poderá representar à sociedade. Segundo Gil (2002, p. 19) “Como
toda atividade racional e sistemática, a pesquisa exige que as ações de-
senvolvidas ao longo de seu processo sejam efetivamente planejadas”.
Para tanto, teve caráter exploratório, pois de acordo com Gon-
salves (2007) se caracteriza por desenvolver e esclarecer ideias, para
oferecer uma visão panorâmica ou uma aproximação a um determi-
nado fenômeno. Gil (2002, p. 41) explica que o objetivo deste tipo de
pesquisa é “proporcionar maior familiaridade com o problema, com
vistas a torná-lo mais explícito ou a constituir hipóteses. Pode-se di-
zer que estas pesquisas têm como objetivo principal o aprimoramen-
to de ideias ou a descoberta de intuições”
Dessa forma, foi feita também um levantamento bibliográfico
com autores que são referência nas áreas de memória e documen-
tário, como Nichols (2016), Penafria (1999), Erll (2011), Guzmán
(2017), Grierson (1932), Assmann (2011), Pollak (1992), Moscovici
(2007), além de autores como Santaella (2004), Welsch (1999), Frei-
re (1983), Bourdieu (2002) e Canclini (2003), que contribuíram de
forma transversal aos temas pesquisados, pois segundo Gil (2002, p.
45) “A principal vantagem da pesquisa bibliográfica reside no fato
de permitir ao investigador a cobertura de uma gama de fenômenos
muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente”.
Além disso, o método indutivo foi escolhido, pois colaborou
na forma de pensar o processo, para desenvolver, a partir de obser-
vações particulares, conclusões encontradas por meio da análise e
da experiência, confirmando esse pressuposto. Para Gil (2008, p. 10)
“De acordo com o raciocínio indutivo, a generalização não deve ser
buscada aprioristicamente, mas constatada a partir da observação de
casos concretos suficientemente confirmadores dessa realidade”.

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O ENCONTRO DO DOCUMENTÁRIO COM A MEMÓRIA

A sociedade busca constantemente criar elementos imagéticos


e sociais que ajudem a dar credibilidade a memória artificial e a me-
mória natural, conectando-as. Surgem assim, os templos da fama,
os monumentos, as bibliotecas, lugares que valorizam a recordação,
para enaltecer, simultaneamente, passado e futuro. Assim, a utiliza-
ção do registro se torna essencial para estabelecer um caminho sim-
bólico do conhecimento, pois

Indivíduos e culturas constroem suas memórias interativamente através da


comunicação por meio da língua, de imagens e de repetições ritualísticas,
e organizam suas memórias com o auxílio de meios de armazenamento ex-
terno e práticas culturais (ASSMANN, 2011, p. 23-24).

A partir do momento que o documentário assume o lugar de


‘guardião’ da memória, ele provoca uma reflexão em quem pretende
contar a própria história, ao mesmo tempo que ao exibi-la, possibili-
ta um diálogo com o outro, pois “Os conteúdos da memória cultural
consistem em grande parte em imagens e narrativas compartilhadas”
(ERLL, 2011, p. 13). E a escolha pela forma como a narrativa é conta-
da, influencia tanto na produção do conteúdo, como no impacto que
causa em quem assiste.
Para Grierson (1932) o cinema documental tem a possibilidade
de ir até a história viva e observar o mundo real, no qual as personagens
e cenários ‘originais’ são mais surpreendentes, pois mostram uma inti-
midade espontânea que valoriza a tela e a própria história a ser contada.
Assim, o documentário se apropria desses conteúdos ‘verdadeiros’, de
aceitação de outros pontos de vista, para construir a propria narrativa.
Com a revolução tecnológica atual, há uma mudança estrutural
em curso que provoca transformações nas formas de produção, pois
os atores sociais tem a possibilidade de assumir o papel de protago-
nistas das próprias histórias, criando uma comunicação que começa
a circular de uma nova maneira, pois é gerada a partir de diferentes
visões de mundo para várias direções, onde o indivíduo se apropria
das formas de produção cultural e assume um papel questionador
em relação à cultura vigente dos meios de comunicação, assumindo
um papel de acordo com suas necessidades de manifestação, criando
produtos culturais independentes, nos quais expõe a própria voz.
Dessa forma, a multiplicidade cultural, aliada ao desenvolvi-
mento tecnológico, possibilita uma comunicação mais acessível, con-
tribuindo para a construção de uma sociedade que se apropria dos
meios de produção cultural dos mass media, para dialogar direta-
mente a partir das mídias digitais.

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(...) é a convergência das mídias, na coexistência com a cultura de massas e
a cultura das mídias, estas últimas em plena atividade, que tem sido respon-
sável pelo nível de exacerbação que a produção e circulação da informação
atingiu nos nossos dias e que é uma das marcas registradas da cultura digi-
tal (SANTAELLA, 2004, p. 28).

Atualmente, a sociedade vive a era da convergência, na qual di-


versas culturas dialogam, representando assim uma mudança cultu-
ral, na qual as pessoas são encorajadas a procurar novas informações
e estabelecer conexões entre conteúdos dispersos. A convergência
mais do que trazer novas possibilidades, gera um espaço de convi-
vência do pensamento social. Jenkins (2009) propõe um conceito
onde tenta definir as modificações na tecnologia, no mercado e na
sociedade que impactam no cenário atual dos meios de comunica-
ção. Para o autor, a cultura da convergência estabelece uma relação
entre três ideias já em voga: a convergência dos meios de comunica-
ção, a cultura participativa e a inteligência coletiva.
A cultura da convergência marca assim, uma evolução das mí-
dias que antes interagiam, para uma mídia que privilegia e estimula
a participação do público tanto na produção quanto no consumo de
conteúdos transmidiáticos. “Através da digitalização e da compres-
são de dados que ela permite, todas as mídias podem ser traduzidas,
manipuladas, armazenadas, reproduzidas e distribuídas digitalmente
produzindo o fenômeno que vem sendo chamado de convergência
das mídias” (SANTAELLA, 2004, p. 60).
Se antes os meios de comunicação tradicionais conviviam, na
sociedade contemporânea eles convergem, proporcionando uma co-
municação muito mais horizontal, do que vertical. É possível perce-
ber que as tecnologias digitais ocupam um papel fundamental nas
novas relações sociais, e que a convergência modifica a relação entre
público e produtor de conteúdo, pois na cultura digital cada um é po-
tencialmente um emissor, produtor ou consumidor de informações.
Assim, tem surgido uma sociedade cada vez mais visual, com
uma narrativa que tem valorizado o que as pessoas têm a falar, crian-
do imagens visuais potentes, onde incorporam informação, pontos
de vista, criatividade e sentimento de pertença. Dessa forma, a es-
trutura narrativa do documentário é organizada tendo como base a
ideia do diretor e de quem vive a história, reforçando o caráter co-
letivo do cinema, onde os elementos que constituirão o filme devem
ser cuidadosamente escolhidos para que reflitam a subjetividade de
quem conta a história.
Mesmo que seu filme seja de comédia, tragédia, terror, fan-
tasia ou infantil, ele deve incorporar alguma questão com a qual
você se identifique. A vida deixa cicatrizes em todo mundo, e to-

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dos que possuem algum autoconhecimento têm questões a serem
exploradas (RABINGER, 2007, p. 81).
É importante que as palavras e imagens escolhidas reproduzam
as atitudes, os trejeitos, o modo de pensar e agir das personagens, e
que isso se dê de forma orgânica e não imposta, para que o público
acredite e se envolva com a narrativa dramática, pois o mesmo já
aprendeu a rejeitar os símbolos característicos e as metáforas sérias
demais. Dessa forma, o diretor deve aprender a transferir a forma de
olhar, realizando um trabalho minucioso e cuidadoso ao longo de
todo o processo, para que se tenha um produto credível, que seja legi-
timado como fonte de informação essencial à expressão da memória.
O documentário ao valorizar os elementos que lhe competem,
se apropria do lugar do registro, como memória viva, mas assume
seu lugar de distanciamento daquela vivência, pois ele representa os
acontecimentos apresentados, sem necessariamente, fazer parte de-
les, visto que “o registro, ou as imagens que se recolhem in loco não
constituem, só por si, a verdade. Esta encontra-se nelas, por isso é
necessário confrontá-las, manipulá-las, para que se revelem em toda
a sua plenitude” (PENAFRIA, 1999, p. 44).
É preciso estar atento aos diversos elementos que compõem
documentário e memória, pois não se deve confiar totalmente na
fala de recordação de quem vive a história, dessa forma, o diretor
precisa lidar com a interpretação dessas lembranças, pois há sempre
o “(...) risco da deformação, da redução e da instrumentalização da
recordação” (ASSMANN, 2011, p. 19). Assim, a fidelidade ao real e
os atravessamentos das fronteiras entre recordação e realidade são
questões estratégicas. Os filmes documentais ao serem produzidos,
soam sempre como uma negociação da memória, onde se produz
um novo passado toda vez que o pretérito existente disponível não é
suficiente para gerar bons acordos no presente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao pensar no documentário como um lugar de memória, é ne-


cessário levar em consideração que representar pessoas e suas his-
tórias requer cuidados éticos, pois de acordo com Nichols (2016),
ao contar a história de alguém, intervindo diretamente ou não, já
há um impacto na vida do outro, por isso há um desafio consciente
ao assumir uma negociação para que as diversas perspectivas sejam
respeitadas. Além disso, é preciso assumir que o documentário ao se
apropriar de recordações particulares, poderá ressignificá-las, trans-
ferindo sentimentos, intenções e experiências, que podem ser indi-
viduais ou coletivas.

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A partir do momento que o documentário assume uma forte
relação com a realidade e com as pessoas que terão suas histórias
contadas, passa a não só retratar os fatos, mas a dar uma versão mais
criativa da própria realidade (GRIERSON, 1932), partindo das entre-
vistas desenvolvidas com as personagens da história, dos dados pes-
quisados, para poder experimentar novas linguagens, valorizando os
elementos que compõem a linguagem cinematográfica, sem perder o
foco do tema a ser debatido.
O documentário se encontra em um momento de transfor-
mação importante, com as novas tecnologias, tem-se uma influên-
cia tanto na estrutura de produção, na construção narrativa, como
nas formas de difusão, atingindo novos públicos e auxiliando para
eternizar histórias que antigamente, não eram contadas. Assim, o
desenvolvimento tecnológico e o aparecimento de novos meios tem
possibilitado a criação de uma cultura híbrida, pois “longe de terem
usurpado o lugar social dessas formas de cultura, os meios de co-
municação foram crescentemente se transformando em seus aliados
mais íntimos” (SANTAELLA, 2004, p. 57). Dessa forma, não se pode
separar os recursos tecnológicos das pessoas que interagem umas
com as outras. Ao mesmo tempo que não se pode ignorar as mudan-
ças provocadas pelas tecnologias. Mais do que permitir a comunica-
ção, a tecnologia ampliou a capacidade de conexão.
Essa transformação está em curso e tem provocado novos
questionamentos, estabelecendo diferentes relações entre as possibi-
lidades de registro. O que não pode se perder é a capacidade de “re-
cordação e reflexão, faculdade básica característica do ser humano”
(ASSMANN, 2011, p. 442), mesmo que na atualidade, essa capaci-
dade, esteja diretamente atrelada à influência das novas tecnologias.

REFERÊNCIAS

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NEW PLACES AND MEMORY LOOKS: (RE) THINKING
THE ROLE OF THE DOCUMENTARY

Abstract: This article proposes to analyze the importance of the documentary for
the construction of social memories, debating about its role as a communication
tool that assumes at the same time the place of ‘ storer ‘ of memory. Memory is
understood as a social and fluid phenomenon that contributes to the construction of
individual and collective meanings. It is observed that documentary and memory
appropriate the technological advances to construct and store stories and narratives
from the memories. An exploratory research was carried out from a bibliographical
survey, applying the inductive method to achieve the proposed objective.
Keywords: Memory. Documentary. New technologies.

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