2012 LucianaHenriqueMarianoDaSilva

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

INSTITUTO DE LETRAS

DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA BRASILEIRA

LUCIANA HENRIQUE MARIANO DA SILVA

A ARQUITETURA DA PAISAGEM DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Brasília
2012

i
LUCIANA HENRIQUE MARIANO DA SILVA

A ARQUITETURA DA PAISAGEM DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-graduação do Departamento de Teoria
Literária e literaturas da Universidade de
Brasília (UnB), área de concentração
Literatura e Práticas Sociais, como requisito
parcial para a obtenção do grau de Mestre
em literatura brasileira.

Orientação: Dr. Alexandre Simões Pilati

Brasília
2012

ii
i
Para Oziel Henrique da Silva, Rita de
Cáscia M. da Silva e Bruno Marx de
Aquino Braga

ii
Quando me bato pelo regionalismo é para
mostrar, numa anedota, o local, os
sentimentos comuns a todos os homens. O
homem só é amplamente homem quando é
regional. (ATHAYDE, 1998, p. 86).

Entender o seco, auscultar o não,


para ver onde eclode o grão
e até mesmo onde não.

Onde o grão fabrica tenso


sua própria explosão.
Onde o pequeno grão é imenso,
publicando a concepção
que contém seu corpo denso:
supernova em expansão.

O grão repousa em silêncio,


responde à secura do não
na inquieta paz do fermento
– gravidade e estagnação –
multidão em movimento,
a cidade, do avião.

Luciana Henrique
iii
Agradecimentos

Agradeço a meus pais Rita, Oziel, e a meus irmãos, Mariana e Gabriel. Bastou que estivessem ali ao redor
para me lembrarem a vida e do amor, sobreviventes entre os turnos de estudo e trabalho. Devo muito também
ao Bruno, que sempre me deu forças e oportunidades tanto para seguir em frente quanto para as necessárias
pausas. Aos meus queridos amigos de pesquisa e de vida Marcela, Tatiana, Ana Daniela, Késsia, Silvia,
Paulo, Rafael e Gustavo. Também à Eliane, que junto com Marcela, Paulo, Rafael e Tatiana, dividiram
muitos momentos enriquecedores na pós, quando o projeto de pesquisa desse trabalho já engatinhava. Ao
Marcelo, que compartilha comigo o gosto pela poesia e a amizade desde a graduação. À Luiza, mamãe
durante o mestrado e à Mônica, guerreira após uma grande perda – as duas outras primeiras orientandas do
Alexandre, que me inspiraram muito em todo o percurso. À Cristiane, que cedeu sua casinha linda em
Pirenópolis naqueles fundamentais nove dias para que eu me retirasse e desse impulso aos estudos. À Elaine
e ao Luiz Fernando, grande força pra mim quando eu estava na SEDF. Às colegas de trabalho e amigas
Camila e Alessandra, que me apoiaram além do que eu possa agradecer, principalmente na fase mais difícil
da dissertação. Aos meus alunos, tanto os pequeninos do CEF 411 de Samambaia, quanto os adultos do
Câmpus Riacho Fundo do Instituto Federal de Brasília. Enquanto a dissertação se arrastava, cada aula dada
deu a sensação de missão cumprida, até quando os objetivos não se cumpriam inteiramente. Aquelas
inesperadas frases de incentivo deles me animaram e consolaram durante todo o caminho. À sempre aluna
Luiza Calçade – sim, os alunos sempre têm sobrenome! – que, depois de 2009 me encontrou e me apoiou de
maneira tão singela. À professora Ana Laura, que bem antes que eu soubesse o que fazer com tudo isso, me
incentivava e me apoiava, principalmente depois de meus autoboicotes. Ao professor Alexandre, que foi um
orientador sempre presente, companheiro de poesia e de profissão e que, como eu, gosta de um bom desafio.
Agradeço também a Deus – antes da literatura e do marxismo foi minha fé que me ajudou a enxergar que “o
homem é sempre a melhor medida”.

iv
Resumo

Este trabalho procura analisar as relações existentes entre a construção metafórica da paisagem
poética e a formação nacional na obra de João Cabral de Melo Neto, especialmente em Paisagem
com figuras (1955) e Quaderna (1959). Para compreender melhor a importância da paisagem na
obra do poeta, estabelecemos uma relação entre a forma pela qual o poeta entende o próprio olhar,
em um modo crítico de enxergar a si mesmo – como poeta e como ser humano – e como ele vê sua
terra natal, como forma de entender a poesia e o País. Nessa perspectiva, ressalta-se a preocupação
estrutural própria do engenheiro ou arquiteto, segundo o poeta mesmo afirma, voltada para a
construção do olhar, a construção da paisagem concretizada na forma poética. Essa preocupação
acaba por expor os mecanismos do sistema literário em cada poema. As leituras dos poemas
“Pregão turístico do Recife”, “Alto do Trapuá” e “Mulher vestida de gaiola”, cotejadas com outros
poemas e uma fortuna crítica selecionada sobre o poeta são os guias deste trabalho.

Palavras-chave: poesia, paisagem, João Cabral de Melo Neto

v
Abstract

This work aims at analyzing the relations built between the metaphoric construction of the poetic
landscape and the national formation on João Cabral de Melo Neto’s poetry work, especially in
Paisagem com figuras (1955) and Quaderna(1959). For a better comprehension of the importance
of the landscape in the poet’s work, it is established a relation between the way the poet understands
his own point of view as a critical way to see himself – as a poet and as a human being –, and the
way he sees his homeland as a way to understand poetry and to understand his country. Through
that perspective, we highlight the poet’s concerns which are typical of an engineer or an architect,
as the poet himself said, facing the construction of a way to view the world, and the construction of
the landscape materialized as the poetic form. The readings of the poems “Pregão turístico do
Recife”, “Alto do Trapuá” and “Mulher vestida de gaiola”, collated with other poems and a fortune
critique on the poet’s work are the guidelines of this work.

Key-words: poetry, landscape, João Cabral de Melo Neto

vi
Sumário
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................................... 1

A lira só lâmina ................................................................................................................................................. 1

Expressão pessoal, expressão nacional .............................................................................................................. 3

Educação pela paisagem .................................................................................................................................. 13

Decadência e modernidade em “Pregão turístico do Recife” .......................................................................... 23

PAISAGEM NARRATIVA E PAISAGEM HISTÓRICA ............................................................................................. 29

A ARQUITETURA DA GAIOLA ........................................................................................................................... 46

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................................................. 55

ANEXO I ........................................................................................................................................................... 57

ANEXO II.......................................................................................................................................................... 73

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................................................................... 75

0
INTRODUÇÃO

A lira só lâmina
Neste trabalho, buscamos entender as relações entre o sujeito poético de João Cabral de
Melo Neto e a paisagem lírica como índice da formação nacional. Podemos verificar, também, a
partir da forma dos poemas analisados, a consciência do poeta a respeito das potências e dos limites
dessa formação, bem como dos limites da palavra poética em retratar essa paisagem. Procuraremos
enxergar através dos olhos do sujeito lírico o processo de construção de uma poesia firmada no
embate entre homem e natureza, entre poeta e palavra e entre poeta e leitor. Esta é a perspectiva por
meio da qual buscamos analisar a arquitetura da paisagem cabralina, como se propõe este trabalho.
Para isso, foi preciso primeiramente considerar a relação entre sujeito (eu-lírico, poeta, homem) e
objeto (paisagem, poesia, mundo) desvelando o percurso da construção de poemas como “Pregão
turístico do Recife”, “Alto do Trapuá”, ambos de Paisagem com figuras (1955), e “Mulher vestida
de gaiola”, de Quaderna (1959).
A fundamentação das análises desenvolveu-se à medida que a forma desses mesmos
poemas demandou a busca pela fortuna crítica (sobre o poeta, a lírica, a obra de arte) ou apontaram
outro poema, que complementava a compreensão da análise original. Por isso, é importante ressaltar
que essa metodologia baseou-se mais na ordem daquilo que a leitura dos poemas exigiu do que na
ordem exigida pela forma de uma dissertação.
Na leitura de “Pregão turístico do Recife”, a construção metafórica estabelece relações
com O cão sem plumas e Morte e vida Severina. As convergências dão-se a partir da constatação
de que o homem, nesses poemas, aparece apenas pelo seu vestígio ou negação, isto é, pela
aniquilação do que poderia restar de humanidade naquele homem, sob a lógica do capital. Sob esta
lógica, o poema procura compreender de que maneira a paisagem é naturalmente posta à venda
como “experiência turística”. O poema revela o artificialismo presente nessa naturalidade com que
se desfruta uma paisagem, seja como experiência turística ou como experiência poética, e leva a
perceber de que forma a natureza foi construída (destruída, reconstruída, modificada) para que se
configurasse a paisagem dita turística, seja para o turista, seja para o leitor.

O poema “Alto do Trapuá” (Paisagem com figuras) leva também a refletir sobre as
formas de O cão sem plumas e Morte e vida Severina, no que diz respeito à representação do
homem e da natureza. Quanto à representação humana comenta-se a referência ao poema de
Manuel Bandeira “O bicho”: enquanto neste, o ser humano é metamorfoseado em animal, em “Alto
do Trapuá”, o homem é representado como um elemento mineral ou vegetal agregado a ela. A
natureza, por sua vez, se mostra mais humana e reativa do que o próprio homem. Também se faz
1
referência ao poema “De um avião”, para entendermos a forma pela qual o sujeito conduz o olhar
do leitor mais para perto ou para longe, dependendo da perspectiva da paisagem que ele queira
desvelar.
A análise de “Mulher vestida de gaiola” (Quaderna) busca entender o desafio de se
construir o poema e a nação, metaforizada na gradação de abrangências cada vez maiores da
paisagem – mar, Pernambuco, mundo – e o desafio de se ultrapassar os limites de cada um, da
nação ou do poema. As conflituosas relações entre sujeito e mundo se desenvolvem no poema a
partir do trabalho com as imagens mulher, gaiola e pássaro, e as relações entre dentro e fora,
bastante exploradas também em outro poema de Quaderna comentado nesta parte, “A mulher e a
casa”.
O poder de “corte” dessa lírica consiste em atrair a inteligência do leitor ao desafio,
buscando tirá-lo do comodismo daquela aura de encantamento a que está habituado na leitura
tradicional de poesia, reforçada mesmo em meio à atmosfera iconoclasta do Modernismo, conforme
veremos mais adiante.
A lírica tradicional traz em seu bojo contradições que não se manifestam na aparência e
que se mostram “resolvidas” em sua forma. Essa configuração se consolida a partir da formação do
sujeito burguês, que cria as bases da lírica moderna e dá corpo à maneira aqui referida como
tradicional, de se ler poesia. Segundo Theodor W. Adorno em sua “Palestra sobre lírica e
sociedade”
A afetividade [...] faz questão de que isso permaneça assim, de que a expressão lírica,
desvencilhada do peso da objetividade, evoque a imagem de uma vida que seja livre da
coerção da práxis dominante, da utilidade, da pressão da autoconservação obtusa. Contudo,
essa exigência feita à lírica, a da palavra virginal é, em si mesma, social (ADORNO, 2003,
p. 67)

A solidão do eu-lírico, no seu isolamento do mundo, demonstra uma tentativa de


resgate de sua essência como sujeito, consigo mesmo e com a natureza. A paisagem aparece
frequentemente na poesia romântica como uma manifestação desta desejada unidade entre o sujeito
e o mundo. De acordo com Lukács, o efeito embevecedor do poema romântico, que pacifica o
espírito da mesquinhez dos mecanismos mundanos, acaba por revelar em negativo justamente essa
cisão. Conforme Lukács, “a arte, a realidade visionária do mundo que nos é adequado, tornou-se
assim independente: ela não é mais uma cópia, pois todos os modelos desapareceram; é uma
totalidade criada, pois a unidade natural das esferas metafísicas foi rompida para sempre”
(LUKÁCS, 2000, p. 34).

2
A obra de João Cabral de Melo Neto, em seu apelo à sensibilidade crítica do leitor, não
busca restaurar esse vínculo perdido, mas chamar o leitor a reconhecer não só a cisão, mas o embate
entre homem e natureza, embutidos na arquitetura da paisagem.

Expressão pessoal, expressão nacional


Nas décadas de 20 e 30, diversos fatores históricos permitiram grandes transformações
no País, com a peculiaridade de uma integração cultural sem precedentes entre classes. Segundo
Antônio Cândido, isso aconteceu
Em grande parte porque gerou um movimento de grande identificação cultural, projetando
na escala das nações fatos que antes ocorriam no âmbito das regiões. A este aspecto
integrador, é preciso juntar outro, igualmente importante: o surgimento de condições para
realizar, difundir, e “normalizar” uma série de aspirações, inovações, pressentimentos
gerados no decênio de 1920, que tinha sido uma sementeira de grandes mudanças.
(CÂNDIDO, 2006. p. 219)

A iniciação poética do jovem Cabral em poesia deu-se nos anos 30, pela via do
surrealismo e do simbolismo francês, com Rimbaud, Verlaine, Valéry, Baudelaire e Mallarmé, na
biblioteca de Willy Lewin, junto com outros jovens intelectuais de Recife, entre eles, Lêdo Ivo
(ATHAYDE, 1998, p. 149). Cabral publicou o primeiro livro no momento de academização do
Modernismo, posterior ao que Antônio Cândido chama de “perda da auréola do Modernismo”, que,
segundo o crítico, ocorre na década de 30 (CÂNDIDO, 2006, p. 223). Na década de 40, as técnicas
da poesia modernista já passavam a ser parâmetro e não mais bandeira de renovação linguística e
cultural. Nessa época, Cabral já tinha, a seu alcance, seguras referências na poesia nacional “de
vanguarda”, como Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade.
A poesia simbolista, que, na Europa do fim do século XIX, era tida como decadente e
de mau gosto, na década de 40, já fazia parte de um respeitado cânone, que, como veremos, foi
aproveitado na fatura poética modernista desde os primeiros modernos, como Bandeira e Mário de
Andrade. Na verdade, apesar da aura de ruptura nas primeiras fases do Modernismo e certa
renovação da linguagem literária, essencialmente, o que se verifica é continuidade e decadência de
um modelo cultural e econômico de bases coloniais e aburguesamento da elite. Segundo João
Ernesto Weber,

o Modernismo, a par de ter sua explicação no modelo de dependência cultural descrito,


possui em suas bases a crise da estrutura vigente, pelo fato de os mercados mundiais, com a
guerra, terem entrado em uma desarticulação inerente à própria luta (e ao desgaste) das
nações centrais pela hegemonia mundial, refletindo-se essa desarticulação no Brasil, como
crise do modelo dependente exportador. [...] Se não existe uma nova estrutura, o que dá
condições à dependência cultural nos moldes em que se a descreveu, existe, todavia, a crise
da estrutura vigente, propiciando em consequência a dimensão do movimento modernista
causadora da impressão de ruptura total. (WEBER, 1976, p. 80)

3
Em um primeiro momento, a corrente modernista dominante no Brasil elegeu as
vanguardas europeias – futurismo, cubismo, surrealismo e dadaísmo – na tentativa de ruptura com o
que julgavam ser o academicismo parnasiano. A ideia de permanência de certos modelos era tal que
a influência simbolista teve ainda mais vigor nos últimos instantes do modernismo – com Cecília,
Meireles, Murilo Mendes, Manuel Bandeira, um certo Drummond e as primeiras obras de Cabral –
do que no simbolismo brasileiro propriamente dito, de Alphonsus de Guimaraens e Cruz e Souza.
É do simbolista Mallarmé a epígrafe de Pedra do Sono: “Solitude, récif, étoile...”
(solitude, recife, estrela), último verso de um poema otimista e desafiador, que procura, por meio de
metáforas inspiradas na navegação, evocar – e celebrar – os rumos da poesia simbolista. Declamado
em uma mesa de poetas por Mallarmé por ocasião da inauguração da revista simbolista La plume,
o trecho do poema “Salut” (“O brinde”) também empresta a Pedra do Sono certa solenidade de
estreia. Apesar do tom celebrativo do poema de que se originou a epígrafe, tomada isoladamente,
ganha conotação diversa. Luiz Costa Lima (1995), citando C. F Maclntyre, escreve:
Sem temor do convés que arfa [...], nomeia: ‘solidão , estrela, arrecife’, tudo o que constitui
a experiência e o destino do marinheiro, e propõe o seu brinde ao que quer que possa ser
digno do cinzelar e do polir, das vigílias noturnas e do labor do espírito, da solidão e da
falta de apreço que participam do fazer poético ‘le Blanc souci de notre taille’ 1.
Estamos agora em condições de verificar o quanto a leitura da passagem por Cabral se
afasta da proposta de Mallarmé. Enquanto em ‘Solitude’, o verso tomado como epígrafe
tem um sentido figurado, indicando os riscos da vida marinheiro-poeta, sua citação isolada
na abertura de Pedra do sono faz as palavras soarem na sua dureza concreta. Toda a
sugerência simbólica se descarta, para que as palavras concentrem sua força nomeante.
(LIMA, 1995, pp. 204-205)

Desde o início, o poema cabralino declara explicitamente em sua estrutura a leitura


crítica de outros poemas, deixando à mostra o processo pelo qual o poeta construiu seu próprio
estilo. Outro aspecto a ser salientado é que já se nota a consciência precoce do limite da poesia –
palavra lírica –, bem como da própria poesia.
A influência surrealista, o primor da técnica e o tributo a Mallarmé levaram Antônio
Cândido, em seu artigo “Poesia ao norte”, publicado na Folha da Manhã, em junho 1943, a avaliar
a novidade do jovem poeta com entusiasmo e cautela:

[...] não me lembro de moço algum do sul que tenha estreado tão bem quanto eles [João
Cabral e Rui Guilherme Barata], nos dois últimos anos. [...] O Sr. João Cabral de Melo
Neto tem como epígrafe do seu livro o desafio heroico de Mallarmé: ‘Solitude, récif,
étoile...’. Com razão, porque Pedra do Sono é uma aventura arriscada (CÂNDIDO, 2002,
p. 137).

1
Stephane Mallarmé – Selected poems. Trad. e notas de C. F. Maclntyre. University of California Press, Berkeley
and Los Angeles, 1957, p. 114. (Citação de Luiz Costa Lima).
4
O crítico chama a atenção para a valorização plástica das palavras e o forte teor
imagético de suas associações. Apesar de haver ainda a presença do eu-lírico na maior parte dos
poemas, ele está sempre voltado para fora de si, para o objeto. A esse respeito, ele afirma:

As palavras, que têm um poder sugestivo maior ou menor conforme as relações que as
ligam umas com as outras, se dispõem nos seus poemas quase como valores plásticos, nesse
sistema fechado que assume às vezes o caráter de composição pictórica, e a beleza que
nasce da sua inter-relação. [...] As suas emoções se organizam em torno de objetos precisos
que servem como sinais significativos do poema – cada imagem material tendo de fato, em
si, um valor que a torna fonte da poesia, esqueleto que é no poema (CÂNDIDO, 2002, p.
137).

Cândido identifica nas partes desse “esqueleto” do poema o que posteriormente seria
reconhecido por outros críticos como as ideias fixas de João Cabral, que costumam orientar a
construção poética. “[...] O poeta vai construindo solidamente imagens que são, ao mesmo tempo,
os elementos significativos e o arcabouço do poema” (CÂNDIDO, 1975, p. 139). Em comentário
sobre o poema “Dentro da perda da memória”, o crítico enumera as imagens que sustentam a
estrutura do poema, a qual é racionalmente calculada em torno delas.

O poema parte da imagem – mulher azul – que condiciona quatro pontos principais de
ossificação: pássaros, lua, retrato, cabelos. Em torno deles, vêm dispor outras imagens
materiais: flores, olhos, seios, clarinetes, bicicletas, amigos, hierofante, braço. Estas
palavras comandam os versos, estruturam o poema e dependem de uma vontade ordenadora
que, após havê-los selecionado, os dispõe, dentro do poema, como valores por assim dizer
plásticos. (CÂNDIDO, 2002, p. 139)

Diante da predominância da imagem em detrimento da sequência verbal, algo de uma


fluência discursiva, Cândido alerta sobre o hermetismo dessa pureza poética, sob o risco de cancelar
justamente a comunicação profunda com o que há de universalmente humano no leitor: “o erro da
sua poesia é que, construindo o mundo fechado de que falei, ela tende a se bastar a si mesma. Ganha
uma beleza meio geométrica e se isola, por isso mesmo, do sentido de comunicação que justifica
neste momento a obra de arte” (CÂNDIDO, 1975, p. 140).
Posteriormente, como sabemos, Cabral passaria a buscar sistematicamente uma relação
mais estreita com o leitor em sua poesia, o que produziu poemas de grande fôlego, como O cão sem
plumas (1950), O rio (1953) e Morte e vida Severina (1955), verdadeiros marcos na obra do
poeta, escritos dentro desse espírito de mudança de dicção. Aparentemente, a preocupação com o
leitor já existia antes mesmo da publicação de Pedra do Sono. Em carta a Carlos Drummond de
Andrade – e talvez justamente por estar se dirigindo ao escritor de uma poesia “em tom maior”,
Cabral confessa:

É que a perspectiva da publicação desse livro tem me deixado num estado de quase pânico.
Sinto que não é esta a poesia que eu gostaria de escrever; eu gostaria é de falar numa
linguagem mais compreensível desse mundo, de que os jornais dão notícia todos os dias, de
5
que o barulho chega até a nossa porta; uma coisa menos ‘cubista’ (SÜSSEKIND, 2001, p.
171).

João Cabral teve em alta conta a contribuição crítica de Antônio Cândido, que, já a
respeito do primeiro livro do “Sr. João Cabral de Melo Neto”, pôde prever o possível surgimento de
um grande poeta. A respeito do artigo de Cândido, o poeta comenta:

Quando eu vim para o Rio, um dia conversando com Carlos Drummond ele citou esse
artigo de Antônio Cândido. Hoje eu poderia colocá-lo como prefácio em minhas poesias
completas porque ele previu tudo o que eu ia escrever, a maneira como eu ia escrever e meu
primeiro livro não é ainda muito característico da minha maneira posterior, mas ele
pressentiu tudo. Notou que minha poesia aparentemente surrealista, no fundo, era a poesia
de um cubista. De fato, de todas as escolas, estilos de pintura, a coisa que mais me marcou
foi o Cubismo. Daí também essa grande influência de Le Courbusier. O Antônio Cândido
previu esse meu construtivismo, essa minha preocupação de compor o poema, de não
deixar que o poema se fizesse sozinho, de falar das coisas e não de mim. (ATHAYDE,
1998, pp. 100-101)

Nesse depoimento, confirma-se de maneira cabal a capacidade de intervenção de crítica


de Antônio Cândido, que acenou com lucidez as possíveis trajetórias que o poeta colocava diante de
si em seu primeiro livro.

De acordo com Carlos Secchin, “a propósito do livro de estreia, com efeito, muito se
falou do tributo a Murilo Mendes e à poética surrealista: primado da visualidade, captação plástica
do real, valorização do onírico em contraposição às percepções automatizadas do objeto.”
(SECCHIN, 1999, p. 19). Secchin menciona a predominância da presença do eu-lírico, que aparece
em dezessete dos vinte poemas do livro e ressalta: “o eu funciona antes como espectador do mundo
onírico do que como ator imerso em sua dinâmica” (Idem, p. 20). O crítico faz uma relação entre o
primeiro Cabral e o poeta maduro: “Num primeiro momento, o poeta é aquele que vê; mais tarde
(para usarmos a expressão do próprio João Cabral em Museu de tudo) será aquele que dá a ver”
(Idem, p. 21). De acordo com essa observação, o caráter da visualidade permaneceu crucial desde os
primeiros poemas de Cabral até sua fase madura. No poema que abre Pedra do sono, é possível
vislumbrar a importância do olhar:

Meus olhos têm telescópios


espiando a rua,
espiando minha alma
longe de mim mil metros.
(MELO NETO, 1994, p. 43)

Na primeira estrofe, o olhar do sujeito dirige-se para fora de si e contempla a rua,


mulheres, automóveis e também a si mesmo a uma distância calculada, controlada (mil metros).
Essa distância, medida pelo alcance do telescópio, torna-lhe inacessível a própria alma e a amada.

6
Estamos diante de um eu cujo olhar, mesmo hipertrofiado, não permitiu dizer a palavra esperada.
Que seria a palavra esperada? Talvez a ansiada palavra virginal, o graal dos poetas, a empatia
sentimental com o leitor, que faz a poesia ser sentida (ADORNO, 2003, p. 69). Fagulha aí a visão
cara a João Cabral de que a poesia não pode interpretar o mundo quando turvada pelos impulsos da
subjetividade, mas trabalhada pelo raciocínio, conforme o poeta descreve em seu ensaio “A
inspiração e o trabalho de arte” (MELO NETO, 1994, p. 723). O olhar cabralino não carrega a luz
sacralizada do gênio romântico. Talvez se supusesse isento, por estar mediado por aparatos
mecânicos – telescópio, carro –, no entanto, o apêndice da máquina cancela por princípio a
autonomia desse olhar e declara seus limites. Apenas fica “indefinidamente contemplando” com
seus artifícios de enxergar, que acabam por não fazer ver ou fazer ouvir. “Indefinidamente” alude
tanto ao tempo quanto à carência de definição. Assim como se anunciam as potências desse olhar –
“meus olhos têm telescópios” –, também suas limitações estão dadas: são invisíveis os rios onde
nadam as mulheres e são “peixes cegos” os automóveis que compõem as “visões mecânicas” do eu-
lírico. Expressa-se uma autoconsciência do olhar poético, que organiza o objeto para a construção
do poema, ideia que se adensará em O engenheiro (1945). Nesta obra, boa parte dos poemas
converge direta ou indiretamente ao controle do objeto pela visão.

“A moça e o trem”

A moça na janela
vê a planta crescer
sente a terra rodar:
que o tempo é tanto
que se deixa ver.
(MELO NETO, 1994 p. 73)

“O funcionário”

No papel de serviço
escrevo teu nome,
(estranho à sala
como qualquer flor)
mas a borracha vem e apaga
(Idem, p. 75)

“A árvore”

O frio olhar salta pela janela


para o jardim onde anunciam
a árvore.
(Idem, p. 77)

“A Vicente do Rego Monteiro”

Eu vi teus bichos mansos e domésticos


um monociclo
gato e cachorro
(Idem, p. 80)
7
“A Newton Cardoso”

Eu vi a bola
de futebol
correr no campo.
Quem era ela?
(Idem, p. 81)

Na tradição da lírica universal, a visão privilegiada do poeta, já nomeado condor ou


albatroz, é o que permitiu que muitas gerações lhe avocassem a função de porta-voz dos demais
“mortais”. O apelo de João Cabral ao sentido da visão. O apego à imagem levou o poeta a
concentrar uma parte considerável de seus ensaios críticos nas artes plásticas.
Em entrevista com a artista plástica Solange Magalhães, que frequentou o círculo de
amizades de João Cabral de Melo Neto, Selma Vasconcelos perguntou à artista porque o poeta tinha
tanto apego à pintura. Solange Magalhães respondeu:

Era um artista cerebral, mas, antes de tudo, passava pelo olhar. Seu mundo era
extremamente visual. Daí o gosto pelas artes plásticas, particularmente pela pintura. Pode-
se dizer que quando você lê a poesia dele, você vê nitidamente como é uma poesia visual. O
que importava para ele era a imagem. Isso a poesia dele mostra (VASCONCELOS, 2009,
p. 69).

O poeta afirmou em entrevista datada de 1991: “se tivesse vivido num ambiente de
pintores em vez do ambiente de poetas em que vivi no Recife, talvez fosse pintor. Sou um indivíduo
fascinado pela pintura moderna” (ATHAYDE, 1998, p. 148) Cabral publicou, em 1959, estudo
sobre o pintor Joan Miró e foi apreciador também de outras artes feitas para o olhar, desde a dança
flamenca e as touradas até o cinema e a arquitetura. Chegou a dizer, em entrevista no ano de 1973,
que gostaria de ser arquiteto: “a arquitetura sempre foi a arte que mais me interessou e, ao meu ver,
é a que está mais próxima do que tento fazer com a poesia” (ATHAYDE, 1999, p. 145).
Sobre o arquiteto Le Corbusier, João Cabral afirmou: “Nenhum poeta, nenhum crítico,
nenhum filósofo exerceu sobre mim a influência que teve Le Corbusier. Durante muitos anos, ele
significou para mim lucidez, claridade, construtivismo. Em resumo, o predomínio da inteligência
sobre o instinto” (ATHAYDE, 1999, p. 133). O arquiteto foi apontado pelo poeta como a influência
decisiva para a primeira mudança nos rumos de sua obra, do surrealismo para o “construtivismo”:

Aprendi com ele que se podia fazer uma arte não com o mórbido, mas com o são, não com
o espontâneo, mas com o construído. Foi ele quem me curou do Surrealismo definido como
arte fúnebre em seu livro Quando as catedrais eram brancas. A partir de O engenheiro,
optei pela luz em detrimento das trevas e da morbidez. (SECCHIN, 1999, p. 327)

O apelo ao olhar acompanhou a obra de João Cabral durante uma produção poética
intensa, que durou cerca de sessenta anos. Um poema inédito, publicado um dia após sua morte
ainda guardava essa busca do olhar:
8
Pedem-me um poema
Um poema que seja inédito
Poema é coisa que se faz vendo
Como imaginar Picasso cego?

Um poema se faz vendo


Um poema se faz para a vista
Como fazê-lo ditado
Sem vê-lo na folha inscrita?

Poema é composição
mesmo da coisa vivida
um poema é o que se arruma
dentro da desarrumada vida

por exemplo é como um rio,


Por exemplo o Capibaribe
Em suas margens domado
para chegar ao Recife,

Onde com o Beberibe,


com o Tejipió, Jaboatão
para fazer o Atlântico,
todos se juntaram à mão

Poema é coisa de ver


é coisa sobre um espaço
como se vê um Franz Weissman
Como não se ouve um quadrado.
(VASCONCELOS, 2009, p. 270)

O eu-lírico ali se identifica como poeta e parece mostrar certo enfado perante a
exigência de produção da poesia. A exigência parte de um sujeito indeterminado no primeiro verso,
por trás do qual pode estar todo um aparato mercadológico da produção literária, no qual se incluem
o leitor já domesticado na poesia de Cabral e a Academia Brasileira de Letras, de que o poeta fazia
parte. Mais especificamente ao leitor apontam-se as perguntas – de certo modo, retóricas – ao final
das duas primeiras quadras, tentando trazer o interlocutor para o fluxo do raciocínio poético.
Carlos Drummond disse, em 1946, a respeito das fases produtivas de um poeta –
“primeira fase: o poeta imita modelos célebres. Última fase: o poeta imita a si mesmo. Naquela,
ainda não conquistou a poesia; nesta, já a perdeu. Não há mais triste elogio que: ‘Não é preciso
assinatura, isto é de X!’ Esplêndido seria se só se descobrisse que é de X pela assinatura”
(SÜSSEKIND, 2001, p. 239). De modo semelhante, João Cabral também falou em entrevista de
1989: “No fundo, o autor tem aqueles assuntos essenciais e o resto ele constrói variações sobre
aquilo. Se dando conta ou não se dando conta” (ATHAYDE, 1998, p. 123). Melancolicamente ou
categoricamente, Drummond e Cabral se deram conta desse fato, o que não necessariamente revela
um defeito, mas coerência, que pode ser verificada no último poema de João Cabral de Melo Neto.

9
O terceiro verso – “Poema é coisa que se faz vendo” – é reiterado mais cinco vezes com
pequenas variações ao longo do poema. Tal insistência na importância da visão esbarra na
impotência do eu-lírico diante da poesia. A consciência dos limites da poesia – no que teria de
transformador ou comunicativo – tem sido característica marcante nos poemas cabralinos. Veja-se o
seu estudo Da função moderna da poesia, em que ele fala do isolamento comunicativo a que
chegou o poeta moderno:

O poeta moderno, que vive no individualismo mais exacerbado, sacrifica ao bem da


expressão a intenção de se comunicar. [...] Escrever deixou de ser para tal poeta uma
atividade transitiva de dizer determinada coisa a determinadas classes de pessoas; escrever
é agora atividade intransitiva, é, para esse poeta, conhecer-se, examinar-se, dar-se em
espetáculo (MELO NETO, 1994, p. 768).

Essa autoconsciência não deixa de ser também alguma herança drummondiana. A


repetição do verso “Poema é coisa que se faz vendo” leva a crer que tenha sido utilizado o recurso
da repetição que remeta à literatura oral e trovadoresca, que influenciou uma boa parte da produção
de Cabral. Esse recurso seria útil para um poema “ditado”, que não precisasse ser visto.
Após as perguntas retóricas que finalizam as duas primeiras quadras, o poema segue
numa longa sequência de subordinações que percorrem três estrofes, nas quais são mencionados os
rios que cruzam o Recife e chegam ao mar. O elemento “rio” já foi utilizado em metáforas que o
comparavam à fluência ou estagnação do discurso no poema “Rios sem discurso”, d’A educação
pela pedra (1965). Justo quando se fala de rios e afluentes, a linguagem imita o percurso deles pelo
leito do poema. O Capibaribe tem grande valor na memória natal do poeta e adquire em sua poesia
um enorme valor simbólico. O Capibaribe foi protagonista de O rio, na fábula que narra o caminho
desse rio ao mar. Morte e vida Severina, por sua vez, narra o percurso que o retirante faz em
direção ao litoral paralelamente ao Capibaribe. O poema e a paisagem são controlados e ordenados
pela visão, assim como as margens guiam o curso do rio:

um poema é o que se arruma


dentro da desarrumada vida
por exemplo é como um rio,
Por exemplo o Capibaribe
em suas margens domado
para chegar ao Recife.

Desde o artigo “Poesia ao Norte” sobre o primeiro livro de João Cabral de Melo Neto,
Antônio Cândido já havia apontado a presença dessa “vontade ordenadora” no poema cabralino. A
ideia de que a literatura organiza em suas formas a desordem da vida objetiva foi mencionada pelo
crítico em outras ocasiões, como em entrevista que deu a respeito de Cabral, afirmando que este é
um tipo de poeta que

10
Coloca, entre a emoção e o leitor, um produto, que é o poema, e assim o leitor tem duas
vantagens: ele tem não apenas a experiência emocional, mas a experiência de construção,
que é, em grande parte, inconsciente, porque a força maior da literatura é que ela organiza
nosso caos interior. [...] Por isso é que o poeta organiza meu pensamento. Eu não sou capaz,
mas ele organiza para mim. Ele me apresenta o mundo, a emoção, o sentimento, como um
objeto que existe em si, não é mais uma emoção dele, nem minha, é um poema, e se eu
penetro nesse poema, eu aprendo a organizar meus sentimentos (VASCONCELOS, 2009,
pp. 156-157).

No último poema, a visão é justamente o sentido organizador, sendo incompatível o


fazer poético sem esse sentido, assim como é paradoxal “ouvir um quadrado”, segundo a lógica do
poema. No fim da vida, João Cabral foi privado justamente da visão, por conta de uma degeneração
da retina, o que contribui para reforçar o significado de alguns versos a respeito da importância da
visão na composição do poema como imagem pictórica:

[...]
como imaginar um Picasso cego?

Um poema se faz vendo


Um poema se faz para a vista
Como fazê-lo ditado
Sem vê-lo na folha inscrita?

A obra de Cabral trabalha desde o começo o mesmo vocabulário sem plumas, como
flor, nuvem, pedra, sujando as mãos no trabalho com o poema para se livrar de todo o excesso que a
poesia já traz na bagagem, para chegar a sua expressão mais simples. Assim, a alusão a Picasso
certamente se relaciona com a metodologia do poeta, que, com suas “vinte palavras sempre as
mesmas”, buscava atingir a essência da vida concreta. A seguir, reproduzo um dos estudos do pintor
cubista, para que se possa visualizar – como manda o poema – um método de se traduzir a imagem
em arte.

11
Disponível em http://cafemargoso.blogspot.com.br/2008/09/o-touro-de-picasso.html Acesso em 19/11/12
De acordo com Antonio Candido, a potencialidade de organizar o caos da vida cotidiana é o

De acordo com Antônio Cândido, a potencialidade de organizar o caos da vida cotidiana é o


principal caráter libertador da literatura. Esse mesmo caráter atua de maneira concentrada na poesia.
Vale lembrar que esse pensamento é insuspeitadamente fundamentado na formulação da Estética
de Lukács (1972) ao falar da função desfetichizadora da obra de arte, que este trabalho tentará
analisar mais adiante.2
De fato, quando elaboram uma estrutura, o poeta ou o narrador nos propõem um modelo de
coerência, gerado pela força da palavra organizada. Se fosse possível abstrair o sentido e
pensar nas palavras como tijolos de uma construção, eu diria que esses tijolos representam
um modo de organizar a matéria, e que enquanto organização eles exercem papel ordenador
sobre a nossa mente. Quer percebamos claramente ou não, o caráter de coisa organizada da

2
Essa comparação entre os pensamentos de Cândido e Lukács foi comentada pela professora Dra. Ana Laura dos Reis e
pelo professor Dr. Hermenegildo Bastos no primeiro semestre de 2012.
12
obra literária torna-se um fator que nos deixa mais capazes de ordenar a nossa própria
mente e sentimentos; e, em consequência, mais capazes de organizar a visão que temos do
mundo. (CÂNDIDO, 2011, p. 179)

Para a voz lírica do último poema de Cabral, o disparate da cegueira do poeta vai muito
além de tolher a visão do “albatroz” ou do “condor”, para que possa com seu bardo intervir na
sociedade, já que a consciência dos limites dessa intervenção é aguda e cortante. Para um sujeito
que sempre deixou claras as limitações da palavra poética, provavelmente a perda da visão seria a
fronteira que lhe restava ainda para “dar a ver” e dar o que pensar. O dilaceramento pela perda
desse sentido levaria à perda da lucidez, possibilidade da consciência sobre o mundo – que, na
poesia, se revela em paisagem – e sobre a humanidade de si mesmo.

Educação pela paisagem


A perspectiva de ver à distância para captar a paisagem com um olhar tem suas
primeiras manifestações autônomas na pintura e na poesia a partir da Idade Moderna (ADORNO,
2003, p. 79). O surgimento da paisagem na lírica, segundo observou Adorno, é um índice da fratura
entre homem e natureza, diante do surgimento do sujeito burguês e da prevalência do individual
sobre o coletivo. O eu-lírico romântico busca resgatar esse vínculo colocando a natureza como uma
extensão do seu ser, do seu olhar; é onde se revela, em negativo, a ruptura desse vínculo
(ADORNO, 2003, p. 71).

A palavra paisagem, segundo três dicionários da língua portuguesa – AURÉLIO (2010),


HOUAISS (2001) e priberam.com.pt/dicionário (2012) – tem dois significados principais: espaço
da natureza que se abrange com um lance de vista, ou desenho, quadro, gênero literário ou trecho
que representa a natureza. O primeiro sentido trata de uma percepção mais imediata, e o segundo,
de uma construção artística. Ambos, no entanto, estão condicionados à mediação do olhar. Convém
diferenciar, portanto, aquilo que é natureza, como puro objeto, do que é construção subjetiva desta
natureza a partir do olhar, isto é, uma percepção da natureza condicionada historicamente, da
mesma forma que o sujeito que a percebe também é historicamente condicionado.

Ao longo de sua obra, João Cabral de Melo Neto direcionou o olhar para fora de si,
tornando cada vez mais opaco o filtro do sujeito. Ao desaparecer naquilo que pudesse ser
encantador e sentimental, o sujeito poético revela sua técnica, o que Antônio Cândido chama de
“vontade orientadora”, conforme observa na primeira obra de Cabral (CÂNDIDO, 2002, p 139).

13
É possível relacionar a presença da “poesia pura” na safra de poetas de 45 a uma
retração daquela voz poética portadora de grandes mensagens e sentidos, que dá lugar a vagas
sugestões de imagens e emoções, características da “poesia menor”, na qual
O poeta põe de lado aspirações ambiciosas de antes – os poemas épicos, as longas
tentativas em que a inteligência organiza o poema e o dirige num sentido de totalização da
experiência afetiva – para ficar no jardim requintado e limitado do lirismo de fôlego curto
(CÂNDIDO, 2002, p 130).

O que Antônio Cândido já percebia com certa desconfiança eram traços de


esmaecimento dos grandes projetos do modernismo e os limites a que chegara. Essa percepção,
tanto do esgotamento das possibilidades do escritor periférico moderno quanto das possibilidades de
se construir uma nação soberana, passou a ser visível nas obras literárias de maneira ainda mais
aguda que na geração anterior, na poesia de Cabral e Drummond, na prosa de Clarice Lispector e
Guimarães Rosa. Frederic Jameson, que analisa o fenômeno da cultura de massa na modernidade,
afirma que “com o advento do mercado, esse status institucional do consumo e da produção
artísticos desaparece: a arte passa a ser um ramo a mais da produção de mercadorias, o artista perde
todo o status social e defronta-se com as opções de tornar-se um poète maudit ou um jornalista”
(JAMESON, 1995, p. 19).

A conturbada relação entre artista e público se acirra ainda mais em países periféricos
como o Brasil, já que se soma a esse cenário a escassez de alfabetizados e, dentre esses, os parcos
consumidores de arte. Ainda que o mercado editorial estivesse crescendo e se especializando, e a
alfabetização se ampliando no Brasil, a disseminação literária dos países latino-americanos na
década de 60 era ainda incipiente.
Na maioria dos nossos países [latino-americanos] há grandes massas ainda fora do alcance
da literatura erudita mergulhando numa etapa folclórica de comunicação oral. Quando
alfabetizadas e absorvidas pelo processo de urbanização, passam para o domínio do rádio,
da televisão, da história em quadrinhos, constituindo a base de uma cultura de massa
(CÂNDIDO, 2006, p. 174).

Por outro lado, essa mesma situação tornava visível a contradição entre a formação de
um sistema literário, mesmo com todas as limitações, e o fracasso da formação nacional, o que
motivava ainda o empenho na tentativa de interpretar Brasil. Ainda conforme Cândido,
A visão que resulta é pessimista quanto ao presente e problemática quanto ao futuro [...]
Mas, em geral, não se trata de um ponto de vista passivo. Desprovido de euforia, ele é
agônico e leva à decisão de lutar, pois o traumatismo causado na consciência pela
verificação de quanto o atraso é catastrófico suscita reformulações políticas (CÂNDIDO,
2006, p. 171).

Vale notar que os avanços literários dos nossos modernistas, entre experiências e
recursos assimilados ou rejeitados com o olhar na Europa, entre dependência e originalidade,
14
puderam se legitimar literariamente muitas vezes graças à permanência do elemento regional. A
sobrevivência do regionalismo é uma particularidade da literatura de países subdesenvolvidos ou
com regiões de subdesenvolvimento e, em nossa literatura, manteve seu fôlego modernismo
adentro, tanto na prosa quanto na poesia (CÂNDIDO, 2006, pp. 192-193).
Na poesia cabralina, a persistência do elemento regional adensa-se na presença cada vez
mais forte da paisagem. Já nas primeiras obras, observa-se um estudo metafórico de elementos da
natureza como flor, rio, nuvem, ao que Antônio Cândido se refere como um “composicionismo
verbal a que não sabe fugir” (CÂNDIDO, 2002, p. 140)
Essas ideias fixas continuam em sua obra até que passam a compor cenários mais
abrangentes, porém não menos calculados e fragmentados, especialmente a partir de O cão sem
plumas (1950), que marca um momento mais maduro, em que a obra do poeta adquire novos
contornos, novas necessidades. Para o poeta, o grau de especialização da poesia moderna, que
levou à já mencionada pureza da linguagem poética, não só perde sua eficácia como separa ainda
mais o abismo entre a poesia e o leitor, diante das novas necessidades de comunicação
contemporâneas (MELO NETO, 1994, pp. 767-770). Nesse ponto, seu verso toma uma perspectiva
que se volta à exposição dos mecanismos do trabalho poético e, desse modo, “pretende socializar os
meios de produção da poesia, o que é, conhecido o restrito público leitor de poesia, assaz
paradoxal” (ARAÚJO, 2002, p.144).
É curioso perceber que a paisagem, um elemento inaugural e várias vezes retomado na
literatura brasileira, protagonize a fase madura da poesia de Cabral justamente quando ele busca
torná-la mais contemporânea. A literatura no Brasil nasceu sob o signo da paisagem, no seu uso
como mercadoria comercial e cultural. Os primeiros registros escritos sobre o Brasil, desde a
literatura de informação, são essencialmente descrições da abundância de riquezas naturais do país
com a finalidade de informar a metrópole sobre o potencial da colônia. A natureza farta da colônia
rapidamente incorporou as esperanças da Europa recém-industrializada. De acordo com Antônio
Cândido,
[...] a ideia de país novo produz na literatura algumas atitudes fundamentais,
derivadas da surpresa, do interesse pelo exótico, de um certo respeito pelo
grandioso e da esperança quanto às possibilidades. A ideia de que a América
constituía um lugar privilegiado se exprimiu em projeções utópicas que atuaram na
fisionomia da conquista e da colonização (CÂNDIDO, 2006, p. 169)

No Arcadismo, a paisagem revela-se no texto literário como ideologema de


compensação do atraso da colônia, comparado ao progresso industrial da metrópole. Essa era uma
contingência dos porta-vozes da cultura no Brasil, já que a referência cultural era inevitavelmente a
Europa.
15
Segundo Alfredo Bosi (2003, p. 59), não havia, porém, um sentimento de identidade
com a terra, o que se desenvolveu de maneira mais produtiva no Romantismo. Antônio Cândido
afirma que
A ideia de pátria se vinculava estreitamente à ideia de natureza e em parte extraía
dela sua justificativa. Ambas conduziam a uma literatura que compensava o atraso
material e a debilidade das instituições por meio da supervalorização dos aspectos
regionais, fazendo do exotismo razão de otimismo social (CÂNDIDO, 2006, p.
170).

Em 1954 João Cabral publica “Da função moderna da poesia”, um breve ensaio que
mostra a consciência de seu trabalho como poeta e suas preocupações com os rumos da poesia
moderna. No ano seguinte, é publicado Paisagem com figuras, que apresenta dezoito poemas com
paisagens do Nordeste brasileiro e da Espanha. Aí se encontram imagens secas, “rarefeitas”, nas
palavras de Antônio Carlos Secchin, e eventualmente metáforas que representam espessura e
umidade, retomando as de O cão sem plumas (1950).

Na representação artística da natureza, está presente, portanto, a relação entre o homem


e o mundo, entre o sujeito criador e o objeto, a natureza. A adequação do reflexo estético depende
até mesmo da escolha adequada da natureza a ser representada. De acordo com Lukács (1972),
citando Shiller,

El recto reflexo estético de la realidad tiene que empezar ya antes que en el trabajo artístico
propiamente dicho, que tiene que desempeñar ya un activo papel en la elección de la
matéria, incluso en la vivencia “pré-artística” de la realidad para que el proceso de dación
de forma se encuentre ya con semifabricados utilizables. 3 (p. 407)

Isso quer dizer que a escolha de um escritor em retratar uma paisagem em lugar de outra
é parte do processo criador e da eficácia da obra de arte. Com João Cabral de Melo Neto, a
representação de certas paisagens pernambucanas – do canavial, dos sobrados, das palafitas –
ressignificou o Pernambuco turístico e festivo como o do Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre
e outros conterrâneos ilustres, como Joaquim Cardozo:

Talvez não haja região no Brasil que exceda o Nordeste em riqueza de tradições ilustres e
em nitidez de caráter. Vários dos seus valores regionais tornaram-se nacionais depois de
impostos aos outros brasileiros menos pela superioridade econômica que o açúcar deu ao
Nordeste durante mais de um século do que pela sedução moral e pela fascinação estética
dos mesmos valores (FREYRE, 1996, p. 49)

Ao longo do Manifesto, são descritos variados elementos da cultura popular nordestina,


como as ruas, a linguagem e a gastronomia. Trata-se de uma busca pela legitimação da cor local

3
O correto reflexo estético da realidade tem que começar já antes do trabalho artístico propriamente dito, que já tem
que desempenhar um ativo papel na escolha da matéria, inclusive na vivência “pré-artística” da realidade para que o
processo de dação de forma já se encontre com semifabricados utilizáveis.
16
nordestina como representação do Brasil e pela participação na cena nacional e internacional, quatro
anos após a Semana de Arte de 1922. Mostrava-se ali que havia muito mais acontecendo longe das
ex-oligarquias do “café com leite”. O Manifesto foi lido pela primeira vez durante o Primeiro
Congresso de Regionalismo Brasileiro, ocorrido no Recife, cidade que incorporou, com seus
intelectuais ali reunidos, a função de porta-voz da cultura de todo o Nordeste.

Na poesia madura de João Cabral, o Recife também entra como tema, mas aquilo que
pode ser retomado como louvação prossegue por uma via crítica volúvel que, utilizando-se da
estruturada de maneira original por recursos da argumentação e da lírica, atingiu uma eficácia
estética capaz de elevar o regional ao universal. Lukács confirma que, somente na forma da obra de
arte, que reorganiza os sentimentos e valores, é possível atingir esse caráter universal e humano.

El receptor entra respecto del mundo objetivo conformado (paisaje, animales, plantas,
interiores, etc) en una relacion análoga a la que en la vida tiene con los hombres. La esencia
antropomorfizadora del arte se expresa del modo más contundente en el hecho de que no da
a todos los objetos forma en su puro Ser-en-sí, sino en su referencialidad al hombre 4
(LUKÁCS, 1972, pp. 418-419).

Em Formação da Literatura Brasileira, Antônio Cândido faz uma análise da


literatura nacional considerando as relações que vinham sendo estabelecidas entre o escritor e a
obra, o escritor e o público e o escritor e outros escritores – brasileiros ou estrangeiros. O
amadurecimento dessas relações, segundo o crítico, cria condições propícias para o
desenvolvimento do sistema literário. Antônio Cândido assim distingue o sistema literário, formado
por

Certos elementos de natureza social e psíquica, embora literariamente organizados, que se


manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização. Entre eles
se distinguem: a existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos
conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de
público sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma
linguagem, traduzida em estilos, que liga uns a outros). O conjunto dos três elementos dá
lugar a um tipo de comunicação inter-humana, a literatura, que aparece sob este ângulo
como sistema simbólico, por meio do qual, as veleidades mais profundas do indivíduo se
transformam em elementos de contato entre os homens, e de interpretação das diferentes
esferas da realidade (CÂNDIDO, 1997, p. 23).

Um outro pressuposto confirmado pela análise de Cândido é o de que a formação do


sistema literário está intimamente ligada às relações estabelecidas historicamente entre o brasileiro e
seu país, na perspectiva da formação nacional. A partir da análise do crítico, é possível perceber que

4
O receptor entra com respeito ao mundo objetivo conformado (paisagem, animais, plantas, interiores etc.) em uma
relação análoga à que na vida tem com os homens. A essência antropomorfizadora da arte se expressa de modo mais
contundente no fato de que não dá a todos os objetos forma em seu puro Ser-em-si, senão em sua referencialidade ao
homem.
17
a forma como se construía a percepção da natureza na literatura era determinante para compreender
as demais relações sociais.

Essa relação entre o sujeito e a natureza, até o Romantismo, dava-se de forma


contraditória e por vezes até perturbadora: a natureza era ao mesmo tempo o que ligava o Brasil à
civilização, pela exploração da metrópole, e o que o mantinha no primitivismo e no atraso. Assim,
na literatura, falar da paisagem do Brasil – a natureza pela mediação de um olhar histórico – era
falar do Brasil. A partir dessa perspectiva, Cândido inicia seu panorama da história da nossa
literatura mostrando justamente as relações estabelecidas entre essa literatura e a natureza.

Com intuito meramente ilustrativo, poderíamos dizer que há em literatura três atitudes
estéticas possíveis. Ou a palavra é considerada algo maior que a natureza, capaz de
sobrepor-lhe as suas formas próprias, ou é considerada menor que a natureza, incapaz de
exprimi-la, abordando-a por tentativas fragmentárias; ou, finalmente é considerada
equivalente à natureza, capaz de criar um mundo de formas ideais que exprimam
objetivamente o mundo das formas naturais. O primeiro caso é o do Barroco, o segundo, do
Romantismo; o terceiro, do Classicismo. Neste, há, portanto, um esforço de equilíbrio,
fundado no pressuposto de que as formas elaboradas pela inteligência se regem por leis
essencialmente análogas às do mundo natural. (CÂNDIDO, 1997, vol. 1, p. 53)

No Arcadismo, a escolha da natureza como tema tem a ver com a busca de um ideal de
inteligibilidade, de modo que o entendimento do poema não dependesse de circunstâncias
individuais para a fruição.

Daí preferirem as grandes circunstâncias da vida para o exercício do verso, circunstâncias,


por assim dizer, impessoais comuns a todos: nascimento, casamento, acontecimentos,
celebrações. Ou a situações que dissolviam o detalhe pessoal, como a convenção bucólica.
(CÂNDIDO, 1997, vol. 1, p. 48)

A busca estética resulta, para os árcades, numa busca ética, pois tem por objetivo a
busca da “verdade”, opondo-se ao cultismo, como um caráter útil ao “progresso moral” (Idem, p.
46). Antônio Cândido menciona o árcade Cândido Lusitano, para o qual “a beleza é elemento
racional da forma, que realça a verdade com sua luz que ‘não é outra coisa senão a brevidade, ou
clareza, a energia, a utilidade e outras circunstâncias’” (Idem, p. 47). Trata-se de uma poesia
pautada no conceito aristotélico de mímesis: apreende-se a forma imanente – a verdadeira natureza
– pelo filtro da razão (Idem, vol. 1, p. 61). Ainda segundo Cândido (1997),

Este império da razão decorre da busca do natural, que é o seu correlativo objetivo, sendo o
limite permanente da imaginação e o critério definitivo para se aquilatar a validade da
poesia, baseada na “natureza das coisas” e necessitando verossimilhança para merecer a
“aprovação do entendimento” (p. 48).

Por outro lado, para o crítico, “parece faltar-lhes aquela consciência de individuação,
que leva o escritor a encarar as coisas sob o ângulo da posição pessoal em face do mundo” (Idem, p.
49). A busca excessiva pela objetividade resulta, portanto, em uma falta de consciência da
18
subjetividade sempre presente e necessária na poesia, como forma de refiguração e intepretação da
realidade.

Podem-se visualizar vários pontos de contato entre essa busca pela racionalização da
poesia e a poesia de João Cabral de Melo Neto. A aridez de imagens, associada à secura da sintaxe
cabralina, permitiu, por exemplo, as metáforas insólitas e originais de O cão sem plumas. Daí, a
vitalidade na retomada de uma matéria poética fundamental na literatura brasileira: a paisagem. A
repetição de imagens que levam, ora à secura e a miséria, ora à fartura, fazem jus à ambiguidade
desigual da natureza e da sociedade pernambucana.

Além disso, não deixa de ser também uma reação ao contexto já exaurido de imagens
poéticas e de valores sociais da década de 40 em diante. Veio a Revolução de 30, vieram promessas
de progresso e isso não pôde mudar a realidade da maior parte da população. A motivação do poeta
em focalizar a terra natal em seus poemas torna nítida essa situação.

Quem ler os primeiros poemas publicados não encontrará Pernambuco, que só passará a
existir em O cão sem plumas, livro de 1950. Tinha 30 anos – escrevo desde os 20 –
quando em Barcelona folheava no Consulado uma revista econômica. Lá descobri que a
expectativa de vida no Recife era de 28 anos e, na Índia, de 29. Impressionado com este
lado, Pernambuco de repente apareceu na minha poesia (ATHAYDE, 1998, p. 67).

Esse diálogo com o seu tempo revela o ponto de contato entre a poesia e a vida, o que
faz ultrapassar em muito o limite da pura objetividade e racionalização buscadas pelo poeta. Ao
contrário, reumaniza a poesia, pois leva a pensar sobre o mundo e questioná-lo, o que vai ao
encontro do que Lukács considera a vocação da arte: “O homem e as ações humanas se encontram
no centro da obra de arte” (LUKÁCS, 1972, p. 408).
Cândido comenta também sobre certa superficialidade com que a natureza se configura
na paisagem árcade:
[...] a paisagem civilizada, racionalizada, da literatura arcádica é, principalmente, um
escorço de paisagem da superfície da terra: árvores, prados, flores, regatos, e os animais
pacíficos que nela repousam. Os árcades quase não sentiram a magia do mar, nem do ar,
que o Romantismo povoaria de duendes e mistérios. Na própria terra, a sua consciência não
teve noção, ou necessidade do subterrâneo, da caverna (CÂNDIDO, 1997, vol. 1, p. 51)

Nesse aspecto, a forma do poema cabralino ultrapassa a superficialidade da paisagem,


sem, contudo, empregar os encantos e mistérios do Romantismo. Veremos que a abordagem
cabralina é frequentemente metonímica. Após abranger a natureza com a vista, o enfoque é
aproximado até as menores partes, com detalhes de textura e cheiro, até que a paisagem deixe de ser
denotativamente paisagem. Tanto a aproximação quanto o movimento inverso, também se verifica

19
em “Paisagem com cupim”, “De um avião”, ambos de Quaderna; e Alto do Trapuá, de Paisagem
com figuras, por exemplo.

Havia no Arcadismo uma “destinação pública da literatura”, por meio de um


endereçamento, conversa poética, de cunho sociável.

Quase sempre o árcade prefigura um público de salão, um leitor em voz alta, um recitador.
Por um corolário baseado na própria estética baseada na estética natural, a literatura se
torna forçosamente comunicativa, mais ainda, aspira a ser instrumento de comunicação
entre homens –, geralmente homens de um dado grupo. Daí, a poesia marcada pelo que se
poderia chamar sentimento do interlocutor, que se compraz nas odes raciocinantes e,
sobretudo, na epístola, forma mais característica daquele sentimento. (Idem, p. 49)

Percebe-se, sobretudo na segunda fase da poesia de João Cabral, uma semelhante busca
de comunicação em sua poesia, de modo especial em sua fase mais madura, notadamente a partir de
O Rio (1953), com o ápice em Morte e vida Severina (1955). A observação dessa que é
considerada a ponta mais frágil do sistema literário é a motivação de um importante estudo de
Homero Vizeu, em O poema no sistema (2002), que será abordado oportunamente neste trabalho.

Voltando à paisagem árcade, passado o século XVII, os cultores da razão viram o


racionalismo tomar rumos imprevistos, que tiveram traços consequentes na literatura. O culto à
natureza pouco a pouco aproxima o homem da própria natureza.

A ordem intelectual prolonga a ordem natural, cujo mistério Newton intepreta para os
contemporâneos. A atividade do espírito obedece, portanto a uma lei geral, que é a própria
razão do universo, e não se destaca da natureza, como implicava o racionalismo dualista de
Descartes. Uma nova razão, pois, unida à natureza por vínculo muito mais poderoso,
inelutável na sua força unificadora. (Idem, 1997, p. 54)

Nesta ponte, que vai do objetivismo ao existencialismo, a subjetividade é restaurada na


literatura.

Conservando, pois, o arcabouço do bom senso e da simetria matemática, as principais


correntes do século XVIII amaciam-no de algum modo por um sentimento muito mais
agudo dos fenômenos naturais e aquilo que se chamava de preferência universo ou mundo
passa a chamar-se natureza. [...] O conceito de Natureza vai englobando o instinto, o
sentimento, cujas manifestações, subordinadas a princípio, avultam a ponto de
promoverem, em literatura, explosões emocionais que desmancham de todo a linha clara da
Razão.
[...]
É elucidativa, a este propósito a voga do famoso conceito horaciano de que ‘para comover é
preciso estar comovido’; preceito sempre referido, que assume então renovada importância
e é tratado, menos como indicação de um recurso (Idem, p. 54).

Aí encontramos oportuna semelhança com a “machine à emouvoir” (máquina de


comover) tomada de empréstimo a Le Courbusier por Cabral em seu “Lição de poesia” (O

20
engenheiro): “E as vinte palavras recolhidas/ nas águas salgadas do poeta/ e de que se servirá o
poeta/ em sua máquina útil” (MELO NETO, 1994, p.79).

A base formal e temática da tradição greco-latina pôde revitalizar a poesia árcade, ao


invés de engessá-la. Da mesma forma, a recorrente busca de João Cabral pela reafirmação da
tradição literária, declarada desde as epígrafes e títulos de seus poemas – ainda que, muitas vezes,
para traí-los, como afirma Luiz Costa Lima – é o que dá fôlego à renovação literária encampada
pelo poeta.

Na transição pré-romântica, passa-se da nostalgia à utopia, que os românticos associarão


ao anseio por uma identidade nacional e independente política e culturalmente. Em seguida, chega-
se à fase mencionada, em que a palavra é menor que a natureza e a superioridade desta se compara
ao sujeito. A natureza, para os românticos, é

Algo supremo que o poeta tenta exprimir e não consegue: a palavra, o molde estreito de que
ela transborda, criando uma consciência de desajuste. Boa parte do mal do século provém
desta condição estética de desconfiança da palavra em face do objeto que lhe toca exprimir.
Daí o desejo de fuga, tão encontradiço na literatura romântica sob a forma de invocação da
morte ou ‘lembrança de morrer’ (CÂNDIDO, 1997, pp. 32 e34).

Não é mera coincidência o fato de que os modernistas tenham retomado em chave


crítica o nacionalismo dos primeiros românticos, pois, como foi visto, antes da década de 20. No
período pré-modernista,

A literatura predominante se encontrava em uma ideologia de permanência, representada


sobretudo pelo purismo gramatical, que tendia no limite a cristalizar a língua e adotar como
modelo a literatura portuguesa. Isto correspondia a uma cultura de fachada, feita para ser
vista pelos estrangeiros, como era em parte a da República Velha (Idem, 2006, p. 224)

Sendo assim, o Modernismo, assim como o Romantismo podem ser considerados


movimentos análogos de relativa renovação, desde que se entenda que essa relatividade deve-se
mais a um empenho de renovação do que consideráveis mudanças estruturais na literatura.

É possível notar na estrutura da poesia cabralina muito das fontes que movimentaram a
literatura brasileira, sobretudo no que diz respeito à paisagem. Ao mimetizar uma realidade arcaica,
o poeta buscou influências arcaicas da poesia trovadoresca espanhola e, com isso, foi ao encontro
da potência comunicativa da poesia árcade, quando esta se coloca para ser recitada, lida em voz
alta. No entanto, o poema cabralino aproveita essa retórica, como veremos, de modo a atraiçoar o
leitor, causando-lhe estranhamento e desconforto. A opacidade do sujeito e o foco no objeto
também são pontos de contato com a poesia árcade, que resultaram em caminhos diferentes para
esta e a poesia de Cabral.

21
Ao revigorar a paisagem como representação nacional, o poeta renova o empenho dos
românticos, fazendo jus à intensa acumulação crítica que lhe é possível, especialmente após o
regionalismo já redimido da década de 30, segundo analisa Antônio Cândido:

A incorporação das inovações formais e temáticas do Modernismo ocorreu em dois níveis:


um nível específico, no qual elas foram adotadas, alterando essencialmente a fisionomia da
obra; e um nível genérico, no qual elas estimulavam a rejeição dos velhos padrões. Graças a
isso, no decênio de 30 o inconformismo e o anticonvencionalismo se tornaram um direito,
não uma transgressão, fato notório mesmo nos que ignoravam, repeliam ou passavam longe
do Modernismo. Na verdade, quase todos os escritores de qualidade acabaram escrevendo
como beneficiários da libertação operada pelos modernistas, que acarretava depuração
antoratória da linguagem com a busca de uma simplificação crescente e dos torneios
coloquiais que rompem o tipo anterior de artificialismo (CÂNDIDO, 2006, p. 225).

Isso significa dizer que o poema cabralino, quando trata do Recife, faz bom uso da
acumulação literária, de modo que já não necessita atender às exigências compensatórias do
exotismo pitoresco ou de uma delegação poética ao índio ou ao sertanejo para que represente
suficientemente sua região. Junte-se a isso a importância de se explorar na lírica o regionalismo,
que se tem representado muito mais largamente na prosa.

Veremos que, na poesia cabralina, mais do que a desigualdade entre palavra e natureza,
parece haver entre elas um constante embate, com raros momentos de equilíbrio, que não passam de
breve suspensão tensa do embate entre natureza e homem.

22
Decadência e modernidade em “Pregão turístico do Recife”
“Pregão turístico do Recife” é o primeiro poema do livro Paisagem com figuras, de
1955. O “pregão” mencionado no título remete à forma mais popular de propaganda: o anúncio do
produto em voz alta, comum nas feiras, nas fazendas por onde passam os mascates trazendo
novidades e, nas ruas, os vendedores ambulantes de quitandas e bugigangas. Os vendedores
apregoavam geralmente em verso, aproveitando alguma melodia popular, jogos de palavras e
trocadilhos para chamar a atenção do freguês. Essa característica do pregão confirma o intuito
comunicativo, dos “poemas em voz alta” da obra de João Cabral de Melo Neto.
Assim como à experiência turística são associados automaticamente valores como
qualidade de vida e bem-estar social (ver anexo 2), também à experiência poética se associam
automaticamente experiências de contemplação e deleite, devido à forma como a recepção de
poesia tem sido tradicionalmente construída. A transformação da natureza em paisagem (espaço da
natureza que se abrange com um lance de vista) é análoga à transformação da matéria-prima em
mercadoria. Veremos que, opostamente ao que se espera da forma mercadoria, a organização do
poema “Pregão turístico do Recife” não esconde (ao menos não o tempo todo) as marcas de seu
processo de composição. Por outro lado, não é abandonada a ideia da relação comercial prevista no
pregão. Se na primeira parte do poema, o sujeito poético apresenta a paisagem como de “produto
turístico”, posteriormente exige do leitor que redefina essa paisagem e o que esperava dela, assim
como o que esperava do poema.
O leitor é atraído como turista, guiado pela voz do poema: a segunda pessoa surge
inicialmente em tom de convite. O gênero da propaganda, em que se inclui o pregão, é uma
mercadoria em potência máxima, uma vez que, além de atrair o cliente para a compra e associar ao
produto valores morais e sentimentais – valores que humanizam o produto a ser vendido –, a
construção da propaganda é também em si um produto.
Até a quarta estrofe, apesar do tom convidativo da segunda pessoa o leitor não foi
levado a uma experiência turística “plena”, na qual ele possa esquecer-se de si e dos dilemas do
mundo administrado. Ao contrário, a evocação provoca e desestabiliza o leitor-turista. O uso do
advérbio “aqui” e da segunda pessoa na segunda estrofe (“podeis”) parece convidar o leitor a
percorrer a paisagem, porém, a chamada para o “duelo” se revela na volubilidade no tratamento da
segunda pessoa, que vai do convite à armadilha, tanto na quebra das expectativas do leitor, quando
na eventual suspensão desse “diálogo”. Homero Vizeu faz uma análise dos efeitos dessa estratégia
retórica da função conativa na poesia de Cabral:

23
[...] o papel relevante da função conativa, em um nível raro na poesia brasileira, revela a
peculiaridade do poeta, que também é famoso por sua pesquisa metalinguística ou
metapoética.
[...] A poesia épica, centrada na terceira pessoa, dá destaque à função referencial da
linguagem; a lírica, reveladora da primeira pessoa, dá vazão à função emotiva. Já a poesia
de segunda pessoa revela a função conativa e seria súplice ou exortativa, dependendo de a
primeira pessoa estar subordinada à segunda ou vice-versa. Para o exame da poesia de
Cabral, [...] o apelo e a provocação polêmica parecem ter por pressuposto uma espécie de
igualdade entre interlocutores, até porque o apelo e provocação são parte do andamento
argumentativo. Não haveria súplica nem exortação, mas uma espécie de interpelação
próxima do desafio, de quem chama para o duelo. (ARAÚJO, 2002, p. 103)

Eis uma nova provocação dirigida ao interlocutor, que provavelmente quisesse


encontrar uma paisagem mais dada à contemplação, pronta para o consumo, como aquela que se dá
ao turista. Essa expectativa estaria estimulada, não só pelo título do poema, mas pelo fato de o leitor
em questão estar bastante acostumado a uma lírica mais contemplativa ou emotiva. O gume
antilírico do poema também questiona, com isso, as facilidades de consumo de cultura dispostas
pelas novas mídias a serviço do leitor consumidor, as quais diminuíam progressivamente o espaço
da literatura e as possibilidades de debate.
A natureza se apresenta setorizada, “organizada”, de modo que se evidencia o processo
de configuração da natureza em paisagem: o mar é uma montanha “regular”, de que se pode extrair
uma “luz precisa”. A intervenção do trabalho humano se verifica na colonização da natureza local:
na quarta quadra, em que “sobrados”, “calcários” e “rio” aparecem “apertados” na mesma estrofe,
formando um só conjunto, na mesma paisagem. Também o trabalho do poeta se evidencia na
transformação da matéria-prima, a linguagem, em poesia, principalmente pela forma como a
tradição comovente da poesia tenha sido “descascada” até uma forma mais concisa e despojada.
Em Recife, os sobrados coloniais à beira do Capibaribe ainda hoje são paisagem
turística e se localizam na rua da Aurora (anexo 2.2). A disposição dessas edificações à beira do rio
sugere ainda outra leitura: os sobrados parecem apoiar-se uns nos outros, alicerçados pelas margens
do rio, num equilíbrio próximo à queda. Há outra importante alusão a esses sobrados no livro
publicado cinco anos antes, O cão sem plumas.

Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.

(É nelas,
mas de costas para o rio,
que "as grandes famílias espirituais" da cidade
24
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa).

Em O cão sem plumas, vemos que salas de jantar dos sobrados abrigam famílias
abastadas de Recife. São símbolos do progresso econômico conquistado na economia canavieira,
decadente (“pingando os mil açúcares”) ou nas modernas fábricas próximas ao litoral, de Moreno e
Paulista, mencionadas em “Paisagens com cupim”. Desfaz-se facilmente, portanto, o aparente
equilíbrio e serenidade daquela elite. A organicidade de O cão sem plumas faz com que essas
“grandes famílias espirituais” participem da mesma estagnação dos “homens plantados na lama”,
mesmo estando aquelas “de costas para o rio”.
Também em “Paisagem com cupim” de Paisagem com figuras, livro posterior a
Quaderna, os sobrados reaparecem, só que em Olinda:

Vista de longe (tantos cubos)


ela anuncia um perfil duro,
porém de perto seus sobrados
revelam esse fio gasto

da madeira muito roçada,


das paredes muito caiadas,
de ancas redondas, usuais
nas casas velhas e animais.

A convergência desses exemplos reforça o arruinamento da paisagem aparentemente


equilibrada dos sobrados presentes na quarta estrofe de “Pregão turístico”. Na estrofe seguinte, o rio
margeado pelos sobrados ganha o primeiro plano e faz circular ali seu sangue-lama, deformando
mais ainda aquela paisagem antes cheia de “luz precisa”. Eis nova investida contra o leitor-turista,
que talvez esperasse uma continuidade mais amena da lição equilibrada dos sobrados. O rio que os
margeia não circula água, mas “sangue-lama”. Até então, o sangue é o primeiro elemento mais
diretamente humano mencionado na paisagem, ainda que metonimicamente.
A deformação da paisagem nas últimas quadras parece escapar à organização e
racionalização do poema. O contraste entre ordenação realizada pelo poeta e o modo desordenado
como a natureza foi modificada pelo homem mimetiza o contraste entre a formação do sistema
literário nacional e o atraso socioeconômico que deforma a nação. Ao dissecar a paisagem, a
aparência abastada e progressista e a essência arcaica da estrutura socioeconômica brasileira são
confrontadas, na medida em que são dispostas organicamente, como continuidade da mesma
“paisagem”. O progresso cultural e econômico no Brasil desenvolveu-se como parte de uma

25
ideologia de segundo grau, como superestrutura “flutuante” sobre o uma estrutura atrasada de bases
coloniais. Ainda na fase colonial, quando a dependência político-econômica do Brasil passou de
Portugal para França e Inglaterra,

A estrutura colonial existente deveria permanecer para preservar esse modelo, tanto em
benefício das classes dominantes brasileiras – segundo foi visto, de origem colonial – como
em benefício do exterior.
Em consequência, as modernizações decorrentes da e necessárias à participação no
mercado capitalista mundial eram adaptadas à estrutura colonial, isto é, “colonializadas”,
encobrindo a existência do aburguesamento, na medida em que o colonial era a base última.
[...] Tanto a estrutura colonial se modernizava, se aburguesava, como o processo de
colonização sofria uma reversão, se “colonializava”. (WEBER, 1976, p. 66)

Essas adaptações necessárias à adequação do modelo econômico do capital competitivo


mantiveram a ambiguidade da “paisagem” socioeconômica brasileira construída no poema: um país
a um tempo moldado para o progresso e deformado pelo atraso. Para que isso seja perceptível, o
leitor é levado a “ver de perto”. João Ernesto Weber explica a lógica desse modelo:

[...] a superestrutura importada ‘flutuava’ no meio social brasileiro, na medida em que não
era homóloga a ele. O que significa que os setores dominantes, por necessidade de se
vincularem ao exterior, também pelos próprios vínculos com ele estabelecidos, importavam
a superestrutura burguesa-europeia, a fim de que ela representasse a “modernidade” da
nação, na verdade, ela existia totalmente desvinculada da realidade global brasileira, e
vinculada apenas à “nação restrita” dos setores dominantes. Consequentemente, a
representatividade que deveria adquirir assumia, sob o ponto de vista da realidade global,
as características de uma “fachada”, representativa de um real fictício, tornando-se sua
funcionalidade ideológica a manutenção do status quo evidente: estando desvinculada do
real (global), não possuía capacidade de penetrá-lo criticamente, permanecendo
condicionada, em uma relação negativa ao todo, ao âmbito dos seres dominantes, que dela
se beneficiavam, juntamente com o exterior (Idem, pp. 67-68).

As estratégias de aproximação ao leitor-turista no poema fazem supor que ele


possivelmente desfrute dessa fachada como se realmente correspondesse à realidade global
brasileira. Da mesma forma que se busca o turismo como refúgio da realidade cotidiana, a literatura,
e principalmente a poesia, também são tomados como forma de se refugiar da violência cotidiana.
A “lição” dúbia presente da quarta estrofe se baseia não só no reconhecimento da existência dessa
fachada fictícia vivida pelos brasileiros, mas procura também compreendê-la. Isso se confirma na
última estrofe, na qual é apregoado o outro lado da mesma lição:

podeis aprender que o homem


é sempre a melhor medida.
Mais: que a medida do homem
não é a morte, mas a vida
(MELO NETO, 1994, p. 147).

26
A ideia de “lição” é recorrente e já quase tradicional na obra cabralina até Paisagem
com figuras. Esse recurso é utilizado nos poemas do clérigo espanhol Gonzalo de Berceo, que
viveu entre 1197 e 1264. Bastante estudados por Cabral, os poemas de Berceo guardavam nas
últimas estrofes sempre alguma lição de moral, geralmente um ensinamento cristão. Em “Pregão
turístico”, a paisagem se construiu e se arruinou até que sobrasse apenas o homem, não menos
arruinado. Para chegar a essas lições, o interlocutor primeiramente é guiado pela paisagem em tom
de convite. O leitor-turista é levado em seguida a tirar lições da precisão da paisagem, (4ª estrofe).
Na 5ª e 6ª estrofes, o interlocutor é “abandonado” em uma paisagem que não inspira contemplação,
nem a segurança geométrica das paisagens anteriores: ao contrário, é disforme e pútrida. A segunda
pessoa volta a ser invocada na estrofe final, como uma declarada provocação, unificando as duas
paisagens em um elemento: o homem.
A lição da última quadra é semelhante e também um prenúncio de Morte e vida
Severina, obra publicada no mesmo ano da publicação de Paisagens com figuras. Em Morte e
vida, o protagonista encontra diversas medidas para a vida: a cova, a terra e o nascimento. A frase
de Protágoras “o homem é a medida de todas as coisas”, manipulada até a exaustão pelos
iluministas e positivistas é ressignificada ao longo da trajetória de Severino. O final do auto de
Natal não resolve a ambiguidade anunciada no título e não responde a pergunta de Severino: “se
não vale mais saltar/ fora da ponte e da vida”. O Carpina afirma:

E não há melhor resposta


que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.
(MELO NETO, 1994, p. 202)

O nascimento da criança, reinicia o ciclo da vida do protagonista; essa nova vida não
será menos “morte”, nem menos “Severina”. Em “Pregão turístico do Recife”, a primeira referência
ao ser humano foi mencionada metonimicamente, na forma de “sangue-lama”, no entanto, atribuída
ao rio. A menção seguinte ao homem é feita no coletivo: “e na gente que se estagna/ nas mucosas
desse rio”. Repare-se que enquanto o rio circula seu sangue-lama – mesmo quase parando –, a gente
se estagna. Em muitos poemas de João Cabral, inclusive o já mencionado O cão sem plumas, a

27
natureza se movimenta, protagoniza as ações, o que se oporia à suposição de que a natureza talvez
devesse “posar” para a contemplação paisagem, por definição estática. De forma semelhante à
literatura do Romantismo, em João Cabral a natureza se agiganta e se humaniza. Em contrapartida o
homem não apresenta qualquer dinamismo, mantém-se à margem da natureza tolhido em sua
capacidade de transformá-la. Isso certamente contraria por inteiro a impressão de progresso que a
fachada da paisagem turística, ou mesmo a nossa “paisagem literária” apregoasse. Apesar da
estagnação humana, João Cabral resgata o humano nessa paisagem, induzindo a movimentação do
olhar do leitor. Finalmente, na última estrofe, faz-se necessário negar a morte para justificar que a
vida do homem é – ou deve ser – a melhor medida de todas as coisas. É aí que se adensa a reflexão
final de Morte e vida Severina e onde a frase de Protágoras ganha uma dimensão que atinge, por
outros caminhos, o universal do homem.

28
PAISAGEM NARRATIVA E PAISAGEM HISTÓRICA
O poema “Alto do Trapuá” apresenta uma visão panorâmica do engenho do Trapuá,
com espécies vegetais cultivadas para comercialização. Ali o homem aparece à margem da
paisagem como uma espécie intrusa e de “difícil cultivo”. Esse poema faz parte do livro Paisagem
com figuras (MELO NETO, 1955, pp. 146-147), doze anos após a publicação do primeiro livro,
Pedra do Sono. Paisagem com figuras é publicado cinco anos depois d`O Cão sem Plumas e no
mesmo ano em que se publica Morte e vida Severina. Os dois últimos são considerados pela
crítica marcos de realização estética do poeta. A menção à cronologia é especialmente importante
na obra de João Cabral de Melo Neto, pois trata-se de um poeta que persegue certos elementos e
sistemas metafóricos, ensaia mecanismos poéticos, que vão amadurecendo e se transformando ao
longo da obra. Segundo Antônio Carlos Secchin,

À paisagem espessa de O cão sem plumas respondem as rarefeitas Paisagens com


figuras (1955): novamente um espaço de carência, mas, apesar da eventual
incidência do núcleo úmido/ líquido da fase anterior, marcado predominantemente
pela secura (SECCHIN, 1999, p. 95).

Justamente pelo fato de João Cabral ser muito conhecido por suas ideias fixas, é
fundamental compreender o modo como se dá o enfretamento crítico dessas ideias. O cão sem
plumas e Morte e vida Severina marcam uma mudança de dicção dos poemas publicados após
1950. A mudança é descrita pelo poeta na antologia de sua obra até 1956, organizada por ele em
Duas águas. A orelha do livro esclarece a diferença de cada “água”, o que atesta um olhar coerente
em relação ao que o poeta acreditava como poesia.

Duas águas querem corresponder a duas intenções do autor e – decorrentemente –


a duas maneiras de apreensão por parte do leitor ou ouvinte: de um lado, poemas
para serem lidos em silêncio, numa comunicação a dois, poemas cujo
aprofundamento temático quase sempre concentrado exige mais do que leitura,
releitura; de outro lado, poemas para auditório, numa comunicação múltipla,
poemas que, menos que lidos, podem ser ouvidos (LIMA, 1995, p. 260).

Na “segunda água”, há uma preocupação com a ponta mais frágil do sistema literário: o
público. A avaliação de Cabral, num momento maduro de sua obra, parte do reconhecimento
histórico de que a literatura refinou-se a ponto de atingir o auge do formalismo, em um momento
em que a cultura de massa ganhava uma abrangência jamais vista. Apesar disso, o público leitor
ainda era pequeno, vulnerável e difuso. Essa conjuntura ganha uma dimensão ainda mais complexa
quando compreendida como sintoma dos mecanismos da formação nacional, fundamentados nas
profundas relações de dependência econômica e cultural entre Brasil e Europa. Em “Literatura e

29
subdesenvolvimento”, Antônio Cândido fala a respeito da aguda consciência dos intelectuais pós-
Segunda Guerra a respeito do irrevogável atraso da nação brasileira.

Na maioria dos nossos países há grandes massas ainda fora do alcance da literatura erudita,
mergulhando numa etapa folclórica de comunicação oral. Quando alfabetizadas e
absorvidas pelo processo de urbanização, passam para o domínio do rádio, da televisão, da
história em quadrinhos, constituindo a base da cultura de massa. Daí a alfabetização não
aumentar proporcionalmente o número de leitores da literatura, como a concebemos aqui;
mas atirar os alfabetizados , junto com os analfabetos, diretamente da fase folclórica para
essa espécie de folclore urbano que é a cultura massificada (CÂNDIDO, 2006, p. 174).

No artigo “Da função moderna da poesia”, verifica-se o reconhecimento de João Cabral


em face das limitações enfrentadas pelo poeta moderno diante dessa situação do sistema literário.

A realidade exterior tornou-se mais complexa e exige, para ser captada, um instrumento
mais maleável e de reflexos imediatos. A realidade interior, daí decorrente, tornou-se
também mais complexa, por mais inespacial e intemporal que o poeta pretenda ser, e
passou a exigir um uso do instrumento da linguagem altamente diverso do lúcido e direto
dos autores clássicos (MELO NETO, 1994, p. 768).

A consequência desse novo olhar materializa-se na forma das quadras, com versos de
cinco a oito sílabas e rimas emparelhadas. À exceção de “Alto do Trapuá”, que tem estrofes de
maior fôlego, os demais poemas de Paisagem com figuras seguem essa estrutura, que se tornou
preferida do poeta. A escolha partiu de estudos de poetas espanhóis do chamado siglo de oro, que
utilizavam a métrica cuaderna vía. De acordo com A. D. Dereymond,

En este período, si bien hay algunos poemas narrativos en versos cortos y a menudo
irregulares, se utiliza un otro grupo de versificasión en um importante y casi homogeneo
grupo de poemas: nos referimos al sistema denominado “la cuaderna vía”. Estrofas de
cuatro versos de catorce sílabas (alejandrino) con cesura en medio y rima consonante
(AAAA, BBBB, etc.). En estos poemas se da una regularidad mucho mayor que en el resto
de la producción poética del período, y algunos hay que se situan muy proximos a una
regularidad total (DEREYMOND, 1991, pp. 108-109).5

Gonzalo de Berceo, Góngora, entre outros espanhóis, foram sistematicamente estudados


por Cabral no período em que trabalhou como diplomata na Espanha, principalmente na década de
50. Berceo era um clérigo espanhol que escreveu obras de hagiografia em verso, entre as quais,
Vida del glorioso confesor Santo Domingo de Silos, Vida de Sancta Oria, Estoria de sennor
San Millán e o célebre Milagros de Nuestra Señora. Vale ressaltar que também a pintura catalã,
as touradas e o flamenco formaram um rico arcabouço para as escolhas da poesia de Cabral desse
período. O poeta encontrou semelhança fecunda entre a retórica e o caráter narrativo dessa poesia

5
Neste período, se bem que haja alguns poemas narrativos em versos curtos e amiúde irregulares, se utiliza
um outro grupo de versificação em um importante e quase homogêneo grupo de poemas: “a cuaderna via”.
Estrofes de quatro versos de catorze sílabas (alexandrino) com cesura no meio e rima consoante (AAAA,
BBBB, etc.). Nestes poemas se dá uma regularidade muito maior que no resto da produção poética do
período e há alguns que se situam muito próximos da regularidade total.
30
oral e a poesia de cordel que lia para os cassacos no engenho onde foi criado. Isso é narrado no
poema “Descoberta da literatura”, de Escola das Facas (1980):

No dia a dia do engenho,


toda semana, durante,
cochichavam-me em segredo:
saiu um novo romance.
E da feira de domingo,
me traziam conspirantes
para que os lesse e explicasse
um poema de barbante.
(MELO NETO, 1994, p. 447)

Guardadas as devidas proporções, João Cabral voltava-se à possibilidade de fazer uma


poesia que atendesse melhor às exigências do sistema literário de um país em desenvolvimento em
pleno pós-guerra. Sobre o apelo popular da poesia narrativa de Berceo, Dereymond afirma que

El predicador popular, en efecto, se veía obligado a presentar su mensaje de forma animada


si quería que su auditorio lo captase, y, una vez ganada la atencón del público, era
necesaria habilidad suficiente para seguir cautivándola. Esta exigencia se vio urgida por
cuanto, a partir del siglo XIII, los clérigos seculares se hallavan en franca competencia con
los frailes mendicantes que predicaban en plazas y mercados; unos y otros, además, tenían
en frente, por otra parte, a los juglares (DEREYMOND, 1991, p. 115).6

Para manter o público atento, utilizavam-se diversas fórmulas das Artis rhetoricae,
tradicionais na Idade Média, como topos de falsa modéstia, interpelações à autoridade – invocações
do tipo “está escrito” – e antecipações de que o autor será breve. Além disso, ao final de cada
poema de Berceo, havia uma conclusão moral, voltada à doutrina católica.

João Cabral aproveitou, na fatura de muitos poemas da “água” mais madura, a forma
das quadras com versos curtos e também o caráter narrativo, nítido em O Rio e Morte e vida
Severina, por exemplo. As conclusões de caráter apologético estão presentes desde cedo na sua
obra, nas “fábulas” e “lições”, o que arremata o traço argumentativo, muitas vezes pedagógico, que
se manteve de maneira mais ou menos regular até as últimas obras.

A panorâmica do engenho do Trapuá, não revela uma paisagem estática, como num
quadro. O movimento do olhar já inaugura o poema com o tom de convite do eu-lírico, que fala
como quem aponta e percorre a paisagem: “Já fostes algum dia espiar/ do alto do Engenho
Trapuá?”. O uso da segunda pessoa coloca leitor e eu-lírico em duas pontas de uma conversa.
Apesar de não haver a “resposta” do leitor, a atenção dele está como que prevista na estrutura do

6
O pregador popular, com efeito, se via obrigado a apresentar sua mensagem de forma animada, se quisesse
que seu auditório a captasse, e, uma vez ganha a atenção do público, era necessária habilidade suficiente para
seguir cativando-a. Esta exigência se viu urgida porquanto, a partir do século XIII, os clérigos seculares se
achavam em franca competição com os frades mendicantes que pregavam em praças e mercados; uns e
outros, ademais, tinham à frente, por outro lado, os menestréis.
31
poema (VIZEU, 2002, p. 103). Outro aspecto retórico que envolve o leitor nesse diálogo é o fato de
a descrição desenvolver-se em forma de narrativa, permeada de verbos e expressões que colocam o
leitor em estado de alerta, na expectativa do próximo verso:

Com as lentes que o verão


instala no ar da região
muito se pode divisar
do alto do Engenho Trapuá.

[...]

e ali estão, cão ou alcaide,


para defesa da propriedade.

Se se olha para o nascente,


se vê flora diferente.

[...]

São lentes de aproximação


as que instala o verão
no mirante do Engenho Trapuá.

Tudo permitem divisar


com a maior precisão:

(MELO NETO, 1994, pp. 160-162, grifos meus)

Os verbos “espiar” (v. 1) “divisar” (v. 13), “olha” podem ser lidos no mesmo campo
semântico de “verão”, cuja ambiguidade sugere tanto a 3ª pessoa do plural verbo ver no futuro do
presente, quanto o substantivo que designa a estação do ano. Além disso, o advérbio “ali” e os
substantivos “lentes” e “mirante” também direcionam e chamam o olhar.

A paisagem é apresentada nos limites de uma propriedade rural cujo endereço é


anunciado na primeira estrofe. É o anúncio do interlocutor, que se coloca como conhecedor
daquelas terras. Consta na pesquisa de Selma Vasconcelos que “João Cabral, em uma das muitas
visitas que fez a Pernambuco, demonstrou preocupação com seu destino post-mortem e visitou o
Alto do Trapuá, (município de Tracunhaém – PE), lugar que escolheu como o local onde queria ser
sepultado.” (VASCONCELOS, 2009, p. 266)

Na segunda estrofe, a natureza se manifesta entre insumos da produção rural e


extrativista: algodão, mamona, agave, palmatória, abacaxi, mandioca e avelós. Se vista à distância,
do alto, a paisagem do engenho do Trapuá oferece a visão do proprietário, com certa ordem
aparente, no entanto, quebrada pelos detalhes que só podem ser notados se vistos de perto, “com as
lentes que o verão/ instala no ar da região”. Ao final da segunda estrofe, após a enumeração dos
insumos, garantem-se os limites e a segurança da propriedade, com a cerca de avelós, “o cão ou o

32
alcaide”. Ao mesmo tempo em que se visualiza a propriedade “do alto”, “para o oeste” e “para o
nascente”, a percepção sensorial fica mais densa e o leitor-interlocutor vai se arranhando nos sabres
do abacaxi, na mamona feia, no pendão fálico do agave, na seiva urticante do avelós. A paisagem é
“completada” pela presença daninha do “mato prolixo”, que quebra o ritmo, a ordem visual das
cores e sensações de cada secção produtiva da paisagem. O mato também acaba inutilizando a
porção de terra que ocupa, o que já revela a decadência da propriedade.

Na terceira estrofe, a voz do poema aponta novamente para o progresso produtivo da


propriedade: o canavial, que invade o oeste da paisagem parece compensar a improdutividade de
certa desordem da vegetação descrita na estrofe anterior. Por outro lado, essa mesma cana
“feminina”, é também ácida, agressiva e invasiva. Em um outro poema de Paisagem com figuras,
“Vento no canavial”, o canavial tem atributos de uma “simetria solta” , “como a das ondas na areia/
ou as ondas da multidão/ lutando na praça cheia” (MELO NETO, 1994, p. 151).

O andamento de prosa narrativa, cuja sintaxe se “ajusta” ao ritmo do verso, contribui


para o distanciamento do eu-lírico, que afasta de si as atenções e empresta ao leitor apenas o olhar,
que procura compreender o objeto, a paisagem. Em “Alto do Trapuá”, além dos verbos que guiam o
olhar do leitor, há também aqueles em que as espécies vegetais da paisagem são tornadas sujeitos:

se vê o algodão que exorbita


[...]a mamona, de mais de altura,
que amadurece [...].
[...]
na paisagem que o mato prolixo
completa sem qualquer ritmo.
[...]cercas de avelós
que mordem com leite feroz

Só canaviais e suas crinas


[...] desfraldando ao sol completo
seus líquidos exércitos,
suas enchentes sem margem
que inundaram já todas as vargens
e vão agora de assalto
dos restos de mata dos altos.
(MELO NETO, 1994, p. 161, grifos meus)

Configurada em paisagem, a natureza aparece não só como objeto disposto à


compreensão do leitor, mas como “lente de aproximação”: ela é tornada um aparato que
potencializa a visão, a qual e é projetada para além da simples observação do Engenho do Trapuá.
O clima do lugar, que compõe e ilumina a paisagem é o que faz enxergar mais longe: “com as lentes
que o verão/ instala no ar da região/ muito se pode divisar/ do alto do Engenho do Trapuá”.
Também a estrutura do poema é colocada como aparato de enxergar, já que toda ela está voltada

33
para educar o olhar do leitor, questionando seus vícios e métodos, construídos ao longo de muitas
décadas de recepção da lírica.

O foco, portanto, não está em quem vê, mas naquilo que é visto e em como se olha.
Trata-se de uma estrutura que envolve o leitor, mas que não busca encantá-lo, pois os recursos
retóricos não se voltam ao sentimento, mas ao raciocínio e à provocação, conforme analisa Homero
Vizeu.

Para a análise de João Cabral, é interessante ter em mente esta “função


encantatória” porque ao se referir a um interlocutor mais ou menos ausente ou
inanimado – a poesia, no caso – em “Antiode”, o poeta fará um uso provocativo e
francamente anti-encantatório do procedimento, o que não deixa de ser revelador
dos usos a que o poeta submete os procedimentos retóricos sedimentados na língua
(VIZEU, 2002, p. 101).

Os recursos de aproximação levam o leitor a ir ao encontro da voz do poema, que se


apresenta como anfitrião, conhecedor da paisagem, que indica as direções e atributos com
segurança. No entanto, se, por um lado, há o convite à contemplação, essa mesma paisagem agride
o leitor na ponta de cada verso, já na segunda estrofe: “[...] cabeleira encardida”, “[...] sabres
metálicos”, “o agave, às vezes fálico”.

A articulação retórica que ativa a curiosidade é conativa e também metalinguística.


Dominique Mainguenau, mencionado em livro de Homero Vizeu, descreve uma categoria
específica para o leitor incluído na estrutura narrativa e o chama de narratário, que seria o
destinatário da narrativa, em comentário sobre procedimentos dêiticos de La Fontaine. Ao utilizar
mecanismos conativos típicos da prosa, o poeta põe em movimento todos os elementos do sistema
literário, uma vez que não só provoca o leitor, mas questiona o próprio instrumento poético e o uso
que dele foi feito pelos poetas que o precederam (VIZEU, 2002, p. 101). Homero Vizeu continua
mais adiante analisando o uso da função conativa pelo poeta, também explorada em “Alto do
Trapuá”:

Em “Antiode” ou “Uma faca só lâmina”, o apelo e a provocação polêmica parecem


ter por pressuposto uma espécie de igualdade de interlocutores, até porque apelo e
provocação são parte do andamento argumentativo. Não haveria súplica nem
exortação mas uma espécie de interpelação próxima do desafio, de quem chama
para o duelo (VIZEU, 2002, p. 103).
Nas três primeiras estrofes do poema, a ambiguidade que oscila entre convite e
incômodo passa à desconfiança a partir da quarta estrofe, que se inicia com uma conjunção
adversativa:

Porém se a flora varia


segundo o lado que se espia,
34
uma espécie há, sempre a mesma,
de qualquer lado que esteja.
É uma espécie bem estranha:
tem algo de aparência humana,
mas seu torpor de vegetal
é mais da história natural
(MELO NETO, 1994, pp. 161-162).

O poema continua no mesmo tom de demonstração narrativa, que revela o elemento


humano como parte da paisagem. A imobilidade que tem essa “espécie bem estranha”, “sempre a
mesma,/ de qualquer lado que esteja” contrasta com dinamismo voraz da paisagem, paradoxalmente
domesticada do engenho. A partir da penúltima estrofe, pouco se vê da abundância vocabular
observada nas três primeiras estrofes.

Nesta parte do poema, vislumbra-se um aproveitamento poético da figura de “O bicho”


(1947), de Manuel Bandeira. O sintetismo deste poema revela a grande capacidade de transfigurar
momento cotidiano em poesia. O eu-lírico se detém o suficiente no instante para atingir uma
eloquência lírica que toca em cheio a emotividade do leitor. Num poema de registro mínimo, a
identificação com o leitor se dá por meio da interjeição do último verso: “O bicho, meu Deus, era
um homem”.

Manuel Bandeira manteve com João Cabral uma fecunda correspondência na qual
trocavam impressões sobre seus poemas, arte e cultura. Em resposta à carta de Bandeira, que
continha “O bicho” e outros dois poemas, João Cabral comenta:

Achei-os excelentes, principalmente “O bicho”. Não sei quantos poetas no mundo são
capazes de tirar poesia de um “fato”, com você faz. Fato que v. comunica sem qualquer
jogo formal, sem qualquer palavra especial: antes, pelo contrário: como que querendo
anular qualquer efeito autônomo dos meios de expressão. E isso é tanto mais
impressionante, porque ninguém mais do que v. é capaz também de tirar todos os efeitos da
atitude oposta, isto é, do puro funcionamento desses meios. Você já terá notado que meu
ideal é muito mais este M. Bandeira do que aquele. Mas diante de poemas como “O bicho”,
fico satisfeito por verificar que nenhum excesso intelectualista me é capaz de tirar a
sensibilidade para poemas desta família (SÜSSEKIND, 2001, p. 60).

O poeta fala de “poemas desta família”, referindo-se a um tipo de poema mais afeito à
espontaneidade, à inspiração do instante. De acordo com essa ideia, explicada em ensaio crítico de
João Cabral, “Poesia e Composição” (MELO NETO, 1994, pp. 723-737), Bandeira pertenceria a
uma família de poetas que “encontram a poesia”, enquanto Cabral faria parte do grupo dos que
“procuram a poesia” (p. 723).

Para compreender em João Cabral a posição de poeta, é preciso considerar antes sua
posição como crítico: ele mesmo se considerava antes crítico do que poeta e procurava exercitar a
crítica na poesia. Seus ensaios críticos sobre arte e poesia, assim como seus comentários em

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correspondência com colegas poetas, elucidam muito sobre suas escolhas como poeta. Em
entrevista a Augusto Massi (1991), João Cabral declara:

Eu já frequentava uma roda literária com Lêdo Ivo e outros. O mais velho de nós, uma
espécie de mentor, era o Willy Levin. [...] Meu ideal era ser crítico literário. Mas pensei que
com 18 anos eu não tinha experiência nem cultura para ser crítico. Como ali todo mundo lia
muito e escrevia poesia, comecei a escrever também (ATHAYDE, 1998, p. 149) .

Ao abordar o elemento humano em “Alto do Trapuá” como parte da paisagem e ao


mesmo tempo estranho a ela, o poeta faz um desdobramento poético da cena descrita em “O bicho”
por meio da narrativa do ciclo reprodutivo humano – como se animal fosse –, cuja vida é ainda mais
minguada, se comparada à da cana “aristocrática” mencionada na terceira estrofe. Ao contrário da
cana, o homem é “como o coqueiro, consuntivo,/ é difícil na região seu cultivo”.

Nessa parte do poema, a variedade de adjetivos é mais rara em relação às três primeiras
estrofes, em que a paisagem, anímica, é ricamente narrada. Na quarta estrofe, o recurso da
repetição, intensamente utilizado em O cão sem plumas reforça, por meio da pobreza metafórica, a
impossibilidade de realização do homem, incapaz de ter o domínio sobre a natureza e sobre a
própria força de trabalho, que já não tem. Com as rimas de lama com lama, água com água, O cão
sem plumas adquire um “andamento de prosa desativada, mimética e funcional” (VIZEU 2002, p.
127). Em “Alto do Trapuá”, o ritmo da descrição desacelera na penúltima estrofe e as metáforas
gaguejam em torno da falta, incompletude – “sem alimento”, “baldio”, “vazio”, “ausência” e
“fome”. Segue-se a descrição do ciclo de vida desse homem, o que lembra aquilo que o retirante
presencia ao longo de seu caminho em Morte e vida Severina.

Compara-se o ventre inchado de quem passa fome a uma fruta, o que acaba se tornando
“palha absoluta” à medida que o indivíduo cresce. Vem d`O cão sem plumas a exploração poética
do contraste entre fecundidade, abundância da terra e a impossibilidade de o homem dominá-la –
mais ainda, essa mesma abundância, dentro do sistema de produção capitalista, é também o que
paradoxalmente tolhe o homem da sua força de trabalho e da possibilidade de uma vida digna. Esse
processo social é o que Marx descreve como alienação, definida a seguir por Lukács:

[...] o desenvolvimento das forças produtivas provoca diretamente um crescimento das


capacidades humanas, mas pode, ao mesmo tempo e no mesmo processo sacrificar os
indivíduos (classes inteiras). Esta contradição é inevitável, já que implica a existência de
momentos do processo social de trabalho, [...] como componentes inelimináveis do seu
funcionamento como totalidade (LUKÁCS, 1981, p. 5).

Em “Alto do Trapuá”, o processo da alienação ganha forma estética: a paisagem, que


poderia ser modificada pelo homem em benefício próprio, acaba por dominá-lo e desumanizá-lo.
Além disso, a natureza adquire aspectos ainda mais humanos que do próprio homem: “até no grão

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essa formiga/ de ar muito mais racional/que o da estranha espécie local”. No entanto, não é
diretamente a natureza que aliena o homem, mas a relação que se tem desenvolvido entre o homem
e a natureza por meio do modo de produção capitalista. Nesse processo, as relações de trabalho
bestializam a vida humana, conforme comentou Lukács:

Marx, analisando economicamente a vida dos operários do seu tempo, mostrou a alienação
nas expressões mais elementares da vida dos homens que com toda evidência são fundadas
nos sentidos. Ele diz: ‘O resultado é que o homem (o trabalhador), se sente livre, enfim,
somente nas suas funções bestiais, no comer, no beber e no sexo, tudo o mais no ter uma
casa, na sua saúde corpórea etc., e que nas suas funções humanas se sente apenas mais um
animal. O bestial torna-se o humano e o humano o bestial. O comer, o beber, o gerar, etc.
são também, com efeito, simples funções humanas, mas são bestiais na abstração que as
separa do restante âmbito da atividade humana e faz delas os fins últimos e únicos’
(MEGA, I. p. 86 [trad. it., Manoscritti economico-filosofici, cit., p. 301]) (LUKÁCS,
1981, p. 23).

No poema “Alto do Trapuá”, assim como em O cão sem plumas, a natureza se


apresenta voraz e dinâmica; mesmo quando estagnada em lama, é corrosiva ou fecunda. O homem,
por sua vez, aparece quase sempre à margem da paisagem, ainda que muitas vezes como extensão
dela, inerte e coisificado.

A progressão metafórica que se desenvolve da fruta à palha, presente no poema “Alto


do Trapuá”, apresenta-se como solução estética que dá a ver a bruta coisificação da vida humana:

Esse ventre devoluto,


depois, no indivíduo adulto,
no adulto, mudará de aspecto:
de côncavo se fará convexo
e o que parecia fruta
se fará palha absoluta
(MELO NETO, 1994, p. 162)

Essa transformação revela a potencialidade da natureza em servir ao proveito do


homem; no entanto, quem acaba sofrendo essa transformação é o ser humano, por efeito da lógica
do capital. Essa metáfora, uma das ideias fixas de Cabral, realiza-se por meio de um recurso
chamado por Luiz Costa Lima de “descascamento”: “Mediante um procedimento progressivo
realizado dentro da mesma imagem ou palavra, o poeta dilacera capa e capa, fere casca e casca à
procura de algo que seja mais duro consistente e compacto” (LIMA, 1995, p. 256). Na parte I d`O
Cão sem plumas, fala-se da fecundidade estagnada do rio, com a qual se identifica, entre outras, a
imagem da fruta:

A cidade é passada pelo rio


como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta por uma espada.

37
(MELO NETO,1994: p. 105).

Mais adiante, volta a imagem da fruta:

Seria a água do rio


fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?
(Idem, p. 107)

Na parte II, em que o elemento humano contamina ainda mais a paisagem, uma
metáfora é “explicada” por meio de outra, até que se chega à ausência mais absoluta e nela o
homem continua inseparável da paisagem, petrificado, incapaz de mover-se.

Mas ele conhecia melhor


os homens sem pluma.
Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu;
mais além
até
da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco
(Idem, p. 109).

O fato de uma metáfora levar a outra (pluma – caliça – palha – palha – camisa – folha
de papel), numa aparente tentativa de explicação, não esclarece a imagem anterior, mas intensifica o
poder reificador da linguagem, que gagueja e titubeia na tentativa de tocar o real. Em “Alto do
Trapuá”, esse recurso é usado em escala menor, mas revela um caminho metafórico muito
semelhante:

Esse ventre devoluto,


depois, no indivíduo adulto,
no adulto mudará de aspecto:
de côncavo se fará convexo,
e o que parecia fruta
se fará palha absoluta
(Idem, p. 162).

Na última estrofe, retomam-se as metáforas do olhar. No início do poema, o olhar é


panorâmico e o ponto de vista é do alto de um mirante; no entanto, à medida que o poema avança,
também o olhar se aguça e chega tão perto dos detalhes por meio das “lentes de aproximação”, até
38
que aquilo que se observa não seja mais paisagem propriamente dita, pois chega-se às coisas
concretas de que é feita. Na aproximação vertiginosa da paisagem, é possível divisar uma formiga, a
qual, após o desenvolvimento do raciocínio do eu-lírico parece ter maiores garantias de
sobrevivência que “a estranha espécie local”. É pelo filtro da paisagem e de seu clima que é
possível enxergar mais nitidamente a condição humana, que definha, mesmo diante do mais alto e
complexo grau de dominação do homem sobre a natureza.

A opção por narrar teve, portanto, fortes consequências estéticas na poesia cabralina,
que caracterizam a mudança do ponto de vista do poeta na “segunda água”. Cabral buscou as novas
bases de seu trabalho poético em uma poesia primitiva, oral e, portanto, narrativa, para que pudesse
alcançar o leitor com maior eficácia. Segundo Georg Lukács,

A poesia primitiva – quer se trate de fábulas, baladas ou lendas, quer se trate de formas
espontâneas saídas mais tarde dos relatos anedóticos – parte sempre do fato fundamental da
importância da praxis; ela sempre representou o sucesso ou o fracasso das intenções
humanas na prova da experiência e disso decorreu a sua profunda significação. Ainda hoje,
a despeito dos seus pressupostos frequentemente fantásticos, ingênuos e inaceitáveis para o
homem moderno, essa poesia continua viva, por colocar no centro da representação
exatamente este fato fundamental da vida humana (LUKÁCS, 1965, p. 58).

Lukács argumenta que narrar ou descrever caracterizam posições distintas do escritor


diante da sociedade, que são sintomáticas de momentos sucessivos do capitalismo (1965, p. 53).
Segundo ele, “a narração distingue e ordena. A descrição nivela todas as coisas” (1965, p. 62).
Lukács afirma que os períodos históricos em que houve menos condições materiais de intervir na
sociedade foram aqueles em que a literatura adquiriu um caráter mais “puro”, desenvolvendo mais
ostensivamente o aspecto autônomo da linguagem. Esse voltar-se à técnica produziu na prosa e na
poesia, o Naturalismo e o Simbolismo respectivamente, nos quais predominava o recurso descritivo.
“Se a literatura artística de uma época não consegue encontrar a conexão existente entre a praxis e a
riqueza de desenvolvimento da vida íntima das figuras típicas do tempo, o interesse do público se
refigura em sucedâneos abstratos e esquemáticos da literatura” (1965, p. 59).

João Cabral desvencilhou-se da influência majoritária da poesia chamada menor, a


simbolista, para dedicar-se a uma poesia que questiona e busca compreender a práxis humana. Por
meio do recurso narrativo presente nos poemas da “segunda água”, questionam-se os processos
históricos que formaram a paisagem e fizeram com que o homem ficasse à margem dela. A mesma
estrutura poética também questiona os processos que formaram o leitor desafiado na trama poética
de Cabral. No entanto, como nenhuma escolha literária é pura, permaneceram no poema cabralino
“recalques” do simbolismo de Valéry e Verlaine: as metáforas profundamente visuais, muitas vezes
insólitas, não são mais etéreas ou oníricas, como na primeira água, mas corrompidas pela práxis,

39
pela lama. Esse desrecalque vem a partir de julgamento e escolha do próprio poeta nesse momento
mais maduro de sua obra, quando essas influências, que foram o batismo dos primeiros versos, já
eram por ele consideradas mais como embasamento instrumental do que filosófico.

Valéry me ajudou com a psicologia da composição racional. Deu a um poeta jovem a


coragem de recusar a inteira poética romântica, egocêntrica, tão importante na literatura
brasileira, especialmente no período de 1930-1934... A leitura de Valéry me ofereceu outra
opção, permitiu a realização do que eu já tramava. De resto, tenho profundas discordâncias
com a poética de Valéry, com seu hermetismo. Ele é uma influência no sentido de
revelação de possibilidades (ATHAYDE, 1998, p. 48)

Em um poema de Quaderna (1959), “De um avião”, o movimento narrativo-descritivo


do olhar se inverte em relação a “Alto do Trapuá”. Enquanto neste, o olhar se aproxima da
paisagem, naquele, relata-se o afastamento progressivo do observador, enquanto o avião decola. Na
primeira parte, é possível ver os detalhes dos arredores do Campo do Ibura, onde se localiza o
aeroporto dos Guararapes, no Recife. A vista se transforma a cada círculo que o avião percorre em
movimento ascendente.

1
Se vem por círculos na viagem
Pernambuco – Todos-os-Foras
Se vem numa espiral
da coisa à sua memória

O primeiro círculo é quando


O avião no Campo do Ibura.
Quando tenso na pista
o salto ele calcula.
[...]
(MELO NETO, 1994, p. 227)

.
Nos primeiros círculos da trajetória, ainda é possível ver alguns detalhes da paisagem
– mangue e mar, arrabaldes da cidade. A apresentação da paisagem à distância legitima-se pelo fato
de ter sido experimentada e conhecida bem de perto pelo observador. Comparam-se, na segunda
parte, a visão do “Recife à distância” à do “Recife íntimo”, da memória: “A paisagem que bem
conheço,/ por tê-la vestido por dentro,/ mostra a pequena altura/ coisas que ainda entendo”.

A palavra distância se repete em várias estrofes, em oposição ao que pode ser ainda
reconhecido pelo observador, ainda que o distanciamento vá “resumindo” os detalhes da paisagem e
os substitua por contornos mais abstratos. A paisagem à distância é então purgada de suas
imperfeições e em certo momento aparenta ser mais “dócil”, para a contemplação e a fruição
artística.

3
[...]
40
Uma paisagem mais serena,
mais estruturada se avista:
todas de um avião
são de um mapa ou cubistas.

A paisagem, ainda a mesma,


Parece agora noutra língua:
numa língua mais culta,
sem vozes de cozinha.

Para língua mais diplomática


a paisagem foi traduzida:
onde as casas são brancas
e o branco, fresca tinta;
(MELO NETO, 1994, p. 229)

Na quarta parte, a cidade vai se convertendo em metáforas de luzes e cores, até que se
torne um diamante, seja pelo contorno que as linhas formam, seja pela ideia de um prisma que
funde a profusão de cores da paisagem:

o amarelo da cana verde,


o vermelho do ocre amarelo,
o verde do mar azul,
O roxo do chão vermelho”.
(Idem, p. 230)

Na quinta parte, o poema volta a evocar a memória, retomando-a na primeira estrofe.


Assim como o avião, também o discurso do poema também faz círculos:

Já para encontrar Pernambuco,


o melhor é fechar os olhos
e buscar na lembrança
o diamante ilusório”.
(Idem, p. 231)

Descreve-se a transformação da paisagem em produto de troca para contemplação


artística ou para uma fotografia íntima; no entanto, um elemento faz com que ela se desmanche
novamente na lama e no concreto de que é feita: o homem. No final da segunda, terceira e da quinta
parte, o elemento humano parece interromper a apreciação da paisagem como arte, como
linguagem.

2
[...]
(Já a distância sobre seus vidros
Passou outra mão de verniz.
Ainda enxergo o homem,
não mais sua cicatriz)
[p. 229]

3
[...]
Se daqui visse seu homem,
homem mesmo pareceria:
41
mas ele é o primeiro
que a distância eneblina

para não corromper, decerto,


o texto sempre mais idílico
que o avião dá a ler
de um a outro círculo.
[p. 230]

5
[...]
Desfazer aquele diamante
A partir do que o fez por último
de fora para dentro
da casca para o fundo.

Até aquilo que, por primeiro


se apagar ficou mais oculto:
o homem que é o núcleo
do núcleo de seu núcleo.
[p. 232]

Nas estrofes de 2 e 3 mencionadas acima, o distanciamento entre observador e objeto


faz com que a paisagem se torne mais acabada e agradável ao olhar, assim como, à distância,
também o poema talvez parecesse uma peça de contemplação idílica. No entanto, o eu-lírico quer
mostrar, tanto em “Alto do Trapuá” quanto em “De um avião”, que aquilo que corrompe a vista é
parte indissociável da paisagem. Nesse ponto, provoca-se uma incômoda identificação do “leitor-
turista” como também sendo o elemento de construção e de corrosão da paisagem do texto e da
paisagem nacional e mundial: o homem em sociedade.

Lukács comenta um poema de Goethe chamado “Ultimatum”, analisando especialmente


a reflexão do poeta sobre a relação entre interno e externo, aparência e essência. Eis alguns trechos
do poema:

Y así te digo por última vez:


La naturaleza no tiene núcleo ni cáscara
Mírate tú más bien
Si cáscara o núcleo eres
[...]
¿No está el núcleo de la naturaleza
En el corazón de los hombres? 7

7
Ultimatum

Und so sag' ich zum letzten Male:


"Alles giebt sie reichlich und gern;
Natur hat weder Kern
Noch Schale;
Alles ist sie mit Einemmale;
Du prüfe dich nur allermeist,
Ob du Kern oder Schale seist!"

42
(LUKÁCS, 1972, p. 478)

A reflexão feita por Lukács nos é bastante oportuna para a análise do poema de Cabral.
Este mobiliza os recursos do poema para que se enxergue por trás da paisagem, do que nela se
condiciona ver, isto é, resgata uma percepção histórica da realidade brasileira retomando
literariamente a natureza, o arquétipo em que se baseou a formação da nossa identidade e permeou
os momentos mais altos da nossa literatura, como o Romantismo e o Modernismo. A paisagem
cabralina, traz consigo essa genealogia literária, com a vantagem histórica de possibilitar uma
consciência crítica suficiente para ver a realidade nacional além da “casca” a partir da relação entre
homem e natureza. Segundo Lukács,

[...] la unidad de lo interno y lo externo en la naturaleza significa para ella misma la


caducidad de uma distinción entre los dos momentos; esa distinción es un problema
puramente humano que no puede hallar solución más que en el comportamiento del hombre
para com su mundo, para con la naturaleza y precisamente con el sentido de que el carácter
nuclear del hombre se manifiesta em su capacidad de percibir, pensar y sentir lo interno y lo
externo en su unidad y en que ese carácter nuclear es al mismo tiempo presupuesto y
consecuencia de una tal visión, mientras, a la inversa, la naturaleza del hombre como
cáscara se encuentra en una relación no menos necesaria con el dasgarramiento de la
vinculación entre lo interno y lo externo8 (LUKÁCS, 1972, p. 482)

De volta ao poema de João Cabral, “De um avião”, nas estrofes citadas da parte 5,
inverte-se subitamente o movimento de distanciamento: o olhar vai ainda mais perto do que no
ponto de partida do avião, no início do poema. Aí, as pontas se unem, num processo discursivo de
progressão e regressão, como acontece na prosa argumentativa – a conclusão retoma o que foi

"Wir kennen dich, du Schalk!


Du machst nur Possen;
Vor unsrer Nase doch
Ist viel verschlossen."

Ihr folget falscher Spur,


Denkt nicht, wir scherzen!
Ist nicht der Kern der Natur
Menschen im Herzen?

(GOETHE, Johann Wolfgang von. “Ultimatum”. Disponível em <http://www.textlog.de/18654.html>. Acesso em


10/11/2012)
8
A unidade entre o interno e o externo na natureza significa para ela mesma a caducidade de uma distinção entre os
dois momentos; essa distinção é um problema puramente humano que não pode achar solução mais que no
comportamento do homem para com seu mundo, para com a natureza e precisamente com o sentido de que o
comportamento do homem se manifesta em sua capacidade de perceber, pensar e sentir o interno e o externo em sua
unidade e em que esse caráter nuclear é ao mesmo tempo pressuposto e consequência de uma tal visão, enquanto, ao
contrário, a natureza do homem como casca se encontra em uma relação não menos necessária com o desgarramento da
vinculação entre o interno e o externo.
43
apresentado pela introdução – só que, no poema, esse movimento se dá perseguindo-se a imagem.
Mais uma vez, falamos nessas duas pontas, que, unidas na trama do poema, permitem sucessivas
conexões conceituais e visuais. Luiz Costa Lima menciona outras “duas pontas”, que aparecem no
desenvolvimento metafórico da imagem da “flor” em “Antiode” (MELO NETO, 1994, pp. 98-102),
poema de Psicologia da composição, de 1947.

Note-se então: da imagem da flor como “duas pontas” passa-se a “as duas bocas da imagem
da flor”, as quais são a seguir nomeadas [...]. O fato que se dá é uma progressão imagética,
a partir de uma imagem geradora: “duas pontas”. [...] Em vez de elas cada vez mais se
afastarem do real nomeado – à semelhança do que sucede em Mallarmé – ao contrário,
como se desconfiassem de sua força nomeante, são elas trocadas por outras e por outras
mais, até que desta derivação resulte aquela que atinge o visível concretamente, o objeto
visível e concreto que se procurou dizer. [...] Ao final do processo, saberemos por que flor
pode reingressar no vocabulário cabralino. Ela deixa de ser ornamental mesmo
tematicamente – isto é, ornamental quanto ao defunto – pois ela própria também é uma
espécie de defunto. (LIMA, 1995, p. 236)

O movimento discursivo e imagético de unir duas pontas acontece também em “Alto do


Trapuá”, que traz, na primeira estrofe “Com as lentes que o verão/ instala no ar da região/ muito se
pode divisar /do alto do Engenho Trapuá” e, na penúltima estrofe: “São lentes de aproximação/ as
que instala o verão/ no mirante do Engenho Trapuá.” Trata-se de um procedimento comum na
literatura oral, para reforçar a memória em relação ao que havia sido dito no começo e emendar uma
“lição” ou conclusão.

Em ambos os poemas, a visão do alto, que se aproxima até enxergar cada fragmento que
compõe a paisagem, mimetiza o movimento de construção do poema, que também é, à sua maneira,
“paisagem”, produto feito para contemplação, a qual, para que ocorra, frequentemente escondem-se
as marcas do trabalho do poeta. Esses elementos, no entanto, não são negados ao leitor de João
Cabral, já que seu lirismo peculiar foge ao encantamento tão caro ao gênero da poesia. O leitor é
colocado em situações muitas vezes desconcertantes, pois, diante de um produto literário
tradicionalmente feito para o deleite do espírito, o leitor é levado a raciocinar e questionar inclusive
a forma como está habituado a ler poesia. Nas palavras de Luiz Costa Lima:

Desde logo, não se trata nem de versos facilitados, nem que recorressem à música ou à
nostalgia da lírica usual. Cabral trata seu tema com o mesmo pesar seco com que o
engenheiro dirige sua construção. Seu lirismo não depende de estados sentimentais, nem
para sua feitura, nem para sua recepção. Lúcido e cortante, se emociona, é pela inteligência
e pela “visibilidade” do texto. Lirismo que não permite um consumo emotivo, pois de
geometria se constrói (LIMA, 1995, p. 246).

Trata-se de uma poesia que deixa ver os dispositivos de sua construção porque
desconfia dos próprios métodos que a acumulação literária disponibiliza ao poeta desta década.
44
Dessa maneira, questiona-se cada elemento do sistema literário, inclusive o próprio fazer poético. O
uso lírico da paisagem também é questionado como engrenagem de exploração do mesmo processo
social que a formou e que, metonimicamente também formou a nação. O leitor, que foi envolvido
em uma paisagem construída à maneira de quem conta uma história, também se torna alvo de
“armadilhas” que conduzem o olhar para o raciocínio crítico.

45
A ARQUITETURA DA GAIOLA
Como é característico dos poemas de Quaderna, “Mulher vestida de gaiola” é dividido
em quartetos, 12 no total. A base métrica é a cuaderna vía, esquema formado por quadras de versos
alexandrinos de 14 sílabas com uma rima em cada estrofe, utilizado principalmente em poemas
religiosos de cunho didático por poetas como Gonzalo de Berceo, na Espanha medieval.
Ocasionalmente, esses versos tinham uma cesura e formavam dois blocos sintáticos e rítmicos de
sete sílabas, que não tinham rimas internas. Embora nos poemas medievais não houvesse uma
grande preocupação em manter a igualdade métrica das sílabas, importava mais o ritmo cadenciado
em cada grupo de sete sílabas, que facilitava a recitação em voz alta.
No poema de Cabral, a cesura do verso alexandrino formou não só dois blocos rítmicos,
mas também dois versos. Por isso, versos pares rimam, os versos ímpares são brancos e as quadras
podem ser agrupadas duas a duas, em períodos que ocupam oito versos. Nas duas últimas quadras,
parece haver um período em cada estrofe, mas, ainda assim, é como se formassem uma pergunta
apenas – uma continuando a outra – já que a última estrofe se inicia com letra minúscula.
O poema abre com a evocação de uma segunda pessoa feminina, que faz supor que a
mulher anunciada no título o escuta: “parece que vives sempre/ de uma gaiola envolvida”. Essa é
também uma técnica aproveitada dos poemas em cuaderna vía, que tinham no uso da segunda
pessoa um ponto de comunicação com o leitor/ouvinte. De fato, a partir de O cão sem plumas, o
poeta passa a uma dicção que assume a expectativa de uma atenção dialógica do leitor. A “segunda
água” de sua obra contém “poemas para auditório, numa comunicação múltipla, poemas que, menos
que lidos, podem ser ouvidos” (LIMA, 1995, p. 260). É preciso considerar que essas duas escolhas
do poeta – poemas em silêncio e poemas em voz alta – que ele chama de “duas águas”, não
significam somente uma divisão de águas, dois caminhos, mas dois pontos de sustentação, como em
uma construção. Percebe-se nos poemas de Quaderna um certo retorno crítico à primeira água, na
qual, segundo o poeta, há “poemas para serem lidos em silêncio, numa comunicação a dois, poemas
cujo aprofundamento temático quase sempre concentrado exige, mais do que leitura, releitura”
(LIMA, 1995, p. 260). Note-se que, mesmo no silêncio e no exercício do raciocínio e da releitura,
Cabral considera ainda a comunicação, de forma que não se perde a preocupação com o leitor.
Em “Mulher vestida de gaiola”, como em outros poemas de Quaderna, a segunda
pessoa surge na forma de alteridade poética. No caso desta obra, a segunda pessoa funciona menos
como manutenção de um diálogo com o leitor do que como um ponto de partida de
desenvolvimento do raciocínio do poema. A mulher é o elemento humano do poema, a presença de

46
uma subjetividade tornada objeto da linguagem, premissa argumentativa. Nas três primeiras
estrofes, intriga pelo que a separa do mundo que a cerca, a gaiola.
Assim como em outros poemas de Quaderna, “Mulher vestida de gaiola” traz à tona a
dimensão erótica do feminino. De acordo com João Alexandre Barbosa,
Por um lado, é a convergência de motivos espanhóis e nordestinos, visando sempre o
resgate, por uma linguagem carente ou seca, de uma realidade cemitérios (em Quaderna há
quatro: um alagoano, um paraibano e dois pernambucanos), de “Paisagens com cupim”, ou
das condições de um ser igualmente deserdado na paisagem adversa (representados em
“Poema[s] da cabra”); por outro lado, entretanto, o livro veicula, pela primeira vez de um
modo dominador na obra de João Cabral, a temática do lirismo amoroso, ou mesmo erótico
[...]. Não se pense, contudo, ser um lirismo amoroso facilitado pela tradição do tópico.
Aqui, este lirismo entra sempre pela via que é a característica maior do poeta, isto é, pela
lucidez com que faz da linguagem o próprio objeto a ser nomeado. (BARBOSA, 1996, p.
81)

Essa forma não convencional de representar o lirismo erótico toma a via não poética de
João Cabral, por meio de suas metáforas concretas que tateiam buscando delinear o “objeto
erótico”. É, pois, no jogo linguístico que o erotismo se constrói:
A maior contundência deste lirismo erótico-amoroso, pois está não apenas naquilo que é
dito como no próprio jogo das articulações sintáticas, criando passagens e interrupções
(verdadeiras pulsões, para falar com os psicólogos) entre o dentro e o fora – termos com os
quais o poeta arma seu dizer erótico (Idem, p. 82).

Assim, o erotismo acaba sendo também mais uma ferramenta de compreensão da


linguagem: o concreto se torna ponte para a compreensão do abstrato estético. O erotismo, assim
como a linguagem, se constrói na relação entre o eu e o outro, entre o homem e mundo. Essas
pontes se configuram visualmente, por exemplo, nas metáforas arquitetônicas e estruturais de
“Mulher vestida de gaiola”, “A mulher e a casa” e “Rio e/ou poço”.
Em “Mulher vestida de gaiola”, a palavra “gaiola” se repete duas vezes em cada uma
das três primeiras estrofes e quinze vezes ao longo do poema. A palavra gagueja, parece buscar a si
mesma em seu eco, como se se olhasse no espelho buscando definir-se. À medida que a imagem da
gaiola vai se transformando – em camisa, ilha, Pernambuco... – desfia-se um embate linguístico,
que faz parecer que a palavra caminha sozinha.
Cabral cega o gume do encantamento e afia o da desconfiança, tanto em relação aos
métodos da lírica, quanto da expectativa do leitor. Há uma objetivação máxima da linguagem, até
que se façam perceber os limites de sua mediação. Isso se evidencia especialmente quando a
linguagem parece falhar no seu trabalho de definição, assumindo a dificuldade comunicativa, que
geralmente é escamoteada na lírica tradicional. Tradicional neste caso refere-se à lírica de raiz
romântica – de Byron ou Goethe –, que se construiu juntamente com a configuração do sujeito
burguês e, por isso, tem um eco duradouro na recepção de poesia. No Brasil, o rasto dessa
influência avança desde o nosso longo Romantismo até o Modernismo, na melancolia de Manuel
47
Bandeira e Drummond. Estes estão certamente na esteira de influências de Cabral, ainda que pela
“traição”, conforme Luiz Costa Lima (1995):

Bandeira e a recuperação da memória, o comovido canto do que o tempo, distanciado,


irrealizou. Bandeira é assim o primeiro esteio quanto ao manuseio da palavra para a poesia
moderna brasileira. Face a Cabral contudo, não podemos dizer que sua matéria fosse a
linguagem. Lírico e sentimental, Bandeira ainda dispõe do território de suas vivências para
a criação do verso. [...] Drummond compreende agudamente, ao contrário de Bandeira, a
transitoriedade e insuficiência dos seus sentimentos, de suas emoções, de suas vivências
para a leitura do poema. [...] Com ele [João Cabral] se completa um ciclo da expressão
poética brasileira. Desmistificando-se o poema e o lirismo (pp. 223-224).

A conformação da lírica a que a crítica chama tradicional atua pela via do


encantamento e nela a linguagem se basta em sua contemplação – abdica de comunicar e, por isso,
de contaminar-se da alienação mundana. É por tomar o sentido oposto a isso, que a poesia cabralina
se afasta do berço simbolista e surrealista. Apesar da “contaminação” dos métodos da poesia pura
pela prosa e pelo adensamento do concreto, instrumentos semelhantes de manipulação da
linguagem são usados, não para provocar contemplação, mas a dúvida, o incômodo e a aporia, ora
desmanchando, ora restaurando a pretensa autonomia da linguagem na lírica. A respeito disso, vale
lembrar Adorno (2003):

O paradoxo específico da configuração lírica da subjetividade que se reverte em


objetividade, está ligado a essa primazia da conformação linguística na lírica, da qual
provém o primado da linguagem na criação literária em geral, até nas formas em prosa. Pois
a própria linguagem é algo duplo. Através de suas configurações, a linguagem se molda
inteiramente aos impulsos subjetivos; um pouco mais, e se poderia chegar a pensar que
somente ela os faz amadurecer. Mas ela continua sendo, por outro lado, o meio dos
conceitos, algo que estabelece uma inelutável referência ao universal e à sociedade (p. 74).

O primor da técnica é o que traz a mediação com a vida e mantém certo equilíbrio a esse
poema, que não se basta na perfeição formal. Na poesia de João Cabral, não encontramos o sujeito
próprio da função emotiva da linguagem, mas uma voz que pensa e organiza o poema. Mesmo em
uma configuração diferente daquela a que se refere Adorno, a linguagem também é tornada objeto,
moldada por essa vontade organizadora. Adorno afirma que mesmo a solitária recepção do poema
só o é por uma solidão pré-traçada da sociedade individual (ADORNO, 2003, p. 67). Portanto,
mesmo na leitura silente que Cabral definiu a respeito de parte de seus poemas, há uma
conformação estabelecida socialmente – e disso o poeta era consciente. Mais do que isso, veremos
como a universalidade do poema cabralino se adensa justamente no reconhecimento do homem na
forma lírica.
Em “Mulher vestida de gaiola”, como pudemos perceber, é possível ver os andaimes da
construção poética, por exemplo, no progressivo movimento de definição das duas gaiolas. Há uma

48
preocupação que se pode considerar arquitetônica, não apenas pela transformação da gaiola em
residência, mas pela beleza, harmonia e principalmente pela funcionalidade do conjunto. Cabral
costumava evocar Le Corbusier ao considerar o poema como “machine à emouvoir” – máquina de
comover –, eis a função da obra de arte para esse arquiteto e pintor, também segundo depoimento
de João Cabral:

O Le Corbusier definiu uma vez a casa, no bom tempo dele, como uma máquina de morar.
Uma vez li num artigo dele, [...] que dizia que um quadro é uma machine à emouvoir, quer
dizer, uma máquina de comover, de emocionar. Então, foi minha ideia de poesia: uma
máquina de emocionar. (ATHAYDE, 1998 p. 134)

Essa intenção aponta para a vocação interventora do poema, que, por meio da
conformação plástica é capaz de tocar, atingir o leitor, questionando suas expectativas. O leitor é
levado a questionar o que sabia sobre o signo mulher, o signo gaiola e a relação entre eles, entre o
fora e o dentro da gaiola. A volubilidade entre prisão e aconchego em nenhum momento deixa o
leitor confortável na arquitetura do poema. Pelo contrário: força-o a olhar o poema de todos os
ângulos, para então começar a compreendê-lo. A ideia de poema-casa, em “Mulher vestida de
gaiola”, desenvolve-se a partir dessa relação indissoluta e mesmo conflituosa entre interno e
externo, que define os limites e a conformação da gaiola em que a mulher reside/veste em relação à
gaiola-mundo. A respeito da arquitetura como obra de arte, Lukács ressalta:

la totalidad de una obra arquitectónica no es por princípio perceptible con una sola mirada,
simultáneamente, o sea, que la composición artística [...] y la conformación visual de um
espacio externo y interno y de su relación orgânica, no puede componerse sino de la
continuidad sintética de esos actos de recepción que temporalmente son sucesivos 9 (1972,
p. 396).

Diante disso, percebe-se que é justamente esse movimento que faz com que parte da
conformação poética se dê pelo olhar do leitor, quando une as diferentes “vistas” externas às
internas, tanto espacialmente quanto conceitualmente. Nas três primeiras estrofes, o limite da
gaiola que abriga a mulher é suficiente. Na quarta estrofe, a “outra gaiola”, se refere ao espaço
externo, que se abre ao tamanho do mundo. Expande-se primeiramente para o tamanho do mar
“sem medida/ e aberto em todos os lados”. Na estrofe seguinte, o espaço amplia-se para a terra,
“Pernambuco/ e o resto da geografia”. A ideia do espaço da gaiola-mundo oscila entre limite e
liberdade, acolhimento e amplidão. Nela cabe toda a humanidade, no entanto, ali se debate um
pássaro que ainda a acha pequena, pelo limite imposto pela mínima gaiola da mulher. A imagem do
pássaro surge como um ponto de apoio, como manutenção da concretude da gaiola, que mais
9
A totalidade de uma obra arquitetônica não é por princípio perceptível com um só olhar, simultaneamente, ou seja, que
a composição artística [...] e a conformação visual de um espaço externo e interno e de sua relação orgânica, não se
pode compor senão pela continuidade sintética desses atos de recepção que temporalmente são sucessivos.
49
facilmente se relaciona à imagem do pássaro que à da mulher. Isso faz notar: é ela a intrusa, não o
pássaro.
Em outro poema de Quaderna, “A mulher e a casa”, também se alude à relação entre
interno e externo, comparado ao espaço arquitetônico: “Tua sedução é menos/ de mulher do que de
casa:/ pois vem de como é por dentro/ ou por detrás da fachada. (MELO NETO, 1994, p. 241)” O
mistério evocado pela figura feminina seduz porque instiga o eu-lírico a querer compreendê-lo por
dentro. O leitor percorre junto com o sujeito poético o interior dessa mulher-casa, de forma que o
mistério dela seja absorvido pela observação e pela inteligência, e não pela contemplação estática.
Trata-se de um movimento semelhante ao que é feito em “Mulher vestida de gaiola”, questionando
aquela mulher-mônada do Romantismo, impenetrável e indissoluta, à qual certamente o leitor
estivesse mais acostumado. Nos poemas cabralinos que tratam da mulher, ela frequentemente se
assume como construção abstrata, ao tornar-se parte da argumentação do poema. Por meio de uma
dicção de ensaio crítico, o poema recusa o tradicional mecanismo ilusionista da lírica, e a mulher,
comparada à casa, assume a forma arquitetônica, que exige que o olhar do observador se
movimente em todos os ângulos e não se contente em vê-la apenas de fora: “uma casa não é nunca,
só para ser contemplada;/ melhor: somente por dentro/ é possível contemplá-la (Idem).” Assim
como em “Mulher vestida de gaiola” a metáfora do título de “A mulher e a casa” desdobra-se em
outras, que à medida que avançam por dentro dessa casa, busca-se compreendê-la “por dentro”. O
advérbio dentro aparece dez vezes nesse poema de oito quadras, escrito na mesma base métrica de
“Mulher vestida de gaiola”, reforçando o desejo e o convite a conhecê-la “por dentro”. Dessa forma,
descreve-se o movimento espacial e crítico que o poema exige ao raciocínio do leitor.
No percurso conceitual de “Mulher vestida de gaiola”, uma metáfora leva a outra, que
leva a outra, poema adentro. Esse recurso gerador de imagens é chamado, por Luiz Costa Lima, de
descascamento (1995, p. 256), na análise de “O cão sem plumas” e de “retificação interna da
imagem” em “Antiode” (1995, p. 235). Em ambos, o movimento é essencialmente o mesmo: a
progressão metafórica de uma imagem, que dá origem a outras, num processo nomeador que busca
definir a primeira. Em “Mulher vestida de gaiola”, a imagem geradora é gaiola e a mulher é o
referente para que se definam os limites daquela. A gaiola se torna blusa, residência, ilha, mar,
Pernambuco, a humanidade inteira, para então voltar a ser casa e camisa. A respeito desse
movimento do olhar, guiado pelo poema, Luiz Costa Lima comenta:

[...] o progressivo-regressivo cabralino é uma forma sempre aberta cuja diretriz é sempre o
concreto real. Ela parte e volta ao concreto, em cada um desses momentos procurando mais
intimamente dele se acercar, não por um processo de empatia, mas de nomeação (LIMA,
1995, p. 257).

50
O movimento de aproximação é também feito em “Paisagens com cupim”, no qual a
paisagem pernambucana é aproximada até o detalhe do esfarelamento do reboco de um sobrado, ou
à madeira podre de uma palafita. Ali, parte-se de uma visão panorâmica da cidade – o que define a
ideia de paisagem – chegando-se a uma vertiginosa aproximação dos detalhes irregulares da matéria
que compõe cada parte dessa paisagem, a qual, quando mostrada à distância, parecia calculada,
homogênea e limpa. Já na segunda estrofe da segunda parte – cada parte se compõe de quatro
quadras – começa o movimento de aproximação, que guia o olhar do leitor: “Vista de longe (tantos
cubos)/ ela [Olinda] anuncia um perfil duro/ porém de perto seus sobrados/ revelam um fio gasto”
(MELO NETO, 1994, p. 235). O ponto de vista do leitor acaba sendo também o ponto de vista do
cupim, por dentro dos materiais que rói, e sempre por dentro: “Tudo se gasta, mas de dentro:/ o
cupim entra os poros, lento” [...] “E não se gasta com choques,/ mas de dentro, tão pouco explode”
(Idem, p. 237, grifos meus). A partir daí, apresentam-se materiais porosos e gastos que possam
formar – ou deformar – cidades inteiras. Nesse poema, Cabral exercita o detalhamento dos vestígios
de humanidade – as casas de palha, madeira, reboco, o canavial que alguém lavrou, fábrica em que
alguém trabalhou – como uma forma de melhor enxergá-la:

São aldeias leves de palha,


plantadas raso sobre a palha
com os escavados materiais
que o cupim trabalha e o mar traz
[...]
Cidades também em colina
do mesmo tijolo de Olinda
também minadas por marés
(ora de cana) pelos pés.
[...]
Por fora o manchado reboco
vai-se afrouxando, mais poroso,
enquanto desfaz-se, intestina,
o que era parede, em farinha.
[...]
A cana latifúndia em volta,
com os cupins que ela cria e solta,
penetra ainda fundo: combate-as
até a soleira das fábricas.
(MELO NETO, 1994 p. 235-239)

O que é ainda mais engenhoso é que esse percurso também é feito do ponto de vista
discursivo, quando demonstra o talhe duro da linguagem e a luta pela definição da palavra – até o
limite do que o cupim rói –, de maneira que esta se torna também um vestígio de humanidade, como
produto de trabalho. Esse traço foi percebido por Luiz Costa Lima a propósito da análise de “Os
primos” em O engenheiro:

51
Observamos que a exigência feita pelo autor a si mesmo, desde o início, que a crescente
criticização de seu instrumental e da tradição da qual deriva o levam, progressivamente, a
dar ingresso ao homem. Sem dúvida, Cabral estabelece esta operação pensando
decisivamente na poesia. Mas já este pensar substancial resulta da sua insatisfação face à
maneira como ela está constituída, ou seja, na maneira como nela está rarefeito o próprio
homem. [...] A preocupação com a linguagem, a preocupação com a poesia conduzem à
preocupação com o homem. [...] A lucidez que se humaniza não conta senão com o trabalho
da linguagem. O sentimento não mais serve à palavra poética. Ela há de procurar atingir o
homem por onde não parece estar mais que sua implícita ausência (LIMA, 1995, p. 223).

O fato de o elemento humano aparecer apenas como vestígio possibilita que sejam feitas
as conexões com a realidade social, isto é, o reconhecimento das relações entre o homem e a
natureza no mundo objetivo. Nesse ponto, podemos voltar ao embate entre a mulher e o pássaro em
“Mulher vestida de gaiola”, anunciado na sétima estrofe. É retomada a ideia de prisão de maneira
ainda mais evidente; no entanto, é o pássaro quem exige liberdade diante da limitação determinada
pela gaiola da mulher: “Tal gaiola, para ele, / mais do que gaiola é brida;/ como cárcere lhe aperta/
sua gaiola infinita (1994, p. 261)”. Os precisos limites da gaiola da mulher, antes “de matéria
isolante”, agora são ameaçados pela gaiola externa, cuja “força expansiva” invade como a
“enchente do mar de Olinda” (1994, p. 262).
A voz do poema termina perguntando por que justamente um espaço tão pequeno,
ocupado pela mulher com sua gaiola, incomoda tanto o pássaro com sua gaiola infinita. A simetria
do poema reforça a desigualdade entre estas duas forças: a interna, subjetiva, referente à mulher e
sua gaiola, e a externa, objetiva, referente ao pássaro e à natureza que ele habita. Além da
desproporcionalidade das forças, há que se considerar a afetação mútua delas, de modo que o limite
entre o interior e o exterior se faz notar ao longo de todo o poema. A metalinguagem desse
raciocínio é explicada por Lukács (1972):

Sólo cuando el sujeto creador es capaz de concebir la referencialidad de los objetos al


hombre (al gênero humano) como síntesis de las propias determinaciones intrínsecas de
estos y, al mismo tiempo, capaz de hacer desarrollarse orgánicamente las reaccionnes del
hombre a su mundo circundante partiendo de uma sustância activa unitária que abarca todo
eso, sólo entonces puede surgir este equilíbrio tensional de subjetividad y objetividad como
una nueva síntesis unitária y inmediata, sustancial y evocadora10 (1972, p. 472)

As referências ao mundo, encontradas na gaiola externa, culminam nos “três bilhões de


humanidade”. O que há em comum, portanto entre a gaiola da mulher e a gaiola do pássaro, entre
sujeito e mundo, é a humanidade. Para Lukács, é papel do artista intensificar essa presença humana
na arte, de maneira a desfetichizar as relações entre interno e externo:

10
Só quando o sujeito criador é capaz de conceber a referencialidade dos objetos ao homem (ao gênero humano) como
síntese das próprias determinações intrínsecas destes, ao mesmo tempo capazes de fazer desenvolver-se organicamente
as reações do homem a seu mundo circundante partindo de uma substância ativa unitária que abarca tudo isso, só então
pode surgir este equilíbrio tensional de subjetividade e objetividade com uma nova síntese unitária e imediata,
substancial e evocadora.
52
Esteticamente, lo interno se concreta en el hecho de que la naturaleza penetrada por la
actividad del gênero humano – la naturaleza en el intercambio con la sociedad – realiza una
relación entre lo interno y lo externo que todos los fenómenos de la naturaleza se
encuentran em íntima conexión com la existencia del hombre, y que, portanto –
literalmente, no metaforicamente –, el núcleo de esos fenômenos toca inmediatamente el
alma del hombre, se asienta dentro de ella: el artista auténtico tiene “meramente” que
intensificar hasta llegar a la sustancialidad estética esa unidad de lo interno y lo externo que
objetivamente está presente en todas partes, y llevar evocadoramente a consciencia su
unidad absoluta11 (1972, p. 481).

Em “Mulher vestida de gaiola”, percebemos essa relação entre homem e natureza


refletida esteticamente. O que resta esclarecer é a desigualdade dessa relação que faz com que a
gaiola-mundo ameace destruir a gaiola-mínima em que a mulher habita. Assim como em “Paisagem
com cupim”, “O cão sem plumas” e outros, em “Mulher vestida de gaiola”, o elemento humano é
representado apenas no rasto que deixou no mundo, isto é, no embate entre homem e natureza; a
força que o homem encontra para sobreviver já não está em sua potência de dominar a natureza e
domesticá-la para prover sua vida, mas apenas manter a sua gaiola na “exata medida” para a sua
sobrevivência. Ainda assim, a sobrevivência não é garantida, mas continuamente ameaçada. Aqui,
cabe repetir as perguntas finais do poema:
Por que ele [o pássaro], a quem sua gaiola
de outros lados não limita,
deseja invadir o espaço
de nada que tu lhe tiras?

Por que deseja assaltar


precisamente a área estrita
da gaiola em que resides,
melhor, de que estás vestida?
(MELO NETO, 1994, p.262)

Certamente o objetivo dessas perguntas é evocar outras no leitor; sendo assim,


acrescentamos ainda uma pergunta: em que sentido esse poema lembra ao homem de sua própria
humanidade? Os questionamentos do poema nos permitem perceber a desumanização do homem na
realidade objetiva, por meio da fetichização de sua relação com o mundo e entre os semelhantes. O
homem usa o conhecimento científico e prático do cotidiano para garantir sua sobrevivência; no
entanto, essas ferramentas de sobrevivência do mundo administrado – as mesmas utilizadas para
propagandear o bem-estar social, a qualidade de vida etc. – mascaram ainda mais a verdadeira
condição humana e apagam a menor possibilidade de consciência sobre ela. Isso significa que, as
11
Esteticamente, o interno se concretiza no fato de que a natureza penetrada pela atividade do gênero humano – já
natureza em intercâmbio com a sociedade – realiza uma relação entre o interno e o externo, que todos os fenômenos da
natureza se encontram em íntima conexão com a existência do homem e que, portanto – literalmente, não
metaforicamente –, o núcleo desses fenômenos toca imediatamente a alma do homem, se assenta dentro dela: o artista
autêntico tem “meramente” que intensificar até chegar à substancialidade estética dessa unidade entre o interno e o
externo que objetivamente está presente em outras partes, e levar evocadoramente à consciência de sua unidade
absoluta.
53
perguntas propostas pelo poema sequer são possíveis na realidade cotidiana. Segundo Lukács
(1972), a adequação da obra de arte às necessidades do homem

incluye así también las catástrofes más espantosas, las más profundas tragedias, los más
angustiosos desmascaramientos de la existencia humana. Al hacer visible y vivenciable – y
afirmada en último término – esa adecuación incluso en la más cruel indiferencia del
recurso causal del mundo externo para con los deseos y las representaciones de los
hombres, incluso en los conflitos más irresolubles del ser histórico-social del hombre, el
arte puede arrancar esas máscaras que aparentemente connaturales a la vida de los hombres,
no son sin embargo más que desfiguraciones de su esencia de hombre, y puede revelar ésta
como fundamento y princípio unitario de la existencia humana12 (LUKÁCS, 1972, p. 430).

O poema “Mulher vestida de gaiola” também resiste, como obra de arte que é, à força
encarceradora do mundo objetivo. Essa resistência não se dá senão pela representação dessa força
aprisionante, que “contamina” também a simetria e a ordem poética, mas permite o reconhecimento
daquilo que há de mais humano no homem, ainda que pela negatividade.

12
Inclui assim também as catástrofes mais espantosas, as mais profundas tragédias, os mais angustiosos
desmascaramentos da existência humana. Ao fazer visível e vivenciável – e afirmada em último termo – essa
adequação, inclusive na mais cruel indiferença do recurso causal do mundo externo para com os desejos e as
representações dos homens, inclusive nos conflitos mais insolúveis do ser histórico-social do homem, a arte pode
arrancar essas máscaras que aparentemente são conaturais à vida dos homens, não são, entretanto mais que
desfigurações de sua essência de homem, e pode revelar esta como fundamento e princípio unitário da existência
humana.
54
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a leitura dos poemas de Paisagem com figuras e Quaderna, buscou-se
compreender as relações entre o eu-lírico e a paisagem e entre o poeta e sua poesia pela perspectiva
do olhar cabralino. A maneira como o olhar do sujeito poético procurou guiar ou desviar o olhar do
leitor foi uma das chaves dessas análises. Pudemos averiguar que essa “vontade organizadora”
buscava intervir na reconstrução da imobilidade do leitor em relação à chamada lírica tradicional, já
habituado a uma contemplação encantatória, que cristaliza e limita o que João Cabral considera
entendimento lúcido do poema. Como foi dito, para o poeta, o poema deve sensibilizar o leitor a
partir da inteligência, de maneira que este possa participar também ativamente da construção da
leitura. A cada poema, o sujeito da poesia cabralina deliberadamente desestabiliza o ponto de vista
do leitor ao desvelar os processos sociais por trás das paisagens nordestinas, assim como os
processos e limitações da construção poética. A partir desse novo traçado, o poeta desafia o leitor a
construir de maneira mais ativa a leitura do poema e a compreensão da formação nacional, reduzida
estruturalmente na configuração da natureza em paisagem.

Para poder interferir no olhar do leitor, portanto, o poeta se utiliza da educação pela
pedra, por meio da qual o poeta precisou aproximar sua lente até as miudezas ou distanciar mil
metros para ter a medida mais precisa da compreensão da transformação dessa natureza em
paisagem, isto é, para dar a ver a percepção do mundo circundante como construção e como
essência, e não apenas como uma resultante estática e sem história. A originalidade dessa saída
consistiu em que, para proceder a essa educação do olhar – vale lembrar, pela via da pedra –, o
poeta procurasse literalmente movimentar o referencial visual do leitor para que este pudesse
modificar e aguçar sua consciência do mundo e da poesia. Acima de tudo, a lição da poesia
cabralina se fundamenta no reconhecimento da humanidade, como verdadeira missão
desfetichizadora da obra de arte, para citar mais uma vez Lukács, ainda que isso se revele no
aniquilamento do homem em suas relações sociais, dominadas pela mercadoria. Em uma nação
periférica, essa consciência só nos foi possível na consolidação do sistema literário brasileiro com
Machado de Assis, que nos pôde revelar uma consciência aguda da formação nacional pela via da
negatividade. Com João Cabral não poderia ser diferente: a natureza em hipérbole reforça a
coisificação do homem, que nesses poemas ganha um status inferior a qualquer planta, pedra ou
bicho, desprovido até mesmo da possibilidade de reconhecer ou muito menos expressar sua
condição.

Um cão sem plumas


55
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem.
(MELO NETO, 1994, p. 113)

Por outro lado, foi o empenho do poeta João Cabral de Melo Neto que, traduzido em
seus poemas-lições, com as lições de reconstrução do olhar, que a paisagem cabralina permite ao
menos um passo decisivo para uma reconstrução da Nação – se não da paisagem socioeconômica
do País, ao menos de uma consciência mais lúcida sobre ela.

56
ANEXO I
Anexo 1 – Poemas

“Poema” entre cimento e esclerose


com sua marcha quase nula
Meus olhos têm telescópios
espiando a rua, e na gente que se estagna
espiando minha alma nas mucosas deste rio,
longe de mim mil metros. morrendo de apodrecer
vidas inteiras a fio,
Mulheres vão e vêm nadando
em rios invisíveis. podeis aprender que o homem
Automóveis como peixes cegos é sempre a melhor medida.
compõem minhas visões mecânicas. Mais: que a medida do homem
não é a morte, mas a vida.
Há vinte anos não digo a palavra
que sempre espero de mim. MELO NETO, João Cabral de. Paisagem com
Ficarei indefinidamente contemplando figuras (1955). In: Obras completas. Rio de
meu retrato eu morto. Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 147

(MELO NETO, Pedra do sono. Rio de


Janeiro, Nova Aguilar, 1994, p. 43)

“Pregão turístico do Recife”

Aqui o mar é uma montanha


Redonda, regular e azul,
Mais alta que os arrecifes
e os mangues rasos do sul.

Do mar, podeis extrair,


do mar deste litoral,
certo fio de luz precisa
matemática ou metal.

Na cidade propriamente
velhos sobrados esguios
apertam ombros calcários
de cada lado do rio.

Com os sobrados podeis


aprender lição madura:
um certo equilíbrio leve
na escrita, na arquitetura.

E neste rio indigente,


sangue-lama que circula
57
“Alto do Trapuá” tem algo de aparência humana,
mas seu torpor de vegetal
Já fostes algum dia espiar é mais da história natural.
do alto do Engenho Trapuá? Estranhamente, no rebento
Fica na estrada de Nazaré, cresce o ventre sem alimento,
antes de Tracunhaém. um ventre entretanto baldio
Por um caminho à direita que envolve só o vazio
se vai ter a uma igreja e que guardará somente ausência
que tem um mirante que está ainda durante a adolescência
bem acima dos ombros das chãs. quando ainda esse enorme abdome
Com as lentes que o verão terá a proporção de sua fome.
instala no ar da região Esse ventre devoluto,
muito se pode divisar depois, no indivíduo adulto,
do alto do Engenho Trapuá. no adulto, mudará de aspecto:
de côncavo se fará convexo
Se se olha para o oeste, e o que parecia fruta
onde começa o Agreste, se fará palha absoluta.
se vê o algodão que exorbita Apesar do pouco que vinga,
sua cabeleira encardida, não é uma espécie extinta
a mamona, de mais de altura, e multiplica-se até regularmente.
que amadurece, feia e hirsuta, Mas é uma espécie indigente,
o abacaxi, entre sabres metálicos, é a planta mais franzina
o agave, às vezes fálico, no ambiente de rapina,
a palmatória bem estruturada, e como o coqueiro, consuntivo,
e a mandioca sempre parada é difícil na região seu cultivo.
na paisagem que o mato prolixo
completa sem qualquer ritmo, São lentes de aproximação
e tudo entre cercas de avelós as que instala o verão
que mordem com leite feroz no mirante do Engenho Trapuá.
e ali estão, cão ou alcaide, Tudo permitem divisar
para defesa da propriedade. com a maior precisão:
até uma espiga sem grão,
Se se olha para o nascente, até o grão de uma espiga,
se vê flora diferente. até no grão essa formiga
Só canaviais e suas crinas, de ar muito mais racional
e as canas longilíneas que o da estranha espécie local.
de cores claras e ácidas,
femininas, aristocráticas, MELO NETO, João Cabral de. Paisagem com
desfraldando ao sol completo figuras (1955) In: Obras completas. Rio de
seus líquidos exércitos, Janeiro: Nova Aguilar, 1994, pp. 161-162
suas enchentes sem margem
que inundaram já todas as vargens
e vão agora ao assalto
dos restos de mata dos altos.

Porém se a flora varia


segundo o lado que se espia,
uma espécie há, sempre a mesma,
de qualquer lado que esteja.
É uma espécie bem estranha:
58
“O bicho” “De um avião”

Vi ontem um bicho 1.
Na imundície do pátio Se vem por círculos na viagem
Catando comida entre os detritos. Pernambuco – Todos-os-Foras.
Se vem numa espiral
Quando achava alguma coisa, da coisa à sua memória.
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade. O primeiro círculo é quando
o avião no campo do Ibura.
O bicho não era um cão, Quando tenso na pista
Não era um gato, o salto ele calcula.
Não era um rato.
Está o Ibura onde coqueiros,
O bicho, meu Deus, era um homem. onde cajueiros, Guararapes.
Contudo já parece
BANDEIRA, Manuel Belo belo, 1948 em vitrine a paisagem.

O aeroporto onde o mar e mangues,


onde o mareiro e a maresia.
Mas ar condicionado,
mas enlatada brisa.

De Pernambuco, no aeroporto,
a vista já pouco recolhe.
É o mesmo, recoberto,
porém, de celuloide.

Nos aeroportos sempre as coisas


se distanciam ou celofane.
No do Ibura até mesmo
a água doída, o mangue.

Agora o avião (um saltador)


caminha sobre o trampolim.
Vai saltar-me de fora
para mais fora daqui.

No primeiro círculo, em terra


de Pernambuco já me estranho.
Já estou fora, aqui dentro
deste pássaro manso.

2.
No segundo círculo, o avião
vai de gavião por sobre o campo.
A vista tenta dar
um último balanço.

A paisagem que bem conheço

59
por tê-la vestido por dentro, Para língua mais diplomática
mostra, a pequena altura a paisagem foi traduzida:
coisas que ainda entendo. onde as casas são brancas
e o branco, fresca tinta;
Que reconheço na distância
de vidros lúcidos, ainda: onde as estradas são geométricas
eis o incêndio de ocre e a terra não precisa limpa
que à tarde queima Olinda; e é maternal o vulto
obeso das usinas;
eis todos os verdes do verde,
submarinos, sobremarinos: onde a água morta do alagado
dos dois lados da praia passa a chamar-se de marema
estendem-se indistintos; e nada tem de gosma,
morna e carnal, de lesma.
eis os arrabaldes, dispostos
numa constelação casual; Se daqui se visse seu homem,
eis o mar debruado homem mesmo pareceria:
pela renda de sal; mas ele é o primeiro
que a distância eneblina
e eis o Recife, sol de todo
o sistema solar da planície: para não corromper, decerto,
daqui é uma estrela o texto sempre mais idílico
ou uma aranha, o Recife, que o avião dá a ler
de um a outro círculo.
se estrela, que estende seus dedos,
se aranha, que estende sua teia:
que estende sua cidade 4.
por entre a lama negra. Num círculo ainda mais alto
o avião aponta pelo mar.
(Já a distância sobre seus vidros Cresce a distância com
passou outra mão de verniz: seguidas capas de ar.
ainda enxergo o homem,
não mais sua cicatriz). Primeiro, a distância se põe
a fazer mais simples as linhas;
3. os recifes e a praia
O avião agora mais alto com régua pura risca.
se eleva ao círculo terceiro,
folha de papel de seda A cidade toda é quadrada
velando agora o texto. em paginação de jornal,
e os rios, em corretos
Uma paisagem mais serena, meandros de metal.
mais estruturada, se avista:
todas, de um avião, Depois, a distância suprime
são de mapa ou cubistas. por completo todas as linhas;
restam somente cores
A paisagem, ainda a mesma, justapostas sem fímbria:
parece agora noutra língua:
numa língua mais culta, o amarelo da cana verde,
sem vozes de cozinha. o vermelho do ocre amarelo,
verde do mar azul,
60
roxo do chão vermelho. é o que coube a memória.

Até que num círculo mais alto Já para encontrar Pernambuco


essas mesmas cores reduz: o melhor é fechar os olhos
à sua chama interna, e buscar na lembrança
comum, à sua luz, o diamante ilusório.

que nas cores de Pernambuco É buscar aquele diamante


é uma chama lavada e alegre, em que o vi se cristalizar,
tão viva que de longe que rompeu a distância
sua ponta ainda fere, com dureza solar;

até que enfim todas as cores refazer aquele diamante


das coisas que são Pernambuco que vi apurar-se cá de cima,
fundem-se todas nessa que de lama e de sol
luz de diamante puro. compôs luz incisiva;

5. desfazer aquele diamante


Penetra por fim o avião a partir do que o fez por último,
pelos círculos derradeiros. de fora para dentro,
A ponta do diamante da casca para o fundo,
perdeu-se por inteiro.
até aquilo que, por primeiro
Até mesmo a luz do diamante se apagar, ficou mais oculto:
findou cegando-se no longe. o homem, que é o núcleo
Sua ponta já rombuda do núcleo do seu núcleo.
tanto chumbo não rompe.
MELO NETO, João Cabral de. Quaderna (1959),
Tanto chumbo como o que cobre In: Obras completas. Rio de Janeiro: Nova
todas as coisas aqui fora. Aguilar, 1994, pp. 227-232
Já agora Pernambuco

61
O cão sem plumas de folhas duras e crespos
como um negro.
I. Paisagem do Capibaribe
Liso como o ventre
A cidade é passada pelo rio de uma cadela fecunda,
como uma rua o rio cresce
é passada por um cachorro; sem nunca explodir.
uma fruta Tem, o rio,
por uma espada. um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.
O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão, E jamais o vi ferver
ora o ventre triste de um cão, (como ferve
ora o outro rio o pão que fermenta).
de aquoso pano sujo Em silêncio,
dos olhos de um cão. o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.
Aquele rio
era como um cão sem plumas. Em silêncio se dá:
Nada sabia da chuva azul, em capas de terra negra,
da fonte cor-de-rosa, em botinas ou luvas de terra negra
da água do copo de água, para o pé ou a mão
da água de cântaro, que mergulha.
dos peixes de água,
da brisa na água. Como às vezes
passa com os cães,
Sabia dos caranguejos parecia o rio estagnar-se.
de lodo e ferrugem. Suas águas fluíam então
Sabia da lama mais densas e mornas;
como de uma mucosa. fluíam com as ondas
Devia saber dos polvos. densas e mornas
Sabia seguramente de uma cobra.
da mulher febril que habita as ostras.
Ele tinha algo, então,
Aquele rio da estagnação de um louco.
jamais se abre aos peixes, Algo da estagnação
ao brilho, do hospital, da penitenciária, dos asilos,
à inquietação de faca da vida suja e abafada
que há nos peixes. (de roupa suja e abafada)
Jamais se abre em peixes. por onde se veio arrastando.

Abre-se em flores Algo da estagnação


pobres e negras dos palácios cariados,
como negros. comidos
Abre-se numa flora de mofo e erva-de-passarinho.
suja e mais mendiga Algo da estagnação
como são os mendigos negros. das árvores obesas
Abre-se em mangues pingando os mil açúcares

62
das salas de jantar pernambucanas, é mais
por onde se veio arrastando. que um cão saqueado;
é mais
(É nelas, que um cão assassinado.
mas de costas para o rio,
que "as grandes famílias espirituais" da Um cão sem plumas
cidade é quando uma árvore sem voz.
chocam os ovos gordos É quando de um pássaro
de sua prosa. suas raízes no ar.
Na paz redonda das cozinhas, É quando a alguma coisa
ei-las a revolver viciosamente roem tão fundo
seus caldeirões até o que não tem).
de preguiça viscosa).
O rio sabia
Seria a água daquele rio daqueles homens sem plumas.
fruta de alguma árvore? Sabia
Por que parecia aquela de suas barbas expostas,
uma água madura? de seu doloroso cabelo
Por que sobre ela, sempre, de camarão e estopa.
como que iam pousar moscas?
Ele sabia também
Aquele rio dos grandes galpões da beira dos cais
saltou alegre em alguma parte? (onde tudo
Foi canção ou fonte é uma imensa porta
Em alguma parte? sem portas)
Por que então seus olhos escancarados
vinham pintados de azul aos horizontes que cheiram a gasolina.
nos mapas?
E sabia
II. Paisagem do Capibaribe da magra cidade de rolha,
onde homens ossudos,
Entre a paisagem onde pontes, sobrados ossudos
o rio fluía (vão todos
como uma espada de líquido espesso. vestidos de brim)
Como um cão secam
humilde e espesso. até sua mais funda caliça.

Entre a paisagem Mas ele conhecia melhor


(fluía) os homens sem pluma.
de homens plantados na lama; Estes
de casas de lama secam
plantadas em ilhas ainda mais além
coaguladas na lama; de sua caliça extrema;
paisagem de anfíbios ainda mais além
de lama e lama. de sua palha;
mais além
Como o rio da palha de seu chapéu;
aqueles homens mais além
são como cães sem plumas até
(um cão sem plumas da camisa que não têm;
63
muito mais além do nome já não está
mesmo escrito na folha mais aquém do homem;
do papel mais seco. mais aquém do homem
ao menos capaz de roer
Porque é na água do rio os ossos do ofício;
que eles se perdem capaz de sangrar
(lentamente na praça;
e sem dente). capaz de gritar
Ali se perdem se a moenda lhe mastiga o braço;
(como uma agulha não se perde). capaz
Ali se perdem de ter a vida mastigada
(como um relógio não se quebra). e não apenas
dissolvida
Ali se perdem (naquela água macia
como um espelho não se quebra. que amolece seus ossos
Ali se perdem como amoleceu as pedras).
como se perde a água derramada:
sem o dente seco III. Fábula do Capibaribe
com que de repente
num homem se rompe A cidade é fecundada
o fio de homem. por aquela espada
que se derrama,
Na água do rio, por aquela
lentamente, úmida gengiva de espada.
se vão perdendo
em lama; numa lama No extremo do rio
que pouco a pouco o mar se estendia,
também não pode falar: como camisa ou lençol,
que pouco a pouco sobre seus esqueletos
ganha os gestos defuntos de areia lavada.
da lama;
o sangue de goma, (Como o rio era um cachorro,
o olho paralítico o mar podia ser uma bandeira
da lama. azul e branca
desdobrada
Na paisagem do rio no extremo do curso
difícil é saber — ou do mastro — do rio.
onde começa o rio;
onde a lama Uma bandeira
começa do rio; que tivesse dentes:
onde a terra que o mar está sempre
começa da lama; com seus dentes e seu sabão
onde o homem, roendo suas praias.
onde a pele
começa da lama; Uma bandeira
onde começa o homem que tivesse dentes:
naquele homem. como um poeta puro
polindo esqueletos,
Difícil é saber como um roedor puro,
se aquele homem um polícia puro
64
elaborando esqueletos, a outros rios
o mar, numa laguna, em pântanos
com afã, onde, fria, a vida ferve.
está sempre outra vez lavando
seu puro esqueleto de areia. Junta-se o rio
a outros rios.
O mar e seu incenso, Juntos,
o mar e seus ácidos, todos os rios
o mar e a boca de seus ácidos, preparam sua luta
o mar e seu estômago de água parada,
que come e se come, sua luta
o mar e sua carne de fruta parada.
vidrada, de estátua,
seu silêncio, alcançado (Como o rio era um cachorro,
como o mar era uma bandeira,
à custa de sempre dizer aqueles mangues
a mesma coisa, são uma enorme fruta:
o mar e seu tão puro
professor de geometria). A mesma máquina
paciente e útil
O rio teme aquele mar de uma fruta;
como um cachorro a mesma força
teme uma porta entretanto aberta, invencível e anônima
como um mendigo, de uma fruta
a igreja aparentemente aberta. — trabalhando ainda seu açúcar
depois de cortada —.
Primeiro,
o mar devolve o rio. Como gota a gota
Fecha o mar ao rio até o açúcar,
seus brancos lençóis. gota a gota
O mar se fecha até as coroas de terra;
a tudo o que no rio como gota a gota
são flores de terra, até uma nova planta,
imagem de cão ou mendigo. gota a gota
até as ilhas súbitas
Depois, aflorando alegres).
o mar invade o rio.
Quer IV. Discurso do Capibaribe
o mar
destruir no rio Aquele rio
suas flores de terra inchada, está na memória
tudo o que nessa terra como um cão vivo
pode crescer e explodir, dentro de uma sala.
como uma ilha, Como um cão vivo
uma fruta. dentro de um bolso.
Como um cão vivo
Mas antes de ir ao mar debaixo dos lençóis,
o rio se detém debaixo da camisa,
em mangues de água parada. da pele.
Junta-se o rio
65
Um cão, porque vive, a fome que a vê.
é agudo.
O que vive Aquele rio
não entorpece. é espesso
O que vive fere. como o real mais espesso.
O homem, Espesso
porque vive, por sua paisagem espessa,
choca com o que vive. onde a fome
Viver estende seus batalhões de secretas
é ir entre o que vive. e íntimas formigas.

O que vive E espesso


incomoda de vida por sua fábula espessa;
o silêncio, o sono, o corpo pelo fluir
que sonhou cortar-se de suas geleias de terra;
roupas de nuvens. ao parir
O que vive choca, suas ilhas negras de terra.
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso Porque é muito mais espessa
como um cão, um homem, a vida que se desdobra
como aquele rio. em mais vida,
como uma fruta
Como todo o real é mais espessa
é espesso. que sua flor;
Aquele rio como a árvore
é espesso e real. é mais espessa
Como uma maçã que sua semente;
é espessa. como a flor
Como um cachorro é mais espessa
é mais espesso do que uma maçã. que sua árvore,
Como é mais espesso etc. etc.
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro. Espesso,
Como é mais espesso porque é mais espessa
um homem a vida que se luta
do que o sangue de um cachorro. cada dia,
Como é muito mais espesso o dia que se adquire
o sangue de um homem cada dia
do que o sonho de um homem. (como uma ave
que vai cada segundo
Espesso conquistando seu voo).
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã III. Fábula do Capibaribe
é muito mais espessa
se um homem a come A cidade é fecundada
do que se um homem a vê. por aquela espada
Como é ainda mais espessa que se derrama,
se a fome a come. por aquela
Como é ainda muito mais espessa úmida gengiva de espada.
se não a pode comer
66
No extremo do rio Primeiro,
o mar se estendia, o mar devolve o rio.
como camisa ou lençol, Fecha o mar ao rio
sobre seus esqueletos seus brancos lençóis.
de areia lavada. O mar se fecha
a tudo o que no rio
(Como o rio era um cachorro, são flores de terra,
o mar podia ser uma bandeira imagem de cão ou mendigo.
azul e branca
desdobrada Depois,
no extremo do curso o mar invade o rio.
— ou do mastro — do rio. Quer
o mar
Uma bandeira destruir no rio
que tivesse dentes: suas flores de terra inchada,
que o mar está sempre tudo o que nessa terra
com seus dentes e seu sabão pode crescer e explodir,
roendo suas praias. como uma ilha,
uma fruta.
Uma bandeira
que tivesse dentes: Mas antes de ir ao mar
como um poeta puro o rio se detém
polindo esqueletos, em mangues de água parada.
como um roedor puro, Junta-se o rio
um polícia puro a outros rios
elaborando esqueletos, numa laguna, em pântanos
o mar, onde, fria, a vida ferve.
com afã,
está sempre outra vez lavando Junta-se o rio
seu puro esqueleto de areia. a outros rios.
Juntos,
O mar e seu incenso, todos os rios
o mar e seus ácidos, preparam sua luta
o mar e a boca de seus ácidos, de água parada,
o mar e seu estômago sua luta
que come e se come, de fruta parada.
o mar e sua carne
vidrada, de estátua, (Como o rio era um cachorro,
seu silêncio, alcançado como o mar era uma bandeira,
à custa de sempre dizer aqueles mangues
a mesma coisa, são uma enorme fruta:
o mar e seu tão puro
professor de geometria). A mesma máquina
paciente e útil
O rio teme aquele mar de uma fruta;
como um cachorro a mesma força
teme uma porta entretanto aberta, invencível e anônima
como um mendigo, de uma fruta
a igreja aparentemente aberta. — trabalhando ainda seu açúcar
depois de cortada —.
67
Como uma maçã
Como gota a gota é espessa.
até o açúcar, Como um cachorro
gota a gota é mais espesso do que uma maçã.
até as coroas de terra; Como é mais espesso
como gota a gota o sangue do cachorro
até uma nova planta, do que o próprio cachorro.
gota a gota Como é mais espesso
até as ilhas súbitas um homem
aflorando alegres). do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
IV. Discurso do Capibaribe o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.
Aquele rio
está na memória Espesso
como um cão vivo como uma maçã é espessa.
dentro de uma sala. Como uma maçã
Como um cão vivo é muito mais espessa
dentro de um bolso. se um homem a come
Como um cão vivo do que se um homem a vê.
debaixo dos lençóis, Como é ainda mais espessa
debaixo da camisa, se a fome a come.
da pele. Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
Um cão, porque vive, a fome que a vê.
é agudo.
O que vive Aquele rio
não entorpece. é espesso
O que vive fere. como o real mais espesso.
O homem, Espesso
porque vive, por sua paisagem espessa,
choca com o que vive. onde a fome
Viver estende seus batalhões de secretas
é ir entre o que vive. e íntimas formigas.

O que vive E espesso


incomoda de vida por sua fábula espessa;
o silêncio, o sono, o corpo pelo fluir
que sonhou cortar-se de suas geleias de terra;
roupas de nuvens. ao parir
O que vive choca, suas ilhas negras de terra.
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso Porque é muito mais espessa
como um cão, um homem, a vida que se desdobra
como aquele rio. em mais vida,
como uma fruta
Como todo o real é mais espessa
é espesso. que sua flor;
Aquele rio como a árvore
é espesso e real. é mais espessa
68
que sua semente; porém de perto seus sobrados
como a flor revelam esse fio gasto
é mais espessa
que sua árvore, Da madeira muito roçada,
etc. etc. das paredes muito caiadas,
de ancas redondas, usuais,
Espesso, nas casas velhas e animais.
porque é mais espessa
a vida que se luta Porque Olinda, uma Olinda baixa,
cada dia, se mistura com o mar na praia:
o dia que se adquire que é por onde vão se infiltrar
cada dia em seu corpo os cupins do mar.
(como uma ave
que vai cada segundo 3
conquistando seu vôo). Os arrebaldes do Recife
Não opõem os mesmo diques
MELO NETO, João Cabral de. O cão sem plumas
contra o rio que em horas é
(1950). In: Obras completas. Rio de Janeiro: Nova
o mar disfarçado em maré.
Aguilar, 1994, pp. 103-116

“Paisagens com cupim” Lá o mar entra fundo no rio


e em passos de rio, corredios,
1
derrama-se em todos os tanques
O Recife cai sobre o mar por onde a salmoura dos mangues.
sem dele se contaminar.
O Recife cai em cidade, O mar lá vai de água parda,
Cai sobre o mar, contra: em laje. de rio, de boca calada.
É água de mar, também salobra.
Cai como um prato de metal Só que sonolenta e mais gorda.
sobre outro prato de metal
sabe cair: limpo e exato E lá não se infiltra, quando,
e sem contágio: em só contato. o mar rói: corrompe inchando.
Não traz cupins de fome enxuta.
Cai como cidade que caia Traz úmidos bichos de fruta.
vertical e reta, sem praia.
cai em cais de cimento, em porto, 4
em ilhas de aresta e contorno. As vilas entre coqueirais
(as muitas Itamaracás)
O Recife cai na água isento. mais que as constroem tal cupim:
Bem calafetado o cimento: ele mesmo as modela assim.
ao dente da ostra, ou sua raiz,
aos bichos do mar, seus cupins. São aldeias leves de palha,
plantadas raso sobre a praia
2 com os escavados materiais
Olinda não usa cimento. que o cupim trabalha e o mar traz.
Usa um tijolo farelento.
Mesmo com tanta geometria São menos da terra que da onda:
Olinda é já de alvenaria. tem as cavernas das esponjas,
das pedras-pomes das madeiras
Vista de longe (tantos cubos) que o mar abandona a areia.
ela anuncia um perfil duro.
69
Menos da terra que do mar: Nada ali se gasta de fora,
dos cupins que ele faz medrar qual coisa que em coisa se choca.
e dão a tudo a carne leve
que o mar quer nas coisas que leve. Tudo se gasta, mas de dentro:
o cupim entra os póros, lento,
5 e por mil túneis, mil canais
As cidades do canavial, as coisas desfia e desfaz.
escava-as um cupim igual.
Ou outra espécie de cupim, Por fora o manchado reboco
já que o mar cai longe dali. vai-se afrouxando, mais poroso,
enquanto desfaz-se, intestina,
Igaraçú, Sinhaém, o Cabo, o que era parede, em farinha.
Ipojuca e também
Muribeca, Rio Formoso: E não se gasta com choques,
há algo comido em seu estofo. mas de dentro, tão pouco explode.
Tudo ali sofre a morte mansa
E outras ainda mais de dentro: do que não quebra, se desmancha.
Nazaré, Aliança, São Lourenço:
imitam no estilo, no jeito, 8
casas de cupim, cupinzeiros. No canavial, antiga Mata,
a vida está toda bichada.
Cidades também em colinas, Bichada em coisas pouco densas,
do mesmo tijolo em Olinda, coisas sem peso, pela doença.
também minadas por marés
(ora de cana) pelos pés. Bichada até a carne rala da bucha
e do pau-de-jangada.
6 Até a natureza poída,
A paisagem do canavial porém inchada, da cortiça.
Não encerra quase metal.
Tudo parece encorajar
o cupim de cana ou de mar. Eis o cupim fazendo a vez
do mestre-de-obras português:
Não só cidades, outras coisas: finge robustez na matéria
os engenhos com suas moitas carcomida pela miséria.
e até mesmo os ferros mais pobres
das moendas e tachas de cobre. Eis os pais de nosso barroco,
de ventre solene mas oco
Tudo carrega o seu caruncho. e gesto pomposo e redondo
Tudo: desde o vivo ao defunto. na véspera mesma do escombro.
Da embaúba das capoeiras
à economia canavieira. 9
Certas cidades de entre a cana
Em tudo paira o abandono (Escada, Jaboatão, Goiana)
de meia morte ou pleno sono, procuraram se armar com aço
e esse deixar-se imovelmente contra a vocação do bagaço.
próprio da planta e do demente.
Mas o aço tomado deu mal:
7 não se fecharam ao canavial
No canavial tudo se gasta e somente em bairros pequenos
pelo miolo, não pela casca. seu barro salvou-se em cimento.
70
o vasto espaço que sobra
E nelas (como nas usinas, de tua gaiola-ilha
que de aço também se vacinam,
nas quais só a custo a ferragem vive, é como outra gaiola
azul, nos meses de moagem) igual que o mar: sem medida
e aberto em todos os lados
a cana latifúndia em volta,
(menos no que te limita).
com cupins que ela cria e solta,
penetra ainda fundo: combate-as Pois nessa gaiola externa
até a soleira das fábricas.
onde tudo tem cabida,
10 onde cabe Pernambuco
O Recife, só, chegou a cristal e o resto da geografia,
em toda mata e Litoral:
o Recife e a máquina sadia três bilhões de humanidade
que bate em Moreno e em Paulista. e até canaviais de usina
sei que se debate um pássaro
Essas existem matemáticas que a acha pequena ainda.
no alumínio de suas fábricas.
Essas têm a carne limpa, Tal gaiola para ele
embora feia, em série, fria. mais do que gaiola é brida;
como cárcere lhe aperta
O cupim não lhes dá combate:
sua gaiola infinita
nelas motores vivos batem
que sabem que enquanto funcionem e lhe aperta exatamente
nenhuma ferrugem os come.
por essa parede mínima
Mas nem na Mata nem no Litoral em que sua gaiola-mundo
há mais desse aço industrial com a tua faz divisa.
para opor-se ao cupim ao podre
que o mar canavial traz ou fosse. Contra essa curta parede
entre ti e ele contígua,
MELO NETO, João Cabral de. “Paisagens com cupim” que te defende e para ele
in Quaderna (1959). In: Obras completas. Rio de é de força, se é camisa,
Janeiro: Nova Aguilar, 1994, pp. 235-240
todo o dia se debate
“Mulher vestida de gaiola”
a sua força expansiva
Parece que vives sempre (não de pássaro, de enchente
de uma gaiola envolvida, de enchente do mar de Olinda)
isenta, numa gaiola,
Por que ele a quem sua gaiola
de uma gaiola vestida,
de outros lados limita,
de uma gaiola, cortada deseja invadir o espaço
em tua exata medida de nada que tu lhe tiras?
numa matéria isolante:
por que deseja assaltar
gaiola-blusa ou camisa.
precisamente a área estrita
E assim como tu resides da gaiola em que resides,
nessa gaiola, cingida, melhor: de que estás vestida?
71
MELO NETO, João Cabral de. “Paisagens com cupim” MELO NETO, João Cabral de. “Paisagens com cupim”
in Quaderna (1959) in: Obras completas. Rio de in Quaderna (1959). in: Obras completas. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1994, pp. 261-262 Janeiro: Nova Aguilar, 1994, pp. 241-242

“A mulher e a casa”

Tua sedução é menos


de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui


tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca


só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,


ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram


com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:


seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem


estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem


efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.

72
ANEXO II
i - Um “pregão turístico” atual13

Recife - Pernambuco - Brasil

RECIFE - ANIMAÇÃO E HISTÓRIA SE ENCONTRAM AQUI!

Recife, terra do frevo e fervor... Da simpatia inata que torna o seu povo mestre na arte
da hospitalidade a seus visitantes. Para você, que anda pensando em conhecer essa
cidade, a XXX oferece excelentes pacotes de viagens, capazes de tornar essa opção
turística a melhor da sua vida!

E que tal seguir uma dica valiosa? Escolha um pacote pela XXX e desfrute das riquezas
históricas e culturais desse paraíso nordestino que carrega em sua essência traços fortes
e características particulares. Recife é, por assim dizer, o reduto da alegria. Também
não é para menos, afinal seu clima tropical dispõe de temperaturas suficientemente
equilibradas, aptas a manter o sol de verão praticamente o ano todo. Entre as atrações de
um dos principais destinos turísticos do Brasil, está a praia de Boa Viagem, que possui
7 km de extensão, sendo considerada a orla mais famosa do local.

Vale ressaltar que Recife recebeu o título de ''Veneza Brasileira'', graças à arquitetura
marcada por muitas pontes e rios em meio a sua paisagem urbana. Há quem diga que a
capital pernambucana é reconhecida como um dos mais importantes centros de
produção artística e cultural do Brasil. Esse fato é incontestável, afinal este é o berço de
escritores, poetas, músicos e outras expressões. Difícil não lembrar Manuel Bandeira,
Nélson Rodrigues e Lauro Villares, nomes exponenciais e memoráveis,
respectivamente, na literatura e artes plásticas. Se você curtiu esse roteiro, não perca
tempo e viaje com a gente. Teremos prazer em transformar seu sonho em realidade!

Disponível em
<http://www.parceiroscvc.com.br/site/turismo/1,34,1,s,recife;jsessionid=27B836CB3D1AA6F7652C482
D846AE2E4.node3?par=cvc2&codigoIdioma=1&codigoDestinoTuristico=34&>. Acessado em
22/10/2012

13
Propaganda de pacotes turísticos para o Recife, de uma agência de turismo.
73
ii – Rua da Aurora

O grande destaque da rua da Aurora são suas edificações que incluem sobrados de dois
e três andares, o Ginásio Pernambucano, em estilo toscano, e a Assembleia Legislativa,
com arquitetura romana. No passado, o trecho onde ficava essa rua e a do Hospício era
coberto de mangues. Localizada à margem esquerda do rio Capibaribe possui esse nome
por estar voltada ao lado leste, sendo a primeira a receber os raios de sol.

Disponível em <http://www.fekaturviagens.com.br/index.php?pag=detalhes&cod=36>.
Acesso em 22/10/2012

Foto: Rafael Rezende

http://olhares.uol.com.br/rua-da-aurora-recife-pe-foto2715160.html. Acesso em 27/10/12

74
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estudos sobre Antônio Cândido, Gilda de Melo e Souza e Lúcio Costa. São Paulo:
Paz e terra, 1997

ATHAYDE, Félix. Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1998

BISCHOF, Betina. “Matéria informe e forma lúcida em O cão sem plumas de João
Cabral de Melo Neto” in Anais do XI Congresso Nacional da ABRALIC, 2008.
Disponível em:
<http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/040/BETINA_B
ISCHOF.pdf> Acesso em 31/10/2012.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2003

CÂNDIDO, Antônio. A educação pela noite. São Paulo: Ouro sobre Azul, 2006

_________________. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Itatiaia, 1997,


vol. 1

_________________. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Itatiaia, 1976,


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_________________. Textos de intervenção. Org. DANTAS, Vinícius. São Paulo:


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Brasileira/ João Cabral de Melo Neto. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1996.

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LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995

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SECCHIN, Antônio Carlos. João Cabral: a poesia do menos e outros ensaios


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VIZEU, Homero. O poema no sistema. Rio Grande do Sul: Editora UFRGS, 2002

WEBER, João Ernesto. “Modernismo”. Do modernismo à nova narrativa. Porto


Alegre: Metrópole, 1976

76

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