A Cortina de Ana Fatis - Augusto César Moura

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“Um grão de areia cria uma pérola, dois grãos de areia te fazem dormir, meio grão de

esperança faz de novo a vida surgir.” Ditado das Sacerdotisas de Hécate.


Ainda era muito cedo, mais cedo que os apanhadores de pérolas eram acostumados a se
levantar e ir à labuta, mas Ana já se espreguiçava na frente da porta salpicada de estrelas
da casa de madeira de amaranto. Saudava o Sol ainda não nascido por entre as linhas
púrpuras e azuladas que serpenteavam pelo céu. A melhor hora era quando as ostras
estavam nos seus mais vívidos sonhos. Era quando ela colhia suas pérolas sem ser vista
por ninguém. Pegou o pacote embalado em papel pardo sujo de areia no chão: Romeu F.
É coisa do titio. Seus olhos se encheram de saudade. O remente havia assinado com
letras que ela já tinha visto, mas já não lembrava o que queriam dizer. Depositou sobre a
mesa do café da manhã, e pela janela sorriu para o seu objetivo: Duas longas fileiras de
lagoas ovais, uma encarando a outra. Eles já foram os maiores fazendeiros de pérolas da
região, mas com o passar dos anos a fazenda vizinha, que pertencia ao seu tio Célio,
havia dominado o mercado com suas pérolas deformadas e craqueladas. Estas, agora
eram as mais procuradas, não por outro motivo senão por seu menor preço e a
experiência serem mais aceitos pelos consumidores. O mundo não era mais o mesmo.
Ana não entendia. Aquelas pérolas vinham de criaturas maltratadas, castigadas durante
a noite. No processo de colheita na fazenda de seu tio Célio, todas as ostras eram abertas
com cutelos e facas de açougue. O que sobrava da carnificina era atirado de volta à
água, onde as demais ostras eram obrigadas a se alimentar de suas irmãs chacinadas,
não por maldade, mas por não conhecerem outra forma de o fazer. Só de pensar, seu
corpo estremecia e ela suava frio. Isso não acontecia na fazenda de Ana, ela possuía um
segredo, algo que aprendera com seu irmão gêmeo. As suas ostras eram tratadas com
todo o carinho que ela tinha por todas as coisas vivas. Tio Célio nunca havia falado
nada, mas ela sentia que ele queria acabar com suas pérolas e a fazenda. A água, antes
abundante no córrego, já não passava de um fraco veio permeando as pedras, chegando
com muita dificuldade até as lagoas. Saltitou pelo caminho, balançando seu cesto
enquanto escolhia em qual lagoa entrar. Seu amigo matinal batia as asinhas ao seu
redor. Um pardal de peito branco que sempre aparecia para comer as frutinhas da
primavera, estufando as penugens de suas bochechas. O batizara de Fofo, e ele bem que
merecia o nome. Mergulhou, uma coisa abominável para quem colhia pérolas, mas não
para ela. Logo as conchas se abriram, e com muita alegria, como que em uma espécie de
dança submersa, entregavam as mais belas pérolas, que ela guardava no seu cesto
mágico. Já estava na última lagoa. Viu o relance da imagem de dentro da ostra: Um
homem voando sobre uma cidade, portando um largo sorriso enquanto fazia acrobacias
sobre os prédios. A concha se fechou. Emergiu feliz, com seu cesto repleto das bolinhas
brilhantes e seu vestido roxo intocado pela água. Seu saltitar de volta à casa cessou com
a visão da silhueta estática no meio do sol nascente. Seu tio Célio. Não. Um observador.
O serviçal de seu tio veio até a divisa espionar. Esfregou os olhos. A sombra se foi
como se nunca estivesse ali. Lavando, polindo e selecionando por cor e tamanho. Todas
as pérolas prontas. O dia passou rápido e ela já se preparava para ir à cama. Encarou a
cortininha verde-clara estampada com coelhinhos brancos de seu closet, mas não sem
antes dar uma espiadela pela janela. No lugar da sombra deixara uma luz para afugentá-
la. Sorriu para seus antigos brinquedos sobre a escrivaninha: Os blocos de alfabeto que
ainda formavam seu nome e o cavalinho com rodas de madeira de seu irmão. Nos seus
sonhos ela o visitava. Algumas vezes os sonhos eram claros, felizes e coloridos. Outras
vezes eram escuros e confusos, e ela sabia que o que vivenciava durante o dia podia
atormentá-la durante a noite. De repente, entendeu a aparição da sombra enviada por
seu tio Célio: Tormento. Tormento era sua especialidade, e por isso temia o velho. Não
deixou se abalar. Ao invés disso sorriu, lembrando da bela experiência que teve com a
colheita. Ergueu o nariz. Psicopompos, me levem até meu irmão. Ordenou ela, bem alto
em sua cabeça. As duas bandas da cortina balançaram, iluminadas por uma suave brisa.
Segurou uma pérola bem firme contra seu peito enquanto atravessava a cortina. Com o
perfume e o toque suave do vento em seu rosto, pôde ver os cavalos deslizando pelos
pastos que dançavam como uma aquarela viva. Nenhuma sombra. Suspirou. O Sol
iluminou e aqueceu seu rosto, lhe dando a energia que precisava para atravessar a fenda
da montanha. Desta vez seu irmão estava longe. Naquele lugar, Ana podia percorrer
distâncias imensuráveis apenas saltitando, como sempre fazia. Parou quando uma vila
que parecia abandonada surgiu da névoa. Tudo era feito de madeira velha e retorcida.
Pessoas vestidas com cinzas, tinham faces trêmulas e vazias. Bateram portas e janelas
quando avistaram a menina saltitante se aproximando. Uma rua lamacenta a levou até o
pântano onde, sentado sobre a rocha, um jovem de capa verde tocava uma bela melodia
em sua flauta. A música parecia dar vida ao lugar decadente, e até os sapos pareciam
mais amistosos em meio a sinfonia doce e multicolorida do instrumento. — Irmão! —
Ana correu ao seu encontro e o abraçou. — Vejo que causou uma boa impressão. — Ele
indicou o vilarejo com um movimento da cabeça. Ana apenas espremeu os olhos
sorrindo. O chão pareceu vibrar profundamente. — Está na hora de ir, irmãzinha. —
Mas eu acabei de chegar até você! — Não vou discutir o tempo deste lado. — Disse ele,
ficando em pé sobre a rocha. — Você precisa lembrar! — O chão tremeu mais forte
desta vez. O jovem uniu as palmas, uma luz cegante a fez saltar da cama. Máquinas
haviam destruído o córrego. Duas das lagoas estavam secas, as ostras, mortas. Um grito
desesperado ficou preso na sua garganta e lágrimas correram de seus olhos. Se jogou
dentro de uma das lagoas vazias e estremeceu quando viu a imagem dentro de uma das
ostras: Uma sombra pressionava uma jovem contra sua cama, deixando-a sem poder
respirar ou se mover. O grito escapou, trêmulo, estridente. Ana se arrastou de volta à
margem lamacenta com o coração palpitando no peito. Se agarrou à vegetação úmida e
murcha e, com dificuldade, subiu até a beirada. Viu a vida se esvair das ostras que
davam seus últimos suspiros. As perlíferas morriam rapidamente. Não pela falta de
água, mas sim pelo rancor de Célio. Na divisa, dentro de seu terno bem ajustado, seu tio
lhe deu as costas, pegando carona na lateral de uma das máquinas. O tempo não estava a
seu favor. A falta de água logo chegaria às outras lagoas, assim como o destino das
ostras sem vida. Você precisa se lembrar, Ana! Gritou consigo mesma, esperando que a
resposta lhe alcançasse. Nada. Nem mesmo um lampejo de uma lembrança. Agarrou seu
cesto e depois de incontáveis mergulhos levou todas as ostras até a última lagoa.
Precisava de tempo. Correu até a casa. O embrulho de seu tio sobre a mesa, ainda sujo
de areia. Romeu F. e as letras estranhas. Ana pensou. Pensou até sua cabeça doer
enquanto ela dava voltas e mais voltas na sala. Batia as pontas dos dedos na testa. Ana...
você precisa lembrar... Só conseguia pensar no seu irmão e no que ele lhe dissera. Foi
até seu quarto. Na frente da janela, observando as lagoas se esvaindo aos poucos,
respirou fundo e se concentrou. Sua mente viajou longe do presente, para os campos
coloridos de seu último sonho. Eram campos verdes e floridos. Desta vez ela teve mais
tempo para os detalhes. Ao longe, viu um templo cercado por colunas brancas, a
memória estava clara em sua mente. Uma mulher de cabelos compridos e pele
acobreada portava um cajado como um longo talo verde. A mulher também lhe mostrou
uma pena. Três batidas na janela a fizeram dar um salto, espalhando o conteúdo da
escrivaninha no chão antes de voltar a si. Ofegante e com o coração palpitando, levou a
mão ao peito quando viu a pequena figura batendo as asinhas e bicando o vidro. —
Fofo! Você quase me matou! — Ana finalmente abriu a janela para o pardalzinho, que
incessante, como se quisesse lhe avisar de algo, voava ao redor de sua cabeça,
remexendo os fios negros de seu cabelo. Virou para os blocos espalhados no chão,
juntos ao cavalo de madeira e o embrulho. Sem saber mais o que fazer, rasgou o papel
pardo, revelando uma caixa de ébano com detalhes dourados. Fofo batia asas perto da
caixa e balançava a cabecinha em aprovação. — Você é muito esperto para um
passarinho. — Ana fitou o pequenino. O fecho tinha o formato de um olho fechado que,
ao ser tocado, para seu espanto, se abriu. A luz cintilou, como milhares de estrelas de
uma só vez, logo tomando conta do quarto. Ana protegeu os olhos com uma das mãos e
Fofo soltou um piado que mais pareceu um gemido de espanto, se escondendo atrás da
cortina. Conforme a luz diminuía, seus olhos se acostumaram com a luminosidade que
ainda era intensa. — Areia? — Ana torceu o canto da boca. Pegou alguns grãos
dourados e os friccionou entre os dedos, eles responderam brilhando. — Veja, Fofo. É
só areia. — Levou os grãos até o bico do passarinho assustado. Ele diminuiu o ritmo das
asas e se alojou nas palmas dela, caindo num sono profundo. O que foi isso? Será que
estava ENVENENADO? Ao perceber o movimento profundo da respiração do
passarinho, ela suspirou aliviada. Pôs Fofo sobre seu travesseiro e o cobriu. Ele já havia
passado por ação suficiente naquele dia, e merecia o descanso. Mas areia sonífera?
Onde ela ouvira falar disso? Se virou e encarou a caixa, ainda aberta no chão. Sua luz
parecia repousar, respirando, assim como Fofo. Fechou a tampa e analisou as inscrições
em baixo relevo. Mais daquelas letras. Na sua frente, os blocos que antes formavam seu
nome estavam espalhados. Empurrou-os com o antebraço e se ajoelhou, ainda
analisando a caixa. Não fazia sentido perder tempo com aquilo, não quando ela devia
estar procurando um meio de salvar as ostras da morte iminente. Chacoalhou a cabeça.
De algum modo, mesmo a pequena quantidade de areia, que nocauteara o pardal, havia
a deixado um pouco zonza. Congelou o olhar sobre os blocos: Fantasia. — Meu nome...
É Fantasia... — Ficou com os lábios entreabertos enquanto pareceu ser arrancada de si
mesmo. Toda sua existência passou diante de seus olhos, como se ela se acordasse de
um longo sono sem sonhos. Seu irmão gêmeo Fântaso, seu tio Romeu F. na verdade era
Morfeu e seu tio Célio... — Ícelo! — Ela soltou um berro. — O senhor dos pesadelos!
— Deu um salto para trás. — Como pude ser tão ingênua? — A sua cortina ainda
balançava, mas nenhuma janela estava aberta ao ponto de aquilo ser obra do vento. Ana
precisava falar com seu irmão. Enfiou a mão no bolsinho de seu vestido e puxou uma
pérola azul que havia guardado há muito tempo como um amuleto da sorte. O vento
soprou morno e confortante do closet. — Não venha Ana. Você precisa salvar a
fazenda. — Reconheceu a voz da mulher dourada que vira no templo. — A caixa. Você
sabe o que fazer. — A brisa cessou, e junto com ela o balançar das cortinas. Tinha um
plano, mas ia precisar de ajuda. Sem pensar duas vezes, saltou pela janela, correndo na
direção do pomar. Frutinhas vermelhas, tão maduras que pareciam estar prestes a
explodir a qualquer momento. Enfiou algumas nos bolsos. Deu de mãos em seu cesto
mágico o encheu com quanta areia foi possível. Quase toda a areia da caixa e seu cesto
não parecia em nada mais pesado que quando vazio. A penúltima lagoa já estava pela
metade. Precisava ser rápida. Precisava chegar à fazenda de seu tio antes que o
expediente começasse. Precisava salvar aquelas criaturas do sofrimento. Os prédios,
compridos e cinzentos, apagaram há muito tempo a beleza dos arredores. Aquela
fazenda nada tinha de parecido com a de Ana. Era fria, as lagoas transformadas em
meros pântanos, que só tinham um único propósito: O de criar pesadelos! Respirou
fundo. Tinha que dar certo. Se esgueirou por entre os dois pavilhões centrais. O chão
lamoso fazia um barulho grudento, e suas narinas ficaram impregnadas com o cheiro
pútrido que o lugar exalava. Morte. Levou a mão até o nariz enquanto avançava
tentando não ser vista. Em uma das janelas viu dois homens, um vestindo botas com um
macacão de couro acoplado, o outro, vestindo um macacão verde-escuro. Este último
virava uma caneca de café, na outra mão já segurava firme seu instrumento de trabalho:
Um cutelo enferrujado. Ela estremeceu. Cerrou os dentes. Tinha que ser forte.
Abaixada, enfiou a mão no cesto e bateu na janela. Ouviu a madeira do assoalho estalar
com os passos pesados. O homem de macacão enfiou o nariz pela janela. Ana assoprou
a areia. Ele não a viu. Apenas coçou o nariz duas vezes e desabou lentamente contra a
parede lateral. O outro se aproximou. Ela se preparou para jogar mais uma dose de
areia, mas o segundo homem já estava caído de costas no chão, roncando alto como um
porco. No fim dos matadouros avistou um escritório. Era lá que seu tio deveria estar.
Foi de janela em janela, derrubando os serviçais de Ícelo. O final do corredor tinha
forma de T, e nenhuma janela. Vamos dar a volta então. O silêncio era avassalador, mas
era o resultado da magia da areia. Chegou ao final do corredor. Embaixo de um
salgueiro seco e retorcido estavam as máquinas usadas para bloquear o canal. Seguiu
confiante entre os prédios, até dois homens enormes a erguerem pelos braços, antes que
ela pudesse alcançar a areia, um homem esguio de terno cinza surgiu na sua frente, o
chapéu de aba reta lhe escondia os olhos. — Sabia que mesmo morto, Morfeu daria um
jeito de te fazer lembrar, Fantasia. — Disse o homem, erguendo o olhar. Era Horrível.
Órbitas negras vazias, mas mesmo assim sentiu o olhar penetrar e lhe congelar as
vértebras. Um grito de pavor ficou entalado em seu pescoço. Tentou se livrar, mas os
homens eram muito fortes. Ícelo pegou o cesto do chão. Sua mandíbula se deslocou para
os lados gerando um estalo antes de se deslocar e sua boca se abrir de uma forma
impossível. O monstro empurrou a areia para dentro e começou a mastigar. Seus olhos
se acenderam como lanternas quando ele engoliu. — Agora estou completo. Sempre
soube que você viria até mim. Todo esse tempo esteve fora de meu alcance. Pensei que
precisava de você por causa do equilíbrio. Você não é mais necessária. Podem prendê-
la. — Foi jogada no chão e a grade fechou nas suas costas. Sentiu uma energia jovem
sofrendo. A cela da frente estava coberta por um tecido branco, e dentro podia-se ver
muita luz, como se holofotes potentes estivessem virados para quem quer que estivesse
lá dentro sendo torturado. No fim do corredor, após os guardas, viu a sala de seu tio
Ícelo. Na parede, um manto negro com o interior púrpura cravejado de estrelas. Era o
manto de Morfeu. Pendurado ao lado dele, uma coisa terrível: A foice de Tânatos, o
deus da morte. Então era isso que ele queria fazer. Ele quer dominar os dois mundos.
Os dois guardas jogavam cartas perto da porta. Ela enfiou a mão em um dos bolsos do
vestido. Ainda tinha sua pérola da sorte. Enfiou mais fundo. As frutinhas! A janela era
alta, mas conseguiu dar um jeito de fazer pelo menos uma das frutinhas ficar parada
entre as grades. A noite estava tão perto quanto o fim da água no último refúgio de suas
ostras. O tempo passou, e ela já sem esperanças, se abraçava aos joelhos no canto da
cela. Foi quando ouviu um pio baixinho, como um cochicho entre as grades. Era Fofo!
Finalmente. Ele voou até ela, se enfiando no seu rosto, fazendo carinho. Ele carregava a
bolsinha que ela havia colocado em seu pescoço. — Cuidado, Fofo! — Disse baixinho.
— Ainda temos que sair daqui. — Ela olhou para os guardas, que não pareciam ouvir
mais nada do que o próprio jogo de cartas. — Faça o que nós treinamos lá em casa. —
Ele deu um pio em aprovação, enquanto batia continência com uma das asinhas.
Atravessou o corredor, chamando a atenção dos guardas, que pausaram o jogo e, com
um jornal enrolado em forma de cilindro tentavam golpear o pequenino. Um golpe
quase acertou o bico do pardalzinho, que desviou por pouco. — A Areia! Use a Areia!
— Os guardas fitaram Ana, e rapidamente Fofo voou em círculos, derrubando a Areia
sobre os homens, que cambalearam pouco antes de seus corpos desacordados atingirem
o solo. Ela enfiou o rosto entre as grades e apontou para o homem gordo no chão. —
Aquele ali. Ele está com as chaves. — Fofo apontou para a xícara de café. — Não! Ali.
No chão! — O passarinho ergueu uma das cartas. Ela suspirou. Ele deixou a carta cair e
voou até a sala, bicando o cabo da foice, esperando a aprovação de Ana. — Não! As
chaves! — Ele piou mais uma vez, batendo continência com a asinha e sumiu do campo
de visão. Ana deixou sua cabeça cair entre os ombros. Momentos depois, Fofo voava
com uma chave presa por um fio de couro no seu bico. A chave no pescoço do homem
era apenas uma distração. — Você é um danadinho! — O pardal piou em resposta. A
saída era pela porta do escritório de seu tio. Tocando a maçaneta, ainda sem girar a
esfera gelada, ela mirou com o canto dos olhos o manto de Morfeu na parede. Não
pensou duas vezes e o jogou nas suas costas. Era grande e largo, mas foi só ela pensar
nisso que a veste rapidamente se ajustou ao seu corpo. Sentiu-se muito leve, como se
seu corpo não pudesse mais se prender ao chão. Foi quando ela viu que já flutuava
alguns centímetros de altura. Enquanto admirava o feito mágico da herança de seu tio,
lembrou da foice de Tânatos na parede. E por que não? Com um estrondo ela passou
voando pela porta, mas não havia ninguém em seu caminho. Debaixo do velho
salgueiro, agora já iluminado pelos holofotes, as máquinas haviam sumido e o silêncio
tomava conta dos pavilhões. Ao longe, as luzes ligadas à beira da água denunciavam a
reunião dos trabalhadores. A matança já estava para começar. Ana tinha que ser rápida.
Só voava próxima ao chão, como em muitos sonhos onde você só consegue deslizar
bem perto do solo. Coragem, você consegue! Fofo voava ao seu redor, como se ouvisse
seus pensamentos, abriu bem as asas, girando até o alto, mostrando para ela como se
fazia. Piou do alto e ela repetiu seus movimentos. Deslizavam pelos céus, dando
piruetas e rasantes. Estava um pouco frio, e ela vestiu o capuz. Seguiram os postes de
luz até onde uma fumaça negra se erguia. As máquinas estavam ligadas, estacionadas
em círculo próximas à nascente. — Podemos usar elas para reabrir o córrego! Mas
primeiro tem uma coisa que eu preciso fazer. — Mais baixo no terreno, ao lado de uma
grande lagoa ligada às demais, a movimentação dos trabalhadores aumentava aos
poucos, conforme os barcos carregados começavam a chegar. Pairou no ar por um
momento e encarou Fofo, que estreitou os olhinhos em obstinação, a seguindo em um
longo rasante sobre o lago. A temperatura pareceu cair alguns graus quando ela fez isso.
As pessoas, ao verem a figura de manto negro portando a foice, correram, gritando e se
amontoando para fugir pelos corredores. Enquanto abria um sorriso de satisfação, sentiu
uma sombra se lançar atrás de si. O passarinho soltou um gemido e se escondeu atrás de
uma árvore. Uma pressão súbita atingiu seu peito e o ar não chegava aos seus pulmões.
Tudo ficou escuro. Seu corpo amortecido parecia se mover sozinho, mas ela não via
nada, somente o clangor de aço contra aço, os dentes rangendo e o cheiro de metálico de
sangue. Foi quando sentiu um espirro quente atingir seu rosto. Ela caiu. A cabeça
encostada no solo. Abriu devagar os olhos, estava tudo borrado. Uma forma negra
amontoada na sua frente. — Tenho que te dar crédito, pirralha. — A voz parecia se
afogar em si mesma. — Era seu tio em um manto negro, com uma lança atravessada no
peito e um corte enorme no pescoço, onde o sangue vertia, mas permanecia revolto no
mesmo lugar, sem cair da ferida, como se recusasse deixar o corpo de Ícelo. Ouviu um
gorgolejar final, e o corpo finalmente se desfez em sombras, que foram engolidas pela
terra. Suas mãos seguravam com força o cabo da foice, e ela a usou de suporte para se
pôr em pé. Apoiado com as costas no poste, um jovem alto de cabelo negro ajeitado por
cima dar orelhas, vestia um terno sport da cor da noite e uma camisa branca impecável.
Ela engoliu seco quando viu Fofo brincando na mão do rapaz, como se fossem velhos
conhecidos. — Vejo que temos um amigo em comum, Fantasia. — De súbito ele
revelou o rosto, pálido e angular (e muito bonito). — Como sabe meu nome? — Disse
ela, sem pensar. Ele riu com o canto da boca. — Ficaria mais confortável se devolvesse
minha foice primeiro. — Você é Tânatos? — Ela arregalou os olhos. O rapaz assentiu
com a cabeça, ainda sorrindo. Fofo soltou um piado agudo em protesto, voando em
meio aos dois. — A fazenda, eu preciso... — Foi interrompida quando o rapaz deu de
mãos na foice. Ele deslizou até onde as máquinas estavam, com uma das mãos no bolso
e a outra girando a foice, que parecia ser mais leve que o ar para ele. As máquinas
rangeram, abrindo caminho, como se um forte imã as afastasse. A lâmina cortou o ar e a
terra, fazendo o veio de água jorrar mais potente do que nunca. Logo o córrego fluía
como no início dos tempos, e Fantasia se lembrou de seu nome e porquê ele fora lhe
dado. — Muito obrigado, Tânatos. — Ele sorriu com os olhos apertados e sumiu nas
sombras. — Obrigado, Fantasia. — Ela correu em direção à sua fazenda. A pérola em
seu bolso brilhou e ao seu redor se viu tomada pela paisagem de seus sonhos. Os
campos floridos dançavam com a suave brisa de Zéfiro. Do templo, a mulher dourada
com o cajado de antes, a deusa veio a seu encontro. Enquanto ela se aproximava, seu
cajado se tornou uma espada repousando na cintura, e a pena transformou-se em uma
balança. Janelas abriram ao seu redor, de onde podia se ver os trabalhadores
descobrindo a fazenda de Ana e tratando as outras ostras com o mesmo respeito. As
lagoas eram, na verdade, as mentes das pessoas em todo o mundo. E os sonhos, bons ou
maus, continuariam existindo, mas agora com o equilíbrio reestabelecido graças a
coragem de uma menina que não sabia quem era. Até agora. Fantasia soube então, que
estava nos Campos Elísios. Ouviu a música da flauta e os cavalos correndo ao longe.
Fântaso recebeu a irmã de braços abertos, e eles caminharam na direção do sol poente,
enquanto Fofo voava livre sobre suas cabeças.

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