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“Um grão de areia cria uma pérola, dois grãos de areia te fazem dormir, meio grão de
esperança faz de novo a vida surgir.” Ditado das Sacerdotisas de Hécate.
Ainda era muito cedo, mais cedo que os apanhadores de pérolas eram acostumados a se levantar e ir à labuta, mas Ana já se espreguiçava na frente da porta salpicada de estrelas da casa de madeira de amaranto. Saudava o Sol ainda não nascido por entre as linhas púrpuras e azuladas que serpenteavam pelo céu. A melhor hora era quando as ostras estavam nos seus mais vívidos sonhos. Era quando ela colhia suas pérolas sem ser vista por ninguém. Pegou o pacote embalado em papel pardo sujo de areia no chão: Romeu F. É coisa do titio. Seus olhos se encheram de saudade. O remente havia assinado com letras que ela já tinha visto, mas já não lembrava o que queriam dizer. Depositou sobre a mesa do café da manhã, e pela janela sorriu para o seu objetivo: Duas longas fileiras de lagoas ovais, uma encarando a outra. Eles já foram os maiores fazendeiros de pérolas da região, mas com o passar dos anos a fazenda vizinha, que pertencia ao seu tio Célio, havia dominado o mercado com suas pérolas deformadas e craqueladas. Estas, agora eram as mais procuradas, não por outro motivo senão por seu menor preço e a experiência serem mais aceitos pelos consumidores. O mundo não era mais o mesmo. Ana não entendia. Aquelas pérolas vinham de criaturas maltratadas, castigadas durante a noite. No processo de colheita na fazenda de seu tio Célio, todas as ostras eram abertas com cutelos e facas de açougue. O que sobrava da carnificina era atirado de volta à água, onde as demais ostras eram obrigadas a se alimentar de suas irmãs chacinadas, não por maldade, mas por não conhecerem outra forma de o fazer. Só de pensar, seu corpo estremecia e ela suava frio. Isso não acontecia na fazenda de Ana, ela possuía um segredo, algo que aprendera com seu irmão gêmeo. As suas ostras eram tratadas com todo o carinho que ela tinha por todas as coisas vivas. Tio Célio nunca havia falado nada, mas ela sentia que ele queria acabar com suas pérolas e a fazenda. A água, antes abundante no córrego, já não passava de um fraco veio permeando as pedras, chegando com muita dificuldade até as lagoas. Saltitou pelo caminho, balançando seu cesto enquanto escolhia em qual lagoa entrar. Seu amigo matinal batia as asinhas ao seu redor. Um pardal de peito branco que sempre aparecia para comer as frutinhas da primavera, estufando as penugens de suas bochechas. O batizara de Fofo, e ele bem que merecia o nome. Mergulhou, uma coisa abominável para quem colhia pérolas, mas não para ela. Logo as conchas se abriram, e com muita alegria, como que em uma espécie de dança submersa, entregavam as mais belas pérolas, que ela guardava no seu cesto mágico. Já estava na última lagoa. Viu o relance da imagem de dentro da ostra: Um homem voando sobre uma cidade, portando um largo sorriso enquanto fazia acrobacias sobre os prédios. A concha se fechou. Emergiu feliz, com seu cesto repleto das bolinhas brilhantes e seu vestido roxo intocado pela água. Seu saltitar de volta à casa cessou com a visão da silhueta estática no meio do sol nascente. Seu tio Célio. Não. Um observador. O serviçal de seu tio veio até a divisa espionar. Esfregou os olhos. A sombra se foi como se nunca estivesse ali. Lavando, polindo e selecionando por cor e tamanho. Todas as pérolas prontas. O dia passou rápido e ela já se preparava para ir à cama. Encarou a cortininha verde-clara estampada com coelhinhos brancos de seu closet, mas não sem antes dar uma espiadela pela janela. No lugar da sombra deixara uma luz para afugentá- la. Sorriu para seus antigos brinquedos sobre a escrivaninha: Os blocos de alfabeto que ainda formavam seu nome e o cavalinho com rodas de madeira de seu irmão. Nos seus sonhos ela o visitava. Algumas vezes os sonhos eram claros, felizes e coloridos. Outras vezes eram escuros e confusos, e ela sabia que o que vivenciava durante o dia podia atormentá-la durante a noite. De repente, entendeu a aparição da sombra enviada por seu tio Célio: Tormento. Tormento era sua especialidade, e por isso temia o velho. Não deixou se abalar. Ao invés disso sorriu, lembrando da bela experiência que teve com a colheita. Ergueu o nariz. Psicopompos, me levem até meu irmão. Ordenou ela, bem alto em sua cabeça. As duas bandas da cortina balançaram, iluminadas por uma suave brisa. Segurou uma pérola bem firme contra seu peito enquanto atravessava a cortina. Com o perfume e o toque suave do vento em seu rosto, pôde ver os cavalos deslizando pelos pastos que dançavam como uma aquarela viva. Nenhuma sombra. Suspirou. O Sol iluminou e aqueceu seu rosto, lhe dando a energia que precisava para atravessar a fenda da montanha. Desta vez seu irmão estava longe. Naquele lugar, Ana podia percorrer distâncias imensuráveis apenas saltitando, como sempre fazia. Parou quando uma vila que parecia abandonada surgiu da névoa. Tudo era feito de madeira velha e retorcida. Pessoas vestidas com cinzas, tinham faces trêmulas e vazias. Bateram portas e janelas quando avistaram a menina saltitante se aproximando. Uma rua lamacenta a levou até o pântano onde, sentado sobre a rocha, um jovem de capa verde tocava uma bela melodia em sua flauta. A música parecia dar vida ao lugar decadente, e até os sapos pareciam mais amistosos em meio a sinfonia doce e multicolorida do instrumento. — Irmão! — Ana correu ao seu encontro e o abraçou. — Vejo que causou uma boa impressão. — Ele indicou o vilarejo com um movimento da cabeça. Ana apenas espremeu os olhos sorrindo. O chão pareceu vibrar profundamente. — Está na hora de ir, irmãzinha. — Mas eu acabei de chegar até você! — Não vou discutir o tempo deste lado. — Disse ele, ficando em pé sobre a rocha. — Você precisa lembrar! — O chão tremeu mais forte desta vez. O jovem uniu as palmas, uma luz cegante a fez saltar da cama. Máquinas haviam destruído o córrego. Duas das lagoas estavam secas, as ostras, mortas. Um grito desesperado ficou preso na sua garganta e lágrimas correram de seus olhos. Se jogou dentro de uma das lagoas vazias e estremeceu quando viu a imagem dentro de uma das ostras: Uma sombra pressionava uma jovem contra sua cama, deixando-a sem poder respirar ou se mover. O grito escapou, trêmulo, estridente. Ana se arrastou de volta à margem lamacenta com o coração palpitando no peito. Se agarrou à vegetação úmida e murcha e, com dificuldade, subiu até a beirada. Viu a vida se esvair das ostras que davam seus últimos suspiros. As perlíferas morriam rapidamente. Não pela falta de água, mas sim pelo rancor de Célio. Na divisa, dentro de seu terno bem ajustado, seu tio lhe deu as costas, pegando carona na lateral de uma das máquinas. O tempo não estava a seu favor. A falta de água logo chegaria às outras lagoas, assim como o destino das ostras sem vida. Você precisa se lembrar, Ana! Gritou consigo mesma, esperando que a resposta lhe alcançasse. Nada. Nem mesmo um lampejo de uma lembrança. Agarrou seu cesto e depois de incontáveis mergulhos levou todas as ostras até a última lagoa. Precisava de tempo. Correu até a casa. O embrulho de seu tio sobre a mesa, ainda sujo de areia. Romeu F. e as letras estranhas. Ana pensou. Pensou até sua cabeça doer enquanto ela dava voltas e mais voltas na sala. Batia as pontas dos dedos na testa. Ana... você precisa lembrar... Só conseguia pensar no seu irmão e no que ele lhe dissera. Foi até seu quarto. Na frente da janela, observando as lagoas se esvaindo aos poucos, respirou fundo e se concentrou. Sua mente viajou longe do presente, para os campos coloridos de seu último sonho. Eram campos verdes e floridos. Desta vez ela teve mais tempo para os detalhes. Ao longe, viu um templo cercado por colunas brancas, a memória estava clara em sua mente. Uma mulher de cabelos compridos e pele acobreada portava um cajado como um longo talo verde. A mulher também lhe mostrou uma pena. Três batidas na janela a fizeram dar um salto, espalhando o conteúdo da escrivaninha no chão antes de voltar a si. Ofegante e com o coração palpitando, levou a mão ao peito quando viu a pequena figura batendo as asinhas e bicando o vidro. — Fofo! Você quase me matou! — Ana finalmente abriu a janela para o pardalzinho, que incessante, como se quisesse lhe avisar de algo, voava ao redor de sua cabeça, remexendo os fios negros de seu cabelo. Virou para os blocos espalhados no chão, juntos ao cavalo de madeira e o embrulho. Sem saber mais o que fazer, rasgou o papel pardo, revelando uma caixa de ébano com detalhes dourados. Fofo batia asas perto da caixa e balançava a cabecinha em aprovação. — Você é muito esperto para um passarinho. — Ana fitou o pequenino. O fecho tinha o formato de um olho fechado que, ao ser tocado, para seu espanto, se abriu. A luz cintilou, como milhares de estrelas de uma só vez, logo tomando conta do quarto. Ana protegeu os olhos com uma das mãos e Fofo soltou um piado que mais pareceu um gemido de espanto, se escondendo atrás da cortina. Conforme a luz diminuía, seus olhos se acostumaram com a luminosidade que ainda era intensa. — Areia? — Ana torceu o canto da boca. Pegou alguns grãos dourados e os friccionou entre os dedos, eles responderam brilhando. — Veja, Fofo. É só areia. — Levou os grãos até o bico do passarinho assustado. Ele diminuiu o ritmo das asas e se alojou nas palmas dela, caindo num sono profundo. O que foi isso? Será que estava ENVENENADO? Ao perceber o movimento profundo da respiração do passarinho, ela suspirou aliviada. Pôs Fofo sobre seu travesseiro e o cobriu. Ele já havia passado por ação suficiente naquele dia, e merecia o descanso. Mas areia sonífera? Onde ela ouvira falar disso? Se virou e encarou a caixa, ainda aberta no chão. Sua luz parecia repousar, respirando, assim como Fofo. Fechou a tampa e analisou as inscrições em baixo relevo. Mais daquelas letras. Na sua frente, os blocos que antes formavam seu nome estavam espalhados. Empurrou-os com o antebraço e se ajoelhou, ainda analisando a caixa. Não fazia sentido perder tempo com aquilo, não quando ela devia estar procurando um meio de salvar as ostras da morte iminente. Chacoalhou a cabeça. De algum modo, mesmo a pequena quantidade de areia, que nocauteara o pardal, havia a deixado um pouco zonza. Congelou o olhar sobre os blocos: Fantasia. — Meu nome... É Fantasia... — Ficou com os lábios entreabertos enquanto pareceu ser arrancada de si mesmo. Toda sua existência passou diante de seus olhos, como se ela se acordasse de um longo sono sem sonhos. Seu irmão gêmeo Fântaso, seu tio Romeu F. na verdade era Morfeu e seu tio Célio... — Ícelo! — Ela soltou um berro. — O senhor dos pesadelos! — Deu um salto para trás. — Como pude ser tão ingênua? — A sua cortina ainda balançava, mas nenhuma janela estava aberta ao ponto de aquilo ser obra do vento. Ana precisava falar com seu irmão. Enfiou a mão no bolsinho de seu vestido e puxou uma pérola azul que havia guardado há muito tempo como um amuleto da sorte. O vento soprou morno e confortante do closet. — Não venha Ana. Você precisa salvar a fazenda. — Reconheceu a voz da mulher dourada que vira no templo. — A caixa. Você sabe o que fazer. — A brisa cessou, e junto com ela o balançar das cortinas. Tinha um plano, mas ia precisar de ajuda. Sem pensar duas vezes, saltou pela janela, correndo na direção do pomar. Frutinhas vermelhas, tão maduras que pareciam estar prestes a explodir a qualquer momento. Enfiou algumas nos bolsos. Deu de mãos em seu cesto mágico o encheu com quanta areia foi possível. Quase toda a areia da caixa e seu cesto não parecia em nada mais pesado que quando vazio. A penúltima lagoa já estava pela metade. Precisava ser rápida. Precisava chegar à fazenda de seu tio antes que o expediente começasse. Precisava salvar aquelas criaturas do sofrimento. Os prédios, compridos e cinzentos, apagaram há muito tempo a beleza dos arredores. Aquela fazenda nada tinha de parecido com a de Ana. Era fria, as lagoas transformadas em meros pântanos, que só tinham um único propósito: O de criar pesadelos! Respirou fundo. Tinha que dar certo. Se esgueirou por entre os dois pavilhões centrais. O chão lamoso fazia um barulho grudento, e suas narinas ficaram impregnadas com o cheiro pútrido que o lugar exalava. Morte. Levou a mão até o nariz enquanto avançava tentando não ser vista. Em uma das janelas viu dois homens, um vestindo botas com um macacão de couro acoplado, o outro, vestindo um macacão verde-escuro. Este último virava uma caneca de café, na outra mão já segurava firme seu instrumento de trabalho: Um cutelo enferrujado. Ela estremeceu. Cerrou os dentes. Tinha que ser forte. Abaixada, enfiou a mão no cesto e bateu na janela. Ouviu a madeira do assoalho estalar com os passos pesados. O homem de macacão enfiou o nariz pela janela. Ana assoprou a areia. Ele não a viu. Apenas coçou o nariz duas vezes e desabou lentamente contra a parede lateral. O outro se aproximou. Ela se preparou para jogar mais uma dose de areia, mas o segundo homem já estava caído de costas no chão, roncando alto como um porco. No fim dos matadouros avistou um escritório. Era lá que seu tio deveria estar. Foi de janela em janela, derrubando os serviçais de Ícelo. O final do corredor tinha forma de T, e nenhuma janela. Vamos dar a volta então. O silêncio era avassalador, mas era o resultado da magia da areia. Chegou ao final do corredor. Embaixo de um salgueiro seco e retorcido estavam as máquinas usadas para bloquear o canal. Seguiu confiante entre os prédios, até dois homens enormes a erguerem pelos braços, antes que ela pudesse alcançar a areia, um homem esguio de terno cinza surgiu na sua frente, o chapéu de aba reta lhe escondia os olhos. — Sabia que mesmo morto, Morfeu daria um jeito de te fazer lembrar, Fantasia. — Disse o homem, erguendo o olhar. Era Horrível. Órbitas negras vazias, mas mesmo assim sentiu o olhar penetrar e lhe congelar as vértebras. Um grito de pavor ficou entalado em seu pescoço. Tentou se livrar, mas os homens eram muito fortes. Ícelo pegou o cesto do chão. Sua mandíbula se deslocou para os lados gerando um estalo antes de se deslocar e sua boca se abrir de uma forma impossível. O monstro empurrou a areia para dentro e começou a mastigar. Seus olhos se acenderam como lanternas quando ele engoliu. — Agora estou completo. Sempre soube que você viria até mim. Todo esse tempo esteve fora de meu alcance. Pensei que precisava de você por causa do equilíbrio. Você não é mais necessária. Podem prendê- la. — Foi jogada no chão e a grade fechou nas suas costas. Sentiu uma energia jovem sofrendo. A cela da frente estava coberta por um tecido branco, e dentro podia-se ver muita luz, como se holofotes potentes estivessem virados para quem quer que estivesse lá dentro sendo torturado. No fim do corredor, após os guardas, viu a sala de seu tio Ícelo. Na parede, um manto negro com o interior púrpura cravejado de estrelas. Era o manto de Morfeu. Pendurado ao lado dele, uma coisa terrível: A foice de Tânatos, o deus da morte. Então era isso que ele queria fazer. Ele quer dominar os dois mundos. Os dois guardas jogavam cartas perto da porta. Ela enfiou a mão em um dos bolsos do vestido. Ainda tinha sua pérola da sorte. Enfiou mais fundo. As frutinhas! A janela era alta, mas conseguiu dar um jeito de fazer pelo menos uma das frutinhas ficar parada entre as grades. A noite estava tão perto quanto o fim da água no último refúgio de suas ostras. O tempo passou, e ela já sem esperanças, se abraçava aos joelhos no canto da cela. Foi quando ouviu um pio baixinho, como um cochicho entre as grades. Era Fofo! Finalmente. Ele voou até ela, se enfiando no seu rosto, fazendo carinho. Ele carregava a bolsinha que ela havia colocado em seu pescoço. — Cuidado, Fofo! — Disse baixinho. — Ainda temos que sair daqui. — Ela olhou para os guardas, que não pareciam ouvir mais nada do que o próprio jogo de cartas. — Faça o que nós treinamos lá em casa. — Ele deu um pio em aprovação, enquanto batia continência com uma das asinhas. Atravessou o corredor, chamando a atenção dos guardas, que pausaram o jogo e, com um jornal enrolado em forma de cilindro tentavam golpear o pequenino. Um golpe quase acertou o bico do pardalzinho, que desviou por pouco. — A Areia! Use a Areia! — Os guardas fitaram Ana, e rapidamente Fofo voou em círculos, derrubando a Areia sobre os homens, que cambalearam pouco antes de seus corpos desacordados atingirem o solo. Ela enfiou o rosto entre as grades e apontou para o homem gordo no chão. — Aquele ali. Ele está com as chaves. — Fofo apontou para a xícara de café. — Não! Ali. No chão! — O passarinho ergueu uma das cartas. Ela suspirou. Ele deixou a carta cair e voou até a sala, bicando o cabo da foice, esperando a aprovação de Ana. — Não! As chaves! — Ele piou mais uma vez, batendo continência com a asinha e sumiu do campo de visão. Ana deixou sua cabeça cair entre os ombros. Momentos depois, Fofo voava com uma chave presa por um fio de couro no seu bico. A chave no pescoço do homem era apenas uma distração. — Você é um danadinho! — O pardal piou em resposta. A saída era pela porta do escritório de seu tio. Tocando a maçaneta, ainda sem girar a esfera gelada, ela mirou com o canto dos olhos o manto de Morfeu na parede. Não pensou duas vezes e o jogou nas suas costas. Era grande e largo, mas foi só ela pensar nisso que a veste rapidamente se ajustou ao seu corpo. Sentiu-se muito leve, como se seu corpo não pudesse mais se prender ao chão. Foi quando ela viu que já flutuava alguns centímetros de altura. Enquanto admirava o feito mágico da herança de seu tio, lembrou da foice de Tânatos na parede. E por que não? Com um estrondo ela passou voando pela porta, mas não havia ninguém em seu caminho. Debaixo do velho salgueiro, agora já iluminado pelos holofotes, as máquinas haviam sumido e o silêncio tomava conta dos pavilhões. Ao longe, as luzes ligadas à beira da água denunciavam a reunião dos trabalhadores. A matança já estava para começar. Ana tinha que ser rápida. Só voava próxima ao chão, como em muitos sonhos onde você só consegue deslizar bem perto do solo. Coragem, você consegue! Fofo voava ao seu redor, como se ouvisse seus pensamentos, abriu bem as asas, girando até o alto, mostrando para ela como se fazia. Piou do alto e ela repetiu seus movimentos. Deslizavam pelos céus, dando piruetas e rasantes. Estava um pouco frio, e ela vestiu o capuz. Seguiram os postes de luz até onde uma fumaça negra se erguia. As máquinas estavam ligadas, estacionadas em círculo próximas à nascente. — Podemos usar elas para reabrir o córrego! Mas primeiro tem uma coisa que eu preciso fazer. — Mais baixo no terreno, ao lado de uma grande lagoa ligada às demais, a movimentação dos trabalhadores aumentava aos poucos, conforme os barcos carregados começavam a chegar. Pairou no ar por um momento e encarou Fofo, que estreitou os olhinhos em obstinação, a seguindo em um longo rasante sobre o lago. A temperatura pareceu cair alguns graus quando ela fez isso. As pessoas, ao verem a figura de manto negro portando a foice, correram, gritando e se amontoando para fugir pelos corredores. Enquanto abria um sorriso de satisfação, sentiu uma sombra se lançar atrás de si. O passarinho soltou um gemido e se escondeu atrás de uma árvore. Uma pressão súbita atingiu seu peito e o ar não chegava aos seus pulmões. Tudo ficou escuro. Seu corpo amortecido parecia se mover sozinho, mas ela não via nada, somente o clangor de aço contra aço, os dentes rangendo e o cheiro de metálico de sangue. Foi quando sentiu um espirro quente atingir seu rosto. Ela caiu. A cabeça encostada no solo. Abriu devagar os olhos, estava tudo borrado. Uma forma negra amontoada na sua frente. — Tenho que te dar crédito, pirralha. — A voz parecia se afogar em si mesma. — Era seu tio em um manto negro, com uma lança atravessada no peito e um corte enorme no pescoço, onde o sangue vertia, mas permanecia revolto no mesmo lugar, sem cair da ferida, como se recusasse deixar o corpo de Ícelo. Ouviu um gorgolejar final, e o corpo finalmente se desfez em sombras, que foram engolidas pela terra. Suas mãos seguravam com força o cabo da foice, e ela a usou de suporte para se pôr em pé. Apoiado com as costas no poste, um jovem alto de cabelo negro ajeitado por cima dar orelhas, vestia um terno sport da cor da noite e uma camisa branca impecável. Ela engoliu seco quando viu Fofo brincando na mão do rapaz, como se fossem velhos conhecidos. — Vejo que temos um amigo em comum, Fantasia. — De súbito ele revelou o rosto, pálido e angular (e muito bonito). — Como sabe meu nome? — Disse ela, sem pensar. Ele riu com o canto da boca. — Ficaria mais confortável se devolvesse minha foice primeiro. — Você é Tânatos? — Ela arregalou os olhos. O rapaz assentiu com a cabeça, ainda sorrindo. Fofo soltou um piado agudo em protesto, voando em meio aos dois. — A fazenda, eu preciso... — Foi interrompida quando o rapaz deu de mãos na foice. Ele deslizou até onde as máquinas estavam, com uma das mãos no bolso e a outra girando a foice, que parecia ser mais leve que o ar para ele. As máquinas rangeram, abrindo caminho, como se um forte imã as afastasse. A lâmina cortou o ar e a terra, fazendo o veio de água jorrar mais potente do que nunca. Logo o córrego fluía como no início dos tempos, e Fantasia se lembrou de seu nome e porquê ele fora lhe dado. — Muito obrigado, Tânatos. — Ele sorriu com os olhos apertados e sumiu nas sombras. — Obrigado, Fantasia. — Ela correu em direção à sua fazenda. A pérola em seu bolso brilhou e ao seu redor se viu tomada pela paisagem de seus sonhos. Os campos floridos dançavam com a suave brisa de Zéfiro. Do templo, a mulher dourada com o cajado de antes, a deusa veio a seu encontro. Enquanto ela se aproximava, seu cajado se tornou uma espada repousando na cintura, e a pena transformou-se em uma balança. Janelas abriram ao seu redor, de onde podia se ver os trabalhadores descobrindo a fazenda de Ana e tratando as outras ostras com o mesmo respeito. As lagoas eram, na verdade, as mentes das pessoas em todo o mundo. E os sonhos, bons ou maus, continuariam existindo, mas agora com o equilíbrio reestabelecido graças a coragem de uma menina que não sabia quem era. Até agora. Fantasia soube então, que estava nos Campos Elísios. Ouviu a música da flauta e os cavalos correndo ao longe. Fântaso recebeu a irmã de braços abertos, e eles caminharam na direção do sol poente, enquanto Fofo voava livre sobre suas cabeças.