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Formando sentidos para a devoção: a construção do

trabalho acústico no worship


Forming senses for devotion: the construction of acoustic
work in Christian worship

Taylor de Aguiar1
Artur Costa Lopes2

RESUMO
Para compreender transformações recentes em parte do panorama acústico cristão
brasileiro, empreendemos uma pesquisa etnográfica nos cultos da Brasa Church, grupo
de jovens da Igreja Batista Brasa, em Porto Alegre/RS, e nos ritos da Igreja Católica de
Santana, em Duque de Caxias/RJ. Atribuímos centralidade ao worship, tendência de
música e culto estabelecida diferencialmente nesses dois espaços rituais, e às mediações
entre estética, corporalidade e acústica que se articulam em ambos, configurando o
worship como uma forma sensorial. Objetivamos explorar as contribuições de uma
antropologia sensorial para analisar a construção do trabalho acústico no worship,
enfatizando a mobilização de sensações corporais e as similaridades e diferenças que
caracterizam essa forma devocional nos dois contextos em tela.
Palavras-chave: Música cristã. Worship. Trabalho acústico. Antropologia sensorial.

ABSTRACT
In order to understand recent transformations in part of the Brazilian Christian acoustic
panorama, we undertook an ethnographic research in the services of the Brasa Church,
a group of young people from the Brasa Baptist Church, in Porto Alegre, Rio Grande
do Sul, and in the rites of the Catholic Church of Santana, in Duque de Caxias, Rio de
Janeiro. We attribute centrality to worship, a trend in music and service differently
established in these two ritual spaces, as well to the mediations between aesthetics,
corporality and acoustics that are articulated in both places, configuring worship as a
sensorial form. We aim to explore the contributions of a sensorial anthropology to
analyze the construction of the acoustic work in worship, emphasizing the
mobilization of bodily sensations and the similarities and differences that characterize
this devotional form in these two contexts .
Keywords: Christian music. Worship. Acoustic work. Sensory anthropology.

1Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Contato: [email protected].
2 Doutor em Musicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Contato:

[email protected].
Taylor de Aguiar
Artur Costa Lopes
Formando sentidos para a devoção: a construção do trabalho acústico no worship

RÉSUMÉ
Afin de comprendre des transformations récentes au sein du panorama musical
chrétien au Brésil, nous avons mené une ethnographie dans les cultes de la Brasa
Church, un groupe de jeunes lié à l'Église Baptiste Brasa, à Porto Alegre, RS, et dans
les rites de l'Église Catholique de Santana, à Duque de Caxias, RJ. Notre point d’intérêt
est centré sur le worship, une tendance de musique et de culte établie de manière
différenciée dans ces deux espaces rituels, et aux médiations entre l'esthétique, la
corporalité et l'acoustique qui s'articulent dans les deux cas, configurant le worship
comme une forme sensorielle. Nous explorons les apports d'une anthropologie
sensorielle pour analyser la construction du travail acoustique fait par le worship, en
soulignant la mobilisation des sensations corporelles et les éléments similaires et
disparates qui caractérisent cette forme dévotionnelle dans les deux contextes
analysés.
Mots-clés: Musique chrétienne. Worship. Travail acoustique. Anthropologie
sensorielle.

Introdução

De que maneira podemos entender o lugar dos sentidos corporais nas


relações entre transformações musicais e formas devocionais? Esta é uma pergunta
suficientemente vaga para receber uma resposta precipitada, mas não deixa de ser
um guia pertinente à indagação curiosa daqueles que, estimulados pelos desafios
de uma antropologia sensorial3, entendem a experiência no mundo como o
desdobramento de ações práticas nas quais os sentidos são protagonistas. Desde
Mauss, estamos preocupados em perceber as configurações que as técnicas
corporais assumem em situações diversas, visto que “o primeiro e o mais natural
objeto técnico e, ao mesmo tempo, meio técnico do homem é seu corpo”
(MAUSS, 1974, p. 407). Quando se trata de corpos humanos, a referência aos
sentidos pode até mesmo parecer uma obviedade. Da filosofia grega clássica ao
século XXI, passando pela “modernidade”, há um longo e complexo percurso de
discussões sobre as disposições sensoriais no mundo ocidental.Largo também é o
caminho percorrido até a produção de uma identificação da música cristã com o
que passou a ser chamado de “música gospel” no Brasil, compreendendo tanto o
universo evangélico quanto o católico. Por volta dos anos 1980, toma forma um
gênero musical de contornos múltiplos, agregando estilos musicais até então
considerados “mundanos” e incompatíveis à execução no mundo religioso. Rock,
rap e sertanejo, entre outros ritmos, adentram os repertórios musicais e o mercado
fonográfico, ecoando cada vez mais no interior de templos em todo o Brasil.
Gravadoras evangélicas começam a surgir, milhões de reais são movimentados
anualmente e uma ampla indústria cultural se forma em torno de artigos religiosos
associados ao rótulo gospel. A popularização do gênero se intensifica nas décadas
de 1990 e 2000, atraindo a atenção de autores/as como Magali Cunha (2007),
que se debruçam sobre o fenômeno de formação e consolidação de uma “cultura

3Ou “antropologia dos sentidos”. Para um contato inicial com essa perspectiva teórico-
metodológica, ver o capítulo “Sentidos”, no livro de Herzfeld (2017).

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gospel” no Brasil – para nos atermos a um conceito elaborado pela autora citada.
De acordo com essa concepção, a expansão de um mercado fonográfico gospel
seria concomitante à constituição de uma demanda evangélica pela circulação de
produtos culturais voltados a essa base religiosa em mídias de massa, o que
refletiria a ascensão de uma nova “cultura evangélica” na contemporaneidade.

No universo católico, o gospel ganhou espaço considerável com a expansão


da Renovação Carismática Católica, movimento chamado por Lopes (2021) de
“explosão católica”, em alusão à ideia de “explosão gospel” proposta por Magali
Cunha a propósito do contexto evangélico. Padrões musicais, de vestimentas, de
ornamentação de templos e de organização de megaeventos, espelhados na
experiência do gospel evangélico, passam a ser comuns no catolicismo carismático
brasileiro, diante de um aumento da visibilidade midiática desse segmento
religioso. Também a música ritual católica passa a dialogar frequentemente com
canções executadas nas rádios, as quais são incluídas em hinários não-oficiais, como
o “Louvemos ao Senhor”4. O gospel se torna uma tendência forte e presente, seja
por meio de composições que se articulam com esse modo de fazer e viver a
música, seja por características corporais associadas à devoção musical dos fiéis ou,
ainda, pelo uso de estilos como a soul music e o pop rock. Há uma aplicação, no
seio do catolicismo, de músicas de origem evangélica.Esse momento histórico,
próximo à passagem do século, representa uma importante fase de transformação
da musicalidade cristã brasileira. Vale lembrar que, antes de sua consolidação no
Brasil, o gospel já existia enquanto um gênero musical nos Estados Unidos há
algumas décadas (POWELL, 2002; CUSIC, 2010)5. A música produzida e
reproduzida nas igrejas evangélicas, tanto históricas quanto de orientação
pentecostal, era em grande parte devedora do legado da hinologia protestante
tradicional, introduzida nas igrejas brasileiras por missionários estrangeiros e
imigrantes a partir da terceira década do século XIX (MENDONÇA, 2014). Os
novos padrões quanto às sonoridades evangélicas modificaram as configurações
rituais dos cultos, promovendo um novo e mais diversificado panorama musical.
O processo transformativo que acompanha a ascensão da paisagem sonora
(SCHAFER, 1991)6 evangélica contemporânea marca, no aspecto ritual, a
viabilização de corporalidades até então mantidas à distância pelas igrejas. Com o

4 A Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) possui um hinário que se atualiza
constantemente e é fiel às diretrizes do Vaticano, sobretudo no que diz respeito à liturgia e à
variedade cultural brasileira. A Diocese de Duque de Caxias e São João de Meriti, no Rio de Janeiro,
produziu um hinário litúrgico próprio, baseado no da CNBB. Existem outros hinários bastante
significativos, destacando-se entre eles o “Louvemos ao Senhor”, que contempla canções que
fizeram sucesso na mídia católica e outras compostas especificamente para a liturgia.
5 É importante pontuar que as características preponderantes do gospel no Brasil, como estilo

musical e “cultura” evangélica inserida no mercado, tomaram forma a partir da experiência


liderada pela Igreja Renascer em Cristo, conforme demonstra Dolghie (2004). Esse processo
ocorreu de forma distinta nos EUA, onde o surgimento de uma indústria fonográfica cristã está
associado às raízes afro-americanas do pentecostalismo daquele país.
6 O conceito de paisagem sonora surgiu nos anos 1960, com o canadense R. Murray Schafer

iniciando as primeiras pesquisas sobre ecologia sonora e formando, com outros pesquisadores, o
World Soundscape Project. Seu principal objetivo era estudar o meio ambiente sonoro. Ele pode
ser definido como um “recorte” de uma situação sonora existente. Ou seja, o produto (resultado
perceptível) da interação entre sons em determinado tempo e local.

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surgimento de bandas de rock gospel e seus circuitos, padrões de usos e costumes


caros à tradição puritana do protestantismo brasileiro, como os trajes e penteados
recatados, deram gradativamente espaço a corpos “descolados”, ornamentados
por acessórios e vestimentas associados à esfera secular, ou seja, ao “mundo”
considerado não-consagrado a Deus (JUNGBLUT, 2007; para o caso argentino,
ver MOSQUEIRA, 2013).No trabalho que se segue, procuramos ultrapassar o
debate sobre o gospel e entender o fluxo corrente das transformações do
panorama acústico cristão a partir de inovações que têm ocorrido em espaços
tanto evangélicos quanto católicos no Brasil. Para tanto, aproximamos dados de
pesquisa extraídos de dois contextos etnográficos distintos: de um lado,
abordamos a adoção da tendência de música e culto worship pela Brasa Church,
grupo, culto e movimento de jovens da Igreja Batista Brasa, em Porto Alegre, RS;
e, de outro, debruçamo-nos sobre a presença de características associadas a esse
modelo no grupo Ressureisamba, ligado à Igreja Católica de Santana, em Duque
de Caxias, RJ. Partindo da constatação de que a música é central nos processos de
mediação do sagrado nesses dois espaços religiosos, pretendemos apontar para
características do worship em suas dimensões estética e acústica, trabalhando com
as sensações, os sentimentos, os movimentos e as configurações corporais presentes
em instâncias de devoção musical, como cultos e missas. Para isso, acionamos a
ideia de “trabalho acústico”, de Samuel Araújo (1992), que preconiza a ideia de
que o fazer musical se estabelece para além da dimensão sonora, devendo,
portanto, ser pensado em todas as suas dimensões constitutivas. Dessa forma, não
colocamos o foco apenas na música em si, mas nas maneiras como as práticas
musicais religiosas são construídas mais amplamente, em linha com determinadas
formas devocionais.

Propomos ainda um diálogo com o conceito de “forma sensorial”, de Birgit


Meyer (2008), na tentativa de melhor enfatizar os processos que envolvem o
compartilhamento coletivo de mediações musicais, com foco específico no
contexto da Brasa Church. Entendemos essas mediações como configurações que
reúnem músicos, instrumentos, canções, tecnologias e performances rituais, entre
outros elementos, na condução do culto e da vida religiosa por uma forma
sensorial que se reflete em formas de organização da devoção. A conceptualização
de Meyer propõe que as formas sensoriais são capazes de produzir um senso de
imediatismo – no sentido de ausência de mediação – em momentos rituais,
funcionando como “modos relativamente fixos para invocar e organizar o acesso
ao transcendental”, criando e sustentando “conexões entre crentes no contexto de
regimes religiosos específicos” (MEYER, 2015, p. 151). Nesse sentido, focalizamos
momentos rituais que produzem mediações musicais, levando em conta a
propensão à “invisibilidade” desses processos que se constituem na Brasa
Church7.Por fim, tecemos um apontamento sobre as potencialidades do worship
para o entendimento das reconfigurações do panorama acústico cristão no Brasil.
Considerando a multiplicidade de formas e definições que a música assume
historicamente nos universos evangélico e católico, de maneira a produzir tensões

7 Essa propensão decorre justamente do senso de imediatismo a que fizemos referência


anteriormente. Mais adiante apresentaremos um desenvolvimento da discussão sobre devoção,
formas sensoriais e mediações musicais.

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quanto ao estabelecimento de padrões de música sagrada, da afirmação coletiva


de canções autorizadas – ou não – para a reprodução em cultos, missas e em
momentos sensitivos nos quais a música se constitui como uma chave para a
mediação com o sagrado, o objetivo principal é localizar e tornar inteligível o
worship no quadro mais recente das transformações pelas quais a música cristã
brasileira tem passado.

Situando transformações relativas a formas devocionais

Iniciemos por imaginar o cenário de uma igreja evangélica brasileira, em


um momento ritual ocorrido há cinco ou seis décadas atrás. No interior do templo,
senhoras se vestem com roupas modestas e recatadas e ocupam bancos rústicos de
madeira, enquanto aguardam o início do tradicional culto de domingo. Muitas
delas estão ajoelhadas, em momentos particulares de oração. Do outro lado da
igreja – pois, em determinado momento, não era permitido aos homens sentarem
no mesmo lado do templo que as mulheres – os homens vestem terno e gravata
impecáveis. Os cabelos estão rigorosamente curtos; os das mulheres são mantidos
severamente longos. Todos portam suas Bíblias e hinários. Em instantes, o coro
coletivo entoará o cântico que dará início ao culto do dia. Se a igreja é pentecostal
ou protestante tradicional/histórica, as diferenças quanto a estas características
relacionadas a usos e costumes são mínimas.

Ainda que considerássemos a igreja como sendo de vertente pentecostal,


poderíamos imaginar, inversamente, o que dificilmente se viabilizaria naquele
ritual. Seria impensável a um cristão levantar-se em meio ao culto, erguer as mãos
aos céus e cantar, emocionado e em tom de voz alto, uma música executada em
ritmo frenético, ao estilo de rock ou de música eletrônica, acompanhado por
instrumentos como guitarra, bateria e contrabaixo, ao invés do solitário piano de
notas suaves. Ou, ainda, que o ambiente estivesse tomado pela escuridão e pelas
luzes de festa. Um agravo poderia ser acrescentado: se o fiel, entusiasmado em seu
momento de conexão com Deus, vestisse roupas de última moda juvenil, possuísse
tatuagens em seu corpo e mantivesse uma longa barba, dificilmente seria visto
como um membro daquela congregação.

Este talvez fosse o resultado se pudéssemos introduzir um membro ou


músico da Brasa Church no recinto de uma igreja evangélica daqueles nem tão
longínquos tempos, em que se conservava uma tradição de usos e costumes muito
mais rígida do que a atual. A Igreja Batista Brasa, à qual o movimento Brasa Church
pertence, é uma congregação centenária que viveu, senão momentos idênticos, ao
menos parecidos com o da descrição realizada acima. Fundada em 1910 sob o
nome de Primeira Igreja Batista Brasileira de Porto Alegre, a Brasa é uma igreja
cujo processo histórico e seus desdobramentos nos remetem ao caráter
transformativo das manifestações musicais que ali se constituem, acompanhando
diacronicamente modificações que reconfiguram, de contínuo, elementos como
culto, templo e corporalidades da adoração.

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Uma das igrejas evangélicas mais antigas da cidade de Porto Alegre, a


instituição permaneceu como uma igreja batista tradicional por mais de sete
décadas. Em 1986, no entanto, uma experiência sobrenatural em um dos cultos
regulares da igreja acarretou um processo de renovação, alterando os rumos de
sua história. Durante um momento de louvor, conta-se que um grupo de jovens
foi batizado com o Espírito Santo, começando a falar e a cantar em línguas
espirituais. Trata-se, de acordo com a interpretação pentecostal, do batismo com
o Espírito e com fogo, fenômeno evidenciado pela glossolalia – a habilidade ou
dom de falar em línguas espirituais, incompreensíveis à inteligência humana –
como manifestação do recebimento do poder do Espírito Santo. Na ocasião, um
membro da igreja tirava fotografias aleatórias do culto. Ao serem reveladas, as
imagens mostraram algo que foi entendido pela comunidade religiosa como sendo
chamas, línguas ou brasas de fogo cobrindo algumas pessoas. Na narrativa bíblica
do segundo capítulo de Atos dos Apóstolos, um fenômeno semelhante teria
ocorrido durante o Pentecostes8. Após esse acontecimento, e impulsionada pela
chegada do pastor Getúlio Jessé Rodrigues Guimarães, em 1988, a igreja se
dissociou da Convenção Batista Brasileira (CBB) e passou a ser um ministério
evangélico independente, adotando o nome de Ministério Brasa. Com o
crescimento dos anos seguintes e a nova orientação teológico-doutrinária, a Brasa
se expandiu pelo sul do Brasil e, posteriormente, transnacionalizou-se para a
Europa. Assim como outras igrejas porto-alegrenses, ela se insere atualmente em
uma política de transnacionalização e de “reconquista espiritual da Europa” (ORO,
2017; ORO & ALVES, 2015).A Igreja Brasa matriz, sede e origem do Ministério
Brasa, localiza-se no bairro da Azenha, zona sul de Porto Alegre, e conta com
diferentes cultos ao longo da semana, orientados à participação de públicos
diversos. Os que possuem formas rituais mais tradicionais ocorrem aos domingos,
nos horários das 9h30min, 18h e 20h, e costumam agregar um público de faixa
etária mais avançada, assim como os cultos voltados para as mulheres, nas terças-
feiras à tarde, e os cultos de quarta-feira à noite. As reuniões que mais se diferem
das demais são a Brasa Young, realizada nas sextas à noite, reunindo os
adolescentes da igreja, e a Brasa Church, o culto jovem noturno cujo encontro se
dá aos sábados. Este último, marcadamente distinto das reuniões mais tradicionais
da igreja, será o foco de nossa argumentação nas páginas seguintes.

Os cultos na Brasa Church

Nas noites de sábado, um clima de festa e agitação toma conta da Avenida


Dr. Carlos Barbosa, no bairro da Azenha, em Porto Alegre. Perto do antigo Estádio
Olímpico, pertencente ao Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, uma multidão de
jovens se reúne semanalmente para festejar o Evangelho, cantar, orar e conviver
em um ambiente repleto de luzes coloridas e músicas altissonantes. A fachada
tradicional da centenária Igreja Brasa contrasta com a animação da juventude, que

8 “E viram o que parecia línguas de fogo, que se separaram e pousaram sobre cada um deles. Todos
ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito os
capacitava.” Atos dos Apóstolos, capítulo 2, versos 3-4. Bíblia Sagrada: Nova Versão Internacional.
São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

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se encontra no pátio da igreja e em rodas de conversa um pouco antes de os cultos


iniciarem. Os horários de culto são dois: às 18h e às 20h. O serviço religioso, em
ambos as reuniões, costuma durar cerca de duas horas. Ao seu término, a entrada
do templo torna a ficar lotada. Refeições rápidas são feitas em mesas dispostas
pelo pátio, agregando os jovens que presenciaram os cultos.

No interior da igreja, o cenário dificilmente evoca a um visitante


desacostumado a imagem de um recinto religioso. A presença de bancos de
madeira rústicos, como os que antes pudemos imaginar como parte de uma igreja
evangélica mais antiga, talvez seja um atenuante dessa impressão. Em contraste,
algumas poucas cadeiras mais modernas e confortáveis são encontradas nas laterais
da igreja. Vários jovens presentes aparentam influência de aspectos relacionados à
cultura hipster9 em suas vestimentas e penteados. No lugar de ternos e gravatas,
camisetas xadrez e calças jeans; e, ao invés de cabelos curtos à risca, no caso
masculino, cabelos raspados a máquina nas laterais e em relevo acima da cabeça.
O ambiente predominantemente escuro do templo – até mesmo o púlpito fica
coberto por uma cortina preta –, as luzes coloridas de led e o som alto, aliados a
um forte apelo visual representado por um telão central maior e por telões
auxiliares menores, são elementos que compõem as práticas em torno da
tendência de música e culto adotada pela Brasa Church desde os últimos nove
anos.Essa tendência, denominada worship – traduzida do inglês, literalmente
“adoração” –, pode ser caracterizada por uma confluência de aspectos que
constituem uma ambientação de culto própria. Para além de uma tendência
musical, o worship se constitui como uma forma de organização e experiência do
culto, disposta por elementos materiais que lhe conferem distinção em relação a
outras formas ritualísticas. À frente do púlpito, o altar é coberto por uma cortina
preta, o que ajuda a fortalecer o escuro do templo. Em contraste, telões e
lâmpadas de led coloridas fazem um jogo de cores, o que produz um ambiente
similar a um show. As luzes apontam para o espaço abaixo dos telões, onde fica
disposta a banda da Brasa Church, com seus instrumentos e integrantes. Durante a
execução das músicas, vêm da banda estímulos a que a igreja permaneça em pé e
alce as mãos ao alto em momentos de adoração.

As músicas contam com letras repetitivas, ao estilo de marchas-baladas


lentas com grande vocalização. Há uma grande modulação entre tons menores e
maiores10. Entre um misto de diferentes estilos musicais, como o pop, o folk e o
soul, a musicalidade é propícia a que todos participem da vocalização, e não
apenas a banda ou os músicos cujo exercício ministerial na igreja é o louvor. As
canções reproduzidas pela banda da Brasa Church e entoadas durante os cultos
vêm de repertórios internacionais. A Brasa Church é influenciada por bandas de

9 Um interessante trabalho, cujo apontamento para a “cultura hipster” no contexto do século XXI
é feito sem que se ofereça uma definição estanque ao termo, encontra-se em Maly & Varis (2015).
10 Essa definição mais técnica é dada por Ricardo Feltrin, que assina o artigo no blog UOL Música

intitulado “Entenda o Hillsong, um dos maiores fenômenos do gospel mundial”. UOL Música,
03/02/2015. Embora a referência direta seja a musicalidade da Hillsong Church, o autor está
falando da tendência worship de um modo geral. Disponível em:
http://uolmusica.blogosfera.uol.com.br/2015/02/03/entenda-o-hillsong-um-dos-maiores-
fenomenos-do-gospel-mundial. Acesso em: 09 set. 2022.

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grande circulação, que compartilham do mesmo estilo. É o caso, por exemplo, da


australiana Hillsong United11 e das norte-americanas Jesus Culture e Bethel Music.
Desta última é a canção “Reckless Love”, cuja versão em português, “Ousado
Amor”, é frequentemente tocada pela Brasa Church nos cultos12. Na letra, um
relacionamento bastante próximo entre o fiel e Deus é enfatizado: “Antes de eu
falar / Tu cantavas sobre mim / Tu tens sido tão, tão bom pra mim / Antes de eu
respirar / Sopraste tua vida em mim / Tu tens sido tão, tão bom pra mim.”

Uma das referências frequentes à tendência, por parte de cantores e


membros da Brasa Church, atribui centralidade à maior possibilidade de liberdade
corporal para a adoração encontrada no worship. Nas palavras do guitarrista Caio,
“o worship é mais livre, mais espontâneo [em relação aos modos convencionais
de liturgia do culto]”. Movimentos corporais podem ser feitos de forma a
acompanhar o ritmo das músicas, sem que sejam considerados modos de
profanação do sagrado. Os corpos que se movimentam também não precisam ser
unânimes em sua ornamentação: homens e mulheres vestindo diferentes tipos de
roupa, adotando modas e penteados diversos, usando tatuagens e piercings, entre
outros acessórios, podem ser encontrados no recinto de adoração da Brasa
Church. Essas transformações quanto a disposições corporais não são exatamente
novas no cenário evangélico brasileiro, como Jungblut (2007) e outros autores/as
já demonstraram e vêm demonstrando há algum tempo. Mas certos elementos
materiais ocupam lugar de protagonismo no ambiente de culto: telões, cortina
preta, celulares e suas câmeras ligadas, lâmpadas de led e outras tecnologias e
dispositivos, diferenciando a tendência de música e culto worship de outras
tendências mais tradicionais.

Os ritos dominicais na Igreja Católica de Santana

Com menos “glamour” e composta de um público de maioria adulta, a


Igreja de Santana está situada numa região periférica da cidade de Duque de
Caxias, no estado do Rio de Janeiro. Existe desde 1967 e faz parte da diocese de
Duque de Caxias e São João de Meriti, surgida na década de 1981 sob a
coordenação de Dom Mauro Morelli, um militante da luta pela justiça social
naquela região. Aproximações com a Teologia da Libertação e movimentos sociais
compõem, naquela época, parte do cotidiano de diversas comunidades, incluindo

11 Um estudo sobre as relações da Hillsong Church com o Brasil pode ser encontrado em Rocha
(2016). Acrescento uma importante informação, constatada em campo: de acordo com Lucas, um
dos líderes da Brasa Church, a igreja tem mantido um intercâmbio com a Hillsong, através da
instituição educacional Hillsong College. Nos últimos anos, ao menos oito jovens da Brasa teriam
estudado/estariam estudando no país, como fruto de uma parceria com a Hillsong Leadership
Network, uma rede de formação de líderes supradenominacional (ver o site oficial da rede:
http://www.hillsong.com/network/ ). Acesso em: 09 set. 2022.
12 A música “Ousado Amor” ganhou um clipe da Brasa Church no YouTube, gravado em culto.

Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=1mTiIq1dFSw&list=RD1mTiIq1dFSw&start_radio=1 . Acesso
em: 09 set. 2022.

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a de Santana. Ao mesmo tempo, a Renovação Carismática Católica também cresce


através dos Grupos de Oração e, nas décadas seguintes, das novas comunidades
de Vida e Aliança.

Durante grande parte das décadas de 1980 e 1990, a paisagem sonora da


Igreja Católica de Santana foi moldada pelo viés de ideias franciscanas. A partir do
novo milênio, cantos do hinário litúrgico da Confederação Nacional dos Bispos
do Brasil (CNBB) anteriormente utilizados vão cedendo lugar a um repertório
oriundo de novos artistas, sobretudo relacionados a grandes gravadoras católicas
como, por exemplo, a Canção Nova. Os folhetos e livros são substituídos por
projeções das letras nas paredes, e a aparelhagem sonora ganha mais volume e
qualidade para alcançar as 400 vagas disponíveis ao público no espaço do templo.

Todo quarto domingo de cada mês, o Ressureisamba, um ministério de


música que faz versões de samba para o rito, controla a parte musical da liturgia.
Neste cenário pouco comum no catolicismo do Rio de Janeiro, são raras as canções
compostas como samba, mesclando o repertório tradicional da igreja com músicas
“não-litúrgicas" (que não foram feitas exclusivamente para a liturgia), mas que, em
certos casos, cabem no rito. A maioria das canções desse segundo grupo são
intituladas pelos católicos como de “louvor e adoração”, em aproximação com o
worship praticado na Brasa Church pela sua dimensão sonora, sentimental e
sensorial. As músicas são geralmente interpretadas com pandeiro, surdo, teclado,
violão e tantan. Quando o coletivo não está completo, a sonoridade do worship
se sobressai tanto na instrumentação quanto na interpretação, já que se opta
somente pelo violão e/ou teclado e cajon.

A opção instrumental, a doutrina católica (mais unitária no que diz respeito


ao rito) e a condição financeira da comunidade são fatores que diferenciam a Brasa
Church da Igreja Católica de Santana. Ainda que o samba seja o gênero musical
escolhido pelo Ressureisamba, o modo de cantar carrega determinados sotaques
do worship, sobretudo os que estão ligados ao gospel norte-americano, como
melismas, prolongamentos de notas finais, vibrato e divisão vocal em sextas nos
refrães. Além disso, a corporeidade dos músicos e de parte da assembleia também
remete à tendência: braços abertos em forma de agradecimento, olhos fechados,
cabeças levantadas, choros esporádicos e gritos de “amém”, “aleluia” e “glória”.

O ritual dominical católico, embora tenha o mesmo roteiro em todo o


mundo, também contempla particularidades que podem ser observadas em sua
dimensão estético-musical. A ambientação do espaço se mantém distinta do
modelo worship encontrado na Brasa Church, remetendo a símbolos franciscanos
e apresentando um ambiente claro e com bancos de madeira. A exceção fica por
conta da aparelhagem sonora, que, ainda que tecnologicamente precária, é
utilizada com alto volume. A participação do ministério de música, que se
posiciona de frente para o altar na posição diagonal, funciona mais como
espetáculo do que como condução para a assembleia. Essa aparente realidade
distinta, na verdade, é um reflexo do pluralismo católico, já assinalado por
diversos autores, como Menezes e Teixeira (2009). Por se tratar de uma religião
com ritos dominicais e outros roteiros “unificados”, as diferenças podem ser

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observadas com maior nitidez através dos movimentos internos, das reuniões
semanais e da estética ritual.

Os ritos dominicais nunca estão esvaziados, seja na parte da manhã ou da


noite. Em ambos pode haver a celebração da Palavra, em que um/a leigo/a
(ministro/a da Eucaristia) preside o rito, ou missa, quando há a presença de um
sacerdote. Os roteiros litúrgicos das missas e celebrações são praticamente iguais.
Eles auxiliam orações, procissões, homilias, leituras e consagrações e, em Santana,
aparecem normalmente em número de 19 partes: Pré-abertura, Abertura, Refrão
Meditativo/Saudação à Santíssima Trindade, Ato Penitencial/Perdão/Aspersão,
Glória/Louvor, Refrão sobre Palavra ou Bíblia, Salmo, Aclamação ao Evangelho,
Canto de “Iluminação”, Apresentação das Ofertas, Santo (quando houver missa),
Oração Eucarística (quando houver missa), Louvor/Ação de Graças, Abraço da Paz,
Refrão de “Condução”, Cordeiro, Comunhão, Pós-comunhão e Final. A igreja
conta com participantes de diferentes idades: crianças, adolescentes, jovens e,
majoritariamente, adultos e idosos compõem a faixa etária dos rituais. Situada em
Jardim Primavera, um bairro periférico do município de Duque de Caxias, a Igreja
de Santana possui um pátio extenso que serve de estacionamento e espaço para
quando há festividades, sendo a mais importante a festa da padroeira. Aos
domingos há uma cantina onde se vende quitutes antes e depois das celebrações.

Vale mencionar que, na Igreja de Santana, as características associadas à


tendência worship são mais visíveis na corporeidade e na acústica do ambiente.
Os aparatos tecnológicos utilizados para o ritual são um projetor de imagens e a
aparelhagem sonora, ambos preparados e manuseados pelo próprio ministério de
música, o grupo Ressureisamba. Não há uma equipe específica para as funções de
roadie (auxiliar de palco), técnico de som, luz ou imagem. Tudo é feito pela banda,
com o apoio da equipe de liturgia. O projetor de imagens serve apenas para
projetar as letras das canções executadas durante o ritual e, quando o rito não se
encontra em alguma parte musical, para manter projetada na parede uma imagem
do que se popularizou ser o rosto de Jesus Cristo para o catolicismo.

A aparelhagem sonora é simples e conta com uma mesa de som e um


amplificador, que ficam numa sala em anexo. Isso faz com que os integrantes do
grupo, quando precisam fazer algum ajuste, tenham de se locomover até essa sala,
que fica ao lado de onde eles se apresentam: virados para o altar e para a
assembleia, no canto superior esquerdo da igreja. Há vários microfones e pedestais
disponíveis, já que celebrantes, comentaristas, leitores e os músicos fazem uso deles
em diversos momentos. Todos têm fios, reverberados por quatro caixas de som
espalhadas nos quatro cantos da igreja, além de outras caixas menores que servem
como retorno ou amplificação de instrumentos específicos, como, por exemplo, o
teclado.

Em Santana, a música também pode ser considerada o principal fio


condutor do rito, além de um chamariz para o público. Como mencionado
anteriormente, em todos os quartos domingos do mês o Ressureisamba conduz a
parte musical da liturgia e a maioria das canções são entoadas com fervor pela
assembleia. O surdo, o pandeiro e o tantan, auxiliados pelo teclado e a voz

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vibrante de Luciano Santos (principal vocalista), ajudam a empolgar as pessoas


presentes em músicas mais “animadas”, como o Glória da compositora Adriana
Aires, interpretado em forma de samba acelerado pelo conjunto. Entretanto, em
músicas mais lentas e reflexivas a participação das pessoas não é diferente. Muda-
se apenas o uso do corpo, mas o volume da voz, em especial nos refrães, é bastante
elevado, acompanhando a altura do microfone de Luciano e dos outros
integrantes da banda.

Embora em Santana a experiência sensorial por meio da tecnologia esteja


restrita apenas ao som, isso não inviabiliza percebermos o modo como ela é
refletida em algumas pessoas e como ela é reproduzida nelas através da
corporeidade. Dentro desse cenário litúrgico, alguns elementos foram mais
significativos: palmas, gestos com as mãos para o alto em forma de agradecimento,
falas de “glória”, “aleluia” e “amém” em meio às músicas e a outros momentos de
participação na liturgia, além de pequenos gestos de dança, tanto nas músicas
lentas quanto nas mais rápidas. Quando o vocalista do Ressureisamba faz uso de
toques específicos do teclado e direciona a assembleia através de frases
motivacionais e gestos, canta de olhos fechados, aumenta o volume de voz ou faz
divisões vocais, produz-se um ambiente que direciona as pessoas presentes para
um estado de espírito específico. Mas o espaço, o aparato técnico e o roteiro,
embora promovam certa catarse ritual, ainda mantêm características que podem
ser associadas a um catolicismo stricto sensu, diferenciando-se do worship
encontrado alhures.

O worship como forma sensorial: mediações musicais na Brasa Church

Tudo depende do ritmo das músicas entre os jovens da Brasa Church. Logo
no pátio de entrada da igreja, uma fila indiana destinada à organização do público
se forma antes do início de cada culto. Não é permitido aos transeuntes circularem
pelos corredores internos antes do horário inicial de cada reunião. Com a porta
fechada, a equipe de apoio controla a circulação, mas não detém o som que vem
de dentro do templo, emitido em alto volume pelos técnicos de sonoplastia. Não
raro, canções são entoadas pelos jovens ainda na fila. Durante a entrada no
recinto, o volume do som aumenta, os fiéis escolhem um lugar para participar do
culto e, como de costume, permanecem em pé, já vislumbrando os últimos
preparativos da banda para a noite. Na entrada do culto das 20h, os membros da
banda ainda descansam do culto anterior.

Durante duas horas, do início ao final, a música preenche os cultos. A


sequência de momentos rituais segue uma linha que não rompe definitivamente
com uma estrutura tradicional de culto evangélico. Dentro dessa estrutura, a
música é um componente essencial, mas está situada ao lado de outros momentos,
como as orações e o sermão, também chamado de prédica ou pregação
(MARTINOFF, 2010). O worship na Brasa Church pode demonstrar uma variação
desse modelo. Essas variações podem ser encontradas simultaneamente num dado
momento histórico e, inclusive, no interior de uma mesma denominação religiosa.

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No caso da Igreja Brasa, isso é evidenciado pelas diferenças que marcam a


idiossincrasia da Brasa Church em relação à ritualística dos demais cultos. No culto
de jovens, a música compõe um elemento essencial, mas não exclui o lugar da
pregação, da oração e de outros momentos rituais.

Apesar do importante lugar rendido à musicalidade, a Palavra (sermão)


preenche larga parte da duração do momento religioso, e seu conteúdo reflete,
em grande medida, ensinamentos largamente enfatizados pelo protestantismo
evangélico brasileiro, como o apelo a uma vida piedosa e à necessidade de que os
jovens façam a diferença no “mundo” – entendido como o espaço da esfera
secular, em dissociação com o espaço sagrado da “igreja”. A linguagem,
contemporânea, é adaptada ao público presente e eivada de humor e gírias. O
conteúdo da pregação, contudo, não evidencia alterações substanciais quanto aos
valores pregados em décadas. A dualidade “igreja x mundo” aparece como uma
norteadora das aplicações morais, sendo atrelada intimamente ao padrão de vida
religioso apregoado. A manutenção do conteúdo e a modernização da forma
parecem acompanhar o movimento do gospel, quando ele tende a promover uma
“modernização de superfície” (CUNHA, 2007).

Não nos convencemos, entretanto, de que uma separação a priori entre


forma e conteúdo seja produtiva para pensar a música na Brasa Church. Tampouco
parece ser esta uma abordagem suficiente para entender as transformações mais
recentes do gospel e das sonoridades evangélicas brasileiras. É por esta razão que
intentamos compreender o worship e o mundo de manifestações rituais que ele
carrega consigo em um outro sentido: o das mediações musicais. Meyer (2015)
entende os processos de mediação de uma perspectiva das mediações sociais,
operando para além do nível tecnológico. Partindo dos debates sobre a natureza
mediada da vida social (MAZZARELLA, 2004), ela entende que as mídias agem
afetando e moldando o conteúdo que transmitem, ao invés de servirem como
ferramentas de transmissão ou “intermediários” (LATOUR, 2005). Isso quer dizer
que, mais do que olhar para elaborações teológicas acerca do lugar da música na
vida religiosa, expostas em sermões, discursos ou documentos, devemos prestar
atenção nos processos de mediação que se desenvolvem quando materiais são
acionados de determinadas maneiras, por pessoas específicas, configurando formas
de o culto acontecer. A presença da tendência worship na Igreja Brasa destoa das
maneiras historicamente anteriores de viver a música e o culto naquela
comunidade religiosa. Mas, além disso, a própria existência do movimento Brasa
Church em seu seio é um indicativo de que as transformações ocorridas naquela
igreja se produzem em um universo de corporalidades distintas em relação à
tradição evangélica anterior de usos e costumes. Não são somente os corpos que
se modificam: outros instrumentos musicais são utilizados, novas tecnologias são
inseridas no templo, jogos de cores e luzes são inovações trazidas à tona. As
práticas rituais se utilizam de certos materiais e definem uma nova ambientação
de culto.

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Para Eisenlohr (2011), em harmonia com o argumento de Meyer, as mídias


– enquanto medias, e não apenas como meios de comunicação13 – apresentam
uma certa propensão a apagar-se no ato da mediação. É o que parece acontecer
com o worship, que, como veremos a seguir, ao fazer uso de mediações variadas
e de um conjunto de manifestações performático-rituais que destoam de padrões
anteriormente autorizados e compartilhados pelas igrejas evangélicas, é visto
como uma nova visão de igreja, um modelo para formas devocionais. Por meio
da perspectiva sugerida por Meyer, podemos resgatar o worship como um
protagonista no processo de mediações que envolvem o sagrado e lidam com os
sentidos na Brasa Church. Ele pode ser visto como uma forma sensorial que não
somente contribui com a vida religiosa, mas produz sujeitos à sua semelhança. Para
Meyer (2015), formas sensoriais consistem em:

Modos relativamente fixos para invocar e organizar o acesso ao


transcendental, oferecendo estruturas de repetição que criam e
sustentam conexões entre crentes no contexto de regimes
religiosos específicos. Essas formas são transmitidas e partilhadas;
elas envolvem praticantes religiosos em práticas específicas de
adoração, e desempenham papel central na modulação destes em
sujeitos e comunidades morais religiosos. (p. 151).

Essas formas partilhadas de acionar os sentidos na experiência social não


amarram os sujeitos religiosos a algo como fatos sociais durkheimianos que sobre
eles exercem uma coerção incontornável. De outro modo, tampouco se orientam
em direção a uma libertação dos sujeitos de suas condições enquanto seres
inseridos em tramas de padrões e convenções sociais. As práticas sensoriais são
sempre transformativas, em que pese a conjunção entre criação e manutenção de
padrões que se orientam por formas sensoriais específicas. As configurações dos
sentidos também são múltiplas: a divisão pentapartite do “aparelho sensório”
humano em visão, audição, paladar, olfato e tato é tão ilusória quanto o é a
história da modernidade contada a partir do ocularcentrismo, ou do predomínio
da visão. Leigh Eric Schmidt (2000) chama a atenção para a audição como um
sentido bem presente nas dinâmicas sensoriais modernas. Se, por um lado, é
verdade que a visão é privilegiada em certos loci da modernidade, isso não quer
dizer que outros sentidos não possam ser acionados e, inclusive, dispostos em
emaranhados de complexidade multissensorial. Assim, resta-nos como mais
pertinente considerar que visão e audição, juntamente com outros sentidos, agem
juntos em operações diversas, pois, ao fim e ao cabo, quem age é o próprio corpo
como um todo. Na seção seguinte, utilizaremos o conceito de visão, mencionado
pelos membros da Brasa Church, como uma forma de acessar mediações e práticas
sensoriais do worship que confundem tentativas de compartimentação dos
sentidos.

13A tradução do termo em inglês media foi mantida em Meyer (2015) como “mídia” porque, no
argumento da autora, não há uma diferenciação entre “mídia” e “meio”, apesar de não ser usual
utilizar “mídia” como plural de “meio” na língua portuguesa.

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A visão como metonímia: o worship entre arranjos sensoriais

Visão é um termo utilizado pela Brasa Church no sentido de ideal,


perspectiva ou ponto de vista a partir do qual a igreja constrói e vive sua
experiência religiosa. Todos os anos, a visão da Brasa Church é expressa por meio
de temas específicos, buscando comunicar valores que devem nortear a vida cristã
da juventude, como simplicidade, integridade e transparência. Um tema visual e
um lema são elaborados especificamente para essa finalidade. No ano de 2016, a
visão da Brasa Church foi representada pelo lema “A âncora e o vento”. Em 2017,
o tema escolhido foi “Contágio de vida” e, em 2018, “Grandiosamente simples”.
Fez-se uso intensivo dos temais visuais nos telões, nas pregações, na divulgação da
marca Brasa Church na internet e nos acessórios vendidos pela loja Brasa Store. O
guitarrista Caio vincula diretamente a visão de igreja expressa pelos temas ao
worship. Ultrapassando os limites das configurações musicais, a tendência se
referiria a um “estilo de vida”. Mais do que uma nova maneira de produzir
canções, agregando estilos musicais com grande popularidade entre o público mais
jovem, ele traduziria uma forma de conceber a vida religiosa que superaria a
barreira outrora considerada intransponível entre forma e conteúdo, corpo e
mística, estar no culto e viver o culto. Pois, se no passado imperavam restrições
ascéticas, padrões comportamentais puritanos e ritmos musicais dissociados de
qualquer ligação com a música secular e com o “mundanismo”, o worship
revelaria uma aceitação de outras formas de corporalidade e de ritualística do
culto.

Prestar atenção nas mediações que se produzem na Brasa Church e


configuram as formas sensoriais do worship pode ser uma pista importante, na
medida em que nos auxilie a entender a sua importância no interior dos processos
de devoção musical na Igreja Brasa e, em escala mais geral, no panorama de novas
transformações que concernem às sonoridades cristãs brasileiras. Continuemos o
nosso raciocínio apresentando breves comentários sobre interlúdios, momentos
rituais do culto em que mediações entre materiais e corpos se operam, acionando
arranjos sensoriais dispostos por uma forma sensorial específica e produzindo
determinadas orientações à atenção e à adoração dos sujeitos e do coletivo. É
dessa forma que visão é tomada como uma metonímia, ou seja, enquanto uma
figura de retórica que ultrapassa seu campo semântico usual, conectando-se a
outros sentidos e arranjos sensoriais como seus referentes.

No interlúdio da atenção, os telões

Durante o percurso temporal do culto, os telões da Brasa Church


comunicam mensagens incessantemente. À entrada dos participantes, eles já se
encontram ligados e mostram o tema visual do ano. O telão maior, quadrangular,
está centralizado e colocado acima dos menores. Retangulares, finos em largura e
em posição vertical, estes últimos se dispõem à esquerda e à direita, dois de cada
lado, com a exceção de um outro, na horizontal, situado mais abaixo do telão

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central. Quando o culto inicia, todos estão dispostos de igual forma, contrastando
com o escuro que preenche o recinto do templo.

Basta a banda iniciar a execução das músicas para que a imagem dos telões
se modifique. É sugestiva a forma como se pode observar a atenção dos presentes
se organizando. Antes em rodas de conversa e em momentos de descontração,
todos tomam seus lugares nos bancos, mas permanecem em pé. Os primeiros
acordes começam a ecoar e a atenção se volta imediatamente aos telões. Através
deles, certas paisagens acompanham a adoração do público, como imagens de
águas se movendo calmamente, folhas, árvores e bosques em cenários bucólicos e
céus com nuvens que passam depressa. A imagem das águas correntes, passível de
ser encontrada com mais frequência do que as demais, inclusive em repetição
durante vários cultos, reverbera uma figura bastante reafirmada pela visão de “A
âncora e o vento”. Enquanto os elementos do tema de 2016 fazem referência à
“firmeza na Palavra” (âncora) e à “liberdade no Espírito” (vento), ambos se
relacionam com um universo marítimo, assim como as imagens dos telões.

As músicas são acompanhadas, além disso, pelas suas letras, projetadas no


telão principal. Apesar de sua ausência no cenário do worship e da adoração
contemporânea, os antigos hinários parecem manter aqui sua utilidade primeira:
a de ser um guia à vocalização das canções religiosas pelos crentes. Se, no passado,
hinários podiam ser trazidos de casa ou tomados de empréstimo da igreja para
utilização no culto, eles agora não parecem ter desaparecido totalmente: apenas
se tornaram digitais. O mesmo pode ser dito a respeito da Bíblia: nos cultos da
Brasa Church, será difícil encontrar alguém portando o livro sagrado. Os versos
referenciados durante os sermões podem ser acompanhados por, pelo menos,
duas maneiras distintas: nos celulares, protagonistas durante as fotografias e
filmagens pessoais dos louvores e do culto de modo geral; ou no telão maior,
enquanto o pregador os lê em sua folha de orientação para a mensagem do
sermão.

Outros momentos rituais também enfatizam a centralidade dos telões:


durante a recolhida das ofertas, que sucede imediatamente o testemunho14, vídeos
sobre anúncios e eventos da igreja vão sendo reproduzidos. Com o encerramento
dos vídeos, passa-se à hora do sermão. Como se o andamento do culto estivesse
condicionado à ação dos telões, a passagem entre música, oração, pregação e
outras etapas é realizada de maneira instantânea, de forma que, ao final de cada
momento, o telão já anuncia ou introduz o próximo acontecimento. A
dinamicidade do ritual faz com que o intervalo entre cada cena, contando com a
mediação dos telões, produza-se de forma a causar uma impressão de imediatismo,
ou de ausência de mediação. Cria-se, assim, uma sensação de atenção coletiva que
não parece fornecer brechas de pausa temporal ao culto. Os interlúdios entre
momentos rituais são preenchidos com fluidez, conectando a atenção dos

14Testemunho é um momento do culto em que uma pessoa autorizada se coloca no púlpito para
falar sobre bênçãos recebidas e sobre a necessidade de doar e ser generoso em face do
reconhecimento dessas bênçãos.

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presentes à tecnologia dos telões e à luz que eles produzem, em contraste com o
ambiente escuro que toma o interior do templo.

Ver os telões, nesse sentido, é mais do que uma ação orientada a olhar para
eles. Se o som é um protagonista nos cultos da Brasa Church, e a música, a
pregação e outras manifestações se colocam para serem ouvidas, e se os telões são
mediadores rituais, conforme pudemos notar, então ver os telões significa também
ouvi-los e participar deles. As mediações musicais na Brasa Church passam pela
presença desses mediadores. Sem eles, o worship não se produziria da forma como
se produz, e não estaria configurado o ato participativo entre materiais, pessoas e
momentos rituais que realiza a performance de culto naquele ambiente. Em outras
palavras, a visão do worship, tratando-se de um “modo de ver” (MORGAN,
2012), conjuga diferentes sentidos em um mesmo ato prático. Por essa razão, a
visão pode servir como uma metonímia. Se se refere à visão corporal, pode-se
referir também à audição e a outras formas de participação sensorial que ocorrem
juntamente com os telões e os demais mediadores.

Figura 1: Momento de louvor na Brasa Church, com os telões à frente do


público. Na imagem, percebe-se a presença da figura das águas correntes.
Fonte: Perfil oficial da Brasa Church no Facebook. Disponível em:
http://www.facebook.com/brasachurch/. Acesso em: 09 set. 2022.

No interlúdio da adoração, os “espontâneos”

Uma das maneiras pelas quais se pode continuar a acessar os interlúdios dos
momentos rituais nos cultos na Brasa Church é através dos “espontâneos”. Tratam-
se de intervalos durante a execução das músicas, com duração que pode ir de
alguns segundos a poucos minutos, em meio aos quais se fazem orações e pequenas

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pregações enquanto os louvores estão sendo tocados e cantados. O momento de


adoração em questão é conhecido como “ministração”: um dos integrantes da
banda, geralmente o/a vocalista, toma a palavra em meio à música e profere
orações, conectando a elas a mensagem espiritual que está sendo veiculada pelo
conteúdo musical. O/a cantor/a se coloca enquanto um “ministro de louvor”,
nome que designa tanto sua função como cantor/a da igreja quanto sua posição
espiritual no culto. A ministração se confunde, por vezes, entre orações e mini-
pregações que transmitem mensagens proféticas à igreja.

A expressão “espontâneo” é referida à ordinariedade da manifestação por


parte do ministro de louvor. Durante uma performance musical, é esperado que
haja mais do que uma reprodução de melodias. Juntamente com a execução de
notas musicais, sensações são produzidas e assimiladas pelos presentes, que
acompanham, sob diferentes disposições corporais, os interlúdios entre
musicalidade e ministração. Quando os “espontâneos” passam a acontecer, as
mãos que, em um momento anterior da adoração, estavam coladas ao corpo ou
se localizavam à altura do abdômen, são levadas ao alto. Simultaneamente, os
corpos como um todo, antes em movimentos mais frenéticos e acompanhando o
ritmo das músicas, agora ficam mais contidos. Vozes e preces começam a surgir do
público em tom emotivo, marcando um momento de passagem ritual. Música e
“espontâneos” conectam-se mediante um contexto idiossincrático de produção
dos sentidos, organizando-se através de uma forma sensorial específica. O worship
acontece mobilizando interlúdios como aqueles produzidos pelos telões e pelos
“espontâneos”. Como vimos anteriormente, as práticas organizadas sob uma
forma sensorial são coletivamente compartilhadas e autorizadas. A autorização
dessas práticas ocorre pelo exercício de dispositivos de poder que determinam
quando um “espontâneo” pode acontecer ou não, que pessoas ou agentes podem
praticá-lo, que palavras podem ser ditas e em que circunstâncias algo pode ser
visto como “barulhento” ou “fora do lugar” (WEINER, 2014).

Considerações finais

Ritos nos levam a pensar arranjos sensoriais em configurações sociais das


mais diversas. Stoller (1989), trabalhando entre os Songhay, no Níger, conseguiu
propor uma descrição de como cheiros, gostos e sons se conectam com um
universo de práticas rituais na cotidianidade daquele grupo étnico. Em relação à
Brasa Church e à Igreja Católica de Santana, consideramos que uma abordagem
inspirada na chamada antropologia sensorial pode nos fornecer ótimas pistas para
acessar disposições, configurações e arranjos sensoriais envolvidos na produção e
experiência do worship enquanto tendência de música e culto. Mais do que uma
análise dos discursos ou das elaborações teológicas que possam ser encontradas
em pregações e letras musicais, é possível avançar em direção a mediações
“invisibilizadas” que estabelecem formas devocionais e contextos rituais,
visibilizando certos elementos e ocultando tantos outros, como os “espontâneos”
e o protagonismo dos telões, por detrás de um senso de imediatismo.

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Analisando o trabalho acústico, pudemos observar algumas características


do worship que se fazem presentes em ambos os espaços, como um estilo musical
que gira em torno do pop-rock e da soul music; uma instrumentação baseada em
violão, guitarra, baixo, bateria e teclado; gestos vocais íntimos da música gospel,
mas que dispensam exagero de vibratos e agregam elementos do rock nos
momentos de maior volume; vestimenta que dialoga com uma determinada moda
juvenil; organização do espaço cultual que o aproxima de um lugar de espetáculo;
orações e gritos de “glória”, “aleluia”, dentre outros, em meio às músicas, etc.

Para além das questões que as mediações musicais nos colocam, certos
aspectos podem ser explorados na esteira das transformações que abrangem o
panorama acústico cristão no Brasil – e de transformações recentes ao nível das
corporalidades. Analisando o cenário de um grupo de jovens pentecostais em
Comodoro Rivadavia, na Argentina, Luciana Lago (2013) deparou-se com uma
situação semelhante à que nos coloca o worship. As práticas culturais em torno da
música se traduziam, nos termos nativos, em um “estilo de vida” representando
modos alternativos de “ser pentecostal”. Entretanto, a presença de certas
qualidades e valores relativos a um ethos cristão naquele contexto reafirmariam as
oposições exclusivas entre “estar na igreja” e “estar no mundo”. Na Brasa Church,
a visão do worship implica em uma reconfiguração de padrões culturais
relacionados aos corpos dos fiéis, às maneiras como se apresentam e aos ritmos
musicais adotados, o que aproxima esse modelo de padrões tidos como seculares.
Neste caso, como se pode interpretar a dualidade “igreja x mundo” a partir dos
arranjos sensoriais?

Atribuir importância às modificações inscritas na história e que permanecem


em seus fluxos transformativos, notificando novas realidades à musicalidade cristã,
é uma tarefa cujas possibilidades incluem a consideração do worship como uma
forma sensorial, ou seja: como um modo coletivamente autorizado de conectar
pessoas e efetuar mediações com o sagrado, moldando e construindo a experiência
religiosa. Esta guinada analítica só poderá ser efetivada mediante um novo olhar
voltado para as mediações musicais, o que demandará um deslocamento
metodológico em direção a aspectos como a estética, a corporalidade e a acústica,
a dados inscritos nas próprias mediações. Os processos sociais que envolvem as
configurações musicais e rituais cristãs a partir do worship incluem transformações
diversas, não somente no que se refere à musicalidade, mas também a alterações
nos modos de sentir-se cristão no Brasil.

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