Práticas Alimentares Xavante Não Soberania e Insegurança Alimentar
Práticas Alimentares Xavante Não Soberania e Insegurança Alimentar
Práticas Alimentares Xavante Não Soberania e Insegurança Alimentar
Resumo
O objetivo do presente estudo foi analisar a atual dieta dos Xavante da Aldeia
Etenhiritipá, localizada na Terra Indígena Pimentel Barbosa, no estado de Mato
Grosso, para uma compreensão mais adequada de determinantes das condições
de alimentação desse povo. Foram coletados dados acerca dos alimentos
consumidos, assim como as percepções sobre a prevalência de cárie dentária
na população como indicativo do alto consumo de açúcares. Optou-se por uma
abordagem metodológica qualitativa utilizando as seguintes técnicas: observação
participante; entrevistas abertas; e recordatório 24 horas de consumo alimentar.
Como resultados, identificou-se um baixo consumo de alimentos tradicionais
e o aumento da dependência e compra de itens alimentares na área urbana.
Quanto à cárie dentária, a maior parte dos entrevistados mencionou algum tipo
de sinal associado à doença bucal. O enfoque deu-se em construir uma explicação
contextualizada sobre as práticas alimentares dentro da atual realidade do grupo.
Palavras-chave: Questões socioambientais. Povos indígenas. Dieta ocidental.
Antropologia da alimentação.
Abstract
The purpose of this paper is to analyse the current diet of the Xavante people from the
Aldeia Etenhiritipá, located in the indigenous territory Pimentel Barbosa, in the State
of Mato Grosso, for a more adequate comprehending of the determinants of these
people’s feeding conditions. It has been gathered data concerning consumed foods,
as well as the perceptions regarding the prevalence of dental caries (tooth decay) in
the population as indicative of high sugars consumption. It was chosen a qualitative
approach utilizing the following techniques: participant observation, open-ended
interviews and 24-hour dietary recall. As a result, it was observed a low level of
consumption of traditional food, increasing dependency and purchase of food items
in urban areas. As for dental caries, most of the interviewees declared some kind of
sign relating to oral diseases. It was focused on providing a contextualized explanation
regarding fooding practices inside the current community’s reality.
Keywords: Socio-environmental issues. Indigenous people. Western dietary pattern.
Anthropology of food.
Após uma série de cisões internas ao grupo e conflitos externos com os Bororo, os
Karajá e os não indígenas, os Xavante fundam a grande Aldeia Sõrepré, de onde mais tarde se
dividiram em três grupos. Um grupo se moveu para o norte e oeste, em direção ao Rio Suiá
Missu; um outro para o oeste em direção à cabeceira do Rio Couto Magalhães. Um terceiro
grupo permaneceu nas proximidades da antiga Aldeia Sõrepré, território não homologado
como terra indígena, onde fundaram a Aldeia Pimentel Barbosa, denominada Etêñiritipa ou
Etenhiritipá pelos Xavante (RAVAGNANI apud GRAHAM, 1995; COIMBRA JR., 2002).
A vivência nas margens do Rio das Mortes permitiu certo isolamento até meados
dos anos 1940, quando os Xavante foram novamente contatados e sua “pacificação” é
oficializada pelo Estado brasileiro associada à campanha estatal em prol da abertura do
interior do país – a denominada “Marcha para o Oeste” do governo do presidente Getúlio
Vargas – e ao processo de colonização. No entanto, os Xavante resistiram ao contato com os
waradzu (não indígenas) até meados de 1960.
1 Os Xerente formam com os Xavante o ramo central das sociedades de língua Jê. Na época em que os
Xavante habitavam a Província de Goyaz (atual estado de Goiás), mantinham intenso contato com os Xerente. É
difícil determinar a natureza desse contato, mas eles são comumente referidos como tribos aliadas (MAYBURY-
LEWIS, 2014).
De acordo com Silva (2008), a pesca é uma atividade pouco realizada. Próximo à
aldeia havia pequenos córregos e os peixes existentes eram pequenos. Poucas vezes ao ano,
antes da estação das chuvas, os homens iam pescar no Rio das Mortes, mas por ser distante
da aldeia era uma atividade pouco praticada.
Para fins desta pesquisa, entende-se por hábitos (práticas) alimentares os meios
através dos quais grupos selecionam, consomem e utilizam porções do conjunto de alimentos
disponíveis. É resultado de um processo histórico induzido por fatores ambientais, sociais,
políticos, econômicos e culturais, todos intrinsecamente relacionados (MEAD; GUTHE, 1945;
BRAGA, 2004). Por essa razão, optou-se por essa análise interdisciplinar para abordar a
questão da alimentação.
Resultados e discussão
Caracterização da dieta
Após a transcrição das entrevistas e análise do R24h, foi possível notar uma unidade
da dieta do grupo. O conjunto de alimentos que atualmente compõe a dieta dos Xavante
não apresenta uma grande variedade, resultado do processo de sedentarização e introdução
dos alimentos industrializados. Segundo Kuhnlein e Receveur (1996), povos com mobilidade
espacial e práticas de caça e coleta apresentam tradicionalmente uma dieta diversa e capaz
de fornecer uma nutrição completa.
Por meio das observações, das entrevistas e do R24h verificamos que a base da
dieta Xavante atual é o arroz branco. Ele foi citado em todos os 18 R24h realizados. Durante
toda a década de 1980, a Fundação Nacional do Índio (Funai) desenvolveu o chamado
“Projeto Xavante”, que introduziu o cultivo mecanizado de arroz branco em grande escala.
A justificativa era de que o Projeto seria um incentivo para adotarem práticas econômicas
distintas das tradicionais, visando às suas autossuficiência e inserção na economia da região.
Todavia, o resultado foi um desequilíbrio ainda maior nos padrões de subsistência e dieta,
transformado uma variedade não nutritiva de arroz em base da dieta alimentar (ISA, 2017;
REICHARDT; GARAVELLO, 2017). Apesar de ser fonte de energia, suas vitaminas e minerais
ficam na casca, que é retirada durante o processo de polimento.
Outro ponto é que a maioria dos alimentos que compõe essa dieta são introduzidos,
representando cerca de 80%, fato que corrobora com os estudos anteriores de Vieira Filho
(1981); Gugelmin e Santos (2001); Coimbra Jr. et al. (2002; 2005); e Silva (2008).
Ao invés de optarem por alimentos mais nutritivos e, muitas vezes, mais baratos, são
escolhidos alimentos com grande teor de sódio, carboidrato, açúcar, gordura trans, corantes
artificiais e ácido fosfórico. Outro ponto preocupante é que o dinheiro recebido dificilmente
perdura o mês todo devido a sua relação espaço-tempo, muito diferente da concepção
ocidental. Em sua lógica, se os “recursos” de um local acabam, existe a possibilidade de
buscar por mais “recursos” em outra região (SAHLINS, 1978). Apesar das inúmeras mudanças
e do aldeamento, tal lógica ainda permanece. Todo ou grande parte do dinheiro é gasto
assim que recebido e no restante do mês a situação é de miséria.
Os determinantes das condições de vida e dos perfis de saúde dos povos indígenas
no Brasil são razoavelmente conhecidos e se amarram ao amplo processo de mudanças
provocadas pela interação com os não indígenas. Para Coimbra Jr. (2005) envolvem
aspectos como restrição territorial associada à mudança de uso da terra; introdução de
doenças; introdução de hábitos alimentares industriais e ocidentais; mudanças nas relações
econômicas e sociais internas e externas aos grupos; acesso diferenciado a serviços de saúde
e de educação.
A partir de 1999, a atenção à saúde dos povos indígenas passou a ser responsabilidade
da FUNASA (Fundação Nacional de Saúde). Nesse mesmo período iniciou-se a implementação
do denominado “Programa de Promoção à Saúde Bucal de Etenhiritipá-Xavante” (Aldeia
Etenhiritipá – TI Pimentel Barbosa/MT). A ideia foi desenvolver um projeto piloto –
diagnóstico inicial das condições de saúde bucal da aldeia – para implantar um programa
de saúde bucal. O programa baseou-se nas experiências reunidas pela Fundação Alemã
para o Desenvolvimento Internacional (German Foundation for International Development
- DSE, 1995), apresentadas no livro Promoting Oral Health in Deprived Communities. Nessa
publicação, profissionais especializados em saúde pública e saúde bucal, com experiência
técnica e de trabalho de campo em diferentes países, registraram diferentes formas de
melhorar as condições de saúde bucal de comunidades carentes através de projetos com
Dos entrevistados, cerca de 44% relatou dores nos dentes ou algum outro sinal,
como cor e aspecto das lesões. Cerca de 22% informou ter extraído algum dos dentes
recentemente. Além disso, muitos entrevistados mencionaram reclamações por parte das
crianças ligadas à cárie. Outro ponto é que apesar da Sesai possuir escovas e pastas de dente
no posto da aldeia para serem disponibilizadas para a população, foi observado que poucos
indivíduos fazem o uso desse recurso.
Conclusões
Ainda que o presente estudo não tenha objetivado avaliar nutricionalmente a dieta
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