Um Teto Todo Seu - Virginia Woolf

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Editorial

ROBERTO JANNARELLI
ISABEL RODRIGUES
CAROLINA LEAL
DAFNE BORGES

Comunicação
MAYRA MEDEIROS
GABRIELA BENEVIDES
JULIA COPPA

Preparação
ISADORA PROSPERO

Revisão
GIOVANA BOMENTRE
NATÁLIA MORI MARQUES

Cotejo
KARINA NOVAIS

Capa
FILIPE ACA
HANA LUZIA

Projeto grá ico


GIOVANNA CIANELLI

Diagramação
DESENHO EDITORIAL

Produção do livro digital


BOOKNANDO

TRADUÇÃO E NOTAS:
VANESSA BARBARA

SE DISTRAÍRAM AO VER UM GATO SEM RABO:


RAFAEL DRUMMOND
&
SERGIO DRUMMOND
Este ensaio se baseou em dois artigos lidos
para a Arts Society, do Newnham College, e
para a ODTAA Society, do Girton College, em
outubro de 1928.* Os artigos eram longos
demais para serem lidos em sua totalidade,
e foram desde então modificados e
expandidos.

* Fundadas em 1869 e 1871, respectivamente, Girton e Newnham foram as faculdades femininas


de Cambridge, que à época marcaram o ingresso de mulheres nessa universidade inglesa.
Newnham é até hoje gerida e frequentada por mulheres. ODTAA era a sigla de um grupo
estudantil chamado One Damn Thing After Another [Uma Maldita Coisa Depois da Outra]. [N.
de E.] ↩
Sumário

Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
1.

Mas, vocês podem dizer, pedimos para você falar sobre mulheres e
ficção — o que isso tem a ver com um quarto só seu?1 Vou tentar explicar.
Quando vocês me pediram para falar sobre mulheres e ficção, sentei-me
à beira de um rio e comecei a pensar sobre o que essas palavras
significavam. Elas poderiam apenas implicar em algumas observações
sobre Fanny Burney; algumas outras sobre Jane Austen; um tributo às
irmãs Brontë e uma descrição do presbitério de Haworth sob a neve;
algumas gracinhas sobre a srta. Mitford, se possível; uma alusão
respeitosa a George Eliot; uma referência à sra. Gaskell,2 e pronto, seria
o suficiente. Mas, à segunda vista, as palavras não me pareceram tão
simples. O título “As mulheres e a ficção” poderia significar, como vocês
talvez tenham desejado, as mulheres e como elas são, ou as mulheres e a
ficção que elas escrevem; ou poderia significar as mulheres e a ficção que
se escreve sobre elas; ou talvez essas três opções estejam
inextricavelmente emaranhadas e vocês gostariam que eu as
considerasse sob esse ponto de vista. Mas, quando comecei a examinar o
assunto sob esta última ótica, que me pareceu a mais interessante, eu
logo vi que havia nela um empecilho fatal. Eu nunca seria capaz de
chegar a uma conclusão. Nunca conseguiria cumprir aquilo que, a meu
ver, é a principal obrigação de um palestrante: entregar, após uma hora
de discurso, uma pura pepita de verdade que vocês possam resumir nas
páginas dos seus cadernos e manter na mesinha de cabeceira para
sempre. Tudo o que eu podia oferecer era uma opinião sobre um tópico
menor: de que uma mulher, para escrever ficção, precisa ter dinheiro e
um quarto só seu; e isso, como vocês irão ver, não resolve o problema
maior da verdadeira natureza da mulher e da verdadeira natureza da
ficção. Eu me esquivei da tarefa de chegar a uma conclusão sobre essas
duas questões — as mulheres e a ficção continuam, até onde eu sei,
problemas não resolvidos. Mas, como forma de compensação, farei o
possível para mostrar a vocês como cheguei a essa conclusão sobre o
quarto e o dinheiro. Vou desenvolver diante de vocês, da forma mais
completa e livre, a linha de raciocínio que me levou a pensar dessa
forma. Talvez, se eu evidenciar as ideias e os preconceitos que se
escondem por trás dessa afirmação, vocês descubram que elas têm
relação tanto com as mulheres como com a ficção. Em todo caso, quando
um assunto é altamente controverso — como em qualquer questão
relativa a sexo —, não temos como pretender dizer a verdade. Só é
possível mostrar como se chegou a determinada opinião. Só é possível
dar à plateia a chance de tecer as próprias conclusões a partir das
limitações, dos preconceitos e das idiossincrasias do orador. É mais
provável que, nesse caso, a ficção contenha mais verdade do que os fatos.
Portanto, a minha proposta é contar, fazendo uso de todas as liberdades e
permissões de uma romancista, a história de dois dias que precederam
minha vinda a este local — como, curvada sob o peso do assunto que me
foi depositado nos ombros, eu ponderei a questão, enquanto a inseria e a
desenvolvia em meu dia a dia. Nem é preciso dizer que o que vou
descrever não existe; Oxbridge é uma invenção, assim como Fernham;3 o
“eu” é apenas um termo oportuno para alguém que não existe de verdade.
Meus lábios deixarão fluir muitas mentiras, mas haverá talvez alguma
verdade no meio delas; cabe a vocês buscar essa verdade e decidir se vale
a pena guardar alguma coisa. Se não valer, é claro, vocês irão jogar tudo
no lixo e esquecer o assunto.
Então lá estava eu (podem me chamar de Mary Beton, Mary Seton,
Mary Carmichael ou qualquer outro nome que preferirem, não tem
nenhuma importância),4 sentada às margens de um rio duas ou três
semanas atrás, num clima agradável de outubro, perdida em
pensamentos. Aquele fardo sobre o qual já falei — as mulheres e a ficção,
a necessidade de chegar a alguma conclusão sobre um assunto que
provoca todo tipo de preconceitos e paixões — pesava fortemente sobre
os meus ombros, encurvando minha cabeça até o chão. À direita e à
esquerda, alguns arbustos dourados e rubros brilhavam com uma cor
vibrante, pareciam até queimados pelo calor do fogo. Na margem oposta,
salgueiros choravam em um lamento perpétuo, os cabelos à altura dos
ombros. O rio refletia trechos à escolha de céu, ponte e árvore
flamejante, e, depois que um estudante passava com seu barco através
desses reflexos, eles se fechavam de novo, completamente, como se o
estudante nunca tivesse existido. Lá, alguém poderia deixar o relógio dar
voltas completas enquanto se perdia em pensamentos. O pensamento —
para usar uma palavra mais solene do que ele merecia — havia baixado
sua linha na correnteza. Ficou boiando, minuto após minuto, balançando
para lá e para cá entre os reflexos e as algas, deixando que a água o
erguesse e o afundasse até que… Bem, vocês conhecem aquele pequeno
puxão: a súbita aglomeração de uma ideia na ponta da linha, e então seu
recolhimento cauteloso e o momento de esticá-la caprichosamente?
Mas, ai!, como parecia pequeno e insignificante aquele meu pensamento
que eu via agora estendido na grama; o tipo de peixe que um bom
pescador devolve à água para que possa engordar e um dia ser digno de se
cozinhar e comer. Não irei incomodá-las com esse pensamento agora,
embora vocês possam descobri-lo por si mesmas no decorrer daquilo
que irei dizer, caso procurem com cuidado.
Mas, ainda que fosse pequeno, ele possuía a propriedade misteriosa de
sua espécie: quando devolvido à mente, se tornava de uma só vez muito
estimulante e importante. Conforme arremetia e afundava, ressurgindo
aqui e ali, provocava tamanho turbilhão e tumulto de ideias que para
mim era impossível ficar parada. Foi assim que me vi andando muito
depressa por um terreno gramado. Na mesma hora, surgiu a silhueta de
um homem para me deter. A princípio, não entendi que os gestos daquele
pitoresco objeto, de fraque e camisa, eram dirigidos a mim. Seu rosto
expressava horror e indignação. O instinto, no lugar da razão, veio em
meu socorro: ele era um bedel e eu era uma mulher. Aqui era o gramado;
lá estava a trilha. Apenas os alunos e professores podiam percorrer o
gramado; o cascalho era o meu lugar. Tais pensamentos foram
instantâneos. Conforme eu retomava a trilha, os braços do bedel
baixaram, seu rosto assumiu a serenidade habitual e, embora o gramado
seja mais agradável de percorrer do que o cascalho, nenhum grande dano
foi registrado. A única acusação que posso fazer contra os alunos e
professores daquela faculdade — qualquer que fosse ela — é que, para
proteger seu gramado, que vinha sendo aparado nos últimos trezentos
anos, eles acabaram por espantar meu peixinho.
Já não lembrava mais qual ideia havia me levado a cometer uma
invasão tão audaciosa. O espírito da paz baixou como uma nuvem do céu,
pois, se o espírito da paz paira em algum lugar, é nos pátios e átrios de
Oxbridge em uma bela manhã de outubro. Ao vagar por essas faculdades
e atravessar esses antigos átrios, a aspereza do presente parecia
suavizar-se; o corpo parecia encerrar-se em uma redoma de vidro
milagrosa que nenhum som era capaz de penetrar; e a mente, livre de
qualquer contato com os fatos (a menos que alguém invadisse o gramado
de novo), tinha a permissão de deter-se em qualquer reflexão que
estivesse em harmonia com o momento. Por obra do acaso, me veio à
mente a lembrança desgarrada de um ensaio de Charles Lamb sobre uma
visita a Oxbridge nas férias — santo Charles, de acordo com Thackeray,
pressionando uma de suas cartas contra a testa.5 De fato, entre todos os
mortos (conto a vocês meus pensamentos como eles se apresentaram a
mim), Lamb é um dos mais simpáticos, alguém a quem se tem vontade de
perguntar: “E então, como você escreveu seus ensaios?”. Pois os dele são
superiores inclusive aos de Max Beerbohm6, pensei, a despeito de toda a
perfeição destes últimos, graças àquele louco lampejo de imaginação,
àquela explosão luminosa de genialidade que os torna falhos e
imperfeitos, mas cravejados de poesia. Lamb veio a Oxbridge talvez uns
cem anos atrás. Sem dúvida ele escreveu um ensaio — cujo nome me
escapa7 — sobre o manuscrito de um dos poemas de Milton8 que ele leu
aqui. O poema era “Lycidas”, talvez, e Lamb contou como ficou chocado
só de pensar que era possível que qualquer palavra em “Lycidas” pudesse
ter sido diferente do que era. Pensar em Milton alterando as palavras
daquele poema lhe parecia uma espécie de sacrilégio. Isso me levou a
relembrar o que pude de “Lycidas” e me divertir adivinhando qual
palavra poderia ter sido alterada por Milton, e por quê. Então me ocorreu
que o próprio manuscrito que Lamb consultara estava a poucos metros
dali, de modo que seria possível seguir os passos de Lamb pelo átrio até a
famosa biblioteca onde o tesouro é mantido.9 Mais que isso: lembrei,
enquanto botava o plano em ação, que nessa famosa biblioteca também
se encontra o manuscrito de Esmond, de Thackeray. Muitos críticos
dizem que Esmond é o romance mais perfeito do autor. Mas, pelo que eu
me lembro, a afetação do estilo, com sua paródia ao século XVIII, é um
grande empecilho. A menos, é claro, que o estilo oitocentista fosse
natural a Thackeray — fato que alguém conseguiria provar consultando
o manuscrito e vendo se as alterações ocorreram em benefício do estilo
ou do sentido. Mas então essa pessoa teria de decidir o que é estilo e o
que é significado, uma questão que… mas lá estava eu diante da porta que
levava à biblioteca. Devo tê-la aberto, pois instantaneamente surgiu,
feito um anjo da guarda barrando o caminho, com o farfalhar de uma
túnica preta em lugar de asas brancas, um cavalheiro indignado, grisalho
e gentil, que, gesticulando-me para sair, lamentou em voz baixa que o
acesso à biblioteca só era permitido a mulheres acompanhadas de um
membro da faculdade ou munidas de uma carta de apresentação.
Que uma famosa biblioteca tenha sido amaldiçoada por uma mulher é
um assunto de total indiferença para essa famosa biblioteca. Venerável e
calma, com todos os seus tesouros trancados em segurança em seu seio,
ela dorme tranquilamente e irá, pelo que me consta, dormir para sempre.
Jamais despertarei esses ecos, jamais clamarei por sua hospitalidade
outra vez — jurei conforme descia os degraus, com raiva. Ainda faltava
uma hora para o almoço, e o que eu podia fazer? Passear pelos prados?
Sentar-me à beira do rio? Certamente era uma bela manhã de outono; as
folhas faziam dançar sombras vermelhas no chão e eu não teria
nenhuma dificuldade em executar qualquer uma dessas atividades. Mas
o som de música chegou aos meus ouvidos. Alguma missa ou celebração
estava em curso. O órgão soltou um lamento magnífico quando passei em
frente à porta da capela. Naquele ar sereno, até a aflição da cristandade
soava mais uma lembrança de aflição do que aflição em si; até os
grunhidos do órgão antigo pareciam envoltos em paz. Eu não tinha
nenhuma vontade de entrar, mesmo se por acaso tivesse o direito — e
dessa vez talvez o sacristão tivesse me barrado, exigindo a minha
certidão de batismo ou uma carta de apresentação do reitor. Mas a parte
externa dessas construções magníficas é, em geral, tão bela quanto seu
interior. Mais que isso: era suficientemente interessante assistir à
congregação se reunindo, entrando e saindo de novo, ocupando-se à
porta da capela como abelhas à entrada de uma colmeia. Muitos vestiam
beca e barrete, alguns tinham estolas de pele sobre os ombros;10 havia
ainda os que eram conduzidos em cadeira de rodas ou aqueles que,
mesmo que ainda não tivessem chegado à meia-idade, pareciam
enrugados e amassados em formas tão peculiares que lembravam
crustáceos gigantes se movendo com dificuldade pela areia de um
aquário. Conforme eu me recostava ao muro, a universidade de fato
parecia um santuário no qual viviam espécies raras e preservadas que
rapidamente se tornariam obsoletas se tivessem de lutar pela própria
sobrevivência nas ruas. Me vieram à mente velhas histórias de velhos
reitores e de velhos professores, mas, antes que eu tivesse reunido a
coragem de assoviar — diziam que, ao som de um assovio, havia um velho
professor que disparava em galope —, a venerável congregação já tinha
entrado. O exterior da capela permaneceu. Como vocês sabem, suas altas
cúpulas e seus pináculos têm iluminação noturna e podem ser vistos,
como um barco sempre navegando e nunca chegando, a quilômetros de
distância, muito além das colinas.11 Presume-se que um dia o átrio em si
— com seus gramados perfeitos, edifícios portentosos e a capela — tenha
sido um pântano também, onde o mato ondulava e a terra era remexida
por porcos. Parelhas de cavalos e bois, pensei, devem ter transportado as
pedras em carroças, vindas de locais distantes, e então, com um esforço
imenso, os blocos cinzentos à sombra dos quais eu agora me recostava
foram erguidos em ordem, um sobre o outro; e então os pintores
trouxeram o vidro para as janelas, e os pedreiros se ocuparam por
séculos naquele telhado, usando betume e cimento, pá e colher. Todos os
sábados alguém deve ter vertido ouro e prata de uma bolsa de couro
naquelas mãos antigas, pois tudo indica que à noite eles podiam tomar
cerveja e se divertir. Um fluxo interminável de ouro e prata, pensei, deve
ter jorrado neste pátio para garantir que as pedras continuassem
chegando e os pedreiros trabalhando perpetuamente; para que eles
pudessem nivelar, solapar, cavar e drenar. Mas aquela era a Idade da Fé e
não se economizou dinheiro para erigir essas pedras sobre uma
fundação sólida; e, depois que elas foram erguidas, ainda mais dinheiro
saiu dos cofres de reis, rainhas e nobres para assegurar que ali os hinos
seriam entoados e os acadêmicos lecionariam. Terras foram outorgadas;
dízimos foram pagos. E quando terminou a Idade da Fé e chegou a Era da
Razão, o mesmo fluxo de ouro e prata continuou a correr: bolsas de
pesquisa foram concedidas e cargos acadêmicos foram distribuídos. Só
que o ouro e a prata agora fluíam não dos cofres dos reis, mas dos baús
dos mercadores e industriais, ou seja, do bolso dos homens que fizeram
fortuna com a indústria, por exemplo, e devolveram em seus
testamentos uma parcela generosa dessa riqueza para custear mais
cátedras, mais cargos acadêmicos, mais bolsas de pesquisa na
universidade onde aprenderam seu ofício. Daí as bibliotecas e
laboratórios, os observatórios, o esplêndido acervo de instrumentos
caros e delicados que hoje ficam guardados em estantes de vidro, onde
séculos atrás o mato ondulava e os porcos remexiam a terra. Sem dúvida,
enquanto eu passeava pelo pátio, a fundação de ouro e prata me pareceu
profunda o suficiente; o pavimento fora assentado solidamente sobre o
mato. Homens com bandejas na cabeça subiam, ocupados, os lances de
escada. Flores vistosas desabrochavam nas floreiras. As notas do
gramofone ressoavam dos salões. Era impossível não pensar que… fosse
qual fosse essa reflexão, ela foi interrompida. O relógio soou. Era hora de
ir almoçar.
É curioso como os escritores nos fazem acreditar que os almoços
formais são invariavelmente memoráveis por causa de alguma coisa
muito engraçada que alguém disse ou por algo muito sábio que alguém
fez. Mas raramente dedicam uma palavra ao que foi servido. É parte de
um costume dos escritores não mencionar sopa, salmão e pato, como se
sopa, salmão e pato não tivessem importância alguma, e como se
ninguém jamais fumasse um charuto ou tomasse uma taça de vinho.
Aqui, porém, irei tomar a liberdade de desafiar essa convenção e contar-
lhes que, naquela ocasião,12 o almoço começou com um filé de linguado
— servido em um prato fundo — sobre o qual o cozinheiro da faculdade
espalhou uma camada de um creme muito branco, ainda que marcado
aqui e ali por pontos marrons, como as manchas nos flancos de uma
corça. Depois disso vieram as perdizes, mas, se isso faz vocês pensarem
em um par de aves carecas e marrons metidas em um prato, estão
enganadas. As perdizes, inúmeras e variadas, vieram com todo um
séquito de molhos e saladas, picantes e doces, cada qual a seu tempo; as
batatas eram finas feito moedas e não tão duras; as hortaliças, laminadas
como rosas, porém mais suculentas. E logo que a carne assada e seus
acompanhamentos foram embora, o calado garçom — talvez o próprio
bedel, em uma apresentação mais gentil — depositou diante de nós,
envolto em guardanapos, um doce com protuberantes ondas de açúcar.
Chamá-lo de pudim e assim relacioná-lo a arroz ou tapioca seria um
insulto. Enquanto isso, as taças de vinho se coloriam de amarelo e de
vermelho; eram esvaziadas e enchidas. E assim gradualmente se
acendeu através da espinha dorsal — que é o assento da alma — não
aquela pequena e concreta luz elétrica a que chamamos de brilhantismo,
e que entra e sai pelos nossos lábios, mas um calor mais profundo, sutil e
subterrâneo que é a chama rica e fulgurante da conversa racional. Sem
que precisássemos nos apressar. Sem que precisássemos impressionar
ou ser outra pessoa além de nós mesmos. Todos nós vamos para o céu e
Van Dyck será a nossa companhia13 — em outras palavras, como a vida
parecia boa, como eram doces suas recompensas, como era trivial esse
rancor ou aquele ressentimento, como era admirável a amizade e a
companhia de nossos pares, enquanto, após acender um bom cigarro,
nós nos afundávamos nas almofadas do assento junto à janela.
Se por acaso houvesse um cinzeiro à mão, se as cinzas não tivessem
sido lançadas pela janela de forma automática, se as coisas tivessem sido
um pouco diferentes do que foram, provavelmente eu não teria visto um
gato sem rabo. A visão daquele abrupto e mutilado animal caminhando
suavemente pelo átrio alterou, por um acaso da inteligência
subconsciente, o ângulo emocional para mim. Foi como se alguém
tivesse feito uma sombra. Talvez o excelente vinho branco alemão
estivesse perdendo o efeito. Certamente, conforme eu acompanhava o
gato manês parando no meio do gramado como se ele também estivesse
questionando o universo, algo me pareceu faltar, algo me soou diferente.
Mas o que estava faltando, o que era diferente?, eu me perguntei,
escutando a conversa. E para responder a essa pergunta eu precisei me
imaginar fora da sala, de volta ao passado, antes da guerra,14 e conceber
um outro modelo de almoço formal que ocorreu em salas não muito
distantes daquelas, mas diferentes. Tudo era diferente. Enquanto isso, a
conversa prosseguia entre os convidados, que eram muitos e jovens,
deste ou daquele sexo; a conversa fluía de modo fácil, agradável, livre e
divertido. E conforme ela se desenrolava eu a comparei com aquela outra
conversa, e enquanto fazia isso não tive dúvidas de que uma descendia
da outra, uma era legítima herdeira da outra. Nada havia mudado; nada
era diferente exceto que agora eu não ouvia completamente o que estava
sendo dito, mas o murmúrio ou a corrente por trás das palavras. Sim, era
isso: a mudança era clara. Antes da guerra, em um almoço como aquele,
as pessoas teriam dito exatamente as mesmas coisas, mas teriam soado
diferentes, pois naquela época eram acompanhadas por uma espécie de
zunido — não um ruído articulado, mas algo musical e empolgante, que
alterava o valor das próprias palavras. Seria possível traduzir esse
zunido em palavras? Talvez com a ajuda dos poetas. Havia um livro a
meu lado e, abrindo-o, voltei-me casualmente a Tennyson. E lá estava ele
cantando:

Caiu uma lágrima brilhante


Da flor de maracujá no portão.
Ela está vindo, minha pomba, minha querida;
Ela está vindo, minha vida, meu destino;
A rosa vermelha grita: “Ela está perto, perto”;
E a rosa branca lamenta: “Ela está atrasada”;
O delfínio escuta: “Estou ouvindo”;
E o lírio sussurra: “Vou esperar.”15

Era isso que os homens cantarolavam nos almoços antes da guerra? E


as mulheres?

Meu coração é como um pássaro a cantar


Cujo ninho está em um broto molhado;
Meu coração é como uma macieira
Cujos ramos se vergam com o peso das frutas;
Meu coração é como uma concha arco-íris
Que navega por um mar pacífico;
Meu coração está mais feliz do que tudo
Porque meu amor veio a mim.16

Era isso que as mulheres cantarolavam nos almoços antes da guerra?


Era tão ridículo pensar nas pessoas cantarolando essas coisas, mesmo
baixinho, em almoços antes da guerra, que explodi em risadas; tive de me
explicar apontando para o gato manês, que de fato parecia um tanto
absurdo — aquela pobre criatura sem rabo no meio do gramado. Será que
ele tinha nascido assim ou teria perdido o rabo em um acidente? O gato
sem rabo, embora talvez ainda existam alguns na ilha de Man, é mais
raro do que se pensa. É um animal esquisito, mais curioso do que belo. É
estranho ver quanta diferença faz um rabo — vocês sabem o tipo de
coisas que são ditas quando um almoço acaba e as pessoas estão pegando
seus casacos e chapéus.
Esse almoço, graças à hospitalidade do anfitrião, havia se estendido
por toda a tarde. O belo dia de outubro estava chegando ao fim e as folhas
caíam das árvores da avenida conforme eu passava. Portão após portão
pareciam fechar-se com uma disposição gentil atrás de mim. Múltiplos
bedéis encaixavam múltiplas chaves em fechaduras bem azeitadas; a
caixa-forte estaria segura para mais uma noite. Depois da avenida chega-
se a uma estrada — cujo nome esqueci — que leva até Fernham, caso você
vire no lugar certo.17 Mas havia muito tempo ainda. O jantar era só às
sete e meia. E, depois de um almoço daqueles, quase daria para dispensar
o jantar. É estranho como um fragmento de poesia opera em nossa mente
e faz as pernas se moverem ao seu ritmo através da estrada. Aquelas
palavras:
Caiu uma lágrima brilhante
Da flor de maracujá no portão.
Ela está vindo, minha pomba, minha querida…

… cantavam em meu sangue conforme eu caminhava depressa em


direção a Headingley.18 E então, alternando para os outros versos, cantei,
ali onde as águas se revolviam diante do lago:

Meu coração é como um pássaro a cantar


Cujo ninho está em um broto molhado;
Meu coração é como uma macieira…

Que poetas!, eu disse em voz alta, como fazemos ao pôr do sol, que
poetas eles eram!
Com uma espécie de inveja geracional, suponho, ainda que sejam tolas
e absurdas tais comparações, fiquei a pensar se era possível citar
honestamente dois poetas contemporâneos tão brilhantes quanto
Tennyson e Christina Rossetti foram então. Era obviamente impossível
compará-los, pensei, fitando aquelas águas espumantes. O próprio
motivo pelo qual esses poemas conduzem o leitor a tamanho abandono e
arrebatamento é que eles celebram um sentimento que se costumava ter
— talvez durante almoços formais antes da guerra —, de modo que nós
respondemos a eles com facilidade e familiaridade, sem nos dar ao
trabalho de conferir a validade desse sentimento ou de compará-lo a
qualquer coisa que experimentamos hoje em dia. Mas os poetas vivos
expressam um sentimento que está de fato sendo criado e arrancado de
nós neste instante. Não o reconhecemos de cara; muitas vezes, por
algum motivo, o tememos; o acompanhamos com avidez e o comparamos
de modo invejoso e desconfiado ao velho sentimento que já conhecemos.
Daí a dificuldade da poesia moderna; e é por causa dessa dificuldade que
não conseguimos recordar mais que duas linhas consecutivas de
qualquer bom poeta moderno. Por esse motivo — de que a memória me
falhava — o argumento se enfraquecia por falta de material. Mas por que,
continuei, encaminhando-me a Headingley, por que paramos de
cantarolar baixinho em almoços formais? Por que Alfred parou de
cantar: “Ela está vindo, minha pomba, minha querida…” e Christina
parou de responder: “Meu coração está mais feliz do que tudo / Porque
meu amor veio a mim”?
Deveríamos culpar a guerra? Quando as armas dispararam em agosto
de 1914, será que os rostos dos homens e mulheres se tornaram tão
desinteressantes uns aos outros que o romance morreu? Certamente foi
um choque (em especial para as mulheres, com suas ilusões sobre
educação e tudo o mais) ver o rosto de nossos governantes à luz dos
bombardeios. Eles pareciam tão feios e estúpidos, os alemães, ingleses e
franceses. Mas podem culpar o que quiserem, e quem quiserem, o fato é
que a ilusão que inspirou Tennyson e Christina Rossetti a cantar de
forma tão apaixonada sobre a vinda de seus amores é muito mais rara
agora do que então. Basta ler, observar, ouvir, relembrar. Mas por que
falar em “culpa”? Se era tudo uma ilusão, por que não enaltecer a
catástrofe, qualquer que fosse, que destruiu a ilusão e colocou a verdade
em seu lugar? Porque a verdade… Essas reticências marcam o ponto no
qual, em busca da verdade, perdi o atalho para Fernham. Sim, de fato, o
que era verdade e o que era ilusão?, fiquei me perguntando. Qual era a
verdade sobre aquelas casas, por exemplo, indistintas e alegres agora,
com suas janelas vermelhas ao pôr do sol, mas brutas, vermelhas e sujas,
com seus doces e cadarços, às nove da manhã? E quanto aos salgueiros, o
rio e os jardins que descem até o rio, agora vagos e ocultos sob a névoa,
mas dourados e vermelhos à luz do dia — qual era a verdade e qual era a
ilusão a respeito deles? Irei poupá-las das idas e vindas das minhas
elucubrações, pois não topei com nenhuma conclusão na estrada a
Headingley; e peço-lhes que acreditem que logo descobri meu erro em
relação ao atalho e refiz meus passos até Fernham.
Como eu já disse que era um dia de outubro, não vou me arriscar a
perder o respeito de vocês nem a comprometer o bom nome da ficção
alterando a estação e descrevendo lilases pendendo de muros, açafrões,
tulipas e outras flores da primavera. A ficção deve se ater aos fatos e,
quanto mais verdadeiros esses fatos, melhor é a ficção — assim nos
dizem. Portanto ainda era outono e as folhas ainda estavam amareladas.
De fato, elas até caíam um pouco mais rapidamente do que antes, pois já
era noite (sete e vinte e três, para ser precisa) e agora soprava uma brisa
(vinda do sudoeste, para ser exata). Mas, a despeito de tudo isso, havia
algo estranho no ar:

Meu coração é como um pássaro a cantar


Cujo ninho está em um broto molhado;
Meu coração é como uma macieira
Cujos ramos se vergam com o peso das frutas…

Talvez as palavras de Christina Rossetti tenham sido parcialmente


responsáveis pela insensatez da minha fantasia — não era nada, é claro,
além de fantasia — de que os lilases desprendiam suas flores sobre os
muros dos jardins, as borboletas-limão revoluteavam para lá e para cá e a
poeira do pólen pairava no ar. Uma brisa soprou, vinda de não sei onde,
mas levantou as folhas ainda verdes, de modo que surgiu um clarão
prateado no ar. Era aquela hora do crepúsculo em que as cores se
intensificam e os roxos e dourados queimam nas vidraças como o
palpitar de um coração agitado; quando, por alguma razão, a beleza do
mundo se revela e logo se extingue (agora eu me embrenhava pelo
jardim, pois, inadvertidamente, o portão fora deixado aberto e não
parecia haver bedéis por perto). A beleza do mundo que logo iria se
extinguir tinha dois gumes, um de riso e o outro de angústia, cortando o
coração ao meio. Os jardins de Fernham se estendiam diante de mim no
crepúsculo da primavera, selvagens e amplos; naquele comprido
gramado, dispersos e negligentemente cultivados, havia narcisos e
campânulas, não organizados da melhor forma, e que agora ondulavam
ao vento enquanto se agarravam às próprias raízes. As janelas do
edifício, encurvadas como as escotilhas de um navio entre ondas
generosas de tijolo aparente, oscilavam de verde-limão para prateado
sob a passagem das rápidas nuvens da primavera. Alguém estava deitado
em uma rede, e outra pessoa, que sob aquela luz era apenas um fantasma,
meio adivinhado, meio vislumbrado, corria pela grama — ninguém a
impediria? E então no terraço, como se viesse à tona para respirar e
olhar o jardim, surgiu uma figura encurvada, formidável e ainda assim
humilde, com sua testa larga e seu vestido surrado — poderia ser a
famosa acadêmica J. H. em pessoa?19 Tudo era indistinto, ainda que
intenso, como se a manta que o crepúsculo havia estendido sobre o
jardim fosse rasgada ao meio por uma estrela ou uma espada — a ferida
de uma terrível realidade saltando, como de costume, para fora do
coração da primavera. Pois a juventude…
E lá estava a minha sopa. O jantar estava sendo servido no grande
refeitório. Longe de ser primavera, era na verdade uma noite de outubro.
Todos se reuniram no salão. O jantar estava pronto. Ali estava a sopa. Era
um caldo simples de carne. Não havia nada para aguçar a imaginação.
Seria possível enxergar, através do líquido transparente, qualquer
desenho que houvesse no prato. Mas não havia nenhum desenho. O prato
era liso. Depois veio o bife com seus acompanhamentos: legumes e
batatas — uma trindade humilde que evocava as ancas do gado em um
mercado lamacento, hortaliças enrugadas e amareladas nas pontas, a
barganha e a pechincha, e mulheres com sacolas de corda numa
segunda-feira de manhã. Não havia motivo para reclamar da
alimentação cotidiana da natureza humana, visto que nossa provisão era
suficiente e que os carvoeiros decerto se contentavam com menos.
Depois vieram ameixas secas com creme de ovos. E se alguém reclamar
que as ameixas secas, mesmo que acompanhadas por creme, são um
vegetal sem compaixão (frutas é que não são), mirrado feito o coração de
um avarento e emitindo um líquido que poderia muito bem correr nas
veias desse mesmo avarento — alguém que, por oitenta anos, negou a si
mesmo vinho e aconchego, mas sem chegar a doar aos pobres —, essa
pessoa deveria refletir que há gente cuja compaixão inclui até a ameixa
seca. Em seguida vieram os biscoitos e o queijo, e então a jarra de água
circulou fartamente, já que é da natureza dos biscoitos serem secos, e
esses eram biscoitos legítimos. E foi só. A refeição havia acabado. Todos
arrastaram as cadeiras; as portas de vaivém balançaram com força para
lá e para cá; e logo o salão estava livre de qualquer indício de comida, sem
dúvida pronto para o café da manhã do dia seguinte. Corredores abaixo e
escadas acima, a juventude da Inglaterra saiu batucando e cantando. E
não caberia a uma convidada, uma estranha (pois eu não tinha mais
direitos, aqui em Fernham, do que em Trinity, Sommerville, Girton,
Newnham ou Christchurch) dizer que o jantar não fora bom, ou que nós
poderíamos muito bem ter jantado sozinhas ali em cima (nós estávamos
agora, Mary Seton20 e eu, no quarto dela). Pois, se eu dissesse alguma
coisa do tipo, estaria bisbilhotando e me metendo nas economias
secretas de uma casa que, para os de fora, apresenta uma fachada de
alegria e coragem. Não, ninguém poderia dizer algo assim. E de fato, a
conversa esmoreceu por um instante. Sendo a constituição humana
como é — coração, corpo e cérebro todos conectados, e não contidos em
compartimentos separados, como decerto acontecerá daqui a um milhão
de anos —, um bom jantar é de grande importância para uma boa
conversa. Não se pode pensar direito, amar direito e dormir direito sem
antes ter um bom jantar. A lâmpada da espinha dorsal não se acende
após um bife e ameixas secas. Nós todos provavelmente iremos para o
céu e Van Dyck irá, assim esperamos, nos encontrar logo adiante — esse
era o estado de espírito cheio de dúvidas e ressalvas produzido pelo bife
e as ameixas secas ao final de um dia de trabalho. Por sorte, minha amiga,
que era professora de ciências, tinha no armário uma garrafa bojuda e
copinhos (mas deveria ter tido também linguado e perdiz como entrada),
de modo que pudemos nos agrupar diante do fogo e reparar parte dos
estragos daquele dia. Em questão de minutos estávamos deslizando
livremente por todos esses assuntos de curiosidade e interesse que se
formam em nossa mente na ausência de alguém, e que naturalmente são
discutidos quando há um reencontro: por que uma pessoa se casou e a
outra não; por que uma pessoa pensa isso e a outra aquilo; por que uma
pessoa evoluiu com o conhecimento adquirido e a outra se degenerou de
forma inesperada — todas essas especulações sobre a natureza humana e
os incríveis atributos do mundo onde vivemos que surgem naturalmente
nesses inícios de conversa. Enquanto todas essas coisas estavam sendo
ditas, porém, tornei-me embaraçosamente ciente de uma correnteza que
se estabelecia por conta própria e arrastava tudo a um final. Podíamos
estar falando da Espanha ou de Portugal, de livros ou corrida de cavalos,
mas o verdadeiro interesse não estava em nenhuma dessas coisas, e sim
em uma cena de pedreiros no alto de um telhado cinco séculos atrás.
Reis e nobres trouxeram tesouros em grandes sacos e os despejaram sob
a terra. Essa imagem sempre voltava à minha mente e se punha ao lado
de outra, de vacas magras, um mercado lamacento, legumes murchos e
os corações mirrados de homens velhos — essas duas imagens, por mais
incoerentes, desconexas e absurdas que fossem, estavam agora se
encontrando e lutando entre si, e me deixavam inteiramente à sua
mercê. O melhor caminho, caso eu não quisesse distorcer toda a
conversa, seria trazer à tona o que estava em minha mente, que então
com sorte se dissiparia e viraria pó como a cabeça do rei morto quando
abriram o caixão em Windsor.21 Brevemente, portanto, contei à srta.
Seton sobre os pedreiros que passaram todos aqueles anos trabalhando
no telhado da capela, e sobre os reis, rainhas e nobres que carregaram
sacos de ouro e prata nos ombros, e então os enterraram; e depois sobre
os grandes magnatas financeiros da nossa época que chegaram e
despejaram cheques e títulos, suponho, onde os outros haviam deitado
barras e pepitas de ouro. Tudo isso se esconde sob aquelas outras
faculdades, eu disse; mas e quanto a esta, onde nós agora estamos — o
que se encontra sob seus suntuosos tijolos aparentes e sob a grama
selvagem e desgrenhada do jardim? Que forças estão por trás da louça
lisa na qual jantamos e também por trás (e isso saiu da minha boca antes
que eu pudesse me deter) do bife, do creme e das ameixas secas?
Bem, disse Mary Seton, no ano de 1860… Ah, mas você conhece a
história, ela disse, acredito que entediada pela ideia do relato. E me
contou: elas alugaram salas. Formaram comitês. Endereçaram
envelopes. Redigiram circulares. Fizeram reuniões; leram cartas em voz
alta; fulano prometeu tal coisa; por outro lado, o sr. ______ não iria doar
um centavo. O Saturday Review foi muito grosseiro. Como podemos
levantar fundos para pagar pelos escritórios? Devemos promover um
bazar beneficente? Será que não arrumamos uma moça bonita para se
sentar na primeira fila? Vamos ver o que John Stuart Mill disse sobre o
assunto. Será que alguém consegue convencer o editor do ____ a publicar
uma carta? E fazer lady ____ assinar? Lady ____ está viajando. Foi isso
que supostamente fizeram sessenta anos atrás, um esforço prodigioso
que demandou muito tempo. Foi só depois de uma longa batalha, e com
extrema dificuldade, que elas conseguiram arrecadar trinta mil libras.22
Então obviamente não podemos ter vinho, perdizes e garçons
carregando bandejas de estanho na cabeça, ela disse. Não podemos ter
sofás e salas separadas. “As comodidades”, ela disse, citando um livro
qualquer, “terão de esperar.”23
Ao pensar em todas aquelas mulheres trabalhando ano após ano e
tendo dificuldade em arrecadar duas mil libras, esforçando-se ao
máximo para chegar a trinta mil, irrompemos em escárnio pela
desprezível pobreza do nosso sexo. O que nossas mães estavam fazendo
naquela época, que não tiveram nenhuma riqueza para nos deixar?
Passando pó de arroz no nariz? Olhando vitrines? Exibindo-se ao sol em
Monte Carlo? Havia algumas fotos no consolo da lareira. A mãe de Mary
— se é que era ela na foto — podia até ter sido uma perdulária nas horas
vagas (ela teve treze filhos com um ministro da igreja), mas, nesse caso, a
vida alegre e dissoluta havia deixado pouquíssimos traços de prazer em
sua fisionomia. Era uma figura comum, uma senhora de idade em um
xale xadrez atado por um enorme camafeu, e aparecia sentada em uma
poltrona de vime, encorajando um spaniel a olhar para a câmera com a
expressão divertida, ainda que tensa, de alguém que tem certeza de que o
cachorro irá se mexer assim que a luz da lâmpada for acionada. Mas, se
ela tivesse entrado para o mundo dos negócios; se tivesse se tornado uma
fabricante de seda artificial ou uma magnata da Bolsa de Valores; se
tivesse deixado duzentas ou trezentas mil libras para Fernham, hoje
poderíamos estar confortavelmente acomodadas e o assunto de nossa
conversa teria sido arqueologia, botânica, antropologia, física, a
natureza do átomo, matemática, astronomia, relatividade, geografia. Se
ao menos a sra. Seton, sua mãe e sua avó tivessem aprendido a grande
arte de fazer dinheiro e tivessem legado sua fortuna, como fizeram os
pais e avôs delas, para financiar pesquisas, cargos acadêmicos, prêmios e
bolsas de estudo destinados ao uso de seu próprio sexo, poderíamos ter
desfrutado um jantar bastante razoável, sozinhas, com uma ave e uma
garrafa de vinho. Poderíamos ter almejado, sem que houvesse confiança
indevida, por uma vida agradável e honrada em uma das profissões
largamente rentáveis. Poderíamos estar explorando ou escrevendo;
vagando pelos lugares respeitáveis do planeta; sentando-nos
contemplativas nos degraus do Partenon; ou indo às dez para o escritório
e retornando confortavelmente às quatro e meia para escrever um pouco
de poesia. Exceto que, se sra. Seton e suas semelhantes tivessem entrado
para o mundo dos negócios aos quinze anos — e lá estava o defeito desse
argumento —, não haveria Mary. O que Mary achava disso?, perguntei.
Para além das cortinas estava a noite de outubro, tranquila e agradável,
com uma ou duas estrelas entre as árvores amareladas. Será que ela
estava pronta para renunciar à sua parte nisso e também às memórias
(pois eles haviam sido uma família feliz, ainda que grande) de
brincadeiras e brigas na Escócia, lugar que ela nunca se cansava de
elogiar pela pureza do ar e pela qualidade dos bolos, a fim de que
Fernham pudesse herdar umas cinquenta mil libras com um mero
movimento de caneta? Pois para bancar uma faculdade seria preciso
suprimir as famílias em si. Fazer fortuna e ter treze filhos — nenhum ser
humano é capaz disso. Basta considerar os fatos, nós dissemos. Primeiro,
são nove meses antes de o bebê nascer. Depois ele nasce. Então vêm três
ou quatro meses de amamentação. Depois que o bebê é alimentado,
certamente são uns cinco anos brincando com ele. Não é possível,
aparentemente, deixar as crianças correndo soltas pelas ruas. Pessoas
que as viram correr sem rumo na Rússia dizem que a imagem não é
agradável.24 As pessoas também dizem que a natureza humana toma
forma entre o primeiro e o quinto ano de vida. Se a sra. Seton estivesse
ganhando dinheiro, eu disse, que memórias você teria das brincadeiras e
brigas? O que você conheceria da Escócia, com seu ar puro, os bolos e
todo o resto? Mas é inútil fazer essas perguntas, já que você nem sequer
teria existido. Além disso, é igualmente inútil perguntar o que teria
acontecido se a sra. Seton, sua mãe e sua avó tivessem acumulado grande
fortuna e a despejado nas fundações de faculdades e bibliotecas, pois,
primeiro, ganhar dinheiro era impossível para elas e, segundo, mesmo
que fosse possível, a lei não lhes concedia a posse do dinheiro ganho. Só
nos últimos quarenta e oito anos é que a sra. Seton ganhou o direito de
ter um centavo todo seu.25 Durante os séculos anteriores, o dinheiro
seria propriedade do marido — um pensamento que talvez tenha ajudado
a manter a sra. Seton, sua mãe e sua avó afastadas da Bolsa de Valores.
Todo centavo que eu ganhar, elas podem ter dito, será tirado de mim e
despendido de acordo com a sabedoria do meu marido — talvez para
bancar uma bolsa ou financiar pesquisas no Balliol ou no King’s College
—, de modo que ganhar dinheiro, mesmo que isso fosse possível, não é
um assunto que me desperta grande interesse. Melhor deixar para o meu
marido.
Em todo caso, mesmo que a culpa não fosse daquela velha senhora que
olhava o spaniel, não havia dúvida de que, por uma ou outra razão, nossas
mães não souberam administrar direito seus negócios. Não restava nem
um centavo para “comodidades”: perdizes e vinho, bedéis e gramados,
livros e charutos, bibliotecas e lazer. O máximo que elas conseguiram foi
erguer paredes brutas a partir da terra bruta.
Conversávamos de pé junto à janela e admirávamos, como milhares de
pessoas fazem todas as noites, as cúpulas e torres da famosa cidade que
se estendia diante de nós. Era muito bonita, muito misteriosa sob a luz
do luar de outono. A velha pedra das construções parecia muito branca e
venerável. Ficamos pensando em todos os livros que estavam guardados
lá embaixo; nos quadros de antigos prelados e dignitários nas paredes
das salas com lambris de madeira; nas janelas pintadas que refletiam
estranhos círculos e arcos na calçada; nos painéis, monumentos e
inscrições; nas fontes e na grama; nos quartos tranquilos voltados para
os átrios tranquilos. Peço desculpas por isso, mas pensei também na
impressionante qualidade do fumo e da bebida, nas poltronas fundas e
nos tapetes agradáveis, ou seja, na civilidade, afabilidade e dignidade que
são filhas do luxo, da privacidade e do espaço. Certamente nossas mães
não nos proporcionaram nada comparável a isso — nossas mães, que
tiveram dificuldade para juntar trinta mil libras, nossas mães, que
criaram treze filhos de ministros religiosos em St. Andrews.
Então voltei à minha pousada e, enquanto caminhava pelas ruas
escuras, fiquei a pensar nisso e naquilo, como costumamos fazer ao final
de um dia de trabalho. Fiquei a pensar no porquê de a sra. Seton não ter
tido dinheiro algum para nos deixar; que efeito a pobreza tem sobre a
mente das pessoas e que efeito a riqueza tem. Pensei nos cavalheiros
idosos e excêntricos que vi naquela manhã, com estolas de pele sobre os
ombros; recordei como um deles corria quando o outro assoviava; pensei
no órgão ecoando na capela e nas portas fechadas da biblioteca; pensei
em quão desagradável é dar com as portas fechadas e como é talvez pior
ficar trancada do lado de dentro; e, pensando na segurança e
prosperidade de um sexo e na pobreza e insegurança de outro, e no efeito
da tradição e da falta de tradição na mente de um escritor, pensei, por
fim, que era hora de enrolar a pele amassada daquele dia, com seus
argumentos, impressões, raiva e risadas, e jogá-la num canto. Mil
estrelas cintilavam pela vastidão azul do céu. A sensação era de estar
sozinha com uma companhia inescrutável. Todos os seres humanos
estavam dormindo — deitados, horizontais, mudos. Ninguém parecia se
mover pelas ruas de Oxbridge. Até a porta do hotel se abriu ao toque de
uma mão invisível — nenhum funcionário estava a postos para iluminar
meu caminho até a cama, de tão tarde que era.

1. No original, “A room of one’s own”, que também é o título deste ensaio em inglês. Nesta
edição, optamos por manter o título consagrado em português Um teto todo seu (traduzido
assim pela primeira vez por Vera Ribeiro, em 1985). [N. de E.] ↩
2. Referências a Frances Burney, Jane Austen, Charlotte, Anne e Emily Brontë, Mary Russell
Mitford, George Eliot e Elizabeth Gaskell, renomadas escritoras britânicas dos séculos
XVIII e XIX. [N. de E.] ↩
3. “Oxbridge” é uma combinação entre as universidades Oxford e Cambridge, o que sugere
uma instituição centenária e predominantemente masculina. “Fernham” é uma combinação
entre as faculdades Girton e Newnham, faculdades para mulheres da Universidade de
Cambridge, o que evocaria uma instituição para mulheres de fundação mais recente. [N. de
T.] ↩
4. Alusão à balada escocesa “Mary Hamilton”, do século XVI, que menciona as damas de
companhia da rainha: “There was Mary Beaton and Mary Seton/ And Mary Carmichael and
me” [“Lá estavam Mary Beaton e Mary Seton/ E Mary Carmichael e eu”]. [N. de T.] ↩
5. Referência a um episódio da vida do escritor britânico William Makepeace Thackeray
(1811–1863), que teria se impressionado com o caráter do ensaísta Charles Lamb (1775–
1834) ao ler suas cartas. Segundo a lenda, ele pressionou uma das missivas à testa e
exclamou: “Santo Charles!”. [N. de T.] ↩
6. Sir Henry Maximilian Beerbohm (1872–1956), ensaísta e humorista inglês. [N. de E.] ↩
7. O ensaio se chama “Oxford in the Vacation” [“Oxford nas férias”] e foi publicado na London
Magazine em 1820. Mais tarde, entrou na coletânea The Essays of Elia (1823). [N. de T.] ↩
8. John Milton (1608–1674), um dos mais importantes escritores do Reino Unido. [N. de E.] ↩
9. Tanto o manuscrito do poema “Lycidas” quanto o do romance histórico The History of
Henry Esmond estão na biblioteca do Trinity College, em Cambridge. [N. de T.] ↩
10. Referência aos trajes acadêmicos tradicionais da universidade de Cambridge. [N. de T.] ↩
11. Possivelmente a capela do King’s College, também em Cambridge. [N. de T.] ↩
12. Woolf foi convidada para um almoço no King’s College, da universidade de Cambridge, em
21 de outubro de 1928. [N. de T.] ↩
13. “Todos nós vamos para o céu e Van Dyck será a nossa companhia” foram supostamente as
últimas palavras do pintor britânico Thomas Gainsborough (1727–1788), referindo-se ao
pintor flamengo Antoon Van Dyck (1599–1641). [N. de T.] ↩
14. A autora refere-se à Primeira Guerra Mundial (1914–1918). A Segunda Guerra Mundial
(1939–1945) ainda não começara. [N. de E.] ↩
15. Estrofe do poema “Maud”, do poeta inglês Alfred Tennyson (1809-
-1892), que estudou no Trinity College de Cambridge. [N. de E.] ↩
16. Estrofe do poema “A Birthday”, da poeta inglesa Christina Rossetti (1830–1894). [N. de E.]

17. Aqui a autora traça o caminho verdadeiro entre o King’s College (eminentemente
masculino) e o Newnham College (feminino), ambos na universidade de Cambridge. [N. de
T.] ↩
18. “Headingley” é provavelmente uma combinação entre Madingley, no subúrbio de
Cambridge, e Headington, no subúrbio de Oxford. O lago citado é o Mill Pond, uma espécie
de reservatório diante de um moinho, em Cambridge. [N. de T.] ↩
19. Jane Ellen Harrison (1850–1928), linguista britânica, arqueóloga e professora do Newnham
College. Harrison morreu em abril de 1928. [N. de T.] ↩
20. A personagem Mary Seton é baseada em Joan Pernel Strachey (1876–1951), que foi diretora
do Newnham College de 1923 a 1941. Ela era professora de francês, e não de ciências. [N. de
T.] ↩
21. Referência ao rei Charles I, que foi decapitado em 1649 e enterrado na cripta da capela de
São Jorge, em Windsor. Em 1813, o caixão foi aberto por ordens do príncipe regente. [N. de
T.] ↩
22. “Disseram que devíamos pedir trinta mil libras no mínimo […]. Não é uma quantia grande,
considerando que haveria apenas uma faculdade desse tipo em toda a Grã-Bretanha, Irlanda
e nas colônias, e considerando como é fácil levantar somas imensas para as escolas dos
meninos. Mas levando em conta a quantidade ínfima de pessoas que realmente querem que
as mulheres tenham educação, está ótimo.” Lady [Barbara Nightingale] Stephen, Emily
Davies and Girton College. [N. da A.] ↩
23. “Cada centavo arrecadado foi investido na construção, e as comodidades tiveram de
esperar.” R. Strachey, The Cause: a Short History of the Women’s Movement in Great Britain
[A causa: uma breve história do movimento das mulheres na Grã-Bretanha]. [N. da A.] ↩
24. Referência obscura a uma carta escrita por Herbert Dunelm (bispo de Durham) ao The
Times, de Londres, em 16 de fevereiro de 1927: “Enquanto os oficiais bolcheviques estão
arquitetando e pondo em prática uma infinita sucessão de esquemas, as escolas estão
desabando, os professores estão passando fome e as crianças estão correndo sem rumo”. [N.
de T.] ↩
25. Referência aos Married Women’s Property Acts [Atos de Propriedade de Mulheres
Casadas], promulgados no Reino Unido no fim do século XIX, que permitiram que as
mulheres casadas fossem donas do dinheiro que ganhavam. [N. de T.] ↩
2.

O cenário, se vocês fizerem o favor de me acompanhar, agora era outro.


As folhas ainda estavam caindo, mas agora em Londres, e não Oxbridge;
vou pedir que imaginem um quarto como milhares de outros, com uma
janela que tem vista para outras janelas, passando pelos chapéus das
pessoas, as carroças e os automóveis, e na mesa dentro desse quarto uma
folha de papel em branco na qual estava escrito, em letras maiúsculas:
“As mulheres e a ficção”, e nada mais. A sequência inevitável a um
almoço e um jantar em Oxbridge parecia ser, infelizmente, uma visita ao
Museu Britânico. Seria preciso afastar o que era pessoal e acidental em
todas aquelas impressões para alcançar o mais puro líquido, o óleo
essencial da verdade. Pois aquela visita a Oxbridge, o almoço e o jantar
incitaram um enxame de perguntas. Por que os homens bebiam vinho e
as mulheres, água? Por que um sexo era tão próspero e o outro, tão
pobre? Qual o efeito da pobreza sobre a ficção? Que condições são
necessárias para a criação de obras de arte? Mil perguntas se
apresentaram ao mesmo tempo. Mas precisamos de respostas, e não de
perguntas, e uma resposta só surgiria consultando os sábios e
imparciais, aqueles que se mantiveram distantes da discussão das
línguas e da confusão do corpo, e que publicaram o resultado de seu
raciocínio e pesquisa em livros no Museu Britânico. Se a verdade não
pudesse ser encontrada nas prateleiras do Museu Britânico, então, eu
me perguntei, pegando um caderno e um lápis, onde estaria a verdade?
Assim equipada, assim confiante e inquisitiva, lancei-me em busca da
verdade. Ainda que não chovesse, o dia estava deprimente, e as ruas ao
redor do museu estavam repletas de bueiros de carvão abertos, onde os
sacos eram despejados; carroças de quatro rodas traziam e depositavam
na calçada caixas atadas por cordas provavelmente contendo o guarda-
roupa completo de alguma família suíça ou italiana em busca de fortuna,
refúgio ou qualquer outra comodidade desejável que se encontra nas
pensões de Bloomsbury no inverno. Os habituais homens de voz rouca
caminhavam pelas ruas carregando plantas em carrinhos de mão.
Alguns gritavam; outros cantavam. Londres era como uma fábrica.
Londres era como uma máquina. Estávamos todos sendo arremessados
para a frente e para trás sobre essa tela lisa e formaríamos uma
padronagem. O Museu Britânico era outro setor da fábrica. As portas de
vaivém se abriam; e lá a pessoa ficava parada de pé sob a vasta cúpula,
como se fosse um pensamento naquela enorme testa careca que é
circundada tão magnificamente por uma série de nomes famosos.26 A
pessoa se dirigia ao balcão, pegava um pedaço de papel, abria um volume
do catálogo e..... Aqui as reticências indicam cinco minutos inteiros de
estupefação, maravilhamento e perplexidade. Vocês têm ideia de
quantos livros são escritos sobre as mulheres no decorrer de um ano?
Vocês têm ideia de quantos deles são escritos por homens? Têm
consciência de que somos provavelmente o animal mais discutido do
universo? Eu tinha chegado ali com um lápis e um caderno, achando que
passaria a manhã lendo e que, ao final dela, teria transferido a verdade ao
meu caderno. Mas eu precisaria ser uma horda de elefantes e uma
vastidão de aranhas, pensei, referindo-me angustiadamente aos animais
que têm a reputação de viver mais ou que possuem maior amplitude
visual coletiva, para conseguir lidar com tudo aquilo. Precisaria de
garras de aço e um bico de metal só para conseguir penetrar a carcaça.
Como poderia encontrar os grãos de verdade entranhados em toda
aquela papelada?, me perguntei, e no desespero comecei a correr os
olhos pela comprida lista de títulos. Até os títulos dos livros me davam o
que pensar. O sexo e sua natureza são assuntos que podem muito bem
atrair médicos e biólogos; mas o que achei surpreendente e difícil de
explicar é o fato de que o sexo — quer dizer, a mulher — também atrai
ensaístas amenos, romancistas ligeiros, rapazes que cursaram o
mestrado, homens que não fizeram nenhuma graduação e homens que
não têm qualificação alguma senão a de não serem mulheres. Alguns
desses livros eram, à primeira vista, frívolos e jocosos; muitos, por outro
lado, eram sérios e proféticos, morais e exortativos. A mera leitura dos
títulos sugeria incontáveis acadêmicos e sacerdotes subindo em suas
plataformas e púlpitos, discorrendo com uma loquacidade que em muito
excedia o tempo de uma hora alocado a palestras sobre esse assunto. Era
um fenômeno dos mais esquisitos, e aparentemente — aqui consultei a
letra M — exclusivo ao sexo masculino. As mulheres não escreviam livros
sobre homens — um fato que não pude deixar de receber com alívio, pois
se eu tivesse de primeiro ler tudo o que os homens escreveram sobre as
mulheres, e depois tudo o que as mulheres escreveram sobre os homens,
o aloé que floresce uma vez a cada cem anos floresceria duas vezes antes
que eu pudesse botar a caneta no papel. Portanto, fazendo uma escolha
perfeitamente aleatória de mais ou menos uma dúzia de volumes,
depositei minhas tiras de papel na bandeja de arame e esperei em meu
cubículo, em meio a outros indivíduos em busca do óleo essencial da
verdade.
Então qual poderia ser o motivo dessa curiosa disparidade?, fiquei
imaginando, enquanto desenhava rodas de carroça nas tiras de papel
fornecidas pelo contribuinte britânico para outros propósitos. Por que, a
julgar por esse catálogo, as mulheres são muito mais interessantes aos
homens do que os homens às mulheres? Pareceu-me um fato muito
curioso, e minha mente ficou a vaguear imaginando a vida dos homens
que passavam o tempo escrevendo livros sobre as mulheres: se eram
velhos ou jovens, casados ou solteiros, se tinham o nariz vermelho ou
eram corcundas. Em todo caso, me sentia vagamente lisonjeada de ser
objeto de tamanha atenção, contanto que não fosse por parte de
inválidos ou enfermos — assim fiquei a ponderar até que todos esses
pensamentos frívolos foram interrompidos por uma avalanche de livros
sobre a minha mesa. E aí começava o problema. O estudante que
aprendeu a fazer pesquisa em Oxbridge tem, sem dúvida, um método
para guiar a sua pergunta por entre todas as distrações até chegar a uma
resposta, tal como uma ovelha entra em seu curral. O estudante ao meu
lado, por exemplo, que copiava com afinco de um manual científico,
estava seguramente extraindo pepitas puras de um minério essencial
mais ou menos a cada dez minutos. Seus pequenos grunhidos de
satisfação indicavam que era esse o caso. Mas quando infelizmente não
se teve um treinamento na universidade, a pergunta, longe de ser
direcionada a seu curral, dispara feito um rebanho assustado de um lado
para o outro, numa tremenda confusão, perseguida por um bando inteiro
de cães. Professores, diretores, sociólogos, sacerdotes, romancistas,
ensaístas, jornalistas e homens sem qualificação alguma senão a de não
serem mulheres — todos eles perseguiam minha única e simples
pergunta: “Por que algumas mulheres são pobres?”, até que ela se
transformasse em cinquenta perguntas, e até que essas cinquenta
perguntas pulassem freneticamente no meio do rio e fossem arrastadas
para longe. Cada página do meu caderno estava abarrotada de notas.
Para ilustrar meu estado de espírito àquela altura, vou ler algumas delas,
não sem antes explicar que no alto da página havia um título simples: “AS
MULHERES E A POBREZA”, em letras maiúsculas. O que se seguia era algo
assim:

Condições na Idade Média das,


Hábitos nas ilhas Fiji das,
Adoradas como deusas por,
Mais fracas no sentido moral do que,
Idealismo das,
Maior consciência das,
Habitantes das ilhas do Pacífico Sul, idade da puberdade entre,
Atratividade das,
Oferecidas como sacrifício a,
Tamanho menor do cérebro das,
Subconsciente mais profundo das,
Menor quantidade de pelos no corpo das,
Inferioridade mental, moral e física das,
Amor pelas crianças das,
Maior longevidade das,
Músculos mais fracos das,
Força das afeições das,
Vaidade das,
Educação superior das,
Opinião de Shakespeare sobre,
Opinião de lorde Birkenhead sobre,
Opinião do reitor Inge sobre,
Opinião de La Bruyère sobre,
Opinião do dr. Johnson sobre,
Opinião de Oscar Browning sobre, …

Aqui tomei fôlego e cheguei a acrescentar, às margens da página: “Por


que Samuel Butler diz que ‘os homens sábios nunca dizem o que pensam
das mulheres’?”. Os homens sábios aparentemente só falam disso. Mas
prossegui, recostando-me à cadeira e fitando a vasta cúpula, enquanto
me concentrava em um único, ainda que agora insistente, pensamento: o
triste é que os homens sábios nunca pensam a mesma coisa sobre as
mulheres. Eis o que diz Pope: “A maioria das mulheres não tem nenhum
caráter”. E La Bruyère: “As mulheres são extremas, elas são melhores ou
piores do que os homens”. Uma contradição direta entre aguçados
observadores que foram contemporâneos. Seriam as mulheres capazes
ou incapazes de receber educação? Napoleão as julgava incapazes. O dr.
Johnson pensava o oposto.27 Teriam as mulheres uma alma? Alguns
selvagens dizem que não. Outros, ao contrário, afirmam que elas são
metade divinas, e por isso as adoram.28 Alguns sábios acham que elas
são mais rasas intelectualmente; outros, que sua consciência é mais
profunda. Goethe as estimava; Mussolini as despreza. Por onde quer que
se olhasse, os homens pensavam sobre as mulheres, e pensavam de
forma diferente. Era impossível encontrar sentido nisso tudo, decidi,
olhando com inveja para o leitor ao meu lado, que estava fazendo os
resumos mais perfeitos, precedidos geralmente por a), b) ou c), enquanto
meu próprio caderno beirava a loucura com os rabiscos mais ferozes de
minhas notas contraditórias. Era desesperador, era desconcertante, era
humilhante. A verdade escapara por entre os meus dedos. Cada gota
havia escorrido.
Eu não poderia voltar para casa, pensei, e oferecer como uma
contribuição séria ao estudo das mulheres e da ficção o fato de que elas
têm menos pelos no corpo, ou que a idade da puberdade entre as
habitantes das ilhas do Pacífico Sul é de nove anos — ou será noventa?
Até a minha caligrafia, em meio à distração, se tornara indecifrável. Era
deplorável não ter nada mais significativo ou respeitável para mostrar
depois de uma manhã inteira de trabalho. E se, no passado, não consegui
captar a verdade sobre as M. (como passei a chamá-las, por uma questão
de brevidade), por que se preocupar com as M. no futuro? Me parecia
pura perda de tempo consultar todos aqueles cavalheiros que se
especializaram nas mulheres e em seu efeito sobre o que quer que fosse
— política, crianças, salários, moralidade —, por mais numerosos e cultos
que fossem. Era melhor nem abrir aqueles livros.
Mas, enquanto refletia, eu tinha inconscientemente, em minha
indiferença, em meu desespero, esboçado uma caricatura, quando
deveria estar, como meu vizinho, esboçando uma conclusão. Desenhei
um rosto e um corpo. Eram o rosto e corpo do professor Von X,
empenhado em escrever sua obra monumental A inferioridade
intelectual, moral e física do sexo feminino. Em meu desenho, ele não era
um homem atraente para as mulheres. Era corpulento, tinha a
mandíbula larga e, para compensar, olhos muito pequenos e também um
rosto vermelho. Pela expressão, trabalhava sob uma forte emoção que o
fazia cravar a caneta no papel como se estivesse matando um inseto
nojento, mas, mesmo depois de matá-lo, não ficava satisfeito. Era preciso
prosseguir com a matança; e, ainda assim, restava alguma razão para
raiva e irritação. Será que a culpa era da esposa dele?, me perguntei,
olhando para o desenho. Será que ela havia se apaixonado por um oficial
de cavalaria? Será que esse oficial era magro, elegante e vestido em pele
de cordeiro? Será que, conforme a teoria freudiana, o professor fora
ridicularizado no berço por uma bela garota? Pois mesmo no berço ele
não deve ter sido uma criança atraente, pensei. Qualquer que fosse o
motivo, em meu esboço o professor parecia muito zangado e muito feio
enquanto escrevia seu grande livro sobre a inferioridade intelectual,
moral e física das mulheres. Fazer desenhos era uma forma ociosa de
encerrar uma manhã improdutiva de trabalho. E ainda assim, é em nossa
ociosidade, em nossos sonhos, que a verdade submersa às vezes vem à
tona. Um exercício de psicologia muito elementar — que não é digno de
ser chamado de psicanálise — me mostrou, ao olhar para o caderno, que
o esboço do professor raivoso fora feito com raiva. A raiva arrebatou meu
lápis enquanto eu sonhava. Mas o que a raiva estava fazendo ali?
Interesse, confusão, divertimento, tédio — eu era capaz de rastrear e
identificar todas essas emoções, conforme elas se sucederam ao longo da
manhã. Teria a raiva, essa serpente negra, estado à espreita entre elas?
Sim, disse o desenho, a raiva estava lá. Ela me remetia sem erro a um
único livro, uma única frase que despertara o demônio: a declaração do
professor sobre a inferioridade intelectual, moral e física das mulheres.
Meu coração deu um salto. Minhas bochechas queimaram. Fiquei
enrubescida de tanta raiva. Não havia nada de especialmente notável
nessa reação, por mais tola que fosse. Ninguém gosta de ouvir que é
naturalmente inferior a um homenzinho — olhei para o estudante ao
meu lado — que respira ruidosamente, veste uma gravata com o nó
pronto e passou os últimos quinze dias sem se barbear. As pessoas têm
certas vaidades tolas. É da natureza humana, pensei, e passei a desenhar
rodas de carroça e círculos sobre o rosto do professor zangado até que ele
se parecesse com uma sarça ardente ou um cometa flamejante — em
todo caso, uma aparição sem qualquer significado ou semelhança
humana. Agora o professor não era nada mais que um feixe de lenha
queimando no topo do Hampstead Heath. Logo a minha própria raiva
estava explicada e extinta, mas a curiosidade permanecia. Como explicar
a raiva dos professores? Por que eles estavam zangados? Afinal, quando
se tratava de analisar a impressão deixada por aqueles livros, havia
sempre um elemento de fervor. O fervor podia assumir várias formas: ele
se revelava na sátira, na emoção, na curiosidade e na reprovação. Mas
havia outro elemento que era bastante presente e não podia ser
identificado de imediato. Raiva, eu o chamei. Só que a raiva se escondia e
se misturava a todos os outros tipos de emoções. A julgar por seus
estranhos efeitos, era uma raiva disfarçada e complexa, e não uma raiva
simples e declarada.
Qualquer que seja o motivo, todos esses livros, pensei, examinando a
pilha à minha mesa, são inúteis para meus propósitos. Quer dizer, eram
inúteis do ponto de vista científico, ainda que sob o ponto de vista
humano estivessem repletos de ensinamentos, interesse, tédio e fatos
muito esquisitos sobre os costumes dos habitantes das ilhas Fiji. Foram
escritos à luz vermelha da emoção, e não à luz branca da verdade.
Portanto, precisavam ser devolvidos à mesa central e reintegrados a seus
respectivos alvéolos naquele enorme favo de mel. Tudo o que eu havia
obtido daquela manhã de trabalho fora a realidade da raiva. Os
professores — eu os reunira, portanto, em um só grupo — estavam com
raiva. Mas por que, me perguntei, devolvendo os livros, por que, repeti,
parada sob as arcadas, entre os pombos e as canoas pré-históricas, por
que eles têm raiva? E, fazendo essa pergunta a mim mesma, saí em busca
de um lugar para almoçar. Qual é a natureza daquilo que agora chamo de
raiva?, perguntei. Aqui estava um enigma que se prolongou pelo tempo
que levei para ser servida em um pequeno restaurante próximo ao
Museu Britânico. O cliente anterior havia deixado a primeira edição do
jornal vespertino em uma cadeira; enquanto esperava para ser servida,
comecei a ler preguiçosamente as manchetes. Uma faixa com letras
muito grandes cruzava a primeira página de uma ponta a outra. Alguém
havia garantido um placar ótimo na África do Sul. Faixas menores
anunciavam que sir Austen Chamberlain estava em Genebra. Um cutelo
de carne com cabelos humanos fora encontrado em um porão. O
meritíssimo juiz ____ comentara, nos tribunais de divórcio, sobre o
Despudor das Mulheres. Outras notícias estavam dispersas pelo jornal.
Uma atriz de cinema fora colocada à beira de um precipício na Califórnia
e suspensa em pleno ar. O tempo ia ficar nublado. Qualquer um que
pegasse esse jornal, pensei, ainda que fosse um visitante de passagem
neste planeta, não poderia deixar de notar, mesmo a partir de
testemunhos tão dispersos, que a Inglaterra está sob o poder do
patriarcado. Ninguém em pleno domínio das faculdades mentais
deixaria de perceber a dominância do professor. Era dele o poder, o
dinheiro e a influência. Era ele o dono do jornal, o editor e o subeditor.
Era ele o Ministro das Relações Exteriores e o juiz. Era ele o jogador de
críquete, o dono das corridas de cavalos e dos iates. Era ele o diretor da
empresa que pagava duzentos por cento a seus acionistas. Ele deixou
milhões de libras a instituições de caridade e faculdades comandadas
por si próprio. Foi ele quem suspendeu a atriz em pleno ar. Ele irá decidir
se o cabelo no cutelo de carne é humano; é ele quem irá inocentar ou
condenar o assassino, enforcando-o ou deixando-o sair em liberdade. Ele
parecia controlar tudo, com exceção da neblina. E ainda assim, ele tinha
raiva. Eu sabia que ele tinha raiva pelo seguinte indício: quando li o que
ele escreveu sobre as mulheres, pensei não no que ele estava dizendo,
mas nele mesmo. Quando uma pessoa discorre sobre algo sem paixão, ela
pensa apenas no argumento, de modo que o leitor não tem outra opção a
não ser pensar no argumento também. Se ele tivesse escrito sem paixão
sobre as mulheres, se tivesse usado provas irrefutáveis para estabelecer
seu argumento e não tivesse mostrado indícios de desejar que o
resultado fosse esse e não aquele, também não ficaríamos com raiva.
Aceitaríamos esse fato, assim como aceitamos que uma ervilha é verde e
um canário, amarelo. Que assim seja, eu teria dito. Mas fiquei com raiva
porque ele estava com raiva. E apesar disso me parecia absurdo, pensei,
virando a página do jornal, que um homem com tanto poder pudesse
estar com raiva. Ou será que a raiva é, de alguma forma, o espírito
habitual e vigente no poder? Os ricos, por exemplo, geralmente têm raiva
porque desconfiam que os pobres querem tomar sua riqueza. Os
professores, ou patriarcas, como talvez seja mais acertado chamá-los,
talvez tenham raiva em parte por esse motivo, mas também por outra
razão que não se encontra tão óbvia na superfície. Talvez eles não
estivessem exatamente com “raiva”; de fato, muitas vezes eram pessoas
admiráveis, devotadas e exemplares em seus relacionamentos privados.
É possível que o professor, ao insistir de forma tão enfática na
inferioridade das mulheres, não estivesse preocupado com a
inferioridade delas, mas com sua própria superioridade. Era isso o que
ele protegia um tanto acaloradamente e com demasiada ênfase, pois para
ele se tratava de uma joia do mais raro valor. A vida para ambos os sexos
— e observei as pessoas que abriam caminho pela calçada — é árdua,
difícil, uma batalha perpétua. Requer uma coragem e uma força
gigantescas. Mais do que tudo, talvez, já que somos criaturas de ilusões,
requer confiança em si próprio. Sem autoconfiança, somos como bebês
no berço. E como podemos produzir mais rapidamente essa qualidade
imponderável e, no entanto, tão inestimável? Pensando que os outros são
inferiores a nós. Sentindo que temos alguma superioridade inata sobre
os demais — pode ser riqueza, status, um nariz fino ou o retrato de um
antepassado feito por Romney29, pois não há limites para os patéticos
recursos da imaginação humana. Por isso a enorme importância, para o
patriarca que precisa conquistar e comandar, do sentimento de que um
grande número de pessoas — de fato, metade da humanidade — é por
natureza inferior a ele. Essa deve ser, na verdade, uma das principais
fontes de seu poder. Mas deixe-me redirecionar a luz dessa observação à
vida real, pensei. Será que isso ajuda a explicar alguns desses enigmas
psicológicos que percebemos às margens da vida cotidiana? Isso
explicaria o meu espanto no dia em que Z., um homem tão compassivo e
modesto, pegou um livro de Rebecca West e, lendo um trecho, exclamou:
“Mas que feminista deslavada! Ela diz que os homens são esnobes!”.30 A
exclamação, que me era tão surpreendente — afinal, por que a srta. West
seria uma feminista deslavada por fazer uma afirmação possivelmente
verdadeira, ainda que desfavorável, sobre o sexo oposto? — não era
apenas um grito de vaidade ferida, mas um protesto contra a violação de
seu poder de acreditar em si mesmo. Durante os últimos séculos, as
mulheres serviram como espelhos dotados do poder mágico e delicioso
de refletir a silhueta dos homens com o dobro do tamanho real. Sem esse
poder, provavelmente o planeta ainda seria pântanos e selvas. As glórias
de todas as nossas guerras seriam desconhecidas. Ainda estaríamos
vislumbrando os contornos de um veado nos restos de ossos de um
cordeiro e trocando rochas por peles de carneiro, ou por qualquer
ornamento simples que agradasse a nosso gosto rudimentar. Os super-
homens e os dedos do destino nunca teriam existido.31 O czar e o kaiser
nunca teriam usado uma coroa, nem a teriam perdido. Seja qual for seu
uso nas sociedades civilizadas, espelhos são essenciais a todas as ações
violentas e heroicas. É por isso que tanto Napoleão como Mussolini
insistem na inferioridade das mulheres de forma tão enfática, pois, se
estas não fossem inferiores, então deixariam de amplificá-los. Isso serve
para explicar, em parte, a necessidade que a mulher frequentemente
representa para os homens. E serve para explicar o quanto eles se
incomodam com as críticas dela; como é impossível para ela dizer que
este livro é ruim, que este quadro é medíocre, ou coisa do tipo, sem
causar mais dor ou provocar mais raiva do que ocorre quando um
homem oferece o mesmo tipo de crítica. Pois se ela começa a dizer a
verdade, a imagem no espelho se encolhe; a disposição para a vida
diminui. Como ele poderia continuar fazendo seus julgamentos,
civilizando nativos, criando leis, escrevendo livros, se vestindo com
elegância e discursando em banquetes, a menos que consiga enxergar a
si mesmo no café da manhã e no jantar com pelo menos o dobro do
tamanho que realmente tem? Assim eu pensei, partindo meu pão,
mexendo o café e olhando de vez em quando para as pessoas na rua. A
imagem no espelho é de suprema importância porque recarrega a
vitalidade, estimula o sistema nervoso. Basta removê-la e os homens
podem até morrer, como os viciados destituídos de cocaína. Sob o
encanto dessa ilusão, pensei, olhando pela janela, metade dos indivíduos
na calçada está indo trabalhar. Eles vestem os chapéus e casacos de
manhã sob seus raios agradáveis. Começam o dia confiantes,
fortalecidos, acreditando-se bem-vindos no chá da srta. Smith; dizem a
si mesmos, conforme adentram o recinto, que são superiores a metade
das pessoas dali, e por isso falam com aquela autoconfiança e segurança
que têm consequências tão profundas na vida pública e que levam a
observações tão curiosas às margens das reflexões privadas.
Mas essas contribuições ao tema perigoso e fascinante da psicologia
do sexo oposto — algo que eu espero que vocês pesquisem assim que
tiverem uns quinhentos anos à disposição — foram interrompidas pela
necessidade de pagar a conta. Ficou em cinco xelins e nove pences. Dei
ao garçom uma nota de dez xelins e ele foi buscar o troco. Havia outra
nota de dez xelins na minha bolsa; reparei nisso porque ainda fico
surpresa com a capacidade que a minha bolsa tem de multiplicar notas
de dez xelins automaticamente. Eu abro a bolsa e elas estão ali. A
sociedade me dá frango e café, cama e abrigo, em troca de um certo
número de pedaços de papel que herdei de minha tia, por nenhum outro
motivo senão o de compartilharmos o sobrenome.
Minha tia, Mary Beton, devo lhes contar, morreu ao cair do cavalo
durante um passeio em Bombaim. A notícia da minha herança chegou a
mim certa noite, mais ou menos na mesma época em que se aprovou a lei
que dava às mulheres o direito ao voto. A carta de um advogado caiu na
minha caixa de correio e, ao abri-la, descobri que ela havia me deixado
quinhentas libras anuais para sempre. Dessas duas coisas — o voto e o
dinheiro —, admito que o dinheiro me pareceu infinitamente mais
importante. Antes disso, eu ganhava a vida implorando por trabalhos
eventuais nos jornais, cobrindo desfiles de jumentos e festas de
casamento; ganhei algumas libras endereçando envelopes, lendo para
senhoras idosas, fazendo flores artificiais e ensinando o alfabeto a
crianças pequenas em um jardim de infância. Essas eram as principais
ocupações disponíveis para as mulheres antes de 1918. Acho que não
preciso descrever em detalhes como o trabalho era árduo, pois vocês
talvez conheçam mulheres que desempenham tais ofícios; tampouco
preciso falar da dificuldade de viver do dinheiro do próprio trabalho, pois
vocês talvez tenham tentado. Mas o que ainda permanece comigo, como
um tormento pior do que tudo, é o veneno do medo e da amargura que
aqueles dias produziram em mim. Para começo de conversa, estar
sempre realizando um trabalho que não se deseja, e feito uma escrava —
adulando e bajulando, o que talvez não fosse sempre exigido, mas me
parecia necessário, e, além do mais, havia muita coisa em jogo para
correr riscos. Depois, a ideia de que aquele único talento que seria
mortal ocultar — um talento pequeno, mas valioso a quem o possuía —
estava se extinguindo, e com ele o meu ser e a minha alma… Tudo isso era
como uma ferrugem corroendo o florescer da primavera, destruindo a
árvore por dentro. Porém, como eu disse, minha tia morreu; agora, toda
vez que troco uma nota de dez xelins, um pouco dessa ferrugem e
corrosão é removida, e o medo e a amargura vão embora. Na verdade,
pensei, jogando as moedas na bolsa e recordando a amargura daqueles
dias, é incrível a mudança de humor que traz um rendimento fixo.
Nenhuma força do mundo irá tirar as minhas quinhentas libras. A
comida, a casa e as roupas são minhas para sempre. Consequentemente,
não só o esforço e o trabalho cessam, mas também a raiva e a amargura.
Eu não preciso odiar nenhum homem; eles não podem me machucar.
Não preciso adular nenhum homem; eles não têm nada a me oferecer.
Então eu imperceptivelmente me vi adotando uma nova atitude diante
da outra metade da humanidade. Era absurdo culpar qualquer classe ou
sexo como um todo. Grandes coletivos de pessoas nunca são
responsáveis pelo que fazem. Eles são guiados por instintos que não
estão sob seu controle. Eles também — os patriarcas, os professores —
tinham dificuldades infinitas e infortúnios terríveis para enfrentar. A
educação deles também fora, em alguns aspectos, tão deficiente quanto a
minha. E lhes gerou defeitos grandes também. É verdade: eles tinham
dinheiro e poder, mas à custa de abrigar no peito uma águia, um abutre
que passa a eternidade estraçalhando o fígado e arrancando os seus
pulmões:32 o instinto da posse, a fúria da conquista que os leva a desejar
as terras e os bens dos outros perpetuamente, a criar fronteiras e
bandeiras, navios de guerra e gases tóxicos, a ofertar suas próprias vidas
e as de seus filhos. Basta caminhar pelo Arco do Almirantado (eu havia
chegado agora a esse monumento) ou por qualquer outra avenida
entregue a troféus e canhões, e refletir sobre o tipo de glórias ali
celebradas. Ou assistir, à luz do sol da primavera, o corretor da bolsa e o
notório advogado entrando porta adentro para fazer mais dinheiro e
mais dinheiro e mais dinheiro, quando a verdade é que com quinhentas
libras é possível manter uma pessoa viva à luz do sol. São instintos
desagradáveis de abrigar, pensei. São criados a partir das condições da
vida, da falta de civilização, refleti, olhando para a estátua do duque de
Cambridge, em particular para as penas de seu chapéu tricorne, com
uma fixação que elas jamais tinham recebido antes. E, conforme eu
compreendia esses infortúnios, aos poucos o medo e a amargura se
transformaram em piedade e tolerância; depois, em mais um ou dois
anos, a piedade e a tolerância foram embora e deram lugar à maior
libertação de todas: a liberdade para pensar nas coisas em si mesmas.
Este edifício, por exemplo: gosto ou não dele? E este quadro, é bonito?
Este livro, na minha opinião, é bom ou ruim? De fato, a herança de minha
tia revelou o céu para mim; e substituiu a grande e imponente figura de
um cavalheiro — que Milton sugeriu para minha perpétua adoração —
pela visão de um céu aberto.
Assim pensando, assim especulando, tomei o caminho de volta para
casa, ao longo do rio. As lâmpadas estavam sendo acesas e Londres
passara por uma mudança indescritível desde aquela manhã. Era como
se, depois de trabalhar o dia inteiro, a grande máquina tivesse produzido
com a nossa ajuda alguns metros de algo muito empolgante e belo — um
tecido flamejante que cintila com olhos vermelhos, um monstro rubro
rugindo com seu bafo quente. Até o vento parecia debater-se feito uma
bandeira enquanto fustigava as casas e sacudia os tapumes.
Na minha ruazinha, porém, a domesticidade prevalecia. O pintor de
casas baixava sua escada; a babá empurrava o carrinho de bebê com
cuidado, de volta para o chá; o carregador de carvão dobrava seus sacos
vazios um em cima do outro; a mulher da quitanda fazia as contas dos
lucros do dia com as mãos envoltas em luvas vermelhas. Mas eu estava
tão absorta no problema que vocês me depositaram nos ombros que não
conseguia enxergar essas cenas comuns sem relacioná-las a um núcleo.
Pensei em como é mais difícil hoje, em comparação a cem anos atrás,
dizer qual desses ofícios é o mais importante, o mais necessário. É
melhor ser um carregador de carvão ou uma babá? Será que a faxineira
que criou oito filhos tem menos valor para o mundo do que o advogado
que ganhou cem mil libras? É inútil fazer essas perguntas, pois ninguém
é capaz de respondê-las. Não só porque o valor relativo de faxineiras e
advogados aumenta e diminui ao longo das décadas, mas porque não
temos nem as ferramentas para medi-lo no momento. Fui tola de pedir
ao professor que me fornecesse “provas irrefutáveis” disto ou daquilo em
sua argumentação sobre as mulheres. Mesmo que fosse possível
estabelecer o valor de determinado talento naquele instante, esses
valores irão mudar; daqui a cem anos provavelmente terão se
transformado por completo. Mais do que isso: daqui a um século, pensei,
alcançando a soleira de casa, as mulheres terão deixado de ser o sexo
protegido. De maneira lógica, elas irão fazer parte de todas as atividades
e esforços que lhes foram um dia negados. A babá irá carregar carvão. A
quitandeira irá pilotar uma locomotiva. Todas as presunções baseadas
em fatos observados quando as mulheres eram o sexo protegido terão
desaparecido — como, por exemplo (e aqui um batalhão de soldados
marchou rua afora), o fato de que mulheres, sacerdotes e jardineiros
vivem mais do que as outras pessoas. Basta remover essa proteção,
expondo as mulheres aos mesmos esforços e atividades e
transformando-as em militares, marinheiras, condutoras de
locomotivas e estivadoras, e elas morrerão muito mais cedo e mais
rapidamente do que os homens, a ponto de alguém passar a dizer “Vi
uma mulher hoje” da mesma forma que dizia “Vi um avião”. Tudo pode
acontecer quando ser mulher não for mais uma ocupação protegida,
pensei, abrindo a porta. Mas que influência isso pode ter no assunto do
meu artigo “As mulheres e a ficção”?, eu me perguntei, entrando em casa.
26. Referência à sala de leitura (Reading Room) do Museu Britânico. [N. de T.] ↩
27. “‘Os homens sabem que as mulheres são superiores a eles, e portanto escolhem as mais
fracas ou ignorantes. Se não pensassem assim, jamais teriam medo de que as mulheres
soubessem tanto quanto eles.’ […] Para fazer justiça ao sexo, acho certo reconhecer que, em
uma conversa subsequente, ele me disse que estava falando sério.” — James Boswell, The
Journal of a Tour to the Hebrides with Samuel Johnson. [N. da A.] ↩
28. “Os antigos germânicos acreditavam que havia algo de sagrado nas mulheres, e por isso as
consultavam como oráculos.” — James Frazer, O ramo de ouro. [N. da A.] ↩
29. George Romney (1734–1802), pintor inglês cujos retratos eram muito estimados pela alta
sociedade do século XVIII. [N. de E.] ↩
30. Referência à romancista, crítica e ensaísta Rebecca West (1892–
–1983), pseudônimo de Cicily Isabel Fairfield. No dia 10 de setembro de 1928, Virginia
Woolf registrou em seu diário a reação do crítico literário Desmond MacCarthy (1877–
1952) a um livro de West: “Foi divertido descobrir que, quando Rebecca West diz que os
‘homens são esnobes’, ela consegue irritar Desmond instantaneamente”. [N. de T.] ↩
31. A autora se refere ao super-homem nietzschiano e possivelmente ao filme The Finger of
Destiny, de 1914. [N. de T.] ↩
32. Na mitologia grega, Zeus condena Prometeu a passar os dias acorrentado no alto de um
monte, com uma águia a lhe bicar o fígado. [N. de T.] ↩
3.

Foi uma decepção voltar para casa, à noite, sem qualquer afirmação
importante, sem qualquer fato autêntico: as mulheres são mais pobres
do que os homens por causa disso ou daquilo. Talvez por ora fosse
melhor desistir de procurar a verdade e de receber como resposta uma
avalanche de opiniões ferventes como lava, turvas feito água de lavagem.
Seria melhor fechar as cortinas, bloquear as distrações, acender o abajur,
estreitar a investigação e pedir ao historiador — que registra fatos, e não
opiniões — para descrever em que condições as mulheres viviam, não
através dos séculos, mas na Inglaterra, digamos, na época elisabetana.
Pois é um eterno mistério que nenhuma mulher tenha escrito uma
palavra daquela extraordinária literatura quando metade dos homens, ao
que parece, era capaz de escrever canções ou sonetos. Em que condições
as mulheres viviam?, perguntei a mim mesma, pois a ficção, sendo um
produto da imaginação, não cai feito uma pedra no solo, como a ciência; a
ficção é como uma teia de aranha atada à vida pelos quatro cantos, ainda
que de forma delicada. Muitas vezes a ligação é quase imperceptível; as
peças de Shakespeare, por exemplo, parecem se pendurar
completamente por si próprias. Mas quando a teia é arrancada de
qualquer jeito, enganchada em uma ponta, rasgada ao meio, lembramos
que essas teias não são tecidas em pleno ar por criaturas incorpóreas,
mas são obra de seres humanos em sofrimento, e estão atadas a coisas
brutalmente materiais como saúde, dinheiro e a casa onde moramos.
Recorri, portanto, à prateleira dos livros de história e peguei um dos
mais recentes, História da Inglaterra, do prof. Trevelyan. Mais uma vez
procurei “mulheres”, encontrei “posição das” e corri às páginas
indicadas. “O espancamento das esposas”, li, “era um direito
reconhecido do homem, praticado sem culpa por ricos e pobres […]. De
modo similar”, o historiador prosseguia, “a filha que se recusasse a se
casar com o cavalheiro da escolha de seus pais estava sujeita a ser
trancada, espancada e jogada de um lado para o outro em seu quarto, sem
que a opinião pública ficasse minimamente chocada. O casamento não
era matéria de afeição pessoal, mas de cobiça familiar, em especial nas
classes mais altas e ‘cavalheirescas’ […]. O noivado muitas vezes
acontecia quando um dos envolvidos (ou ambos) ainda estava no berço, e
o casamento ocorria quando mal tinham saído dos cuidados de uma
babá.” Isso foi em 1470, pouco depois da época de Chaucer33. A
referência seguinte à posição das mulheres se referia ao tempo da
dinastia Stuart, duzentos anos mais tarde. “Ainda era exceção, entre as
mulheres das classes alta e média, escolher o próprio marido; após ser
assim designado, ele se tornava seu mestre e senhor, pelo menos até
onde a lei e os costumes o permitissem. E ainda assim”, o prof. Trevelyan
conclui, “nem as mulheres das peças de Shakespeare nem aquelas
retratadas em autênticas memórias do século XVII, como as de Verney e
as de Hutchinson,34 pareciam carecer de personalidade e
temperamento.” Sem dúvida, se pensarmos bem, Cleópatra deve ter tido
seu próprio jeito para as coisas; Lady Macbeth, supõe-se, tinha lá suas
vontades; Rosalind, pode-se concluir, era uma moça atraente. O prof.
Trevelyan não fala nada além da verdade ao observar que as mulheres
nas peças de Shakespeare não pareciam carecer de personalidade e
temperamento. Sem sermos historiadores, podemos ir até mais além e
dizer que as mulheres brilharam feito faróis em todas as obras dos
poetas desde o início dos tempos — Clitemnestra, Antígona, Cleópatra,
Lady Macbeth, Fedra, Créssida, Rosalind, Desdêmona, a duquesa de
Malfi, entre os dramaturgos; então entre os prosadores: Millamant,
Clarissa, Becky Sharp, Anna Kariênina, Emma Bovary, Madame de
Guermantes… Os nomes afluem à mente, e nenhum deles evoca
mulheres que “parecem carecer de personalidade e temperamento”. De
fato, se a mulher não existisse fora da ficção escrita pelos homens,
poderíamos imaginar que ela fosse uma pessoa da maior importância;
muito variada; heroica e cruel; esplêndida e sórdida; infinitamente bela e
feia ao extremo; tão grande quanto um homem e, segundo alguns, até
maior.35 Mas essa é a mulher na ficção. Na vida real, como o prof.
Trevelyan aponta, ela era trancada, espancada e jogada de um lado para o
outro em seu quarto.
Assim, surge um ser composto muito esquisito. Na imaginação, ela é
de extrema importância; na vida prática é totalmente insignificante. Ela
permeia a poesia de uma ponta a outra, mas está praticamente ausente
da história. Na ficção, domina a vida dos reis e conquistadores; na
realidade, era escrava de qualquer garoto cujos pais forçaram uma
aliança em seu dedo. Algumas das palavras mais inspiradas e dos
pensamentos mais profundos da literatura saíram de seus lábios; na vida
real ela mal conseguia ser ouvida, não sabia soletrar e era propriedade do
marido.
Era certamente um monstro estranho que resultava da leitura
primeiro dos historiadores e depois dos poetas: um verme alado feito
uma águia; o espírito da vida e da beleza na cozinha, picando banha. Mas
esses monstros, por mais que ocupassem a imaginação, não existiam na
vida real. Para trazer essa mulher à vida era necessário pensar de forma
ao mesmo tempo poética e prosaica, portanto mantendo contato com os
fatos — de que ela é a sra. Martin, de trinta e seis anos, que usa vestido
azul, chapéu preto e sapatos marrons —, mas sem perder de vista a ficção
— de que ela é um recipiente no qual toda espécie de espíritos e forças
correm e brilham perpetuamente. No momento, porém, em que
tentamos aplicar esse método à mulher elisabetana, uma faceta inteira
continua apagada; somos detidas pela escassez dos fatos. Não se sabe
nada muito detalhado, nada perfeitamente verdadeiro e substancial
sobre ela. A história mal se refere a ela. Recorri de novo ao prof.
Trevelyan para entender o que a história significava para ele. Descobri,
consultando os títulos dos capítulos, que significava:
A corte feudal e os métodos de agricultura em campo aberto… Os
cistercienses e a criação de ovelhas… As Cruzadas… A universidade… A
Câmara dos Comuns… A Guerra dos Cem Anos… A Guerra das Rosas…
Os acadêmicos do Renascimento… A dissolução dos monastérios…
Conflitos agrários e religiosos… As origens do poderio marítimo da
Inglaterra… A Armada… e assim por diante. De vez em quando uma
mulher individual era mencionada, uma Elisabete ou Maria, uma rainha
ou grande dama. Mas não havia a menor possibilidade de que uma
mulher de classe média com nada além de inteligência e personalidade
pudesse tomar parte em qualquer um dos grandes movimentos que,
reunidos, constituem a visão dos historiadores acerca do passado. Nem a
encontraríamos em uma seleção de anedotas históricas. Aubrey36 mal se
refere a ela. Ela nunca escreve sobre a própria vida e poucas vezes
mantém um diário; restam apenas algumas de suas cartas. Não deixou
peças ou poemas pelos quais possamos julgá-la. O que gostaríamos de
ter, pensei — e por que alguma aluna brilhante de Newnham ou Girton
não poderia fornecê-lo? —, é um conjunto de informações: com que idade
ela se casou, quantos filhos costumava ter, como era a casa onde morava,
se tinha um quarto só dela, se cozinhava, se tinha criados. Todos esses
fatos estão possivelmente em algum lugar, em registros paroquiais e
livros de contabilidade; a vida da mulher elisabetana média deve estar
dispersa por aí, pronta para ser coletada e transformada em livro. Seria
ambicioso demais da minha parte, pensei, buscando nas prateleiras
livros que não existiam, sugerir às alunas dessas famosas faculdades que
reescrevessem a história, embora eu reconheça que ela muitas vezes
parece um tanto esquisita assim como é, irreal, desequilibrada; mas
então por que não poderiam incluir um suplemento à história, dando-lhe
algum nome discreto, é claro, para que as mulheres pudessem figurar
nela sem que houvesse grande impropriedade? Pois muitas vezes temos
um vislumbre das mulheres na vida dos grandes homens, escapulindo
para o segundo plano e disfarçando, conforme às vezes penso, uma
piscadela, uma risada, talvez uma lágrima. E afinal de contas, já tivemos
biografias suficientes de Jane Austen; não me parece necessário estudar
de novo a influência das tragédias de Joanna Baillie na poesia de Edgar
Allan Poe;37 de minha parte, eu não me incomodaria se as casas e os
lugares frequentados por Mary Russell Mitford38 ficassem fechados
para o público por pelo menos cem anos. Mas o que acho deplorável,
prossegui, examinando novamente as prateleiras, é que não se sabe nada
sobre as mulheres antes do século XVIII. Não disponho de nenhum
modelo mental para fundamentar esta ou aquela reflexão. Aqui estou eu,
perguntando por que as mulheres não escreviam poesia na época
elisabetana, quando não sei como elas foram educadas, se aprenderam a
ler e escrever, se tinham quartos só delas, quantas tiveram filhos antes
dos vinte e um anos de idade, e o que, em resumo, elas faziam das oito da
manhã às oito da noite. Evidentemente elas não tinham dinheiro; de
acordo com o prof. Trevelyan, elas se casavam mesmo contra a vontade e
antes até de saírem dos cuidados das babás, provavelmente aos quinze
ou dezesseis anos. Seria extremamente estranho se, mesmo depois de
tudo isso, uma delas tivesse de repente escrito as peças de Shakespeare,
concluí; e pensei naquele velho senhor, já falecido, mas que era bispo,
acho, que declarou ser impossível qualquer mulher — no passado,
presente ou futuro — ter a genialidade de Shakespeare. Ele escreveu
sobre isso nos jornais. Também disse a uma senhora, que o consultara
em busca de informações, que os gatos na verdade não vão para o céu,
ainda que tenham uma espécie de alma, acrescentou. De quantas
reflexões aqueles velhos senhores nos poupavam! Como as fronteiras da
ignorância se encolhiam quando eles se aproximavam! Os gatos não vão
para o céu. As mulheres não são capazes de escrever as peças de
Shakespeare.
Seja como for, não pude deixar de pensar, olhando para as obras de
Shakespeare na estante, que o bispo estava certo pelo menos nisto: seria
impossível, absoluta e inteiramente, que qualquer mulher tivesse escrito
as peças de Shakespeare na época de Shakespeare. Deixe-me imaginar,
já que os fatos são tão difíceis de obter, o que teria acontecido se
Shakespeare tivesse uma irmã maravilhosamente talentosa, digamos,
chamada Judith. O próprio Shakespeare frequentou, muito
provavelmente, a escola — sua mãe era uma herdeira —, onde deve ter
aprendido latim — Ovídio, Virgílio e Horácio39 —, além dos fundamentos
de gramática e lógica. Ele foi, como se sabe, um garoto travesso que
escaldava coelhos, talvez tenha atirado em um cervo, e foi obrigado a se
casar, mais rápido do que deveria, com uma mulher da vizinhança, que
deu à luz antes do que seria correto. Essa escapada o levou a buscar a
sorte em Londres. Ele tinha aparentemente um gosto pelo teatro;
começou vigiando cavalos na porta do estabelecimento. Logo passou a
trabalhar no ramo, tornou-se um ator bem-sucedido e viveu no centro do
mundo, encontrando e conhecendo a todos, praticando sua arte nos
palcos, exercendo sua esperteza nas ruas e até ganhando acesso ao
palácio da rainha. Enquanto isso, sua irmã extraordinariamente
talentosa, pode-se supor, ficou em casa. Ela era tão aventureira, tão
imaginativa, tão impaciente para conhecer o mundo quanto o irmão.
Mas não foi mandada à escola. Não teve a chance de aprender gramática
e lógica, nem de ler Horácio e Virgílio. De vez em quando pegava um
livro, talvez do irmão, e lia algumas páginas. Mas então seus pais
apareciam e lhe mandavam cerzir meias e cuidar do guisado, em vez de
ficar devaneando com livros e papéis. Eles diriam isso de modo severo,
mas bondoso, pois eram pessoas abastadas que sabiam quais eram as
condições de vida reservadas para as mulheres e amavam a filha — na
verdade, é bem possível que ela fosse a menina dos olhos do pai. Talvez
ela rascunhasse algumas páginas no sótão onde guardavam as maçãs,
mas tinha o cuidado de escondê-las ou queimá-las. Em pouco tempo,
porém, antes que saísse da adolescência, ela ficaria noiva do filho de um
comerciante de lãs da vizinhança. Gritou que achava o casamento
odioso, e por causa disso foi severamente espancada pelo pai. Então ele
parou de ralhar com ela. Em vez disso, implorou que não o magoasse, que
não o desonrasse nesse assunto do casamento. Ele lhe daria um colar de
contas ou uma bela anágua, disse, com lágrimas nos olhos. Como ela
poderia lhe desobedecer? Como poderia partir seu coração? A mera
força de seu talento a levou a isso. Fez um pequeno pacote com seus
pertences, desceu por uma corda em uma noite de verão e tomou a
estrada até Londres. Não tinha nem dezessete anos. Os pássaros que
cantavam nas sebes não eram mais musicais do que ela. Possuía uma
inclinação apurada, um talento, como o do irmão, para a melodia das
palavras. Também como ele, tinha gosto pelo teatro. Parou na porta de
um: queria atuar, disse. Os homens riram da cara dela. O diretor — um
homem gordo e falastrão — irrompeu em gargalhadas. Urrou algo sobre
poodles que dançam e mulheres que atuam — nenhuma mulher poderia
ser atriz, disse. Deu a entender que… vocês podem imaginar o quê. Ela
não teria como aprender seu ofício. Não tinha nem a possibilidade de
jantar em uma taverna ou de vagar pelas ruas à meia-noite. Ainda assim,
seu talento era para a ficção, e ela tinha ânsia de se alimentar das vidas
dos homens e das mulheres, estudando seus costumes. Por fim — pois
era muito jovem e tinha o rosto estranhamente parecido com o do poeta
Shakespeare, com os mesmos olhos cinzentos e sobrancelhas
arredondadas —, por fim o ator-diretor Nick Greene ficou com pena dela;
ela se viu grávida desse cavalheiro, e então — quem poderia medir o
ardor e a violência do coração de um poeta preso e enredado em um
corpo feminino? — ela se matou numa noite de inverno, e jaz enterrada
em alguma encruzilhada onde hoje os ônibus param, em Elephant and
Castle.40
É mais ou menos assim que a história se daria, penso, se uma mulher
na época de Shakespeare tivesse a genialidade de Shakespeare. Mas, de
minha parte, concordo com o bispo falecido, se é que ele era mesmo um
bispo: é impensável que qualquer mulher na época de Shakespeare
tivesse tido a genialidade de Shakespeare. Pois uma genialidade como a
dele não nasce entre pessoas trabalhadoras, incultas e servis. Não
nasceu na Inglaterra dos saxões e bretões. Não nasce hoje entre as
classes trabalhadoras. Como, então, poderia ter nascido entre as
mulheres cujo trabalho começava, de acordo com o prof. Trevelyan,
quase antes de saírem dos cuidados das babás, e ao qual eram impelidas
pelos pais e obrigadas pelo poder da lei e dos costumes? Ainda assim,
deve ter havido algum tipo de genialidade entre as mulheres, da mesma
forma como deve ter havido entre as classes trabalhadoras. De vez em
quando surge uma Emily Brontë ou um Robert Burns41 e comprova essa
presença. Mas certamente ela nunca chegou ao papel. Quando, porém,
lemos sobre uma bruxa torturada por afogamento, uma mulher possuída
pelo demônio, uma curandeira que vendia ervas ou mesmo um homem
muito notável e sua mãe, então penso que estamos na pista de uma
romancista perdida, uma poeta suprimida, uma Jane Austen muda e
inglória, uma Emily Brontë que quebrava a cabeça nos pântanos e vagava
desditosa pelas estradas, enlouquecida pela tortura que seu dom lhe
provocava. De fato, eu arriscaria dizer que o tal Anônimo, que escreveu
tantos poemas sem assinar, era muitas vezes uma mulher. Foi uma
mulher, sugeriu Edward Fitzgerald42 (creio eu), que compôs as baladas e
as músicas folclóricas, cantarolando-as baixinho para seus filhos,
distraindo-se assim durante o ofício de fiar ou em uma longa noite de
inverno.
Isso pode ser verdadeiro ou falso — quem pode dizer? —, mas o que era
verdadeiro nisso, assim me pareceu, revendo a história da irmã de
Shakespeare conforme a inventei, é que qualquer mulher nascida com
um grande talento no século XVI certamente teria enlouquecido, se
suicidado, ou terminado seus dias em alguma cabana solitária distante
do vilarejo — meio bruxa, meio feiticeira, temida e ridicularizada. Pois
não é preciso grande habilidade em psicologia para saber que uma garota
extremamente talentosa que tivesse tentado usar seu dom para a poesia
se veria tão prejudicada e impedida pelos outros, tão torturada e
despedaçada por seus próprios instintos contrários, que certamente
perderia a saúde e a sanidade mental. Nenhuma garota poderia ter ido a
Londres, se postado diante de um teatro e imposto sua presença diante
de atores-diretores sem praticar uma violência contra si mesma, sem
sofrer uma angústia que pode até ter sido irracional — pois a castidade
pode ser um fetiche criado por certas sociedades por motivos
desconhecidos —, mas que não deixava de ser inevitável. A castidade
tinha na época, como ainda tem hoje, uma importância religiosa na vida
das mulheres, e está tão envolta em nervos e instintos que a libertar e
trazer à luz do dia requer uma raríssima coragem. Levar uma vida livre
em Londres no século XVI teria representado, para uma mulher poeta e
dramaturga, um desgaste nervoso e um conflito que poderiam muito
bem matá-la. Caso sobrevivesse, todos os seus escritos sairiam
distorcidos e deformados, pois teriam brotado de uma imaginação tensa
e mórbida. E sem dúvida, pensei, olhando a prateleira onde não havia
peças de teatro escritas por mulheres, esse trabalho não seria assinado.
Tal refúgio ela certamente buscaria. Era um resquício do senso de
castidade que impunha o anonimato às mulheres, mesmo em uma época
tão recente quanto o século XIX. Currer Bell, George Eliot, George Sand43
— todas vítimas de um conflito interno, como seus escritos mostram —
buscaram inutilmente ocultar a si mesmas sob um pseudônimo
masculino. Faziam, assim, uma deferência à convenção de que a
publicidade é detestável nas mulheres — convenção que, se não foi
implantada pelo sexo oposto, era fartamente incentivada por ele: “A
glória máxima de uma mulher é não ser falada”, disse Péricles44, ele
mesmo um homem muito falado. O anonimato corria no sangue delas. O
desejo de ocultar-se ainda as domina. Até hoje, elas não se preocupam
tanto em cultivar a fama quanto os homens, e, de modo geral, conseguem
passar diante de um túmulo ou de uma inscrição histórica sem sentir o
desejo irresistível de entalhar ali seus nomes, como Alf, Bert ou Chas
precisam fazer em obediência a seu instinto, que se expressa quando vê
passar uma mulher bonita ou mesmo um cachorro: Ce chien est à moi.45
E é claro que não precisa ser um cachorro, pensei, lembrando a
Parliament Square, a Siegesallee e outras avenidas; pode ser um pedaço
de terra ou um homem de cabelo crespo. Uma das grandes vantagens de
ser mulher é que podemos passar perto de uma negra muito bonita sem
desejar torná-la inglesa.
Essa mulher, portanto, que nasceu no século XVI com um talento para
a poesia, era uma mulher infeliz, uma mulher em conflito consigo
mesma. Todas as condições de sua vida, todos os seus instintos, eram
hostis ao estado de espírito necessário para libertar o que quer que
estivesse em sua mente. Mas qual era o estado de espírito mais propício
ao ato da criação?, eu me perguntei. Seria possível ter alguma ideia do
estado que fomenta e torna possível essa estranha atividade? Aqui abri o
volume com as tragédias de Shakespeare. Qual teria sido o estado de
espírito de Shakespeare, por exemplo, ao escrever Rei Lear e Antônio e
Cleópatra? Certamente foi o estado de espírito mais favorável à poesia
que já existiu. Mas o próprio Shakespeare nunca disse nada a respeito.
Sabemos apenas por sorte e por acaso que ele “nunca rasurou uma
linha”. De fato, os artistas nada disseram sobre seu estado de espírito até
talvez o século XIX. Foi possivelmente Rousseau quem começou essa
prática. De qualquer modo, lá pelo século XIX, a autoconsciência havia se
desenvolvido tanto que se tornou um hábito dos homens letrados
descrever seus pensamentos em confissões e autobiografias. Suas
biografias eram escritas e suas cartas eram publicadas de forma
póstuma. Por isso, embora não saibamos pelo que passava Shakespeare
quando escreveu Rei Lear, sabemos pelo que passava Carlyle quando
escreveu História da revolução francesa; pelo que passava Flaubert
quando escreveu Madame Bovary; pelo que passava Keats quando
tentou escrever poesia diante de sua morte iminente e da indiferença do
mundo.
E o que depreendemos dessa imensa literatura moderna de confissão
e autoanálise é que escrever uma obra genial é quase sempre uma tarefa
de prodigiosa dificuldade. Tudo conspira contra a possibilidade de que
ela venha a fluir íntegra e completamente da mente do autor. Em geral,
circunstâncias materiais conspiram contra isso. Os cachorros latem, as
pessoas interrompem, é preciso ganhar dinheiro, a saúde entra em
colapso. Além disso, realçando todas essas dificuldades e tornando-as
mais difíceis de suportar, há a notória indiferença do mundo. Ele não
pede que as pessoas escrevam poemas, romances e contos; ele não
precisa disso. Ao mundo não interessa se Flaubert encontra a palavra
justa ou se Carlyle verifica escrupulosamente este ou aquele fato. E
assim o escritor — Keats, Flaubert, Carlyle — experimenta, em especial
nos anos criativos da juventude, toda espécie de distração e
desencorajamento. Um impropério, um grito de agonia, emerge desses
livros de análise e confissão. “Poderosos poetas em sua miséria mortos”
é o fardo de suas canções.46 Se algo é produzido apesar de tudo isso, é um
milagre, e provavelmente nenhum livro nasce completa e perfeitamente
conforme foi concebido.
Mas para as mulheres, pensei, olhando as prateleiras vazias, essas
dificuldades eram infinitamente maiores. Em primeiro lugar, ter um
quarto só seu — que dirá um quarto tranquilo ou à prova de som — estava
fora de questão, a menos que seus pais fossem excepcionalmente ricos
ou muito nobres, até mesmo tão recentemente quanto no início do
século XIX. Como sua mesada, que dependia da boa vontade do pai, mal
era suficiente para comprar roupas, ela não contava nem com as
distrações permitidas a Keats, Tennyson ou Carlyle, todos homens
pobres, como fazer uma excursão guiada, uma viagem breve à França ou
viver em um teto separado que, por mais que fosse miserável, os protegia
das demandas e tiranias de suas famílias. Tais dificuldades materiais
eram imensas; mas muito piores eram as imateriais. A indiferença do
mundo — que Keats, Flaubert e outros gênios acharam tão difícil de
suportar — era, no caso delas, hostilidade. O mundo não dizia a elas:
“Escreva se quiser, não faz diferença”, como dizia a eles. O mundo dizia,
com uma gargalhada: “Escrever? Para que você vai escrever?”. Aqui as
psicólogas de Newham e Girton podem vir a nosso socorro, pensei,
olhando de novo para os espaços vazios nas prateleiras. Pois certamente
já está na hora de começar a medir o efeito do desencorajamento sobre a
mente do artista, assim como vi uma empresa de laticínios medir o
efeito do leite normal e do leite tipo A no corpo dos ratos. Eles botaram
dois ratos em gaiolas, lado a lado: um deles era furtivo, tímido e pequeno,
e o outro era lustroso, ousado e grande. Agora, que tipo de comida nós
damos para as mulheres artistas?, me perguntei, lembrando, creio,
daquele jantar de ameixas secas com creme. Para responder a essa
pergunta só tive de abrir o jornal da noite e ler que lorde Birkenhead
acha que… Mas não vou realmente me dar ao trabalho de copiar a opinião
de lorde Birkenhead sobre a escrita das mulheres. O que o reitor Inge
falou deixarei de lado. O especialista de Harley Street pode despertar os
ecos de Harley Street com suas vociferações sem que eu pisque um
olho.47 Irei citar, porém, o sr. Oscar Browning, pois foi uma
personalidade em Cambridge em sua época, e costumava avaliar as
alunas de Girton e Newnham. O sr. Oscar Browning estava acostumado a
dizer “que a impressão que lhe restava, depois de corrigir um conjunto
qualquer de provas escolares, é que, a despeito das notas que desse, a
melhor das mulheres era intelectualmente inferior ao pior dos homens”.
Depois de declarar isso, o sr. Browning voltou a seus aposentos — e é essa
segunda parte que o torna cativante e o transforma em uma figura de
certa relevância e majestade —, ele voltou a seus aposentos e encontrou
um cavalariço deitado no sofá: “Um mero esqueleto, com as bochechas
cavernosas e pálidas, os dentes pretos, e não parecia ter completo
domínio dos membros. […] ‘É Arthur’, disse o sr. Browning. ‘É um bom
garoto, realmente, e muito nobre.’” As duas imagens sempre me
pareceram complementares. E por sorte, nesta época de biografias, é
comum que ambas realmente se complementem, de modo que podemos
interpretar as opiniões dos grandes homens não só pelo que dizem, mas
pelo que fazem.
Porém, ainda que isso seja possível agora, tais opiniões vindas de
pessoas importantes devem ter tido um enorme peso cinquenta anos
atrás. Vamos imaginar que um pai, por motivos dos mais elevados, não
desejasse que sua filha saísse de casa para se tornar escritora, pintora ou
acadêmica. “Veja o que o sr. Oscar Browning diz”, ele falaria, e não era só
o sr. Oscar Browning: havia o Saturday Review, havia o sr. Greg48 — “a
essência das mulheres é que elas são sustentadas pelos homens, e a eles
servem”, disse o sr. Greg enfaticamente —, havia um enorme conjunto de
opiniões masculinas dizendo que não se pode esperar nada das mulheres
intelectualmente. Mesmo que o pai dela não lesse tais opiniões em voz
alta, qualquer garota era capaz de lê-las sozinha; e essa leitura, mesmo
no século XIX, deve ter diminuído sua vitalidade e influenciado
profundamente seu trabalho. Sempre haveria essa afirmação — você não
pode fazer isso, é incapaz de fazer aquilo — contra a qual protestar, a qual
superar. Para uma romancista, esse germe provavelmente não tem mais
tanto efeito, pois já houve mulheres romancistas de mérito. Mas para as
pintoras ele ainda causa algum dano; e para as musicistas, imagino, está
ativo até hoje e continua extremamente tóxico. A mulher compositora se
encontra na mesma situação que a atriz na época de Shakespeare. Nick
Greene, pensei, recordando a história que inventei sobre a irmã de
Shakespeare, disse que uma mulher atuando o fazia pensar em um
cachorro dançando. Johnson repetiu a frase duzentos anos depois,
referindo-se a mulheres pregando. E aqui temos, pensei, abrindo um
livro sobre música, as mesmas palavras utilizadas de novo, neste ano da
graça de 1928, para se referir a mulheres que tentam compor música.
“Sobre a srta. Germaine Tailleferre, podemos apenas repetir o dito do dr.
Johnson sobre as mulheres pregadoras, transpondo-o para o campo da
música: ‘Senhor, uma mulher compositora é como um cachorro andando
sobre as patas traseiras. O resultado não é bom, mas ficamos surpresos
de ver que pode ser feito.’”49 A história se repete com tanta exatidão.
Assim, concluí, fechando a biografia do sr. Oscar Browning e
afastando o resto, é bastante evidente que, mesmo no século XIX, uma
mulher não era encorajada a se tornar artista. Pelo contrário: ela era
esnobada, estapeada, reprovada e desaconselhada. A necessidade de se
opor a isso e provar o contrário deve ter exaurido sua mente e diminuído
sua vitalidade. E aqui entramos de novo no âmbito daquele
interessantíssimo e obscuro complexo masculino que tanta influência
tem exercido sobre o movimento das mulheres: o desejo arraigado não
tanto de que ela seja inferior, mas de que ele seja superior, desejo que o
coloca no comando das artes por toda parte e que também barra a
entrada das mulheres na política, mesmo quando o risco para ele é
minúsculo e a suplicante é humilde e devotada. Até lady Bessborough50,
lembrei, com toda a sua paixão pela política, deve se curvar
humildemente e escrever para lorde Granville Leveson-Gower: “[…]
apesar de toda a minha violência na política e de falar tanto sobre essa
questão, concordo inteiramente com o senhor quando diz que nenhuma
mulher deve se meter neste ou em qualquer outro assunto sério, exceto
para dar sua opinião (isso se alguém pedir)”. E assim ela segue em frente,
empregando seu entusiasmo onde não encontra nenhum obstáculo: no
assunto imensamente importante que foi o discurso de estreia de lorde
Granville na Câmara dos Comuns. É um espetáculo certamente
estranho, pensei. A história da oposição dos homens à emancipação das
mulheres é talvez mais interessante do que a história da própria
emancipação. Poderíamos ter um livro divertido sobre isso, caso alguma
jovem estudante de Girton ou Newnham coletasse exemplos e inferisse
uma teoria — mas ela precisaria ter luvas grossas nas mãos e barras de
ouro maciço para protegê-la.
Mas o que é divertido hoje, lembrei, deixando lady Bessborough de
lado, teve de ser levado desesperadamente a sério no passado. As
opiniões que hoje copiamos em um livro chamado “Bravatas de machos”
e guardamos para ler diante de um público selecionado em noites de
verão já arrancaram lágrimas no passado, posso lhes garantir. Entre as
avós e bisavós de vocês, houve muitas que choraram até secarem os
olhos. Florence Nightingale berrou alto em sua agonia.51 Além disso,
para vocês, que conseguiram ingressar na faculdade e que dispõem de
seus próprios quartos — ou seriam apenas dormitórios? —, é fácil dizer
que os gênios devem desconsiderar tais opiniões, que devem estar acima
do que os outros dizem. Infelizmente, é precisamente o homem ou a
mulher de gênio que mais se importa com os comentários alheios.
Lembrem-se de Keats. Lembrem-se das palavras que ele mandou
inscrever em sua lápide.52 Lembrem-se de Tennyson; mas não é
necessário que eu me estenda em exemplos sobre o fato inegável —
porém infeliz — de que é da natureza do artista importar-se
demasiadamente com o que dizem sobre ele. A literatura está repleta de
destroços de homens que se importaram para além do razoável com as
opiniões dos outros.
E essa suscetibilidade deles é duplamente infeliz, pensei, retornando à
minha pergunta original de qual estado de espírito seria o mais propício
ao trabalho criativo, já que a mente de um artista, para poder alcançar o
prodigioso efeito de libertar íntegra e completamente a obra que está em
seu interior, deve ser incandescente como a mente de Shakespeare,
assumi, olhando para o volume que estava aberto em Antônio e
Cleópatra. Não deve haver obstáculos nela, nenhum assunto externo não
resolvido.
Afinal, mesmo quando dizemos que nada sabemos sobre o estado de
espírito de Shakespeare, já estamos informando algo sobre o estado de
espírito dele. O motivo pelo qual nós talvez saibamos tão pouco de
Shakespeare — em comparação a Donne, Ben Jonson ou Milton53 — é
que seus rancores, mágoas e antipatias estão ocultos de nós. Não somos
detidos por nenhuma “revelação” que nos remete ao autor. Todo o desejo
de protestar, de pregar, de denunciar uma ofensa, de acertar contas, de
tornar o mundo testemunha de qualquer adversidade ou queixa, foi dele
expurgado e se consumiu. Portanto, sua poesia pode fluir de forma livre e
desimpedida. Se alguém no mundo conseguiu ter sua obra
completamente expressa, foi Shakespeare. Se alguma mente foi
incandescente e desimpedida, pensei, olhando de volta para a estante, foi
a mente de Shakespeare.

33. Geoffrey Chaucer (c. 1342–1400), poeta inglês de maior proeminência antes de
Shakespeare. [N. de E.] ↩
34. Lady Frances Verney (1819–1890), escritora que registrou no século XVII os costumes de
sua tradicional família inglesa rural, e Lucy Hutchinson (1620–1681), poeta e tradutora que
escreveu e publicou, em 1806, a biografia de seu marido, coronel John Hutchinson (1615–
1664). [N. de E.] ↩
35. “Permanece um fato estranho e quase inexplicável que, na cidade de Atenas, onde as
mulheres eram mantidas em uma opressão quase oriental como odaliscas ou escravas, o
teatro tenha produzido figuras como Clitemnestra e Cassandra, Atossa e Antígona, Fedra e
Medeia, e todas as outras heroínas que dominaram peça após peça do ‘misógino’ Eurípides.
Mas o paradoxo desse mundo onde, na vida real, uma mulher respeitável mal podia mostrar
o rosto sozinha na rua, e ainda assim nos palcos ela igualava ou superava o homem, nunca foi
explicado satisfatoriamente. Na tragédia moderna existe a mesma predominância. Em todo
caso, uma análise rápida das obras de Shakespeare (a mesma coisa ocorre em Webster, mas
não em Marlowe ou Jonson) basta para revelar como essa dominância, essa iniciativa
feminina, persiste de Rosalinda a Lady Macbeth. O mesmo vale para Racine: seis de suas
tragédias levam o nome de suas heroínas, e quais personagens masculinos seriam páreo
para Hermione e Andrômaca, Berenice e Roxane, Fedra e Atália? De novo com Ibsen: que
homens estariam à altura de Solveig e Nora, Heda e Hilda Wangel e Rebecca West?” — F. L.
Lucas, Tragedy, pp. 114–15. [N. da A.] ↩
36. John Aubrey (1626–1697), filósofo e escritor inglês que publicou uma coletânea de
biografias curtas chamada Brief Lives [Breves vidas]. [N. de E.] ↩
37. Joanna Baillie (1762–1851), poeta e dramaturga inglesa. Edgar Allan Poe (1809–1849),
contista, poeta e editor estadunidense. [N. de E.] ↩
38. Mary Russell Mitford (1787–1855), poeta e romancista inglesa. [N. de E.] ↩
39. Importantes poetas romanos da Antiguidade, autores de obras clássicas estudadas até hoje.
[N. de E.] ↩
40. No Reino Unido, até 1823, os suicidas não podiam ser sepultados em cerimônias religiosas.
A lei mandava que fossem enterrados em encruzilhadas movimentadas como uma espécie
de punição, talvez para garantir que suas almas vagassem para sempre. [N. de T.] ↩
41. Emily Brontë (1818–1848), autora do clássico inglês O Morro dos Ventos Uivantes, era filha
de um vigário e teve uma vida simples e reclusa. Robert Burns (1759–1796), considerado o
poeta nacional da Escócia, nasceu na zona rural, filho de lavradores. [N. de E.] ↩
42. Edward Fitzgerald (1809–1883), poeta e tradutor inglês. [N. de E.] ↩
43. Pseudônimos masculinos utilizados, respectivamente, pelas escritoras Charlotte Brontë
(1816–1855), Mary Ann Evans (1819–1880) e Amandine Aurore Lucile Dupin (1804–1876).
[N. de E.] ↩
44. Péricles (c. 492 a.C.–429 a.C.), estadista da Grécia Antiga. [N. de E.] ↩
45. Referência a uma passagem de Pensamentos, do filósofo francês Blaise Pascal (1623–1662):
“Meu, seu. ‘Este cachorro é meu’, diziam as pobres crianças; ‘este é o meu lugar ao sol’. Aqui
está a origem e a imagem da usurpação de toda a Terra.” [N. de T.] ↩
46. No original, “Mighty poets in their misery dead”, do poema “Resolution and Independence”
[“Resolução e independência”] de William Wordsworth (1770–1850). [N. de T.] ↩
47. A Harley Street é uma rua londrina renomada por seus consultórios médicos e hospitais
privados. [N. de T.] ↩
48. O ensaísta britânico William Rathbone Greg (1809–1881), autor do ensaio “Why Are
Women Redundant?” [“Por que as mulheres são redundantes?”], de 1869. [N. de T.] ↩
49. A Survey of Contemporary Music, Cecil Gray, p. 246. [N. da A.] ↩
50. Henrietta Ponsonby, condessa de Bessborough (1761–1821), aristocrata inglesa que teve
entre seus muitos amantes Granville Leveson-Gower, Conde de Granville (1776–1846). [N.
de E.] ↩
51. Ver: “Cassandra”, de Florence Nightingale, publicado em The Cause, de R. Strachey. [N. da
A.] ↩
52. “Aqui jaz aquele cujo nome foi escrito em água”. O poeta inglês John Keats (1795–1821) está
enterrado no cemitério protestante de Roma, na Itália. [N. de T.] ↩
53. Poetas ingleses dos séculos XVI e XVII, contemporâneos de Shakespeare. [N. de E.] ↩
4.

Seria obviamente impossível encontrar qualquer mulher nesse estado


de espírito no século XIX. Basta pensarmos naqueles túmulos
elisabetanos com todas aquelas crianças ajoelhadas, de mãos unidas; em
sua morte prematura; e ver as casas com quartos escuros e apinhados
para perceber que nenhuma mulher seria capaz de escrever poesia
naquela época. O que poderíamos esperar é que, mais tarde, talvez
alguma grande dama resolvesse aproveitar sua relativa liberdade e
conforto para publicar alguma coisa em seu nome e correr o risco de ser
considerada um monstro. Os homens, é claro, não são esnobes,
prossegui, evitando cuidadosamente o “feminismo deslavado” da srta.
Rebecca West, e apreciam com simpatia, em grande parte, os esforços de
uma condessa para escrever versos. Não surpreende que uma dama da
nobreza recebesse um encorajamento maior do que uma desconhecida
srta. Austen ou srta. Brontë recebiam em sua época. Mas também não
surpreende ver que sua mente era perturbada por emoções estranhas
como medo e ódio, e que seus poemas exibiam traços dessa perturbação.
Vejamos lady Winchilsea54, por exemplo, pensei, copiando seus poemas.
Ela nasceu em 1661 e era nobre por nascimento e por casamento; não
teve filhos; escreveu poesia; e basta abrir seus livros para encontrá-la
explodindo de indignação com a condição das mulheres:

Como decaímos! Decaímos por regras equivocadas,


Por educação, mais do que por natureza;
Barradas em qualquer melhoria da mente,
Destinadas e feitas para sermos maçantes;

E se alguma de nós se destacar entre as demais,


Com a imaginação calorosa e a ambição saliente,
Uma oposição tão grande irá se interpor
Que a esperança de sucesso jamais suplantará o medo.

Fica óbvio que sua mente não havia, de modo algum, “expurgado todos
os obstáculos e se tornado incandescente”. Pelo contrário: estava
atormentada e distraída com ódios e ressentimentos. Para ela, a raça
humana se dividia em duas facções. Os homens eram da “facção
opositora”; eram odiados e temidos, pois tinham o poder de bloquear seu
caminho para aquilo que ela queria fazer: escrever.

Ai! A mulher que tenta escrever,


É considerada uma criatura tão presunçosa
Que sua falta não é redimida por nenhuma virtude.
Dizem que nos enganamos em nosso sexo e atitude;
Boas maneiras, moda, dança, roupas e tocar piano
São as façanhas que devemos almejar;
Já escrever, ler, pensar ou questionar
Irão toldar nossa beleza e gastar nosso tempo,
Interrompendo as conquistas da juventude.
Enquanto a maçante gestão de um lar com empregados
É considerada por muitos nossa arte e utilidade
[supremas.

De fato, ela tem de se motivar para escrever presumindo que aquilo


que escreve jamais será publicado, consolando-se com o triste canto:

Canta a alguns amigos e às suas mágoas,


Pois as coroas de louros nunca serão suas;
Seja escura o suficiente em suas sombras, e fique
[contente por estar ali.
Ainda assim, é evidente que, se ela tivesse conseguido libertar sua
mente do ódio e do medo, sem acumular amargura e ressentimento, o
fogo arderia em seu interior. Aqui e ali, saem palavras de pura poesia:

Nunca em seda desbotada irá esboçar


De leve a incomparável rosa.

… Que são devidamente elogiadas pelo sr. Murry; e Pope55, supõe-se,


relembrou e apropriou-se dessas outras:

Agora o junquilho se apodera do cérebro enfraquecido;


Nós desmaiamos sob seu aroma pungente.

É uma enorme pena que a mulher que conseguia escrever desse jeito, e
cuja mente estava alinhada com a natureza e a reflexão, tenha sido
forçada ao ódio e à amargura. Mas como poderia evitá-los?, me
perguntei, imaginando os olhares de desprezo e as risadinhas, a adulação
dos bajuladores, o ceticismo do poeta profissional. Deve ter se trancado
em um quartinho no campo para escrever, dilacerada de amargura e
talvez hesitação, ainda que seu marido fosse dos mais bondosos e sua
vida conjugal, perfeita. Digo “deve ter”, pois, quando procuramos
informações sobre lady Winchilsea, descobrimos, como sempre, que
quase nada se sabe sobre ela. Sofria muito de melancolia, que pode ser
explicada, pelo menos em parte, ao lermos que, nos piores momentos, ela
imaginava:

Meus versos criticados e minha ocupação considerada


Uma tolice inútil ou falha pretensiosa:

A ocupação assim censurada era, pelo que podemos entender, o hábito


inofensivo de vagar pelo campo em devaneios:
Minha mão gosta de traçar coisas estranhas,
E de se desviar do caminho conhecido e banal,
Nunca em seda desbotada irá esboçar
De leve a incomparável rosa.

Naturalmente, se esse era seu hábito e se tal era o seu prazer, tudo que
podia esperar era que rissem dela; de fato, dizem que Pope ou Gay56 a
teriam ridicularizado como “uma sabichona com comichão para
escrever”. Também dizem que ela teria ofendido Gay ao rir dele. Ela
disse que seu poema “Trivia” provou que “ele tinha mais aptidão para
trotar na frente de uma carruagem do que para ocupá-la”. Mas tudo isso
são “fofocas duvidosas” e, ademais, diz o sr. Murry, “desinteressantes”.
Mas nisso não concordo com ele, pois gostaria de ter tido mais dessas
fofocas duvidosas para descobrir ou formar uma imagem melhor dessa
dama melancólica, que amava vagar pelos campos pensando em coisas
estranhas e que desdenhava, de forma tão impulsiva e imprudente, “a
maçante gestão de um lar com empregados”. Mas ela se perdeu, diz o sr.
Murry. Seu talento foi tomado por ervas daninhas e estrangulado por
sarças espinhosas. Não teve a chance de se provar como um talento fino
e notável. E assim, devolvendo-a à prateleira, passei para outra grande
dama, a duquesa que Lamb adorava: a impulsiva e fantástica Margaret de
Newcastle57, mais velha que lady Winchilsea, porém sua
contemporânea. Ambas eram muito diferentes, mas semelhantes no fato
de que eram nobres e não tiveram filhos, e também por serem casadas
com os melhores maridos. Em ambas ardia a mesma paixão pela poesia,
e ambas foram desfiguradas e deformadas pelos mesmos motivos. Basta
abrir um livro da duquesa e encontramos a mesma explosão de raiva. “As
mulheres vivem como morcegos ou corujas, trabalham como bestas e
morrem como vermes…” Margaret também poderia ter sido poeta; nos
dias de hoje toda essa atividade teria surtido algum efeito. Naquelas
circunstâncias, o que seria capaz de restringir, domar ou civilizar para
uso humano aquela inteligência selvagem, generosa e sem guia? Ela
apenas jorrava, de maneira caótica, em torrentes de prosa e verso, poesia
e filosofia, que se cristalizaram em in-quartos e fólios que ninguém
nunca lê. Alguém deveria ter posto um microscópio diante dela. Alguém
deveria tê-la ensinado a observar as estrelas e a raciocinar
cientificamente. Sua inteligência era movida a solidão e liberdade.
Ninguém a controlava. Ninguém a ensinava. Os professores a bajulavam.
Na corte, as pessoas zombavam dela. Sir Egerton Brydges queixou-se de
sua rispidez, “vinda de uma mulher de alta posição, criada na corte”. Ela
se confinou sozinha em Welbeck.
Que imagem de solidão e tumulto nos vem à mente ao pensarmos em
Margaret Cavendish! Como se um pepino gigante tivesse se
esparramado entre as rosas e cravos do jardim, sufocando-os até a
morte. Que desperdício saber que a mulher que escreveu “As mulheres
mais bem criadas são aquelas cujas mentes são mais cultivadas” teria
desperdiçado seu tempo rascunhando bobagens e mergulhando cada vez
mais fundo na obscuridade e na loucura, chegando ao ponto que, quando
saía, as pessoas se aglomerarem em volta de sua carruagem.
Evidentemente, a louca duquesa se transformou em um bicho-papão
usado para assustar garotas inteligentes. E aqui temos, lembrei-me,
deixando de lado a duquesa e abrindo as cartas de Dorothy Osborne,
Dorothy escrevendo a Temple sobre o livro novo da duquesa:58 “É claro
que a coitada está um pouco confusa, do contrário não seria tão ridícula
de se aventurar a escrever livros, e ainda por cima em versos; se eu
ficasse sem dormir por duas semanas não chegaria a tanto”.
E portanto, já que nenhuma mulher sensata e modesta podia escrever
livros, Dorothy, que era muito reservada e melancólica, o exato oposto da
duquesa em temperamento, não escreveu nada. Cartas não contavam.
Uma mulher era capaz de escrever cartas sentada ao lado do pai doente e
acamado. Podia escrevê-las diante da lareira, enquanto os homens
conversavam, sem que isso os incomodasse. O estranho, pensei, virando
as páginas das cartas de Dorothy, era ver como aquela garota solitária e
sem formação tinha um talento para estruturar uma frase, para moldar
uma cena. Vejam só como ela divagava:

Depois da janta a gente se senta e fica papeando até o sr. B. chegar, e então vou embora.
Passo o dia lendo ou trabalhando e lá pelas seis ou sete vou a um terreno que fica perto de
casa, onde várias belas jovens cuidam de ovelhas e vacas e se sentam à sombra cantando
baladas; vou até elas e comparo suas vozes e sua beleza às de certas pastoras antigas sobre
as quais li uma vez e vejo uma enorme diferença, mas, acredite, acho que essas são tão
inocentes quanto aquelas. Falo com elas e descubro que não precisam de nada para se
tornarem as pessoas mais felizes do mundo, nada além do conhecimento de serem assim. É
comum, quando estamos no meio da conversa, que uma delas olhe ao redor e veja sua vaca
entrando no milharal, então elas saem todas correndo, como se tivessem asas nos
calcanhares. Eu, que não sou tão ágil, fico para trás, e quando as vejo guiando o gado de
volta penso que é hora de ir embora também. Depois da ceia vou para o jardim e para a beira
de um riacho que corre por ali, onde me sento e fico desejando que você estivesse aqui
comigo…

Poderíamos jurar que ela possuía todos os requisitos de uma escritora.


Mas “se eu ficasse sem dormir por duas semanas não chegaria a tanto” —
pode-se medir a oposição que pairava no ar às mulheres escritoras
quando vemos que mesmo uma mulher com grande habilidade para o
ofício foi levada a acreditar que escrever um livro era ser ridícula,
mesmo se fosse só para se distrair. Assim, continuei, enquanto
recolocava na prateleira o livro de cartas de Dorothy Osborne, chegamos
à sra. Behn59.
E com a sra. Behn nós damos uma guinada muito importante.
Deixamos para trás — trancadas em seus jardins com seus fólios —
aquelas grandes damas solitárias que escreviam sem plateia ou crítica,
apenas para seu próprio deleite. Chegamos à cidade e esbarramos com as
pessoas comuns nas ruas. A sra. Behn era uma mulher de classe média
com todas as virtudes plebeias do humor, da vitalidade e da coragem;
uma mulher que se viu forçada pela morte do marido e por algumas
desditosas aventuras próprias a ganhar a vida com o intelecto. Teve de
trabalhar em pé de igualdade com os homens. A duras penas, conseguiu
ganhar o suficiente para se manter. A importância desses fatos supera
qualquer coisa que ela tenha escrito, mesmo os excelentes poemas “A
Thousand Martyrs I Have Made” [“Mil mártires eu criei”] ou “Love in
Fantastic Triumph Sat” [“O amor se manteve em fantástico triunfo”],
pois aqui começa a liberdade da mente, ou melhor, a possibilidade de
que, com o tempo, a mente esteja livre para escrever o que quiser. Pois
agora que Aphra Behn conseguira, as garotas podiam chegar para os pais
e dizer: “Vocês não precisam me dar mesada, posso ganhar dinheiro
escrevendo”. É claro que, por muitos anos ainda, a resposta foi: “Lógico!
É só viver a vida de Aphra Behn! Seria melhor morrer!”, e assim a porta
era batida com mais força do que nunca. Esse assunto altamente
interessante — o valor que os homens dão à castidade das mulheres, e o
efeito disso sobre a educação delas — aqui se coloca para discussão,
podendo render um livro interessante caso alguma aluna de Girton ou
Newnham se disponha a estudar a questão. Lady Dudley60, envolta em
diamantes entre os mosquitos de um pântano escocês, poderia servir de
exemplo. Lorde Dudley, de acordo com o que publicou o Times outro dia
após a morte de lady Dudley, “era um homem de gostos refinados e
muitas conquistas, bondoso e generoso, mas caprichosamente
despótico. Ele insistia que a esposa vestisse trajes completos, mesmo na
mais remota cabana de caça nas Highlands; ele a cobria de joias
deslumbrantes”, e assim por diante, “deu tudo a ela — exceto qualquer
tipo de responsabilidade”. Então lorde Dudley teve um derrame, e ela
cuidou dele e administrou suas propriedades com extrema competência
dali em diante. Esse despotismo caprichoso também existiu no século
XIX.
Mas de volta ao assunto. Aphra Behn provou que era possível ganhar
dinheiro escrevendo, talvez à custa de certas qualidades afáveis; e assim,
aos poucos, escrever se tornou não só um sinal de insensatez e de
perturbação mental, mas algo de importância prática. Um marido
poderia morrer ou algum desastre poderia acometer a família. Conforme
o século XVIII se aproximava, centenas de mulheres passaram a ganhar
uns trocados e vir em socorro de suas famílias fazendo traduções ou
escrevendo os incontáveis romances ruins que deixaram de ser
mencionados até nos livros didáticos, mas que encontramos nas caixas
de promoções das livrarias em Charing Cross Road. A enorme atividade
mental que surgiu no fim do século XVIII entre as mulheres — as
conversas, os encontros, a publicação de ensaios sobre Shakespeare, a
tradução dos clássicos — baseou-se no fato concreto de que as mulheres
podiam ganhar dinheiro escrevendo. O dinheiro dignifica aquilo que,
feito de graça, é frívolo. Ainda se podia zombar das “sabichonas com
comichão para escrever”, mas era inegável que elas traziam dinheiro
para casa. Dessa forma, conforme o século XVIII chegava ao fim, surgiu
uma mudança que, se eu estivesse reescrevendo a história, descreveria
de forma mais detalhada e julgaria de maior importância do que as
Cruzadas ou a Guerra das Rosas.
A mulher de classe média começou a escrever. Porque, se Orgulho e
preconceito importa, se Middlemarch, Villette e O Morro dos Ventos
Uivantes importam, então importa ainda mais do que eu seria capaz de
provar num discurso de uma hora o fato de que as mulheres em geral — e
não apenas as solitárias aristocratas trancadas em suas casas de campo
com seus fólios e seus aduladores — passaram a escrever. Sem essas
precursoras, Jane Austen, as Brontë e George Eliot não poderiam ter
escrito nada, não mais do que Shakespeare poderia ter escrito sem
Marlowe, ou Marlowe sem Chaucer, ou Chaucer sem aqueles poetas
esquecidos que abriram caminho e domaram a selvageria natural do
idioma. Pois obras-primas não são nascimentos únicos e solitários: são o
resultado de muitos anos de pensamento coletivo, de pensamentos em
comum, de modo que a experiência das massas esteja por trás de uma
voz singular. Jane Austen devia ter deixado uma coroa de flores no
túmulo de Fanny Burney, e George Eliot devia ter prestado homenagens
à sombra robusta de Eliza Carter — a arrojada senhora que amarrou um
sino à cabeceira da cama para acordar mais cedo e aprender grego.61
Todas as mulheres, juntas, deviam depositar flores sobre o túmulo de
Aphra Behn, que jaz — o que é chocante, mas até que apropriado — na
Abadia de Westminster, pois foi ela que lhes conquistou o direito de
dizer o que pensam. Foi ela que — difamada e apaixonada como era —
permitiu que não seja absurdo que eu lhes diga esta noite: ganhem
quinhentas libras por ano com seu intelecto.
Aqui, portanto, chegamos ao início do século XIX. E aqui, pela primeira
vez, temos várias prateleiras reservadas inteiramente às obras de
mulheres. Mas por que, não posso deixar de perguntar enquanto passo os
olhos por elas, por que todas essas obras eram romances — com
raríssimas exceções? O impulso original era para a poesia. A “mestra
suprema da canção” era uma poeta.62 Tanto na França como na
Inglaterra, as mulheres poetas precedem as mulheres romancistas. Além
disso, pensei, olhando para os quatro nomes famosos, o que George Eliot
tinha em comum com Emily Brontë? E Charlotte Brontë não havia
falhado miseravelmente em entender Jane Austen? Tirando o fato
possivelmente relevante de que nenhuma delas teve filhos, não podia
haver quatro personalidades mais incongruentes para se juntar em uma
sala — tanto que é tentador imaginar um encontro e um diálogo entre
elas. E ainda assim, impelidas por alguma estranha força, elas
escreveram romances. Será que tinha algo a ver com terem nascido na
classe média?, me perguntei, ou com um fato que a srta. Emily Davies se
empenhou tanto em demonstrar: que as famílias de classe média no
início do século XIX possuíam uma única sala de estar para todos? Se
uma mulher escrevia, ela tinha de fazê-lo nessa sala de estar comum. E
como a srta. Nightingale reclamou com tanta veemência: “As mulheres
nunca têm meia hora […] que possam dizer que é só delas”. Ela vivia
sendo interrompida. Ainda assim, seria mais fácil escrever prosa e ficção
ali do que escrever poesia ou teatro. Menos concentração é exigida. Jane
Austen escreveu nessas condições até o fim de seus dias. “É espantoso
como ela foi capaz de alcançar tudo isso”, escreveu seu sobrinho em suas
memórias, “pois não tinha nenhum aposento próprio para onde se
recolher, e a maior parte do trabalho deve ter sido feita na sala de estar,
sujeito a todo tipo de interrupções fortuitas. Ela tomava cuidado para
não deixar sua ocupação ser percebida pelos criados, visitantes ou
outras pessoas externas ao círculo familiar.”63 Jane Austen escondia
seus manuscritos ou os ocultava sob um pedaço de papel mata-borrão.
Por outro lado, toda a formação literária que uma mulher tinha no início
do século XIX consistia na observação do caráter e na análise de
emoções. Sua sensibilidade havia sido educada durante séculos pelas
influências da sala de estar comum. Os sentimentos das pessoas lhe
causavam forte impressão; relações pessoais estavam sempre diante de
seus olhos. Portanto, quando a mulher de classe média passou a escrever,
era natural que escrevesse romances, ainda que, como parece bastante
evidente, duas das quatro mulheres famosas aqui mencionadas não
fossem romancistas por natureza. Emily Brontë deveria ter escrito
peças poéticas de teatro; o transbordamento da mente ampla de George
Eliot deveria ter se espraiado, depois que o impulso criativo se esgotou,
pelas áreas da história ou da biografia. Porém, elas escreveram
romances; podemos até ir além, prossegui, pegando Orgulho e
preconceito da estante, e dizer que escreveram bons romances. Sem
correr o risco de contar vantagem ou de melindrar o sexo oposto,
podemos dizer que Orgulho e preconceito é um bom livro. Em todo caso,
ninguém se envergonharia ao ser pego escrevendo Orgulho e preconceito.
Ainda assim, Jane Austen gostava quando uma dobradiça rangia, pois
assim podia esconder seu manuscrito antes que alguém entrasse. Para
Jane Austen, havia algo de vergonhoso em escrever Orgulho e
preconceito. E imaginei: será que Orgulho e preconceito teria sido um
romance melhor se Jane Austen não julgasse necessário esconder seu
manuscrito dos visitantes? Li algumas páginas para ver, mas não
consegui encontrar nenhum sinal de que a obra tenha sido
minimamente prejudicada por suas circunstâncias. Esse talvez fosse o
maior milagre do livro. Aqui temos uma mulher, lá pelos idos de 1800,
escrevendo sem raiva, sem amargura, sem medo, sem protestos, sem
pregações. Era assim que Shakespeare escrevia, pensei, olhando para
Antônio e Cleópatra; e quando as pessoas comparam Shakespeare a Jane
Austen, talvez queiram dizer que a mente de ambos expurgou todos os
obstáculos; e por esse motivo não conhecemos Jane Austen e não
conhecemos Shakespeare, e por esse motivo Jane Austen está presente
em cada palavra que escreveu, assim como Shakespeare. Se Jane Austen
sofreu de alguma maneira com suas circunstâncias, foi pelas limitações
da vida que lhe foi imposta. Era impossível para uma mulher sair
sozinha. Ela nunca viajava; nunca percorreu Londres em uma diligência
ou almoçou em um restaurante sozinha. Mas talvez fosse da natureza de
Jane Austen não querer aquilo que não possuía. Seu talento e suas
circunstâncias combinavam perfeitamente. Mas duvido que isso valesse
para Charlotte Brontë, pensei, abrindo Jane Eyre e o colocando ao lado
de Orgulho e preconceito.
Abri no capítulo doze e meu olhar foi atraído pela frase “Quem quiser
pode me culpar”. De que estavam culpando Charlotte Brontë?, eu me
perguntei. E li como Jane Eyre costumava subir no telhado enquanto a
sra. Fairfax preparava geleias, e ficava olhando através dos campos até
onde a vista alcançava. E então ela desejava — e era por isso que a
culpavam:
[…] então eu desejava um poder de visão que pudesse ultrapassar aquele limite, que
alcançasse o mundo movimentado, as cidades, as regiões cheias de vida das quais ouvi falar
mas que nunca vi: então eu ansiava por mais experiência prática do que possuía, mais
relações com meus semelhantes, o contato com uma maior variedade de pessoas do que
havia ao meu alcance. Eu dava valor ao que havia de bom na sra. Fairfax e em Adele, mas
acreditava na existência de outros tipos de bondade, mais vívidos, e queria testemunhar
aquilo em que acreditava.
Quem pode me culpar? Muita gente, sem dúvida, e posso ser chamada de insatisfeita. Não
podia evitar: a inquietação fazia parte da minha natureza e às vezes me agitava a ponto de
doer. […]
É inútil dizer que os seres humanos devem se contentar com a tranquilidade: eles precisam
de ação; e, se não conseguirem encontrá-la, irão criá-la. Milhões são condenados a um
destino ainda mais pacato que o meu, e milhões estão em revolta silenciosa contra sua sina.
Ninguém sabe quantas rebeliões fermentam nas massas de vida que povoam a Terra. Das
mulheres geralmente se espera que sejam muito calmas, mas as mulheres sentem o mesmo
que os homens: precisam de exercício para suas faculdades e de um espaço para seus
esforços tanto quanto seus irmãos; elas sofrem com restrições rígidas demais, com uma
estagnação absoluta demais, exatamente como os homens sofreriam. E é tacanho da parte
de seus semelhantes mais privilegiados dizer que elas devem se limitar a fazer pudins e
tricotar meias, tocar piano e bordar bolsas. É insensato condená-las, ou caçoar delas,
quando procuram fazer mais ou aprender mais do que o costume diz ser necessário para o
seu sexo.
Quando estava sozinha, nessas ocasiões, era comum escutar a risada de Grace Poole […].

Mas que interrupção esquisita, pensei. É desconcertante dar de cara


com Grace Poole tão de repente. A continuidade é perturbada. Pode-se
dizer, continuei, recolocando o livro ao lado de Orgulho e preconceito, que
a mulher que escreveu essas páginas tinha mais gênio do que Jane
Austen; mas, se lemos do começo ao fim e assinalamos esse solavanco,
essa indignação, vemos que ela nunca terá seu gênio expresso de forma
íntegra e completa. Seus livros sairão deformados e distorcidos. Ela irá
escrever com raiva quando deveria estar escrevendo calmamente.
Escreverá de forma tola quando deveria estar escrevendo sabiamente.
Escreverá sobre si mesma quando deveria escrever sobre seus
personagens. Está em guerra contra sua sina. Como poderia não morrer
jovem, confinada e frustrada?
Não podemos nos furtar de imaginar por um momento o que teria
acontecido se Charlotte Brontë possuísse, digamos, trezentas libras por
ano — mas a tola vendeu os direitos autorais de seus romances de uma só
vez por mil e quinhentas libras —, se ela tivesse de algum modo
adquirido mais conhecimento do mundo movimentado, das cidades e
das regiões cheias de vida; se tivesse tido mais experiência prática, mais
relações com seus semelhantes e o contato com uma maior variedade de
pessoas. Com essas palavras ela toca precisamente não só em seus
próprios defeitos como romancista, mas nos de seu sexo naquela época.
Ela sabia, mais do que ninguém, o quanto seu gênio se beneficiaria caso
não houvesse se dissipado com visões solitárias através de campos
distantes; se a experiência, as relações e as viagens lhe tivessem sido
concedidas. Mas não foram: foram-lhe vetadas. E por isso devemos
aceitar o fato de que todos esses bons romances — Villette, Emma, O
Morro dos Ventos Uivantes, Middlemarch — foram escritos por mulheres
sem mais experiência de vida do que se via na casa de um clérigo
respeitável; escritos também na sala de estar dessa casa respeitável e por
mulheres tão pobres que não podiam comprar mais do que alguns maços
de papel por vez para escrever O Morro dos Ventos Uivantes ou Jane
Eyre. Uma delas, é verdade, George Eliot, escapou após muitas
tribulações, mas só para ir a uma casa isolada em St. John’s Wood. E lá se
estabeleceu, à sombra da reprovação do mundo.64 “Gostaria que ficasse
claro”, ela escreveu, “que nunca convidaria alguém para vir me visitar a
não ser que a pessoa solicitasse o convite.” Pois não é verdade que ela
vivia em pecado com um homem casado e que sua companhia poderia
prejudicar a castidade da sra. Smith ou quem quer que se arriscasse a
procurá-la? É preciso sujeitar-se às convenções sociais, e ser “excluída
daquilo que é chamado de mundo”. Ao mesmo tempo, do outro lado da
Europa, havia um rapaz vivendo com uma cigana ou com uma grande
dama, indo para a guerra, obtendo de forma desimpedida e livre toda a
variada experiência da vida humana que lhe serviria de forma magnífica
mais tarde, quando chegasse a hora de escrever seus livros. Se Tolstói
tivesse vivido em um priorado em reclusão com uma senhora casada,
“excluído daquilo que é chamado de mundo”, por mais edificante que
fosse a lição de moral, penso que dificilmente teria sido capaz de
escrever Guerra e paz.
Mas podemos talvez ir um pouco mais a fundo na questão da escrita
de romances e no efeito do sexo sobre o romancista. Quando fechamos
os olhos e pensamos no romance como um todo, ele pode parecer uma
criação dotada de uma certa semelhança de espelho em relação à vida,
embora, é claro, com inúmeras simplificações e distorções. Em todo
caso, é uma estrutura que deixa um contorno na mente, ora em forma de
quadrado, ora em forma de pagode, ora espalhando-se em alas e arcadas,
ou então solidamente compacta e arredondada feito a Catedral de Santa
Sofia, em Constantinopla. Esse contorno, pensei, lembrando de alguns
romances famosos, desperta um tipo de emoção que lhe é apropriada.
Mas essa emoção se mistura imediatamente a outras, pois o “contorno”
não é formado pela relação de uma pedra com outra, e sim pela relação
entre seres humanos. Portanto, um romance desperta em nós todo tipo
de emoções antagônicas e opostas. A vida entra em conflito com algo que
não é a vida. Daí a dificuldade de chegar a qualquer consenso sobre os
romances, e a enorme influência que nossos preconceitos privados
detêm sobre nós. De um lado, sentimos que você — John, o herói — deve
viver, senão cairei nas profundezas do desespero. Por outro lado,
sentimos — ai, John! — que você precisa morrer, pois o contorno do livro
assim o requer. A vida entra em conflito com algo que não é a vida. Mas
como é em parte vida, nós o julgamos como se fosse vida. James é o tipo
de homem que eu mais detesto, diz alguém. Ou: isso é um amontoado de
absurdos; eu nunca poderia sentir algo assim. A estrutura inteira, fica
claro ao relembrarmos qualquer romance famoso, tem uma
complexidade infinita, pois é feita de tantos julgamentos distintos, de
tantos tipos diferentes de emoção. É um milagre que qualquer livro
assim construído se sustente por mais de um ou dois anos, ou que possa
significar para o leitor inglês o mesmo que para o leitor russo ou chinês.
Mas às vezes eles se sustentam de forma realmente admirável. E o que os
sustenta nessas raras instâncias de sobrevivência (estou pensando em
Guerra e paz) é algo que chamamos de integridade, embora não tenha
nada a ver com pagar as contas ou comportar-se de forma nobre em uma
emergência. O que chamamos de integridade é, no caso de um
romancista, a convicção que ele nos dá de que esta é a verdade. Sim, nós
sentimos, nunca pensei que poderia ser assim; nunca conheci ninguém
que agisse dessa forma. Mas você me convenceu de que as coisas são
assim, de que é isso que acontece. Examinamos contra a luz cada frase e
cada cena enquanto lemos — pois a natureza nos parece ter dotado,
estranhamente, de uma luz interna com a qual julgamos a integridade ou
falta de integridade do romancista. Ou talvez a questão seja que a
natureza, em seu humor irracional, traçou nas paredes da mente, em
tinta invisível, uma premonição que esses grandes artistas são capazes
de confirmar; um rascunho que só precisa ser erguido diante do fogo da
genialidade para se tornar visível. Quando o expomos e o vemos ganhar
vida, exclamamos em êxtase: “Mas isso é o que eu sempre senti, conheci
e desejei!”. Fervemos de empolgação e, fechando o livro com uma espécie
de reverência, como se fosse algo muito precioso, um porto seguro para
onde retornar até a morte, o recolocamos na estante, eu disse, pegando
Guerra e paz e o devolvendo a seu lugar. Por outro lado, se essas pobres
frases que pegamos e testamos despertarem, a princípio, uma rápida e
entusiástica resposta, com suas cores vívidas e seus gestos ousados, mas
então ficarem por isso mesmo — se alguma coisa parecer deter seu
desenvolvimento — ou se elas trouxerem à luz apenas um rabisco
naquele canto e um borrão naquele outro, sem que nada apareça de
forma íntegra e completa, então soltamos um suspiro de decepção e
dizemos: mais um fracasso. Esse romance falhou em algum lugar.
E em sua maioria, é claro, os romances realmente falham em algum
lugar. A imaginação cambaleia sob a enorme tensão. A percepção se
confunde; não é mais capaz de distinguir entre o falso e o verdadeiro, não
tem mais forças para seguir com o enorme esforço que clama, a todo
instante, pelo uso de tantas faculdades diferentes. Mas como tudo isso
poderia ser afetado pelo sexo do romancista?, imaginei, olhando para
Jane Eyre e os outros. Será que o sexo tem alguma influência sobre a
integridade de uma romancista mulher — essa integridade que
considero ser a espinha dorsal do escritor? Ora, nas passagens que citei
de Jane Eyre, fica claro que a raiva estava obstruindo a integridade da
romancista Charlotte Brontë. Ela abandonou sua história, à qual
dedicava total devoção, para acudir alguma mágoa pessoal. Lembrou-se
de que estava sendo privada de sua devida parcela de experiência — que
era obrigada a definhar em um presbitério, remendando meias, quando
queria vagar livremente pelo mundo. A imaginação foi desviada pela
indignação e nós a sentimos se afastar. Mas havia muitas outras
influências, além da raiva, puxando as rédeas da imaginação e a
desviando de seu caminho. A ignorância, por exemplo. O retrato de
Rochester é traçado às escuras. Nele sentimos a influência do medo;
assim como sentimos constantemente uma acidez que é o resultado da
opressão, um sofrimento reprimido ardendo lentamente sob a paixão
dela, um rancor que faz esses livros, por mais esplêndidos que sejam, se
contraírem com um espasmo de dor.
E como os romances têm essa correspondência com a vida real, seus
valores são, em certa medida, aqueles da vida real. Mas é óbvio que os
valores das mulheres muitas vezes diferem dos valores que foram
estabelecidos pelo sexo oposto; naturalmente é assim. No entanto, são os
valores masculinos que prevalecem. Falando de forma geral, o futebol e
os esportes são “importantes”; a adoração da moda e a compra de roupas
é “trivial”. E esses valores são inevitavelmente transferidos da vida para
a ficção. Este é um livro importante, a crítica supõe, porque trata da
guerra. Este é um livro insignificante porque trata dos sentimentos das
mulheres em uma sala de visitas. Uma cena em um campo de batalha é
mais importante do que uma cena em uma loja — por toda parte, e de
forma bem mais sutil, a diferença de valores persiste. Portanto, para as
mulheres escritoras, a estrutura inteira dos romances do início do século
XIX foi erigida por uma mente que estava levemente desviada de seu
foco, forçada a alterar sua visão cristalina em deferência a uma
autoridade externa. Basta folhear aqueles velhos romances esquecidos e
reparar no tom em que foram escritos para adivinhar que a autora era
alvo de críticas; ela dizia isso a título de agressividade, aquilo a título de
conciliação. Admitia ser “apenas uma mulher” ou protestava que era
“tão boa quanto um homem”. Reagia às críticas conforme seu
temperamento ditava: com docilidade e retraimento, ou com raiva e
ênfase. Não importava qual fosse a escolha: ela estava pensando em algo
além da coisa em si. E lá vem o livro despencando sobre nossas cabeças.
Havia uma falha no miolo dele. E pensei em todos os romances de
mulheres que jaziam abandonados, feito pequenas maçãs esburacadas
em um pomar, pelos sebos de Londres. O que os fez apodrecer foi a falha
no miolo. Ela alterou seus valores em deferência à opinião dos outros.
Mas como deve ter sido impossível, para elas, não se inclinar nem para
um lado nem para o outro! Que tipo de gênio, que tipo de integridade era
preciso ter diante de toda essa crítica, em meio àquela sociedade
puramente patriarcal, a fim de se ater às coisas conforme as enxergavam,
sem se encolher. Só Jane Austen conseguiu, além de Emily Brontë. Elas
escreveram como as mulheres escrevem, não como os homens o fazem.
É mais uma pena, talvez a mais bela, em seus chapéus. Escreveram como
mulheres, não como homens. De todas as milhares de mulheres que
escreveram romances naquela época, só elas ignoraram totalmente as
advertências dos eternos professores: escreva isto, pense aquilo. Só elas
foram surdas àquela voz persistente, ora queixosa, ora condescendente,
dominadora, aflita, chocada, irritada ou amigável, aquela voz que nunca
deixa as mulheres em paz, pois precisa se postar diante delas feito uma
governanta meticulosa que lhes ordena, como sir Egerton Brydges, que
sejam refinadas; arrastando a crítica do sexo até para a crítica de
poesia;65 e as alertando que, se elas quiserem ser boazinhas e, suponho,
ganhar um troféu reluzente, devem se manter dentro de certos limites
que o cavalheiro em questão julga adequados: “Romancistas mulheres só
devem aspirar à excelência reconhecendo corajosamente as limitações
de seu sexo”.66 Isso resume o assunto, e quando eu lhes contar, para a
surpresa de vocês, que essa frase não foi escrita em agosto de 1828, mas
em agosto de 1928, vocês hão de concordar que, por mais que ela nos
pareça divertida, representa uma vasta opinião — não vou remexer em
águas passadas, só estou pegando o que o acaso fez flutuar até mim — que
era mais vigorosa e muito mais sonora cem anos atrás. Uma jovem em
1828 precisaria ser muito forte para desprezar todas essas afrontas,
reprovações e promessas de prêmios. Precisaria ser uma espécie de
agitadora para dizer a si mesma: “Ah, mas eles não podem comprar a
literatura também. A literatura está aberta a todos. Me recuso a permitir
que você, mesmo que seja um bedel, me expulse do gramado. Tranque as
bibliotecas, se quiser: não há portão, fechadura ou cadeado que possa
colocar na liberdade da minha mente”.
Mas seja qual tenha sido o efeito do desencorajamento e das críticas
sobre seus escritos — e acredito que tiveram um efeito bem grande —,
isso não era importante em comparação à outra dificuldade que surgia
(eu ainda estava considerando aquelas romancistas do início do século
XIX) quando elas se punham a registrar seus pensamentos no papel — ou
seja, o fato de que não havia nenhuma tradição para ampará-las, ou que
essa tradição era tão recente e parcial que de pouco lhes servia. Pois, se
somos mulheres, pensamos no passado através de nossa mãe. É inútil
recorrer à ajuda dos grandes escritores homens, por mais que nos
voltemos a eles por prazer. Lamb, Browne, Thackeray, Newman, Sterne,
Dickens, De Quincey — quem quer que seja — nunca ajudaram uma
mulher, ainda que ela possa ter aprendido alguns truques com eles e os
adaptado para seu uso. O peso, o ritmo, a marcha de uma mente
masculina são diferentes demais dos seus para que ela possa aproveitar
qualquer coisa de substancial com sucesso. O imitador está distante
demais para poder ser diligente.67 Talvez a primeira coisa que ela
descobriria, ao botar a caneta no papel, é que não há nenhum fraseado
em comum pronto para seu uso. Todos os grandes romancistas como
Thackeray, Dickens e Balzac escreveram uma prosa natural; ágil, mas
não descuidada; expressiva, mas não preciosista; empregando suas
próprias tintas, mas sem deixar de ser propriedade comum. Eles se
basearam no fraseado corrente na época. O fraseado que era comum no
início do século XIX era mais ou menos assim: “A grandeza de suas obras
era razão não para se deterem, mas para prosseguirem. Eles não podiam
ter maior interesse ou satisfação do que no exercício de sua arte e nas
incontáveis gerações de verdade e beleza. O sucesso leva ao esforço; e o
hábito facilita o sucesso”.68 Trata-se de um fraseado masculino; por trás
dele pode-se enxergar Johnson, Gibbon e o resto. Era inapropriado para
o uso de uma mulher. Charlotte Brontë, com todo o seu talento magnífico
para a prosa, tropeçou e caiu com essa arma desajeitada nas mãos.
George Eliot cometeu atrocidades indescritíveis com ela. Jane Austen
olhou para ela, deu risada e desenvolveu um fraseado perfeitamente
natural e bem talhado para seu próprio uso, nunca mais se distanciando
dele. Assim, com menos gênio para a escrita do que Charlotte Brontë, ela
conseguiu dizer infinitamente mais. Na verdade, já que a liberdade e a
plenitude de expressão são essenciais para a arte, tamanha falta de
tradição, tamanha escassez e inadequação de ferramentas devem ter
marcado imensamente a escrita das mulheres. Além disso, um livro não
é feito de frases dispostas uma atrás da outra, mas de frases construídas
— se uma imagem ajuda — em arcadas e domos. E esse contorno também
foi criado pelos homens, a partir de suas próprias necessidades e para
seus próprios usos. Não há motivos para pensar que o contorno da peça
épica ou poética seja adequado a uma mulher, não mais do que o fraseado
lhe é adequado. Mas todas as mais antigas formas de literatura já
estavam consolidadas e estabelecidas na época em que ela se tornou
escritora. Só o romance era jovem o suficiente para ser moldado em suas
mãos — outro motivo, talvez, para ela escrever romances. Ainda assim,
quem pode dizer que, mesmo agora, “o romance” (ponho entre aspas
porque tenho consciência de que essas palavras são impróprias), quem
pode dizer que mesmo essa forma, das mais flexíveis, está
adequadamente moldada para seu uso? Sem dúvida a encontraremos
martelando essa forma para atingir um feitio que lhe seja apropriado, se
ela tiver liberdade de ação; e fornecendo algum novo veículo, não
necessariamente em versos, para a poesia que existe nela. Pois é à poesia
que ainda se impede a vazão. E segui pensando como uma mulher hoje
em dia escreveria uma tragédia poética em cinco atos. Ela usaria versos?
Não usaria a prosa, em vez disso?
Mas essas são perguntas difíceis que se perdem no crepúsculo do
futuro. Devo deixá-las de lado, mesmo porque me estimulam a desviar do
meu assunto rumo a florestas emaranhadas onde me perderei e muito
provavelmente serei devorada por feras selvagens. Não quero — e tenho
certeza de que vocês também não — levantar essa questão muito
deprimente sobre o futuro da ficção, portanto irei apenas pausar aqui um
instante para chamar a atenção de vocês para o importante papel que as
condições físicas terão nesse futuro, pelo menos no que se refere às
mulheres. O livro precisa, de alguma forma, adaptar-se ao corpo, e de
repente até podemos dizer que os livros das mulheres devem ser mais
curtos, mais concentrados, do que os livros dos homens, e estruturados
de forma a não exigir longas horas de trabalho constante e ininterrupto.
Pois sempre vai haver interrupções. De novo, os nervos que alimentam o
cérebro parecem ser diferentes nos homens e nas mulheres e, para fazê-
los trabalhar mais e melhor, é preciso descobrir que tipo de tratamento
lhes é mais adequado — se são aquelas horas de preleções, por exemplo,
supostamente concebidas pelos monges centenas de anos atrás — e de
qual alternância entre trabalho e descanso eles precisam — e por
“descanso” não quero dizer fazer nada, mas fazer algo diferente (e qual
deve ser essa diferença?). Tudo isso deve ser debatido e descoberto; tudo
isso faz parte da pergunta sobre as mulheres e a ficção. E ainda assim,
continuei, aproximando-me de novo da estante, onde eu poderia
encontrar esse tipo de estudo elaborado da psicologia das mulheres,
escrito por uma mulher? Se, por sua incapacidade de jogar futebol, as
mulheres não são autorizadas a exercer a medicina…
Por sorte, meus pensamentos agora mudavam de direção.

54. Anne Finch (1661–1720), condessa de Winchilsea, publicou uma coleção de poemas em
1713. Mas ficou mais conhecida após 1928, com a publicação de Poems by Anne, Countess of
Winchilsea 1661–1720, que contou com um ensaio introdutório do escritor inglês John
Middleton Murry (1889–1957). [N. de T.] ↩
55. Alexander Pope (1688–1744), poeta inglês. [N. de E.] ↩
56. O poeta e dramaturgo britânico John Gay (1685–1732), autor de A ópera do mendigo e de
“Trivia”, um poema sobre a arte de caminhar nas ruas de Londres. [N. de T.] ↩
57. Margaret Cavendish (1623–1673), duquesa de Newcastle, era filósofa, romancista, poeta,
dramaturga e ensaísta. Em um ensaio intitulado “Mackery End, in Hertfordshire”, Charles
Lamb a descreve como “um tanto fantástica e de ideias originais”. [N. de T.] ↩
58. Dorothy Osborne (1627–1695) foi esposa do ensaísta e estadista William Temple, com quem
trocou dezenas de cartas antes de se casar. Elas foram coletadas no livro The Letters of
Dorothy Osborne to William Temple, de 1928. Dorothy teve nove filhos, sete dos quais
morreram na infância. [N. de T.] ↩
59. A inglesa Aphra Behn (1640–1689) foi dramaturga, romancista, poeta e espiã. A biografia
Aphra Behn: The Incomparable Astraea, de Vita Sackville-West, foi publicada em 1927. [N.
de T.] ↩
60. Georgina Elizabeth Ward, condessa de Dudley (1846–1929), aristocrata inglesa. [N. de E.] ↩
61. Elizabeth Carter (1717–1806) foi uma poeta, romancista, tradutora e linguista britânica. No
ensaio “The Bluest of the Blue”, Virginia Woolf explica que Carter amarrou um sino à
cabeceira de sua cama, cujo fio passava por uma fenda na janela do quarto e chegava ao
jardim. “Às quatro ou cinco da manhã, um sacristão simpático tocava o sino, Elizabeth
pulava da cama e estudava até as seis.” [N. de T.] ↩
62. Referência à poeta grega Safo (c. 630 a.C.–c. 570 a.C.), conforme é descrita no poema “Ave
atque Vale (In Memory of Charles Baudelaire)”, de Algernon Charles Swinburne (1837–
1909). [N. de T.] ↩
63. Memoir of Jane Austen, de seu sobrinho, James Edward Austen-Leigh. [N. da A.] ↩
64. George Eliot (1819–1880) viveu por 24 anos com o crítico George Henry Lewes, que era
casado e não podia obter o divórcio por questões jurídicas. Eles se mudaram para uma casa
chamada Priory [Priorado] no distrito de St. John’s Wood, no norte de Londres. [N. de T.] ↩
65. “[Ela] tem um propósito metafísico, o que é uma obsessão perigosa, especialmente em uma
mulher, pois elas raramente possuem a saudável paixão que os homens têm pela retórica. É
uma falha estranha para um sexo que, em outros domínios, é mais primitivo e materialista.”
(New Criterion, junho de 1928). [N. da A.] ↩
66. “Se, como este repórter, você acredita que as romancistas devem apenas aspirar à excelência
reconhecendo corajosamente as limitações de seu sexo (Jane Austen demonstrou como
esse gesto pode ser graciosamente realizado) […].” Life and Letters, agosto de 1928. [N. da A.]

67. O escritor escocês Robert Louis Stevenson (1850–1894) descreveu assim seu aprendizado
literário: “Fui um diligente imitador de Hazlitt, Lamb, Wordsworth, sir Thomas Browne,
Defoe, Hawthorne, Montaigne, Baudelaire e Obermann”. (Memories and Portraits. Londres:
Chatto and Windus, 1887.) [N. de T.] ↩
68. A citação é do ensaísta inglês William Hazlitt (1778–1830), referindo-se às obras de grandes
pintores no ensaio “On Application to Study”. [N. de T.] ↩
5.

Cheguei, por fim, no curso desses devaneios, às estantes que abrigam


os livros dos escritores vivos, sejam homens ou mulheres, pois hoje há
quase tantos livros escritos por mulheres quanto por homens. Ou, se isso
ainda não é verdade, se o sexo masculino ainda é o mais loquaz, é certo
que as mulheres já não escrevem apenas romances. Há os livros de Jane
Harrison sobre arqueologia grega; os livros de Vernon Lee sobre estética;
os livros de Gertrude Bell sobre a Pérsia. Há livros sobre todo tipo de
assuntos que, uma geração atrás, as mulheres não poderiam sequer
abordar. Há poemas, peças e críticas; há histórias e biografias; livros de
viagem, livros acadêmicos e de pesquisa; há inclusive alguns livros de
filosofia, ciência e economia. E, ainda que os romances predominem, é
bem possível que eles tenham mudado após o contato com livros de
gêneros diferentes. A simplicidade natural, a era heroica da escrita das
mulheres, pode ter chegado ao fim. A leitura e a crítica podem ter lhe
dado um escopo mais amplo, uma sutileza maior. O impulso para a
autobiografia pode ter se extinguido. Ela pode estar começando a usar a
escrita como arte, não como método de autoexpressão. Entre esses
novos romances, talvez seja possível encontrar uma resposta a várias
dessas perguntas.
Peguei um deles a esmo. Estava na ponta da prateleira e se chamava A
aventura da vida, ou algo assim, de Mary Carmichael, e foi publicado
neste mês de outubro.69 Parece ser o primeiro livro da autora, pensei,
mas devemos lê-lo como se fosse o último volume de uma série
razoavelmente longa, dando continuidade a todos aqueles outros livros
que consultei: os poemas de lady Winchilsea, as peças de Aphra Behn e
os romances das quatro grandes autoras. Pois os livros são continuações
uns dos outros, apesar do nosso hábito de julgá-los em separado. E
também preciso considerá-la — essa mulher desconhecida — uma
descendente de todas aquelas outras mulheres cujas circunstâncias
analisei aqui, e ver o que ela herdou de suas características e limitações.
Assim, com um suspiro, pois os romances muitas vezes fornecem um
analgésico e não um antídoto, arrastando-nos para uma letargia inerte
em vez de nos despertar feito um ferro em brasa, sentei-me com um
caderno e um lápis para extrair o máximo que podia do primeiro
romance de Mary Carmichael, A aventura da vida.
Para começar, dei uma passada de olhos na página. Vou sentir o ritmo
das frases dela primeiro, eu disse, antes de ocupar minha memória com
certos olhos azuis e castanhos e com o relacionamento que poderia
haver entre Chloe e Roger. Haverá tempo para isso depois que eu decidir
se ela tem uma caneta ou uma picareta nas mãos. Então testei uma frase
ou outra em voz alta. Logo ficou evidente que algo não ia bem. O deslizar
macio de uma frase após a outra era interrompido. Algo se rasgava, algo
arranhava; uma palavra isolada aqui e ali saltava aos olhos. Ela estava
“largando a mão”, como diziam nas antigas peças de teatro. Parecia
alguém riscando um fósforo que não acendia de jeito nenhum, pensei.
Mas por que — perguntei, como se ela estivesse presente — as frases de
Jane Austen não têm o formato certo para você? Tudo deve ser jogado
fora só porque Emma e o sr. Woodhouse estão mortos?70 Que pena,
suspirei, que fosse assim. Pois, enquanto Jane Austen vai de melodia em
melodia como Mozart vai de canção em canção, ler aquela obra era como
estar em um barquinho em alto-mar. Você subia e afundava. Aquela
aspereza, aquela falta de fôlego, podia significar que ela tinha medo de
algo; talvez de ser chamada de “sentimental”; ou então ela se lembrava
que a escrita das mulheres já foi chamada de floreada e, por isso, oferecia
uma abundância de espinhos. Mas, enquanto eu não lesse uma cena com
cuidado, não saberia se ela estava sendo ela mesma ou outra pessoa. De
qualquer forma, ela não diminui nossa vitalidade, pensei, lendo com
mais atenção. Mas está empilhando fatos demais. Não será capaz de usar
metade deles num livro desse tamanho. (Tinha metade da grossura de
Jane Eyre.) Mesmo assim, de um jeito ou de outro, conseguiu colocar
todos nós — Roger, Chloe, Olivia, Tony e o sr. Bigham — em uma canoa
rio acima. Espere um pouco, eu disse, recostando-me à cadeira, preciso
examinar a coisa toda com mais cuidado antes de prosseguir.
Tenho quase certeza, disse a mim mesma, de que Mary Carmichael
está nos pregando uma peça. Pois sinto como se estivesse em uma
ferrovia sinuosa e o vagão, em vez de descer, como esperado, tivesse
subido a ladeira novamente. Mary está brincando com a sequência
esperada. Primeiro ela quebrou a frase; agora ela quebra a sequência.
Muito bem: ela tem todo o direito de fazer ambas as coisas se não as
estiver fazendo pela quebra em si, mas pela criação. Não posso ter
certeza de qual das duas opções se trata até que ela se depare com um
problema. Darei a ela toda a liberdade, pensei, para escolher qual será
esse problema — pode criá-lo com latas e chaleiras velhas se quiser, mas
precisa me convencer de que, para ela, aquilo é mesmo um problema, e
nesse caso, depois de criá-lo, precisa enfrentá-lo. Precisa dar um salto. E,
determinada a cumprir minha missão como leitora se ela cumprisse a
dela como autora, virei a página e li… Desculpem-me por interromper de
forma tão abrupta. Há algum homem no recinto? Vocês me prometem
que atrás daquela cortina vermelha não se esconde a figura de sir
Chartres Biron71? Vocês me garantem que somos todas mulheres? Então
posso lhes contar que as palavras que li imediatamente a seguir foram:
“Chloe gostava de Olivia”. Não se espantem. Não ruborizem. Vamos
admitir, na privacidade de nossa própria sociedade, que essas coisas às
vezes acontecem. Às vezes, mulheres gostam de mulheres.
“Chloe gostava de Olivia”, eu li. E então me ocorreu que essa mudança
era imensa. Chloe gostava de Olivia talvez pela primeira vez na
literatura. Cleópatra não gostava de Otávia. E como Antônio e Cleópatra
mudaria completamente caso isso tivesse ocorrido! Do jeito como é,
pensei, e aqui deixei — receio — minha mente se desviar um pouco de A
aventura da vida, a coisa toda é simplificada e reduzida ao convencional
de uma forma, se é que ousamos dizer, absurda. O único sentimento de
Cleópatra por Otávia é o de inveja. Ela é mais alta do que eu? Como ela
arruma o cabelo? A peça talvez não exigisse mais do que isso. Mas como
teria sido interessante se a relação entre as duas mulheres fosse mais
complexa. Todas essas relações entre as mulheres, pensei, relembrando
brevemente a magnífica galeria de mulheres fictícias, são simples
demais. Muita coisa foi deixada de fora, inexplorada. E tentei lembrar
algum caso, entre as leituras que fiz, no qual duas mulheres são
retratadas como amigas. Há uma tentativa disso em Diana of the
Crossways72. Elas são confidentes, é claro, nas tragédias gregas e de
Racine. Aqui e ali, são mães e filhas. Mas, quase sem exceções, são
retratadas em suas relações com os homens. Era estranho pensar que
todas as grandes mulheres da ficção foram, até a época de Jane Austen,
não só vistas pelo sexo oposto, mas vistas apenas em relação ao sexo
oposto. E esta é uma parte pequena da vida de uma mulher; e é muito
pouco o que um homem pode saber mesmo a esse respeito ao observá-la
com os óculos escuros ou cor-de-rosa que o sexo coloca sob seu nariz.
Daí, talvez, a natureza peculiar das mulheres na ficção, os
impressionantes extremos de sua beleza e horror, sua alternância entre
bondade celestial e depravação demoníaca — pois é como seu amante
iria enxergá-la, conforme o amor aumentasse ou declinasse, se fosse
próspero ou desventurado. Não é tanto o caso dos romancistas do século
XIX, é claro. Nessa época, as mulheres se tornam muito mais variadas e
complexas. De fato, foi o desejo de escrever sobre as mulheres que talvez
tenha levado os homens a abandonar gradualmente as peças teatrais em
verso — as quais, com sua violência, pouco podiam aproveitá-las — e
conceber o romance como um receptáculo mais adequado. Ainda assim,
continua sendo óbvio, mesmo nos escritos de Proust73, que um homem é
terrivelmente míope e parcial em seu conhecimento das mulheres, e as
mulheres no conhecimento dos homens.
Além disso, continuei, olhando para a página novamente, está ficando
claro que as mulheres, como os homens, têm outros interesses para além
dos assuntos perpétuos da domesticidade. “Chloe gostava de Olivia. Elas
dividiam um laboratório […]”. Continuei lendo e descobri que essas duas
mulheres estavam picando fígado, que, ao que parece, é bom para a
anemia perniciosa; embora uma delas fosse casada e tivesse — acho que
estou certa em afirmá-lo — dois filhos pequenos. Ora, tudo isso, é claro,
tinha de ser deixado de fora, e assim o magnífico retrato da mulher
fictícia é simples e monótono demais. Suponha, por exemplo, que os
homens fossem retratados na literatura apenas como amantes das
mulheres, e que nunca fossem amigos de outros homens, ou soldados,
pensadores, sonhadores; nesse caso, como seriam poucos os papéis
masculinos em Shakespeare, e como a literatura iria sofrer! Talvez
tivéssemos a maior parte de Otelo e um tanto de Antônio, mas nada de
César, de Brutus, de Hamlet, de Lear, de Jaques — a literatura ficaria
incrivelmente empobrecida, assim como a literatura é de fato
empobrecida para além da conta quando as portas são fechadas às
mulheres. Casadas contra a vontade, limitadas a um quarto e a uma
ocupação — como poderia um dramaturgo traçar um relato completo,
interessante ou verdadeiro sobre elas? O amor era o único intérprete
possível. O poeta era forçado a ser apaixonado ou amargurado, a menos
que decidisse “odiar as mulheres”, o que geralmente significava que não
era atraente para elas.
Agora, se Chloe gosta de Olivia e elas dividem um laboratório, o que
em si torna essa amizade mais variada e duradoura por ser menos
pessoal; se Mary Carmichael sabe escrever, e eu estava começando a
perceber alguma qualidade em seu estilo; se ela tem um quarto só dela,
embora disso eu não tenha certeza; e se ela possui quinhentas libras — o
que ainda está para ser provado —, então acho que algo de grande
importância aconteceu.
Porque se Chloe gosta de Olivia e se Mary Carmichael souber como
expressá-lo, ela acenderá uma tocha em um vasto recinto onde ninguém
nunca esteve. É todo penumbra e sombras profundas, como aquelas
cavernas sinuosas onde entramos apontando uma vela para cima e para
baixo, sem saber onde estamos pisando. E recomecei a ler o livro, e li que
Chloe ficou observando Olivia colocar um frasco em uma prateleira e
dizer que era hora de ir para casa cuidar das crianças. Essa é uma visão
que nunca existiu desde que o mundo é mundo, exclamei. E também
fiquei observando, muito curiosa. Pois queria ver como Mary
Carmichael se punha a registrar esses gestos inéditos, essas palavras não
ditas ou insinuadas que se formam — não mais palpáveis do que as
sombras de mariposas no teto — quando as mulheres estão sozinhas, não
mais sob a luz caprichosa e colorida do sexo oposto. Ela precisará
prender a respiração, disse eu, continuando a leitura, se quiser fazê-lo;
pois as mulheres são tão desconfiadas de qualquer demonstração de
interesse que não tenha motivos óbvios, tão terrivelmente habituadas à
dissimulação e à supressão, que desaparecem diante de um olhar mais
atento em sua direção. A única forma de fazê-lo, pensei, dirigindo-me a
Mary Carmichael como se ela estivesse presente, é falar de outra coisa,
olhando fixamente para fora da janela, e assim registrar — não sob a
forma de notas em um caderno, mas com a mais concisa das taquigrafias,
em palavras que mal possuem sílabas — o que acontece quando Olivia,
essa criatura que se escondeu debaixo de uma pedra nos últimos milhões
de anos, sente a luz bater sobre si, e enxerga um alimento estranho vindo
em sua direção: conhecimento, aventura, arte. E ela estica a mão para
alcançá-lo, pensei, de novo erguendo os olhos da página, e tem de
inventar alguma combinação inteiramente nova de seus recursos, que
foram altamente desenvolvidos para outros propósitos, a fim de absorver
o novo no antigo sem perturbar o equilíbrio infinitamente intrincado e
elaborado do conjunto.
Mas, ai de mim!, eu havia feito o que decidira não fazer: embarquei,
sem pensar, em elogios ao meu próprio sexo. “Altamente desenvolvidos”,
“infinitamente intrincado” — são termos elogiosos, é inegável, e elogiar o
próprio sexo é sempre suspeito e geralmente tolo. Mais que isso: nesse
caso, como poderíamos justificá-lo? Não podemos apontar para um
mapa, dizer que Colombo descobriu a América e que Colombo era
mulher; ou apanhar uma maçã e observar que Newton descobriu as leis
da gravidade e que Newton era mulher; ou olhar para o céu, dizer que
aviões estão voando e que foram inventados por uma mulher. Não há
marcas na parede para medir a altura exata das mulheres. Não há fitas
métricas precisamente divididas em frações de centímetros que
possamos usar para medir as qualidades de uma boa mãe, a devoção de
uma filha, a fidelidade de uma irmã ou a competência de uma dona de
casa. Mesmo hoje, poucas mulheres foram avaliadas nas universidades;
mal foram testadas nos grandes desafios profissionais: exército,
marinha, comércio, política e diplomacia. Até o momento, elas
permanecem quase sem classificação. Mas se eu quiser saber tudo o que
um ser humano pode me contar sobre sir Hawley Butts74, por exemplo,
basta abrir Burke ou Debrett e descobrirei que ele tem esse ou aquele
diploma, possui uma grande propriedade, gerou um herdeiro, foi
secretário de um comitê, representou a Grã-Bretanha no Canadá e
recebeu um certo número de diplomas, cargos, medalhas e outras
distinções pelas quais seus méritos estão estampados nele de forma
permanente. Só a Providência pode saber mais sobre sir Hawley Butts.
Quando, portanto, eu digo “altamente desenvolvidos” ou
“infinitamente intrincado” para me referir a mulheres, não sou capaz de
confirmar minhas palavras em Whitaker, Debrett ou no Calendário
Universitário.75 Nessas circunstâncias, o que posso fazer? Olhei para a
estante mais uma vez. Havia as biografias: Johnson, Goethe, Carlyle,
Sterne, Cowper, Shelley, Voltaire, Browning e muitos outros. E comecei
a pensar em todos esses grandes homens que, por um motivo ou outro,
admiraram certas pessoas do sexo oposto — que as procuraram, viveram
com elas, fizeram-lhes confidências, dormiram com elas, escreveram a
elas, confiaram nelas e demostraram o que só pode ser descrito como
uma necessidade ou dependência delas. Eu não afirmaria, e sir William
Joynson-Hicks provavelmente negaria, que todas essas relações foram
absolutamente platônicas.76 Mas não faríamos justiça a esses homens
ilustres caso insistíssemos que eles só encontraram nessas alianças
conforto, bajulação e os prazeres da carne. O que eles encontraram, é
claro, foi algo que seu próprio sexo era incapaz de suprir; e não seria
precipitado, talvez, tentar defini-lo — sem recorrer às palavras sem
dúvida entusiasmadas dos poetas — como um certo estímulo, uma
renovação do poder criativo que somente o sexo oposto tem o dom de
proporcionar. Ele abriria a porta da sala de estar ou do quarto das
crianças, pensei, e a encontraria talvez entre os filhos, ou com uma peça
de bordado sobre os joelhos — em todo caso, no centro de alguma ordem
e de um sistema diferente de vida. O contraste entre esse universo e o
dele próprio, que podia ser o tribunal ou a Câmara dos Comuns, seria a
um só tempo refrescante e revigorante; e assim se seguiria, mesmo na
conversa mais mundana, uma diferença de opiniões tão natural que suas
ideias ressecadas se fertilizariam; e a visão dela a criar em um meio
diferente seria capaz de impulsionar o poder criativo dele a ponto de
que, inconscientemente, a mente estéril dele passaria a germinar de
novo, e ele encontraria a frase ou a cena que faltava quando botou o
chapéu para visitá-la. Todo Johnson tem sua Thrale, a quem se agarra
por razões como essas, e quando Thrale se casa com um mestre italiano
de música, Johnson quase enlouquece de raiva e desgosto, não só porque
irá sentir falta das noites agradáveis em Streatham, mas porque a luz da
sua vida terá “como que se apagado”.77
E sem sermos o dr. Johnson, Goethe, Carlyle ou Voltaire, podemos
sentir, ainda que de forma diferente desses grandes homens, a natureza
da complexidade e o poder da faculdade criativa altamente desenvolvida
das mulheres. Alguém entra na sala — mas os recursos da língua inglesa
teriam de ser estendidos, e uma enorme revoada de palavras precisaria
abrir caminho à existência de forma ilegítima, antes que uma mulher
pudesse dizer o que acontece quando ela entra em uma sala. As salas
podem ser completamente diferentes: calmas ou ruidosas; com vista
para o mar ou para um pátio de prisão; ocupadas por varais de roupas
lavadas ou avivadas por opalas e sedas; podem ser duras como crinas de
cavalos ou macias como penas — basta entrar em qualquer sala de
qualquer rua para ser atingido em cheio por toda essa força de
feminilidade extremamente complexa. Como poderia ser diferente?
Pois, se as mulheres passaram milhões de anos sentadas em salas, a essa
altura as próprias paredes estão impregnadas de sua força criativa, a
qual, de fato, sobrecarregou tanto a capacidade dos tijolos e do cimento
que precisou se transferir para canetas, pincéis, negócios e política. Mas
esse poder criativo difere muito do poder criativo dos homens. E somos
obrigadas a concluir que seria uma pena se fosse tolhido ou
desperdiçado, pois foi conquistado através de séculos da mais drástica
disciplina, e não há nada para tomar seu lugar. Seria uma enorme pena se
as mulheres escrevessem como os homens, ou vivessem como os
homens, ou se assemelhassem aos homens, pois, se dois sexos não são
exatamente suficientes, considerando a vastidão e a variedade do
mundo, como faríamos com apenas um? Será que a educação não deveria
enfatizar e fortalecer as diferenças, em vez das similaridades? Pois já
temos semelhanças demais do jeito que está, e nada seria mais útil para a
humanidade do que um explorador que viesse a nós trazendo notícias de
outros sexos, após olhar através dos ramos de outras árvores para outros
céus; e afinal teríamos o imenso prazer de ver o professor X ir buscar
correndo a sua fita métrica só para provar que é “superior”.
Mary Carmichael, pensei, ainda pairando a certa distância da página,
terá dificuldade em desenvolver sua obra apenas como observadora. Eu
realmente receio que ela fique tentada a se tornar o que julgo ser o
desdobramento menos interessante da espécie: o da romancista
naturalista, e não contemplativa. Há tantos fatos novos para ela
observar. Ela não precisará mais se limitar às casas respeitáveis das
classes mais altas. Entrará sem bondade ou condescendência, mas no
espírito da camaradagem, naquelas salas pequenas e perfumadas onde
se sentam a cortesã, a prostituta e a dama com seu cachorrinho. Ali elas
ainda estão com as roupas ásperas e baratas que os homens escritores
colocaram forçosamente sobre seus ombros. Mas Mary Carmichael vai
sacar sua tesoura e ajustá-las em todas as suas dobras e curvas. Será
interessante, quando chegar a hora, ver essas mulheres como são, mas
precisamos esperar um pouco, já que Mary Carmichael ainda estará
oprimida pela autoconsciência do “pecado”, que é o legado de nossa
barbárie sexual. Ela ainda terá nos pés os fajutos grilhões classistas de
sempre.
No entanto, a maioria das mulheres não é prostituta ou cortesã; nem
passa uma tarde inteira de verão acariciando cachorros pug sobre um
tecido empoeirado de veludo. Mas então o que elas fazem? E ali me veio à
mente uma daquelas ruas compridas em algum lugar ao sul do rio, cujas
fileiras infinitas de casas são imensamente populosas. Com os olhos da
imaginação vi uma senhora muito idosa atravessar a rua de braços dados
a uma mulher de meia-idade, talvez sua filha, ambas com botas e casacos
de pele tão respeitáveis que se vestir para a tarde devia ser um ritual — as
roupas guardadas com cânfora em armários, ano após ano, pelos meses
de verão. Elas atravessam a rua quando as luzes começam a se acender
(pois o crepúsculo é seu horário favorito), como devem ter feito ano após
ano. A mais velha tem perto de oitenta anos; mas se alguém lhe
perguntasse o que a vida significou para ela, diria que se lembrava das
ruas acesas para a Batalha de Balaclava, ou que ouviu as salvas de tiros
no Hyde Park celebrando o nascimento do rei Edward VII. E se alguém
lhe perguntasse, na tentativa de especificar o momento com a data e a
estação, o que ela estava fazendo em 5 de abril de 1868, ou em 2 de
novembro de 1875, ela lançaria um olhar vago e diria não se lembrar de
nada. Pois todos os jantares foram servidos; os pratos e copos, lavados; as
crianças enviadas à escola e dali para o mundo. Nada resta dessas coisas.
Tudo desapareceu. Nenhuma biografia ou livro de história tem uma
palavra para dizer a esse respeito. E os romances são, mesmo sem
querer, inevitavelmente mentirosos.
Ainda falta que todas essas vidas infinitamente obscuras sejam
registradas, eu disse, dirigindo-me a Mary Carmichael como se ela
estivesse presente; e segui em pensamento pelas ruas de Londres,
sentindo com a imaginação a pressão do silêncio e o acúmulo de vidas
não registradas — fosse das mulheres nas esquinas com as mãos na
cintura e anéis cravados nos dedos inchados, falando e gesticulando no
ritmo das palavras de Shakespeare; fosse das vendedoras de violetas e
fósforos e das velhas anciãs paradas sob as marquises; fosse das moças
que vagueiam por aí, cujo rosto, como as ondas entre o sol e as nuvens,
assinalam a aproximação de homens e mulheres, e as luzes trêmulas das
vitrines das lojas. Você terá de explorar tudo isso — eu disse a Mary
Carmichael — segurando firme sua tocha. Acima de tudo, terá de
iluminar sua própria alma, com suas profundezas e superficialidades,
suas vaidades e generosidades, e dizer o que sua beleza ou insipidez
significam para você, e qual a sua relação com o universo sempre em
transformação das luvas, sapatos e lãs, oscilando para cima e para baixo
entre os aromas leves que vêm dos frascos dos boticários e se alastram
por galerias de tecidos sobre um piso de falso mármore. Pois, na minha
imaginação, eu havia entrado em uma loja; seu piso era branco e preto e
ela era adornada, de forma surpreendentemente bela, com fitas coloridas
penduradas. Mary Carmichael bem que poderia dar uma olhada nisso de
passagem, pensei, pois era uma visão que se prestaria tão bem à caneta
quanto qualquer montanha nevada ou desfiladeiro rochoso nos Andes. E
também havia a garota atrás do balcão — eu teria preferido ler sua
história real em vez da centésima quinquagésima biografia de Napoleão,
ou do septuagésimo estudo sobre Keats e seu uso da inversão miltônica
que o velho professor Z e seus pares estão escrevendo. Então prossegui
com muita cautela, praticamente na ponta dos pés (tão covarde que sou,
com tanto medo da chicotada que uma vez quase tomei nas costas) e
sussurrei que ela também devia aprender a rir, sem amargura, das
vaidades — ou melhor, das peculiaridades, que é uma palavra menos
ofensiva — do sexo oposto. Pois na parte de trás da cabeça há um ponto
do tamanho de uma moeda que não conseguimos enxergar sozinhos. É
um dos bons serviços que um sexo pode desempenhar ao outro:
descrever esse ponto do tamanho de uma moeda na parte de trás da
cabeça. Pensem em como as mulheres se beneficiaram dos comentários
de Juvenalis e das críticas de Strindberg.78 Pensem em como os homens
conseguiram, de forma benevolente e brilhante, desde tempos
imemoriais, chamar a atenção das mulheres para aquele lugar obscuro
na parte de trás da cabeça! E se Mary fosse muito corajosa e honesta,
daria a volta no sexo oposto e nos contaria o que encontrou por lá. Um
verdadeiro retrato do homem por inteiro nunca poderá ser pintado até
que uma mulher descreva esse ponto do tamanho de uma moeda. O sr.
Woodhouse e o sr. Casuabon são pontos desse tamanho e dessa
natureza.79 É claro que ninguém, em seu juízo perfeito, a aconselharia a
exibir o desprezo e o ridículo de forma intencional — a literatura
demonstra a futilidade daquilo que é escrito nesse espírito. Seja sincera,
diríamos, e o resultado será sem dúvida maravilhosamente interessante.
Sem dúvida a comédia se enriquecerá. Novos fatos serão descobertos.
Contudo, já era hora de baixar os olhos para a página de novo. Seria
melhor, em vez de especular sobre o que Mary Carmichael poderia ou
deveria escrever, ver o que ela de fato escreveu. Então voltei a ler.
Lembrei que eu tinha certas queixas contra ela. Ela quebrou o fraseado
de Jane Austen, e assim não me deu chance de me gabar do meu gosto
impecável e ouvido exigente. Pois era inútil dizer: “Sim, sim, isso é bom,
mas Jane Austen escrevia muito melhor que você”, quando eu precisava
admitir que não havia nenhum ponto de semelhança entre ambas. Então
ela foi além e quebrou a sequência — a ordem esperada. Talvez tenha
feito isso de forma inconsciente, apenas conferindo às coisas sua ordem
natural, como uma mulher faria, caso escrevesse como uma mulher. Mas
o efeito era de certa forma desconcertante; não dava para ver uma onda
se formando, uma crise se aproximando logo adiante. Assim, eu
tampouco podia me gabar da complexidade dos meus sentimentos e de
meu conhecimento profundo do coração humano. Pois, sempre que eu
estava prestes a sentir as coisas normais nos lugares normais — sobre o
amor, sobre a morte —, aquela criatura irritante me arrancava dali, como
se o mais importante ainda estivesse por vir. E assim ela tornava
impossível que eu desfiasse minhas expressões bombásticas sobre os
“sentimentos elementares”, a “matéria comum da humanidade”, “as
profundezas do coração humano” e todas as outras expressões que nos
sustentam na crença de que, por mais que sejamos espirituosas por fora,
somos muito sérias, profundas e humanas por dentro. Pelo contrário: ela
me fazia sentir que, em vez de sérias, profundas e humanas, nós
poderíamos ser — e a ideia era bem menos atraente — apenas
mentalmente preguiçosas, e ainda por cima convencionais.
Mas continuei a leitura, e notei alguns outros fatos. Ela não era
nenhum “gênio” — isso era evidente. Não tinha nada parecido com o
amor pela Natureza, a imaginação ardente, a poesia feroz, a inteligência
brilhante e a sabedoria reflexiva de suas grandes predecessoras lady
Winchilsea, Charlotte Brontë, Emily Brontë, Jane Austen e George Eliot;
não conseguia escrever com a melodia e a dignidade de Dorothy Osborne
— ela realmente não era mais que uma garota esperta cujos livros serão
descartados pelos editores em questão de uma década. Ainda assim,
tinha vantagens que faltavam a mulheres de um talento bem maior,
mesmo meio século atrás. Os homens já não eram mais “a facção
opositora”; ela não precisava perder tempo em atacá-los; não precisava
subir ao telhado e arruinar sua paz de espírito desejando viagens,
experiências e um conhecimento do mundo e das pessoas que lhe eram
negados. O medo e a raiva haviam quase sumido — ou traços deles
transpareciam apenas em um leve exagero na alegria da liberdade, numa
tendência para o cáustico e o satírico, em lugar do romântico, em seu
tratamento do sexo oposto. Também não poderia haver dúvida de que,
como romancista, ela dispunha de certas vantagens naturais de uma
ordem maior. Tinha uma sensibilidade muito ampla, ávida e livre.
Respondia ao estímulo mais imperceptível. Alimentava-se, como uma
planta recém-brotada, de cada visão e som que encontrava. Também se
estendia, de forma muito sutil e curiosa, na direção de coisas quase
desconhecidas ou não registradas; iluminava pequenas coisas e
mostrava que talvez, no fim das contas, elas não fossem tão pequenas
assim. Trazia à luz coisas enterradas e nos fazia imaginar qual tinha sido
a necessidade de enterrá-las. Por mais desajeitada que fosse, e por mais
que não tivesse o traquejo inconsciente decorrente de uma extensa
linhagem que torna tão agradável aos ouvidos o mínimo movimento de
caneta de um Thackeray ou um Lamb, ela tinha — comecei a pensar —
aprendido a primeira grande lição: escrevia como uma mulher, mas
como uma mulher que esqueceu que é mulher, de modo que suas páginas
estavam repletas daquela curiosa qualidade sexual que aparece apenas
quando um sexo não tem consciência de si.
Tudo isso era bom. Mas nenhuma abundância de sensações ou
refinamento de percepções seria útil, a menos que ela conseguisse
construir, a partir do efêmero e do pessoal, um edifício duradouro que se
mantivesse de pé. Eu tinha dito que esperaria até que ela se deparasse
com “um problema”. Eu quis dizer: até que ela provasse — invocando,
apelando e reunindo elementos — que não apenas arranhava as
superfícies, mas examinava as profundezas das coisas. Agora é o
momento, ela diria a si mesma a certa altura, no qual, sem fazer nada
violento, posso revelar o significado disso tudo. E ela começaria — como
seria nítido esse despertar! — a apelar e a invocar, e assim se ergueriam
na memória, quase esquecidas, coisas talvez triviais lançadas de
passagem em outros capítulos. E ela nos faria sentir a presença dessas
coisas enquanto alguém costurava ou fumava um cachimbo, da forma
mais natural possível, e sentiríamos, conforme ela continuasse
escrevendo, como se tivéssemos subido ao topo do mundo e
enxergássemos tudo estendido de forma magnífica lá embaixo.
Em todo caso, ela estava tentando. E enquanto eu a observava se
preparar para a prova, eu vi — mas esperei que ela não tivesse visto — os
bispos, os reitores, os médicos, os professores, os patriarcas e os
instrutores em cima dela, berrando advertências e conselhos. Você não
pode fazer isso e não deve fazer aquilo! Só os alunos e professores podem
pisar na grama! As mulheres não entram sem uma carta de
apresentação! Romancistas jovens e graciosas, por aqui! E assim ficavam
em cima dela como a multidão debruçada sobre a cerca de uma pista de
corrida, e seu desafio era transpor esse obstáculo sem olhar para a
direita ou a esquerda. Se você parar para xingar, já perdeu, eu lhe disse; o
mesmo acontece se você parar para rir. Basta hesitar ou se atrapalhar
que está acabada. Pense apenas no salto, eu implorei, como se tivesse
apostado todo meu dinheiro nela; e ela ultrapassou o obstáculo feito um
pássaro. Mas havia outro depois desse, e mais um adiante. Se ela era
capaz de aguentar firme, eu tinha lá minhas dúvidas, pois os aplausos e
os gritos eram de dar nos nervos. Mas ela deu o melhor de si.
Considerando que Mary Carmichael não era nenhum gênio, mas uma
garota desconhecida escrevendo em um dormitório seu primeiro
romance, sem nada daquelas coisas desejáveis — tempo, dinheiro e
ociosidade —, ela não se saiu tão mal, pensei.
Dê a ela mais uns cem anos, concluí, lendo o último capítulo — o nariz
e os ombros desnudos das pessoas apareciam sob um céu estrelado, pois
alguém havia puxado a cortina na sala de estar —, dê-lhe um quarto só
seu e quinhentas libras por ano, deixe-a falar o que pensa e corte metade
do que ela hoje inclui, e ela irá escrever um livro melhor qualquer dia
desses. Ela será uma poeta, eu disse, recolocando A aventura da vida, de
Mary Carmichael, na ponta da prateleira, daqui a uns cem anos.

69. Mary Carmichael é um dos nomes fictícios da balada escocesa mencionada no primeiro
capítulo deste livro. Já Marie Carmichael era o pseudônimo da acadêmica britânica Marie
Stopes (1880–1958), que em 1928 publicou um romance chamado Love’s Creation [A criação
do amor]. Mas o livro que Woolf discute aqui é inteiramente fictício. [N. de T.] ↩
70. Emma Woodhouse e o pai são personagens de Emma, de Jane Austen, publicado em 1816.
[N. de T.] ↩
71. Sir Chartres Biron foi o juiz que, em 1928, baniu o romance The Well of Loneliness [O poço da
solidão], de Radclyffe Hall (pseudônimo de Marguerite Antonia Radclyffe-Hall), por
obscenidade. Woolf foi uma das defensoras do livro, que abordava a homossexualidade
feminina. [N. de T.] ↩
72. O romance Diana of the Crossways [Diana das encruzilhadas] foi escrito por George
Meredith e publicado em 1885. Virginia Woolf se refere à amizade entre Diana Warwick, a
heroína do livro, e lady Emma Dunstane. [N. de T.] ↩
73. Marcel Proust (1871–1922), escritor francês, autor de Em busca do tempo perdido. É
considerado um dos maiores romancistas a escrever sobre o amor. [N. de E.] ↩
74. Sir Hawley Butts é um personagem provavelmente fictício. Debrett’s Peerage and
Baronetage, publicado pela primeira vez em 1769, e Burke’s Peerage, de 1826, são guias de
referência sobre a aristocracia britânica. [N. de T.] ↩
75. O Almanaque Whitaker é um livro de referência publicado anualmente desde 1868, no Reino
Unido. Os calendários das universidades de Oxford e Cambridge também têm periodicidade
anual. [N. de T.] ↩
76. O político conservador William Joynson-Hicks, visconde de Brentford, foi ministro do
interior de 1924 a 1929, e teve um papel central no banimento do romance The Well of
Loneliness. [N. de T.] ↩
77. Hester Lynch Thrale (1741–1821) foi autora de diários e poeta, amiga íntima de Samuel
Johnson (1709–1784), crítico, poeta e ensaísta. Ela morava em Streatham, na zona sul de
Londres. A amizade entre os dois foi abalada pelo casamento de Thrale com o músico
italiano Gabriel Piozzi, em julho de 1784. Johnson morreu no fim desse ano. Já a referência
sobre a “luz da sua vida” que teria “como se apagado” é do historiador e ensaísta escocês
Thomas Carlyle, refletindo sobre a morte da esposa, Jane Welsh Carlyle. [N. de T.] ↩
78. Decimus Junius Juvenalis foi um poeta romano nascido no século I que atacou as mulheres
em uma de suas sátiras. O dramaturgo sueco August Strindberg (1849–1912) se
autoproclamou misógino. [N. de T.] ↩
79. O sr. Woodhouse é o patriarca em Emma, de Jane Austen, e o sr. Casaubon é o marido de
Dorothea Brooke, heroína de Middlemarch, de George Eliot. [N. de T.] ↩
6.

No dia seguinte, a luz da manhã de outubro caía em feixes


empoeirados pelas janelas sem cortinas, e o ruído do tráfego emanava da
rua. Londres estava se aquecendo mais uma vez; a fábrica se punha em
movimento; as máquinas começavam a funcionar. Depois de tanta
leitura, era tentador olhar pela janela e ver o que Londres fazia na manhã
de 26 de outubro de 1928. Aparentemente ninguém lia Antônio e
Cleópatra. Londres estava totalmente indiferente, ao que parece, às
peças de Shakespeare. Ninguém dava a mínima — e não posso culpá-los
— para o futuro da ficção, para a morte da poesia ou para o
desenvolvimento, na mulher comum, de um estilo de prosa capaz de
expressar suas ideias por completo. Se as opiniões sobre quaisquer
desses assuntos fossem escritas a giz na calçada, ninguém teria parado
para lê-las. A indiferença dos pés apressados as teria apagado em meia
hora. Aqui vinha um mensageiro; ali, uma mulher com um cachorro na
coleira. O fascínio das ruas de Londres é que nunca há duas pessoas
iguais; cada qual parece envolvida em seus assuntos particulares. Havia
os que pareciam empresários, com suas maletas; havia os andarilhos
batendo pedaços de pau nas grades; havia figuras simpáticas para quem
as ruas eram um clube, que cumprimentavam os homens nas carroças e
davam informações que ninguém pedira. Também havia funerais diante
dos quais os homens, subitamente lembrados da perenidade do próprio
corpo, tiravam o chapéu. E então um cavalheiro muito distinto desceu
devagar os degraus de casa e parou para evitar a colisão com uma
senhora agitada que havia adquirido, de um jeito ou de outro, um
esplêndido casaco de peles e um buquê de violetas de Parma. Pareciam
todos separados, absortos em seus próprios afazeres.
Naquele instante, como muitas vezes acontece em Londres, houve
uma completa calmaria e a suspensão do tráfego. Nada desceu a rua;
ninguém passou. Uma única folha se desprendeu do plátano no fim da
rua e, durante aquela pausa e suspensão, caiu. De alguma forma era
como um sinal caindo, um sinal que apontava para a força das coisas
despercebidas. Parecia apontar para um rio que corria, invisível, rua
abaixo, e que arrastava as pessoas em um redemoinho, como a
correnteza em Oxbridge havia carregado o estudante de barco e as folhas
mortas. Agora ele trazia de um lado para o outro da rua, na diagonal, uma
moça com botas de couro envernizado, e depois um jovem em um
sobretudo castanho-avermelhado; também trouxe um táxi; então trouxe
os três juntos para um ponto bem debaixo da minha janela, onde o táxi
parou; a moça e o jovem pararam; entraram no táxi; e então o carro
deslizou para longe, como se tivesse sido arrastado pela correnteza.
Era uma cena bastante comum; o estranho era a ordem rítmica que
minha imaginação havia conferido a ela, e o fato de que a cena comum de
duas pessoas entrando em um táxi tivesse o poder de transmitir um
pouco da aparente satisfação delas. A cena de duas pessoas descendo a
rua e se encontrando na esquina parece aliviar algum peso da mente,
pensei, observando o táxi virar e ir embora. Talvez seja um esforço
pensar, como fiz nos últimos dois dias, em um sexo como sendo diferente
do outro. Isso interfere na unidade da mente. Agora esse esforço cessara
e a unidade havia sido restaurada quando vi duas pessoas se
encontrando e entrando em um táxi. A mente é decerto um órgão muito
misterioso, refleti, afastando a cabeça da janela, sobre o qual não
sabemos absolutamente nada, apesar de dependermos dele por
completo. Por que sinto que há separações e oposições na mente, assim
como há tensões por causas evidentes no corpo? O que queremos dizer
com “unidade da mente”?, ponderei, já que era nítido que a mente tinha
um poder tão grande de se concentrar em qualquer ponto a qualquer
momento que não parecia possuir um único estado de existência. A
mente pode se separar das pessoas na rua, por exemplo, e considerar-se
à parte delas, observando-as de uma janela no alto. Ou pode pensar junto
a outras pessoas espontaneamente, como, por exemplo, em uma
multidão que aguarda o anúncio de alguma notícia. Pode remeter ao
passado através de nossos pais ou mães, como comentei que uma
mulher, ao escrever, pensa no passado através da mãe. De novo, quando
somos mulheres, muitas vezes nos deparamos com uma súbita cisão de
consciência, digamos, ao caminhar por Whitehall80, quando, em vez de
sermos as herdeiras naturais dessa civilização, nos tornamos, ao
contrário, exteriores a ela, alheias e críticas. É claro que a mente está
sempre alterando seu foco, colocando o mundo em diferentes
perspectivas. Mas alguns desses estados mentais, mesmo quando
adotados de forma espontânea, parecem menos confortáveis do que
outros. Para mantê-los, precisamos refrear alguma coisa
inconscientemente, e aos poucos a repressão se torna um esforço. Mas
deve haver algum estado mental que possamos manter sem esforço,
quando nada precisa ser reprimido. E este talvez fosse um deles, pensei,
afastando-me da janela. Pois certamente, quando vi o casal entrar no
táxi, senti como se a mente, após ter sido dividida, voltasse a se juntar
em uma fusão natural. A razão óbvia seria a de que a cooperação é
natural entre os sexos. Temos um instinto profundo, ainda que
irracional, em favor da teoria de que a união entre homem e mulher traz
a maior satisfação e a mais completa felicidade. Mas a visão de duas
pessoas entrando no táxi e a satisfação que tive com isso também me fez
questionar se há dois sexos na mente que correspondem aos dois sexos
do corpo, e se eles também precisam se unir para obter satisfação e
felicidade completas. E prossegui, de forma amadora, rascunhando um
esquema da alma no qual, em cada um de nós, os dois poderes presidem,
um masculino e um feminino; no cérebro do homem, o masculino
predomina sobre o feminino, e no cérebro da mulher é o contrário. O
estado de espírito normal e confortável é quando os dois vivem juntos
em harmonia, cooperando espiritualmente. Nos homens, a parte
feminina do cérebro também precisa atuar; e uma mulher também deve
ter relações com o homem dentro de si. Talvez seja isso que Coleridge
quis dizer quando afirmou que uma grande mente é andrógina. É quando
ocorre essa fusão que a mente se fertiliza por inteiro e usa todas as suas
faculdades. Talvez uma mente puramente masculina não seja capaz de
criar, e o mesmo se dá com uma mente puramente feminina, pensei. Mas
seria bom examinar o que significa femininamente masculino e, por
oposição, masculinamente feminino, dando uma pausa e olhando um ou
dois livros.
Certamente Coleridge não quis dizer, ao afirmar que uma grande
mente é andrógina, que essa mente teria qualquer simpatia especial
pelas mulheres, uma mente que abraçasse a causa delas ou se dedicasse
a interpretá-las. Talvez a mente andrógina esteja menos apta a fazer
essas distinções do que a mente de sexo único. Ele quis dizer, talvez, que
a mente andrógina é ressonante e porosa; que transmite emoção sem
obstáculos; que é naturalmente criativa, incandescente e unificada. De
fato, remontamos à mente de Shakespeare como o tipo de mente
andrógina, femininamente masculina, embora seja impossível dizer o
que Shakespeare pensava das mulheres. E se é verdade que um dos
sinais da mente completamente desenvolvida é que ela não pensa nos
sexos de forma específica ou separada, hoje em dia é mais difícil do que
nunca atingir essa condição. Aqui cheguei aos livros dos autores vivos, e
então pausei e pensei se esse fato não estaria na raiz de algo que tem me
intrigado há muito tempo. Nenhuma época pode ter tido uma
consciência dos sexos mais estridente do que a nossa; prova disso são
aqueles incontáveis livros sobre as mulheres escritos por homens no
Museu Britânico. A campanha pelo sufrágio é, sem dúvida, a culpada por
isso. Deve ter despertado nos homens um desejo extraordinário de
autoafirmação; deve tê-los levado a enfatizar o próprio sexo e suas
características, coisas nas quais eles nem teriam se incomodado de
pensar se não tivessem sido desafiados. E quando alguém é desafiado,
mesmo por poucas mulheres em boinas pretas, pode responder de forma
um tanto excessiva, sobretudo se nunca tiver sido desafiado antes. Isso
explica algumas das características que lembro de ter encontrado aqui,
pensei, tomando um novo romance do sr. A, que está no apogeu da idade
e é aparentemente muito bem-conceituado entre os críticos. Abri o livro.
De fato, era uma delícia ler de novo a escrita de um homem. Era tão
direta, tão objetiva, em comparação com a escrita das mulheres…
Indicava tanta liberdade da mente, tanta desenvoltura pessoal, tanta
autoconfiança. Sentia-se um bem-estar físico na presença daquela
mente bem-nutrida, bem-educada e livre, que jamais foi contrariada ou
confrontada, e que teve total liberdade desde o nascimento para se
estender em qualquer direção que desejasse. E isso era admirável. Mas,
após ler um ou dois capítulos, uma sombra parecia cair sobre a página.
Era uma barra reta e escura, uma sombra que tinha a forma da palavra
“eu”.81 Era preciso esquivar-se de um lado para o outro para captar um
vislumbre da paisagem por trás dela. Se era uma árvore ou uma mulher
andando, não sei dizer ao certo. Sempre éramos lançados de volta à
palavra “eu”. Começávamos a ficar cansados de tanto “eu”. Não que esse
“eu” não fosse o mais respeitável, honesto e lógico; duro feito pedra e
polido durante séculos por uma boa educação e uma boa alimentação.
Respeito e admiro esse “eu” do fundo do meu coração. Mas o pior — aqui
virei uma página ou duas, procurando uma coisa ou outra — é que, à
sombra da palavra “eu”, tudo é disforme como a névoa. Aquilo é uma
árvore? Não, é uma mulher. Mas… ela não tem nenhum osso no corpo,
pensei, observando Phoebe, pois esse era o seu nome, atravessando a
praia. Então Alan se levantou e sua sombra ofuscou Phoebe na mesma
hora. Pois Alan tinha opiniões e Phoebe se afogava na torrente dessas
opiniões. E Alan, pensei, também tinha paixões; e aqui virei as páginas
muito rapidamente, sentindo que a crise se aproximava, no que eu tinha
razão. Aconteceu na praia, debaixo do sol. Tudo feito às claras e de forma
muito vigorosa. Nada poderia ter sido mais indecente. Mas… Tenho dito
“mas” com muita frequência. Não se pode continuar dizendo “mas”. É
preciso terminar a frase de alguma forma, eu me repreendi. Devo
terminá-la: “Mas estou entediada!”. Mas por que estava entediada? Em
parte por causa da dominância da palavra “eu” e da aridez que, como a
faia gigante, ela lança sobre sua sombra. Nada irá nascer ali. E em parte
por outra razão obscura. Parecia haver algum obstáculo, um
impedimento na mente do sr. A que bloqueava a fonte de energia criativa
e a represava dentro de limites estreitos. E relembrando o almoço em
Oxbridge, as cinzas do cigarro, o gato manês, Tennyson e Christina
Rossetti em uma tacada só, me pareceu possível que o obstáculo
estivesse ali. Se, quando Phoebe atravessa a praia, ele não mais cantarola
baixinho: “Caiu uma lágrima brilhante da flor de maracujá no portão”, e
se, quando Alan se aproxima, ela não responde mais: “Meu coração é
como um pássaro a cantar cujo ninho está em um broto molhado”, o que
ele pode fazer? Para ser honesta como o dia e lógica como o sol, só há
uma coisa que ele pode fazer. E isso ele faz — justiça seja feita — várias e
várias vezes (eu disse, virando as páginas). E isso, acrescentei, ciente da
péssima natureza dessa confissão, parece entediante por algum motivo.
A indecência de Shakespeare arranca mil outras coisas de nossa mente,
e está longe de ser entediante. Mas Shakespeare o faz por prazer; o sr. A,
como dizem as babás, faz de propósito. Faz em protesto. Está
protestando contra a igualdade do outro sexo, afirmando sua própria
superioridade. Está, portanto, impedido, inibido e autoconsciente como
Shakespeare estaria se também tivesse conhecido a srta. Clough e a srta.
Davies.82 Sem dúvida, a literatura elisabetana teria sido muito diferente
se o movimento das mulheres tivesse começado no século XVI, e não no
XIX.
O que resulta disso, se essa teoria dos dois lados da mente for válida, é
que a virilidade agora se tornou autoconsciente — quer dizer, os homens
agora escrevem apenas com o lado masculino do cérebro. É um erro que
a mulher os leia, pois irá inevitavelmente procurar algo que não vai
encontrar. É do poder da sugestão que mais sentimos falta, pensei,
tomando nas mãos o crítico sr. B e lendo, de forma muito cuidadosa e
diligente, seus comentários sobre a arte da poesia. Eram muito
competentes, agudos e cheios de erudição; o problema é que seus
sentimentos não mais ressoavam; sua mente parecia separada em
diferentes compartimentos e nem um só ruído passava de um para o
outro. Logo, quando assimilamos mentalmente uma frase do sr. B, ela cai
com um baque no chão, morta; mas, quando assimilamos mentalmente
uma frase de Coleridge, ela explode e gera as mais variadas ideias, e esse
é o único tipo de escrita que se pode dizer possuir o segredo da vida
eterna.
Mas, seja qual for a razão, é um fato que devemos lamentar. Pois
significa — e aqui cheguei às fileiras de livros do sr. Galsworthy e do sr.
Kipling — que algumas das mais belas obras de nossos maiores
escritores vivos caem em ouvidos moucos. Não importa o que faça, uma
mulher não consegue encontrar neles essa fonte da vida eterna que os
críticos garantem estar lá. Não só porque eles celebram virtudes
masculinas, reforçam valores masculinos e descrevem o mundo
masculino, mas porque a emoção que permeia esses livros é
incompreensível para uma mulher. Está vindo, está se acumulando, está
prestes a estourar na cabeça de alguém — nós dizemos muito antes do
final. Aquele quadro vai cair na cabeça do velho Jolyon;83 ele vai morrer
com a pancada; o velho clérigo irá dizer duas ou três palavras ao lado do
túmulo; e todos os cisnes do Tâmisa irão irromper em um canto
simultâneo. Mas fugimos correndo antes que isso aconteça e nos
escondemos entre os arbustos de groselha, pois a emoção que é tão
profunda, tão sutil e tão simbólica em um homem causa estranhamento
em uma mulher. O mesmo ocorre com os soldados do sr. Kipling que
viram as Costas, seus Semeadores que semeiam a Semente, seus
Homens sozinhos com seu Trabalho, e, por fim, a Bandeira84 — nós
ruborizamos diante dessas letras maiúsculas como se tivéssemos sido
pegas espiando uma orgia puramente masculina. O fato é que nem o sr.
Galsworthy nem o sr. Kipling têm uma fagulha de mulher dentro de si. E,
por isso, todas as suas qualidades parecem a uma mulher — se é que
podemos generalizar — cruas e imaturas. Falta-lhes poder de sugestão. E
quando falta poder de sugestão a um livro, ele pode até atingir com força
a superfície da mente, mas não consegue penetrar nela.
E nesse espírito inquieto — quando pegamos livros da estante e os
devolvemos sem nem os consultar —, passei a vislumbrar uma época
futura de virilidade pura e autoafirmativa, tal como as cartas de
professores (as cartas de sir Walter Raleigh, por exemplo)85 pareciam
antever, e tal como os governantes da Itália já trouxeram à existência.
Pois é difícil não ficar impressionado, em Roma, com o senso de
masculinidade exacerbada; e qualquer que seja o valor da masculinidade
exacerbada para o Estado, podemos questionar seu efeito sobre a arte da
poesia. De qualquer forma, segundo os jornais, há certa ansiedade com
relação à ficção na Itália.86 Houve um encontro de acadêmicos com o
objetivo de “desenvolver o romance italiano”. “Homens famosos por
nascimento, ou na área das finanças, indústria ou empresas fascistas” se
juntaram outro dia para discutir o assunto, e enviaram um telegrama ao
Duce manifestando a esperança de que “a era fascista logo faça nascer
um poeta que lhe seja digno”. Poderíamos até ecoar essa devotada
esperança, mas é de se duvidar que a poesia possa surgir de uma
incubadora. A poesia precisa ter uma mãe, além de um pai. É de se recear
que o poema fascista será um pequeno e horrendo aborto, como aqueles
que vemos em potes de vidro no museu de alguma cidadezinha do
interior. Esses monstros nunca vivem muito tempo, dizem; nunca se viu
um prodígio dessa espécie pastando em um campo. Duas cabeças em um
só corpo não contribuem para uma vida longa.
Porém, a culpa de tudo isso, se estivermos ansiosos para atribuir uma
culpa, cabe igualmente aos dois sexos. Todas as sedutoras e reformistas
são responsáveis: lady Bessborough, ao mentir para lorde Granville, e a
srta. Davies, quando contou a verdade ao sr. Greg. São culpados todos
aqueles que promoveram um estado de consciência sobre os sexos, e são
eles que me levam — quando desejo pôr em ação minhas faculdades em
um romance — a procurá-lo naquela época feliz, antes do nascimento da
srta. Davies e da srta. Clough, quando o escritor usava ambos os lados da
mente por igual. Então precisamos retornar a Shakespeare, pois ele era
andrógino; assim como Keats, Sterne, Cowper, Lamb e Coleridge.
Shelley talvez fosse assexuado. Milton e Ben Jonson tinham uma verve
excessivamente masculina. A mesma coisa para Wordsworth e Tolstói.
Em nossa época, Proust era inteiramente andrógino, se não talvez um
pouco feminino demais. Mas essa falha é demasiado rara para nos
queixarmos dela, já que, sem certa mistura desse tipo, o intelecto parece
predominar e as outras faculdades da mente ressecam e se tornam
estéreis. No entanto, consolei-me com o pensamento de que essa talvez
seja uma fase passageira; muito do que eu disse em deferência à
promessa de lhes oferecer o curso dos meus pensamentos vai parecer
datado; muito do que flameja diante de meus olhos vai parecer duvidoso
àquelas de vocês que ainda não atingiram a maturidade.
Ainda assim, a primeira frase que eu escreveria aqui, disse,
aproximando-me da escrivaninha e pegando a folha com o título “As
mulheres e a ficção”, é que é fatal, para alguém que escreve, pensar no
próprio sexo. É fatal ser homem ou mulher, pura e simplesmente:
devemos ser masculinamente femininos ou femininamente masculinos.
Para uma mulher, é fatal dar a menor ênfase para qualquer queixa;
defender, mesmo com justiça, qualquer causa; falar conscientemente, de
qualquer forma, como mulher. E “fatal” não é figura de linguagem; pois
qualquer coisa escrita com esse viés consciente está fadada à morte.
Deixa de ser proveitosa. Por mais brilhante e eficaz, poderosa e magistral
que possa parecer por um ou dois dias, irá definhar ao cair da noite; não é
capaz de crescer na mente dos outros. Algum tipo de colaboração entre a
mulher e o homem deve ocorrer na mente antes que se possa lograr a
arte da criação. Algum tipo de casamento entre opostos deve ser
consumado. A totalidade da mente precisa estar aberta para termos a
sensação de que o escritor está comunicando sua experiência com
perfeita plenitude. Precisa haver liberdade e precisa haver paz.
Nenhuma roda deve ranger, nenhuma luz deve piscar. As cortinas devem
ficar bem fechadas. Chegando ao fim de sua experiência, pensei, o
escritor deve se deitar e deixar a mente celebrar suas núpcias na
escuridão. Não deve olhar ou questionar o que está sendo feito. Pelo
contrário: deve desfolhar as pétalas de uma rosa ou observar os cisnes
flutuando calmamente no rio. E vi de novo a correnteza que levou o bote,
o estudante e as folhas mortas; e o táxi levou o homem e a mulher, pensei,
vendo-os se encontrarem do outro lado da rua, e a correnteza os arrastou
para longe, pensei, ouvindo à distância o ruído do tráfego de Londres,
para dentro daquele imenso rio.

Aqui, então, Mary Beton para de falar. Ela lhes contou como chegou à
conclusão — a prosaica conclusão — de que é necessário ter quinhentas
libras por ano e um quarto com tranca na porta para escrever ficção ou
poesia. Ela tentou expor os pensamentos e impressões que a levaram a
pensar dessa forma. Pediu que vocês a seguissem enquanto voava para
os braços de um bedel, em um almoço aqui, um jantar ali, fazendo
desenhos no Museu Britânico, pegando livros da estante, olhando para
fora da janela. Enquanto ela fazia tudo isso, vocês sem dúvida
observaram suas falhas e fraquezas, decidindo que efeito elas tinham
sobre suas opiniões. Ficaram contestando e fazendo todos os acréscimos
e deduções que lhes pareceram adequados. É assim que deve ser, pois,
em um assunto como esse, a verdade só aparece ao acumular inúmeras
variedades de erro. E irei terminar em meu próprio nome, antecipando
duas críticas tão óbvias que vocês dificilmente deixariam de fazê-las.
Nenhuma opinião foi emitida, vocês podem dizer, sobre os méritos
comparativos dos sexos, nem mesmo como escritores. Isso foi
proposital, pois, ainda que houvesse chegado a hora de tal avaliação — e
no momento é muito mais importante saber de quanto dinheiro e de
quantos quartos as mulheres dispunham, mais do que teorizar sobre
suas capacidades —, ainda que houvesse chegado a hora, eu não acredito
que os talentos, sejam mentais ou de personalidade, possam ser pesados
como açúcar e manteiga; nem mesmo em Cambridge, onde eles são tão
adeptos a dividir as pessoas em categorias, botando barretes em suas
cabeças e letras depois de seus nomes. Não acredito que nem mesmo a
Tabela de Precedência que encontramos no Almanaque Whitaker
represente uma ordem final de valores, ou que exista qualquer boa razão
para supor que um Comendador da Ordem de Bath irá eventualmente se
dispor a jantar depois de um Mestre de Insanidades.87 Toda essa
insistência em colocar um sexo contra o outro e uma qualidade contra a
outra, toda essa pretensão de superioridade e imputação de
inferioridade pertencem ao estágio escolar da existência humana, no
qual há “lados” e é necessário que um deles vença, e no qual é de máxima
importância caminhar até um palco e receber das mãos do diretor em
pessoa um troféu altamente ornamentado. Conforme as pessoas
amadurecem, elas deixam de acreditar em lados, em diretores ou em
troféus altamente ornamentados. Em todo caso, no que diz respeito aos
livros, é notoriamente difícil fixar rótulos de mérito que não descolem.
Não seriam as críticas de literatura contemporânea um eterno exemplo
da dificuldade de julgamento? “Este ótimo livro”, “este livro inútil” — o
mesmo livro é chamado de ambas as coisas. Tanto o elogio quanto a
censura não querem dizer nada. Não, por mais agradável que seja o
passatempo de julgar, é a mais fútil das ocupações, e submeter-se aos
decretos dos julgadores é a mais servil das atitudes. Tudo o que importa
é que você escreva o que quiser escrever; e se irá importar por séculos ou
só por algumas horas, ninguém pode dizer. Mas sacrificar um único fio
de cabelo de sua visão, uma mera tonalidade de sua paleta de cores, em
deferência a um diretor com um troféu prateado nas mãos ou a um
professor com uma fita métrica na manga é a traição mais abjeta; e o
sacrifício da riqueza e da castidade, que diziam ser as maiores tragédias
para um ser humano, não passam, em comparação, de meras mordidas
de pulga.
Em seguida, penso que vocês podem objetar que, em tudo isso, dei
demasiada ênfase à importância das coisas materiais. Mesmo admitindo
uma margem generosa para o simbolismo — de que quinhentas libras
por ano representa o poder de contemplar e de que uma tranca na porta
significa o poder de pensar por si só —, ainda assim vocês podem dizer
que a mente deveria se colocar acima de todas essas coisas; e que
grandes poetas foram com frequência homens pobres. Deixem-me então
citar as palavras de seu próprio professor de literatura, que sabe melhor
do que eu o que é necessário para formar um poeta. Sir Arthur Quiller-
Couch escreve:88

Quais foram os grandes nomes da poesia nos últimos cem anos, aproximadamente?
Coleridge, Wordsworth, Byron, Shelley, Landor, Keats, Tennyson, Browning, Arnold,
Morris, Rossetti, Swinburne — podemos parar por aqui. Desses, todos menos Keats,
Browning e Rossetti frequentaram a universidade, e desses três, Keats, que morreu jovem,
interrompido em seu ápice, era o único que não tinha posses. Pode parecer uma coisa cruel
de se dizer, e é uma coisa triste de se dizer: mas a dura realidade é que a teoria de que a
genialidade poética sopra onde quiser, e igualmente em pobres e ricos, não contém muita
verdade. A dura realidade é que nove desses doze frequentaram a universidade: o que
significa que, de uma forma ou de outra, encontraram um modo de obter a melhor educação
que a Inglaterra pode prover. A dura realidade é que, dos últimos três, sabemos que
Browning tinha posses, e garanto a vocês que, se não fosse assim, não teria conseguido
escrever “Saul” ou “O anel e o livro”, não mais do que Ruskin teria conseguido escrever
Pintores modernos se o pai dele não tivesse tido sucesso nos negócios. Rossetti dispunha de
uma pequena renda particular e, além disso, pintava. Resta apenas Keats, a quem Átropos
ceifou ainda jovem, assim como ceifou John Clare em um manicômio, e James Thomson
por meio do láudano que tomava para amortecer a decepção. São fatos horríveis, mas
vamos encará-los. Por mais que isso seja uma vergonha para a nossa nação, é certo que, por
alguma falha de nosso sistema, o poeta pobre não tem a menor chance em nossa época,
assim como não teve nos últimos duzentos anos. Acreditem — e passei uns bons dez anos
observando algo como trezentos e vinte estudantes do ensino básico —, podemos falar
muito em democracia, mas, na verdade, uma criança pobre na Inglaterra tem tantas
chances quanto o filho de um escravo ateniense de ganhar acesso a essa liberdade
intelectual da qual nascem os grandes escritos.

Ninguém poderia ser mais claro. “O poeta pobre não tem a menor
chance em nossa época, assim como não teve nos últimos duzentos anos.
[…] Uma criança pobre na Inglaterra tem tantas chances quanto o filho
de um escravo ateniense de ganhar acesso a essa liberdade intelectual da
qual nascem os grandes escritos.” É isso. A liberdade intelectual depende
de coisas materiais. A poesia depende da liberdade intelectual. E as
mulheres sempre foram pobres, não só nos últimos duzentos anos, mas
desde o início dos tempos. As mulheres possuem menos liberdade
intelectual do que os filhos de escravos atenienses. As mulheres,
portanto, não têm a menor chance de escrever poesia. Foi por isso que
dei tanta ênfase no dinheiro e em um quarto só seu. Porém, graças à
labuta daquelas mulheres obscuras do passado, de quem eu gostaria que
soubéssemos mais coisas, e graças, curiosamente, a duas guerras — a da
Crimeia, que tirou Florence Nightingale de sua sala de estar, e a da
Europa, que abriu as portas para as mulheres comuns cerca de sessenta
anos mais tarde —, esses males estão sendo corrigidos. Do contrário
vocês não estariam aqui hoje à noite, e suas chances de ganhar
quinhentas libras por ano — precárias como eu temo que ainda sejam —
seriam minúsculas ao extremo.
Ainda assim, vocês podem objetar, por que você atribui tanta
importância à escrita de livros pelas mulheres, quando, de acordo com o
que diz, é algo que requer tanto esforço que talvez leve ao assassinato de
uma tia,89 que faz com que alguém certamente chegue atrasado para o
almoço, e que pode levar uma pessoa a entrar em sérios atritos com
certos excelentes acadêmicos? Minhas razões, deixem-me admitir, são
em parte egoístas. Assim como muitas mulheres inglesas sem educação
formal, gosto de ler — gosto de ler pilhas de livros. Ultimamente minha
dieta anda um bocado monótona: a história fala demais sobre guerras; as
biografias, sobre grandes homens; a poesia tem mostrado, penso, uma
tendência para a esterilidade; e a ficção… Mas já expus o suficiente
minhas deficiências como crítica da ficção moderna e não falarei mais
sobre isso. Portanto, peço a vocês que escrevam todo tipo de livros, não
hesitando diante de nenhum tema, por mais trivial ou extenso que seja.
De uma forma ou de outra, espero que disponham de dinheiro suficiente
para viajar e andar por aí, para contemplar o futuro ou o passado do
mundo, para sonhar com livros, para vagar nas esquinas e deixar a linha
do pensamento afundar na correnteza. Pois não estou, de modo algum,
restringindo vocês à ficção. Se dependesse de mim — e há milhares como
eu —, vocês escreveriam livros de viagem e aventura, de pesquisa e
estudos acadêmicos, de história e biografia, de crítica, filosofia e ciência.
Ao fazê-lo, certamente irão contribuir com a arte da ficção. Pois os livros
têm um jeito de influenciar uns aos outros. Seria bem melhor para a
ficção se ela estivesse de mãos dadas com a poesia e a filosofia. Além
disso, quando consideramos qualquer grande figura do passado — como
Safo, lady Murasaki, Emily Brontë —, descobrimos que ela foi uma
herdeira, além de pioneira, e só veio a existir porque as mulheres
passaram a ter o hábito de escrever com naturalidade; de modo que,
mesmo como um prelúdio à poesia, essa atividade da parte de vocês seria
inestimável.
Mas quando revejo essas anotações e critico minha própria linha de
raciocínio conforme a elaborava, descubro que minhas razões não são de
todo egoístas. Ao longo desses comentários e digressões, corre a
convicção — ou seria o instinto? — de que bons livros são desejáveis e de
que bons escritores, mesmo que mostrem toda variedade de depravações
humanas, ainda assim são bons seres humanos. Portanto, quando eu
peço que vocês escrevam mais livros, incentivo-as a fazer algo que será
bom para vocês e para o mundo como um todo. Não sei como justificar
esse instinto ou crença, pois as palavras filosóficas, quando não tivemos
uma educação universitária, tendem a ser traiçoeiras. O que quer dizer
“realidade”? Parece ser algo muito errático, muito indigno de confiança
— algo a ser encontrado ora em uma estrada poeirenta, ora em um
recorte de jornal na rua, ora em um narciso ao sol. Pode iluminar um
grupo reunido em uma sala e pontuar alguma conversa casual. Pode
dominar completamente alguém que vai para casa sob a luz das estrelas,
tornando o mundo do silêncio mais real do que o mundo das palavras — e
então lá está ela de novo em um ônibus em meio à balbúrdia de
Piccadilly. Às vezes ela também parece residir em formas demasiado
distantes de nós para que possamos discernir sua natureza. Mas, a
qualquer coisa que toca, ela confere definição e permanência. É isso que
persiste quando o dia se encerrou; é o que resta do tempo passado e de
nossos amores e ódios. Agora, o escritor, penso eu, tem a chance de viver
mais do que os outros na presença dessa realidade. É seu papel encontrá-
la, coletá-la e transmiti-la ao resto de nós. Pelo menos é isso que deduzo
ao ler Rei Lear, Emma ou Em busca do tempo perdido. Pois a leitura
desses livros parece empreender uma curiosa cirurgia de catarata em
nossos sentidos: enxergamos mais intensamente depois dela; o mundo
parece se despir de seus véus e ganhar uma vida mais intensa. Há
pessoas invejáveis que vivem em um estado de hostilidade com a
irrealidade; e há aquelas deploráveis, que são nocauteadas pela coisa
feita sem conhecimento ou cuidado. Por isso, quando peço a vocês que
ganhem dinheiro e tenham um quarto só seu, estou pedindo que vivam
em presença da realidade, uma vida revigorante, ao que parece, quer
consigam ou não a transmitir.
Eu pararia por aqui, mas a pressão das convenções exige que todo
discurso termine com uma peroração. E uma peroração dirigida às
mulheres deveria ter, vocês hão de concordar, algo particularmente
enaltecedor e enobrecedor. Eu deveria implorar para que vocês se
lembrem de suas responsabilidades e sejam mais elevadas, mais
espirituais; deveria alertá-las de quanta coisa depende de vocês, e
quanta influência vocês podem exercer sobre o futuro. Mas essas
exortações, penso eu, podem ser deixadas seguramente para o sexo
oposto, que as irá apresentar — e de fato o fez — com muito mais
eloquência do que eu poderia almejar. Quando vasculho minha própria
mente, não encontro sentimentos nobres sobre sermos companheiras,
iguais e inspirarmos o mundo a fins mais elevados. Vejo-me dizer, de
forma breve e prosaica, que é muito mais importante ser você mesma do
que qualquer outra coisa. Não sonhem em influenciar outras pessoas, eu
diria, se soubesse como fazer isso soar elevado. Pensem nas coisas por si
próprias.
E de novo sou lembrada, ao folhear jornais, romances e biografias, que
uma mulher, ao falar para outras mulheres, deve ter algo muito
desagradável escondido na manga. As mulheres são duras umas com as
outras. As mulheres não gostam de mulheres. As mulheres… mas vocês
não estão cansadas dessa palavra? Garanto que eu estou. Vamos
concordar, portanto, que um artigo lido por uma mulher para outras
mulheres deve terminar com algo particularmente desagradável.
Mas como fazer isso? Em que posso pensar? A verdade é que eu
geralmente gosto das mulheres. Gosto da falta de convencionalidade
delas. Gosto de sua completude. Gosto de seu anonimato. Eu gosto… mas
não devo ir por esse caminho. Aquele armário ali — vocês dizem que só
contém guardanapos limpos, mas e se sir Archibald Bodkin90 estiver
escondido entre eles? Deixem-me adotar um tom mais austero. Em tudo
o que disse até aqui, será que lhes transmiti de forma satisfatória as
advertências e a reprovação do sexo masculino? Contei-lhes a péssima
opinião que o sr. Oscar Browning tinha de vocês. Mencionei o que
Napoleão pensava de vocês no passado e o que Mussolini pensa hoje em
dia. Depois, caso alguma de vocês queira se dedicar à ficção, copiei, para
seu próprio bem, o conselho dos críticos sobre reconhecer
corajosamente as limitações de seu sexo. Fiz referência ao professor X e
dei ênfase a sua declaração de que as mulheres são intelectual, moral e
fisicamente inferiores aos homens. Transmiti tudo o que me caiu nas
mãos sem que eu precisasse procurar, e aqui vai uma advertência final: é
do sr. John Langdon Davies.91 O sr. John Lagdon Davies avisa às
mulheres que “quando as crianças deixam de ser de todo desejáveis, as
mulheres deixam de ser de todo necessárias”. Espero que vocês tomem
nota disso.
Como eu poderia encorajá-las ainda mais a seguir com a vida?
Mulheres jovens, eu diria, e por favor prestem atenção, pois a peroração
está começando: você são, em minha opinião, desgraçadamente
ignorantes. Nunca fizeram uma descoberta de qualquer importância.
Nunca abalaram um império ou lideraram um exército em batalha. Não
foram vocês que escreveram as peças de Shakespeare, e nunca
apresentaram a uma raça de bárbaros as maravilhas da civilização. Qual
é a sua desculpa? Vocês poderiam muito bem dizer — apontando para as
ruas, praças e florestas do globo, repletas de habitantes negros, brancos e
pardos, todos ocupados com o tráfego, os negócios e o sexo: tínhamos
outros trabalhos a fazer. Sem nossas ações, os mares não teriam sido
navegados e as terras férteis continuariam desertas. Nós parimos,
alimentamos, limpamos e educamos, talvez até a idade de seis ou sete
anos, um bilhão e seiscentos e vinte e três milhões de seres humanos que
existem hoje, de acordo com as estatísticas — e isso, mesmo admitindo
que algumas de nós tiveram ajuda, toma tempo.
Há verdade no que dizem, não vou negar. Mas, ao mesmo tempo, posso
lembrá-las de que existem pelo menos duas faculdades para mulheres na
Inglaterra desde 1866; que desde 1880 a lei permite que uma mulher
casada tenha posse de sua propriedade; e que em 1919, e isso já faz nove
anos, ela tem direito ao voto? Posso também lembrá-las de que a maioria
das profissões está acessível a vocês já faz quase dez anos? Quando
refletimos sobre esses enormes privilégios e sobre há quanto tempo
desfrutamos deles, e sobre o fato de que deve haver, no momento, umas
duas mil mulheres capazes de ganhar, de alguma maneira, mais de
quinhentas libras por ano, vocês hão de concordar que a desculpa da
falta de oportunidade, formação, encorajamento, lazer e dinheiro não se
sustenta mais. Além disso, os economistas nos dizem que a sra. Seton
teve filhos demais. Vocês devem, é claro, continuar a ter filhos, mas,
segundo eles, aos pares e trios, e não às dezenas e dúzias.
E assim, com algum tempo disponível e com o conhecimento obtido
dos livros — pois do outro tipo vocês já tiveram o suficiente, e são
mandadas para a faculdade, desconfio eu, para desaprender —, vocês
certamente irão embarcar em outro estágio de suas longas, laboriosas e
altamente obscuras carreiras. Milhares de penas estarão prontas para
dizer o que vocês devem fazer e que efeito terão. Minha sugestão é um
tanto fantástica, admito; prefiro apresentá-la, portanto, sob a forma de
ficção.
No decorrer deste artigo, eu lhes disse que Shakespeare tinha uma
irmã; mas não procurem por ela na biografia do poeta escrita por sir
Sidney Lee. Ela morreu jovem — infelizmente nunca escreveu uma
palavra. Está enterrada onde os ônibus hoje param, diante de Elephant
and Castle. Agora, eu acredito que essa poeta que nunca escreveu uma
palavra e que jaz na encruzilhada ainda vive. Ela vive em você e em mim,
e em muitas outras mulheres que não estão aqui hoje à noite, pois estão
lavando a louça e botando as crianças para dormir. Mas ela vive, pois os
grandes poetas não morrem; são presenças constantes; precisam apenas
de uma oportunidade para caminhar entre nós em carne e osso. Essa
oportunidade, penso eu, logo estará ao alcance de vocês. Pois acredito
que, se vivermos por aproximadamente mais um século — estou falando
da vida comum que é a vida real, e não das vidinhas isoladas que temos
individualmente —, e se tivermos quinhentas libras e quartos próprios;
se cultivarmos o costume da liberdade e a coragem de escrever
exatamente o que pensamos; se escaparmos um pouco da sala de estar
comum para enxergar os seres humanos não só em relação uns com os
outros, mas com a realidade; e também com o céu, as árvores ou qualquer
coisa que possa existir em si mesma; se olharmos para além do fantasma
de Milton, pois nenhum ser humano deve encobrir nossa visão; se
encararmos o fato (pois é um fato) de que não há nenhum braço em que
nos apoiarmos, mas que seguimos sozinhas e que nossa relação é com o
mundo da realidade, não só com o mundo dos homens e mulheres; então
a oportunidade surgirá, e a poeta morta que foi a irmã de Shakespeare irá
vestir o corpo que tantas vezes abandonou. Extraindo sua vida da vida
das desconhecidas que foram suas precursoras, como o irmão dela fez no
passado, ela irá nascer. Quanto à sua vinda sem essa preparação, sem
esse esforço de nossa parte — sem a certeza de que, quando renascer, ela
verá que é possível viver e escrever sua poesia —, isso não podemos
esperar, pois seria impossível. Mas insisto que ela virá se trabalharmos
por ela, e que portanto trabalhar, mesmo na pobreza e na obscuridade,
vale a pena.

80. Whitehall é uma rua que vai de Trafalgar Square até Parliament Square e que abriga
inúmeros prédios do governo britânico, além de estátuas de homens célebres e um
memorial de guerra. A estátua do duque de Cambridge, citada ao final do capítulo 2, se
localiza em Whitehall. [N. de T.] ↩
81. No original, a letra e o pronome “I”, que significa “eu”. [N. de T.] ↩
82. Anne Jemima Clough (1820–1892) foi sufragista e defensora da educação das mulheres. Foi
também a primeira diretora do Newnham College e dá nome ao Clough Hall, salão onde
Virginia Woolf fez seu discurso em 1928. Sarah Emily Davies (1830–1921) também foi
sufragista e defensora da educação das mulheres, e uma das primeiras diretoras do Girton
College. [N. de T.] ↩
83. O patriarca da família Forsyte no livro A saga dos Forsytes, de John Galsworthy (1867–
1933). [N. de T.] ↩
84. Referências aos escritos de Rudyard Kipling (1865–1936), prêmio Nobel de literatura de
1907, que escreveu romances, contos e poemas sobre o imperialismo britânico e os militares
na Índia. [N. de T.] ↩
85. Sir Walter Alexander Raleigh (1861–1922) foi o primeiro detentor da cátedra de literatura
inglesa da universidade de Oxford. Ao longo de sua carreira, escreveu obras sobre escritores
como Stevenson, Milton, Wordsworth e Shakespeare, mas, após a eclosão da Primeira
Guerra Mundial, seus interesses se voltaram quase que exclusivamente ao militarismo.
Virginia Woolf ajudou a compilar suas cartas postumamente, em 1926. [N. de T.] ↩
86. As citações foram tiradas da matéria “Literature in Italy”, do jornal The Times de 26 de maio
de 1928. O ditador fascista Benito Mussolini (1883–1945), Il Duce, ascendeu ao poder na
Itália em 1922. [N. de T.] ↩
87. A Tabela de Precedência do Almanaque Whitaker relacionava a hierarquia formal da
sociedade britânica, dos reis até os cavalheiros. A ordem de Bath é a terceira ordem de
cavalaria mais alta, estabelecida pelo rei George I em 1725. Os Mestres de Insanidades
(Masters in Lunacy, no original) eram funcionários do poder judiciário que fiscalizavam os
hospitais psiquiátricos e cuidavam de outras questões relativas aos doentes mentais. [N. de
T.] ↩
88. The Art of Writing [A arte da escrita], de sir Arthur Quiller-Couch. [N. da A.] ↩
89. Em setembro de 1929, a editora Hogarth Press, de propriedade de Virginia e Leonard Woolf,
publicou o romance policial Death of My Aunt [Morte da minha tia], do escritor C. H. B.
Kitchin. Foi um sucesso comercial. [N. de T.] ↩
90. Sir Archibald Bodkin foi advogado e chefe da procuradoria pública no período de 1920 a
1930, envolvido no julgamento por obscenidade do livro The Well of Loneliness e de outras
obras literárias. É a terceira referência que Woolf faz a personagens importantes desse
julgamento, depois do juiz, sir Chartres Biron, e do ministro do interior, sir William
Joynson-Hicks. [N. de T.] ↩
91. A Short History of Women [Uma breve história das mulheres], de John Langdon Davies. [N.
da A.] ↩
Virginia Woolf (1882-1941) foi uma das mais influentes escritoras
britânicas. É conhecida por seu principal romance, Mrs. Dalloway
(1925), e por suas dezenas de ensaios pioneiros sobre arte, literatura e
política, entre os quais o mais famoso, Um teto todo seu (1929). Suas
obras de ficção e de não ficção têm um estilo marcante e inovador, e
abordam temas como guerra, arte, poder, gênero e a necessidade de
reformar a sociedade.
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títulos e posição social, ela cometeu o amargo erro de rejeitar a mão
do homem por quem
se apaixonou. No entanto, anos depois, um reencontro abala seu
coração
Mais do que uma história de amadurecimento e segundas chances,
Persuasão é outra
obra-prima de Jane Austen. Último romance escrito em vida pela
autora, o livro se tornou
conhecido por um humor sutil, uma linguagem fina e personagens
icônicos. Além disso,
discute as dificuldades da posição de uma mulher na sociedade, e
os dramas impostos pela
vida pública sobre a privada.
Esta edição especial da Antofágica conta com tradução inédita de
Isadora Prospero e 40
pinturas a óleo da artista Nina Horikawa. A escritora Clara Alves
assina a apresentação do
livro com um texto sobre diferentes leituras de Jane Austen na
adolescência e na vida
adulta. Nos posfácios, a autora Paula Gicovate escreve sobre
histórias de amor e segundas
chances, a professora de Literatura Inglesa e Comparada da USP
Sandra Guardini destaca
aspectos técnicos como conflito, trama e personagens, e Renata
Cristina Pereira, mestre
em filosofia pela Unifesp, escreve sobre o conceito filosófico do
amor e exemplos do amor
na literatura.
O QR Code na cinta direciona a duas videoaulas sobre o livro
disponíveis no YouTube
com Marcela Santos Brigida, professora e doutora em
Literatura Inglesa pela UERJ.

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O cortiço
Azevedo, Aluísio
9786580210794
384 páginas

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Na segunda temporada da Nano, a coleção de bolso da


Antofágica, apresentamos O cortiço, um dos livros mais
emblemáticos da literatura brasileira.

Nas ruas cariocas do final do século XIX havia um pequeno


amontoado de gente de todo tipo. Em busca de um alojamento que
não fosse distante do trabalho, as pessoas se encontravam em um
tipo de moradia muito peculiar: o cortiço. Lá morava também João
Romão, um imigrante português que sonhava com dinheiro e que é
um dos personagens principais dessa história. Além do próprio
cortiço, é claro.

Publicado em 1890, o romance de Aluísio Azevedo faz de


um conjunto habitacional coletivo um microcosmo de vidas e
experiências distintas, contidas ali para representar questões como
diversidade e as condições precárias da vida dos menos
afortunados, em contraponto com a ganância dos proprietários. Ao
refletir sobre a ambição e a falta de escrúpulos dos personagens, o
leitor é levado a um questionamento: até que ponto as pessoas
podem ir quando se trata de dinheiro?

Como apoio e contextualização para a leitura, a coleção Nano


apresenta um QR Code no final do livro que, ao ser escaneado,
direciona para um portal de leitura dos textos extras da edição em
capa dura da Antofágica. Em O cortiço você encontra disponível
um texto de apresentação do escritor Alê Garcia, além de posfácios
do historiador Luiz Antonio Simas e dos escritores José Falero e
Sílvio Roberto Oliveira.

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Memórias Póstumas de Brás Cubas
Assis, Machado
9786580210022
480 páginas

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Brás Cubas está morto. Mas isso não o impede de relatar em seu
livro os acontecimentos de sua existência e de sua grande ideia fixa:
lançar o Emplasto Brás Cubas. Deus te livre, leitor, de uma ideia
fixa. O medicamento anti-hipocondríaco torna-se o estopim de uma
série de lembranças, reminiscências e digressões da vida do
defunto autor. Publicado em 1881, escrito com a pena da galhofa e
a tinta da melancolia, Memórias Póstumas de Brás Cubas é,
possivelmente, o mais importante romance brasileiro de todos os
tempos. Inovador, irônico, rebelde, toca no que há de mais profundo
no ser humano. Mas vale avisar: há na alma desse livro, por mais
risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero. A edição da
Antofágica conta com 88 ilustrações de um dos expoentes da arte
no Brasil, Candido Portinari, que chegam pela primeira vez ao
grande público e dão uma nova camada de interpretação ao
clássico. livro traz ainda com notas inéditas e posfácio de Rogério
Fernandes dos Santos, especialista na obra machadiana, um perfil
do autor escrito por Ale Santos (@savagefiction), além de uma
introdução de Isabela Lubrano, do canal Ler Antes de Morrer.

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A Metamorfose
Kafka, Franz
9786580210039
232 páginas

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Um dos maiores clássicos da literatura mundial, agora em nova


tradução do alemão e com mais de 90 ilustrações do artista
Lourenço Mutarelli.xtos da história. Além de tradução inédita feita
por Petê Rissatti, essa nova edição traz 93 ilustrações exclusivas,
por meio das quais o artista e escritor Lourenço Mutarelli interpreta o
processo de transformação de Gregor. Inclui-se, por fim, um ensaio
de Flavio Ricardo Vassoler, doutor em literatura comparada, sobre a
contemporaneidade de Franz Kafka. Esta versão em ebook traz um
material inédito e exclusivo: um texto de Ana Kiffer, escritora e
professora do Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e
Contemporaneidade da PUC-Rio.

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