Práticas Alimentares Xavante Não Soberania e Insegurança Alimentar

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 19

Revista Brasileira de Desenvolvimento Territorial Sustentável

GUAJU, Matinhos, v.6, n.2, jul./dez. 2020


www.revistas.ufpr.br/guaju

PRÁTICAS ALIMENTARES XAVANTE:


NÃO SOBERANIA E INSEGURANÇA
ALIMENTAR

Mayara Regina Araújo dos Santos


Universidade de São Paulo – Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz
Piracicaba, São Paulo - Brasil
[email protected]

Maria Elisa de Paula Eduardo Garavello


Universidade de São Paulo – Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz
Piracicaba, São Paulo - Brasil
[email protected]

Fernanda Viegas Reichardt


Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP)
Piracicaba, São Paulo - Brasil
[email protected]

Recebido em 27/09/2020. Aprovado em 07/11/2020.


DOI: dx.doi.org/10.5380/guaju.v6i2.76818

Resumo
O objetivo do presente estudo foi analisar a atual dieta dos Xavante da Aldeia
Etenhiritipá, localizada na Terra Indígena Pimentel Barbosa, no estado de Mato
Grosso, para uma compreensão mais adequada de determinantes das condições
de alimentação desse povo. Foram coletados dados acerca dos alimentos
consumidos, assim como as percepções sobre a prevalência de cárie dentária
na população como indicativo do alto consumo de açúcares. Optou-se por uma
abordagem metodológica qualitativa utilizando as seguintes técnicas: observação
participante; entrevistas abertas; e recordatório 24 horas de consumo alimentar.
Como resultados, identificou-se um baixo consumo de alimentos tradicionais
e o aumento da dependência e compra de itens alimentares na área urbana.
Quanto à cárie dentária, a maior parte dos entrevistados mencionou algum tipo
de sinal associado à doença bucal. O enfoque deu-se em construir uma explicação
contextualizada sobre as práticas alimentares dentro da atual realidade do grupo.
Palavras-chave: Questões socioambientais. Povos indígenas. Dieta ocidental.
Antropologia da alimentação.

Guaju, Revista Brasileira de Desenvolvimento Terrritorial Sustentável


está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
Revista Brasileira de Desenvolvimento Territorial Sustentável
GUAJU, Matinhos, v.6, n.2, jul./dez. 2020
www.revistas.ufpr.br/guaju

Xavante food practices: non-food sovereignty


and food insecurity

Abstract
The purpose of this paper is to analyse the current diet of the Xavante people from the
Aldeia Etenhiritipá, located in the indigenous territory Pimentel Barbosa, in the State
of Mato Grosso, for a more adequate comprehending of the determinants of these
people’s feeding conditions. It has been gathered data concerning consumed foods,
as well as the perceptions regarding the prevalence of dental caries (tooth decay) in
the population as indicative of high sugars consumption. It was chosen a qualitative
approach utilizing the following techniques: participant observation, open-ended
interviews and 24-hour dietary recall. As a result, it was observed a low level of
consumption of traditional food, increasing dependency and purchase of food items
in urban areas. As for dental caries, most of the interviewees declared some kind of
sign relating to oral diseases. It was focused on providing a contextualized explanation
regarding fooding practices inside the current community’s reality.
Keywords: Socio-environmental issues. Indigenous people. Western dietary pattern.
Anthropology of food.

Guaju, Revista Brasileira de Desenvolvimento Terrritorial Sustentável


está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
Introdução – Um breve histórico de um povo do Cerrado

O contato dos Xavante com a sociedade moderna ocorreu em diferentes momentos,


determinando distintas frentes migratórias. Nesse estudo é referido o grupo Xavante, que
migrou no início do século XVII do estado de Goiás e passou a viver no estado de Mato
Grosso após as travessias dos Rios Araguaia, Cristalino e das Mortes (denominado Ôwawe
pelos Xavante) (LACHNITT, 1987) na região de Wedezé (MAYBURY-LEWIS, 1984; COIMBRA
JR., 2002; ISA, 2010). Após a travessia do Rio Araguaia rumo a oeste para o cerrado mato-
grossense, os Xavante são definitivamente separados dos Xerente1, que permanecem a leste
do rio (ISA, 2010).

Após uma série de cisões internas ao grupo e conflitos externos com os Bororo, os
Karajá e os não indígenas, os Xavante fundam a grande Aldeia Sõrepré, de onde mais tarde se
dividiram em três grupos. Um grupo se moveu para o norte e oeste, em direção ao Rio Suiá
Missu; um outro para o oeste em direção à cabeceira do Rio Couto Magalhães. Um terceiro
grupo permaneceu nas proximidades da antiga Aldeia Sõrepré, território não homologado
como terra indígena, onde fundaram a Aldeia Pimentel Barbosa, denominada Etêñiritipa ou
Etenhiritipá pelos Xavante (RAVAGNANI apud GRAHAM, 1995; COIMBRA JR., 2002).

A vivência nas margens do Rio das Mortes permitiu certo isolamento até meados
dos anos 1940, quando os Xavante foram novamente contatados e sua “pacificação” é
oficializada pelo Estado brasileiro associada à campanha estatal em prol da abertura do
interior do país – a denominada “Marcha para o Oeste” do governo do presidente Getúlio
Vargas – e ao processo de colonização. No entanto, os Xavante resistiram ao contato com os
waradzu (não indígenas) até meados de 1960.

Esgotados pelas doenças, pela fome e pelos conflitos, o “contato” entre


representantes da sociedade nacional e os indígenas foi finalmente “estabelecido”. A partir
de 1970 e das políticas fiscais do governo federal, destinadas a fomentar a colonização e o
desenvolvimento econômico em larga escala da região Centro-oeste brasileira, colonos e
fazendeiros chegaram à porção leste da Bacia do Xingu (MAYBURY-LEWIS, 1984; COIMBRA
JR., 2002; WELCH et al., 2013; ISA, 2016). O acesso a porções do território tradicional do povo

1 Os Xerente formam com os Xavante o ramo central das sociedades de língua Jê. Na época em que os
Xavante habitavam a Província de Goyaz (atual estado de Goiás), mantinham intenso contato com os Xerente. É
difícil determinar a natureza desse contato, mas eles são comumente referidos como tribos aliadas (MAYBURY-
LEWIS, 2014).

Revista Brasileira de Desenvolvimento Territorial Sustentável


GUAJU, Matinhos, v.6, n.2, jul./dez. 2020
30
Xavante envolveu, muitas vezes, fraudes. Sabe-se de casos em que, para disponibilizar terras
para monocultivos – inicialmente de arroz e, recentemente, soja –, autoridades alteraram
mapas e atestaram a ausência de habitantes indígenas. Isso possibilitou a implementação de
vastas áreas desmatadas de cerrado para a produção de cultivares e também para a criação
de gado (ISA, 2010). Intensas lutas pela recuperação de territórios ancestrais, bem como
esforços para demarcar as terras que ainda continuavam sob seus domínios – em alguns
casos, solicitando o aumento dos seus limites –, caracterizaram o final da década de 1970
e o início da década de 1980 (ISA, 2010).

A estratégia desenvolvida pelo Cacique Ahöpowe, na tentativa de preservar seu


território e manter sua tradição com autonomia após o contato com não indígenas, é
conhecida por “Estratégia Xavante”. Oito de seus netos participaram de um programa
de intercâmbio de estudantes indígenas no município de Ribeirão Preto, estado de São
Paulo. Adquiriram, assim, conhecimento da língua portuguesa e da cultura não indígena.
Atualmente, são interlocutores do seu povo e atores sociais politicamente ativos (FSP, 2007).
O atual cacique da Aldeia Etenhiritipá, que sediou esta pesquisa, Jurandir Siridiwê Xavante,
foi o oitavo neto de Ahöpowe a participar da chamada “Estratégia Xavante”.

Economia e atividades tradicionais

Os Xavante eram tradicionalmente um povo com mobilidade espacial e alimentação


sustentada através das atividades de caça e coleta (MAYBURY-LEWIS, 1984; COIMBRA JR., 2002;
ISA, 2010; WELCH et al., 2013). No processo de aldeamento, tornaram-se permanentemente
sedentários e o contato com os não indígenas intensifica-se (WELCH et al., 2013).

A caça é uma atividade majoritariamente masculina e há diferentes tipos: a que os


jovens fazem, normalmente mais próxima à aldeia; a coletiva, normalmente feita de carro,
em que os homens vão para locais mais distantes da aldeia; e a com uso do fogo, acuando
os animais (SILVA, 2008; WELCH et al., 2013). Silva (2008) esclareceu que, segundo relatos
dos mais idosos, quando não havia delimitação do território, realizavam esse terceiro tipo de
caçada para obter grandes quantidades de carne em situações como casamentos e sempre
na época seca do ano – maio a setembro. No entanto, a mudança de uso da terra ocasionou,
além da diminuição do território, a redução do estoque de fauna cinegética, e a caça deixou
de ser uma atividade tão recorrente (WELCH et al., 2013). Houve um aumento de pressão nas

Revista Brasileira de Desenvolvimento Territorial Sustentável


GUAJU, Matinhos, v.6, n.2, jul./dez. 2020
31
áreas mais próximas às aldeias, consequência do avanço da fronteira agrícola.

De acordo com Silva (2008), a pesca é uma atividade pouco realizada. Próximo à
aldeia havia pequenos córregos e os peixes existentes eram pequenos. Poucas vezes ao ano,
antes da estação das chuvas, os homens iam pescar no Rio das Mortes, mas por ser distante
da aldeia era uma atividade pouco praticada.

No caso da coleta, as mulheres costumavam caminhar pelo Cerrado com cestos,


coletando os frutos encontrados nas primeiras horas do dia devido a temperaturas elevadas
da região (SILVA, 2008). Nas idas para as roças, aproveitavam para coletar frutos que
encontravam, como o buriti. As chamadas “roças de toco” estão estabelecidas em áreas de
mata de galeria, locais em que se encontram muitas plantas dessa espécie, além de frutos de
palmeiras nativas do Cerrado.

Mesmo com a divisão das atividades, as mulheres conheciam as técnicas de caça


e os homens a época de frutificação das espécies nativas do bioma. Quando os jovens
realizavam excursões para obtenção de produtos para confecção de ornamentos, estas
eram planejadas para coincidirem com épocas de frutificação, por exemplo (MAYBURY-
LEWIS, 1984; SILVA, 2008).

As populações indígenas desenvolveram, ao longo de sua história, técnicas de


domesticação e manipulação de espécies de fauna e flora como forma de manejo agrícola,
introdução de espécies frutíferas nas roças de mandioca, caça de subsistência, técnicas
de pesca e utilização de calendários de atividades que reúnem coleta e cultivo (DIEGUES;
ARRUDA, 2001; DIAMOND, 2013; SILVA, 2008).

Diante da diminuição de seus territórios, da instabilidade da garantia de seus direitos


e das transformações de seus princípios produtivos, a necessidade de procura por comércios
locais torna-se mais expressiva e as atividades de subsistência inclinam-se fortemente ao
abandono, favorecendo, assim, um consumo crescente de alimentos industrializados e
reforçando mudanças prejudiciais à saúde (COIMBRA JR., 1991).

A caracterização dos itens alimentares é proposta como meio para compreender


as atuais práticas alimentares procedentes do contexto de mudança de uso da terra e
intensificação do contato com os não indígenas.

Revista Brasileira de Desenvolvimento Territorial Sustentável


GUAJU, Matinhos, v.6, n.2, jul./dez. 2020
32
Metodologia

Para fins desta pesquisa, entende-se por hábitos (práticas) alimentares os meios
através dos quais grupos selecionam, consomem e utilizam porções do conjunto de alimentos
disponíveis. É resultado de um processo histórico induzido por fatores ambientais, sociais,
políticos, econômicos e culturais, todos intrinsecamente relacionados (MEAD; GUTHE, 1945;
BRAGA, 2004). Por essa razão, optou-se por essa análise interdisciplinar para abordar a
questão da alimentação.

Tratou-se de uma pesquisa de caráter qualitativo que pretendeu compreender um


universo de significados, motivos, aspirações, crenças e atitudes aprofundadas em nível
dos significados das ações e relações humanas através dos diferentes modos de perceber
e descrever os fenômenos. Nessa lógica, o enfoque se deu em caracterizar e construir
uma explicação contextualizada acerca das práticas alimentares dentro da atual realidade
dos Xavante da Aldeia Etenhiritipá, isto é, compreender um fenômeno social complexo,
preservando-se as características holísticas e significativas do evento em seu “lugar”
(ESCOBAR, 1995). É no lugar que se conjugam as complexas relações entre os domínios
biofísicos e humanos que esclarecem configurações particulares do ambiente, da sociedade
e da cultura. Em outras palavras, o lugar é onde as entidades socionaturais habitam e, logo,
existem (ESCOBAR, 1995).

A nossa área de estudo integrou o Cerrado do nordeste mato-grossense, onde estão


situadas terras indígenas de ocupação Xavante que constituem parte do seu antigo território
de ocupação tradicional há pelo menos 180 anos (WELCH et al., 2013). É considerada a maior
reserva Xavante demarcada, com 328.966 hectares, entre os municípios de Canarana/MT e
Ribeirão Cascalheira/MT (14o41’S e 52o20’W) (WELCH et al., 2013). Foi homologada em 1986
e a população atual é de aproximadamente 3000 pessoas, segundo relatos locais, distribuída
em 14 aldeias. A Aldeia Etenhiritipá conta com aproximadamente 600 pessoas distribuídas,
atualmente, em 42 casas, sendo a maior aldeia da Terra Indígena (TI) Pimentel Barbosa em
termos populacionais.

Foram utilizadas três técnicas distintas e complementares para coleta de dados,


incluindo o consumo de açúcares e prevalência de cáries dentárias na população: (I)
observação participante; (II) entrevistas abertas; e (III) recordatório 24 horas de consumo
alimentar (R24h).

Revista Brasileira de Desenvolvimento Territorial Sustentável


GUAJU, Matinhos, v.6, n.2, jul./dez. 2020
33
Como unidade social de análise foi estabelecida a unidade doméstica familiar.
Inicialmente, referiu-se à amostragem de cerca de 30 indivíduos nos diferentes núcleos
familiares. No entanto, a coleta de dados foi encerrada em decorrência de saturação
teórica, pela repetição das categorias de análise e de informações presentes no discurso
dos entrevistados (FONTANELLA et al., 2011). Ao final, foram contabilizadas 22 entrevistas
e 18 R24h2 realizados. As mulheres foram priorizadas por serem as responsáveis dentro da
unidade doméstica familiar. No entanto, na hipótese delas não se sentirem confortáveis,
homens dentro daquele núcleo familiar foram os entrevistados. Também foram priorizados
os líderes da comunidade por se tratar de pessoas significativas dentro do grupo.

Conforme sugerido na literatura (DA MATTA, 1978; MALINOWSKI, 1986; GEERTZ,


1989; BERNARD, 2011; VIERTLER, 2012), optou-se pela imersão na realidade do grupo
estudado através da observação participante. O objetivo foi compreender de forma mais
aprofundada acerca do tema da pesquisa pela observação direta e por um período de tempo
das formas costumeiras de viver de um grupo de pessoas associadas de alguma maneira.
É um processo guiado preponderantemente pelo senso questionador do etnógrafo. Desse
modo, a utilização de técnicas e procedimentos etnográficos não segue padrões rígidos
ou pré-determinados. Os instrumentos de coleta e análise utilizados nessa abordagem de
pesquisa, muitas vezes, têm de ser formuladas ou recriadas para atender à realidade do
trabalho de campo.

Para contextualizar as práticas alimentares, suas dimensões e a percepção da


população acerca da incidência de cáries dentárias como indicador do alto consumo de
açúcares na aldeia, foram realizadas entrevistas abertas. O diálogo foi iniciado solicitando ao
entrevistado que contasse sobre seus hábitos alimentares desde a infância. Foi necessária a
interlocução de um tradutor da própria aldeia, visto que a maior parte dos entrevistados não
compreendia nem falava o português. Ao iniciar a entrevista através dessa abordagem foi
assegurada a maior liberdade ao entrevistado para compartilhar sua experiência segundo
sua própria lógica, referenciais e conceitos, além de propiciar um ambiente relacional para o
entrevistado discorrer sobre diferentes aspectos da sua vida, abordando temas relacionados
às mudanças dos hábitos alimentares (POSEY, 1986; BERNARD, 2011). Por isso, a elaboração
de perguntas fechadas e diretas sobre o tema não é necessária, já que existe um plano
permanente que figura na mente do pesquisador acerca dos objetivos (BERNARD, 2011).
Ademais, evitou-se o uso de um nome para uma categoria de objetos que podem ou não ter

2 Recordatório 24 horas de consumo alimentar.

Revista Brasileira de Desenvolvimento Territorial Sustentável


GUAJU, Matinhos, v.6, n.2, jul./dez. 2020
34
nomenclaturas próprias (POSEY, 1986).

Acerca da incidência de cárie dentária foram questionados e investigados os sinais


da doença, tais como: dor dentária, cor e aspecto das lesões, através da percepção do
entrevistado. Eventualmente, se confirmada a presença de cárie dentária, o indivíduo era
encaminhado – caso fosse a sua vontade – ou era recomendado, dirigir-se ao posto de saúde
presente na aldeia para tratamento com o profissional contratado pela Secretaria Especial
de Saúde Indígena (Sesai).

O R24h foi aplicado durante as entrevistas. É um tipo de inquérito dietético aplicado


para avaliar a ingestão de alimentos de indivíduos e grupos populacionais (CAVALCANTE et
al., 2004; HOLANDA; BARROS FILHO, 2006). Foi solicitado aos entrevistados para relatarem,
além da ingestão do dia anterior, quais os alimentos que eram consumidos familiarmente
com maior frequência. Embora, do ponto de vista nutricional, seja recomendada mais de
uma aplicação do R24h, nesse caso, dado o objetivo e a complexidade da pesquisa, os dados
apresentados são resultados de uma única aplicação.

Foi contabilizado o número de citações de cada alimento, independente da


sua origem, e, primeiramente, avaliada a variedade de itens consumidos, bem como a
participação de cada item na alimentação. Depois, a origem dos alimentos consumidos foi
analisada. Os resultados foram compilados para a caracterização do perfil alimentar atual
dos Xavante.

Resultados e discussão

Caracterização da dieta

Durante a aplicação do R24h, foi observado que a dieta não é tradicionalmente


dividida em refeições como a nossa. No caso dos Xavante, essa divisão pode ser categorizada
em períodos de maior fome. Em grande parte, aproximadamente 67%, era realizada uma
única refeição durante o dia. Quando havia outra refeição, tratava-se, em todos os casos,
do consumo de café sempre com uma grande quantidade de açúcar. Em um dos casos,
aproximadamente 5,6%, o entrevistado relatou não ter ingerido nenhum alimento no dia
anterior.

Revista Brasileira de Desenvolvimento Territorial Sustentável


GUAJU, Matinhos, v.6, n.2, jul./dez. 2020
35
Um dado que chama a atenção é o relato da ingestão de açúcar. A grande maioria
citou o alimento no R24h. Todavia, uma parte dos entrevistados alegou o baixo consumo,
sendo este majoritariamente no café. Inclusive, o consumo de café ocorre sempre com a
adição de grande quantidade de açúcar, em torno de 3 a 4 colheres de sopa, embora
a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda o consumo máximo de 25g por
dia (cerca de seis colheres de chá), incluindo o açúcar dos alimentos industrializados.
Apesar de alegarem consumir pouca quantidade (autorreferência), muitos dos alimentos
industrializados consumidos por eles apresentam açúcar em suas composições. Além
disso, o consumo de alimentos industrializados caracterizados como bolachas, bolachas
recheadas, salgadinhos, balas e refrigerantes aparecem na dieta, principalmente de crianças
e adolescentes, com muita expressividade. Todos esses fatos, juntamente com a observação
participante, permitem identificar que o consumo de açúcar é mais expressivo do que o
relatado.

Após a transcrição das entrevistas e análise do R24h, foi possível notar uma unidade
da dieta do grupo. O conjunto de alimentos que atualmente compõe a dieta dos Xavante
não apresenta uma grande variedade, resultado do processo de sedentarização e introdução
dos alimentos industrializados. Segundo Kuhnlein e Receveur (1996), povos com mobilidade
espacial e práticas de caça e coleta apresentam tradicionalmente uma dieta diversa e capaz
de fornecer uma nutrição completa.

Por meio das observações, das entrevistas e do R24h verificamos que a base da
dieta Xavante atual é o arroz branco. Ele foi citado em todos os 18 R24h realizados. Durante
toda a década de 1980, a Fundação Nacional do Índio (Funai) desenvolveu o chamado
“Projeto Xavante”, que introduziu o cultivo mecanizado de arroz branco em grande escala.
A justificativa era de que o Projeto seria um incentivo para adotarem práticas econômicas
distintas das tradicionais, visando às suas autossuficiência e inserção na economia da região.
Todavia, o resultado foi um desequilíbrio ainda maior nos padrões de subsistência e dieta,
transformado uma variedade não nutritiva de arroz em base da dieta alimentar (ISA, 2017;
REICHARDT; GARAVELLO, 2017). Apesar de ser fonte de energia, suas vitaminas e minerais
ficam na casca, que é retirada durante o processo de polimento.

Outro ponto é que a maioria dos alimentos que compõe essa dieta são introduzidos,
representando cerca de 80%, fato que corrobora com os estudos anteriores de Vieira Filho
(1981); Gugelmin e Santos (2001); Coimbra Jr. et al. (2002; 2005); e Silva (2008).

A pequena parcela de alimentos tradicionais, 20%, é composta de frutas coletadas;

Revista Brasileira de Desenvolvimento Territorial Sustentável


GUAJU, Matinhos, v.6, n.2, jul./dez. 2020
36
cultivos tradicionais, como o milho e abóbora Xavante; e caça. Mediante entrevistas, foi
inferido que o consumo de alimentos tradicionais é possivelmente expressivo em meados do
período chuvoso (novembro a abril) até meados da época seca (maio a setembro), e estaria
relacionado ao plantio nas roças, já que seu preparo ocorre próximo do período chuvoso.

Em relação à coleta, apesar da visível diminuição e de relevantes modificações


ocorridas em seus padrões, ainda é uma atividade recorrente e de grande importância
(WELCH et al., 2013). Além disso, a atividade de coleta é a mais garantida por não necessitar
de manejo e por cumprir um papel ecológico na paisagem local. Isso não significa, todavia,
que seja abundante na dieta familiar. Se inevitável, pode equivaler à única refeição do dia,
contribuindo para o aporte energético necessário.

O alimento mais apreciado pelos Xavante e mencionado em todas as entrevistas, a


carne, foi citado apenas quatro vezes no R24h, representando cerca de 8,7% dos alimentos
consumidos, sendo desse total 75% de carne de caça e 25% de carne comprada em mercados.

Observou-se que as hortaliças (legumes e verduras) são a categoria de alimentos com


menor consumo. No R24h nenhuma hortaliça é citada. A pequena quantidade consumida
tem sua origem predominante nas roças e varia de acordo com a sazonalidade.

Diante das possíveis diferenças nas práticas alimentares na estação chuvosa e na


estação seca, seria importante empreender um estudo com a coleta de dados em ambos os
períodos. Além disso, realizar o acompanhamento da dieta pela administração de mais de
um R24h por unidade doméstica poderia elucidar ainda melhor certos padrões de consumo
e diminuir distorções.

As mudanças nas práticas alimentares estão vinculadas tanto às formas de


obtenção de alimentos quanto aos alimentos em si. Houve uma diminuição na caça, coleta
e na produção para autoconsumo nas roças, e aumento da dependência das compras de
alimentos em mercados através dos recursos provenientes de programas para aquisição de
renda, como o “Bolsa Família” e “Aposentadoria Rural”.

Existe uma nítida preferência por alimentos industrializados, consequência desse


complexo contexto. Além disso, desde a implementação dos programas de assistência
social, assim como do recebimento dos salários por parte dos professores, não há nenhum
tipo de iniciativa voltada para o gerenciamento financeiro. Os Xavante contam apenas até
o cinco, depois é “muito”, ou seja, trata-se de um grupo que jamais teve um contato tão
intenso e constante com dinheiro e, em um determinado momento, eles passam a receber

Revista Brasileira de Desenvolvimento Territorial Sustentável


GUAJU, Matinhos, v.6, n.2, jul./dez. 2020
37
uma quantidade mensal.

Ao invés de optarem por alimentos mais nutritivos e, muitas vezes, mais baratos, são
escolhidos alimentos com grande teor de sódio, carboidrato, açúcar, gordura trans, corantes
artificiais e ácido fosfórico. Outro ponto preocupante é que o dinheiro recebido dificilmente
perdura o mês todo devido a sua relação espaço-tempo, muito diferente da concepção
ocidental. Em sua lógica, se os “recursos” de um local acabam, existe a possibilidade de
buscar por mais “recursos” em outra região (SAHLINS, 1978). Apesar das inúmeras mudanças
e do aldeamento, tal lógica ainda permanece. Todo ou grande parte do dinheiro é gasto
assim que recebido e no restante do mês a situação é de miséria.

Os mais jovens parecem estar mais expostos e predispostos a uma transição


alimentar já que vivenciam, com mais intensidade, transformações nos modos de vida,
como a obtenção da renda familiar através de políticas públicas e/ou salários, ensino técnico
nas cidades e em cursos de graduação a distância. Por conta desse novo perfil, o acesso ao
centro urbano acaba ocorrendo com maior frequência, além do acesso à tecnologia, como
o uso de celulares e redes sociais.

Práticas alimentares atuais e as consequências do contato

O aumento da densidade populacional, juntamente com o acesso às políticas


públicas como o “Bolsa Família” e “Aposentadoria Rural”, influências externas e as mudanças
no estilo de vida advindas desses processos foram citadas – pelo diretor da escola presente
na aldeia – como fatores que levaram ao aumento do consumo de alimentos introduzidos,
especialmente os industrializados. Esses aspectos também estão vinculados à mudança
de uso da terra pelo avanço da fronteira agrícola na região. Como contabilizamos com a
aplicação do R24h, 80% da atual dieta Xavante é composta por itens introduzidos, sejam eles
cultivados (mandioca, milho não-indígena e cana-de-açúcar), ou comprados em mercados
(feijão, ovo, macarrão, batata, banana, café, refrigerante, suco industrializado, tomate, pão,
chá, café, amendoim e melancia).

Os Xavante não consumiam carnes diariamente, do mesmo modo que outros


povos tradicionalmente caçadores-coletores. Logo, a coleta costumava ser uma atividade
diária, posto que é complemento importante na alimentação desses povos. Mediante os
dados obtidos através do R24h, o consumo de frutas coletadas representa menos de 9% dos

Revista Brasileira de Desenvolvimento Territorial Sustentável


GUAJU, Matinhos, v.6, n.2, jul./dez. 2020
38
itens alimentares. Tal resultado pode ser uma possível consequência das frutas coletadas
não serem consideradas alimentos principais, já que foi observada a presença de cascas
de diferentes frutas, como o pequi, atrás dos domicílios. No entanto, de acordo com Silva
(2008), a coleta, por certo, não teria mais a mesma importância alimentar. As mulheres não
a realizariam com frequência ou realizariam apenas quando não há outra fonte de alimento.

Outro resultado interessante é que mesmo com a existência de uma expressiva


variedade de árvores frutíferas (nativas e introduzidas), há o consumo de frutas compradas,
como a melancia, relatado nas entrevistas e R24h. Tal acontecimento pode se relacionar
ao fato de que por serem tradicionalmente um povo com mobilidade espacial, caçadores-
coletores não sabem como conservar os alimentos e poucos possuem geladeiras para
conservar outros tipos de alimentos além da carne, tradicionalmente moqueada. Outro
evento para ser considerado é que a energia elétrica chega à aldeia apenas em 2014, ou
seja, a introdução de itens, como os eletrodomésticos, é recente.

Em relação à caça, sua diminuição é produto do aldeamento e do crescimento


agropecuário da região, fatores que contribuíram para a diminuição do estoque de fauna
cinegética, juntamente com a introdução da dieta ocidental industrializada. Sobre a carne
comprada em mercados, um dos fatores limitantes é o alto custo e questões pertencentes
ao universo dos significados. O sonho é extremamente importante no mundo Xavante e
para sonhar, precisam consumir carne, e esta deve ser proveniente da caça.

No R24h nenhuma hortaliça é citada, representando a categoria de alimentos com


menor consumo. Na fala dos próprios moradores da aldeia, “é comida de jabuti”.

O preparo das roças ocorre próximo do período chuvoso, que compreende os


meses de novembro a abril. Durante essa época, o consumo de hortaliças, bem como de
alimentos tradicionais (abóbora Xavante, arroz Xavante, feijão Xavante e milho Xavante) é,
de acordo com as entrevistas, maior. No entanto, a coleta de dados foi realizada ao longo do
mês de setembro de 2018 e, em vista disso, o consumo desses alimentos não foi significativo,
parte em decorrência das roças não terem sido sequer preparadas, e também do estoque
disponível já ter acabado. Ainda mediante as entrevistas, é inferido que o consumo desses
alimentos tradicionais é possivelmente expressivo em meados do período chuvoso até
meados da época seca, que compreende os meses de maio a setembro.

É notável a menção aos tubérculos ou às chamadas “batatas tradicionais” – Dasa


Uptabi. As batatas tradicionais possuem baixo índice glicêmico e por apresentarem essa

Revista Brasileira de Desenvolvimento Territorial Sustentável


GUAJU, Matinhos, v.6, n.2, jul./dez. 2020
39
relevância nutricional, assim como cultural, foi realizado um projeto que visava ao resgate
de antigas tradições, cujo resultado, entre outros, foi a cartilha denominada “Daza Uptabi: de
volta às raízes”, publicada em 2007. A ideia era retomar e manter a prática da “domesticação”
de batatas nativas do cerrado – costume tradicional Xavante. Entretanto, apesar da ciência da
existência destes, foram citados em apenas uma das 22 entrevistas e não foram observados
durante o período de campo. Segundo relatos dos locais, a colheita das batatas tradicionais
é realizada no início do mês de abril e são consumidas, predominantemente, pela manhã.

Como anteriormente apontado, a base alimentar do grupo é o arroz branco,


seguido pelo feijão, citado em 17 dos 18 R24h aplicados. A grande preferência alimentar
ainda é a carne de caça, apesar das mudanças de uso da terra, diminuição da atividade de
caça e do estoque de fauna cinegética. Com a intensificação da mudança de uso da terra e as
transformações no perfil socioeconômico dos indígenas, a prática da caça vem se tornando
cada vez mais desarticulada e só não é massivamente substituída pela compra de carne nos
mercados em vista do alto valor financeiro e, para os Xavante, cultural.

É importante ressaltar que a abundância dos povos tradicionais está relacionada


à sua capacidade de adaptarem o que já possuem e o que está disponível no ambiente
de acordo com as suas necessidades (SAHLINS, 1978). Contudo, com as mudanças de
uso da terra, sedentarização e introdução da dieta ocidental, verifica-se a diminuição das
alternativas alimentares, isto é, os recursos alimentares disponíveis no bioma são reduzidos
e, portanto, as atividades de caça e coleta.

A incidência de cárie dentária como indicativo do alto consumo de açúcares

Os determinantes das condições de vida e dos perfis de saúde dos povos indígenas
no Brasil são razoavelmente conhecidos e se amarram ao amplo processo de mudanças
provocadas pela interação com os não indígenas. Para Coimbra Jr. (2005) envolvem
aspectos como restrição territorial associada à mudança de uso da terra; introdução de
doenças; introdução de hábitos alimentares industriais e ocidentais; mudanças nas relações
econômicas e sociais internas e externas aos grupos; acesso diferenciado a serviços de saúde
e de educação.

Do ponto de vista epidemiológico, a cárie é a doença bucal mais importante.


Sua estreita ligação com a dieta e os hábitos alimentares também lhe confere relevância

Revista Brasileira de Desenvolvimento Territorial Sustentável


GUAJU, Matinhos, v.6, n.2, jul./dez. 2020
40
antropológica, uma vez que os meios de produção de alimentos e padrões de consumo de
diferentes sociedades humanas se refletem nas condições de saúde bucal.

Estudos antropológicos baseados na análise de remanescentes de esqueleto têm


mostrado a evolução da periodicidade de cárie relacionada a transformações nas formas de
subsistência. Estudos paleopatológicos demonstram que antes do advento da agricultura,
as populações humanas apresentavam uma menor prevalência de cárie. Em populações
caçadoras-coletoras, a cárie ocorria em baixa frequência (menos de 2% dos dentes
permanentes apresentavam lesões) e era mais comum em adultos do que em crianças.
Já nas economias agrícolas do neolítico, nas quais predominava uma dieta mais rica em
carboidratos, a prevalência de cárie podia superar 20% (MEIKLEJOHN et al., 1984; MOORE;
CORBETT, 1971; PERZIGIAN et al., 1984; SCOTT; TURNER, 1988).

A situação de saúde bucal da população Xavante foi avaliada no início da década


de 1990 por Pose (1993) e, mais posteriormente, por Arantes et al. (2001). Pose assinalou a
precariedade do quadro observado no conjunto das aldeias Xavante, a despeito de alguma
heterogeneidade entre as comunidades. Além da ausência de um atendimento odontológico
regular para a maioria da população, a autora refere o caráter “mutilador” dos serviços
odontológicos oferecidos, algo evidenciado pelo escasso número de restaurações dentárias
e de outros procedimentos. Um ponto importante destacado por Arantes et al. (2001) é
que o crescente consumo de produtos industrializados – destaque para o açúcar refinado –
contribui para aumentar a ocorrência de cáries. Inúmeros estudos têm demonstrado que o
aumento no consumo do açúcar está diretamente relacionado ao aumento nos índices de
cárie (GUSTAFSSON et al., 1954; WHO, 1992; ARANTES et al., 2001; ARANTES, 2005).

A partir de 1999, a atenção à saúde dos povos indígenas passou a ser responsabilidade
da FUNASA (Fundação Nacional de Saúde). Nesse mesmo período iniciou-se a implementação
do denominado “Programa de Promoção à Saúde Bucal de Etenhiritipá-Xavante” (Aldeia
Etenhiritipá – TI Pimentel Barbosa/MT). A ideia foi desenvolver um projeto piloto –
diagnóstico inicial das condições de saúde bucal da aldeia – para implantar um programa
de saúde bucal. O programa baseou-se nas experiências reunidas pela Fundação Alemã
para o Desenvolvimento Internacional (German Foundation for International Development
- DSE, 1995), apresentadas no livro Promoting Oral Health in Deprived Communities. Nessa
publicação, profissionais especializados em saúde pública e saúde bucal, com experiência
técnica e de trabalho de campo em diferentes países, registraram diferentes formas de
melhorar as condições de saúde bucal de comunidades carentes através de projetos com

Revista Brasileira de Desenvolvimento Territorial Sustentável


GUAJU, Matinhos, v.6, n.2, jul./dez. 2020
41
participação comunitária (ARANTES, 2005). O programa foi norteado por três componentes
principais: o educacional, o preventivo e o assistencial, e foi encerrado há cerca de 16 anos.

Percebeu-se durante o programa que entre os Xavante predominava a ideia de que


o dentista só realizava extrações. A possibilidade de restauração dentária era desconhecida
da maior parte da comunidade de Etenhiritipá. Vale ressaltar que a palavra em Xavante para
designar o profissional odontólogo é Dawaza ni’wá e significa “arrancador de dentes”. Tal fato
foi igualmente constatado durante as observações e entrevistas. Se constatada a existência
da cárie, comumente é solicitado pelo paciente a extração do(s) dente(s) – isso segundo os
Xavante entrevistados e o profissional responsável da Sesai.

Dos entrevistados, cerca de 44% relatou dores nos dentes ou algum outro sinal,
como cor e aspecto das lesões. Cerca de 22% informou ter extraído algum dos dentes
recentemente. Além disso, muitos entrevistados mencionaram reclamações por parte das
crianças ligadas à cárie. Outro ponto é que apesar da Sesai possuir escovas e pastas de dente
no posto da aldeia para serem disponibilizadas para a população, foi observado que poucos
indivíduos fazem o uso desse recurso.

É nítida a necessidade de estruturar e organizar a implantação efetiva de programas


relacionados à saúde bucal, com o objetivo de garantir o acesso à assistência básica, bem
como a métodos preventivos e, principalmente, a ações educativas. A educação em saúde
fornece aos indígenas instrumentos e conhecimentos importantes para a valorização e
aceitação do autocuidado com a saúde, fundamental frente ao processo de transformações
socioeconômicas e culturais no qual estão inseridos.

Conclusões

Diante dos resultados obtidos, é importante suscitar o debate da segurança


e soberania alimentar dos povos indígenas. Os fatores socioeconômicos que acabam
induzindo mudanças no modo de vida dos Xavante se relacionam com a diminuição, em
diferentes níveis, das atividades tradicionais de caça e coleta, assim como das roças. Isso
compromete o acesso à quantidade e à qualidade dos itens alimentares, ao passo que
aumenta a dependência da renda para a sua obtenção.

Ainda que o presente estudo não tenha objetivado avaliar nutricionalmente a dieta

Revista Brasileira de Desenvolvimento Territorial Sustentável


GUAJU, Matinhos, v.6, n.2, jul./dez. 2020
42
pela quantificação da ingestão alimentar, é indispensável frisar o alto consumo de alimentos
industrializados, sobretudo o açúcar, além da dieta centralizada no consumo de arroz branco,
de modo que avaliar os impactos nutricionais resultantes desses fatores é tarefa que exige
estudos mais aprofundados.

Outros aspectos cruciais também ligados à situação nutricional das populações


indígenas são os padrões de assentamento e a degradação ambiental, que dizem respeito à
disponibilidade e à utilização dos recursos naturais. O caso dos Xavante parece demonstrar
de modo inequívoco que, embora fundamental para a sobrevivência e a continuidade
cultural e biológica, a demarcação de TIs não constitui garantia suficiente de segurança e
soberania alimentar.

Os diversos componentes analisados apontam para um quadro marcado pela


insegurança e não soberania alimentar, cujos determinantes atrelam-se, sobretudo, a
condições ecológicas e socioeconômicas decorrentes do rápido crescimento populacional,
da degradação ambiental e das dificuldades de sustentabilidade alimentar. O alcance das
recentes transformações ambientais e socioeconômicas sobre os Xavante é amplo e os
reflexos desse conjunto de mudanças sobre as práticas alimentares são significativos.

Em vista disso, propõe-se, a partir dos resultados obtidos, abordar questões


pertinentes à segurança e soberania alimentar como meios para reduzir vulnerabilidades,
isto é, assegurar o direito a alimentos saudáveis e culturalmente apropriados e o direito de
definir seus próprios sistemas de alimentação e produção, adaptando, quando necessário,
suas práticas alimentares, de forma a manter seu modo de vida e de subsistência. Nesse
sentido, é importante evidenciar que a diminuição de atividades tradicionais para subsistência
impacta diretamente na dimensão cultural, na identidade social, no autorreconhecimento e
na sociabilidade dos indivíduos.

Referências

ARANTES, R.; SANTOS, R. V.; COIMBRA JR., C. E. Α. Saúde bucal na população indígena Xavante de Pimentel
Barbosa, Mato Grosso, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 17, p. 375-384, 2001.

ARANTES, R. Saúde bucal dos povos indígenas do Brasil e o caso dos Xavante de Mato Grosso. 152f. Tese
(Doutorado em Ciências) – Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca. Fundação Oswaldo Cruz, Rio de
Janeiro, 2005.

BRAGA, V. Cultura alimentar: contribuições da antropologia da alimentação. Saúde em Revista, Piracicaba, v.

Revista Brasileira de Desenvolvimento Territorial Sustentável


GUAJU, Matinhos, v.6, n.2, jul./dez. 2020
43
6, n. 13, p. 37-44, 2004.

BERNARD, H. R. Research methods in anthropology: qualitative and quantitative approaches. 5. ed. Plymouth:
AltaMira Press, 2011.

CAVALCANTE, A. A. M.; PRIORE, S. E.; FRANCESCHINI, S. C. C. Estudos de consumo alimentar: aspectos


metodológicos gerais e o seu emprego na avaliação de crianças e adolescentes. Revista Brasileira de Saúde
Materno Infantil, Recife, v. 4, n. 3, p. 229-240, 2004.

COIMBRA JR., C. E. A. Avaliação do estado nutricional em um contexto de mudanças socioeconômicas: o grupo


indígena Surui do estado de Rondônia, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 1991.

COIMBRA JR., C. E. A.; FLOWERS, N. M.; SALZANO, F. M.; SANTOS, R. V. The Xavante in transition: health, ecology,
and bioanthropology in central Brazil. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2002.

COIMBRA JR., C. E. A.; SANTOS, R. V.; ESCOBAR, A. L. (Orgs.). Epidemiologia e saúde dos povos indígenas no
Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; Abrasco, 2005.

DA MATTA, R. O ofício do etnólogo, ou como ter “anthropological blues”. In: NUNES, E. (Org.). Aventura
sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 7-17.

DIAMOND, J. M. Armas, germes e aço: os destinos das sociedades. 15. ed. Rio de Janeiro: Record, 2013.

DIEGUES, A. C.; ARRUDA, R. S. V. (Orgs.). Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasília: Ministério
do Meio Ambiente; São Paulo: USP, 2001.

ESCOBAR, A. Encountering development: the making and the unmaking of the third world. Princeton:
Princeton University Press, 1995.

FOLHA DE SÃO PAULO (FSP). “Estratégia Xavante”. Folha de São Paulo, 11 agosto, 2007.

FONTANELLA, B. J. B.; LUCHESI, B. M.; SAIDEL, M. G. B.; RICAS, J.; TURATO, E. R.; MELO, D. G. Amostragem
em pesquisas qualitativas: proposta de procedimentos para constatar saturação teórica. Cadernos de
Saúde Pública, v. 27, n. 2, p. 389-394, 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0102-311X2011000200020. Acesso em: 12 ago. 2018.

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.

GRAHAM, L. R. Performing Dreams. Discourses of immortality among the xavante of central Brazil. Austin:
University of Texas Press, 1995.

GUGELMIN, S. A.; SANTOS, R. V. Ecologia humana e antropometria nutricional de adultos Xavante, Mato Grosso,
Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, p. 313-322, 2001. Disponível em: www.scielo.
br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 11X2001000200006&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 29 abr. 2019.

GUSTAFSSON, B. E.; QUENSEL, C. E.; LANKE, L. S.; LUNDQVIST, C.; GRAHNÉN, H.; BONOW, B. E.; KRASSE, B. The
effect of different levels of carbohydrate intake on caries activity in 436 individuals observed for five years. The
Vipeholm Dental Caries Study. Acta Odontologica Scandinavica, v. 11, p. 232-364, 1954.

HOLANDA, L. B.; BARROS FILHO, A. A. Métodos aplicados em inquéritos alimentares. Revista Paulista de
Pediatria, v. 24, n. 1, p. 62-70, 2006. Disponível em: http://www.spsp.org.br/Revista_RPP/24-1-11.pdf. Acesso
em: 21 abr. 2019.

INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). Povos indígenas no Brasil, perguntas frequentes. 2010. Disponível em:
http://pib.socioambiental.org/pt/c/faq. Acesso em: 20 set. 2017.

INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). Xavante. 2016. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/povo/

Revista Brasileira de Desenvolvimento Territorial Sustentável


GUAJU, Matinhos, v.6, n.2, jul./dez. 2020
44
xavante. Acesso em: 20 set. 2017.

KUHNLEIN, H. V.; RECEVEUR; O. Dietary change and traditional food systems of indigenous peoples. Annual
Rev Nutr., v. 16, p. 417-42, 1996.

LACHNITT, G. Romnhitsi’ubumro: dicionário Xavante-português. Campo Grande: Missão Salesiana de Mato


Grosso, 1987.

MALINOWSKI, B. Introdução: o assunto, o método e o objetivo desta investigação: aspectos essenciais da


instituição Kula: o significado do Kula. In: DURHAM, E. R. (Org.). Malinowski. São Paulo: Ática. 1986. p. 24-48.

MAYBURY-LEWIS, D. Akwẽ-shavante society. 2. ed. Harvard University Press. Cambridge. Mass. Tradução em
Português: A sociedade Xavante. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1974.

MAYBURY-LEWIS, D. Algumas distinções cruciais na etnologia do Brasil central. In: COIMBRA JR., C. A. E.; WELCH,
J. R (Orgs.). Antropologia e história Xavante em perspectiva. Rio de Janeiro: Museu do Índio/Funai, 2014. p.
17-38.

MEAD, M.; GUTHE, C.E. Manuel for the study of food habits. Bulletin of National Research Council. National
Academy of Sciences. Édition française avec une présentation de Hubert A. et Poulain J. P. Paris: Éditions
Octares, 1945.

MEIKLEJOHN, C.; SCHENTAG, C.; VENEMA, A.; KEY, P. Socioeconomic change and patterns of pathology and
variation in the Mesolithic and Neolithic of western Europe: some suggestions. In: COHEN M. N.; ARMELAGOS
G. J. (Eds.). Paleopathology at the origins of agricultura. New York: Academic Press, 1984. p. 75-100.

MOORE, W. J.; CORBETT, M. E. The distribution of dental caries in ancient british populations - I. Anglo-Saxon
period. Caries Research, v. 5, p. 151-168, 1971.

PERZIGIAN, A. J.; TENCH, P. A.; BRAUN, D. J. Prehistoric health in the Ohio River Valley. In: COHEN M. N.;
ARMELAGOS G. J. (Eds.). Paleopathology at the origins of agriculture. New York: Academic Press, 1984. p.
347-366.

POSEY, D. A. Introdução: etnobiologia, teoria e prática. In: RIBEIRO, D. Suma etnológica brasileira. Petrópolis:
Vozes; Finep, 1986. p. 15-25.

REICHARDT, F. V.; GARAVELLO, M. E. de P. E. Quando habitar corresponde ao direito humano à alimentação


(When to inhabit corresponds to the human right to food). Revista do Direito Internacional, Brasília, v. 14, n.
1, p. 68-79, 2017.

SAHLINS, M. A primeira sociedade da afluência. In: CARVALHO, E. A. (Org.). Antropologia econômica. São
Paulo: Ciências Humanas, 1978. p. 6-43.

SCOTT, G. R.; TURNER, C. G. Dental anthropology. Annual Review of Anthropology, v. 17, p. 99-126, 1988.

SILVA, R. J. N. Seis décadas de contato: transformações na subsistência xavante. 2008. 102 f. Dissertação
(Mestrado – Ecologia Aplicada) – Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (ESALQ)/ Universidade de
São Paulo (USP), Piracicaba. 2008.

VIEIRA FILHO, J. P. B. Problemas da aculturação alimentar dos Xavante e Bororo. Revista de Antropologia, v. 24,
p. 37-40, 1981. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/41615991. Acesso em: 29 abr. 2019.

VIERTLER, R. Métodos antropológicos como ferramenta para estudos em etnobiologia e etnoecologia. In:
AMOROZO, M.; MING, L. C.; SILVA, S. P. ENCONTRO REGIONAL DE ETNOLOGIA E ETNOECOLOGIA. Rio Claro:
UNESP/CNPQ, p.11-29, 2012.

WELCH J. R.; SANTOS R. V.; FLOWERS N. M.; COIMBRA JR., C. E. A. Na primeira margem do rio: território e

Revista Brasileira de Desenvolvimento Territorial Sustentável


GUAJU, Matinhos, v.6, n.2, jul./dez. 2020
45
ecologia do povo Xavante de Wedezé. Rio de Janeiro: Museu do Índio/Funai, 2013.

WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Avances recientes en salud bucodental. Série Informes Técnicos
826. Genebra: WHO,1992

Revista Brasileira de Desenvolvimento Territorial Sustentável


GUAJU, Matinhos, v.6, n.2, jul./dez. 2020
46

Você também pode gostar