Um Teto Todo Seu - Virginia Woolf
Um Teto Todo Seu - Virginia Woolf
Um Teto Todo Seu - Virginia Woolf
ROBERTO JANNARELLI
ISABEL RODRIGUES
CAROLINA LEAL
DAFNE BORGES
Comunicação
MAYRA MEDEIROS
GABRIELA BENEVIDES
JULIA COPPA
Preparação
ISADORA PROSPERO
Revisão
GIOVANA BOMENTRE
NATÁLIA MORI MARQUES
Cotejo
KARINA NOVAIS
Capa
FILIPE ACA
HANA LUZIA
Diagramação
DESENHO EDITORIAL
TRADUÇÃO E NOTAS:
VANESSA BARBARA
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
1.
Mas, vocês podem dizer, pedimos para você falar sobre mulheres e
ficção — o que isso tem a ver com um quarto só seu?1 Vou tentar explicar.
Quando vocês me pediram para falar sobre mulheres e ficção, sentei-me
à beira de um rio e comecei a pensar sobre o que essas palavras
significavam. Elas poderiam apenas implicar em algumas observações
sobre Fanny Burney; algumas outras sobre Jane Austen; um tributo às
irmãs Brontë e uma descrição do presbitério de Haworth sob a neve;
algumas gracinhas sobre a srta. Mitford, se possível; uma alusão
respeitosa a George Eliot; uma referência à sra. Gaskell,2 e pronto, seria
o suficiente. Mas, à segunda vista, as palavras não me pareceram tão
simples. O título “As mulheres e a ficção” poderia significar, como vocês
talvez tenham desejado, as mulheres e como elas são, ou as mulheres e a
ficção que elas escrevem; ou poderia significar as mulheres e a ficção que
se escreve sobre elas; ou talvez essas três opções estejam
inextricavelmente emaranhadas e vocês gostariam que eu as
considerasse sob esse ponto de vista. Mas, quando comecei a examinar o
assunto sob esta última ótica, que me pareceu a mais interessante, eu
logo vi que havia nela um empecilho fatal. Eu nunca seria capaz de
chegar a uma conclusão. Nunca conseguiria cumprir aquilo que, a meu
ver, é a principal obrigação de um palestrante: entregar, após uma hora
de discurso, uma pura pepita de verdade que vocês possam resumir nas
páginas dos seus cadernos e manter na mesinha de cabeceira para
sempre. Tudo o que eu podia oferecer era uma opinião sobre um tópico
menor: de que uma mulher, para escrever ficção, precisa ter dinheiro e
um quarto só seu; e isso, como vocês irão ver, não resolve o problema
maior da verdadeira natureza da mulher e da verdadeira natureza da
ficção. Eu me esquivei da tarefa de chegar a uma conclusão sobre essas
duas questões — as mulheres e a ficção continuam, até onde eu sei,
problemas não resolvidos. Mas, como forma de compensação, farei o
possível para mostrar a vocês como cheguei a essa conclusão sobre o
quarto e o dinheiro. Vou desenvolver diante de vocês, da forma mais
completa e livre, a linha de raciocínio que me levou a pensar dessa
forma. Talvez, se eu evidenciar as ideias e os preconceitos que se
escondem por trás dessa afirmação, vocês descubram que elas têm
relação tanto com as mulheres como com a ficção. Em todo caso, quando
um assunto é altamente controverso — como em qualquer questão
relativa a sexo —, não temos como pretender dizer a verdade. Só é
possível mostrar como se chegou a determinada opinião. Só é possível
dar à plateia a chance de tecer as próprias conclusões a partir das
limitações, dos preconceitos e das idiossincrasias do orador. É mais
provável que, nesse caso, a ficção contenha mais verdade do que os fatos.
Portanto, a minha proposta é contar, fazendo uso de todas as liberdades e
permissões de uma romancista, a história de dois dias que precederam
minha vinda a este local — como, curvada sob o peso do assunto que me
foi depositado nos ombros, eu ponderei a questão, enquanto a inseria e a
desenvolvia em meu dia a dia. Nem é preciso dizer que o que vou
descrever não existe; Oxbridge é uma invenção, assim como Fernham;3 o
“eu” é apenas um termo oportuno para alguém que não existe de verdade.
Meus lábios deixarão fluir muitas mentiras, mas haverá talvez alguma
verdade no meio delas; cabe a vocês buscar essa verdade e decidir se vale
a pena guardar alguma coisa. Se não valer, é claro, vocês irão jogar tudo
no lixo e esquecer o assunto.
Então lá estava eu (podem me chamar de Mary Beton, Mary Seton,
Mary Carmichael ou qualquer outro nome que preferirem, não tem
nenhuma importância),4 sentada às margens de um rio duas ou três
semanas atrás, num clima agradável de outubro, perdida em
pensamentos. Aquele fardo sobre o qual já falei — as mulheres e a ficção,
a necessidade de chegar a alguma conclusão sobre um assunto que
provoca todo tipo de preconceitos e paixões — pesava fortemente sobre
os meus ombros, encurvando minha cabeça até o chão. À direita e à
esquerda, alguns arbustos dourados e rubros brilhavam com uma cor
vibrante, pareciam até queimados pelo calor do fogo. Na margem oposta,
salgueiros choravam em um lamento perpétuo, os cabelos à altura dos
ombros. O rio refletia trechos à escolha de céu, ponte e árvore
flamejante, e, depois que um estudante passava com seu barco através
desses reflexos, eles se fechavam de novo, completamente, como se o
estudante nunca tivesse existido. Lá, alguém poderia deixar o relógio dar
voltas completas enquanto se perdia em pensamentos. O pensamento —
para usar uma palavra mais solene do que ele merecia — havia baixado
sua linha na correnteza. Ficou boiando, minuto após minuto, balançando
para lá e para cá entre os reflexos e as algas, deixando que a água o
erguesse e o afundasse até que… Bem, vocês conhecem aquele pequeno
puxão: a súbita aglomeração de uma ideia na ponta da linha, e então seu
recolhimento cauteloso e o momento de esticá-la caprichosamente?
Mas, ai!, como parecia pequeno e insignificante aquele meu pensamento
que eu via agora estendido na grama; o tipo de peixe que um bom
pescador devolve à água para que possa engordar e um dia ser digno de se
cozinhar e comer. Não irei incomodá-las com esse pensamento agora,
embora vocês possam descobri-lo por si mesmas no decorrer daquilo
que irei dizer, caso procurem com cuidado.
Mas, ainda que fosse pequeno, ele possuía a propriedade misteriosa de
sua espécie: quando devolvido à mente, se tornava de uma só vez muito
estimulante e importante. Conforme arremetia e afundava, ressurgindo
aqui e ali, provocava tamanho turbilhão e tumulto de ideias que para
mim era impossível ficar parada. Foi assim que me vi andando muito
depressa por um terreno gramado. Na mesma hora, surgiu a silhueta de
um homem para me deter. A princípio, não entendi que os gestos daquele
pitoresco objeto, de fraque e camisa, eram dirigidos a mim. Seu rosto
expressava horror e indignação. O instinto, no lugar da razão, veio em
meu socorro: ele era um bedel e eu era uma mulher. Aqui era o gramado;
lá estava a trilha. Apenas os alunos e professores podiam percorrer o
gramado; o cascalho era o meu lugar. Tais pensamentos foram
instantâneos. Conforme eu retomava a trilha, os braços do bedel
baixaram, seu rosto assumiu a serenidade habitual e, embora o gramado
seja mais agradável de percorrer do que o cascalho, nenhum grande dano
foi registrado. A única acusação que posso fazer contra os alunos e
professores daquela faculdade — qualquer que fosse ela — é que, para
proteger seu gramado, que vinha sendo aparado nos últimos trezentos
anos, eles acabaram por espantar meu peixinho.
Já não lembrava mais qual ideia havia me levado a cometer uma
invasão tão audaciosa. O espírito da paz baixou como uma nuvem do céu,
pois, se o espírito da paz paira em algum lugar, é nos pátios e átrios de
Oxbridge em uma bela manhã de outubro. Ao vagar por essas faculdades
e atravessar esses antigos átrios, a aspereza do presente parecia
suavizar-se; o corpo parecia encerrar-se em uma redoma de vidro
milagrosa que nenhum som era capaz de penetrar; e a mente, livre de
qualquer contato com os fatos (a menos que alguém invadisse o gramado
de novo), tinha a permissão de deter-se em qualquer reflexão que
estivesse em harmonia com o momento. Por obra do acaso, me veio à
mente a lembrança desgarrada de um ensaio de Charles Lamb sobre uma
visita a Oxbridge nas férias — santo Charles, de acordo com Thackeray,
pressionando uma de suas cartas contra a testa.5 De fato, entre todos os
mortos (conto a vocês meus pensamentos como eles se apresentaram a
mim), Lamb é um dos mais simpáticos, alguém a quem se tem vontade de
perguntar: “E então, como você escreveu seus ensaios?”. Pois os dele são
superiores inclusive aos de Max Beerbohm6, pensei, a despeito de toda a
perfeição destes últimos, graças àquele louco lampejo de imaginação,
àquela explosão luminosa de genialidade que os torna falhos e
imperfeitos, mas cravejados de poesia. Lamb veio a Oxbridge talvez uns
cem anos atrás. Sem dúvida ele escreveu um ensaio — cujo nome me
escapa7 — sobre o manuscrito de um dos poemas de Milton8 que ele leu
aqui. O poema era “Lycidas”, talvez, e Lamb contou como ficou chocado
só de pensar que era possível que qualquer palavra em “Lycidas” pudesse
ter sido diferente do que era. Pensar em Milton alterando as palavras
daquele poema lhe parecia uma espécie de sacrilégio. Isso me levou a
relembrar o que pude de “Lycidas” e me divertir adivinhando qual
palavra poderia ter sido alterada por Milton, e por quê. Então me ocorreu
que o próprio manuscrito que Lamb consultara estava a poucos metros
dali, de modo que seria possível seguir os passos de Lamb pelo átrio até a
famosa biblioteca onde o tesouro é mantido.9 Mais que isso: lembrei,
enquanto botava o plano em ação, que nessa famosa biblioteca também
se encontra o manuscrito de Esmond, de Thackeray. Muitos críticos
dizem que Esmond é o romance mais perfeito do autor. Mas, pelo que eu
me lembro, a afetação do estilo, com sua paródia ao século XVIII, é um
grande empecilho. A menos, é claro, que o estilo oitocentista fosse
natural a Thackeray — fato que alguém conseguiria provar consultando
o manuscrito e vendo se as alterações ocorreram em benefício do estilo
ou do sentido. Mas então essa pessoa teria de decidir o que é estilo e o
que é significado, uma questão que… mas lá estava eu diante da porta que
levava à biblioteca. Devo tê-la aberto, pois instantaneamente surgiu,
feito um anjo da guarda barrando o caminho, com o farfalhar de uma
túnica preta em lugar de asas brancas, um cavalheiro indignado, grisalho
e gentil, que, gesticulando-me para sair, lamentou em voz baixa que o
acesso à biblioteca só era permitido a mulheres acompanhadas de um
membro da faculdade ou munidas de uma carta de apresentação.
Que uma famosa biblioteca tenha sido amaldiçoada por uma mulher é
um assunto de total indiferença para essa famosa biblioteca. Venerável e
calma, com todos os seus tesouros trancados em segurança em seu seio,
ela dorme tranquilamente e irá, pelo que me consta, dormir para sempre.
Jamais despertarei esses ecos, jamais clamarei por sua hospitalidade
outra vez — jurei conforme descia os degraus, com raiva. Ainda faltava
uma hora para o almoço, e o que eu podia fazer? Passear pelos prados?
Sentar-me à beira do rio? Certamente era uma bela manhã de outono; as
folhas faziam dançar sombras vermelhas no chão e eu não teria
nenhuma dificuldade em executar qualquer uma dessas atividades. Mas
o som de música chegou aos meus ouvidos. Alguma missa ou celebração
estava em curso. O órgão soltou um lamento magnífico quando passei em
frente à porta da capela. Naquele ar sereno, até a aflição da cristandade
soava mais uma lembrança de aflição do que aflição em si; até os
grunhidos do órgão antigo pareciam envoltos em paz. Eu não tinha
nenhuma vontade de entrar, mesmo se por acaso tivesse o direito — e
dessa vez talvez o sacristão tivesse me barrado, exigindo a minha
certidão de batismo ou uma carta de apresentação do reitor. Mas a parte
externa dessas construções magníficas é, em geral, tão bela quanto seu
interior. Mais que isso: era suficientemente interessante assistir à
congregação se reunindo, entrando e saindo de novo, ocupando-se à
porta da capela como abelhas à entrada de uma colmeia. Muitos vestiam
beca e barrete, alguns tinham estolas de pele sobre os ombros;10 havia
ainda os que eram conduzidos em cadeira de rodas ou aqueles que,
mesmo que ainda não tivessem chegado à meia-idade, pareciam
enrugados e amassados em formas tão peculiares que lembravam
crustáceos gigantes se movendo com dificuldade pela areia de um
aquário. Conforme eu me recostava ao muro, a universidade de fato
parecia um santuário no qual viviam espécies raras e preservadas que
rapidamente se tornariam obsoletas se tivessem de lutar pela própria
sobrevivência nas ruas. Me vieram à mente velhas histórias de velhos
reitores e de velhos professores, mas, antes que eu tivesse reunido a
coragem de assoviar — diziam que, ao som de um assovio, havia um velho
professor que disparava em galope —, a venerável congregação já tinha
entrado. O exterior da capela permaneceu. Como vocês sabem, suas altas
cúpulas e seus pináculos têm iluminação noturna e podem ser vistos,
como um barco sempre navegando e nunca chegando, a quilômetros de
distância, muito além das colinas.11 Presume-se que um dia o átrio em si
— com seus gramados perfeitos, edifícios portentosos e a capela — tenha
sido um pântano também, onde o mato ondulava e a terra era remexida
por porcos. Parelhas de cavalos e bois, pensei, devem ter transportado as
pedras em carroças, vindas de locais distantes, e então, com um esforço
imenso, os blocos cinzentos à sombra dos quais eu agora me recostava
foram erguidos em ordem, um sobre o outro; e então os pintores
trouxeram o vidro para as janelas, e os pedreiros se ocuparam por
séculos naquele telhado, usando betume e cimento, pá e colher. Todos os
sábados alguém deve ter vertido ouro e prata de uma bolsa de couro
naquelas mãos antigas, pois tudo indica que à noite eles podiam tomar
cerveja e se divertir. Um fluxo interminável de ouro e prata, pensei, deve
ter jorrado neste pátio para garantir que as pedras continuassem
chegando e os pedreiros trabalhando perpetuamente; para que eles
pudessem nivelar, solapar, cavar e drenar. Mas aquela era a Idade da Fé e
não se economizou dinheiro para erigir essas pedras sobre uma
fundação sólida; e, depois que elas foram erguidas, ainda mais dinheiro
saiu dos cofres de reis, rainhas e nobres para assegurar que ali os hinos
seriam entoados e os acadêmicos lecionariam. Terras foram outorgadas;
dízimos foram pagos. E quando terminou a Idade da Fé e chegou a Era da
Razão, o mesmo fluxo de ouro e prata continuou a correr: bolsas de
pesquisa foram concedidas e cargos acadêmicos foram distribuídos. Só
que o ouro e a prata agora fluíam não dos cofres dos reis, mas dos baús
dos mercadores e industriais, ou seja, do bolso dos homens que fizeram
fortuna com a indústria, por exemplo, e devolveram em seus
testamentos uma parcela generosa dessa riqueza para custear mais
cátedras, mais cargos acadêmicos, mais bolsas de pesquisa na
universidade onde aprenderam seu ofício. Daí as bibliotecas e
laboratórios, os observatórios, o esplêndido acervo de instrumentos
caros e delicados que hoje ficam guardados em estantes de vidro, onde
séculos atrás o mato ondulava e os porcos remexiam a terra. Sem dúvida,
enquanto eu passeava pelo pátio, a fundação de ouro e prata me pareceu
profunda o suficiente; o pavimento fora assentado solidamente sobre o
mato. Homens com bandejas na cabeça subiam, ocupados, os lances de
escada. Flores vistosas desabrochavam nas floreiras. As notas do
gramofone ressoavam dos salões. Era impossível não pensar que… fosse
qual fosse essa reflexão, ela foi interrompida. O relógio soou. Era hora de
ir almoçar.
É curioso como os escritores nos fazem acreditar que os almoços
formais são invariavelmente memoráveis por causa de alguma coisa
muito engraçada que alguém disse ou por algo muito sábio que alguém
fez. Mas raramente dedicam uma palavra ao que foi servido. É parte de
um costume dos escritores não mencionar sopa, salmão e pato, como se
sopa, salmão e pato não tivessem importância alguma, e como se
ninguém jamais fumasse um charuto ou tomasse uma taça de vinho.
Aqui, porém, irei tomar a liberdade de desafiar essa convenção e contar-
lhes que, naquela ocasião,12 o almoço começou com um filé de linguado
— servido em um prato fundo — sobre o qual o cozinheiro da faculdade
espalhou uma camada de um creme muito branco, ainda que marcado
aqui e ali por pontos marrons, como as manchas nos flancos de uma
corça. Depois disso vieram as perdizes, mas, se isso faz vocês pensarem
em um par de aves carecas e marrons metidas em um prato, estão
enganadas. As perdizes, inúmeras e variadas, vieram com todo um
séquito de molhos e saladas, picantes e doces, cada qual a seu tempo; as
batatas eram finas feito moedas e não tão duras; as hortaliças, laminadas
como rosas, porém mais suculentas. E logo que a carne assada e seus
acompanhamentos foram embora, o calado garçom — talvez o próprio
bedel, em uma apresentação mais gentil — depositou diante de nós,
envolto em guardanapos, um doce com protuberantes ondas de açúcar.
Chamá-lo de pudim e assim relacioná-lo a arroz ou tapioca seria um
insulto. Enquanto isso, as taças de vinho se coloriam de amarelo e de
vermelho; eram esvaziadas e enchidas. E assim gradualmente se
acendeu através da espinha dorsal — que é o assento da alma — não
aquela pequena e concreta luz elétrica a que chamamos de brilhantismo,
e que entra e sai pelos nossos lábios, mas um calor mais profundo, sutil e
subterrâneo que é a chama rica e fulgurante da conversa racional. Sem
que precisássemos nos apressar. Sem que precisássemos impressionar
ou ser outra pessoa além de nós mesmos. Todos nós vamos para o céu e
Van Dyck será a nossa companhia13 — em outras palavras, como a vida
parecia boa, como eram doces suas recompensas, como era trivial esse
rancor ou aquele ressentimento, como era admirável a amizade e a
companhia de nossos pares, enquanto, após acender um bom cigarro,
nós nos afundávamos nas almofadas do assento junto à janela.
Se por acaso houvesse um cinzeiro à mão, se as cinzas não tivessem
sido lançadas pela janela de forma automática, se as coisas tivessem sido
um pouco diferentes do que foram, provavelmente eu não teria visto um
gato sem rabo. A visão daquele abrupto e mutilado animal caminhando
suavemente pelo átrio alterou, por um acaso da inteligência
subconsciente, o ângulo emocional para mim. Foi como se alguém
tivesse feito uma sombra. Talvez o excelente vinho branco alemão
estivesse perdendo o efeito. Certamente, conforme eu acompanhava o
gato manês parando no meio do gramado como se ele também estivesse
questionando o universo, algo me pareceu faltar, algo me soou diferente.
Mas o que estava faltando, o que era diferente?, eu me perguntei,
escutando a conversa. E para responder a essa pergunta eu precisei me
imaginar fora da sala, de volta ao passado, antes da guerra,14 e conceber
um outro modelo de almoço formal que ocorreu em salas não muito
distantes daquelas, mas diferentes. Tudo era diferente. Enquanto isso, a
conversa prosseguia entre os convidados, que eram muitos e jovens,
deste ou daquele sexo; a conversa fluía de modo fácil, agradável, livre e
divertido. E conforme ela se desenrolava eu a comparei com aquela outra
conversa, e enquanto fazia isso não tive dúvidas de que uma descendia
da outra, uma era legítima herdeira da outra. Nada havia mudado; nada
era diferente exceto que agora eu não ouvia completamente o que estava
sendo dito, mas o murmúrio ou a corrente por trás das palavras. Sim, era
isso: a mudança era clara. Antes da guerra, em um almoço como aquele,
as pessoas teriam dito exatamente as mesmas coisas, mas teriam soado
diferentes, pois naquela época eram acompanhadas por uma espécie de
zunido — não um ruído articulado, mas algo musical e empolgante, que
alterava o valor das próprias palavras. Seria possível traduzir esse
zunido em palavras? Talvez com a ajuda dos poetas. Havia um livro a
meu lado e, abrindo-o, voltei-me casualmente a Tennyson. E lá estava ele
cantando:
Que poetas!, eu disse em voz alta, como fazemos ao pôr do sol, que
poetas eles eram!
Com uma espécie de inveja geracional, suponho, ainda que sejam tolas
e absurdas tais comparações, fiquei a pensar se era possível citar
honestamente dois poetas contemporâneos tão brilhantes quanto
Tennyson e Christina Rossetti foram então. Era obviamente impossível
compará-los, pensei, fitando aquelas águas espumantes. O próprio
motivo pelo qual esses poemas conduzem o leitor a tamanho abandono e
arrebatamento é que eles celebram um sentimento que se costumava ter
— talvez durante almoços formais antes da guerra —, de modo que nós
respondemos a eles com facilidade e familiaridade, sem nos dar ao
trabalho de conferir a validade desse sentimento ou de compará-lo a
qualquer coisa que experimentamos hoje em dia. Mas os poetas vivos
expressam um sentimento que está de fato sendo criado e arrancado de
nós neste instante. Não o reconhecemos de cara; muitas vezes, por
algum motivo, o tememos; o acompanhamos com avidez e o comparamos
de modo invejoso e desconfiado ao velho sentimento que já conhecemos.
Daí a dificuldade da poesia moderna; e é por causa dessa dificuldade que
não conseguimos recordar mais que duas linhas consecutivas de
qualquer bom poeta moderno. Por esse motivo — de que a memória me
falhava — o argumento se enfraquecia por falta de material. Mas por que,
continuei, encaminhando-me a Headingley, por que paramos de
cantarolar baixinho em almoços formais? Por que Alfred parou de
cantar: “Ela está vindo, minha pomba, minha querida…” e Christina
parou de responder: “Meu coração está mais feliz do que tudo / Porque
meu amor veio a mim”?
Deveríamos culpar a guerra? Quando as armas dispararam em agosto
de 1914, será que os rostos dos homens e mulheres se tornaram tão
desinteressantes uns aos outros que o romance morreu? Certamente foi
um choque (em especial para as mulheres, com suas ilusões sobre
educação e tudo o mais) ver o rosto de nossos governantes à luz dos
bombardeios. Eles pareciam tão feios e estúpidos, os alemães, ingleses e
franceses. Mas podem culpar o que quiserem, e quem quiserem, o fato é
que a ilusão que inspirou Tennyson e Christina Rossetti a cantar de
forma tão apaixonada sobre a vinda de seus amores é muito mais rara
agora do que então. Basta ler, observar, ouvir, relembrar. Mas por que
falar em “culpa”? Se era tudo uma ilusão, por que não enaltecer a
catástrofe, qualquer que fosse, que destruiu a ilusão e colocou a verdade
em seu lugar? Porque a verdade… Essas reticências marcam o ponto no
qual, em busca da verdade, perdi o atalho para Fernham. Sim, de fato, o
que era verdade e o que era ilusão?, fiquei me perguntando. Qual era a
verdade sobre aquelas casas, por exemplo, indistintas e alegres agora,
com suas janelas vermelhas ao pôr do sol, mas brutas, vermelhas e sujas,
com seus doces e cadarços, às nove da manhã? E quanto aos salgueiros, o
rio e os jardins que descem até o rio, agora vagos e ocultos sob a névoa,
mas dourados e vermelhos à luz do dia — qual era a verdade e qual era a
ilusão a respeito deles? Irei poupá-las das idas e vindas das minhas
elucubrações, pois não topei com nenhuma conclusão na estrada a
Headingley; e peço-lhes que acreditem que logo descobri meu erro em
relação ao atalho e refiz meus passos até Fernham.
Como eu já disse que era um dia de outubro, não vou me arriscar a
perder o respeito de vocês nem a comprometer o bom nome da ficção
alterando a estação e descrevendo lilases pendendo de muros, açafrões,
tulipas e outras flores da primavera. A ficção deve se ater aos fatos e,
quanto mais verdadeiros esses fatos, melhor é a ficção — assim nos
dizem. Portanto ainda era outono e as folhas ainda estavam amareladas.
De fato, elas até caíam um pouco mais rapidamente do que antes, pois já
era noite (sete e vinte e três, para ser precisa) e agora soprava uma brisa
(vinda do sudoeste, para ser exata). Mas, a despeito de tudo isso, havia
algo estranho no ar:
1. No original, “A room of one’s own”, que também é o título deste ensaio em inglês. Nesta
edição, optamos por manter o título consagrado em português Um teto todo seu (traduzido
assim pela primeira vez por Vera Ribeiro, em 1985). [N. de E.] ↩
2. Referências a Frances Burney, Jane Austen, Charlotte, Anne e Emily Brontë, Mary Russell
Mitford, George Eliot e Elizabeth Gaskell, renomadas escritoras britânicas dos séculos
XVIII e XIX. [N. de E.] ↩
3. “Oxbridge” é uma combinação entre as universidades Oxford e Cambridge, o que sugere
uma instituição centenária e predominantemente masculina. “Fernham” é uma combinação
entre as faculdades Girton e Newnham, faculdades para mulheres da Universidade de
Cambridge, o que evocaria uma instituição para mulheres de fundação mais recente. [N. de
T.] ↩
4. Alusão à balada escocesa “Mary Hamilton”, do século XVI, que menciona as damas de
companhia da rainha: “There was Mary Beaton and Mary Seton/ And Mary Carmichael and
me” [“Lá estavam Mary Beaton e Mary Seton/ E Mary Carmichael e eu”]. [N. de T.] ↩
5. Referência a um episódio da vida do escritor britânico William Makepeace Thackeray
(1811–1863), que teria se impressionado com o caráter do ensaísta Charles Lamb (1775–
1834) ao ler suas cartas. Segundo a lenda, ele pressionou uma das missivas à testa e
exclamou: “Santo Charles!”. [N. de T.] ↩
6. Sir Henry Maximilian Beerbohm (1872–1956), ensaísta e humorista inglês. [N. de E.] ↩
7. O ensaio se chama “Oxford in the Vacation” [“Oxford nas férias”] e foi publicado na London
Magazine em 1820. Mais tarde, entrou na coletânea The Essays of Elia (1823). [N. de T.] ↩
8. John Milton (1608–1674), um dos mais importantes escritores do Reino Unido. [N. de E.] ↩
9. Tanto o manuscrito do poema “Lycidas” quanto o do romance histórico The History of
Henry Esmond estão na biblioteca do Trinity College, em Cambridge. [N. de T.] ↩
10. Referência aos trajes acadêmicos tradicionais da universidade de Cambridge. [N. de T.] ↩
11. Possivelmente a capela do King’s College, também em Cambridge. [N. de T.] ↩
12. Woolf foi convidada para um almoço no King’s College, da universidade de Cambridge, em
21 de outubro de 1928. [N. de T.] ↩
13. “Todos nós vamos para o céu e Van Dyck será a nossa companhia” foram supostamente as
últimas palavras do pintor britânico Thomas Gainsborough (1727–1788), referindo-se ao
pintor flamengo Antoon Van Dyck (1599–1641). [N. de T.] ↩
14. A autora refere-se à Primeira Guerra Mundial (1914–1918). A Segunda Guerra Mundial
(1939–1945) ainda não começara. [N. de E.] ↩
15. Estrofe do poema “Maud”, do poeta inglês Alfred Tennyson (1809-
-1892), que estudou no Trinity College de Cambridge. [N. de E.] ↩
16. Estrofe do poema “A Birthday”, da poeta inglesa Christina Rossetti (1830–1894). [N. de E.]
↩
17. Aqui a autora traça o caminho verdadeiro entre o King’s College (eminentemente
masculino) e o Newnham College (feminino), ambos na universidade de Cambridge. [N. de
T.] ↩
18. “Headingley” é provavelmente uma combinação entre Madingley, no subúrbio de
Cambridge, e Headington, no subúrbio de Oxford. O lago citado é o Mill Pond, uma espécie
de reservatório diante de um moinho, em Cambridge. [N. de T.] ↩
19. Jane Ellen Harrison (1850–1928), linguista britânica, arqueóloga e professora do Newnham
College. Harrison morreu em abril de 1928. [N. de T.] ↩
20. A personagem Mary Seton é baseada em Joan Pernel Strachey (1876–1951), que foi diretora
do Newnham College de 1923 a 1941. Ela era professora de francês, e não de ciências. [N. de
T.] ↩
21. Referência ao rei Charles I, que foi decapitado em 1649 e enterrado na cripta da capela de
São Jorge, em Windsor. Em 1813, o caixão foi aberto por ordens do príncipe regente. [N. de
T.] ↩
22. “Disseram que devíamos pedir trinta mil libras no mínimo […]. Não é uma quantia grande,
considerando que haveria apenas uma faculdade desse tipo em toda a Grã-Bretanha, Irlanda
e nas colônias, e considerando como é fácil levantar somas imensas para as escolas dos
meninos. Mas levando em conta a quantidade ínfima de pessoas que realmente querem que
as mulheres tenham educação, está ótimo.” Lady [Barbara Nightingale] Stephen, Emily
Davies and Girton College. [N. da A.] ↩
23. “Cada centavo arrecadado foi investido na construção, e as comodidades tiveram de
esperar.” R. Strachey, The Cause: a Short History of the Women’s Movement in Great Britain
[A causa: uma breve história do movimento das mulheres na Grã-Bretanha]. [N. da A.] ↩
24. Referência obscura a uma carta escrita por Herbert Dunelm (bispo de Durham) ao The
Times, de Londres, em 16 de fevereiro de 1927: “Enquanto os oficiais bolcheviques estão
arquitetando e pondo em prática uma infinita sucessão de esquemas, as escolas estão
desabando, os professores estão passando fome e as crianças estão correndo sem rumo”. [N.
de T.] ↩
25. Referência aos Married Women’s Property Acts [Atos de Propriedade de Mulheres
Casadas], promulgados no Reino Unido no fim do século XIX, que permitiram que as
mulheres casadas fossem donas do dinheiro que ganhavam. [N. de T.] ↩
2.
Foi uma decepção voltar para casa, à noite, sem qualquer afirmação
importante, sem qualquer fato autêntico: as mulheres são mais pobres
do que os homens por causa disso ou daquilo. Talvez por ora fosse
melhor desistir de procurar a verdade e de receber como resposta uma
avalanche de opiniões ferventes como lava, turvas feito água de lavagem.
Seria melhor fechar as cortinas, bloquear as distrações, acender o abajur,
estreitar a investigação e pedir ao historiador — que registra fatos, e não
opiniões — para descrever em que condições as mulheres viviam, não
através dos séculos, mas na Inglaterra, digamos, na época elisabetana.
Pois é um eterno mistério que nenhuma mulher tenha escrito uma
palavra daquela extraordinária literatura quando metade dos homens, ao
que parece, era capaz de escrever canções ou sonetos. Em que condições
as mulheres viviam?, perguntei a mim mesma, pois a ficção, sendo um
produto da imaginação, não cai feito uma pedra no solo, como a ciência; a
ficção é como uma teia de aranha atada à vida pelos quatro cantos, ainda
que de forma delicada. Muitas vezes a ligação é quase imperceptível; as
peças de Shakespeare, por exemplo, parecem se pendurar
completamente por si próprias. Mas quando a teia é arrancada de
qualquer jeito, enganchada em uma ponta, rasgada ao meio, lembramos
que essas teias não são tecidas em pleno ar por criaturas incorpóreas,
mas são obra de seres humanos em sofrimento, e estão atadas a coisas
brutalmente materiais como saúde, dinheiro e a casa onde moramos.
Recorri, portanto, à prateleira dos livros de história e peguei um dos
mais recentes, História da Inglaterra, do prof. Trevelyan. Mais uma vez
procurei “mulheres”, encontrei “posição das” e corri às páginas
indicadas. “O espancamento das esposas”, li, “era um direito
reconhecido do homem, praticado sem culpa por ricos e pobres […]. De
modo similar”, o historiador prosseguia, “a filha que se recusasse a se
casar com o cavalheiro da escolha de seus pais estava sujeita a ser
trancada, espancada e jogada de um lado para o outro em seu quarto, sem
que a opinião pública ficasse minimamente chocada. O casamento não
era matéria de afeição pessoal, mas de cobiça familiar, em especial nas
classes mais altas e ‘cavalheirescas’ […]. O noivado muitas vezes
acontecia quando um dos envolvidos (ou ambos) ainda estava no berço, e
o casamento ocorria quando mal tinham saído dos cuidados de uma
babá.” Isso foi em 1470, pouco depois da época de Chaucer33. A
referência seguinte à posição das mulheres se referia ao tempo da
dinastia Stuart, duzentos anos mais tarde. “Ainda era exceção, entre as
mulheres das classes alta e média, escolher o próprio marido; após ser
assim designado, ele se tornava seu mestre e senhor, pelo menos até
onde a lei e os costumes o permitissem. E ainda assim”, o prof. Trevelyan
conclui, “nem as mulheres das peças de Shakespeare nem aquelas
retratadas em autênticas memórias do século XVII, como as de Verney e
as de Hutchinson,34 pareciam carecer de personalidade e
temperamento.” Sem dúvida, se pensarmos bem, Cleópatra deve ter tido
seu próprio jeito para as coisas; Lady Macbeth, supõe-se, tinha lá suas
vontades; Rosalind, pode-se concluir, era uma moça atraente. O prof.
Trevelyan não fala nada além da verdade ao observar que as mulheres
nas peças de Shakespeare não pareciam carecer de personalidade e
temperamento. Sem sermos historiadores, podemos ir até mais além e
dizer que as mulheres brilharam feito faróis em todas as obras dos
poetas desde o início dos tempos — Clitemnestra, Antígona, Cleópatra,
Lady Macbeth, Fedra, Créssida, Rosalind, Desdêmona, a duquesa de
Malfi, entre os dramaturgos; então entre os prosadores: Millamant,
Clarissa, Becky Sharp, Anna Kariênina, Emma Bovary, Madame de
Guermantes… Os nomes afluem à mente, e nenhum deles evoca
mulheres que “parecem carecer de personalidade e temperamento”. De
fato, se a mulher não existisse fora da ficção escrita pelos homens,
poderíamos imaginar que ela fosse uma pessoa da maior importância;
muito variada; heroica e cruel; esplêndida e sórdida; infinitamente bela e
feia ao extremo; tão grande quanto um homem e, segundo alguns, até
maior.35 Mas essa é a mulher na ficção. Na vida real, como o prof.
Trevelyan aponta, ela era trancada, espancada e jogada de um lado para o
outro em seu quarto.
Assim, surge um ser composto muito esquisito. Na imaginação, ela é
de extrema importância; na vida prática é totalmente insignificante. Ela
permeia a poesia de uma ponta a outra, mas está praticamente ausente
da história. Na ficção, domina a vida dos reis e conquistadores; na
realidade, era escrava de qualquer garoto cujos pais forçaram uma
aliança em seu dedo. Algumas das palavras mais inspiradas e dos
pensamentos mais profundos da literatura saíram de seus lábios; na vida
real ela mal conseguia ser ouvida, não sabia soletrar e era propriedade do
marido.
Era certamente um monstro estranho que resultava da leitura
primeiro dos historiadores e depois dos poetas: um verme alado feito
uma águia; o espírito da vida e da beleza na cozinha, picando banha. Mas
esses monstros, por mais que ocupassem a imaginação, não existiam na
vida real. Para trazer essa mulher à vida era necessário pensar de forma
ao mesmo tempo poética e prosaica, portanto mantendo contato com os
fatos — de que ela é a sra. Martin, de trinta e seis anos, que usa vestido
azul, chapéu preto e sapatos marrons —, mas sem perder de vista a ficção
— de que ela é um recipiente no qual toda espécie de espíritos e forças
correm e brilham perpetuamente. No momento, porém, em que
tentamos aplicar esse método à mulher elisabetana, uma faceta inteira
continua apagada; somos detidas pela escassez dos fatos. Não se sabe
nada muito detalhado, nada perfeitamente verdadeiro e substancial
sobre ela. A história mal se refere a ela. Recorri de novo ao prof.
Trevelyan para entender o que a história significava para ele. Descobri,
consultando os títulos dos capítulos, que significava:
A corte feudal e os métodos de agricultura em campo aberto… Os
cistercienses e a criação de ovelhas… As Cruzadas… A universidade… A
Câmara dos Comuns… A Guerra dos Cem Anos… A Guerra das Rosas…
Os acadêmicos do Renascimento… A dissolução dos monastérios…
Conflitos agrários e religiosos… As origens do poderio marítimo da
Inglaterra… A Armada… e assim por diante. De vez em quando uma
mulher individual era mencionada, uma Elisabete ou Maria, uma rainha
ou grande dama. Mas não havia a menor possibilidade de que uma
mulher de classe média com nada além de inteligência e personalidade
pudesse tomar parte em qualquer um dos grandes movimentos que,
reunidos, constituem a visão dos historiadores acerca do passado. Nem a
encontraríamos em uma seleção de anedotas históricas. Aubrey36 mal se
refere a ela. Ela nunca escreve sobre a própria vida e poucas vezes
mantém um diário; restam apenas algumas de suas cartas. Não deixou
peças ou poemas pelos quais possamos julgá-la. O que gostaríamos de
ter, pensei — e por que alguma aluna brilhante de Newnham ou Girton
não poderia fornecê-lo? —, é um conjunto de informações: com que idade
ela se casou, quantos filhos costumava ter, como era a casa onde morava,
se tinha um quarto só dela, se cozinhava, se tinha criados. Todos esses
fatos estão possivelmente em algum lugar, em registros paroquiais e
livros de contabilidade; a vida da mulher elisabetana média deve estar
dispersa por aí, pronta para ser coletada e transformada em livro. Seria
ambicioso demais da minha parte, pensei, buscando nas prateleiras
livros que não existiam, sugerir às alunas dessas famosas faculdades que
reescrevessem a história, embora eu reconheça que ela muitas vezes
parece um tanto esquisita assim como é, irreal, desequilibrada; mas
então por que não poderiam incluir um suplemento à história, dando-lhe
algum nome discreto, é claro, para que as mulheres pudessem figurar
nela sem que houvesse grande impropriedade? Pois muitas vezes temos
um vislumbre das mulheres na vida dos grandes homens, escapulindo
para o segundo plano e disfarçando, conforme às vezes penso, uma
piscadela, uma risada, talvez uma lágrima. E afinal de contas, já tivemos
biografias suficientes de Jane Austen; não me parece necessário estudar
de novo a influência das tragédias de Joanna Baillie na poesia de Edgar
Allan Poe;37 de minha parte, eu não me incomodaria se as casas e os
lugares frequentados por Mary Russell Mitford38 ficassem fechados
para o público por pelo menos cem anos. Mas o que acho deplorável,
prossegui, examinando novamente as prateleiras, é que não se sabe nada
sobre as mulheres antes do século XVIII. Não disponho de nenhum
modelo mental para fundamentar esta ou aquela reflexão. Aqui estou eu,
perguntando por que as mulheres não escreviam poesia na época
elisabetana, quando não sei como elas foram educadas, se aprenderam a
ler e escrever, se tinham quartos só delas, quantas tiveram filhos antes
dos vinte e um anos de idade, e o que, em resumo, elas faziam das oito da
manhã às oito da noite. Evidentemente elas não tinham dinheiro; de
acordo com o prof. Trevelyan, elas se casavam mesmo contra a vontade e
antes até de saírem dos cuidados das babás, provavelmente aos quinze
ou dezesseis anos. Seria extremamente estranho se, mesmo depois de
tudo isso, uma delas tivesse de repente escrito as peças de Shakespeare,
concluí; e pensei naquele velho senhor, já falecido, mas que era bispo,
acho, que declarou ser impossível qualquer mulher — no passado,
presente ou futuro — ter a genialidade de Shakespeare. Ele escreveu
sobre isso nos jornais. Também disse a uma senhora, que o consultara
em busca de informações, que os gatos na verdade não vão para o céu,
ainda que tenham uma espécie de alma, acrescentou. De quantas
reflexões aqueles velhos senhores nos poupavam! Como as fronteiras da
ignorância se encolhiam quando eles se aproximavam! Os gatos não vão
para o céu. As mulheres não são capazes de escrever as peças de
Shakespeare.
Seja como for, não pude deixar de pensar, olhando para as obras de
Shakespeare na estante, que o bispo estava certo pelo menos nisto: seria
impossível, absoluta e inteiramente, que qualquer mulher tivesse escrito
as peças de Shakespeare na época de Shakespeare. Deixe-me imaginar,
já que os fatos são tão difíceis de obter, o que teria acontecido se
Shakespeare tivesse uma irmã maravilhosamente talentosa, digamos,
chamada Judith. O próprio Shakespeare frequentou, muito
provavelmente, a escola — sua mãe era uma herdeira —, onde deve ter
aprendido latim — Ovídio, Virgílio e Horácio39 —, além dos fundamentos
de gramática e lógica. Ele foi, como se sabe, um garoto travesso que
escaldava coelhos, talvez tenha atirado em um cervo, e foi obrigado a se
casar, mais rápido do que deveria, com uma mulher da vizinhança, que
deu à luz antes do que seria correto. Essa escapada o levou a buscar a
sorte em Londres. Ele tinha aparentemente um gosto pelo teatro;
começou vigiando cavalos na porta do estabelecimento. Logo passou a
trabalhar no ramo, tornou-se um ator bem-sucedido e viveu no centro do
mundo, encontrando e conhecendo a todos, praticando sua arte nos
palcos, exercendo sua esperteza nas ruas e até ganhando acesso ao
palácio da rainha. Enquanto isso, sua irmã extraordinariamente
talentosa, pode-se supor, ficou em casa. Ela era tão aventureira, tão
imaginativa, tão impaciente para conhecer o mundo quanto o irmão.
Mas não foi mandada à escola. Não teve a chance de aprender gramática
e lógica, nem de ler Horácio e Virgílio. De vez em quando pegava um
livro, talvez do irmão, e lia algumas páginas. Mas então seus pais
apareciam e lhe mandavam cerzir meias e cuidar do guisado, em vez de
ficar devaneando com livros e papéis. Eles diriam isso de modo severo,
mas bondoso, pois eram pessoas abastadas que sabiam quais eram as
condições de vida reservadas para as mulheres e amavam a filha — na
verdade, é bem possível que ela fosse a menina dos olhos do pai. Talvez
ela rascunhasse algumas páginas no sótão onde guardavam as maçãs,
mas tinha o cuidado de escondê-las ou queimá-las. Em pouco tempo,
porém, antes que saísse da adolescência, ela ficaria noiva do filho de um
comerciante de lãs da vizinhança. Gritou que achava o casamento
odioso, e por causa disso foi severamente espancada pelo pai. Então ele
parou de ralhar com ela. Em vez disso, implorou que não o magoasse, que
não o desonrasse nesse assunto do casamento. Ele lhe daria um colar de
contas ou uma bela anágua, disse, com lágrimas nos olhos. Como ela
poderia lhe desobedecer? Como poderia partir seu coração? A mera
força de seu talento a levou a isso. Fez um pequeno pacote com seus
pertences, desceu por uma corda em uma noite de verão e tomou a
estrada até Londres. Não tinha nem dezessete anos. Os pássaros que
cantavam nas sebes não eram mais musicais do que ela. Possuía uma
inclinação apurada, um talento, como o do irmão, para a melodia das
palavras. Também como ele, tinha gosto pelo teatro. Parou na porta de
um: queria atuar, disse. Os homens riram da cara dela. O diretor — um
homem gordo e falastrão — irrompeu em gargalhadas. Urrou algo sobre
poodles que dançam e mulheres que atuam — nenhuma mulher poderia
ser atriz, disse. Deu a entender que… vocês podem imaginar o quê. Ela
não teria como aprender seu ofício. Não tinha nem a possibilidade de
jantar em uma taverna ou de vagar pelas ruas à meia-noite. Ainda assim,
seu talento era para a ficção, e ela tinha ânsia de se alimentar das vidas
dos homens e das mulheres, estudando seus costumes. Por fim — pois
era muito jovem e tinha o rosto estranhamente parecido com o do poeta
Shakespeare, com os mesmos olhos cinzentos e sobrancelhas
arredondadas —, por fim o ator-diretor Nick Greene ficou com pena dela;
ela se viu grávida desse cavalheiro, e então — quem poderia medir o
ardor e a violência do coração de um poeta preso e enredado em um
corpo feminino? — ela se matou numa noite de inverno, e jaz enterrada
em alguma encruzilhada onde hoje os ônibus param, em Elephant and
Castle.40
É mais ou menos assim que a história se daria, penso, se uma mulher
na época de Shakespeare tivesse a genialidade de Shakespeare. Mas, de
minha parte, concordo com o bispo falecido, se é que ele era mesmo um
bispo: é impensável que qualquer mulher na época de Shakespeare
tivesse tido a genialidade de Shakespeare. Pois uma genialidade como a
dele não nasce entre pessoas trabalhadoras, incultas e servis. Não
nasceu na Inglaterra dos saxões e bretões. Não nasce hoje entre as
classes trabalhadoras. Como, então, poderia ter nascido entre as
mulheres cujo trabalho começava, de acordo com o prof. Trevelyan,
quase antes de saírem dos cuidados das babás, e ao qual eram impelidas
pelos pais e obrigadas pelo poder da lei e dos costumes? Ainda assim,
deve ter havido algum tipo de genialidade entre as mulheres, da mesma
forma como deve ter havido entre as classes trabalhadoras. De vez em
quando surge uma Emily Brontë ou um Robert Burns41 e comprova essa
presença. Mas certamente ela nunca chegou ao papel. Quando, porém,
lemos sobre uma bruxa torturada por afogamento, uma mulher possuída
pelo demônio, uma curandeira que vendia ervas ou mesmo um homem
muito notável e sua mãe, então penso que estamos na pista de uma
romancista perdida, uma poeta suprimida, uma Jane Austen muda e
inglória, uma Emily Brontë que quebrava a cabeça nos pântanos e vagava
desditosa pelas estradas, enlouquecida pela tortura que seu dom lhe
provocava. De fato, eu arriscaria dizer que o tal Anônimo, que escreveu
tantos poemas sem assinar, era muitas vezes uma mulher. Foi uma
mulher, sugeriu Edward Fitzgerald42 (creio eu), que compôs as baladas e
as músicas folclóricas, cantarolando-as baixinho para seus filhos,
distraindo-se assim durante o ofício de fiar ou em uma longa noite de
inverno.
Isso pode ser verdadeiro ou falso — quem pode dizer? —, mas o que era
verdadeiro nisso, assim me pareceu, revendo a história da irmã de
Shakespeare conforme a inventei, é que qualquer mulher nascida com
um grande talento no século XVI certamente teria enlouquecido, se
suicidado, ou terminado seus dias em alguma cabana solitária distante
do vilarejo — meio bruxa, meio feiticeira, temida e ridicularizada. Pois
não é preciso grande habilidade em psicologia para saber que uma garota
extremamente talentosa que tivesse tentado usar seu dom para a poesia
se veria tão prejudicada e impedida pelos outros, tão torturada e
despedaçada por seus próprios instintos contrários, que certamente
perderia a saúde e a sanidade mental. Nenhuma garota poderia ter ido a
Londres, se postado diante de um teatro e imposto sua presença diante
de atores-diretores sem praticar uma violência contra si mesma, sem
sofrer uma angústia que pode até ter sido irracional — pois a castidade
pode ser um fetiche criado por certas sociedades por motivos
desconhecidos —, mas que não deixava de ser inevitável. A castidade
tinha na época, como ainda tem hoje, uma importância religiosa na vida
das mulheres, e está tão envolta em nervos e instintos que a libertar e
trazer à luz do dia requer uma raríssima coragem. Levar uma vida livre
em Londres no século XVI teria representado, para uma mulher poeta e
dramaturga, um desgaste nervoso e um conflito que poderiam muito
bem matá-la. Caso sobrevivesse, todos os seus escritos sairiam
distorcidos e deformados, pois teriam brotado de uma imaginação tensa
e mórbida. E sem dúvida, pensei, olhando a prateleira onde não havia
peças de teatro escritas por mulheres, esse trabalho não seria assinado.
Tal refúgio ela certamente buscaria. Era um resquício do senso de
castidade que impunha o anonimato às mulheres, mesmo em uma época
tão recente quanto o século XIX. Currer Bell, George Eliot, George Sand43
— todas vítimas de um conflito interno, como seus escritos mostram —
buscaram inutilmente ocultar a si mesmas sob um pseudônimo
masculino. Faziam, assim, uma deferência à convenção de que a
publicidade é detestável nas mulheres — convenção que, se não foi
implantada pelo sexo oposto, era fartamente incentivada por ele: “A
glória máxima de uma mulher é não ser falada”, disse Péricles44, ele
mesmo um homem muito falado. O anonimato corria no sangue delas. O
desejo de ocultar-se ainda as domina. Até hoje, elas não se preocupam
tanto em cultivar a fama quanto os homens, e, de modo geral, conseguem
passar diante de um túmulo ou de uma inscrição histórica sem sentir o
desejo irresistível de entalhar ali seus nomes, como Alf, Bert ou Chas
precisam fazer em obediência a seu instinto, que se expressa quando vê
passar uma mulher bonita ou mesmo um cachorro: Ce chien est à moi.45
E é claro que não precisa ser um cachorro, pensei, lembrando a
Parliament Square, a Siegesallee e outras avenidas; pode ser um pedaço
de terra ou um homem de cabelo crespo. Uma das grandes vantagens de
ser mulher é que podemos passar perto de uma negra muito bonita sem
desejar torná-la inglesa.
Essa mulher, portanto, que nasceu no século XVI com um talento para
a poesia, era uma mulher infeliz, uma mulher em conflito consigo
mesma. Todas as condições de sua vida, todos os seus instintos, eram
hostis ao estado de espírito necessário para libertar o que quer que
estivesse em sua mente. Mas qual era o estado de espírito mais propício
ao ato da criação?, eu me perguntei. Seria possível ter alguma ideia do
estado que fomenta e torna possível essa estranha atividade? Aqui abri o
volume com as tragédias de Shakespeare. Qual teria sido o estado de
espírito de Shakespeare, por exemplo, ao escrever Rei Lear e Antônio e
Cleópatra? Certamente foi o estado de espírito mais favorável à poesia
que já existiu. Mas o próprio Shakespeare nunca disse nada a respeito.
Sabemos apenas por sorte e por acaso que ele “nunca rasurou uma
linha”. De fato, os artistas nada disseram sobre seu estado de espírito até
talvez o século XIX. Foi possivelmente Rousseau quem começou essa
prática. De qualquer modo, lá pelo século XIX, a autoconsciência havia se
desenvolvido tanto que se tornou um hábito dos homens letrados
descrever seus pensamentos em confissões e autobiografias. Suas
biografias eram escritas e suas cartas eram publicadas de forma
póstuma. Por isso, embora não saibamos pelo que passava Shakespeare
quando escreveu Rei Lear, sabemos pelo que passava Carlyle quando
escreveu História da revolução francesa; pelo que passava Flaubert
quando escreveu Madame Bovary; pelo que passava Keats quando
tentou escrever poesia diante de sua morte iminente e da indiferença do
mundo.
E o que depreendemos dessa imensa literatura moderna de confissão
e autoanálise é que escrever uma obra genial é quase sempre uma tarefa
de prodigiosa dificuldade. Tudo conspira contra a possibilidade de que
ela venha a fluir íntegra e completamente da mente do autor. Em geral,
circunstâncias materiais conspiram contra isso. Os cachorros latem, as
pessoas interrompem, é preciso ganhar dinheiro, a saúde entra em
colapso. Além disso, realçando todas essas dificuldades e tornando-as
mais difíceis de suportar, há a notória indiferença do mundo. Ele não
pede que as pessoas escrevam poemas, romances e contos; ele não
precisa disso. Ao mundo não interessa se Flaubert encontra a palavra
justa ou se Carlyle verifica escrupulosamente este ou aquele fato. E
assim o escritor — Keats, Flaubert, Carlyle — experimenta, em especial
nos anos criativos da juventude, toda espécie de distração e
desencorajamento. Um impropério, um grito de agonia, emerge desses
livros de análise e confissão. “Poderosos poetas em sua miséria mortos”
é o fardo de suas canções.46 Se algo é produzido apesar de tudo isso, é um
milagre, e provavelmente nenhum livro nasce completa e perfeitamente
conforme foi concebido.
Mas para as mulheres, pensei, olhando as prateleiras vazias, essas
dificuldades eram infinitamente maiores. Em primeiro lugar, ter um
quarto só seu — que dirá um quarto tranquilo ou à prova de som — estava
fora de questão, a menos que seus pais fossem excepcionalmente ricos
ou muito nobres, até mesmo tão recentemente quanto no início do
século XIX. Como sua mesada, que dependia da boa vontade do pai, mal
era suficiente para comprar roupas, ela não contava nem com as
distrações permitidas a Keats, Tennyson ou Carlyle, todos homens
pobres, como fazer uma excursão guiada, uma viagem breve à França ou
viver em um teto separado que, por mais que fosse miserável, os protegia
das demandas e tiranias de suas famílias. Tais dificuldades materiais
eram imensas; mas muito piores eram as imateriais. A indiferença do
mundo — que Keats, Flaubert e outros gênios acharam tão difícil de
suportar — era, no caso delas, hostilidade. O mundo não dizia a elas:
“Escreva se quiser, não faz diferença”, como dizia a eles. O mundo dizia,
com uma gargalhada: “Escrever? Para que você vai escrever?”. Aqui as
psicólogas de Newham e Girton podem vir a nosso socorro, pensei,
olhando de novo para os espaços vazios nas prateleiras. Pois certamente
já está na hora de começar a medir o efeito do desencorajamento sobre a
mente do artista, assim como vi uma empresa de laticínios medir o
efeito do leite normal e do leite tipo A no corpo dos ratos. Eles botaram
dois ratos em gaiolas, lado a lado: um deles era furtivo, tímido e pequeno,
e o outro era lustroso, ousado e grande. Agora, que tipo de comida nós
damos para as mulheres artistas?, me perguntei, lembrando, creio,
daquele jantar de ameixas secas com creme. Para responder a essa
pergunta só tive de abrir o jornal da noite e ler que lorde Birkenhead
acha que… Mas não vou realmente me dar ao trabalho de copiar a opinião
de lorde Birkenhead sobre a escrita das mulheres. O que o reitor Inge
falou deixarei de lado. O especialista de Harley Street pode despertar os
ecos de Harley Street com suas vociferações sem que eu pisque um
olho.47 Irei citar, porém, o sr. Oscar Browning, pois foi uma
personalidade em Cambridge em sua época, e costumava avaliar as
alunas de Girton e Newnham. O sr. Oscar Browning estava acostumado a
dizer “que a impressão que lhe restava, depois de corrigir um conjunto
qualquer de provas escolares, é que, a despeito das notas que desse, a
melhor das mulheres era intelectualmente inferior ao pior dos homens”.
Depois de declarar isso, o sr. Browning voltou a seus aposentos — e é essa
segunda parte que o torna cativante e o transforma em uma figura de
certa relevância e majestade —, ele voltou a seus aposentos e encontrou
um cavalariço deitado no sofá: “Um mero esqueleto, com as bochechas
cavernosas e pálidas, os dentes pretos, e não parecia ter completo
domínio dos membros. […] ‘É Arthur’, disse o sr. Browning. ‘É um bom
garoto, realmente, e muito nobre.’” As duas imagens sempre me
pareceram complementares. E por sorte, nesta época de biografias, é
comum que ambas realmente se complementem, de modo que podemos
interpretar as opiniões dos grandes homens não só pelo que dizem, mas
pelo que fazem.
Porém, ainda que isso seja possível agora, tais opiniões vindas de
pessoas importantes devem ter tido um enorme peso cinquenta anos
atrás. Vamos imaginar que um pai, por motivos dos mais elevados, não
desejasse que sua filha saísse de casa para se tornar escritora, pintora ou
acadêmica. “Veja o que o sr. Oscar Browning diz”, ele falaria, e não era só
o sr. Oscar Browning: havia o Saturday Review, havia o sr. Greg48 — “a
essência das mulheres é que elas são sustentadas pelos homens, e a eles
servem”, disse o sr. Greg enfaticamente —, havia um enorme conjunto de
opiniões masculinas dizendo que não se pode esperar nada das mulheres
intelectualmente. Mesmo que o pai dela não lesse tais opiniões em voz
alta, qualquer garota era capaz de lê-las sozinha; e essa leitura, mesmo
no século XIX, deve ter diminuído sua vitalidade e influenciado
profundamente seu trabalho. Sempre haveria essa afirmação — você não
pode fazer isso, é incapaz de fazer aquilo — contra a qual protestar, a qual
superar. Para uma romancista, esse germe provavelmente não tem mais
tanto efeito, pois já houve mulheres romancistas de mérito. Mas para as
pintoras ele ainda causa algum dano; e para as musicistas, imagino, está
ativo até hoje e continua extremamente tóxico. A mulher compositora se
encontra na mesma situação que a atriz na época de Shakespeare. Nick
Greene, pensei, recordando a história que inventei sobre a irmã de
Shakespeare, disse que uma mulher atuando o fazia pensar em um
cachorro dançando. Johnson repetiu a frase duzentos anos depois,
referindo-se a mulheres pregando. E aqui temos, pensei, abrindo um
livro sobre música, as mesmas palavras utilizadas de novo, neste ano da
graça de 1928, para se referir a mulheres que tentam compor música.
“Sobre a srta. Germaine Tailleferre, podemos apenas repetir o dito do dr.
Johnson sobre as mulheres pregadoras, transpondo-o para o campo da
música: ‘Senhor, uma mulher compositora é como um cachorro andando
sobre as patas traseiras. O resultado não é bom, mas ficamos surpresos
de ver que pode ser feito.’”49 A história se repete com tanta exatidão.
Assim, concluí, fechando a biografia do sr. Oscar Browning e
afastando o resto, é bastante evidente que, mesmo no século XIX, uma
mulher não era encorajada a se tornar artista. Pelo contrário: ela era
esnobada, estapeada, reprovada e desaconselhada. A necessidade de se
opor a isso e provar o contrário deve ter exaurido sua mente e diminuído
sua vitalidade. E aqui entramos de novo no âmbito daquele
interessantíssimo e obscuro complexo masculino que tanta influência
tem exercido sobre o movimento das mulheres: o desejo arraigado não
tanto de que ela seja inferior, mas de que ele seja superior, desejo que o
coloca no comando das artes por toda parte e que também barra a
entrada das mulheres na política, mesmo quando o risco para ele é
minúsculo e a suplicante é humilde e devotada. Até lady Bessborough50,
lembrei, com toda a sua paixão pela política, deve se curvar
humildemente e escrever para lorde Granville Leveson-Gower: “[…]
apesar de toda a minha violência na política e de falar tanto sobre essa
questão, concordo inteiramente com o senhor quando diz que nenhuma
mulher deve se meter neste ou em qualquer outro assunto sério, exceto
para dar sua opinião (isso se alguém pedir)”. E assim ela segue em frente,
empregando seu entusiasmo onde não encontra nenhum obstáculo: no
assunto imensamente importante que foi o discurso de estreia de lorde
Granville na Câmara dos Comuns. É um espetáculo certamente
estranho, pensei. A história da oposição dos homens à emancipação das
mulheres é talvez mais interessante do que a história da própria
emancipação. Poderíamos ter um livro divertido sobre isso, caso alguma
jovem estudante de Girton ou Newnham coletasse exemplos e inferisse
uma teoria — mas ela precisaria ter luvas grossas nas mãos e barras de
ouro maciço para protegê-la.
Mas o que é divertido hoje, lembrei, deixando lady Bessborough de
lado, teve de ser levado desesperadamente a sério no passado. As
opiniões que hoje copiamos em um livro chamado “Bravatas de machos”
e guardamos para ler diante de um público selecionado em noites de
verão já arrancaram lágrimas no passado, posso lhes garantir. Entre as
avós e bisavós de vocês, houve muitas que choraram até secarem os
olhos. Florence Nightingale berrou alto em sua agonia.51 Além disso,
para vocês, que conseguiram ingressar na faculdade e que dispõem de
seus próprios quartos — ou seriam apenas dormitórios? —, é fácil dizer
que os gênios devem desconsiderar tais opiniões, que devem estar acima
do que os outros dizem. Infelizmente, é precisamente o homem ou a
mulher de gênio que mais se importa com os comentários alheios.
Lembrem-se de Keats. Lembrem-se das palavras que ele mandou
inscrever em sua lápide.52 Lembrem-se de Tennyson; mas não é
necessário que eu me estenda em exemplos sobre o fato inegável —
porém infeliz — de que é da natureza do artista importar-se
demasiadamente com o que dizem sobre ele. A literatura está repleta de
destroços de homens que se importaram para além do razoável com as
opiniões dos outros.
E essa suscetibilidade deles é duplamente infeliz, pensei, retornando à
minha pergunta original de qual estado de espírito seria o mais propício
ao trabalho criativo, já que a mente de um artista, para poder alcançar o
prodigioso efeito de libertar íntegra e completamente a obra que está em
seu interior, deve ser incandescente como a mente de Shakespeare,
assumi, olhando para o volume que estava aberto em Antônio e
Cleópatra. Não deve haver obstáculos nela, nenhum assunto externo não
resolvido.
Afinal, mesmo quando dizemos que nada sabemos sobre o estado de
espírito de Shakespeare, já estamos informando algo sobre o estado de
espírito dele. O motivo pelo qual nós talvez saibamos tão pouco de
Shakespeare — em comparação a Donne, Ben Jonson ou Milton53 — é
que seus rancores, mágoas e antipatias estão ocultos de nós. Não somos
detidos por nenhuma “revelação” que nos remete ao autor. Todo o desejo
de protestar, de pregar, de denunciar uma ofensa, de acertar contas, de
tornar o mundo testemunha de qualquer adversidade ou queixa, foi dele
expurgado e se consumiu. Portanto, sua poesia pode fluir de forma livre e
desimpedida. Se alguém no mundo conseguiu ter sua obra
completamente expressa, foi Shakespeare. Se alguma mente foi
incandescente e desimpedida, pensei, olhando de volta para a estante, foi
a mente de Shakespeare.
33. Geoffrey Chaucer (c. 1342–1400), poeta inglês de maior proeminência antes de
Shakespeare. [N. de E.] ↩
34. Lady Frances Verney (1819–1890), escritora que registrou no século XVII os costumes de
sua tradicional família inglesa rural, e Lucy Hutchinson (1620–1681), poeta e tradutora que
escreveu e publicou, em 1806, a biografia de seu marido, coronel John Hutchinson (1615–
1664). [N. de E.] ↩
35. “Permanece um fato estranho e quase inexplicável que, na cidade de Atenas, onde as
mulheres eram mantidas em uma opressão quase oriental como odaliscas ou escravas, o
teatro tenha produzido figuras como Clitemnestra e Cassandra, Atossa e Antígona, Fedra e
Medeia, e todas as outras heroínas que dominaram peça após peça do ‘misógino’ Eurípides.
Mas o paradoxo desse mundo onde, na vida real, uma mulher respeitável mal podia mostrar
o rosto sozinha na rua, e ainda assim nos palcos ela igualava ou superava o homem, nunca foi
explicado satisfatoriamente. Na tragédia moderna existe a mesma predominância. Em todo
caso, uma análise rápida das obras de Shakespeare (a mesma coisa ocorre em Webster, mas
não em Marlowe ou Jonson) basta para revelar como essa dominância, essa iniciativa
feminina, persiste de Rosalinda a Lady Macbeth. O mesmo vale para Racine: seis de suas
tragédias levam o nome de suas heroínas, e quais personagens masculinos seriam páreo
para Hermione e Andrômaca, Berenice e Roxane, Fedra e Atália? De novo com Ibsen: que
homens estariam à altura de Solveig e Nora, Heda e Hilda Wangel e Rebecca West?” — F. L.
Lucas, Tragedy, pp. 114–15. [N. da A.] ↩
36. John Aubrey (1626–1697), filósofo e escritor inglês que publicou uma coletânea de
biografias curtas chamada Brief Lives [Breves vidas]. [N. de E.] ↩
37. Joanna Baillie (1762–1851), poeta e dramaturga inglesa. Edgar Allan Poe (1809–1849),
contista, poeta e editor estadunidense. [N. de E.] ↩
38. Mary Russell Mitford (1787–1855), poeta e romancista inglesa. [N. de E.] ↩
39. Importantes poetas romanos da Antiguidade, autores de obras clássicas estudadas até hoje.
[N. de E.] ↩
40. No Reino Unido, até 1823, os suicidas não podiam ser sepultados em cerimônias religiosas.
A lei mandava que fossem enterrados em encruzilhadas movimentadas como uma espécie
de punição, talvez para garantir que suas almas vagassem para sempre. [N. de T.] ↩
41. Emily Brontë (1818–1848), autora do clássico inglês O Morro dos Ventos Uivantes, era filha
de um vigário e teve uma vida simples e reclusa. Robert Burns (1759–1796), considerado o
poeta nacional da Escócia, nasceu na zona rural, filho de lavradores. [N. de E.] ↩
42. Edward Fitzgerald (1809–1883), poeta e tradutor inglês. [N. de E.] ↩
43. Pseudônimos masculinos utilizados, respectivamente, pelas escritoras Charlotte Brontë
(1816–1855), Mary Ann Evans (1819–1880) e Amandine Aurore Lucile Dupin (1804–1876).
[N. de E.] ↩
44. Péricles (c. 492 a.C.–429 a.C.), estadista da Grécia Antiga. [N. de E.] ↩
45. Referência a uma passagem de Pensamentos, do filósofo francês Blaise Pascal (1623–1662):
“Meu, seu. ‘Este cachorro é meu’, diziam as pobres crianças; ‘este é o meu lugar ao sol’. Aqui
está a origem e a imagem da usurpação de toda a Terra.” [N. de T.] ↩
46. No original, “Mighty poets in their misery dead”, do poema “Resolution and Independence”
[“Resolução e independência”] de William Wordsworth (1770–1850). [N. de T.] ↩
47. A Harley Street é uma rua londrina renomada por seus consultórios médicos e hospitais
privados. [N. de T.] ↩
48. O ensaísta britânico William Rathbone Greg (1809–1881), autor do ensaio “Why Are
Women Redundant?” [“Por que as mulheres são redundantes?”], de 1869. [N. de T.] ↩
49. A Survey of Contemporary Music, Cecil Gray, p. 246. [N. da A.] ↩
50. Henrietta Ponsonby, condessa de Bessborough (1761–1821), aristocrata inglesa que teve
entre seus muitos amantes Granville Leveson-Gower, Conde de Granville (1776–1846). [N.
de E.] ↩
51. Ver: “Cassandra”, de Florence Nightingale, publicado em The Cause, de R. Strachey. [N. da
A.] ↩
52. “Aqui jaz aquele cujo nome foi escrito em água”. O poeta inglês John Keats (1795–1821) está
enterrado no cemitério protestante de Roma, na Itália. [N. de T.] ↩
53. Poetas ingleses dos séculos XVI e XVII, contemporâneos de Shakespeare. [N. de E.] ↩
4.
Fica óbvio que sua mente não havia, de modo algum, “expurgado todos
os obstáculos e se tornado incandescente”. Pelo contrário: estava
atormentada e distraída com ódios e ressentimentos. Para ela, a raça
humana se dividia em duas facções. Os homens eram da “facção
opositora”; eram odiados e temidos, pois tinham o poder de bloquear seu
caminho para aquilo que ela queria fazer: escrever.
É uma enorme pena que a mulher que conseguia escrever desse jeito, e
cuja mente estava alinhada com a natureza e a reflexão, tenha sido
forçada ao ódio e à amargura. Mas como poderia evitá-los?, me
perguntei, imaginando os olhares de desprezo e as risadinhas, a adulação
dos bajuladores, o ceticismo do poeta profissional. Deve ter se trancado
em um quartinho no campo para escrever, dilacerada de amargura e
talvez hesitação, ainda que seu marido fosse dos mais bondosos e sua
vida conjugal, perfeita. Digo “deve ter”, pois, quando procuramos
informações sobre lady Winchilsea, descobrimos, como sempre, que
quase nada se sabe sobre ela. Sofria muito de melancolia, que pode ser
explicada, pelo menos em parte, ao lermos que, nos piores momentos, ela
imaginava:
Naturalmente, se esse era seu hábito e se tal era o seu prazer, tudo que
podia esperar era que rissem dela; de fato, dizem que Pope ou Gay56 a
teriam ridicularizado como “uma sabichona com comichão para
escrever”. Também dizem que ela teria ofendido Gay ao rir dele. Ela
disse que seu poema “Trivia” provou que “ele tinha mais aptidão para
trotar na frente de uma carruagem do que para ocupá-la”. Mas tudo isso
são “fofocas duvidosas” e, ademais, diz o sr. Murry, “desinteressantes”.
Mas nisso não concordo com ele, pois gostaria de ter tido mais dessas
fofocas duvidosas para descobrir ou formar uma imagem melhor dessa
dama melancólica, que amava vagar pelos campos pensando em coisas
estranhas e que desdenhava, de forma tão impulsiva e imprudente, “a
maçante gestão de um lar com empregados”. Mas ela se perdeu, diz o sr.
Murry. Seu talento foi tomado por ervas daninhas e estrangulado por
sarças espinhosas. Não teve a chance de se provar como um talento fino
e notável. E assim, devolvendo-a à prateleira, passei para outra grande
dama, a duquesa que Lamb adorava: a impulsiva e fantástica Margaret de
Newcastle57, mais velha que lady Winchilsea, porém sua
contemporânea. Ambas eram muito diferentes, mas semelhantes no fato
de que eram nobres e não tiveram filhos, e também por serem casadas
com os melhores maridos. Em ambas ardia a mesma paixão pela poesia,
e ambas foram desfiguradas e deformadas pelos mesmos motivos. Basta
abrir um livro da duquesa e encontramos a mesma explosão de raiva. “As
mulheres vivem como morcegos ou corujas, trabalham como bestas e
morrem como vermes…” Margaret também poderia ter sido poeta; nos
dias de hoje toda essa atividade teria surtido algum efeito. Naquelas
circunstâncias, o que seria capaz de restringir, domar ou civilizar para
uso humano aquela inteligência selvagem, generosa e sem guia? Ela
apenas jorrava, de maneira caótica, em torrentes de prosa e verso, poesia
e filosofia, que se cristalizaram em in-quartos e fólios que ninguém
nunca lê. Alguém deveria ter posto um microscópio diante dela. Alguém
deveria tê-la ensinado a observar as estrelas e a raciocinar
cientificamente. Sua inteligência era movida a solidão e liberdade.
Ninguém a controlava. Ninguém a ensinava. Os professores a bajulavam.
Na corte, as pessoas zombavam dela. Sir Egerton Brydges queixou-se de
sua rispidez, “vinda de uma mulher de alta posição, criada na corte”. Ela
se confinou sozinha em Welbeck.
Que imagem de solidão e tumulto nos vem à mente ao pensarmos em
Margaret Cavendish! Como se um pepino gigante tivesse se
esparramado entre as rosas e cravos do jardim, sufocando-os até a
morte. Que desperdício saber que a mulher que escreveu “As mulheres
mais bem criadas são aquelas cujas mentes são mais cultivadas” teria
desperdiçado seu tempo rascunhando bobagens e mergulhando cada vez
mais fundo na obscuridade e na loucura, chegando ao ponto que, quando
saía, as pessoas se aglomerarem em volta de sua carruagem.
Evidentemente, a louca duquesa se transformou em um bicho-papão
usado para assustar garotas inteligentes. E aqui temos, lembrei-me,
deixando de lado a duquesa e abrindo as cartas de Dorothy Osborne,
Dorothy escrevendo a Temple sobre o livro novo da duquesa:58 “É claro
que a coitada está um pouco confusa, do contrário não seria tão ridícula
de se aventurar a escrever livros, e ainda por cima em versos; se eu
ficasse sem dormir por duas semanas não chegaria a tanto”.
E portanto, já que nenhuma mulher sensata e modesta podia escrever
livros, Dorothy, que era muito reservada e melancólica, o exato oposto da
duquesa em temperamento, não escreveu nada. Cartas não contavam.
Uma mulher era capaz de escrever cartas sentada ao lado do pai doente e
acamado. Podia escrevê-las diante da lareira, enquanto os homens
conversavam, sem que isso os incomodasse. O estranho, pensei, virando
as páginas das cartas de Dorothy, era ver como aquela garota solitária e
sem formação tinha um talento para estruturar uma frase, para moldar
uma cena. Vejam só como ela divagava:
Depois da janta a gente se senta e fica papeando até o sr. B. chegar, e então vou embora.
Passo o dia lendo ou trabalhando e lá pelas seis ou sete vou a um terreno que fica perto de
casa, onde várias belas jovens cuidam de ovelhas e vacas e se sentam à sombra cantando
baladas; vou até elas e comparo suas vozes e sua beleza às de certas pastoras antigas sobre
as quais li uma vez e vejo uma enorme diferença, mas, acredite, acho que essas são tão
inocentes quanto aquelas. Falo com elas e descubro que não precisam de nada para se
tornarem as pessoas mais felizes do mundo, nada além do conhecimento de serem assim. É
comum, quando estamos no meio da conversa, que uma delas olhe ao redor e veja sua vaca
entrando no milharal, então elas saem todas correndo, como se tivessem asas nos
calcanhares. Eu, que não sou tão ágil, fico para trás, e quando as vejo guiando o gado de
volta penso que é hora de ir embora também. Depois da ceia vou para o jardim e para a beira
de um riacho que corre por ali, onde me sento e fico desejando que você estivesse aqui
comigo…
54. Anne Finch (1661–1720), condessa de Winchilsea, publicou uma coleção de poemas em
1713. Mas ficou mais conhecida após 1928, com a publicação de Poems by Anne, Countess of
Winchilsea 1661–1720, que contou com um ensaio introdutório do escritor inglês John
Middleton Murry (1889–1957). [N. de T.] ↩
55. Alexander Pope (1688–1744), poeta inglês. [N. de E.] ↩
56. O poeta e dramaturgo britânico John Gay (1685–1732), autor de A ópera do mendigo e de
“Trivia”, um poema sobre a arte de caminhar nas ruas de Londres. [N. de T.] ↩
57. Margaret Cavendish (1623–1673), duquesa de Newcastle, era filósofa, romancista, poeta,
dramaturga e ensaísta. Em um ensaio intitulado “Mackery End, in Hertfordshire”, Charles
Lamb a descreve como “um tanto fantástica e de ideias originais”. [N. de T.] ↩
58. Dorothy Osborne (1627–1695) foi esposa do ensaísta e estadista William Temple, com quem
trocou dezenas de cartas antes de se casar. Elas foram coletadas no livro The Letters of
Dorothy Osborne to William Temple, de 1928. Dorothy teve nove filhos, sete dos quais
morreram na infância. [N. de T.] ↩
59. A inglesa Aphra Behn (1640–1689) foi dramaturga, romancista, poeta e espiã. A biografia
Aphra Behn: The Incomparable Astraea, de Vita Sackville-West, foi publicada em 1927. [N.
de T.] ↩
60. Georgina Elizabeth Ward, condessa de Dudley (1846–1929), aristocrata inglesa. [N. de E.] ↩
61. Elizabeth Carter (1717–1806) foi uma poeta, romancista, tradutora e linguista britânica. No
ensaio “The Bluest of the Blue”, Virginia Woolf explica que Carter amarrou um sino à
cabeceira de sua cama, cujo fio passava por uma fenda na janela do quarto e chegava ao
jardim. “Às quatro ou cinco da manhã, um sacristão simpático tocava o sino, Elizabeth
pulava da cama e estudava até as seis.” [N. de T.] ↩
62. Referência à poeta grega Safo (c. 630 a.C.–c. 570 a.C.), conforme é descrita no poema “Ave
atque Vale (In Memory of Charles Baudelaire)”, de Algernon Charles Swinburne (1837–
1909). [N. de T.] ↩
63. Memoir of Jane Austen, de seu sobrinho, James Edward Austen-Leigh. [N. da A.] ↩
64. George Eliot (1819–1880) viveu por 24 anos com o crítico George Henry Lewes, que era
casado e não podia obter o divórcio por questões jurídicas. Eles se mudaram para uma casa
chamada Priory [Priorado] no distrito de St. John’s Wood, no norte de Londres. [N. de T.] ↩
65. “[Ela] tem um propósito metafísico, o que é uma obsessão perigosa, especialmente em uma
mulher, pois elas raramente possuem a saudável paixão que os homens têm pela retórica. É
uma falha estranha para um sexo que, em outros domínios, é mais primitivo e materialista.”
(New Criterion, junho de 1928). [N. da A.] ↩
66. “Se, como este repórter, você acredita que as romancistas devem apenas aspirar à excelência
reconhecendo corajosamente as limitações de seu sexo (Jane Austen demonstrou como
esse gesto pode ser graciosamente realizado) […].” Life and Letters, agosto de 1928. [N. da A.]
↩
67. O escritor escocês Robert Louis Stevenson (1850–1894) descreveu assim seu aprendizado
literário: “Fui um diligente imitador de Hazlitt, Lamb, Wordsworth, sir Thomas Browne,
Defoe, Hawthorne, Montaigne, Baudelaire e Obermann”. (Memories and Portraits. Londres:
Chatto and Windus, 1887.) [N. de T.] ↩
68. A citação é do ensaísta inglês William Hazlitt (1778–1830), referindo-se às obras de grandes
pintores no ensaio “On Application to Study”. [N. de T.] ↩
5.
69. Mary Carmichael é um dos nomes fictícios da balada escocesa mencionada no primeiro
capítulo deste livro. Já Marie Carmichael era o pseudônimo da acadêmica britânica Marie
Stopes (1880–1958), que em 1928 publicou um romance chamado Love’s Creation [A criação
do amor]. Mas o livro que Woolf discute aqui é inteiramente fictício. [N. de T.] ↩
70. Emma Woodhouse e o pai são personagens de Emma, de Jane Austen, publicado em 1816.
[N. de T.] ↩
71. Sir Chartres Biron foi o juiz que, em 1928, baniu o romance The Well of Loneliness [O poço da
solidão], de Radclyffe Hall (pseudônimo de Marguerite Antonia Radclyffe-Hall), por
obscenidade. Woolf foi uma das defensoras do livro, que abordava a homossexualidade
feminina. [N. de T.] ↩
72. O romance Diana of the Crossways [Diana das encruzilhadas] foi escrito por George
Meredith e publicado em 1885. Virginia Woolf se refere à amizade entre Diana Warwick, a
heroína do livro, e lady Emma Dunstane. [N. de T.] ↩
73. Marcel Proust (1871–1922), escritor francês, autor de Em busca do tempo perdido. É
considerado um dos maiores romancistas a escrever sobre o amor. [N. de E.] ↩
74. Sir Hawley Butts é um personagem provavelmente fictício. Debrett’s Peerage and
Baronetage, publicado pela primeira vez em 1769, e Burke’s Peerage, de 1826, são guias de
referência sobre a aristocracia britânica. [N. de T.] ↩
75. O Almanaque Whitaker é um livro de referência publicado anualmente desde 1868, no Reino
Unido. Os calendários das universidades de Oxford e Cambridge também têm periodicidade
anual. [N. de T.] ↩
76. O político conservador William Joynson-Hicks, visconde de Brentford, foi ministro do
interior de 1924 a 1929, e teve um papel central no banimento do romance The Well of
Loneliness. [N. de T.] ↩
77. Hester Lynch Thrale (1741–1821) foi autora de diários e poeta, amiga íntima de Samuel
Johnson (1709–1784), crítico, poeta e ensaísta. Ela morava em Streatham, na zona sul de
Londres. A amizade entre os dois foi abalada pelo casamento de Thrale com o músico
italiano Gabriel Piozzi, em julho de 1784. Johnson morreu no fim desse ano. Já a referência
sobre a “luz da sua vida” que teria “como se apagado” é do historiador e ensaísta escocês
Thomas Carlyle, refletindo sobre a morte da esposa, Jane Welsh Carlyle. [N. de T.] ↩
78. Decimus Junius Juvenalis foi um poeta romano nascido no século I que atacou as mulheres
em uma de suas sátiras. O dramaturgo sueco August Strindberg (1849–1912) se
autoproclamou misógino. [N. de T.] ↩
79. O sr. Woodhouse é o patriarca em Emma, de Jane Austen, e o sr. Casaubon é o marido de
Dorothea Brooke, heroína de Middlemarch, de George Eliot. [N. de T.] ↩
6.
Aqui, então, Mary Beton para de falar. Ela lhes contou como chegou à
conclusão — a prosaica conclusão — de que é necessário ter quinhentas
libras por ano e um quarto com tranca na porta para escrever ficção ou
poesia. Ela tentou expor os pensamentos e impressões que a levaram a
pensar dessa forma. Pediu que vocês a seguissem enquanto voava para
os braços de um bedel, em um almoço aqui, um jantar ali, fazendo
desenhos no Museu Britânico, pegando livros da estante, olhando para
fora da janela. Enquanto ela fazia tudo isso, vocês sem dúvida
observaram suas falhas e fraquezas, decidindo que efeito elas tinham
sobre suas opiniões. Ficaram contestando e fazendo todos os acréscimos
e deduções que lhes pareceram adequados. É assim que deve ser, pois,
em um assunto como esse, a verdade só aparece ao acumular inúmeras
variedades de erro. E irei terminar em meu próprio nome, antecipando
duas críticas tão óbvias que vocês dificilmente deixariam de fazê-las.
Nenhuma opinião foi emitida, vocês podem dizer, sobre os méritos
comparativos dos sexos, nem mesmo como escritores. Isso foi
proposital, pois, ainda que houvesse chegado a hora de tal avaliação — e
no momento é muito mais importante saber de quanto dinheiro e de
quantos quartos as mulheres dispunham, mais do que teorizar sobre
suas capacidades —, ainda que houvesse chegado a hora, eu não acredito
que os talentos, sejam mentais ou de personalidade, possam ser pesados
como açúcar e manteiga; nem mesmo em Cambridge, onde eles são tão
adeptos a dividir as pessoas em categorias, botando barretes em suas
cabeças e letras depois de seus nomes. Não acredito que nem mesmo a
Tabela de Precedência que encontramos no Almanaque Whitaker
represente uma ordem final de valores, ou que exista qualquer boa razão
para supor que um Comendador da Ordem de Bath irá eventualmente se
dispor a jantar depois de um Mestre de Insanidades.87 Toda essa
insistência em colocar um sexo contra o outro e uma qualidade contra a
outra, toda essa pretensão de superioridade e imputação de
inferioridade pertencem ao estágio escolar da existência humana, no
qual há “lados” e é necessário que um deles vença, e no qual é de máxima
importância caminhar até um palco e receber das mãos do diretor em
pessoa um troféu altamente ornamentado. Conforme as pessoas
amadurecem, elas deixam de acreditar em lados, em diretores ou em
troféus altamente ornamentados. Em todo caso, no que diz respeito aos
livros, é notoriamente difícil fixar rótulos de mérito que não descolem.
Não seriam as críticas de literatura contemporânea um eterno exemplo
da dificuldade de julgamento? “Este ótimo livro”, “este livro inútil” — o
mesmo livro é chamado de ambas as coisas. Tanto o elogio quanto a
censura não querem dizer nada. Não, por mais agradável que seja o
passatempo de julgar, é a mais fútil das ocupações, e submeter-se aos
decretos dos julgadores é a mais servil das atitudes. Tudo o que importa
é que você escreva o que quiser escrever; e se irá importar por séculos ou
só por algumas horas, ninguém pode dizer. Mas sacrificar um único fio
de cabelo de sua visão, uma mera tonalidade de sua paleta de cores, em
deferência a um diretor com um troféu prateado nas mãos ou a um
professor com uma fita métrica na manga é a traição mais abjeta; e o
sacrifício da riqueza e da castidade, que diziam ser as maiores tragédias
para um ser humano, não passam, em comparação, de meras mordidas
de pulga.
Em seguida, penso que vocês podem objetar que, em tudo isso, dei
demasiada ênfase à importância das coisas materiais. Mesmo admitindo
uma margem generosa para o simbolismo — de que quinhentas libras
por ano representa o poder de contemplar e de que uma tranca na porta
significa o poder de pensar por si só —, ainda assim vocês podem dizer
que a mente deveria se colocar acima de todas essas coisas; e que
grandes poetas foram com frequência homens pobres. Deixem-me então
citar as palavras de seu próprio professor de literatura, que sabe melhor
do que eu o que é necessário para formar um poeta. Sir Arthur Quiller-
Couch escreve:88
Quais foram os grandes nomes da poesia nos últimos cem anos, aproximadamente?
Coleridge, Wordsworth, Byron, Shelley, Landor, Keats, Tennyson, Browning, Arnold,
Morris, Rossetti, Swinburne — podemos parar por aqui. Desses, todos menos Keats,
Browning e Rossetti frequentaram a universidade, e desses três, Keats, que morreu jovem,
interrompido em seu ápice, era o único que não tinha posses. Pode parecer uma coisa cruel
de se dizer, e é uma coisa triste de se dizer: mas a dura realidade é que a teoria de que a
genialidade poética sopra onde quiser, e igualmente em pobres e ricos, não contém muita
verdade. A dura realidade é que nove desses doze frequentaram a universidade: o que
significa que, de uma forma ou de outra, encontraram um modo de obter a melhor educação
que a Inglaterra pode prover. A dura realidade é que, dos últimos três, sabemos que
Browning tinha posses, e garanto a vocês que, se não fosse assim, não teria conseguido
escrever “Saul” ou “O anel e o livro”, não mais do que Ruskin teria conseguido escrever
Pintores modernos se o pai dele não tivesse tido sucesso nos negócios. Rossetti dispunha de
uma pequena renda particular e, além disso, pintava. Resta apenas Keats, a quem Átropos
ceifou ainda jovem, assim como ceifou John Clare em um manicômio, e James Thomson
por meio do láudano que tomava para amortecer a decepção. São fatos horríveis, mas
vamos encará-los. Por mais que isso seja uma vergonha para a nossa nação, é certo que, por
alguma falha de nosso sistema, o poeta pobre não tem a menor chance em nossa época,
assim como não teve nos últimos duzentos anos. Acreditem — e passei uns bons dez anos
observando algo como trezentos e vinte estudantes do ensino básico —, podemos falar
muito em democracia, mas, na verdade, uma criança pobre na Inglaterra tem tantas
chances quanto o filho de um escravo ateniense de ganhar acesso a essa liberdade
intelectual da qual nascem os grandes escritos.
Ninguém poderia ser mais claro. “O poeta pobre não tem a menor
chance em nossa época, assim como não teve nos últimos duzentos anos.
[…] Uma criança pobre na Inglaterra tem tantas chances quanto o filho
de um escravo ateniense de ganhar acesso a essa liberdade intelectual da
qual nascem os grandes escritos.” É isso. A liberdade intelectual depende
de coisas materiais. A poesia depende da liberdade intelectual. E as
mulheres sempre foram pobres, não só nos últimos duzentos anos, mas
desde o início dos tempos. As mulheres possuem menos liberdade
intelectual do que os filhos de escravos atenienses. As mulheres,
portanto, não têm a menor chance de escrever poesia. Foi por isso que
dei tanta ênfase no dinheiro e em um quarto só seu. Porém, graças à
labuta daquelas mulheres obscuras do passado, de quem eu gostaria que
soubéssemos mais coisas, e graças, curiosamente, a duas guerras — a da
Crimeia, que tirou Florence Nightingale de sua sala de estar, e a da
Europa, que abriu as portas para as mulheres comuns cerca de sessenta
anos mais tarde —, esses males estão sendo corrigidos. Do contrário
vocês não estariam aqui hoje à noite, e suas chances de ganhar
quinhentas libras por ano — precárias como eu temo que ainda sejam —
seriam minúsculas ao extremo.
Ainda assim, vocês podem objetar, por que você atribui tanta
importância à escrita de livros pelas mulheres, quando, de acordo com o
que diz, é algo que requer tanto esforço que talvez leve ao assassinato de
uma tia,89 que faz com que alguém certamente chegue atrasado para o
almoço, e que pode levar uma pessoa a entrar em sérios atritos com
certos excelentes acadêmicos? Minhas razões, deixem-me admitir, são
em parte egoístas. Assim como muitas mulheres inglesas sem educação
formal, gosto de ler — gosto de ler pilhas de livros. Ultimamente minha
dieta anda um bocado monótona: a história fala demais sobre guerras; as
biografias, sobre grandes homens; a poesia tem mostrado, penso, uma
tendência para a esterilidade; e a ficção… Mas já expus o suficiente
minhas deficiências como crítica da ficção moderna e não falarei mais
sobre isso. Portanto, peço a vocês que escrevam todo tipo de livros, não
hesitando diante de nenhum tema, por mais trivial ou extenso que seja.
De uma forma ou de outra, espero que disponham de dinheiro suficiente
para viajar e andar por aí, para contemplar o futuro ou o passado do
mundo, para sonhar com livros, para vagar nas esquinas e deixar a linha
do pensamento afundar na correnteza. Pois não estou, de modo algum,
restringindo vocês à ficção. Se dependesse de mim — e há milhares como
eu —, vocês escreveriam livros de viagem e aventura, de pesquisa e
estudos acadêmicos, de história e biografia, de crítica, filosofia e ciência.
Ao fazê-lo, certamente irão contribuir com a arte da ficção. Pois os livros
têm um jeito de influenciar uns aos outros. Seria bem melhor para a
ficção se ela estivesse de mãos dadas com a poesia e a filosofia. Além
disso, quando consideramos qualquer grande figura do passado — como
Safo, lady Murasaki, Emily Brontë —, descobrimos que ela foi uma
herdeira, além de pioneira, e só veio a existir porque as mulheres
passaram a ter o hábito de escrever com naturalidade; de modo que,
mesmo como um prelúdio à poesia, essa atividade da parte de vocês seria
inestimável.
Mas quando revejo essas anotações e critico minha própria linha de
raciocínio conforme a elaborava, descubro que minhas razões não são de
todo egoístas. Ao longo desses comentários e digressões, corre a
convicção — ou seria o instinto? — de que bons livros são desejáveis e de
que bons escritores, mesmo que mostrem toda variedade de depravações
humanas, ainda assim são bons seres humanos. Portanto, quando eu
peço que vocês escrevam mais livros, incentivo-as a fazer algo que será
bom para vocês e para o mundo como um todo. Não sei como justificar
esse instinto ou crença, pois as palavras filosóficas, quando não tivemos
uma educação universitária, tendem a ser traiçoeiras. O que quer dizer
“realidade”? Parece ser algo muito errático, muito indigno de confiança
— algo a ser encontrado ora em uma estrada poeirenta, ora em um
recorte de jornal na rua, ora em um narciso ao sol. Pode iluminar um
grupo reunido em uma sala e pontuar alguma conversa casual. Pode
dominar completamente alguém que vai para casa sob a luz das estrelas,
tornando o mundo do silêncio mais real do que o mundo das palavras — e
então lá está ela de novo em um ônibus em meio à balbúrdia de
Piccadilly. Às vezes ela também parece residir em formas demasiado
distantes de nós para que possamos discernir sua natureza. Mas, a
qualquer coisa que toca, ela confere definição e permanência. É isso que
persiste quando o dia se encerrou; é o que resta do tempo passado e de
nossos amores e ódios. Agora, o escritor, penso eu, tem a chance de viver
mais do que os outros na presença dessa realidade. É seu papel encontrá-
la, coletá-la e transmiti-la ao resto de nós. Pelo menos é isso que deduzo
ao ler Rei Lear, Emma ou Em busca do tempo perdido. Pois a leitura
desses livros parece empreender uma curiosa cirurgia de catarata em
nossos sentidos: enxergamos mais intensamente depois dela; o mundo
parece se despir de seus véus e ganhar uma vida mais intensa. Há
pessoas invejáveis que vivem em um estado de hostilidade com a
irrealidade; e há aquelas deploráveis, que são nocauteadas pela coisa
feita sem conhecimento ou cuidado. Por isso, quando peço a vocês que
ganhem dinheiro e tenham um quarto só seu, estou pedindo que vivam
em presença da realidade, uma vida revigorante, ao que parece, quer
consigam ou não a transmitir.
Eu pararia por aqui, mas a pressão das convenções exige que todo
discurso termine com uma peroração. E uma peroração dirigida às
mulheres deveria ter, vocês hão de concordar, algo particularmente
enaltecedor e enobrecedor. Eu deveria implorar para que vocês se
lembrem de suas responsabilidades e sejam mais elevadas, mais
espirituais; deveria alertá-las de quanta coisa depende de vocês, e
quanta influência vocês podem exercer sobre o futuro. Mas essas
exortações, penso eu, podem ser deixadas seguramente para o sexo
oposto, que as irá apresentar — e de fato o fez — com muito mais
eloquência do que eu poderia almejar. Quando vasculho minha própria
mente, não encontro sentimentos nobres sobre sermos companheiras,
iguais e inspirarmos o mundo a fins mais elevados. Vejo-me dizer, de
forma breve e prosaica, que é muito mais importante ser você mesma do
que qualquer outra coisa. Não sonhem em influenciar outras pessoas, eu
diria, se soubesse como fazer isso soar elevado. Pensem nas coisas por si
próprias.
E de novo sou lembrada, ao folhear jornais, romances e biografias, que
uma mulher, ao falar para outras mulheres, deve ter algo muito
desagradável escondido na manga. As mulheres são duras umas com as
outras. As mulheres não gostam de mulheres. As mulheres… mas vocês
não estão cansadas dessa palavra? Garanto que eu estou. Vamos
concordar, portanto, que um artigo lido por uma mulher para outras
mulheres deve terminar com algo particularmente desagradável.
Mas como fazer isso? Em que posso pensar? A verdade é que eu
geralmente gosto das mulheres. Gosto da falta de convencionalidade
delas. Gosto de sua completude. Gosto de seu anonimato. Eu gosto… mas
não devo ir por esse caminho. Aquele armário ali — vocês dizem que só
contém guardanapos limpos, mas e se sir Archibald Bodkin90 estiver
escondido entre eles? Deixem-me adotar um tom mais austero. Em tudo
o que disse até aqui, será que lhes transmiti de forma satisfatória as
advertências e a reprovação do sexo masculino? Contei-lhes a péssima
opinião que o sr. Oscar Browning tinha de vocês. Mencionei o que
Napoleão pensava de vocês no passado e o que Mussolini pensa hoje em
dia. Depois, caso alguma de vocês queira se dedicar à ficção, copiei, para
seu próprio bem, o conselho dos críticos sobre reconhecer
corajosamente as limitações de seu sexo. Fiz referência ao professor X e
dei ênfase a sua declaração de que as mulheres são intelectual, moral e
fisicamente inferiores aos homens. Transmiti tudo o que me caiu nas
mãos sem que eu precisasse procurar, e aqui vai uma advertência final: é
do sr. John Langdon Davies.91 O sr. John Lagdon Davies avisa às
mulheres que “quando as crianças deixam de ser de todo desejáveis, as
mulheres deixam de ser de todo necessárias”. Espero que vocês tomem
nota disso.
Como eu poderia encorajá-las ainda mais a seguir com a vida?
Mulheres jovens, eu diria, e por favor prestem atenção, pois a peroração
está começando: você são, em minha opinião, desgraçadamente
ignorantes. Nunca fizeram uma descoberta de qualquer importância.
Nunca abalaram um império ou lideraram um exército em batalha. Não
foram vocês que escreveram as peças de Shakespeare, e nunca
apresentaram a uma raça de bárbaros as maravilhas da civilização. Qual
é a sua desculpa? Vocês poderiam muito bem dizer — apontando para as
ruas, praças e florestas do globo, repletas de habitantes negros, brancos e
pardos, todos ocupados com o tráfego, os negócios e o sexo: tínhamos
outros trabalhos a fazer. Sem nossas ações, os mares não teriam sido
navegados e as terras férteis continuariam desertas. Nós parimos,
alimentamos, limpamos e educamos, talvez até a idade de seis ou sete
anos, um bilhão e seiscentos e vinte e três milhões de seres humanos que
existem hoje, de acordo com as estatísticas — e isso, mesmo admitindo
que algumas de nós tiveram ajuda, toma tempo.
Há verdade no que dizem, não vou negar. Mas, ao mesmo tempo, posso
lembrá-las de que existem pelo menos duas faculdades para mulheres na
Inglaterra desde 1866; que desde 1880 a lei permite que uma mulher
casada tenha posse de sua propriedade; e que em 1919, e isso já faz nove
anos, ela tem direito ao voto? Posso também lembrá-las de que a maioria
das profissões está acessível a vocês já faz quase dez anos? Quando
refletimos sobre esses enormes privilégios e sobre há quanto tempo
desfrutamos deles, e sobre o fato de que deve haver, no momento, umas
duas mil mulheres capazes de ganhar, de alguma maneira, mais de
quinhentas libras por ano, vocês hão de concordar que a desculpa da
falta de oportunidade, formação, encorajamento, lazer e dinheiro não se
sustenta mais. Além disso, os economistas nos dizem que a sra. Seton
teve filhos demais. Vocês devem, é claro, continuar a ter filhos, mas,
segundo eles, aos pares e trios, e não às dezenas e dúzias.
E assim, com algum tempo disponível e com o conhecimento obtido
dos livros — pois do outro tipo vocês já tiveram o suficiente, e são
mandadas para a faculdade, desconfio eu, para desaprender —, vocês
certamente irão embarcar em outro estágio de suas longas, laboriosas e
altamente obscuras carreiras. Milhares de penas estarão prontas para
dizer o que vocês devem fazer e que efeito terão. Minha sugestão é um
tanto fantástica, admito; prefiro apresentá-la, portanto, sob a forma de
ficção.
No decorrer deste artigo, eu lhes disse que Shakespeare tinha uma
irmã; mas não procurem por ela na biografia do poeta escrita por sir
Sidney Lee. Ela morreu jovem — infelizmente nunca escreveu uma
palavra. Está enterrada onde os ônibus hoje param, diante de Elephant
and Castle. Agora, eu acredito que essa poeta que nunca escreveu uma
palavra e que jaz na encruzilhada ainda vive. Ela vive em você e em mim,
e em muitas outras mulheres que não estão aqui hoje à noite, pois estão
lavando a louça e botando as crianças para dormir. Mas ela vive, pois os
grandes poetas não morrem; são presenças constantes; precisam apenas
de uma oportunidade para caminhar entre nós em carne e osso. Essa
oportunidade, penso eu, logo estará ao alcance de vocês. Pois acredito
que, se vivermos por aproximadamente mais um século — estou falando
da vida comum que é a vida real, e não das vidinhas isoladas que temos
individualmente —, e se tivermos quinhentas libras e quartos próprios;
se cultivarmos o costume da liberdade e a coragem de escrever
exatamente o que pensamos; se escaparmos um pouco da sala de estar
comum para enxergar os seres humanos não só em relação uns com os
outros, mas com a realidade; e também com o céu, as árvores ou qualquer
coisa que possa existir em si mesma; se olharmos para além do fantasma
de Milton, pois nenhum ser humano deve encobrir nossa visão; se
encararmos o fato (pois é um fato) de que não há nenhum braço em que
nos apoiarmos, mas que seguimos sozinhas e que nossa relação é com o
mundo da realidade, não só com o mundo dos homens e mulheres; então
a oportunidade surgirá, e a poeta morta que foi a irmã de Shakespeare irá
vestir o corpo que tantas vezes abandonou. Extraindo sua vida da vida
das desconhecidas que foram suas precursoras, como o irmão dela fez no
passado, ela irá nascer. Quanto à sua vinda sem essa preparação, sem
esse esforço de nossa parte — sem a certeza de que, quando renascer, ela
verá que é possível viver e escrever sua poesia —, isso não podemos
esperar, pois seria impossível. Mas insisto que ela virá se trabalharmos
por ela, e que portanto trabalhar, mesmo na pobreza e na obscuridade,
vale a pena.
80. Whitehall é uma rua que vai de Trafalgar Square até Parliament Square e que abriga
inúmeros prédios do governo britânico, além de estátuas de homens célebres e um
memorial de guerra. A estátua do duque de Cambridge, citada ao final do capítulo 2, se
localiza em Whitehall. [N. de T.] ↩
81. No original, a letra e o pronome “I”, que significa “eu”. [N. de T.] ↩
82. Anne Jemima Clough (1820–1892) foi sufragista e defensora da educação das mulheres. Foi
também a primeira diretora do Newnham College e dá nome ao Clough Hall, salão onde
Virginia Woolf fez seu discurso em 1928. Sarah Emily Davies (1830–1921) também foi
sufragista e defensora da educação das mulheres, e uma das primeiras diretoras do Girton
College. [N. de T.] ↩
83. O patriarca da família Forsyte no livro A saga dos Forsytes, de John Galsworthy (1867–
1933). [N. de T.] ↩
84. Referências aos escritos de Rudyard Kipling (1865–1936), prêmio Nobel de literatura de
1907, que escreveu romances, contos e poemas sobre o imperialismo britânico e os militares
na Índia. [N. de T.] ↩
85. Sir Walter Alexander Raleigh (1861–1922) foi o primeiro detentor da cátedra de literatura
inglesa da universidade de Oxford. Ao longo de sua carreira, escreveu obras sobre escritores
como Stevenson, Milton, Wordsworth e Shakespeare, mas, após a eclosão da Primeira
Guerra Mundial, seus interesses se voltaram quase que exclusivamente ao militarismo.
Virginia Woolf ajudou a compilar suas cartas postumamente, em 1926. [N. de T.] ↩
86. As citações foram tiradas da matéria “Literature in Italy”, do jornal The Times de 26 de maio
de 1928. O ditador fascista Benito Mussolini (1883–1945), Il Duce, ascendeu ao poder na
Itália em 1922. [N. de T.] ↩
87. A Tabela de Precedência do Almanaque Whitaker relacionava a hierarquia formal da
sociedade britânica, dos reis até os cavalheiros. A ordem de Bath é a terceira ordem de
cavalaria mais alta, estabelecida pelo rei George I em 1725. Os Mestres de Insanidades
(Masters in Lunacy, no original) eram funcionários do poder judiciário que fiscalizavam os
hospitais psiquiátricos e cuidavam de outras questões relativas aos doentes mentais. [N. de
T.] ↩
88. The Art of Writing [A arte da escrita], de sir Arthur Quiller-Couch. [N. da A.] ↩
89. Em setembro de 1929, a editora Hogarth Press, de propriedade de Virginia e Leonard Woolf,
publicou o romance policial Death of My Aunt [Morte da minha tia], do escritor C. H. B.
Kitchin. Foi um sucesso comercial. [N. de T.] ↩
90. Sir Archibald Bodkin foi advogado e chefe da procuradoria pública no período de 1920 a
1930, envolvido no julgamento por obscenidade do livro The Well of Loneliness e de outras
obras literárias. É a terceira referência que Woolf faz a personagens importantes desse
julgamento, depois do juiz, sir Chartres Biron, e do ministro do interior, sir William
Joynson-Hicks. [N. de T.] ↩
91. A Short History of Women [Uma breve história das mulheres], de John Langdon Davies. [N.
da A.] ↩
Virginia Woolf (1882-1941) foi uma das mais influentes escritoras
britânicas. É conhecida por seu principal romance, Mrs. Dalloway
(1925), e por suas dezenas de ensaios pioneiros sobre arte, literatura e
política, entre os quais o mais famoso, Um teto todo seu (1929). Suas
obras de ficção e de não ficção têm um estilo marcante e inovador, e
abordam temas como guerra, arte, poder, gênero e a necessidade de
reformar a sociedade.
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
W913t
Woolf, Virginia
Um teto todo seu / Virginia Woolf ; tradução de Vanessa
Barbara. – Rio de Janeiro : Antofágica, 2024.
164 p. ; (coleção de bolso)
Formato: e-book
Título original: A Room of One’s Own
•
ISBN 978 65 80210 85 5
•
1. Literatura inglesa. I. Barbara, Vanessa. II. Título.
[email protected]
instagram.com/antofagica
youtube.com/antofagica
Rio de Janeiro — RJ
Esta edição é um tributo a todas
as irmãs jamais reconhecidas de
Shakespeare.
Brás Cubas está morto. Mas isso não o impede de relatar em seu
livro os acontecimentos de sua existência e de sua grande ideia fixa:
lançar o Emplasto Brás Cubas. Deus te livre, leitor, de uma ideia
fixa. O medicamento anti-hipocondríaco torna-se o estopim de uma
série de lembranças, reminiscências e digressões da vida do
defunto autor. Publicado em 1881, escrito com a pena da galhofa e
a tinta da melancolia, Memórias Póstumas de Brás Cubas é,
possivelmente, o mais importante romance brasileiro de todos os
tempos. Inovador, irônico, rebelde, toca no que há de mais profundo
no ser humano. Mas vale avisar: há na alma desse livro, por mais
risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero. A edição da
Antofágica conta com 88 ilustrações de um dos expoentes da arte
no Brasil, Candido Portinari, que chegam pela primeira vez ao
grande público e dão uma nova camada de interpretação ao
clássico. livro traz ainda com notas inéditas e posfácio de Rogério
Fernandes dos Santos, especialista na obra machadiana, um perfil
do autor escrito por Ale Santos (@savagefiction), além de uma
introdução de Isabela Lubrano, do canal Ler Antes de Morrer.