Vinter Ravena Literatura No Ensino Medio Com Vistas A Formação Omnilateral

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
DOUTORADO EM LETRAS

RAVENA BRAZIL VINTER

LITERATURA NO ENSINO MÉDIO COM VISTAS À FORMAÇÃO


OMNILATERAL: PRINCÍPIOS PARA A SELEÇÃO DE REPERTÓRIOS DE
LEITURA

VITÓRIA/ES
2022
RAVENA BRAZIL VINTER

LITERATURA NO ENSINO MÉDIO COM VISTAS À FORMAÇÃO


OMNILATERAL: PRINCÍPIOS PARA A SELEÇÃO DE REPERTÓRIOS DE
LEITURA

Tese da linha de pesquisa “Literatura:


alteridade e sociedade”, apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras do
Centro de Ciências Humanas e Naturais da
Universidade Federal do Espírito Santo, como
requisito parcial para obtenção do Título de
Doutora em Letras.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Amélia Dalvi.

VITÓRIA/ES
2022
A Heitor e Henrique, motivos de minha luta; A Eduardo, companheiro de jornada; A
Almerinda, minha maior incentivadora; Aos que lutam por condições dignas de existência.
Quando olhamos para trás, ao fim de uma jornada, percebemos que não andamos sós, pelo
contrário, muitas foram as mãos que nos deram suporte nos dias ruins e nos dias bons. Por
isso, agradecer é necessário. Assim, agradeço:

À minha família, de maneira especial à minha mãe, Almerinda, por seu apoio incondicional,
por sua cumplicidade, por seu amor, por cuidar de mim e dos meus. Ao meu esposo, Eduardo,
pela parceria na vida, por seu cuidado, por sonhar comigo; aos meus pequenos Heitor e
Henrique por serem parte de mim e me moverem a almejar um mundo melhor para todos. A
meu pai Antônio e a meus avós Jonas e Leguina pelos ensinamentos, como gostaria de poder
abraçá-los;

Aos amigos, por se fazerem presentes em tempos de alegria e de pranto, por estenderem suas
mãos amigas e – em alguns momentos – me carregarem no colo, pelo abraço, pelo cuidado,
pelo carinho. Em especial, a Rosana Dias Valtão, pela escuta, pelos conselhos, pela
companhia ao longo das idas e vindas para Vitória; e a Andrea de Assis, irmã da vida que
cuidou de mim quando mais precisei, auxiliando nos cuidados com meus pequenos para que
eu pudesse concluir essa caminhada.

À Universidade Federal do Espírito Santo e ao Programa de Pós-graduação em Letras, pela


luta em prol de um ensino público de qualidade e por permitir que tantos possam realizar o
sonho de concluir um curso universitário;

Aos colegas do grupo de pesquisa Literatura e Educação, pelas partilhas, pelas aprendizagens,
pelos afetos, pelas amizades;

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Espírito Santo pelo apoio, por permitir que o
sonho do doutorado acontecesse;

À Secretaria de Estado da Educação do Espírito Santo, pela concessão de licença parcial para
a conclusão de meus estudos;

À Prefeitura Municipal de Guarapari, pela licença integral sem vencimentos para que eu
pudesse concluir esse sonho; em especial a Sônia Meriguete e a Rosana Pinheiro. Vocês são
inspiração;

À Escola Angélica Paixão, aos colegas de profissão, à Diretora extremamente competente,


humana e amiga Tânia Márcia, à Pedagoga e amiga Dilcea Lourenço e à companheira na
estrada das Letras Cláudia Rodrigues;

À Banca de qualificação e à Banca de defesa, pela leitura atenta, pelos saberes


compartilhados, pela defesa de uma educação pública de qualidade para todos;

Por fim, agradeço à minha orientadora, Professora Dra. Maria Amélia Dalvi, pela orientação
acadêmica primorosa, por me dar instrumentos para que eu mudasse meu modo de ver o
mundo, em especial, a educação, pela formação científica, profissional e pessoal. Além disso,
com Maria Amélia, aprendi grandes lições de empatia, amor ao próximo, luta por direitos que
não podem ser negados, persistência. Quando mais precisei, Maria Amélia se mostrou muito
mais que uma orientadora, uma grande amiga, alguém que me pegou pela mão e disse com
suas ações: “ – Vamos juntas!” E fomos!
Obrigada, obrigada, obrigada!
Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo
e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a
pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma
distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo... O senhor tinha retirado
dele os óculos, e Miguilim ainda apontava, falava, contava tudo como era, como tinha
visto (ROSA, 1984, p. 81).
RESUMO

O presente trabalho se insere nas discussões do grupo de pesquisa “Literatura e Educação” e, a


partir de uma pesquisa de caráter teórico-bibliográfico, objetivou elaborar, com base nos
estudos da pedagogia histórico-crítica, princípios gerais para a seleção de leituras literárias a
serem realizadas pelos estudantes de nível médio, a partir das aulas da disciplina escolar de
Língua Portuguesa, visando a seu máximo desenvolvimento no contexto contemporâneo.
Fundamentada no materialismo histórico e dialético (DUARTE, 2000; MARTINS, 2020), a
pesquisa tomou como pressuposto a defesa que a pedagogia histórico-crítica faz sobre o papel
da educação escolar na transmissão do saber elaborado (SAVIANI, 2013), destacando a
importância central de um ensino de qualidade para a classe que vive do trabalho, tendo em
vista que os dominados dominem aquilo que os dominantes dominam – para que seja possível
a superação da atual sociedade dividida em classes antagônicas. Pensando nessas questões,
buscou-se responder às seguintes perguntas: a) Quais os objetivos da educação escolar para a
classe que vive do trabalho?; b) Por que a teoria pedagógica histórico-crítica defende o clássico
como fundamento para a seleção de conteúdos na educação escolar?; c) Quais critérios tornam
uma obra clássica e o que diferencia o clássico do antigo, do canônico, do conservador?; d)
Como selecionar um repertório de leituras literárias que favoreçam o desenvolvimento
omnilateral dos alunos, sem desconsiderar as contradições impostas pela organização social
coetânea?; e) Como deve ocorrer o trabalho pedagógico com a Literatura no contexto escolar
de Ensino Médio para que essas leituras, selecionadas a partir de princípios norteadores afins à
teoria pedagógica histórico-crítica, sejam feitas? Dessa forma, buscamos refletir sobre o que
deve ser ensinado no currículo de Literatura, reconhecendo a importância do trabalho
pedagógico intencional, planejado e sistemático com vistas a – a partir da mediação no trabalho
com o texto literário clássico – promover o desenvolvimento do aluno de Ensino Médio,
possibilitando o pensamento por conceitos, a fim de que seja possível conhecer concretamente
a realidade na indissociabilidade entre as dimensões objetiva-subjetiva por meio da abstração.

Palavras-chave: clássicos literários; ensino de Literatura; Ensino Médio; leitura literária;


pedagogia histórico-crítica.
ABSTRACT

The present scientific work is inserted in the discussions of the research group "Literature and
Education" and, based on a bibliographical and theoretical research, it aimed at elaborating,
based on the studies of critical-historical pedagogy, general principles for the selection of
literary readings, to be performed by high school students, from the classes of Portuguese
Language, aiming at their maximum development in the contemporary context. Based on the
dialectical historical materialism (DUARTE, 2000; MARTINS, 2020), the research took as
assumption the defense that Critical Historical Pedagogy makes about the role of school
education in the transmission of the elaborated knowledge (SAVIANI, 2013), highlighting the
central importance of a quality education for the class that lives from work, aiming that the
dominated ones dominate what the dominant ones dominate - so that it is possible to overcome
the current society divided into antagonistic classes. With these issues in mind, we sought to
answer the following questions: a) What are the objectives of school education for the working
class? b) Why does the historical-critical pedagogical theory defend the classic as the basis for
content selection in school education? c) What criteria make a work classic and what
differentiates the classic from the old, from the canonical, from the conservative? d) How to
select a repertoire of literary readings that support the omnilateral development of the students,
without disregarding the contradictions imposed by the contemporary social organization? e)
How should the pedagogical work with Literature in the high school context take place so that
these readings, selected based on guiding principles related to the historical-critical pedagogical
theory, are done? Thus, we seek to reflect on what should be taught in the Literature curriculum,
recognizing the importance of the intentional, planned and systematic pedagogical work in
order to - from the mediation in the work with the classic literary text - promote the development
of the high school student and enable him to thought by concepts, so that it is possible to know
reality concretely in the inseparability between the objective-subjective dimensions through
abstraction.

Keywords: literary classics; teaching Literature; High School; literary reading; critical-
historical pedagogy.
LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Sugestões de Obras literárias básicas para o percurso formativo.............................51


Quadro 2 – Teses e dissertações.................................................................................................57
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 15
1 O QUE DIZEM OS DOCUMENTOS OFICIAIS SOBRE O ENSINO DE LITERATURA? .. 25
1.1 ORIENTAÇÕES CURRICULARES PARA O ENSINO MÉDIO (OCEM) ............................. 25
1.2 BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR (BNCC) ........................................................... 31
1.3 O CURRÍCULO DO ESPÍRITO SANTO .................................................................................. 40
1.3.1 Currículo do Espírito Santo – Ensino Médio – Língua Portuguesa .............................. 41
1.3.2 Itinerário Formativo – Ciências Humanas e Sociais aplicadas e Linguagens e Códigos
e suas Tecnologias........................................................................................................................ 49
1.4 PNLD LITERÁRIO .................................................................................................................... 54
2 TRABALHO, EDUCAÇÃO E A LUTA DE CLASSES ............................................................... 56
2.1 O QUE DIZEM AS TESES E DISSERTAÇÕES SOBRE A SELEÇÃO DE REPERTÓRIO DE
LEITURAS PARA O ENSINO DE LITERATURA? ...................................................................... 56
2.1.1 Trabalho com clássicos e catarse na pedagogia histórico-crítica ................................... 58
2.1.2 Possibilidade de humanização a partir do ensino de Literatura .................................... 64
2.1.3 Clássicos de Machado de Assis para a formação literária no Ensino Médio ................ 67
2.1.4 Ação docente e possibilidades do ato de ler ..................................................................... 70
2.1.5 Romance e realismo na educação escolar......................................................................... 73
2.1.6 O poema clássico na educação escolar .............................................................................. 77
2.2 TRABALHO E EDUCAÇÃO .................................................................................................... 80
2.3 EDUCAÇÃO ESCOLAR E A LUTA DE CLASSES ................................................................ 82
2.4 POLÍTICAS EDUCACIONAIS NO BRASIL E O ESVAZIAMENTO DA ESCOLA ............. 85
2.5 PEDAGOGIAS A SEREM SUPERADAS ................................................................................. 90
2.5.1 Teorias não críticas e seu impacto na educação escolar ................................................. 92
2.5.1.1 Pedagogia Tradicional ....................................................................................................... 92
2.5.1.2 Pedagogia Nova................................................................................................................. 92
2.5.1.3 Pedagogia Tecnicista ......................................................................................................... 94
2.5.2 Teorias crítico-reprodutivistas e sua falta de perspectiva .............................................. 95
2.5.2.1 Teoria do sistema de ensino como violência simbólica .................................................... 96
2.5.2.2 Teoria da escola como aparelho ideológico de Estado...................................................... 96
2.5.2.3 Teoria da escola dualista ................................................................................................... 97
2.5.3 Pedagogia histórico-crítica: uma proposta de superação................................................... 98
3. CONHECIMENTO, CURRÍCULO E POLÍTICAS EDUCACIONAIS ................................. 104
3.1 CONHECIMENTO, CURRÍCULO E POLÍTICAS EDUCACIONAIS .................................. 105
3.1.1 Pedagogias do aprender a aprender ............................................................................... 109
3.1.2 Pedagogia das competências............................................................................................ 111
3.2 CURRÍCULO E A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA..................................................... 114
3.2.1 Saberes integrantes do processo educativo e prática social .......................................... 118
4. CONTEÚDOS CLÁSSICOS E DESENVOLVIMENTO DO PSIQUISMO ........................... 124
4.1 CÂNONE LITERÁRIO ............................................................................................................ 124
4.2 CONTEÚDOS CLÁSSICOS E A DEFESA DA TRANSMISSÃO DO SABER ELABORADO
......................................................................................................................................................... 126
4.3 MEDIAÇÃO NA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA ....................................................... 131
4.4 PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA E O DESENVOLVIMENTO DO PSIQUISMO ....... 134
4.4.1 O processo educativo e o desenvolvimento psíquico ..................................................... 140
4.4.1.1 Educação escolar e desenvolvimento dos processos funcionais ..................................... 150
4.4.2 O cérebro adolescente e a atividade-guia ....................................................................... 155
4.4.2.1 Atividade-guia e desenvolvimento .................................................................................. 157
4.4.2.2 Adolescência e desenvolvimento do psiquismo .............................................................. 160
5 ARTE COMO NECESSIDADE ONTOLÓGICA E SELEÇÃO DE REPERTÓRIO PARA
TRABALHO EM SALA DE AULA ................................................................................................ 167
5.1 FORMAÇÃO HUMANA E DIMENSÃO ESTÉTICA DA EXPERIÊNCIA .......................... 169
5.1.1 Dimensão estética nos manuscritos de Marx ................................................................. 172
5.2 PONTO DE PARTIDA DO MÉTODO LUKÁCSIANO E O REFLEXO DA REALIDADE 177
5.2.1 Singular, particular e universal ...................................................................................... 184
5.2.2 Catarse e mudança na subjetividade do indivíduo........................................................ 188
5.2.3 Valor da historicidade ...................................................................................................... 191
5.3 ROMANCE E REALISMO EM LUKÁCS .............................................................................. 194
5.3.1 Realismo e mimese ............................................................................................................ 194
5.3.2 Romance como epopeia burguesa ................................................................................... 198
5.3.3 Fisionomia intelectual das personagens ......................................................................... 201
5.3.4 Arte e educação escolar.................................................................................................... 206
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................... 215
REFERÊNCIAS ................................................................................................................................ 220
15

INTRODUÇÃO

Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos
de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela
num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás,
gordos, enormes (RAMOS, 1997, p. 91).

A pungente narrativa da morte da cachorra baleia em Vidas Secas marca meu grande encontro
com os clássicos da Literatura brasileira. À época, 1998, cursava o antigo 1º ano acadêmico em
uma tradicional escola de Guarapari, minha professora de Língua Portuguesa indicou a leitura
que seria posteriormente avaliada nos modelos tradicionais. Não sabia, contudo, que após
conhecer a triste história de Fabiano e de sua família – que viveram, no mais profundo sentido
da palavra, a fome, a pobreza, a miséria, a injustiça – algo dentro de mim se modificaria. Não
sabia que 14 anos depois estaria eu mesma refletindo sobre minha prática de ensino de
Literatura, ao me tornar professora de Língua Portuguesa; não sabia também que, 23 anos
depois, estaria aqui escrevendo as considerações iniciais desta tese que se une a outras vozes
para defender o ensino de Literatura em sala de aula, a educação escolar como responsável pela
transmissão do saber elaborado para a promoção de uma sociedade mais justa e mais humana.

A história daquela família pobre, injustiçada, que partilhava até mesmo o alimento do
desnutrido animal – quando este lhes trazia preás –, cachorra que tratavam com o maior carinho,
mas que precisou ser sacrificada por estar doente, foi um divisor de águas em minhas
experiências como leitora. Hoje, um pouco mais madura, com vistas à minha prática docente,
refaço a leitura com novos olhos, à medida que tomo consciência de que a leitura é uma ação
política que precisa ser sistematizada e ensinada, como afirma Dalvi (2012, p. 22):

Leitura não é uma experiência solitária, mas solidária. Ler é inserir-se no caudaloso
rio da múltipla e instável experiência humana, humanizando-se: toda palavra exige
contrapalavras. Desse modo, não existe a figura do leitor isento, alienado do mundo,
que se “esconde atrás dos livros”: ler (o que lemos, como lemos e o que fazemos com
o que lemos) é uma ação política. Um leitor que se acredita isento de ação (com a
desculpa de “eu só estou lendo”, como se ler fosse uma ação passiva) é um mau leitor.
Por isso, em regimes ditatoriais (explícitos ou velados) há tanto cuidado / preocupação
com a circulação de textos. Por isso também a indústria cultural investe tão
maciçamente em obras que ocupem nosso tempo sem nos lançar ao mínimo de
desconforto (e, portanto, de questionamento).

Atuando como professora de Ensino Médio da Rede Estadual de Educação do Espírito Santo
desde 2012, pensando em minha própria formação como pessoa e como docente, sempre me
questionei sobre a forma como a Literatura deveria ser ensinada nas escolas. As inquietações
se justificam em função dos estudos literários – sobretudo no Ensino Médio – serem realizados
a partir de um viés histórico positivista (uma história sequencial e linear); da carência de leitura
16

de textos integrais em sala de aula; de uma possível má formação ao longo da vida acadêmica
que leva – muitas vezes – os alunos à incapacidade de perceber elementos básicos da leitura
(DALVI, 2013, p. 74, 75) e torna, portanto, os textos clássicos mais complexos e
desinteressantes para esse público.

Pensando, todavia, na importância da transmissão do saber elaborado (SAVIANI, 2013),


principalmente para os filhos da classe trabalhadora, cuja escola pode ser único meio de contato
com os conteúdos clássicos; ancorando-nos também na relevância da educação escolar e –
consequentemente – da educação literária para o possível desenvolvimento omnilateral do
estudante; desenvolvemos a presente pesquisa que tem como objetivo geral elaborar, com base
nos estudos da pedagogia histórico-crítica (sobre a função social da escola, sobre a organização
do trabalho pedagógico, sobre o papel do conhecimento objetivo e dos conteúdos clássicos na
produção de currículo escolar e sobre a atividade-guia ou dominante na adolescência),
princípios gerais para a seleção de leituras literárias a serem realizadas pelos estudantes de nível
médio, a partir das aulas da disciplina escolar de Língua Portuguesa, visando a seu máximo
desenvolvimento no contexto contemporâneo.

Além dos fatores evidenciados, a motivação para tal estudo amadureceu após a conclusão da
pesquisa de mestrado intitulada (Não) leituras literárias em contexto escolar: um estudo de
caso a partir de versão integral e adaptações de O cortiço, de Aluísio Azevedo (2017), que, por
meio de uma pesquisa de campo combinada com questionário e grupo focal realizados em uma
escola estadual do município de Guarapari - ES, buscou entender como são as relações entre
livros e leitores a partir de três versões da obra O cortiço, de Aluísio Azevedo, concluindo –
entre outras questões – que existe grande dificuldade de compreensão dos textos clássicos1
(tratados na ocasião como canônicos) por parte dos alunos e que existe na escola-campo um
público leitor adepto aos chamados Best Sellers.

A tese que ora se desenvolve se insere nas discussões do grupo de pesquisa “Literatura e
Educação”, coordenado pela professora Dr.ª Maria Amélia Dalvi, e fundamenta-se na teoria
pedagógica histórico-crítica que, por sua vez, se lastreia no materialismo histórico e dialético
(DUARTE, 2000; MARTINS, 2020). Buscou responder às seguintes perguntas: a) Quais os
objetivos da educação escolar para a classe que vive do trabalho?; b) Por que a teoria
pedagógica histórico-crítica defende o clássico como fundamento para a seleção de conteúdos

1
O conceito de clássico será oportunamente retomado e esclarecido.
17

na educação escolar?; c) Quais critérios tornam uma obra clássica e o que diferencia o clássico
do antigo, do canônico, do conservador?; d) Como selecionar um repertório de leituras literárias
que favoreçam o desenvolvimento omnilateral dos alunos?; e) Como deve ocorrer o trabalho
pedagógico com a Literatura no contexto escolar de Ensino Médio para a realização dessas
leituras integrais?

Dessa forma, partindo dos pressupostos defendidos pela pedagogia histórico-crítica de que:

a) a função da educação escolar é especificamente educativa, ligada à transmissão do


saber sistematizado, acumulado pelo homem ao longo da história;

b) o trabalho pedagógico deve ser organizado a partir da seleção de elementos culturais


que necessitam ser assimilados pelos estudantes, a fim de que eles progressivamente se
humanizem;

c) deve-se distinguir entre o que é principal e o que é secundário, a fim de que o currículo
escolar seja norteado pelo conhecimento objetivo e pelos conteúdos clássicos;

d) a atividade-guia ou dominante na adolescência é representada pela comunicação


íntima pessoal e pela atividade profissional de estudo;

chegamos ao seguinte problema: Quais são os princípios que devem nortear a seleção de leituras
literárias a serem realizadas na educação básica de nível médio, a partir das aulas da disciplina
escolar de Língua Portuguesa, visando ao máximo desenvolvimento dos estudantes, no contexto
contemporâneo?

Dessa forma, buscamos pensar o que deve ser ensinado no currículo de Literatura e como esse
conhecimento deve ser mediado pelo professor2, uma vez que – com base na pedagogia
histórico-crítica – consideramos a importância do docente no processo:

A pedagogia histórico-crítica considera como um elemento primordial na educação


escolar o papel desempenhado pelo professor na sua função de transmitir, a cada
aluno, as produções culturais que, tendo sido desenvolvidas pelo gênero humano no
decorrer da história social, possam se constituir em elementos formadores da
humanidade nos indivíduos. O processo de reconhecimento da cultura como produção

2
À luz dos estudos de Martins (2015), esclareceremos que o que medeia a relação dos estudantes com o
conhecimento é o signo culturalmente elaborado, que será internalizado e poderá requalificar o psiquismo do
estudante, potencializando seu desenvolvimento; é importante registrar, então, que, ao dizermos que o
conhecimento deve ser mediado pelo professor, estamos usando um sentido figurado, pois não é o professor como
pessoa física que mediará essa relação, mas o professor na condição de portador do signo (síntese conceitual) que
será transmitido aos estudantes.
18

imanente à atividade humana desencadeia o desenvolvimento da consciência, sem o


qual não ocorre a humanização dos indivíduos em suas formas mais desenvolvidas e
plenas (ASSUMPÇÃO; DUARTE, 2017, p. 170).

O papel do professor, portanto, é, para a pedagogia histórico-crítica, de suma importância, uma


vez que ele deve possibilitar ao aluno a passagem do conhecimento empírico ao concreto, pela
mediação do abstrato, dando instrumentos ao sujeito para que ele possa passar do pensamento
sincrético ao sintético. Saviani (2015, p. 28) afirma que “o acesso ao concreto não se dá sem a
mediação do abstrato. (...) A construção do pensamento ocorre, pois, da seguinte forma: parte-
se do empírico, passa-se pelo abstrato e chega-se ao concreto”; dessa forma, parte-se do
princípio de que o docente – para ensinar – já tenha ultrapassado o conhecimento empírico e
chegado ao concreto.

Trazemos à baila as discussões de Candido (2011, p. 175) sobre a Literatura enquanto bem
incompressível, ou seja, que não pode ser negado a ninguém. Após refletir sobre a importância
da Literatura para o homem, o autor conclui que ela se constitui como uma “necessidade
universal” e atua como fator humanizador; considera ainda que “a Literatura pode ser um
instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos
direitos ou de negação deles (...)” (CANDIDO, 2011, p. 188). A partir das considerações do
autor, podemos pensar sobre a importância do ensino de Literatura, da prática de leitura literária
na escola, espaço privilegiado para a finalidade de “humanização do homem”. Candido (2011,
p. 182) entende por humanização:

[...] o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais,
como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o
próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida,
o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do
humor. A Literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos
torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.

Pensando sobre o ensino de Literatura no contexto escolar, compreendemos, com Becalli e


Schwartz (2014, p. 14), que, embora a escola deva se constituir como espaço social organizado
que contribua para a formação de diversos tipos de leitores, a aprendizagem da leitura não tem
se tornado possível somente pela inserção do aluno nesse espaço, ou seja, não basta ofertar
livros aos alunos, se não houver um trabalho efetivo que aproxime o educando do texto escrito
e que transmita conteúdos necessários para a plena apropriação e objetivação do conhecimento
humano.

Ademais, devemos considerar que o modelo de ensino de leitura no Brasil não se preocupou,
por anos, segundo Becalli e Schwartz (2014, p. 16), em formar leitores, mas sim meros
19

codificadores e decodificadores da linguagem escrita. O que ainda nos inquieta é que esse
modelo de leitor instituído pelo sistema, sobretudo hoje pela indústria cultural, parece não ter
mudado, uma vez que, segundo Perrotti (1999, p. 135), as políticas públicas de promoção do
hábito de leitura, de modo geral, atendem, principalmente, à necessidade da indústria que
precisa produzir e vender livros, sem a contrapartida de uma política efetiva de formação de
mediadores qualificados para o texto de teor literário e sem discutir as condições materiais
objetivas nas quais os leitores poderão (ou não) se dedicar à leitura. O autor considera que o
novo operário do capitalismo precisa estar inserido na ideia de “hábito de leitura”. Segundo o
autor, os livros chegam aos leitores, mas como não promovem uma “consciência liberada”, não
passam do nível de “fetiche” – restringem-se ao plano do consumo e do treinamento de
habilidades requeridas pelo mercado de trabalho. Tal hábito não forma um leitor capaz de ir de
encontro ao sistema e reivindicar seus direitos, não presta, portanto, serviço à formação
omnilateral do ser humano.

Tomamos a escola enquanto espaço propício à formação de leitores, uma vez que muitos
dependem unicamente dela para garantir contato com o saber sistematicamente produzido pela
humanidade ao longo dos tempos. Embora entendamos com Geraldi (2010, p. 110) que uma
escolarização que não seja acompanhada por profunda transformação das condições sociais não
fornecerá reais condições de leitura, temos o compromisso com a sociedade de – enquanto
professores – lutar pela formação plena dos indivíduos que passam por nós e, enquanto fazemos
isso, nos organizamos para a transformação da própria sociedade – pois quando os seres
humanos se transformam (como acontece por meio da educação escolar) a própria sociedade
(como criação humana) se transforma.

A fundamentação teórico-metodológica da pesquisa se deu com base na epistemologia


materialista histórica e dialética, que preza pela necessidade de superação da percepção dos
fenômenos em sua aparência, buscando, antes a essência dos fenômenos (ou seja, a passagem
do empírico ao concreto, pela mediação do abstrato). Dessa forma, prezamos por um estudo
teórico e bibliográfico.

Reiteramos que o principal objetivo deste trabalho foi elaborar, com base nos estudos da
pedagogia histórico-crítica (sobre a função social da escola, sobre a organização do trabalho
pedagógico, sobre o papel do conhecimento objetivo e dos conteúdos clássicos na produção de
currículo escolar e sobre a atividade-guia ou dominante na adolescência), princípios gerais para
a seleção de leituras literárias a serem realizadas pelos estudantes de nível médio, a partir das
20

aulas da disciplina escolar de Língua Portuguesa, visando a seu máximo desenvolvimento no


contexto contemporâneo. Pretendemos também compreender o papel do clássico no interior da
teoria pedagógica histórico-crítica, como elemento-chave no processo de definição curricular;
sistematizar critérios que tornam uma obra literária clássica, diferenciando-a do canônico, do
tradicional e do conservador; objetivar a seleção de leituras literárias com vistas à promoção do
desenvolvimento omnilateral3 dos alunos; e evidenciar a importância de um trabalho
pedagógico bem feito para que as leituras literárias no processo de educação escolar sejam
realizadas para a formação humana dos estudantes.

Para pensar na importância do ensino de Literatura na educação escolar, sobretudo por meio de
textos e conhecimentos clássicos, ancoramo-nos na epistemologia materialista histórica,
lançando mão do método dialético. Saviani (2015) evidencia o caráter da dialética como
expressão do movimento da realidade e é, justamente, a necessidade de compreender em
profundidade uma realidade própria ao trabalho pedagógico (a saber, os mais adequados
critérios para escolhas de obras literárias a serem lidas nas aulas de Literatura, no interior da
disciplina escolar de Língua Portuguesa) o que está na origem e na finalidade deste trabalho.

Evidentemente, sabemos que não basta termos critérios para escolhas de obras literárias a serem
lidas nas aulas de Literatura para que efetivamente essas obras se tornem disponíveis e
acessíveis; tampouco se estiverem disponíveis e acessíveis há garantia de que sejam apropriadas
por professores e estudantes. Justamente em função da desigualdade social e, assim, da
incapacidade de a protodemocracia na sua forma burguesa assegurar condições dignas de
trabalho e estudo para todos, sabemos que o delineamento de critérios é insuficiente, assim
como é insuficiente a mera aquisição e distribuição de exemplares. Todavia, entendemos que,
nos limites e contradições em que nos movemos, é preciso que, como profissionais da educação,
tenhamos clareza sobre essa questão da escolha de obras literárias que serão ou não objeto de
nossa dedicação no trabalho conjunto com nossos alunos, pois, ainda que de modo limitado
temos eventualmente algum espaço de escolha e alguma possibilidade de contribuir com uma
formação que vá paulatinamente se aproximando daquela necessária para que haja uma
transformação social efetiva.

3
Temos consciência de que esse objetivo formativo que visa ao desenvolvimento omnilateral dos seres humanos
é incompatível com o modo de produção hegemônico e com os sistemas sociais que o sustentam. Todavia,
entendemos que este é o horizonte a nortear um trabalho pedagógico que vise justamente à superação desses limites
e entraves.
21

Pensando na importância de compreensão do homem como ser histórico, Saviani (2015) elucida
como Marx elabora o materialismo histórico e dialético:

Estabelecendo n’A ideologia alemã o princípio de que não é a consciência dos homens
que determina sua existência, mas, ao contrário, é a vida real que determina a
consciência, Marx desenvolveu a dialética em bases materiais, tendo, no ponto de
partida, indivíduos reais produzindo os seus meios de vida e desencadeando a história
como obra dos próprios homens. Por isso a concepção de Marx é chamada de
materialismo dialético ou materialismo histórico que, às vezes aparecem unificados
na denominação materialismo histórico-dialético (SAVIANI, 2015, p. 27, 28).

Saviani (2015) afirma que a lógica dialética integra o processo de construção do concreto de
pensamento, superando por inclusão a lógica formal.

A lógica dialética não é outra coisa senão o processo de construção do concreto de


pensamento (ela é uma lógica concreta) ao passo que a lógica formal é o processo de
construção da forma do pensamento (ela é, assim, uma lógica abstrata). Por aí se pode
compreender o que significa dizer que a lógica dialética supera por
inclusão/incorporação a lógica formal (incorporação, isto quer dizer que a lógica
formal já não é tal e sim parte integrante da lógica dialética) (...). (SAVIANI, 2015,
p. 28).

Ancorados na epistemologia e no método materialista histórico e dialético, portanto, partimos


do princípio de que a construção do conhecimento se dá historicamente e os elementos da
realidade se inter-relacionam, estando em constante processo, avançando a partir da superação
de contradições, seja por inclusão ou incorporação. Dessa forma, buscamos pesquisas no
catálogo de Teses e Dissertações da Capes que relacionam “repertório de leitura” ou “Literatura
clássica” à “pedagogia histórico-crítica” e, adicionalmente, fomos a outras bases de pesquisa, a
fim de levantar o material que fundamenta nosso trabalho, com o objetivo de avançarmos a
partir dos trabalhos já realizados na área, como os de Figueiredo (2020), Costa (2018) e Ferreira
(2012).

Tais trabalhos, devotados especificamente à questão do ensino-aprendizagem de Literatura,


foram sistematizados, a fim de apontarmos, de um lado, aquilo que já puderam trazer de avanços
em relação às contribuições da teoria pedagógica histórico-crítica para a questão da seleção de
repertórios de leitura literária a serem trabalhados no processo de ensino em contexto escolar;
e, de outro lado, a fim de sinalizarmos aquilo que ainda requer desenvolvimento no interior da
pedagogia histórico-crítica. Eles foram, posteriormente, complementados, ou ampliados, a
partir da discussão que Della Fonte (2020) realiza em Formação omnilateral e a dimensão
estética em Marx, sobre a relação entre formação e dimensão estética, e conectados às ideias de
Lukács (2010), em relação ao realismo e ao valor da obra de arte literária.
22

No processo, dialogamos, também, com autores como Malanchen (2016), em Cultura,


Conhecimento e Currículo: Contribuições da Pedagogia Histórico-crítica, a fim de discutir os
fundamentos do currículo na perspectiva histórico-crítica e as relações entre conhecimento e
conteúdo escolar. Tais contribuições foram pensadas no contexto em que a Base Nacional
Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2018), estruturada a partir da lógica da Pedagogia das
Competências, passou a nortear as políticas educacionais. Para a análise, do documento,
acrescentamos ao rol bibliográfico a obra A Pedagogia Histórico-Crítica, as Políticas
Educacionais e a Base Nacional Comum Curricular, organizada por Malanchen, Matos e Orso
(2020).

Articuladamente a tais questões curriculares e políticas, discutimos, a partir de Martins (2015),


à luz de O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar, como certas escolhas
curriculares para o trabalho pedagógico incidem (ou não) no processo de desenvolvimento do
psiquismo dos sujeitos. Para compreender melhor as atividades-guia ou atividades dominantes
próprias ao desenvolvimento psíquico de adolescentes com a formação das funções psíquicas
superiores, nos fundamentamos na obra Periodização histórico-cultural do desenvolvimento
psíquico, organizada por Martins, Abrantes e Facci (2020). Com relação aos desdobramentos
dessas questões para a prática pedagógica, sistematizamos as contribuições presentes em
Fundamentos da Didática histórico-crítica, de Galvão, Lavoura e Martins (2019).

A pesquisa se caracterizou, portanto, como teórica e bibliográfica-documental, como se pôde


depreender das informações apresentadas acima. A pesquisa bibliográfica, de acordo com Gil
(2002, p. 44, 45), é desenvolvida “com base em material já elaborado, constituído
principalmente de livros e artigos científicos”, sendo que “os livros constituem a fonte
bibliográfica por excelência”, enquanto a pesquisa documental difere pelo tipo de fonte que
deixa de utilizar o livro para abordar o conteúdo de “materiais que não recebem ainda um
tratamento analítico, ou que ainda podem ser reelaborados de acordo com os objetos da
pesquisa” – entendemos que a BNCC, embora expresse a sistematização de posições teóricas,
foi tratada aqui como um documento-síntese da posição do Estado brasileiro em relação às
questões curriculares da educação básica.

A pesquisa bibliográfica se justificou em face da necessidade em utilizarmos publicações acerca


do assunto que nos serviram como base para nosso referencial teórico, tendo como base
epistemológica, gnosiológica, lógica e metodológica o materialismo histórico e dialético,
23

pensando na concepção de conhecimento, currículo, formação humana e ensino de Literatura a


partir das reflexões da pedagogia histórico-crítica.

A síntese crítica do material bibliográfico mencionado acima foi cotejada com os documentos
oficiais que fundamentam, atualmente, do ponto de vista legal, o trabalho pedagógico no
contexto do Ensino Médio. Portanto, a pesquisa documental se justificou em face de nosso
interesse pelos documentos oficiais que orientam o trabalho pedagógico com a Literatura no
Ensino Médio. Assim, alguns dos documentos para análise foram a Base Nacional Comum
Curricular (2018) (particularmente no que se refere ao Ensino Médio), as Orientações
Curriculares para o Ensino Médio (volume 1 – Linguagens, Códigos e suas Tecnologias) (2006)
e as orientações do Currículo do Espírito Santo (2020)4.

O primeiro capítulo da tese apresentou contextualização inicial sobre o tema e as questões de


pesquisa com delimitação de objetivos e justificativa. Apresentamos brevemente as orientações
relacionadas à Literatura postas pelos principais documentos oficiais, a saber: Orientações
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (OCEM), Base Nacional Comum Curricular
(BNCC), Currículo do Espírito Santo e Programa Nacional do Livro e do material Didático
(PNLD) Literário.

Em nosso segundo capítulo, fizemos uma breve revisão sobre o material produzido em nossa
área de pesquisa e levantamos possibilidades de avanço em relação aos resultados já
encontrados. Apresentamos o levantamento de questões acerca das orientações para as aulas de
Literatura no contexto da educação escolar de nível médio, com base em teses e dissertações
recuperadas a partir do Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (Capes) e em publicações localizadas em outras bases; e
destacamos o papel da escola na transmissão do saber elaborado visando ao melhor
desenvolvimento humano dos sujeitos, com base nos pressupostos e finalidades da pedagogia
histórico-crítica (SAVIANI, 2013); para isso, relacionamos trabalho e educação, discutimos a
questão da educação escolar e da luta de classes, as políticas educacionais que promovem o
esvaziamento da escola; discorremos sobre as teorias críticas e não críticas conforme elaboração
de Saviani (2013), para chegarmos à pedagogia histórico-crítica, corrente pedagógica que

4
O documento “Orientações do Currículo do Espírito Santo” aqui citado pode ser encontrado no domínio:
http://curriculo.sedu.es.gov.br/curriculo/documentos/. O item Ensino Médio contempla documentos referentes à
Formação Geral Básica e aos Itinerários Formativos, considerando a nova configuração dessa etapa da educação
básica. Antes de abrir os documentos, encontramos – em 15 março de 2022 – o seguinte aviso: “Os Documentos
Curriculares do Ensino Médio já podem ser utilizados pela equipe escolar. No entanto, salientamos que os
documentos estão em fase de revisão ortográfica e diagramação”.
24

adotamos com consciência, por sua relevância na história da educação brasileira, por sua
coerência ao longo de mais de 40 anos, por sua abrangência em relação aos muitos aspectos
envolvidos no processo da educação escolar e, enfim, por sua adequação aos objetivos desta
pesquisa e para nosso trabalho em sala de aula.

Em nosso terceiro capítulo, relacionamos conhecimento, currículo e políticas educacionais


(MALANCHEN, 2016; MALANCHEN, MATOS, ORSO, 2020); abordamos a “pedagogia das
competências” e sintetizamos as problematizações das pedagogias do “aprender a aprender”,
hoje hegemônicas na educação brasileira (DUARTE, 2016); discutimos ainda sobre a
concepção de currículo para a pedagogia histórico-crítica.

No quarto capítulo, refletimos sobre a noção de “clássico” para a definição de um currículo para
a educação escolar (SAVIANI, 2013); abordamos brevemente a diferença entre Literatura
clássica e canônica; elencamos questões psicológicas que nos permitiram pensar sobre a relação
dialética entre a atividade de estudo e o desenvolvimento psíquico na adolescência (MARTINS,
2015; MARTINS, ABRANTES, FACCI, 2020; ANJOS, DUARTE, 2019). Por fim, tratamos
da noção de mediação e do papel do professor e seu trabalho (MARTINS, 2015; DUARTE,
2016).

No último capítulo, trouxemos uma discussão sobre a noção de formação integral do homem
(formação omnilateral) e sua relação com a dimensão estética da experiência (DELLA FONTE,
2020); e, em seguida, passamos à questão de realismo e do valor artístico, segundo Lukács
(2010). Na sequência, discutimos as especificidades da atividade de leitura literária, em face
desse projeto de formação humana omnilateral e da questão do realismo e do valor artístico.

Apresentamos, nas considerações finais deste trabalho, uma síntese de elementos norteadores
para a seleção de repertórios de leitura literária a serem trabalhados no contexto escolar do
Ensino Médio. Retomamos os problemas da pesquisa e compartilhamos uma breve reflexão
sobre os futuros caminhos a serem investigados.
25

1 O QUE DIZEM OS DOCUMENTOS OFICIAIS SOBRE O ENSINO DE


LITERATURA?

Conforme discutido na introdução, a pesquisa desenvolvida nasce de uma inquietação surgida


como docente em exercício de regência de sala (a saber, a necessidade de critérios para a seleção
de leituras literárias no precioso tempo de sala de aula) e se desenvolve enquanto a própria
pesquisadora atua em sala de aula colocando em prática seus estudos. Dessa forma, o presente
trabalho não somente dialoga diretamente com o contexto da rede estadual de ensino do Espírito
Santo, mas também visa contribuir com o ensino de Literatura no Ensino Médio, uma vez que
objetivamos com a pesquisa propor elementos norteadores para a seleção de repertórios de
leitura literária a serem trabalhados no contexto escolar deste nível de ensino.

Para nos aprofundarmos nas questões elencadas na presente tese, neste capítulo, faremos uma
breve reflexão sobre o que os documentos oficiais afirmam acerca do ensino de Literatura em
sala de aula, especialmente no Ensino Médio, lugar de onde falamos e sobre o qual nos
debruçamos.

1.1 ORIENTAÇÕES CURRICULARES PARA O ENSINO MÉDIO (OCEM)

O primeiro documento oficial para o qual chamaremos atenção são as Orientações Curriculares
para o Ensino Médio (2006), em seu volume 1 (Linguagens, Códigos e suas Tecnologias), no
que diz respeito ao ensino de Literatura. Em seu segundo capítulo, o documento aborda os
“Conhecimentos de Literatura”, justificando o esforço de incorporar a Literatura, superando
lacunas dos PCN Ensino Médio.
As orientações que se seguem têm sua justificativa no fato de que os PCN do Ensino
Médio, ao incorporarem no estudo da linguagem os conteúdos de Literatura, passaram
ao largo dos debates que o ensino de tal disciplina vem suscitando, além de negar a
ela a autonomia e a especificidade que lhe são devidas (BRASIL, 2006, p. 49).

Ao afirmar que o ensino de Literatura visa principalmente a atender ao inciso III do art. 35 da
LDBEN nº 9394/96, a saber “aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a
formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”
(BRASIL, 2006, p. 53), o texto traz uma série de citações do autor Antonio Candido, deixando
explícito seu posicionamento ao considerar a Literatura fator indispensável de humanização;
mas afirma que:
26

Para cumprir com esses objetivos, entretanto, não se deve sobrecarregar o aluno com
informações sobre épocas, estilos, características de escolas literárias, etc., como até
hoje tem ocorrido, apesar de os PCN, principalmente o [sic] PCN+, alertarem para o
caráter secundário de tais conteúdos: “Para além da memorização mecânica de regras
gramaticais ou das características de determinado movimento literário, o aluno deve
ter meios para ampliar e articular conhecimentos e competências [...]” (PCN+, 2002,
p. 55). Trata-se, prioritariamente, de formar o leitor literário, melhor ainda, de “letrar”
literariamente o aluno, fazendo-o apropriar-se daquilo a que tem direito (BRASIL,
2006, p. 54).

As orientações buscam, dessa forma, ir de encontro às práticas engendradas em grande parte


das escolas brasileiras (que ainda privilegiam informações sobre épocas, estilos, escolas
literárias etc.), sugerindo – grosso modo – meios de superá-las (o documento cita,
explicitamente, sem gradação ou paralelismo: “ampliar e articular conhecimentos e
competências”, “formar o leitor literário”, “‘letrar’ literariamente o aluno”, fazer o aluno
“apropriar-se daquilo a que tem direito”) (BRASIL, 2006). Todavia, o que se nota é a utilização
de conceitos oriundos de concepções de mundo e de teorias pedagógicas diferentes entre si; por
exemplo, em poucas linhas, recorre-se à pedagogia das competências, à teoria do letramento
(de inspiração liberal, já que pressupõe como teoria psicológica o pensamento piagetiano) e à
teoria pedagógica de inspiração materialista, cuja base psicológica está dada pela psicologia
histórico-cultural de Vigotski e colaboradores (que entende os processos de apropriação e
objetivação do conhecimento como inarredáveis do desenvolvimento humano e, portanto, como
ponto de partida e chegada na educação escolar).

Noutras palavras, o documento, criticando as práticas consagradas de professores que ensinam


Literatura, mas sem oferecer como contraparte uma teoria pedagógica coerente e consistente (o
que há é uma aproximação entre perspectivas teóricas incompatíveis entre si), colabora para o
esvaziamento da disciplina e para a perda de sua importância – e o próprio docente se vê sem
argumentos para sustentar seja a manutenção da carga horária específica, seja um rol de leituras
literárias mínimas, seja, enfim, um corpo de conhecimentos e conteúdos especializado. Não se
trata, aqui, de defender as práticas tradicionais e o conteúdo já vencido pelos avanços teóricos
no campo da Literatura (a saber, estilos de época etc.); o que estamos trazendo à baila é a
contradição constitutiva do documento que, sob o pretexto de fazer a crítica à prática docente
tradicional, não a faz de modo a permitir uma efetiva superação dos inequívocos problemas que
temos nesta seara.

Mendes (2020), após analisar a BNCC, conclui que ela não traz a Literatura como uma
disciplina (o que já estava dado desde os PCN); essa escolha não valoriza, pois, a Literatura
como um campo do saber, reduzindo-a a uma modalidade de texto e a um regime discursivo
27

entre outros. Em contraponto à BNCC, o autor indica as OCEM como uma fonte possível de
inspiração ao trabalho docente, pois haveria ali uma valorização da Literatura como campo do
saber; em favor das OCEM, destaca que o documento apresenta consistente fundamentação
teórica, contando com a participação de estudiosos da área, como Lígia Chiapinni.
Destacaremos, a seguir, alguns pontos das OCEM que parecem ser propícios ao presente debate.

Primeiramente, que as OCEM trazem uma profícua reflexão crítica sobre as escolhas de livros
que acontecem dentro das escolas para o trabalho em sala de aula e que, muitas vezes, são
norteadas pela indústria cultural.

Portanto, quando se coloca a questão das escolhas e das preferências dos jovens
leitores na escola, não se pode omitir a influência de instâncias legitimadas e
autorizadas, que, contando com seus leitores consultores para assuntos da
adolescência e da infância, já definiram o que deve ser bom para jovens e crianças,
em sintonia com resultados de concursos, avaliações de especialistas, divulgação na
imprensa, entre outros setores que se integram ao movimento do circuito da leitura na
sociedade. Também não se pode esquecer que algumas dessas instâncias legítimas e
autorizadas podem estar a serviço de um rentável mercado editorial. Enfim, todo esse
aparato, para o bem e para o mal, é colocado em funcionamento, sobretudo por se
tratar de aplicação de recursos orientados para a compra de livros, responsável pela
composição de acervos de bibliotecas (BRASIL, 2006, p. 62)

Em segundo lugar, diferentemente de documentos que ainda serão analisados, as OCEM


abordam a questão da metodologia de ensino de Literatura para os alunos do nível médio;
afirmam que – conforme dito anteriormente – na prática pedagógica, muitas vezes, opta-se pelo
ensino de história da Literatura e seus estilos, em detrimento do trabalho com o texto literário
propriamente dito (o texto literário, quando aparece, aparece fragmentado e mutilado em sua
integridade, apenas como “exemplo” de supostas características predominantes em dado estilo
de época).

Constata-se, de maneira geral, na passagem do ensino fundamental para o Ensino


Médio, um declínio da experiência de leitura de textos ficcionais, seja de livros da
Literatura infanto-juvenil, seja de alguns poucos autores representativos da Literatura
brasileira selecionados, que aos poucos cede lugar à história da Literatura e seus
estilos. Percebe-se que a Literatura assim focalizada – o que se verifica sobretudo em
grande parte dos manuais didáticos do Ensino Médio – prescinde da experiência plena
de leitura do texto literário pelo leitor. No lugar dessa experiência estética, ocorre a
fragmentação de trechos de obras ou poemas isolados, considerados exemplares de
determinados estilos, prática que se revela um dos mais graves problemas ainda hoje
recorrentes (BRASIL, 2006, p. 63).

Por princípio, concordamos com a crítica à não leitura de obras integrais e ao trabalho centrado
em estilos de época. Todavia, é problemático que o documento – supostamente mais avançado
que a BNCC – confunda história da Literatura com o modelo de história da Literatura de
inspiração positivista, ou seja, aquele organizado a partir de supostos estilos de época.
28

Sejamos mais claros: o documento aponta como problema o declínio da experiência de leitura
de textos ficcionais, de Literatura infanto-juvenil e de autores representativos da Literatura
brasileira que “cede lugar à história da Literatura e seus estilos” (BRASIL, 2006, p. 63).
Todavia, não há nenhuma ressalva de que o problema com o ensino de história da Literatura
não está na história da Literatura, mas na concepção de história que se tornou hegemônica:
aquela de matriz positivista, que esteve na consolidação dos estudos universitários na passagem
do séc. XIX ao séc. XX e que se popularizou em manuais adotados nos cursos de formação de
professores de Língua e Literatura – alguns até hoje muito difundidos no campo. Esses manuais
(que apresentam a Literatura brasileira como um desdobramento da portuguesa e que iniciam
com o Quinhentismo, o Barroco, o Arcadismo e vão chegar às manifestações contemporâneas,
como um desfile de estilos sucessivos, explicados, quase sem mediação, pelo “contexto de
época”) estão na base dos livros didáticos mais utilizados ao longo do séc. XX e nas primeiras
décadas do séc. XXI.

Ao contrário, nós defendemos que não há possibilidade de experiência de leitura literária (ou,
como diz o documento, de “experiência estética”) sem a devida historicização dos textos, dos
contextos de produção, circulação e recepção e sem que se faça o movimento entre a realidade
ficcional e a realidade concreta, na qual existimos (nós, os escritores e demais agentes da cadeia
produtiva do livro, e as obras). Por historicização, estamos entendendo o esforço amplo de
compreender como as ações humanas e as relações estabelecidas entre natureza e sociedade,
entre indivíduos e entre indivíduo e sociedade delineiam nossa realidade – e isso, certamente,
não se faz enquadrando textos e autores em “escolas de época” ou procurando “características
típicas” (forçando e reduzindo o literário para caber em camisas de força teóricas).

Somados à fragmentação de textos citada no documento, as OCEM destacam que as Literaturas


tidas como difíceis muitas vezes são substituídas por textos menos complexos; que a
aprendizagem literária é simplificada pelo conhecimento de elementos externos à obra, sem o
conhecimento da mesma e que há substituição de originais por paráfrases ou resumos. Reitera
que tais problemas serão resolvidos caso a experiência de leitura iniciada no ensino fundamental
tenha continuidade no Ensino Médio. O documento afirma ainda que os livros didáticos podem
apoiar a formação do leitor em busca de sua autonomia. O documento destaca que para isso, os
livros terão que “manifestar sua própria insuficiência como material propício para a formação
plena de leitores autônomos da Literatura, ao incluir, nas suas propostas didáticas, a
insubstituível leitura de livros” (BRASIL, 2006, p. 64).
29

Concordamos com o fato de que os livros didáticos não formam leitores, em contrapartida,
acrescentamos que os livros literários por si não têm condições de dar conta dessa demanda, a
discussão é bem mais ampla: a) para formar leitores, é necessário que além de bibliotecas
cheias, haja trabalho sistematicamente planejado de leitura em sala de aula, destacando a
importância do professor, em trabalho articulado com o bibliotecário escolar5, na seleção de
repertório e nas orientações e mediações; b) a formação precisa ser contínua, processual,
partindo da infância, de modo que os alunos tenham não somente contato com o texto, mas
aprendam a interpretar, reconhecer informações importantes, ironias etc.; c) o trabalho docente
deve ser valorizado de modo que o professor não precise ter dois ou três empregos para poder
pagar suas contas e tenha tempo disponível para planejar (o que inclui tempo para ler materiais
diversificados, para fazer as melhores escolhas); d) é necessário que haja espaços de leitura nas
escolas; e) é necessária uma profunda reforma político-educacional em nosso país, pois todo o
conhecimento artístico, filosófico e científico adquirido na escola não tem como ser prioridade
a quem não consegue suprir suas necessidades imediatas (alimento, moradia, roupas).

Em terceiro lugar, ainda sobre os pontos relevantes das OCEM para nortear o trabalho docente,
o documento considera que o grande desafio do professor no Ensino Médio é levar o jovem a
leituras que fujam ao padrão dos Best Sellers, considerando que os textos apresentados aos
alunos podem ser obras mais recentes ou aquelas “da tradição literária”, desde que “tenham
sido legitimadas como obras de reconhecido valor estético, capazes de propiciar uma fruição
mais apurada, mediante a qual terá acesso a uma outra forma de conhecimento de si e do
mundo” (BRASIL, 2006, p. 70). Ressaltamos aqui que, coerentemente com nosso referencial
teórico-metodológico, entendemos que o processo de ensino e aprendizagem deve se pautar em
conteúdos artísticos, científicos e filosóficos produzidos histórica e coletivamente pelos seres
humanos (embora os frutos desse conhecimento tendam a ser tornados “propriedade privada”)
– incluímos aqui o estudo dos clássicos literários “na sua dialética com os novos valores postos
pelas obras contemporâneas” (DALVI, 2019, p. 296). Dessa forma, levar o jovem a leituras
sistematizadas de textos complexos que fujam os padrões dos Best Sellers é papel da escola,
talvez único lugar de contato com tais textos que circulam entre as altas classes sociais.

5
Infelizmente, na realidade objetiva da maioria das escolas estaduais da rede capixaba, a figura do bibliotecário
escolar é inexistente. Com frequência, quando há biblioteca ou sala de leitura, não há profissional especializado
atuando nesse espaço; se, quando há algum profissional designado para a função, costuma se tratar de pessoal
afastado da sala de aula por motivo de saúde. Todavia, entendemos que é necessário não perder de vista a demanda
para que os professores de Língua Portuguesa e Literatura no Ensino Médio possam contar com a parceria
profissional com bibliotecários escolares.
30

Em quarto lugar, mais uma vez, as OCEM são assertivas no que diz respeito à pressão sofrida
pelos professores para cobrir toda a linha do tempo da Literatura, “fazendo uso da história da
Literatura, ainda que isso não sirva para nada: aulas ‘chatas’, alunos e professores
desmotivados, aprendizagem que não corresponde ao que em princípio foi ensinado” (BRASIL,
2006, p. 76). Se, por um lado, as OCEM tocam em um ponto importante e que merece a nossa
atenção, por outro, fazem coincidir a concepção de “história da Literatura” com as chamadas
“escolas literárias” ou “estilos de época em Literatura”, o que é uma consequência de certa
concepção de História; ou seja, não se faz uma distinção entre uma efetiva abordagem histórica
da Literatura e sua caricatura. Desta feita, o que se depreende do documento é que a abordagem
histórica não serve para nada e é chata; quando, na realidade, é o reducionismo historicista
herdeiro do positivismo e do mecanicismo que opera com uma lógica de causa e consequência
o que precisaria ser combatido, abandonado e superado.

Na contramão dessa prática, o docente é convidado a colocar a obra literária no centro de suas
aulas de Literatura, o que é justificado pelo documento:

Quando propomos a centralidade da obra literária, não estamos descartando a


importância do contexto histórico-social e cultural em que ela foi produzida, ou as
particularidades de quem a produziu (até porque tudo isso faz parte da própria tessitura
da linguagem), mas apenas tomando – para o ensino da Literatura – o caminho
inverso: o estudo das condições de produção estaria subordinado à apreensão do
discurso literário. Estamos, assim, privilegiando o contato direto com a obra, a
experiência literária, e considerando a história da Literatura uma espécie de
aprofundamento do estudo literário, devendo, pois, ficar reservado para a última etapa
do Ensino Médio ou para os que pretendem continuar os estudos especializados
(BRASIL, 2006, p. 76, 77).

Por um lado, parece bastante sedutor o discurso de que o texto deve ser o centro das aulas de
Literatura, ou de que obra, contexto de produção e vivências do autor não se separam; todavia,
quando se fala em privilegiar o contato direto com a obra e a “experiência literária” e, ainda, se
fala que a história da Literatura deve ser uma espécie de aprofundamento dos estudos literários
e, por isso, precisa ser reservada para estudos posteriores, podemos abstrair duas considerações:
1) A metodologia de ensino prevista pressupõe que a tarefa da educação escolar seja repetir a
vivência imediata e/ou cotidiana, restringindo-se à seleção de obras e ao fomento à leitura, sem
avançar para o plano conceitual-teórico (o que inclui a história, mas não se restringe a ela). 2)
Fica patente que o domínio dos conceitos fundamentais da área do conhecimento deve ser
privilégio de quem chega ao fim do Ensino Médio e/ou vai frequentar o ensino superior.

Em quinto lugar, as OCEM falam ainda acerca da importância de se dedicar tempo à leitura de
textos literários, orientando o professor a se abrir para as “potencialidades da Literatura” e a se
31

livrar dessa necessidade de “cobrir um conteúdo mensurável e visível”, ou seja, da necessidade


de dar conta da historiografia e das características de época das escolas literárias, dedicando o
tempo das aulas principalmente à leitura de textos integrais, “pensando sobretudo no romance”
(BRASIL, 2006, p. 78). O documento fala sobre a necessidade de planejamento para que a
leitura seja executada com êxito:

No caso da Literatura, o tempo é crucial. A leitura de um romance, por exemplo,


requer planejamento do professor para orientar a leitura e tempo para o aluno ler o
livro. Trazer para a sala trechos da obra (a partir dos quais seja possível recuperar
aspectos significativos da obra que está sendo lida) e a esses dedicar uma ou mais
aulas não é perder tempo, pelo contrário, é imprimir à escola um outro ritmo, diferente
daquele da cultura de massa, frenético e efêmero, opondo a este o ritmo mais lento do
devaneio e da reflexão (BRASIL, 2006, p. 78).

Embora o documento elaborado há 15 anos se configure como uma tentativa de avanço na


promoção do ensino de Literatura na educação escolar, sobretudo no Ensino Médio, ele não dá
conta de embasar metodologicamente o professor para que este tenha condições de mudar sua
prática, ademais, não dá conta de desenvolver e fundamentar o professor para a superação de
um forte lastro de tradição pautado no viés positivista (e, portanto, liberal e burguês). Dessa
forma, o ensino de Literatura que privilegia a periodização literária no qual a obra é relegada a
segundo plano continua acontecendo nas escolas brasileiras, a despeito das intenções expressas
no documento.

1.2 BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR (BNCC)

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), homologada em 14 de dezembro de 2018, pelo


então ministro da educação, Rossieli Soares, é um documento de caráter normativo que visa
definir o conjunto de aprendizagens essenciais que os alunos precisam desenvolver ao longo da
educação básica (BRASIL, 2018, p. 9). Seguindo a linha dos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN), a BNCC se sustenta na pedagogia das competências, que nega – entre outras coisas – o
ensino do saber sistematizado. Ao substituir os conhecimentos por aprendizagens e promover
a hipertrofia da preocupação da aprendizagem desacompanhada da reflexão sobre o que se
ensina, como, por quem e em que condições; a BNCC causa um apagamento do trabalho
docente enaltecendo o aluno como protagonista de seu processo de aprendizagem,
hipervalorizando o conhecimento tácito, esvaziando o próprio papel da escola.

Sobre a concepção de formação que norteia a BNCC, Malanchen e Zank (2020) discutem que
o documento se fundamenta em uma racionalidade para fins pragmáticos direcionados por
32

interesses empresariais. Ao incentivar a formação para o emprego – e não para o trabalho com
vistas à emancipação do ser humano – com base em um ensino neotecnicista, a BNCC nega o
conhecimento objetivo e sistematizado, esvaziando a função precípua da escola, do professor e
do próprio currículo. Dessa forma, o professor se torna um organizador de conteúdos que deve
dispor de criatividade para incentivar o aluno a trabalhar em grupo, a produzir em um ambiente
colaborativo de sala de aula. “A formação com princípio na especialização passa, então, a ser
adaptada à escolha do que realmente interessa ao aluno e à organização do tempo que leva o
estudante a esquematizar o que quer estudar e como quer fazê-lo [...]” (MALANCHEN; ZANK,
2020, p. 132, 144).

Sendo a preocupação central do documento a formação do trabalhador, ele deve dominar


habilidades e competências próprias ao seu desempenho no mercado de trabalho. Um currículo
baseado em habilidades que o educando precisa desenvolver para se adequar à sociedade na sua
forma atual não se preocupa com a formação integral do indivíduo:

É incutido à sociedade, e especialmente à juventude, que os conhecimentos são


passageiros e provisórios e que a prioridade deve estar na atualização constante e no
atendimento de situações técnicas de rápida absorção e realização. Entendemos isso
como a inversão dos valores educacionais, ou seja, em vez de valorizar a apropriação
dos conhecimentos históricos e da produção social do conhecimento, o mercado prima
por sujeitos que estejam aptos apenas às novidades e que possam desenvolver funções
técnicas com destreza, sem envolvimento histórico sobre o trabalho, a educação e o
desenvolvimento social (MALANCHEN; ZANK, 2020, p. 146).

Entendemos que esse saber pragmático e utilitarista, que não leva o educando a uma profunda
reflexão crítico-teórica, muito menos a uma visão da totalidade (ou, na concepção
benjaminiana, de “atualidade”), condiz com as necessidades de mercado da sociedade
neoliberal em que o modo de vida e de produção se baseiam no lucro, na competitividade e no
individualismo, que necessita de mão de obra barata para atender aos interesses do capital.
Dessa forma, nós, enquanto educadores, precisamos remar contra a maré a fim de que a escola
cumpra seu real papel: que deve ser, segundo a pedagogia histórico-crítica, nas palavras de
Anjos (2020, p. 185) o de se posicionar criticamente em relação à sociedade atual e criar nos
alunos a necessidade de se apropriarem dos conteúdos artísticos, científicos e filosóficos
desenvolvidos ao longo da história pelo conjunto de homens, a fim de que o sujeito tenha
relação consciente com sua vida cotidiana e uma visão de totalidade da realidade que o cerca.

Esta tese não tem o objetivo de se aprofundar nas discussões da BNCC, uma vez que vários
autores já deram conta desse trabalho, todavia, fez-se necessária essa localização contextual
para que possamos entender e analisar com criticidade as questões mercadológicas que norteiam
33

a elaboração desse documento. Tendo quase 600 páginas, a BNCC dedica pouco mais de 100
páginas ao Ensino Médio, cujas orientações se direcionam às áreas do conhecimento (o que, de
acordo com Malanchen e Zank (2020, p. 150), é mais uma prova da falta de centralidade do
conhecimento na BNCC). No que diz respeito à Literatura no Ensino Médio a BNCC informa
que o texto deve ser o ponto de partida do trabalho em sala de aula.

Em relação à Literatura, a leitura do texto literário, que ocupa o centro do trabalho


no Ensino Fundamental, deve permanecer nuclear também no Ensino Médio. Por
força de certa simplificação didática, as biografias de autores, as características de
épocas, os resumos e outros gêneros artísticos substitutivos, como o cinema e as HQs,
têm relegado o texto literário a um plano secundário do ensino. Assim, é importante
não só (re)colocá-lo como ponto de partida para o trabalho com a Literatura, como
intensificar seu convívio com os estudantes. (BRASIL, 2018, p. 499, grifo nosso).

Se, por um lado, o documento destaca a importância do trabalho com o texto literário, em
detrimento de características de época, resumos e outros problemas já elencados por Dalvi
(2013) e pelas OCEM, quando se trata do Ensino de Literatura no contexto escolar, por outro
lado, as curtas seis páginas dedicadas ao assunto deixam a desejar, pois não sistematizam os
próprios conceitos básicos específicos do campo literário, em outras palavras, não orientam o
trabalho docente, sequer deixam uma instrução sobre formas de escolha de repertório e, mais,
sobre a forma de se resolver o problema da fragmentação dos textos apresentados pelo livro
didático que tem sido distribuído às escolas das redes públicas por meio de políticas e
programas oficiais, envolvendo vultuosos recursos financeiros do Estado.

Além disso, podemos observar pelo excerto acima, retirado da BNCC, que parece haver uma
inversão de sentido: é o texto literário quem vai conviver com os estudantes ou os estudantes
com o texto? A aposta do documento é rasa, uma vez que se pauta na simples convivência do
aluno com o texto, não se fala em ensino de conceitos, fundamentos etc. Há a reiteração de uma
lógica pedagógica neoconstrutivista que se apoia na interação sujeito-objeto, sem a mediação
do par mais desenvolvido, portador do signo (conceito, leitura crítica).

Ainda segundo informações contidas na BNCC, a “progressão das aprendizagens e habilidades”


em Língua Portuguesa para o Ensino Médio leva em conta, entre outras questões:

[...] a ampliação de repertório, considerando a diversidade cultural, de maneira a


abranger produções e formas de expressão diversas – Literatura juvenil, Literatura
periférico-marginal, o culto, o clássico, o popular, cultura de massa, cultura das
mídias, culturas juvenis etc. – e em suas múltiplas repercussões e possibilidades de
34

apreciação, em processos que envolvem adaptações, remidiações6, estilizações,


paródias, HQs, minisséries, filmes, videominutos, games etc.;
a inclusão de obras da tradição literária brasileira e de suas referências ocidentais –
em especial da Literatura portuguesa –, assim como obras mais complexas da
Literatura contemporânea e das Literaturas indígena, africana e latino-americana.
(BRASIL, 2018, p. 500, grifo nosso).

Pode-se observar, no primeiro trecho acima, que a referência ao culto e ao clássico aparece em
meio a outros tantos repertórios que devem, segundo o documento, ser valorizados no Ensino
Médio, dentre eles, popular, cultura de massa etc. O texto causa grande confusão ao misturar
os conceitos como culto, Literatura juvenil, cultura de massa, dentre outros, o que – ainda que
de forma desordenada – coloca todos esses elementos em par de igualdade. Chama atenção
também o conceito idealista de cultura presente na BNCC, não como a objetivação da ação
humana e fruto do processo de desenvolvimento, mas, como afirma Malanchen (2016, p. 108),
como uma concepção abstrata, pautada em concepção de realidade e conhecimento de
fenômenos, o que impede a compreensão das relações de totalidade. Para o neoliberalismo e
para a ideologia pós-moderna, as culturas são quaisquer focos de manifestação/representação
de grupos, assim, tem-se cultura de massas, cultura negra, cultura das mídias, cultura clássica,
todos os elementos em uma miscelânea com vistas a obscurecer a concepção de totalidade
social.

Dessa forma, compreendemos que texto clássico e outros repertórios são considerados
relevantes de igual modo, até mesmo o que é reproduzido pela cultura de massa. A BNCC
menciona a ampliação de repertório, mas não fala da apropriação e objetivação do
conhecimento elaborado já existente sobre esse mesmo repertório. É como se o saber elaborado
e o conhecimento sistematizado existente no campo não existissem, como se se tratasse apenas
de uma questão de repertório. Sabemos que a socialização do saber cotidiano se dá no seio
social, sem necessidade de mediação da escola; em outras palavras, se a escola não cumprir sua
finalidade de socializar os conteúdos artísticos, científicos e filosóficos produzidos ao longo da
história pelo conjunto dos seres humanos, o que a humanidade produziu de mais importante,
ela não se faz necessária.

No segundo trecho da citação do documento oficial, fala-se sobre a inclusão de obras de tradição
literária brasileira, o que pode ser favorável ao trabalho com a Literatura no Ensino Médio,

6
Remidiação não é uma palavra dicionarizada na língua portuguesa, mas um conceito criado para exemplificar a
mescla entre língua escrita e elementos multimídia. De acordo com Bolter e Grusin (2000), a palavra significa
“[...] the formal logic by which new media technologies refashion prior media forms” (p. 273), em outras palavras,
o processo de remidiação se dá pela passagem do formato de uma mídia para outra, quando determinado material
(impresso, por exemplo) vai ser transposto para outra mídia (curta-metragem, por exemplo).
35

entretanto, não existe – mais uma vez – um direcionamento sobre que leituras são necessárias
a esse público adolescente, muito menos sobre uma proposta metodológica que ancore a prática
pedagógica em sala de aula.

Deve-se ressaltar, ainda, que o Novo Ensino Médio, segundo o documento, divide-se em cinco
“campos de atuação social”, sendo eles: campo da vida pessoal, campo artístico-literário, campo
das práticas de estudo e pesquisa e campo de atuação na vida pública (BRASIL, 2018). No
campo artístico-literário, o documento defende a formação do leitor literário articulada à fruição
como objetivo supremo:
No campo artístico-literário, buscam-se a ampliação do contato e a análise mais
fundamentada de manifestações culturais e artísticas em geral. Está em jogo a
continuidade da formação do leitor literário e do desenvolvimento da fruição. A
análise contextualizada de produções artísticas e dos textos literários, com destaque
para os clássicos, intensifica-se no Ensino Médio. Gêneros e formas diversas de
produções vinculadas à apreciação de obras artísticas e produções culturais (resenhas,
vlogs e podcasts literários, culturais etc.) ou as formas de apropriação do texto
literário, de produções cinematográficas e teatrais e de outras manifestações artísticas
(remidiações, paródias, estilizações, videominutos, fanfics etc.) continuam a ser
considerados associados a habilidades técnicas e estéticas mais refinadas. (BRASIL,
2018, p. 503, grifo nosso).

Embora pareça louvável que se preze pela análise fundamentada de manifestações artísticas e
culturais, não se sabe como ela irá acontecer, uma vez que o centro da proposta para o Ensino
Médio é a questão do acesso e da ampliação do repertório, mas sem a contraparte teórico-
conceitual específica do campo. Além disso, o excerto apresenta gêneros e formas de produções
ou formas de apropriação do texto como associados a habilidades estéticas e técnicas mais
refinadas; sabemos, entretanto, que não é verdade que, em si mesmas, as formas de apropriação
da remidiação, ou da estilização, ou do videominuto ou da fanfic sejam necessariamente
associadas a habilidades estéticas mais refinadas e, ademais, mais refinadas em relação ao quê?
Isso nos leva a refletir sobre qual seria a finalidade disso para o ensino: incentivar que o aluno
se aproprie de resenhas de livros em vez de realizar a leitura do texto integral, que substitua as
leituras pelas produções cinematográficas, ou que aprenda a, a partir da leitura, manifestar suas
próprias interpretações por meio de diferentes gêneros e suportes. Aqui, abre-se um parêntese
para considerar a questão do desenvolvimento para fruição, sobre o que afirma Ramalhete
(2019):
Em uma sociedade de tantos afazeres, o discurso de fruição casual, fortuita, na escola,
pode parecer sedutor. Todavia, a centralização da leitura cativa às interações diárias,
a um contentamento efêmero e a uma suposta liberdade, em detrimento [do] trabalho
consistente, é superficial e comprime o ensino à relação texto e leitor/a. Afinal, ao
aproximar e (muitas vezes) limitar a leitura ao âmbito do cotidiano e, sobretudo, à
diversão, oculta-se a importância da mediação, da educação escolar, da leitura, e
camufla-se todo um trabalho que é necessário para que os processos de ensino e
36

aprendizagem na escola sejam erigidos. Em hipótese alguma defende-se neste


trabalho que a escola seja o local da tristeza e do tédio, porém, considerando toda
intencionalidade do ato educativo (SAVIANI, 2003, p. 13), defender uma leitura por
pura diversão é mais que um erro: em se tratando de escola pública, é um erro
pernicioso. (RAMALHETE, 2019, p. 144, 145).

Em sua tese, a autora discorre acerca de programas governamentais de formação de professores


alfabetizadores no período de 2001 a 2018, mas pode-se perceber que – de maneira sucinta –
documentos que norteiam a educação nacional, como é o caso da BNCC, inserem em
determinada medida a leitura por fruição que parece ter uma relação descompromissada com a
formação omnilateral do educando, o que, segundo Ramalhete (2019), é um erro, uma vez que
a apologia à leitura por mero prazer não favorece os processos de ensino-aprendizagem na
escola, não permitindo ao aluno passar do pensamento sincrético ao sintético.

Na sequência, ao abordar o campo artístico-literário, a BNCC fala da importância de – no


Ensino Médio – trabalhar-se com “textos clássicos, que se perfilam como canônicos”:
No Ensino Médio, devem ser introduzidas para fruição e conhecimento, ao lado da
Literatura africana, afro-brasileira, indígena e da Literatura contemporânea, obras da
tradição literária brasileira e de língua portuguesa, de um modo mais sistematizado,
em que sejam aprofundadas as relações com os períodos históricos, artísticos e
culturais. Essa tradição, em geral, é constituída por textos clássicos, que se perfilaram
como canônicos – obras que, em sua trajetória até a recepção contemporânea,
mantiveram-se reiteradamente legitimadas como elemento expressivo de suas épocas
(BRASIL, 2018, p. 523, grifo nosso).

Salta aos olhos, neste fragmento, a falta que faz uma elaboração conceitual mais cuidadosa, ao
tratar de noções como tradição literária, textos clássicos e [textos] canônicos. De saída, as
“obras da tradição literária brasileira e de língua portuguesa” que deveriam ser “introduzidas”
seriam aquelas em que “sejam aprofundadas as relações com períodos históricos, artísticos e
culturais” – independentemente de qual tenha sido a intenção dos redatores do documento
oficial, vaza nesse discurso a subordinação das obras à condição de exemplos típicos de dados
“períodos históricos, artísticos e culturais”.

Depois, ao tentar explicar que “obras da tradição literária” seriam essas, o documento oficial
reforça a concepção que subordina as obras à condição de exemplos típicos: são obras que “em
sua trajetória até a recepção contemporânea, mantiveram-se reiteradamente legitimadas como
elemento expressivo de suas épocas” (BRASIL, 2018, p. 523). Ou seja, elas devem ser lidas,
hoje, não pelo que têm a nos dizer em nossa época, não por sua atualidade em desvelar a
realidade humana, mas porque seriam “elemento expressivo de suas épocas”. Noutras palavras,
seria a força da tradição e seriam os critérios estabelecidos em outras épocas o que determinaria
37

as escolhas a serem feitas na escola contemporânea. Essa concepção entra em choque com o
apontamento de, por exemplo, Durão (2016, p. 16), para quem “uma obra não é simplesmente
grande. É preciso que a crítica mostre que ela ainda é capaz de falar ao nosso presente e que
pode gerar surpresas”.

Há, aqui, pois, uma flagrante evidência de que, sob a capa de novidade, a BNCC reitera o
modelo massificado de ensino de Literatura ao qual parece criticar: um modelo que se centra
em “períodos literários” ou “estilos de época”; que subordina a produção literária à condição
de exemplário de conhecimentos externos e alheios ao objeto; que elege como critério de
seleção de saberes, conhecimentos e conteúdos não a prática social e a necessidade de formular
conhecimento atualizado e verdadeiro sobre ela, mas, antes, elege como critério de seleção para
a elaboração do currículo escolar simplesmente a força da tradição.

Ainda sobre a definição do que seriam textos clássicos “que se perfilam como canônicos”, há
de ser considerada uma questão cara à presente pesquisa. A discussão já levantada por Marsiglia
e Della Fonte (2016, p. 23) sobre os clássicos traz a seguinte problematização: “como
caracterizar o escritor ou a obra modelar de modo a não cair na afirmação dos interesses da
classe social dominante?”. Dessa forma, buscamos evidenciar a seleção de repertório de leitura
com base em textos clássicos, que são entendidos, segundo Saviani (2013, p. 14), como “aquilo
que se tornou fundamental ou essencial”, o que é diferente de textos canônicos, uma vez que a
seleção destes parte de questões firmadas nos interesses da classe dominante e se sustenta com
base na tradição e na autoridade, evocando uma legitimidade lastreada em valores sustentados
em um ideal de arte e, particularmente, de Literatura, nem sempre afinado à concreticidade da
realidade social.

Embora nosso intuito seja retomar e aprofundar essa questão mais adiante, ressaltamos que não
queremos descartar obras que consideramos clássicas como os livros de Machado de Assis,
Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e outros que foram inseridos no cânone escolar; mas olhar
para elas como obras que se tornaram essenciais ao longo dos tempos, ou seja, clássicas,
independentemente da força da tradição ou levando em conta apenas sua “expressividade” em
seu contexto original de produção; nesse sentido, mesmo obras apagadas ou que receberam
reduzida importância, na tradição, passam a ser revisitadas e repensadas, à luz das disputas e
lutas sociais do presente, como é o caso, por exemplo, das obras de uma romancista como Maria
Firmina dos Reis, ou dos cantos tradicionais indígenas, por exemplo, que vêm sendo traduzidos
38

para o português e que têm chegado até nós em edições recentes. Também é o caso de obras
contemporâneas que, por sua força artística e sua relevância social, passam a ser reconhecidas
como clássicos de nosso tempo, como aconteceu com Um defeito de cor, de Ana Maria
Gonçalves, ou Olhos d’água, de Conceição Evaristo, ou Torto Arado, de Itamar Vieira Jr.

Embora a redação da BNCC pareça sedutora ao propor a leitura de clássicos – lembrando que
o documento não diferencia clássico de canônico, conforme pontuado anteriormente –,
devemos nos atentar para o fato de que o documento continua incentivando o ensino de
Literatura para fins pragmáticos. Ao analisar as habilidades relacionadas ao ensino de Literatura
na BNCC, Farias, Britto e Santos (2020) consideram que as mesmas se ancoram em dois eixos:
“a ampliação do repertório dos estudantes” e “o estudo de obras da tradição literária” [...]. Dessa
forma, os autores consideram que, “embora de maneira implícita, as diretrizes para o ensino de
Língua Portuguesa apontam o uso consolidado de textos literários como objeto de análise
gramatical e estudos de gêneros textuais, como se constata pela leitura das competências e
habilidades estabelecidas” (FARIAS; BRITTO; SANTOS, 2020, p. 167).

Além disso, os autores apontam para as diversas fragilidades contidas no documento. “O


detalhamento das nove habilidades inseridas no campo de atuação social artístico-cultural, onde
se localiza o ensino de Literatura, demonstra construção e ordenamento frágeis, sem
organicidade e projeto” (FARIAS; BRITTO; SANTOS, 2020, p. 167, 168). A BNCC não deixa,
todavia, explícito o entendimento de utilizar a Literatura como pretexto para a aprendizagem
de gramática, mas:
[...] se não valida explicitamente o entendimento da Literatura como pretexto para
ensinar regras gramaticais, embora as habilidades previstas para o ensino de língua
sugiram tal uso, a Base também não se ocupa da Literatura como objeto de fruição,
cujas condições para sua apreciação devem ser garantidas no espaço escolar. O que se
depreende da leitura do documento é o entendimento da Literatura como disciplina a
ser estudada em suas características históricas e formais, e como enredo, que pode ser
transmitido em áudios e vídeos em formatos [sic] (FARIAS; BRITTO; SANTOS,
2020, p. 171).

Acreditamos que a BNCC continua reverberando o discurso de se utilizar o texto como pretexto
para finalidades práticas, uma vez que ela se sustenta em uma ideologia que não pretende – ao
contrário do que afirma – a emancipação dos sujeitos por meio do acesso ao conhecimento
elaborado. Segundo a causa que advogamos no campo das artes, a Literatura pode ser “fator de
risco” e levar as pessoas à desobediência, por isso, seu ensino precisa ser mascarado por práticas
utilitaristas, como parece ser feito em toda a proposta curricular.
39

Se, por um lado, a análise de Farias, Britto e Santos (2020) sinaliza algo que nós também
pontuamos: o esvaziamento de conteúdos específicos à área, portanto, de conceitos hauridos à
teoria literária, à historiografia e à crítica literária; por outro lado, os autores advogam que o
que falta é pensar a Literatura como objeto de fruição, no que discordamos, pois a BNCC
menciona esse aspecto conforme já pontuamos: enfatizamos, inclusive, com base em Ramalhete
(2019), que o incentivo à leitura para fruição esvazia o papel fundamental da escola que é o de
ensinar.

Conforme mencionamos, nosso trabalho não se limita a discutir a BNCC, todavia, parece
necessário mencionarmos ainda que uma das grandes preocupações dos estudiosos que se
ocupam com a análise dos currículos é a falta de base, no documento, dos conteúdos artísticos,
científicos e filosóficos, enfatizando-se, conforme Malanchen e Zank (2020, p. 150), métodos,
desenvolvimento de habilidades e competências necessárias à adaptação do sujeito aos
interesses do capital, o que temos discutido nessa sessão.

Nesse sentido, acreditamos, com Malanchen e Zank (2020, p. 142), que uma mudança curricular
como a BNCC não tem condições de dar conta de problemas e dificuldades encontradas na
escola que ultrapassam séculos. Tampouco tal mudança deva se justificar para atender à
necessidade de melhorar índices em avaliações externas. Além disso, a limitação de disciplinas
por Itinerários Formativos presta serviço a uma formação mutilada, empobrecida e esvaziada
de todo o conhecimento humano disponível para tal e qual nível escolar. A escola precisa
retomar seu papel principal: o de socializar, por meio do ensino e aprendizagem, os saberes
elaborados produzidos historicamente pela coletividade humana.

Quando afirmamos que o papel precípuo da escola seja socializar os saberes elaborados é
preciso fazer dois alertas: nem se trata de uma ilusão idealista que se esqueça do fato de que,
muitas vezes, a educação escolar funciona como espaço de inculcação ideológica e de
reprodução da hegemonia burguesa; nem se trata de uma compreensão simplista da noção de
socialização de saberes que coincida com “dar acesso” (deixando os estudantes se relacionarem
por si mesmos com o saber, como se o simples “contato” com o “objeto” pudesse cumprir o
propósito educativo) ou que coincida com a exposição mecânica de conteúdos, como acontece
nas práticas de ensino tradicionais.

Noutras palavras, quando tratamos da escola como espaço de ensino e aprendizagem dos
saberes elaborados, reconhecemos que ela pode funcionar como “aparelho de hegemonia do
40

Estado”, mas não estancamos aí: entendemos que, ao mesmo tempo, pela apropriação do
conhecimento objetivo, os sujeitos em formação podem ir além da mera reprodução da
ideologia dominante, convertendo um saber que foi transmitido com a finalidade de reprodução
ideológica em veículo de questionamento e superação da ordem posta. Nesse sentido, a tarefa
de uma pedagogia verdadeiramente crítica é incidir nessa contradição, disputando o processo
desde dentro. Por isso mesmo, o processo de transmissão, assimilação e objetivação dos saberes
elaborados não pode ser feito de forma mecânica, reproduzindo os processos da pedagogia
tradicional; é preciso uma didática radicalmente diferente, ou seja, uma didática histórico-
crítica, como aquela delineada em seus princípios por Galvão, Lavoura e Martins (2019).

Reiteramos que nosso intuito aqui não é fornecer um molde, uma forma pronta para selecionar
repertórios de leitura literária e para trabalhar com todos os alunos. Pretendemos, antes,
elaborar, com base nos estudos da pedagogia histórico-crítica (sobre a função social da escola,
sobre a organização do trabalho pedagógico, sobre o papel do conhecimento objetivo e dos
conteúdos clássicos na produção de currículo escolar e sobre a atividade-guia ou dominante na
adolescência), princípios gerais para a seleção de leituras literárias a serem realizadas pelos
estudantes de nível médio, a partir das aulas da disciplina escolar de Língua Portuguesa, visando
a seu máximo desenvolvimento no contexto contemporâneo. Para isso, faz-se necessário
avançar nas discussões sobre o ensino de Literatura em contexto escolar para além do que é
mencionado no referido documento, pensando não no texto como pretexto para estudos
gramaticais, mas no texto como um direito que não pode ser negado ao aluno e como forma de
apreensão da realidade em suas múltiplas determinações.

1.3 O CURRÍCULO DO ESPÍRITO SANTO

Além da BNCC, o desenvolvimento do presente trabalho prevê um diálogo com o Currículo do


ES; implementado em 2020, o documento foi elaborado, de acordo com a SEDU, por
profissionais da educação do Estado em colaboração com a UNDIME, incluindo professores
redatores, professores analistas, professores colaboradores, articuladores municipais e equipe
ProBNCC do Espírito Santo. Disponível no sítio eletrônico
“https://curriculo.sedu.es.gov.br/curriculo/documentos/”, a versão do currículo do Ensino
Médio traz a seguinte mensagem: “Os documentos curriculares do Ensino Médio já podem ser
utilizados pela equipe escolar. No entanto, salientamos que os documentos estão em fase de
revisão ortográfica e diagramação”, não apresentando prazo para a conclusão desse trabalho.
41

Embora o Currículo do Espírito Santo para o Ensino Médio ainda esteja em fase de revisão
ortográfica e diagramação, é o documento que atualmente norteia o trabalho docente nas escolas
do Estado, por isso, cabe a análise sobre a abordagem do trabalho com o texto literário em sala
de aula para o Ensino Médio.

O documento é dividido em dois eixos: formação geral básica e Itinerários Formativos. A


formação geral básica contempla texto introdutório e direcionamento para cada área do
conhecimento (Linguagens, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Matemática); o eixo
linguagens está subdividido em Língua Portuguesa e Linguagens. Em relação aos Itinerários
Formativos, são apresentados documentos de aprofundamento das áreas do conhecimento
(“Educação Financeira e Fiscal”; “Terra, Vida e Cosmo”; “Mídias Digitais: linguagem em ação
e modernização”, “Transformação Social e Meio Ambiente”). Além disso, são apresentados
documentos de aprofundamento entre as áreas do conhecimento (“O Esporte, a Ciência e Suas
Linguagens”; “Energias Renováveis e Eficiência Energética”, “Narrativas Socioliterárias:
Literatura”, “Arte e Ciências Humanas escrevem o mundo”; “Humanidades e Relações
Socioambientais” e “Aspirações Docentes”). Como não dispomos de tempo para fazer uma
análise minuciosa de cada parte do documento, nos atentaremos nesse momento aos materiais
que abordam especificamente o ensino de Literatura: o documento “Língua Portuguesa” do eixo
Linguagens, pertencente à formação geral básica e o documento de aprofundamento entre as
áreas do conhecimento intitulado “Narrativas Socioliterárias: Literatura”, pertencente aos
Itinerários Formativos.

1.3.1 Currículo do Espírito Santo – Ensino Médio – Língua Portuguesa

O material de base curricular para Língua Portuguesa foi construído com direcionamento às
três séries do Ensino Médio. Contempla os itens: “campo de atuação”, “objeto de
conhecimento”, “código da habilidade” e “habilidade”. Os campos de atuação mencionados
são: “campo artístico-literário”, “campo da vida pessoal”, “campo da vida pública”, “campo
das práticas de estudo e pesquisa” e “campo jornalístico-midiático” (ESPÍRITO SANTO,
2020).

A palavra “Literatura” aparece 45 vezes no documento, a palavra “literário” aparece 114 vezes,
há três ocorrências do termo “literária” e 27 vezes aparece o termo “literárias”, tais palavras
sempre estão relacionadas ao “campo artístico-literário” nas três séries do Ensino Médio.
42

Quatorze são as habilidades em cada uma das séries que se referem diretamente a questões
ligadas à Literatura.

A primeira e a segunda habilidades expostas no documento estão diretamente relacionadas aos


objetos de conhecimento: “Construção composicional de textos literários”, “Efeito de sentido
dos textos” e “Adesão às práticas de leitura de textos literários das mais diferentes tipologias e
manifestações literárias”, conforme seguem:

EM13LP46 - Compartilhar sentidos construídos na leitura/escuta de textos literários,


percebendo diferenças e eventuais tensões entre as formas pessoais e as coletivas de
apreensão desses textos, para exercitar o diálogo cultural e aguçar a perspectiva crítica.
EM13LP58/ES - Perceber, em textos de autores da Literatura contemporânea, a
dimensão atemporal, universal e plurissignificativa de produções literárias,
considerando, de forma significativa, as múltiplas manifestações literárias (Literatura
Capixaba, Literatura Juvenil Brasileira, Literatura de autoria feminina etc.) e
implicações temáticas: Racismo, Preconceito e Discriminação na Literatura
contemporânea (ESPÍRITO SANTO, 2020, p. 31).

Parece-nos, em primeira instância, bastante relevante o fato de o documento incentivar o


diálogo cultural e aguçar a perspectiva crítica, além disso, ressaltar a importância de múltiplas
manifestações literárias e suas consequentes implicações temáticas parece ser suficiente para
gerar o posicionamento crítico que supostamente se espera do estudante; pensando
dialeticamente, ou seja, por contradição, é importante notar que, de um lado, essa formulação
que enfatiza a leitura de produções literárias de menor visibilidade junto ao cânone literário
como as de autoria feminina e a abordagem de temas como Racismo, Preconceito e
Discriminação na Literatura contemporânea parece ter intenção de fazer um tipo de justiça
social; de outro lado, tal discurso, entretanto, parece reforçar o conteúdo multiculturalista dos
documentos curriculares da pós-modernidade, que relega a segundo plano o ensino dos
conteúdos clássicos (e, com eles, os conceitos centrais do campo do conhecimento), sob o
discurso de que a escola tem condições de – por si só – resolver as diferenças e injustiças sociais.

Além disso, ao listar somente Racismo, Preconceito e Discriminação, o texto restringe os temas
identificados como contemporâneos, apagando questões como desigualdade de classe,
exploração, capacitismo, violência urbana, destruição ambiental, metalinguagem, trânsito
interartes etc. Outra questão a ser suscitada no excerto retirado do documento é o fato de que,
ao incentivar a percepção da dimensão atemporal dos textos da Literatura contemporânea, tem-
se uma negação do processo histórico. Retoma-se uma concepção idealista de Literatura, de
que o valor literário prescinde das relações em cada contexto histórico.
43

As três habilidades que listaremos a seguir se relacionam aos objetos de conhecimento:


“Recursos linguísticos e semióticos que operam nos textos pertencentes aos gêneros literários
dos textos literários das origens à contemporaneidade”; “Adesão às práticas de leitura de textos
literários das mais diferentes tipologias e manifestações literárias” e “Estilo dos textos literários
contemporâneos”:
EM13LP47 - Participar de eventos (saraus, competições orais, audições, mostras,
festivais, feiras culturais e literárias, rodas e clubes de leitura, cooperativas culturais,
jograis, repentes, slams etc.), inclusive para socializar obras da própria autoria
(poemas, contos e suas variedades, roteiros e microrroteiros, videominutos, playlists
comentadas de música etc.) e/ou interpretar obras de outros, inserindo-se nas
diferentes práticas culturais de seu tempo.
EM13LP59/ES - Apresentar mostras culturais, espetáculos artísticos, exposições,
considerando-se os usos da oralidade e das expressões corporais, bem como os
elementos envolvidos na situação discursiva: interlocutores, objetivos comunicativos,
maior e/ou menor formalidade (exemplos: saraus literários, peças teatrais, espetáculos
de dança, esquetes etc.).
EM13LP60/ES - Conhecer e vivenciar, in loco, manifestações artísticas das mais
diferentes vertentes, ampliando, assim, o seu repertório artístico-cultural.
(ESPIRITO SANTO, 2020, p. 31).

O primeiro fragmento nos chama a atenção – em um primeiro momento – ao incentivar a


participação do educando em festivais, feiras literárias, clubes de leitura, entre outros. Todavia,
ao falar da socialização de obras de própria autoria e/ou interpretação de obras de outros, não
existe uma clareza sobre quem seriam esses outros, deixando margem para múltiplas
interpretações. Não estamos aqui defendendo que o aluno não deva escrever e apresentar obras
de sua autoria, mas esse não pode ser o cerne da educação literária, não há como escrever
adequadamente se não existe um repertório cultural, o qual não se produz a partir de leitura de
jornais e de textos de redes sociais, mas a partir da leitura intencional e mediada que deve
acontecer no ambiente escolar. Ademais, conhecer manifestações artísticas das mais variadas
vertentes parece, a princípio, uma soma positiva ao repertório cultural do aluno, todavia,
entendemos que o conhecimento tácito e o compartilhamento de atividades do cotidiano já
acontecem fora do ambiente escolar, não devendo ser tarefa precípua da escola; o que pode ser
trazido para o precioso tempo de sala de aula é a articulação dessas atividades e vivências
culturais a algum conhecimento (por exemplo, não faz sentido simplesmente apresentar aos
alunos a existência de playlists comentadas; mas se isso for articulado a uma proposta de
pesquisa sobre o panorama cultural de uma época, pode-se ter uma interessante atividade
pedagógica).

Duas outras habilidades, que se relacionam diretamente à Literatura e aos cognatos pesquisados,
têm como objeto de conhecimento “Recursos linguísticos e semióticos que operam nos textos
pertencentes aos gêneros literários dos textos literários das origens à contemporaneidade”;
44

“Efeito de sentido dos textos literários das origens à contemporaneidade” e “Adesão às práticas
de leitura de textos literários das mais diversas tipologias”:

EM13LP48 – Identificar assimilações, rupturas e permanências no processo de


constituição da Literatura brasileira e ao longo de sua trajetória, por meio da leitura e
análise de obras fundamentais do cânone ocidental, em especial da Literatura
portuguesa, para perceber a historicidade de matrizes e procedimentos estéticos.
EM13LP61-ES – Compreender a presença do cânone e das manifestações literárias
populares como obras de historicidade e atemporalidade importantes para a formação
humana e construção do seu meio social, valorizando artística e culturalmente as mais
diversas produções literárias locais, nacionais e internacionais (ESPÍRITO SANTO,
2020, p. 33, grifo nosso).

Se, por um lado, a sugestão de leitura e a indicação da análise de obras completas do cânone
ocidental a fim de identificar questões relativas ao processo de constituição da Literatura
brasileira ao longo de sua trajetória parece ser propícia ao ensino de Literatura; por outro lado,
devemos destacar que o termo “cânone ocidental” por si é extremamente excludente e
conservador. Em sua obra Orientalismo, Said (2007, p. 9) inicia a discussão sobre a questão
afirmando que “nem o termo 'Oriente' nem o conceito de 'Ocidente' têm estabilidade ontológica;
ambos são constituídos de esforço humano – parte afirmação, parte identificação do Outro”, em
outras palavras, o autor considera que a divisão entre cultura ocidental e oriental foi criada pela
Europa, não se sustentando de outro modo senão a conotar o colonialismo europeu do século
XIX, sob um discurso de autoridade e imposição de força de um povo sobre o outro:

Não há nada misterioso ou natural sobre a autoridade. É formada, irradiada,


disseminada; é instrumental, é persuasiva; tem status, estabelece cânones de gosto e
valor; é virtualmente indistinguível de certas ideias que dignifica como verdadeiras,
e de tradições, percepções e julgamentos que forma, transmite, reproduz. Acima de
tudo, a autoridade pode, na verdade deve, ser analisada. Todos esses atributos da
autoridade se aplicam ao Orientalismo, e muito do que faço neste estudo é descrever
tanto a autoridade histórica como as autoridades pessoais do Orientalismo (SAID,
2007, p. 43, grifo nosso).

A partir da discussão do autor sobre o “Orientalismo”, podemos perceber como a seleção de


cânones de gosto e valor é pautada no discurso de autoridade, sob uma perspectiva totalmente
excludente e de apagamento da própria história; na perspectiva da autoridade, ouve-se sempre
apenas um lado da história. Se pensarmos nos textos evidenciados pelo cânone brasileiro, por
exemplo, veremos quantos autores que marcam e marcaram seu tempo com textos de qualidade
que não foram selecionados pela crítica elitizada para comporem a relação.

Além disso, devemos ficar atentos à referência da competência analisada ao incentivar a ênfase
na Literatura portuguesa, como se ela, primeiro, fosse uma expressão mais relevante que outras
45

do invocado “cânone ocidental”; e segundo, como se ela, por si, permitisse perceber a
historicidade de matrizes e procedimentos estéticos.

Chama nossa atenção ainda o uso do termo “perceber” que, segundo o dicionário Michaelis
significa “apreender algo, por meio dos sentidos” (PERCEBER, 2022), evidenciando que se
prescinde do movimento analítico e conceitual, como se a simples percepção (ou seja, a
atividade sensível, de contato) por si só desse conta de mostrar ou revelar a historicidade. Ao
contrário do que defendemos, que é a importância da abstração (teórica) para o movimento que,
pela mediação do abstrato, chega ao concreto.

No segundo excerto, além de ser novamente evocada a questão do cânone, excludente por si,
faz-se alusão à “historicidade e atemporalidade importantes para a formação humana”
(ESPÍRITO SANTO, 2020, p. 33), quando, na verdade, conforme já discutimos, analisar textos
sob essa concepção implica uma negação do processo histórico de desenvolvimento humano o
que, ao contrário do que o texto diz, não favorece a formação humana.

A próxima habilidade que destacamos relaciona-se aos objetos de conhecimento: “Efeito de


sentido dos textos literários das origens à contemporaneidade”; “Construção composicional dos
textos literários das origens à contemporaneidade” e “Manifestações literárias”;

EM13LP49a/ES7 – Perceber as peculiaridades estruturais e estilísticas de diferentes


gêneros literários (a apreensão pessoal do cotidiano nas crônicas, a manifestação livre
e subjetiva do eu lírico diante do mundo nos poemas, a múltipla perspectiva da vida
humana e social dos romances, a dimensão política e social de textos da Literatura
marginal e da periferia, da Literatura juvenil brasileira, da Literatura capixaba, da
Literatura de autoria feminina, da Literatura das diferenças etc.) para experimentar os
diferentes ângulos de apreensão do indivíduo e do mundo pela Literatura (ESPÍRITO
SANTO, 2020, p. 33).

Novamente a habilidade utiliza o verbo “perceber” que traz em sua essência, conforme
discutido anteriormente, a questão do “apreender algo por meio dos sentidos” (PERCEBER,
2022), o que implica em uma redução do trabalho teórico que exige abstração, reflexão, uso de

7
Segundo a BNCC (BRASIL, 2018, p. 34), o primeiro par de letras indica a etapa Ensino Médio; na sequência
vem o primeiro par de números que indica que as habilidades descritas podem ser desenvolvidas em qualquer série
do Ensino Médio, de acordo com a definição dos currículos; LP identifica o componente curricular Língua
Portuguesa e os números finais indicam a competência específica. Complementarmente, o Currículo do Espírito
Santo – Ensino Médio – Linguagens (ESPÍRITO SANTO, 2020b, p. 8) traz que os números finais indicam a
“numeração sequencial da habilidade, sendo que novas habilidades recebem nova numeração”, a letra minúscula
que pode estar presente “a” no caso do termo em destaque é uma “indicação sequencial do desdobramento da
habilidade original da BNCC”, enquanto a sigla “ES” presente ao final de algumas competências é o “complemento
do código que indica alteração para o currículo do ES”.
46

conceitos. Quando se fala ainda em “experimentar diferentes ângulos de apreensão do


indivíduo” (ESPÍRITO SANTO, 2020, p. 33), devemos lembrar que, de acordo com o
movimento dialético de aprendizagem, a experimentação faz parte do processo, mas não é o
ponto de chegada. Quando se espera a experimentação como produto do processo educativo,
deixa-se de lado o estudo da Literatura para a produção de um conhecimento mais amplo e
profundo sobre a sociedade, ignora-se a Literatura como saber elaborado sobre as coisas e as
pessoas, o estudo acontece apenas para experimentar diferentes ângulos de apreensão - há,
implicitamente, a negação da possibilidade de qualquer saber objetivo.

Além disso, a descrição da habilidade EM13LP49a/ES apresenta uma confusão sobre o que
seria estrutura (forma) e tema/discurso. Ao dizer que se deve “perceber as peculiaridades
estruturais e estilísticas de diferentes gêneros literários”, espera-se que sejam apresentados nos
parênteses exemplos de formas textuais, quando na verdade são apresentadas informações sobre
o tema ou o discurso “a apreensão pessoal do cotidiano nas crônicas”, dentre outros itens
enumerados pelo texto.

Bakhtin (1992, p. 262) entende que o emprego da língua se dá a partir de enunciados, sendo
cada um desses enunciados irrepetível (pois quando a situação enunciativa se modifica, se
modificam também as condições de produção de sentido do enunciado); mas, ao mesmo tempo,
cada campo de utilização da língua mantém tipos de enunciados que se tornam relativamente
estáveis, são os conhecidos gêneros do discurso que se manifestam em diversas formas: relato
do dia a dia, carta, artigos de divulgação científica, provérbio, romance, etc. O autor considera
que “o discurso sempre está fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado
sujeito do discurso, e fora dessa forma não pode existir” (BAKHTIN, 1992, p. 274). Em relação
ao estilo, o autor esclarece que “todo estilo está indissoluvelmente ligado ao enunciado e às
formas típicas de enunciados, ou seja, aos gêneros do discurso” (BAKHTIN, 1992, p. 265),
embora gênero e estilo estejam imbrincados, segundo o autor, eles se distinguem, uma vez que
o estilo da linguagem se dá pela “seleção de recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da
língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional” (BAKHTIN, 1992, p. 261).

Outra habilidade destacada relaciona-se ao objeto de conhecimento “Recursos linguísticos e


semióticos que operam nos textos pertencentes aos gêneros literários dos textos literários das
origens à contemporaneidade”:
EM13LP50 – Analisar relações intertextuais e interdiscursivas entre obras de
diferentes autores e gêneros literários de um mesmo momento histórico e de
47

momentos históricos diversos, explorando os modos como a Literatura e as artes em


geral se constituem, dialogam e se retroalimentam (ESPÍRITO SANTO, 2020, p. 35).

Na sequência, o documento traz como objeto de conhecimento mais três itens: “Adesão às
práticas de leitura”; “Estilo dos textos literários das origens à contemporaneidade” e “Efeito de
sentido dos textos literários das origens à contemporaneidade” que se relacionam à habilidade:

EM13LP51 – Selecionar obras do repertório artístico-literário contemporâneo à


disposição segundo suas predileções, de modo a constituir um acervo pessoal e dele
se apropriar para se inserir e intervir com autonomia e criticidade no meio cultural
(ESPÍRITO SANTO, 2020, p. 35).

Ressaltamos que não somos contrários à autonomia do aluno na seleção de repertórios literários,
entretanto, entendendo autonomia de acordo com o dicionário Michaelis como “capacidade de
autogovernar-se, de dirigir-se por suas próprias leis ou vontade própria, soberania”
(AUTONOMIA, 2022), precisamos ressaltar que esse “autogoverno de si” não existe
desencarnado, muito menos fora das condições materiais objetivas de existência; em outras
palavras, a autonomia precisa ser construída com consciência, por meios materiais como
biblioteca, mediador, tempo livre, por meio da apropriação de conteúdos clássicos, que permita
– pela mediação do abstrato – a passagem do sincrético ao concreto e o desenvolvimento do
pensamento por conceitos com a consequente modificação da prática social. Portanto, para que
o aluno seja autônomo na escolha de textos não para reforçar “hábitos de leitura”, mas para seu
próprio desenvolvimento enquanto ser humano, faz-se necessário todo um processo que
envolve tempo em sala de aula, mediação do par mais desenvolvido, seleção de conteúdos a
serem trabalhados, de modo que o ensino de Literatura seja intencional, planejado e
sistematizado.

Outra habilidade destacada pelo documento tem como objeto de conhecimento “Figuras de
linguagem dos textos literários das origens à contemporaneidade”; “Estilo dos textos literários
das origens à contemporaneidade”; “Efeito de sentido dos textos literários das origens à
contemporaneidade” e “Recursos linguísticos e semióticos que operam nos textos pertencentes
aos gêneros literários” e diz respeito à análise de “obras significativas das Literaturas
brasileiras” com base em ferramentas da crítica.

EM13LP52 – Analisar obras significativas das Literaturas brasileiras e de outros


países e povos, em especial a portuguesa, a indígena, a africana e a latino-americana,
com base em ferramentas da crítica literária (estrutura da composição, estilo, aspectos
discursivos) ou outros critérios relacionados a diferentes matrizes culturais,
considerando o contexto de produção (visões de mundo, diálogos com outros textos,
inserções em movimentos estéticos e culturais etc.) e o modo como dialogam com o
presente. (ESPÍRITO SANTO, 2020, p. 35).
48

Acreditamos que trabalhar com obras da Literatura brasileira é de fundamental importância,


uma vez que defendemos o papel da escola na transmissão do saber elaborado de acordo com
os pressupostos da pedagogia histórico-crítica. Entretanto, o fato de elas serem significativas
ou não é algo subjetivo, que não está ao nosso alcance.

Ligam-se ainda aos objetos de conhecimento “Apreender o sentido geral dos textos”;
“Apreciação e réplica dos textos literários das origens à contemporaneidade” e “Manifestações
literárias” outras duas habilidades descritas pelo documento:
EM13LP53 – Produzir apresentações e comentários apreciativos e críticos sobre
livros, filmes, discos, canções, espetáculos de teatro e dança, exposições etc.
(resenhas, vlogs e podcasts literários e artísticos, playlists comentadas, fanzines, e-
zines etc.).
EM13LP62/ES - Apresentar mostras culturais, espetáculos artísticos, exposições,
considerando-se os usos da oralidade e das expressões corporais, bem como os
elementos envolvidos na situação discursiva: interlocutores, objetivos comunicativos,
maior e/ou menor formalidade (exemplos: saraus literários, peças teatrais, espetáculos
de dança, esquetes etc.). (ESPÍRITO SANTO, 2020, p. 37).

Entendemos que ter como objetivo produzir a reflexão crítica no educando é importante,
todavia, não podemos perder de vista duas questões: primeiramente, o desenvolvimento da
consciência crítica passa por uma educação de qualidade com ensino do que de mais rico a
humanidade produziu ao longo dos tempos (saberes elaborados); em segundo lugar, conforme
afirma Saviani (2020), as atividades extracurriculares – apresentação de peças teatrais,
exposições, dentre outros – são válidas somente se forem feitos para enriquecer o conteúdo que
deve ser socializado em sala de aula.

Por fim, para atender aos objetos de conhecimento: “Relação entre contexto de produção e
características composicionais e estilísticas dos gêneros dos textos literários das origens à
contemporaneidade” e “Construção composicional”, tem-se a habilidade:

EM13LP54 - Criar obras autorais, em diferentes gêneros e mídias - mediante seleção


e apropriação de recursos textuais e expressivos do repertório artístico -, e/ou
produções derivadas (paródias, estilizações, fanfics, fanclipes etc.), como forma de
dialogar crítica e/ou subjetivamente com o texto literário (ESPÍRITO SANTO, 2020,
p. 37).

Dentre os significados do termo subjetivo, Silva (2009) afirma haver dissonâncias entre muitos
autores. Enquanto uns utilizam o conceito que estabelece a subjetividade como interna ao
indivíduo, colocando-a em relação dialética com a objetividade que, por sua vez, refere-se ao
que é externo; para a pedagogia histórico-crítica e para a psicologia histórico-cultural, vai-se
além, uma vez que sua gênese não está no interior do indivíduo:
49

A gênese dessa parcialidade está justamente nas relações sociais do indivíduo, quando
ele se apropria (ou subjetiva) de tais relações de forma única (da mesma maneira
ocorre o processo de objetivação). Ou seja, o desenvolvimento da subjetividade ocorre
pelo intercâmbio contínuo entre o interno e o externo, relação essa que Vigotski
(1995) descreve quando se refere à gênese das funções psicológicas superiores
(SILVA, 2009, p. 172).

Dessa forma, entende-se a subjetividade como processo que constitui o psiquismo e que permite
ao ser humano apropriar-se das produções humanas por meio da universalidade, tendo como
ponto de partida as condições de sua própria vida por meio da particularidade, que constitui os
indivíduos em sua singularidade, mesmo quando compartilham as mesmas condições de vida
(SILVA, 2009, p. 174). Em outras palavras,

[...] subjetividade se refere ao processo de apropriação da realidade objetiva, sendo


processo básico para a constituição e compreensão do psiquismo, enquanto a
individualidade é a herança biológica de toda pessoa, que é a base para o processo de
subjetivação e construção de todo o psiquismo (SILVA, 2009, p. 174).

Dessa forma, compreendemos que a subjetividade é processo constitutivo do psiquismo que


tem como base material tanto as condições objetivas de existência do sujeito quanto sua
individualidade (características genéticas e biológicas) que ganha singularidade à medida que
o indivíduo se desenvolve até desenvolver a forma complexa denominada personalidade, que
supera por incorporação a individualidade (SILVA, 2009, p. 187). Ressaltamos com isso o fato
de que não é qualquer tipo de ensino que vai dar conta do desenvolvimento do psiquismo e do
consequente estabelecimento do pensamento conceitual, assunto que aprofundaremos mais
adiante.

1.3.2 Itinerário Formativo – Ciências Humanas e Sociais aplicadas e Linguagens e


Códigos e suas Tecnologias

O outro documento integrante do novo currículo estadual para o Ensino Médio que, a nosso
ver, merece destaque é o itinerário formativo “Ciências Humanas e Sociais aplicadas e
Linguagens e códigos e suas tecnologias” (ESPÍRITO SANTO, 2020a), que integra a parte
diversificada do currículo.

O documento apresenta em seu texto uma preocupação com a construção de “um currículo
transdisciplinar e a formação integral do indivíduo”.

Nessa perspectiva o percurso formativo entre as áreas de Ciências Humanas e Sociais


Aplicadas (CHSA) e de Linguagens e suas Tecnologias visa proporcionar ao estudante
egresso conhecimentos referentes à formação humana em suas múltiplas dimensões.
50

Para isso foram elencados temas sociais relevantes para cada módulo por série para
que o estudante reflita sobre a realidade em âmbito local, nacional e até mundial e ao
final do percurso seja capaz de relacionar as diferentes linguagens e os diferentes
conhecimentos, por meio de uma formação ética, estética e crítica (ESPÍRITO
SANTO, 2020a, p. 30).

Sobre a questão do currículo em si, trataremos mais adiante com base nos pressupostos da
pedagogia histórico-crítica.

Ao fazermos uma busca simples no documento, a palavra “Literatura” aparece 39 vezes. Nas
páginas iniciais, o documento localiza o leitor com a definição de itininerários formativos e
com os marcos legais do novo Ensino Médio; além disso, apresenta as disciplinas Estudo
Orientado, Eletivas e Projeto de Vida. Nas páginas seguintes, o documento estabelece um
currículo que busca nortear o aprofundamento das áreas de Ciências Humanas e Sociais
Aplicadas e Linguagens e suas Tecnologias (ESPÍRITO SANTO, 2020a).

Com a justificativa de produzir um currículo transdiciplinar, o percurso formativo visa


“proporcionar ao estudante egresso conhecimentos referentes à formação humana em suas
múltiplas dimensões”. Para isso, o documento propõe que como metodologia sejam analisadas
obras literárias à luz de conhecimentos específicos “dos componentes curriculares Arte e
Língua Portuguesa da área de Linguagens e suas Tecnologias e Filosofia, Geografia, História e
Sociologia da área de CHSA” e sugere o trabalho com eixos temáticos no Ensino Médio. “Os
temas que serão focados nas obras literárias são: Juventudes, Violências e Migrações e
Imigrações para a 2ª série e Representação Social da Mulher, Identidade Cultural e Trabalho
para a 3ª série” (ESPÍRITO SANTO, 2020a, p. 30).

Os percursos formativos contemplados pelo novo Ensino Médio são escolhidos pelos alunos
que estão cursando a 1ª série e passam a vigorar na 2ª série do Ensino Médio, nesta com 200
horas, e na 3ª série com 400 horas reservadas para as disciplinas elencadas de acordo com a
escolha do estudante.

Em relação ao percurso formativo, o documento apresenta ainda a forma de organização em


trimestres e fala dos objetivos:

Os trimestres nas séries foram organizados de acordo com os quatro eixos


estruturantes – Investigação Científica, Processos Criativos, Mediação e Intervenção
Sociocultural e Empreendedorismo - determinados nos Referenciais Curriculares para
a Elaboração dos Itinerários Formativos (2018). Essa forma de organização possibilita
que os estudantes “(...) vivenciem experiências educativas profundamente associadas
à realidade contemporânea, que promovam a sua formação pessoal, profissional e
cidadã” (BRASIL, 2018). Nesse sentido, os percursos formativos desenvolverão as
51

habilidades relacionadas às competências gerais da BNCC e as habilidades associadas


à área específica do conhecimento de acordo com cada eixo estruturante.
Objetivamos que, ao final deste percurso, os estudantes ampliem seus conhecimentos
de mundo e se tornem leitores críticos, capazes de aliar às múltiplas interpretações das
obras literárias aos conhecimentos advindos dos diversos componentes curriculares
que se somarão nas análises do texto literário, para que, assim, se tornem cidadãos
mais críticos, sensíveis e humanos (ESPÍRITO SANTO, 2020a, p. 31).

Embora o documento siga as orientações dispostas na BNCC, e o próprio título do percurso


formativo em questão pareça tratar o texto narrativo como superior aos outros tipos textuais,
não podemos deixar de reconhecer o avanço que o percurso formativo intitulado “Narrativas
socioliterárias: Literatura, Arte e Ciências Humanas escrevem o mundo” traz em relação à
seleção de obras para o trabalho no Ensino Médio. Com uma organização a partir de eixos
temáticos, o documento elenca diversas obras clássicas que podem ser trabalhadas em sala de
aula:

Quadro 1 – Sugestões de Obras literárias básicas para o percurso formativo

2ª série do Ensino Médio

Módulo 1: Juventudes: relações geracionais

1. Olhos d’água - Conceição Evaristo (conto);


2. Ponciá Vicêncio - Conceição Evaristo (romance);
3. O fazedor de velhos - Rodrigo Lacerda (romance);
4. A terceira margem do rio - João Guimarães Rosa (conto);
5. Édipo Rei - Sófocles (peça teatral, romance e/ou adaptações);
6. Hamlet - Willian Shakespeare (peça teatral, romance e/ou adaptações);
7. O Peru de Natal - Mário de Andrade (conto);
8. Teoria do Medalhão - Machado de Assis (conto);
9. O menino de engenho - José Lins do Rego (romance);
10. I-Juca Pirama - Gonçalves Dias (poema);
11. Aos 7 e aos 40: João Anzanello Carrascoza;
12. Eu e o silêncio do meu pai – Caio Riter;
13. Vermelho amargo – Bartolomeu Campos;
14. Do jeito que a gente é – Marcia Leite;
15. Depois daquela viagem – Valéria Piassa Polizzi.

Módulo 2: Violências

1. O Cobrador - Rubem Fonseca (conto) - violência urbana;


2. Cidade de Deus - Paulo Lins (romance) - violência urbana /drogas/tráfico;
3. De carona, com Nitro - Luís Dill (novela policial) - violência no trânsito;
4. O diário de Anne Frank - Anne Frank (diário) - violência física / holocausto / violência simbólica;
5. Olhos d’água - Conceição Evaristo (livro) - violência doméstica / violência física / violência simbólica etc.;
6. O Navio Negreiro - Castro Alves - violência física / violência étnico-racial;
7. Capitães de Areia - Jorge Amado - violência física / criminalidade / abandono;
8. Anjo das Marquises- Rubem Fonseca (conto) - violência urbana;
9. Noite na Taverna - Álvares de Azevedo (livro) - alcoolismo / morte / drogas;
10. Decifrando Ângelo - Luís Dill (Violência na escola);
11. Todos contra Dante – Luís Dill (Bullying na escola);
12. Beijo Mortal – Luís Dill (Chacina);
52

13. O abraço – Lygia Bojunga (Abuso sexual);


14. Eu sou Malala - Malala Yousafzai;
15. Passeio Noturno (conto) - Rubem Fonseca.

Módulo 3: Migrações e Imigrações

1. Os Sertões - Euclides da Cunha (romance);


2. Canãa - Graça Aranha (romance);
3. Vidas Secas - Graciliano Ramos (romance);
4. Morte e Vida Severina- João Cabral de Melo Neto (poema dramático);
5. A Carta de Caminha - Pero Vaz de Caminha (carta, visão europeia do Brasil);
6. Fragosas Brenhas do Mataréu - Ricardo Azevedo;
7. Os Lusíadas – Luís Vaz de Camões;
8. A linha negra - Mario Teixeira;
9. Grande Sertão Veredas (romance) - João Guimarães Rosa;
10. O Auto da Compadecida (peça teatral) - Ariano Suassuna;
11. A Bagaceira (romance) - José Américo de Almeida;
12. O Quinze (romance) - Raquel de Queiroz;
13. São Jorge dos Ilhéus (romance) - Jorge Amado;
14. Ana Terra (romance) - Érico Veríssimo;
15. Urupês (contos) - Monteiro Lobato;
16. Brás, Bexiga e Barra Funda (contos) - Antônio de Alcântara Machado;
17. O tempo e o vento (romance) - Érico Veríssimo;
18. Evocação do Recife (poema) - Manuel Bandeira;
19. Novelas paulistanas (contos) Alcântara Machado;
20. Vozes d’África (poema) - Castro Alves;
21. Mensagem (poemas) - Fernando Pessoa;
22. Pauliceia Desvairada (poemas) - Mário de Andrade;
23. Macunaíma (romance) - Mário de Andrade;
24. Memórias sentimentais de João Miramar - Oswald de Andrade;
25. Inocência (romance) - Visconde de Taunay;
26. O Gaúcho (romance) José de Alencar.

3ª série do Ensino Médio

Módulo 1: Representação social da Mulher

1. A Bolsa Amarela – Lygia Bojunga Nunes;


2. Clara dos Anjos – Lima Barreto;
3. A moça tecelã – Marina Colasanti ( conto);
4. Quarto de despejo: Diário de uma favelada – Carolina Maria de Jesus;
5. Senhora – José de Alencar;
6. São Bernardo – Graciliano Ramos;
7. Conceição Evaristo (contos: Olhos d’água, Ana Davenga, Quantos filhos Natalina teve?) (contos);
8. Lygia Fagundes Telles - Pomba enamorada ou uma história de amor, Venha ver o pôr-do-sol, Lua
crescente em Amsterdã (contos);
9. Laços de Família - Clarice Lispector (contos) ;
10. A hora da Estrela - Clarice Lispector (novela / romance);
11. Bernadette Lyra LITERATURA CAPIXABA (As contas no canto – livro de contos);
12. Retrato (poema) - Cecília Meireles
13. Lua Adversa (poema) - Cecília Meireles

Módulo 2: Identidade cultural

1 Macunaíma (romance) - Mário de Andrade


2 Carta (carta/ Literatura de viagem) - Pero Vaz de Caminha
3 I-Juca Pirama (poema) - Gonçalves Dias
4 América (poema) - Castro Alves
5 Navio Negreiro (poema) - Castro Alves
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6 O Guarani - José de Alencar


7 Iracema - José de Alencar

Módulo 3: Trabalho e Sociedade

1 Eu sou Maria – Sônia Rodrigues


2 Vidas Secas – Graciliano Ramos
3 Toda poesia (coletânea de poemas) - Ferreira Gullar
4 O Triste Fim de Policarpo Quaresma - Lima Barreto
5 Um homem de consciência - conto do livro “Cidades Mortas” - Monteiro Lobato
6 “Ode ao burguês” - (poema) - Mário de Andrade
7 Memórias Sentimentais de João Miramar - Oswald de Andrade
8 Morte do leiteiro (poema) - Carlos Drummond de Andrade
9 “Modinha do empregado de banco” (poema) - Murilo Mendes

Fonte: Espírito Santo (2020a), p. 124-126.

Como se pode perceber, muitas obras reconhecidamente clássicas foram elencadas no itinerário
formativo, como por exemplo: Capitães de Areia – Jorge Amado, Os Sertões – Euclides da
Cunha, Vidas Secas – Graciliano Ramos, Grande Sertão: Veredas – João Guimarães Rosa,
dentre outros. O documento ressalta que existe a sugestão de trabalho, mas o professor pode
utilizar as obras disponíveis em sua escola. Cumpre destacar que, embora seja importante que
o documento curricular indique algumas obras que, em tese, atenderiam aos desígnios
propostos, o Estado desobriga-se de assegurar os recursos materiais necessários para que os
professores possam efetivamente trabalhar com tais obras, na medida em que responsabiliza o
docente unilateralmente por cumprir o currículo, sem a disponibilidade efetiva dos livros nas
bibliotecas escolares.

Sobre a representatividade das obras literárias, o texto completa:

As obras literárias escolhidas são as mais representativas dos temas abordados e


trazem, em seu bojo, ao mesmo tempo, o registro e o olhar pessoal de cada um que se
propôs a escrever. Dessa forma, o recorte histórico referente à época de produção dos
textos literários molda e reflete a estética que caracteriza cada obra, tornando-a
portadora de valores e de marcas do tempo que retrata. Assim, por meio dos escritos
literários, podemos ter uma dimensão das relações humanas de cada época, bem como
registros que nos permitem fazer as mais diversas inferências de cunho humano e
social (ESPÍRITO SANTO, 2020a, p. 30).

Ressaltamos que a afirmação segundo a qual “o recorte histórico referente à época de produção
dos textos literários molda e reflete a estética que caracteriza cada obra, tornando-a portadora
de valores e de marcas do tempo que retrata” (ESPÍRITO SANTO, 2020a, p. 30) evidencia o
estabelecimento de uma concepção mecanicista da relação entre contexto histórico e obra
literária. Em outras palavras, não entendemos que a obra literária seja hermética (no sentido
de que a época de produção molde e reflita, por uma relação direta e imediata, uma dada
estética – senão, recairíamos nas ditas “escolas literárias” ou nos ditos “estilos de época”, de
54

cariz positivista). Tampouco anuímos que uma obra seja significativa apenas pelo fato de
portar, explicitamente, valores e marcas de seu tempo; entendemos que o texto literário não
somente apresenta questões relativas a seu tempo, mas carrega em si uma historicidade
representativa do processo de evolução do gênero humano (e, nesse sentido, excede seu
momento de produção ou de leitura) que se reflete também nos dias atuais, uma vez que o fato
de uma obra ser – ainda hoje – representativa para o conjunto de seres humanos evidencia sua
relevância para além da possibilidade de exemplificar dadas características estéticas muito
patentes em dado momento histórico.

Se por um lado as sugestões inseridas no itinerário formativo “Narrativas socioliterárias:


Literatura, Arte e Ciências Humanas escrevem o mundo” parecem relevantes ao ensino de
Literatura em contexto escolar; por outro lado, somente os alunos que optarem por esse
percurso poderão ter acesso a um trabalho mais aprofundado de contato com Literatura. Além
disso, sabemos que a mera indicação com base em uma lista de obras não dá conta do trabalho
com a Literatura em sala de aula que requer material disponível, mediação adequada, alunos
que tenham necessidade de se apropriar da riqueza cultural produzida pela humanidade no
curso da história. De todo modo, o disposto no presente documento ratifica que a presente
pesquisa se desenvolve com vistas a contribuir para o aprimoramento da educação na rede
estadual de ensino, visando a transmissão do saber elaborado – o ensino de Literatura por meio
de textos clássicos – nas aulas regulares de Língua Portuguesa, não somente na parte
diversificada do currículo.

Ressaltamos, por fim, que nos módulos destinados ao trabalho com a Literatura são indicados
autores que já se tornaram clássicos nas discussões sobre leitura, Literatura e educação, tais
como: Aguiar, Ceccantini e Martha (2012); Dalvi, Rezende e Jover-Faleiros (2013); Todorov
(2010); Zilberman (2008), dentre outros cujas obras e pesquisas consideramos relevantes para
profissionais que anseiem se aprofundar no ensino de Literatura.

1.4 PNLD LITERÁRIO

Além dos documentos oficiais que regulamentam a educação literária no Ensino Médio,
ressaltamos que há também, desde 1997, políticas públicas que visam fomentar a leitura entre
os estudantes das escolas públicas. O PNBE8, Programa Nacional Biblioteca na Escola,

8
Programa Nacional Biblioteca na Escola. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/programa-nacional-
biblioteca-da-escola>. Acesso em: 1 jun. 2021.
55

recentemente substituído pelo PNLD Literário, teve por objetivo, segundo o MEC, “promover
o acesso à cultura e o incentivo à leitura nos alunos e professores por meio da distribuição de
acervos de obras de Literatura, de pesquisa e de referência” (BRASIL, 2022. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/busca-geral/318-programas-e-acoes-1921564125/pnld-439702797.
Acesso em 07 out. 2022).

O PNLD9 literário surgiu a partir da publicação do decreto nº 9099, de 18 de julho de 2017, e,


de acordo com o FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), o programa
unificou as ações de aquisição e distribuição de livros didáticos e literários, permitindo que as
escolas escolhessem as obras literárias, o que não era possível nas versões anteriores do PNBE.

Embora o PNBE tenha fornecido material para as escolas e agora – por meio do PNLD Literário
– alguns livros já tenham chegado a partir dos incentivos governamentais, já concluímos que o
simples acesso aos livros no ambiente escolar não dá conta do ensino de leitura literária, não
garantindo, portanto, um ensino adequado de Literatura (VINTER, 2017, p. 104). Para isso,
faz-se necessária uma mediação adequada no acesso ao conhecimento, além da seleção de obras
que permitam ao aluno passar do conhecimento sincrético ao sintético, que visem a promover
o desenvolvimento omnilateral do aluno.

9
Programas do Livro. Histórico. Disponível em: < http://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-
livro/biblioteca-na-escola/historico>. Acesso em 1 jun. 2021
56

2 TRABALHO, EDUCAÇÃO E A LUTA DE CLASSES

Neste capítulo, fizemos uma breve revisão sobre o material produzido em nossa área de
pesquisa e levantamos possibilidades de avanço em relação aos resultados já encontrados.
Apresentamos o levantamento de questões sobre orientações para as aulas de Literatura no
contexto da educação escolar de nível médio, com base em teses e dissertações recuperadas a
partir do Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (Capes) e em publicações localizadas em outras bases; e destacamos o papel da
escola na transmissão do saber elaborado visando ao melhor desenvolvimento humano dos
sujeitos, com base nos pressupostos e finalidades da pedagogia histórico-crítica (SAVIANI,
2013); para isso, relacionamos trabalho e educação, discutimos a questão da educação escolar
e da luta de classes, as políticas educacionais que promovem o esvaziamento da escola;
sintetizamos teorias críticas e não críticas conforme elaboração de Saviani (2013), para
chegarmos à pedagogia histórico-crítica, corrente pedagógica que adotamos com consciência,
por sua relevância na história da educação brasileira, por sua coerência ao longo de mais de 40
anos, por sua abrangência em relação aos muitos aspectos envolvidos no processo da educação
escolar e, enfim, por sua adequação aos objetivos desta pesquisa, para nosso trabalho em sala
de aula e para a presente tese.

2.1 O QUE DIZEM AS TESES E DISSERTAÇÕES SOBRE A SELEÇÃO DE REPERTÓRIO


DE LEITURAS PARA O ENSINO DE LITERATURA?

No primeiro capítulo desta tese, fizemos uma breve introdução, levantando as questões da
pesquisa, delimitando nosso objetivo geral que consiste em elaborar, com base nos estudos da
pedagogia histórico-crítica (sobre a função social da escola, sobre a organização do trabalho
pedagógico, sobre o papel do conhecimento objetivo e dos conteúdos clássicos na produção de
currículo escolar e sobre a atividade-guia ou dominante na adolescência), princípios gerais para
a seleção de leituras literárias a serem realizadas pelos estudantes de nível médio, a partir das
aulas da disciplina escolar de Língua Portuguesa, visando a seu máximo desenvolvimento no
contexto contemporâneo.

Para iniciarmos as discussões, buscamos entender o que os documentos oficiais dizem sobre o
ensino de Literatura em contexto escolar, traçando um paralelo com o que defendemos de
acordo com a pedagogia histórico-crítica. Neste capítulo, fizemos um levantamento das
57

pesquisas já realizadas sobre o assunto desta tese e trouxemos alguns conceitos caros à nossa
pesquisa.

A fim de averiguar a originalidade desta tese, buscamos no Catálogo de Teses e Dissertações


da Capes, entre julho e agosto de 2021, trabalhos que já haviam sido desenvolvidos na área. Ao
utilizarmos os descritores “Seleção de repertório de leitura” e “Ensino Médio”, a busca não nos
retornou resultado algum. Tentamos acrescentar o descritor “Clássicos” e também não
obtivemos retorno. Ao removermos as aspas e colocarmos os termos entre parênteses,
chegamos a 31 pesquisas, fizemos um recorte temporal entre os anos de 2001 e 2021 para
restringir os resultados. Para a busca, utilizamos os operadores lógicos booleanos e as palavras-
chave entre parênteses. Diante do resultado, constatamos que muitos trabalhos são anteriores à
plataforma Sucupira, outros tratam de clássicos de outras áreas como a filosofia. Observando,
todavia, a proximidade com nossa pesquisa, dentre os trabalhos relacionados ao Ensino Médio,
elencamos as contribuições de Sotini (2017). Passamos à busca, na sequência, pelas palavras-
chave “pedagogia histórico-crítica” e “Ensino de Literatura” da qual retornaram duas pesquisas.
Dentre elas destacamos a dissertação de mestrado de Costa (2014) e a tese de Ferreira (2012).
Buscamos ainda pelas palavras-chave “pedagogia histórico-crítica” e “Leitura Literária”, a
partir das quais obtivemos quatro resultados; dentre esses, destacamos – por afinidade ao nosso
trabalho – a dissertação de Fernandes (2017). Buscando entre as teses e dissertações defendidas
no Programa Pós-Graduação em Educação da Ufes, encontramos o trabalho de Figueiredo
(2020), com o qual nossa pesquisa também dialoga. Por fim, verificamos que Costa (2018) em
sua tese de doutorado trouxe uma profícua discussão sobre o romance na educação escolar.
Dessa forma, as dissertações e teses com as quais nosso trabalho parece dialogar seguem
listadas:

Quadro 2 – Teses e dissertações

AUTOR TÍTULO INSTITUIÇÃO DE ORIENTAÇÃO CIDADE ANO


ORIGEM
Nathalia A catarse estética e a Programa de pós- Newton Duarte Araraquara 2012
Botura de pedagogia histórico- graduação em Educação Dermeval Saviani
– SP
Paula crítica: contribuições Escolar – Doutorado –
Ferreira para o ensino de Universidade Estadual
Literatura Paulista Júlio de
Mesquita Filho
58

Larissa Ensino de Literatura: Programa de pós- Luiz Antonio Araraquara 2014


Quachio possível humanização graduação em Educação Calmon Nabuco
- SP
Costa do indivíduo no Escolar – Mestrado – Lastoria
contexto da atual Universidade Estadual Newton Duarte
sociedade Paulista Júlio de
Mesquita Filho
Fabiana A contribuição da Programa de pós- Celia Sebastiana Goiânia – 2017
Iolanda leitura de clássicos graduação em ensino ne da Silva GO
Sotini para a formação de Educação Básica –
leitores críticos em Mestrado – Universidade
uma escola pública de Federal de Goiás
Goiânia
Geuciane A ação docente: Programa de pós- Sandra Aparecida Londrina – 2017
Felipe possibilidades do ato graduação em Educação Pires Franco PR
Guerim de ler na Educação – Mestrado –
Fernandes Básica Universidade Estadual de
Londrina
Larissa O romance na Programa de pós- Newton Duarte Araraquara 2018
Quachio educação escolar: graduação em Educação –SP
Costa reverberações da arte Escolar – Doutorado –
narrativa na Universidade Estadual
concepção de mundo Paulista Júlio de
Mesquita Filho
Luana O poema clássico na Programa de pós- Ana Carolina Vitória – 2020
Martins educação escolar à luz graduação em Educação Galvão ES
Figueiredo da pedagogia – Mestrado –
histórico-crítica Universidade Federal do
Espírito Santo
Fonte: levantamento bibliográfico feito pela pesquisadora.

2.1.1 Trabalho com clássicos e catarse na pedagogia histórico-crítica

Ferreira (2012) traz em sua tese de doutorado a análise do conceito de catarse na pedagogia
histórico-crítica e na estética de Lukács. A autora defende que a catarse é produzida pelo
trabalho com os clássicos e que a função do ensino de Literatura escolar deve ser a de
desfetichizar a realidade humana. Alguns conceitos que seu estudo elucida são caros à nossa
reflexão, portanto, vale uma apuração mais detalhada do trabalho realizado.

O primeiro esclarecimento dado pelo trabalho em tela é que, ali, o conceito de catarse não se
aproxima da psicanálise, mas considera, tal como defendido por Lukács e por Saviani, a catarse
como uma categoria ético-política (FERREIRA, 2012, p. 22).

Ferreira (2012, p. 23) defende que o objetivo de sua tese é: “fornecer contribuições para a
fundamentação filosófico-pedagógica do trabalho escolar com obras literárias (...)”. A autora
esclarece que a partir do pensamento de Lukács, toma como ponto de partida “o valor da
socialização da arte irrenunciavelmente desfetichizadora e da catarse como necessidade
estética”.
59

No primeiro capítulo de sua tese, a autora traça um esboço do que reconhece como temas
principais da base teórica no campo da estética construída por Lukács. Incialmente, aborda a
questão do método considerando a filiação do filósofo húngaro ao Marxismo. Na sequência,
Ferreira (2012, p. 27) fala sobre o trabalho como definidor do ser social, de acordo com a
fundamentação e método materialista histórica e dialética. A autora reflete sobre o trabalho
como “ponto de partida histórico de desenvolvimento de toda a prática social humana e de todas
as formas de reflexo da realidade produzidas nessa prática social [...]” (FERREIRA, 2012, p.
27).

Considerando os aspectos da diferenciação entre a vida cotidiana, a ciência e a arte, a autora


afirma que, segundo Lukács, o “reflexo da realidade necessário à atividade de trabalho” se
desdobrou em duas formas: “a de conhecimento do mundo objetivo, que veio ao longo do tempo
constituir-se em ciência e a de autoconhecimento, que se constituiu na arte” (FERREIRA, 2012,
p. 31). Fazendo um percurso sobre as definições de Lukács, Ferreira (2012) conclui sobre a
especificidade da arte enquanto forma de reflexo da realidade humana. “É por essa razão que a
arte é entendida por Lukács como memória e autoconsciência da realidade” (FERREIRA, 2012,
p. 39).

A autora aborda as formas de reflexo artístico da realidade, segundo o pensamento de Lukács.


Dessa forma, Ferreira (2012) esclarece que o ritmo, a proporção, a simetria e a ornamentação
são características do mundo objetivo, descobertas pelo homem por meio do trabalho. A autora
registra que:

[...] na concepção lukacsiana a arte, em suas formas mais primitivas e abstratas, já era
um reflexo do mundo transformado pela prática social. Já se fazia presente na gênese
o que foi se tornando mais nítido ao longo da história: a arte como reflexo do processo
histórico de autocriação humana (FERREIRA, 2012, p. 45).

Sobre o conceito de alienação, caro à teoria marxista, Ferreira (2012, p. 46) afirma coadunar-
se com Duarte, no sentido de entender que o menor ou o maior uso do termo em si nas obras de
maturidade de Marx não refletem no grau de importância desse conceito no pensamento do
autor.

Ferreira (2012, p. 46) defende que o conceito de objetivação é fundamental para o entendimento
do conceito de alienação. A objetivação/objetificação para a autora – segundo Lukács – é um
modo de exteriorização na vida dos homens, modo esse, insuperável.

Quando se considera que na práxis tudo é objetificação, principalmente o trabalho,


que toda forma humana de expressão, inclusive a linguagem, objetiva os sentimentos
60

e pensamentos humanos, torna-se evidente que lidamos aqui com uma forma universal
de intercâmbio dos homens entre si. (LUKÁCS, 2003, p. 27 apud FERREIRA, 2012,
p. 46).

Segundo a autora, Marx considera que a unilateralidade humana advém da propriedade privada,
o que faz com que pensemos que um objeto só é nosso de fato se o possuímos. “Sabemos que
no capitalismo a produção artística torna-se, não raro, uma objetivação alienada, pois a arte
passa a viver também sob a lei geral da produção. Dá-se aí a primazia do sentido do ter [...]”
(FERREIRA, 2012, p. 47).

O indivíduo alienado, segundo Ferreira (2012, p. 47) não reconhece sua própria humanidade
em obras de arte. Para a autora,

A ideia de “homem rico” tratada nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos é


fundamental para que entendamos a arte como necessidade humana ontologicamente
condicionada. Para Marx (1989, p. 178) “[...] o homem rico é simultaneamente o
homem necessitado de uma totalidade de manifestação humana da vida. O homem do
qual a sua própria realização efetiva existe como necessidade, como carência”. Por
consequência, para que a realização humana plena se consubstancie, o ser humano
deve ter autonomia e controle de sua existência” (FERREIRA, 2012, p. 47, 48).

Um ser humano rico nos termos de Marx é, portanto, aquele que carrega necessidades de
múltiplas e ricas relações. “À medida que o ser humano se faz senhor de sua existência e
necessita da totalidade das manifestações humanas da vida, ele aproxima-se da verdadeira
essência humana, essência criada historicamente pela prática social” (FERREIRA, 2012, p. 48).
No conjunto dessas necessidades ontológicas, segundo a autora, a arte e o conhecimento
científico estão contidos.

Suprir tal necessidade ontológica, entretanto, segundo Ferreira (2012, p. 49), é uma tarefa
precedida pela satisfação das necessidades básicas de sobrevivência.

Na sociedade capitalista a necessidade estética do indivíduo se faz muito rara e rasa.


A maioria da população aliena-se de tal necessidade, pois vive em busca de satisfação
de necessidades físicas imediatas na luta desigual pela sobrevivência humana. Nessa
luta é compreensível e até inevitável, que haja pouco ou nenhum espaço para a
formação estética, limitando as possibilidades de apreciação, fruição ou catarse
estética. Essa situação historicamente determinada, e, portanto, superável por meio da
transformação da sociedade, acaba, contudo, sendo interpretada como resultado de
incapacidades naturais ou inclinações individuais que aproximariam ou afastariam as
pessoas das objetivações artísticas (FERREIRA, 2012, p. 49).

Dessa forma:
A arte, necessidade ontológica que é, está umbilicalmente ligada ao processo histórico
de autoformação da humanidade, e nos termos de uma estética marxista não pode ser
vista como contemplação imparcial e desconectada do todo social, tampouco como
puro entretenimento deleitável e deslumbrado (FERREIRA, 2012, p. 50).
61

A arte, de acordo com Ferreira (2012, p. 50), somente será elemento constitutivo da essência
do homem se ela existir como possibilidade produzida pelo processo histórico. A autora entende
por essência, juntamente com Duarte (2014), a “síntese das máximas possibilidades de
desenvolvimento humano”. Dessa forma,

[...] A essência humana é constituída de possibilidades geradas e mantidas pela


atividade do trabalho humano ao longo da história. Foi a atividade do trabalho que
ampliou as possibilidades de existência humana por meio da relação dialética entre
apropriação e objetivação. À medida que o ser humano se desenvolve, ele torna-se
mais universal e livre em sua essência. Como se vê no excerto de Gramsci, a medida
da liberdade está contida na definição de ser humano. Se existem possibilidades de
desenvolvimento humano ou simplesmente de manutenção da vida humana e essas
possibilidades não são concretizadas, estamos diante de um processo de alienação
(FERREIRA, 2012, p. 50, 51).

Com relação ao valor de determinada obra de arte, Ferreira (2012, p. 62) afirma que ele é
diretamente proporcional à sua ligação em relação aos grandes problemas da humanidade.

Isso é que torna significativa para um indivíduo de hoje uma obra de arte escrita noutro
momento histórico e noutras circunstâncias sociais. A categoria de particularidade
permite compreender que a individualidade da obra literária, seja um poema, seja um
conto ou um romance, não se isola do desenvolvimento da humanidade em sua
universalidade, realizando isto sim uma síntese entre o singular e o universal.

A autora continua sua defesa com relação à importância da obra de arte no reflexo da vida
social.

É para nós especialmente importante que a obra de arte, em sua individualidade, seja
uma totalidade que reflete a vida social, mas o faz de uma forma intensificada,
colocando os sujeitos em contato com a realidade de uma maneira que não acontece
na vida cotidiana. Essa síntese entre o singular e o universal faz da obra de arte um
recurso que permite às pessoas viverem intensificadamente aquilo que custou à
humanidade muito tempo, muitas gerações, muitas vidas. Alegrias e sofrimentos
mostram-se sintetizados e expressos de uma maneira tal que produzem no indivíduo
uma luta, uma elevação, podemos dizer uma “purificação” [...]. (FERREIRA, 2012,
p. 63)

Dessa elevação podemos depreender o conceito de catarse posteriormente sistematizado pela


autora. Além disso, o critério de totalidade da obra de arte que aqui aplicaremos à Literatura
nos permite perceber como um texto possibilita às pessoas viver com intensidade toda a riqueza
historicamente acumulada. Tal vivência na educação escolar torna-se possível por meio da
transmissão do saber elaborado e do trabalho com conteúdos clássicos.

Em seu segundo capítulo, Ferreira (2012) fala sobre a catarse e discorre sobre sua importância
para o ensino de Literatura na escola.

A obra de arte reflete a realidade humana de forma intensificada e transformada,


constituindo uma totalidade que produz no sujeito receptor uma vivência que o eleva
62

momentaneamente acima da vida cotidiana. Tal elevação nada tem de fuga da


realidade, sendo, ao contrário, um deixar-se tomar mais intensivamente por essa
realidade, um viver mais radicalmente suas contradições, numa transformação intensa
da subjetividade. Trata-se aqui da questão dos efeitos formativos e transformativo da
arte sobre os seres humanos o que, na estética lukacsiana, se traduz pela categoria de
catarse. (FERREIRA, 2012, p. 65, 66, grifo nosso).

Contra qualquer discurso das pedagogias hegemônicas sobre a leitura como fuga da realidade,
como uma espécie de ópio que eleva o ser a um lugar superior, a uma viagem por lugares
inimagináveis, ressaltamos que o conceito de catarse defendido por Ferreira (2012) com base
em Saviani e Lukács não guarda nenhuma relação com essas concepções. A “elevação” à qual
a autora se refere age na transformação da subjetividade dos indivíduos, fazendo com que eles
percebam as contradições da realidade objetiva, antes fragmentada diante de seus olhos: é a
subjetivação da realidade objetiva que, por sua vez, se encontrava, graças à subjetividade do
criador, objetivada na obra de arte, em um processo dialético. Pensando no ensino de Literatura,
Ferreira (2012, p. 69) afirma ser a catarse um princípio teórico-metodológico central.

Em relação à vivência estética, Ferreira (2012, p. 84) refuta o que seriam dois equívocos: o
primeiro diz respeito à conclusão de que a arte existe pela própria arte, não mantendo relações
com questões sociais; e o segundo diz respeito a mais uma conclusão equivocada que volta a
função social da arte para o pragmatismo.

Ferreira (2012, p. 84) afirma que, a partir da análise da catarse em Lukács, chega-se à conclusão
de que a arte tem função educativa:

[...] A maneira pela qual a arte exerce influências sobre a prática social é realizando
um processo formativo dos indivíduos. A arte tem, portanto, uma função educativa,
no sentido amplo da palavra. Não no sentido de que o artista produza uma obra com
objetivos pedagógicos, mas no sentido de que a obra produz efeitos transformadores
em menor ou maior grau, da subjetividade dos indivíduos. A arte age sobre a
personalidade. (FERREIRA, 2012, p. 84, 85).

Na sequência, a autora elucida o que é a catarse, de acordo com o conceito de Saviani (2009b).
A catarse é, portanto, entendida por Saviani como um momento no qual ocorre uma
ascensão da consciência a um nível superior de compreensão da prática social. O
conhecimento que é transmitido sistematicamente ao aluno pelo processo de ensino
escolar não se agrega mecanicamente à sua consciência, mas a transforma,
produzindo-se uma mudança. O aluno passa então, em termos relativos, a ser capaz
de compreender o mundo de forma mais elaborada, superando, ainda que
parcialmente, o nível do pensamento cotidiano ou, em termos gramscianos, o nível do
senso comum. (FERREIRA, 2012, p. 94).

Ferreira (2012, p. 97) finaliza o segundo capítulo de sua tese esclarecendo que a lógica da
espontaneidade e do pragmatismo da vida cotidiana não deve guiar o ensino de Literatura na
educação escolar. “Ao se colocar o aluno em contato com as grandes obras literárias o objetivo
63

é (...) produzir o efeito da elevação acima da vida cotidiana, da ampliação da experiência


vivencial, da ruptura com o fetichismo, enfim, da catarse” (FERREIRA, 2012, p. 97).

Para que ocorra a catarse, a autora destaca, em seu terceiro capítulo, a necessidade do trabalho
com os clássicos. Após discorrer sobre o conceito de clássico segundo Saviani e Lukács,
Ferreira (2012, p. 108) afirma que é não somente possível, como também necessário produzir-
se a catarse literária por meio do trabalho educativo. Não apresenta na tese uma proposta
sistematizada de ensino de Literatura, por falta de tempo e espaço para as discussões que seriam
necessárias.

Justificando sua adoção da dialética materialista, Ferreira (2012, p. 25) considera “a arte como
uma das formas específicas de objetivação do gênero humano”, interligando esse aspecto às
“relações entre a realidade objetiva e as formas de reflexo dessa realidade que têm sido
produzidas pelos seres humanos ao longo da história”.

Ferreira (2012, p. 27) destaca o trabalho como ponto de partida para o desenvolvimento da
prática social e das formas de reflexo da realidade produzidas nessa prática, inclusive o reflexo
artístico. Afirma ver a Literatura e a realidade social como relações indiretas e contraditórias,
mesmo modo pelo qual a autora percebe as relações entre o ensino de Literatura e a prática
social. Citando Saviani, Ferreira (2012) conclui que a prática pedagógica é responsável por
transformar de modo indireto a prática social:

Alteram-se os sujeitos da prática pedagógica, ou seja, o professor e os alunos. O


primeiro passa da síntese precária à síntese propriamente dita e os segundos passam
da síncrese a uma síntese provisória. O professor se engajará na formação de outros
alunos perante os quais novamente sua visão é de síntese precária. Os alunos que
atingiram a síntese provisória também continuarão seu processo formativo, dentro ou
fora da escola e atingirão novos níveis de síntese. (FERREIRA, 2012, p. 131).

A autora discorre, por fim, sobre as possíveis diferenças e semelhanças no processo de catarse
na Literatura e nas demais áreas dos conteúdos escolares. Explicitando que o marxismo não
opõe a ciência à arte, Ferreira (2012, p. 132, 133) afirma que os conteúdos escolares são
responsáveis por sintetizar o conhecimento da realidade social e natural.

[...] Os seres humanos buscam o conhecimento da realidade para dominá-la. Como os


seres humanos fazem parte de uma mesma realidade, uma parte desse conhecimento
é autoconhecimento e uma parte desse domínio é autodomínio. Conhecimento e
autoconhecimento, transformação do objeto e do próprio sujeito são faces de um
mesmo processo. O pressuposto materialista de que o ser pode existir sem a
consciência, mas esta não pode existir sem o ser, opõe-se às visões idealistas para as
quais o mundo só existe quando um ser com consciência e linguagem declara a
existência desse mundo. Esse pressuposto materialista afirma tanto a existência
objetiva do mundo como a necessidade de conhecimento objetivo desse mundo. Mas
64

exatamente para que alcancemos o conhecimento objetivo, precisamos desenvolver o


autoconhecimento. Não numa sequência linear, mas num processo dialético que une
conhecimento e autoconhecimento, transformação da realidade e transformação dos
sujeitos que transformam a realidade. Nesse sentido, defender o ensino da Literatura
em nada se aproxima das críticas irracionalistas a um suposto excesso de
racionalidade ou a um suposto cientificismo frio e objetivo. O marxismo não opõe as
ciências às artes. Explicar suas especificidades não implica colocá-las em posições
antagônicas. As artes não são uma fuga nem uma deliberada auto-ilusão. Elas não são
uma entrega ao reino da irracionalidade da subjetividade reclusa em si mesma. Elas
são uma forma pela qual o indivíduo conhece a si mesmo como um ser social inserido
na história do gênero humano. [...]” (FERREIRA, 2012, p. 131, 132).

Ferreira (2012) defende, portanto, o papel formativo e humanizador da Literatura, no sentido


de que a obra de arte permite ao homem elevar-se, num processo catártico do qual nunca se sai
da mesma forma, possibilita ao indivíduo conhecer os problemas vivenciados pelos indivíduos
ao longo da história da humanidade. A autora defende o papel da mediação escolar na
transmissão do saber elaborado e o contato com a Literatura por meio de textos clássicos.

Dessa forma, para a autora, o ensino de Literatura no contexto escolar deve privilegiar obras
literárias integrais e a escolha dessas obras deve ser feita com base nas críticas direcionadas à
visão fetichizada da realidade. Com relação à pesquisa de Ferreira (2012), pretendemos avançar
na sistematização de critérios que tornam uma obra clássica, em diálogo com Carolina Góis
Ferreira (2019), com vistas a propor elementos norteadores para a seleção de repertórios de
leitura literária a serem trabalhados no contexto escolar do Ensino Médio.

2.1.2 Possibilidade de humanização a partir do ensino de Literatura

Em sua dissertação de mestrado intitulada Ensino de Literatura: possível humanização do


indivíduo no contexto da atual sociedade, Costa (2014) faz uma reflexão teórica sobre o ensino
de Literatura como possibilidade de humanização. Tendo a catarse como eixo central de sua
dissertação, a autora buscou “elucidar como o ensino de Literatura pode contribuir para o
processo de humanização do indivíduo” (COSTA, 2014, p. 17).

A autora dedica dois capítulos de sua tese a discussões sobre a catarse. No primeiro capítulo,
afirma que o termo catarse foi utilizado pela primeira vez por Aristóteles, assim, Costa (2014,
p. 17) realiza “um retorno (...) tanto à postura educacional e à produção cultural da Grécia
Antiga quanto à obra aristotélica”. Uma das justificativas para tal retorno se dá, de acordo com
a autora, em função de os gregos ocuparem posição singular na história em relação ao processo
de formação humana.
65

De acordo com a autora, a extensa obra de Aristóteles chamou atenção para as dificuldades em
se estudar o individual e para o fato de que somente um saber universal pode ser considerado
verdadeiro. Considera tal informação imprescindível para seus estudos, uma vez que se atenta
“na relação entre o indivíduo e o gênero humano por meio da obra de arte, com base nas ideias
e na estética de George Lukács” (COSTA, 2014, p. 46):

Não podemos deixar de dizer que nosso percurso pela Grécia Antiga até aqui se deve
também pelo fato de a essência da educação grega consistir na modelagem dos
indivíduos pela norma da comunidade, pois tal fato levou o povo grego a transmitir
para a posteridade um tesouro de conhecimentos imperecíveis. Conhecimentos estes
imprescindíveis para compreendermos tanto o atual e problemático contexto
educacional como os princípios necessários para se lutar por uma educação escolar
que vise à formação plena do ser humano10 (COSTA, 2014, p. 46).

Em seu segundo capítulo, a autora traz para o bojo das discussões o conceito de catarse como
categoria ética e estética, segundo Lukács. A autora trata do processo de formação humana
segundo Karl Marx, pois é, de acordo com ela, por meio dessa teoria que Lukács analisa os
efeitos da obra de arte sobre os indivíduos “e defende que a arte pode exercer um papel
desfetichizador na formação humana, ou seja, pode acarretar no sujeito uma transformação na
relação entre a consciência e a realidade social” (COSTA, 2014, p. 17).

A autora conclui em seu segundo capítulo que “a arte pode estabelecer compromisso com a
ética, com o processo de formação humana, com o trabalho educativo, ou seja, com o processo
de humanização do indivíduo”, indo de encontro às formas de alienação produzidas pela
sociedade capitalista (COSTA, 2014, p. 17). Considera ainda que o efeito da catarse despertado
pela obra de arte oferece meios para a humanização do homem.

Enfim, diante do exposto, concluímos que o efeito catártico, provocado pela obra de
arte, ao arrebatar o homem - mesmo que momentaneamente - da sua vida cotidiana,
ao operar uma mudança entre sua consciência e o mundo, ao possibilitar-lhe uma
relação consciente com o gênero humano, oferece margem para a formação do homem
inteiramente, contribui efetivamente para a reflexão ética voltada para a emancipação
humana, portanto, contribui para a amenização do processo de alienação das pessoas,
para a formação do indivíduo para-si, enfim, para a humanização do homem (COSTA,
2014, p. 93).

Em seu último capítulo, a autora faz um breve recorte do desenvolvimento do capitalismo para
compreender a forma como esse sistema condiciona a educação brasileira. Aborda a concepção do
realismo crítico em Lukács para falar sobre a Literatura clássica. A Literatura clássica para Lukács,

10
Consideramos que, embora a Grécia seja reconhecida por transmitir conhecimentos que ainda hoje são
importantes para nossa vida em comunidade, deve-se considerar que tal desenvolvimento ancorou-se em uma base
econômica escravista. Para mais informações, indicamos a leitura de Paideia: A formação do homem grego, de
Werner Jarger (2013).
66

de acordo com Costa (2014), é aquela que se articula aos grandes problemas de desenvolvimento
da humanidade.

Conforme as nossas apropriações das produções do filósofo húngaro, a nossa


concepção de Literatura clássica equivale ao que, para o autor marxista (2010), trata-
se das grandes obras-primas da Literatura mundial, isto é, da Literatura que se
pronuncia realista. Aqui é importante retomar o fato de que o realismo, segundo
Lukács (apud FREDERICO, 1997), não está limitado a uma escola literária, significa,
principalmente, uma percepção de mundo perante a realidade e a verdade. “Para
Lukács, o realismo é um método, o caminho para se chegar à verdade e, também, o
critério para se julgar a produção artística”. (FREDERICO, 1997, p. 34). Enfim, com
base na concepção lukacsiana, podemos dizer que a Literatura clássica é aquela que
habilita os homens a perceberem o mundo como ele efetivamente é ao projetar uma
realização da realidade como totalidade, isto é, ao desvelar as antinomias do real
(COSTA, 2014, p. 102, 103).

Com relação aos personagens das grandes obras literárias, a autora chega à conclusão de que
são, segundo Lukács, personagens de fisionomia intelectual complexa. São aqueles
personagens que aparecem diante do leitor ricos e complexos como a própria realidade. São,
segundo Costa (2014, p. 103), os personagens típicos que experimentam – a partir de uma trama
desenvolvida com base no realismo – tal crescimento psicológico e pessoal que vivem diante
dos leitores problemas de seu tempo como se fossem individualmente seus, ao mesmo tempo
em que elevam os elementos pessoais e de seu próprio destino a um nível de universalidade.

Costa (2014), ainda em seu último capítulo, apresenta novamente o conceito de catarse, mas
com enfoque da pedagogia histórico-crítica, visando a apropriação do saber elaborado pelos
alunos. A autora trata do ensino de Literatura apontando uma abordagem em consonância com
a pedagogia histórico-crítica. Sua intenção, segundo ela, é fazer com que os professores reflitam
sobre o “possível compromisso entre o ensino de Literatura e o processo de humanização do
indivíduo na sociedade capitalista” (COSTA, 2014, p. 18).

Em sua conclusão, Costa (2014) reitera os conceitos de catarse11 segundo os estudos


aristotélicos, Lukács e Saviani, considerando que as afinidades entre os conceitos de Lukács e
de Saviani se configuram como base fundamental para a discussão sobre o ensino de Literatura
como possível instrumento de humanização do indivíduo.

11
A dissertação de Tamiris Souza de Oliveira (2013), intitulada O conceito de catarse na filosofia de Theodor
Adorno: desdobramentos para uma teoria crítica da educação elucida as diferenças entre a noção filosófica de
catarse na tradição aristotélica e na Teoria Crítica da Sociedade, bem como seus rebatimentos no campo da teoria
e prática pedagógica em contextos educativos. Como este não é o tema central de nossa pesquisa, não avançaremos
no cotejo entre as conclusões de Costa (2014) e Souza (2013), mas deixamos registrada a diferença quanto à
conclusão sobre a possibilidade ou não de vislumbrar uma continuidade entre a catarse em Aristóteles e na tradição
do materialismo histórico e dialético. (Disponível em: https://repositorio.ufes.br/handle/10/6043. Acesso em 14
out. 2022).
67

Acerca do ensino de Literatura, a autora considera de extrema relevância o papel de mediação


do professor.

[...] o professor deve exercer uma interferência deliberada e sistematicamente


direcionada para que a apropriação de bens culturais exerça uma influência positiva
sobre o desenvolvimento do aluno e selecionar a leitura de obras clássicas e adequadas
ao nível de desenvolvimento intelectual do educando para que este vá ao encontro de
grandes personagens dotadas de virtudes por viverem perante os leitores os problemas
de seu tempo como individualmente seus. Tais personagens podem possibilitar ao
aluno absorver essas virtudes, desenvolver comportamentos éticos, refinar sua
sensibilidade e linguagem, reconhecer-se como ser humano, enfim, podem
proporcionar-lhe uma nova concepção de mundo [...] (COSTA, 2014, p. 147).

Por fim, a autora reitera a importância de que as obras selecionadas para o ensino de Literatura
sejam clássicas:

Defendemos, nessa dissertação, portanto, que, no ensino de Literatura, deva estar


presente a Literatura clássica, pois, com base no estudo realizado até aqui, acreditamos
que tal Literatura é a capaz de provocar o efeito catártico no aluno, isto é, capaz de
mover a sua subjetividade individual rumo às formas mais ricas de subjetividade já
desenvolvidas pelo gênero humano, ou seja, apresentar ao educando situações nas
quais decisivas experiências humanas despontam intensificadas e configuradas de
modo que consigam impulsionar a sua subjetividade para além da cotidianidade, isto
é, a um caminho que desembocará tanto no núcleo da sua própria personalidade como
no da realidade social (COSTA, 2014, p. 147, 148).

Pretendemos dar continuidade às discussões de Costa (2014), visto que nosso enfoque é
direcionado ao ensino de Literatura em sala de aula, a fim de que possamos propor elementos
norteadores para a seleção de repertórios de leitura literária a serem trabalhados no contexto
escolar do Ensino Médio.

2.1.3 Clássicos de Machado de Assis para a formação literária no Ensino Médio

Sotini (2017) em sua dissertação de mestrado intitulada A contribuição da leitura de clássicos


para a formação de leitores críticos em uma escola pública de Goiânia faz uma reflexão sobre
a contribuição da leitura de textos clássicos de Machado de Assis para a formação literária de
alunos do Ensino Médio de uma escola pública de Goiânia. Seu objetivo foi averiguar como se
dá a leitura no ambiente escolar e observar como a relação com textos clássicos por meio da
mediação do professor pode contribuir para a formação crítica do leitor.

A autora justificou a escolha dos textos machadianos curtos – em sua maioria, contos – para
trabalho em sala de aula, por permitirem, segundo ela,

[...] que sejam explorados todos os aspectos que possam ser suscitados pela leitura
literária: a estrutura, as estratégias narrativas, os recursos estilísticos e linguísticos, o
68

estranhamento, a apreciação, a identificação do sujeito, a catarse, enfim, como o texto


se constitui em sua produção de sentidos para o leitor (SOTINI, 2017, p. 14, 15).

Ao falar sobre “catarse”, conceito caro à filosofia lukácsiana e à pedagogia histórico-crítica,


imaginamos que Sotini (2017) filiaria seu trabalho definidamente a alguma corrente
pedagógica, uma vez que ele trata do ensino de Literatura, mas isso parece não acontecer de
modo claro no texto. O conceito de “catarse”, inclusive, aparece como algo que possa ser
suscitado pela leitura literária, mas não fica claro seu entendimento, pois não há uma abordagem
propriamente conceitual. Em outro momento do texto, a autora cita que o contato com a
Literatura é fundamental ao educando para que se ampliem experiências e conhecimentos e
para que se permita que ele supere uma possível “resistência à leitura literária, em especial à
canônica, como fonte de aquisição de conhecimentos e possibilidade de catarse e humanização”
(SOTINI, 2017, p. 19). Na presente tese, optamos por falar em Literatura clássica (conforme
veremos mais adiante) e não canônica, em função de questões mercadológicas, dos problemas
na seleção, do perfil eurocêntrico que envolvem esta última.

Sotini (2017) divide seu trabalho em três capítulos: o primeiro trata sobre o ensino de Literatura
no Ensino Médio; aborda a Literatura como direito social, segundo os pressupostos de Candido
(2004); das políticas públicas de mediação da leitura literária e da formação de leitores. Discute
ainda sobre a leitura de clássicos no Ensino Médio segundo as definições de Calvino (1993)
acerca dos clássicos. Vemos, aqui, uma sobreposição entre os conceitos de cânone e clássico,
comum na área, mas que, em nosso trabalho, nos esforçamos por desfazer.

No segundo capítulo, a autora aborda questões acerca do corpus de análise, da importância de


Machado de Assis no contexto da Literatura brasileira e traz considerações sobre os textos
escolhidos para sua pesquisa-ação.

Em seu último capítulo, Sotini (2017) registra a intervenção prática realizada na escola-campo
com relatos de experiência e explicitação dos instrumentos de coleta utilizados na pesquisa. Ao
concluir seu trabalho, a autora afirma que “com um pouco de esforço e mediação, a Literatura
chega e encanta a todos, porque é isso que ela faz, já que a Literatura é feita de humanidade”
(SOTINI, 2017, p. 171). Já discutimos que na perspectiva da pedagogia histórico-crítica, com
base no materialismo histórico e dialético acreditamos que a Literatura não tem a função
precípua de encantar as pessoas, mas de proporcionar a apropriação da realidade objetiva por
meio da transformação da subjetividade (na medida em que há uma “interiorização” do que é
“externo”; e uma “externalização” do que é “interior”). Dessa forma, tomamos cuidado com os
69

discursos contidos inclusive em documentos oficiais de que a Literatura deve ser fonte de
entretenimento, encanto, viagem pela imaginação, etc. Tal discurso não presta serviço à real
função da Literatura de promover a humanização do ser que só se dá a partir do
desenvolvimento de sua subjetividade, da mudança qualitativa em sua visão de mundo com
vistas a alterar a sua própria realidade.

Além disso, Sotini (2017) conclui que

[...] fica a certeza de que o trabalho docente só existe em função dos alunos e é preciso
estar presente em sala de aula, oferecer a mediação necessária, partilhar da
experiência, especialmente, porque a aprendizagem é ampliada quando é
compartilhada e quando a interação de fato acontece, suspeitamos, o professor mais
aprende que ensina (SOTINI, 2017, p. 172, grifo nosso).

Chama atenção o fato de que a autora cita que “o professor mais aprende que ensina”, o que
repercute orientações de viés pós-moderno e multiculturalista presentes nos documentos
oficiais da atualidade que visam esvaziar o papel do professor e torná-lo um simples monitor
de estudos, alguém que serve para tirar eventuais dúvidas, nortear os alunos no trabalho com
“sala de aula invertida”, etc., e que precisa dar conta de múltiplas tarefas essencialmente
burocráticas e administrativas. Todo esse discurso esvazia o papel docente fazendo da escola
um local de socialização do conhecimento cotidiano, consequentemente, esvazia o papel da
escola que é o de permitir que os alunos se apropriem dos saberes elaborados convertidos em
conteúdos sistematizados ao longo da história da humanidade, possibilitando no adolescente a
formação do pensamento por conceitos; para isso, o professor precisa já ter uma visão sintética
da realidade que o cerca (ao menos, uma visão mais completa e estruturada que aquela esperada
de seus alunos), não bastando que ele mais aprenda com os alunos do que ensine; é o professor
o responsável por – a princípio – portar o signo que será transmitido.

A autora apresenta nos apêndices as sequências didáticas utilizadas ao longo do trabalho.


Ressaltamos que pretendemos avançar em nossos estudos a partir de uma declarada filiação à
pedagogia histórico-crítica e à defesa da transmissão dos conteúdos clássicos no contexto
escolar. Pensamos no professor como peça fundamental na mediação do conhecimento, dessa
forma, conforme afirmamos, ele precisa estar um patamar acima dos alunos, no que diz respeito
ao desenvolvimento de sua subjetividade, a fim de que o docente tenha condições de guiar o
aluno do pensamento sincrético ao sintético.

Além disso, conforme já discutimos, tomamos bastante cuidado nas considerações do tipo “a
Literatura encanta a todos”, uma vez que o ensino de Literatura precisa ser elaborado,
70

sistematizado, pensado, aplicado, de modo a permitir que os indivíduos cheguem à catarse, ou


seja, passem a uma visão fragmentada da realidade que os cerca, desenvolvam formas mais
ricas de subjetividade, isso em muito ultrapassa essa visão da Literatura como algo belo e
encantador.

2.1.4 Ação docente e possibilidades do ato de ler

Fernandes (2017), em sua dissertação de mestrado intitulada A ação docente: possibilidades do


ato de ler na educação básica, nas primeiras linhas de seu trabalho, já deixa clara sua intenção
e sua posição teórico metodológica. Seu objetivo é analisar se a ação docente é fundamental
para o ato de ler na educação básica; para isso, fundamenta-se no materialismo histórico e
dialético e na pedagogia histórico-crítica.

A pesquisa é desenvolvida em uma escola pública do norte do Paraná com dois professores de
Língua Portuguesa e suas turmas de 1º ano do Ensino Médio. A autora defende que o
movimento dialético “prática-teoria-prática” tende a possibilitar uma nova percepção em
relação ao ato de ler. “Assim, o ato de ler faz-se extremamente necessário para um posicionamento
crítico e intencional frente à sociedade, e no caminho para a formação de leitores, encontramos a
ação docente como elemento fundamental” (FERNANDES, 2017, p. 13).

Fernandes (2017, p. 14) defende que o ato de ler deve ser um processo dialógico de
significações de si mesmo e do outro e que, quando somado às experiências culturais, deve
possibilitar o desenvolvimento do homem enquanto ser social.

O ato de ler pressupõe a apropriação da totalidade presente no texto, em que a palavra


como signo, como instrumento psicológico, possibilita o desenvolvimento da
sensação e da percepção, requalificando todas as funções psíquicas superiores,
transformando o sujeito e suas possibilidades de ação humana (FERNANDES, 2017,
p. 14).

Pensando no método científico proposto por Marx e defendido por Saviani, segundo o qual o
processo do conhecimento acontece pela mediação do abstrato na passagem do empírico ao
concreto, Fernandes (2017) buscou realizar questionários sobre leitura, Literatura e prática
pedagógica junto aos professores da escola-campo, a fim de conhecer a prática empírica dos
sujeitos.

Após esse movimento, a autora propôs aos professores a realização de um grupo de estudos
fundamentado no materialismo histórico e dialético e na pedagogia histórico-crítica para, após
71

isso, por meio da didática movida por Gasparin (2012) elaborar um planejamento sobre o ato
de ler, tendo como objetivo a leitura de Literatura.

Após leituras e análises, segundo a autora, os professores elaboraram seu próprio planejamento
e por meio da mediação dos docentes, “foi realizado um trabalho com os alunos com o conteúdo
‘Leitura Literária’, tendo como instrumento o conto ‘Holocausto’, de Caio Fernando de Abreu
(1996)” (FERNANDES, 2017, p. 15).

Para embasar teoricamente sua proposta, Fernandes (2017, p. 15) traz em seu segundo capítulo
uma reflexão sobre trabalho e educação enquanto processo histórico de produção humana, no
qual enfatiza a importância de se conhecer a realidade social conforme está posta e seus
objetivos, uma vez que a “educação se origina e se desenvolve mediante a produção de vida
material do homem”, pensando no fato de que a escola pode ratificar o sistema de exploração
ou fornecer meios para superá-lo. A autora abordou ainda neste capítulo os fundamentos do
materialismo histórico e dialético e sua relevância para:

[...] pensarmos a situação atual e a perspectiva de totalidade na educação, preconizada


pela Pedagogia Histórico-Crítica, uma teoria comprometida com a socialização do
conhecimento historicamente acumulado, que defende, como papel da escola,
identificar os elementos que precisam ser assimilados pelos alunos e,
concomitantemente, desenvolver formas adequadas para sua apropriação
(FERNANDES, 2017, p. 15).

Em seu terceiro capítulo, Fernandes (2017) fala do ato de ler e das implicações da arte e da
Literatura para o desenvolvimento humano. No capítulo, a autora buscou evidenciar que a
Literatura, quando trabalhada intencionalmente, possibilita ao educando o desenvolvimento das
funções psíquicas superiores “como a sensação e a percepção, que são funções primordiais do
ato de ler” (FERNANDES, 2017, p. 15). A autora traz, nesse sentido, baseada nos pressupostos
de Candido e Lukács, a leitura literária como processo de superação da realidade imediata,
como instrumento de compreensão da realidade social.

No quarto capítulo de sua dissertação, a autora apresenta os procedimentos metodológicos da


pesquisa de campo, destacando os caminhos escolhidos, o cenário e os sujeitos da pesquisa,
bem como a organização do grupo de estudos. No quinto capítulo, Fernandes (2017) discorre
sobre o processo de formação docente por meio do grupo de estudos proposto, abordando as
dificuldades de trabalho do professor no cenário social contemporâneo, refletindo sobre as
práticas de leitura dos professores envolvidos e chegando à efetivação do planejamento em sala
de aula.
72

Finalizando a dissertação, Fernandes (2017) destaca que:

[...] o ato de ler pressupõe análise e ousadia, pois oportuniza o desenvolvimento de


sentidos únicos frente à sociedade, analisando suas contradições e objetivando sua
transformação. As dimensões por si só não propiciam reflexões sobre a realidade
concreta, a fim de perceber que a leitura literária está vinculada à dimensão social,
cultural, psicológica, ideológica, afetiva, estética. Cabe à ação docente identificar, na
riqueza produzida pelo homem, as dimensões necessárias para a formação humana e
buscar formas de transpor estas dimensões ao conteúdo escolar. Encontramos na
didática de Gasparin (2012) uma possibilidade de forma, na Literatura uma
possibilidade de conteúdo e na ação docente o compromisso intencional com o
conhecimento para a mediação do ato de ler. (FERNANDES, 2017, p. 17).

No desenvolvimento dos planos de aula, os professores são orientados a sistematizar os cinco


passos definidos pela pedagogia histórico-crítica a partir da didática proposta por Gasparin
(2012), o que não é nosso objetivo, uma vez que entendemos, assim como Martins (2011, p.
230), que sistematizar os cinco passos explicitados por Saviani é algo incompatível com os
pressupostos da pedagogia histórico-crítica:

[...] consideramos que os referidos passos [em Saviani] superam em muito uma
sequenciação didática, balizando metodologicamente a análise das funções sociais da
educação escolar, da formação de professores, da proposição de projetos político-
pedagógicos e, também, dos aspectos didáticos da prática docente.

O trabalho em sala de aula é desenvolvido a partir dos temas: “Leitura e visão de mundo”, com
uma análise da música “Cálice”, de Chico Buarque; “Literatura e Contos”, com a análise do
conto “Holocausto”, de Caio Fernando de Abreu. Passa-se, por fim, à percepção dos alunos
com produções de contos e a autora pede um apanhado geral dos professores e dos alunos frente
ao conteúdo trabalhado.

Em suas considerações finais, Fernandes (2017, p. 128) reafirma seu objetivo principal:
“analisar se a ação docente, fundamentada no materialismo histórico e dialético e na pedagogia
histórico-crítica, é fundamental para o desenvolvimento do ato de ler na educação básica”. O
resultado de sua pesquisa apontou, segundo ela, ser este:

[...] um encaminhamento pertinente para o desenvolvimento do ato de ler, tornando-


se uma práxis fundamental para aqueles que buscam contribuir para a formação
humana. Suas possibilidades foram observadas no decorrer do trabalho realizado, na
superação do conhecimento sincrético e no novo posicionamento frente ao ato de ler
(FERNANDES, 2017, p. 128).

Após movimento dialético realizado com os professores, Fernandes (2017) fala da importância
de que o processo de formação continuada esteja atrelado aos conhecimentos científicos,
filosóficos, artísticos como expressão do saber elaborado, possibilitando ao docente se apropriar
do conhecimento que contribua com sua prática efetiva em sala de aula.
73

Fernandes (2017) defende a necessidade de pensar a educação como prioridade social e, a partir
dessas reflexões, desenvolver meios para combater outros problemas advindos da realidade.

Desta forma, pensar na formação humana por meio do trabalho educativo, como ato
de produzir direta e intencionalmente nos alunos a humanidade produzida
historicamente pelo conjunto dos homens, pressupõe uma fundamentação que eleve o
sujeito aluno à apropriação da cultura elaborada historicamente, o que pode
vislumbrar uma nova percepção da sua realidade social (FERNANDES, 2017, p. 129).

No questionário inicial com os professores, a autora afirma ter sido possível perceber que as
concepções de leitura e Literatura dos professores estavam mais ligadas ao senso comum, como
prazer, relaxamento, do que ao movimento de desenvolvimento e compreensão advindo do ato
de ler. Destaca, nesse sentido, a necessidade de superação do senso comum, a fim de que os
professores tenham condições de levar os alunos à superação de sua visão sincrética de mundo:

[...] Ao fundamentar-se em uma perspectiva crítico-dialética, compreendemos que o


trabalho do professor não pode reduzir-se a um simples meio de reprodução de sua
existência, mas que precisa efetivar-se como elemento mediador entre o cotidiano e
as esferas não cotidianas da prática social do aluno (FERNANDES, 2017, p. 130,
131).

O trabalho de Fernandes (2017) dialoga com nossa pesquisa na medida em que defende a
transmissão do saber elaborado a partir do trabalho com textos clássicos da Literatura. Afasta-
se, todavia, ao propor sistematizar em ordem os cinco passos da pedagogia histórico-crítica,
prática da qual discordamos. Discutiremos posteriormente os cinco passos da pedagogia
histórico-crítica e seu significado para nosso trabalho.

2.1.5 Romance e realismo na educação escolar

Costa (2018), em sua tese de doutorado intitulada O romance na educação escolar:


reverberações da arte narrativa na concepção de mundo, reflete sobre “a importância da
socialização da Literatura realista para o enriquecimento da concepção de mundo do indivíduo”
(COSTA, 2018, p. 8).

Dando prosseguimento aos seus estudos de mestrado, a autora se debruça sobre a Literatura que
é ensinada nas escolas brasileiras, questionando se essa arte contribui “para o enriquecimento
de mundo dos alunos” ou se ela se trata de uma arte com “instrumentos ideológicos que
promovem uma fuga irracional e alienada perante os problemas de nosso tempo” (COSTA,
2018, p. 17). Diante dessa questão, a autora se propôs a refletir sobre a importância de
socialização da Literatura realista – considerada como grande Literatura – para a concepção de
74

mundo do indivíduo, a partir de Lukács, elegendo um gênero específico para esse fim: o
romance.

De acordo com as reflexões estéticas de Lukács (2010a, 2011a), podemos dizer que
um grande romance é aquele que, articulando-se aos problemas fundamentais do
desenvolvimento da humanidade e refletindo profundamente as verdadeiras forças
motrizes do desenvolvimento social dos homens, se apoia na visão humanista do
mundo, ou seja, no estudo apaixonado da substância humana do homem e,
simultaneamente, na defesa da integridade do homem contra todas as tendências que
a atacam, a envilecem e a adulteram. Trata-se do romance cuja figuração objetiva da
realidade abrange os contrastes, as lutas e os conflitos da vida social tal como eles se
manifestam na vida do homem real e, além disso, posiciona-se perante as tendências
objetivas da realidade, isto é, em defesa da própria humanidade. (COSTA, 2018, p.
17).

O trabalho de Costa (2018) está pautado no materialismo histórico e dialético e objetiva,


portanto,

[...] discutir as implicações da Literatura realista - no caso, o romance – na percepção


e visão de mundo dos indivíduos, ou seja, [...] discutir as possíveis contribuições dessa
Literatura para o desenvolvimento de uma visão desfetichizadora da realidade, para o
despertar da consciência de que a vida individual e a do gênero humano são
convergentes, enfim, para o desenvolvimento de uma concepção de mundo que possa
contribuir para o processo de transformação das relações sociais alienadas. (COSTA,
2018, p. 17, 18).

Costa (2018, p. 18) ressalta que nem a vivência estética, nem a atividade educativa agem sobre
a vida do indivíduo e sobre a sociedade de forma direta, mas podem se transfigurar como
influência significativa tanto na transformação do indivíduo quanto na da sociedade em que
vivemos. Esclarece que sua tese se baseia na hipótese de que a “Literatura que contempla os
aspectos do realismo é aquela que contribui decisivamente para a elevação da concepção de
mundo do aluno, ao passo que a Literatura de massa mantém tal concepção atrelada a uma visão
fetichizada da realidade” (COSTA, 2018, p. 18).

No primeiro capítulo de sua tese, Costa (2018, p. 18) trata sobre as características do gênero
romanesco, a partir da reflexão sobre o romance como gênero épico da burguesia. Para isso, a
autora examina a vinculação da epopeia ao romance com épocas históricas diferentes. Além
disso, analisa “o conceito lukacsiano do realismo e realiza (...) uma síntese das características
essenciais do gênero romanesco” (COSTA, 2018, p. 18).

No segundo capítulo, a autora aborda contribuições gerais de Lukács sobre as consequências


das Revoluções de 1848 para a sociedade ocidental, “o declínio da burguesia como classe
revolucionária e a consequente deterioração de sua ideologia – a ‘decadência ideológica’”
(COSTA, 2018, p. 18). Nesse capítulo, a reflexão de Costa (2018) evidencia que a decadência
75

ideológica da burguesia é seguida da decadência literária, [...] e, nesse sentido, refletimos sobre
como as novas condições históricas do período da decadência burguesa, adversas à arte,
obstaculizam a criação de uma Literatura efetivamente realista e abarcam o conjunto do mundo
ocidental (COSTA, 2018, p. 19).

A autora afirma que no período da grande luta de classes, a capacidade da grande Literatura em
desvelar a realidade do capitalismo em sua totalidade se torna uma ameaça ao ideário burguês
de dominação, “uma vez que implica o reconhecimento dos efeitos deletérios do capitalismo
sobre o homem. O legado realista no âmbito da Literatura se converte, assim, em uma força
ideológica conformista perante o existente” (COSTA, 2018, p. 19).

A tendência da Literatura decadente é de se manter na superfície dos fenômenos,


desconsiderando os problemas mais profundos, fundamentais e resolutivos; pois trata-
se de uma arte que, ao invés de dar vazão à verdade, a oblitera. Esse abandono da
verdade objetiva pela Literatura se deu devido ao fato de a visão de mundo própria do
período da decadência - “[...] com sua fixação na superfície das coisas, com sua
tendência à evasão diante dos grandes problemas sociais, com seu torvo ecletismo
[...]” (LUKÁCS, 2010c, p. 76) - dificultar ao escritor o acesso a uma visão profunda
e sem preconceitos da realidade. Assim, se a criação de uma obra de arte realista
resulta necessariamente de uma relação mútua e fecunda do escritor com a realidade,
com o advento da decadência ideológica, essa relação mútua torna-se cada vez mais
intrincada e seu estabelecimento dificulta cada vez mais o desenvolvimento de uma
Literatura realista (COSTA, 2018, p. 19).

Dessa forma, Costa (2018) fala do desafio imposto aos escritores pela guinada reacionária da
burguesia, uma vez que em meio a “uma decadência generalizada”, o escritor de origem
burguesa “necessitará de um grande esforço intelectual e moral para operar uma verdadeira
ruptura com sua classe (...) e figurar objetivamente a realidade” (COSTA, 2018, p. 20).

Embora Lukács (2010a) afirme que a grande maioria dos escritores sucumbe ao
predomínio da ideologia decadente, não desconsidera o fato de esse predomínio não
ser automático nem isento de contradições. Assim, compreendendo o
desenvolvimento social como unidade de contradições, viva e dinâmica, não podemos
descartar a possibilidade de os escritores pós-1848 produzirem uma Literatura
autêntica e, portanto, realista (COSTA, 2018, p. 20).

Em seu terceiro capítulo, Costa (2018) aborda a questão do pós-modernismo, discutindo sobre
a repercussão da difusão desse pensamento na sociedade brasileira e o impacto de seus efeitos
de padronização ideológica e cultural nas áreas da educação e das artes de modo geral, na
Literatura, inclusive.

A autora constata que a permanência/presença da Literatura de massa no ambiente escolar


impede a socialização da Literatura realista.
76

Procuramos apresentar os efeitos da expressão teórica e cultural do projeto político e


econômico neoliberal no âmbito da produção literária, evidenciando algumas
características essenciais da Literatura de massa, cuja predominância no ambiente
escolar impede a socialização da Literatura realista. Considerando o caráter
contraditório do desenvolvimento da cultura, necessariamente determinada pela luta
ideológica que acompanha a luta de classes, refletimos também sobre como as
pedagogias hegemônicas contemporâneas, articuladas ao lema “aprender a aprender”,
se valem de estratagemas que retêm as massas não apenas na miséria material, mas
também na miséria intelectual (COSTA, 2018, p. 20).

Costa (2018) trata de aspectos que especificam a concepção de mundo com base no
materialismo histórico e dialético, em sua versão lukacsiana. Aborda a relação entre o trabalho
educativo e o processo de enriquecimento da concepção de mundo do indivíduo. “Isto é, a
relação entre a socialização das formas mais desenvolvidas de conhecimento e a difusão do
materialismo histórico e dialético como concepção de mundo” (COSTA, 2018, p. 21).

Para comprovar a tese de que “o romance que contempla os aspectos do realismo contribui para
o enriquecimento da concepção de mundo do aluno”, a autora lança mão de trechos de romances
clássicos da Literatura brasileira do autor Graciliano Ramos. Considerando a complexidade dos
romances em questão, Costa (2018) indica que sejam trabalhados com alunos dos anos finais
do Ensino Fundamental II ou do Ensino Médio.

Apoiando-nos na formulação marxista-lukacsiana da estética e nos ensaios de crítica


literária de Carlos Nelson Coutinho (1943-2012), buscamos evidenciar a grandeza
dessas narrativas, destacando nelas as características formais decisivas do gênero
romanesco e distintivas do autêntico realismo (COSTA, 2018, p. 21).

Em suas considerações finais, a autora retoma o percurso da decadência ideológica da


burguesia, ao neoliberalismo que promoveu reformas na educação visando ressignificar o lema
“aprender a aprender”. Reitera que, segundo Duarte (2006), tais pedagogias retiram da escola a
função de transmissão do saber elaborado, do conhecimento objetivo, não proporcionando aos
alunos o acesso à verdade.

Assim, a ideologia burguesa, travestida pelos atuais instrumentos ideológicos da


condição pós-moderna, aperfeiçoa-se como construção teórica produtora e difusora
de ilusões sobre uma situação histórica em si mesma, e reproduz a lógica cultural
anestesiadora das consciências, levando a cabo sua função ideológica, social e
política: agrilhoar cada vez mais os indivíduos à sua fetichizada percepção da
realidade (COSTA, 2018, p. 244).

Trazendo essas reflexões para a escola, Costa (2018) considera que a escola em si não pode ser
entendida desconectadamente de sua relação com a sociedade, reconhece que a luta de classes
atravessa também o conhecimento escolar, assim como a lógica cultural do capitalismo.

Dessa forma, em termos educativos, identificamos quais conhecimentos podem


contribuir para o processo de formação humana, para o desenvolvimento integral do
77

indivíduo; pois a definição dos conteúdos filosóficos, científicos e artísticos que


deverão constituir e educação escolar contém um posicionamento em relação à
necessária superação das contradições engendradas pela sociedade de classe (COSTA,
2018, p. 246).

A autora considera que a escola, na atualidade, reserva um espaço mínimo para a socialização
do saber elaborado, destaca que a arte literária em especial sofre efeitos profundos de sua
subordinação aos interesses do capital, o que se reflete nos textos literários que chegam às mãos
dos alunos. Sobre a Literatura ofertada aos alunos, retoma a pergunta que norteou sua tese:
“trata-se de uma arte que contribui para o enriquecimento da concepção de mundo dos alunos
ou de instrumentos ideológicos que promovem a fuga irracional e alienada perante os problemas
cruciais de nosso tempo”? (COSTA, 2018, p. 246, 247).

A autora considera que a tese foi fundamental para, mais do que responder a uma pergunta cuja
resposta já se sabe, refletir sobre a necessidade de se lutar em prol da socialização de um
conhecimento, de uma arte que contribua para uma visão “desfetichizadora da realidade”.

Considerando que a fetichização da realidade que se dá na sociedade capitalista faz


com que, na consciência humana, o mundo seja visto de modo deturpado e que o
grande romance possa exercer um papel desfetichizador na formação humana e
contribuir para o processo de transformação das relações sociais alienadas,
ressaltamos a escola como o espaço privilegiado para a socialização de obras literárias
cujo mundo refigurado possa servir de orientação para a vivência receptiva do aluno
e, assim, contribuir para o enriquecimento da sua concepção de mundo (COSTA,
2018, p. 247).

A tese de Costa (2018) traz profundas contribuições para nosso trabalho, uma vez que
defendemos o papel dos clássicos na transmissão do saber elaborado, assim como o papel
desfetichizador que a grande Literatura pode exercer na formação humana. A autora abordou
com riqueza de detalhes a questão do romance na educação escolar, unimo-nos a ela no intuito
de fornecer subsídios que norteiem os docentes na seleção de repertórios de leitura literária a
serem trabalhados no contexto escolar do Ensino Médio. Para isso, entretanto, não faremos
distinção entre romances, poemas ou crônicas, pois entendemos que temos textos de qualidade
– clássicos – para além do romance e que podem potencializar o efeito catártico e a
desfetichização da realidade. Sabemos que não é um processo rápido, porém, se faz necessário.

2.1.6 O poema clássico na educação escolar

Figueiredo (2020) em sua dissertação de mestrado intitulada O poema clássico na educação


escolar à luz da pedagogia histórico-crítica traz um estudo teórico-conceitual sobre o poema
78

clássico e sua utilização como recurso de ensino de Literatura para a promoção da emancipação
do sujeito.

A pesquisa é baseada na pedagogia histórico-crítica e no materialismo histórico e dialético e


tem como objeto de estudo o poema clássico “A noite dissolve os homens”, de Carlos
Drummond de Andrade. Figueiredo (2020) busca pensar sobre qual é a possível contribuição
do poema em questão para o processo educativo que visa à emancipação humana.

Em seu primeiro capítulo, a autora relaciona o poema à trajetória de humanização do homem,


apresentando-o como produto histórico, como tal, delimitado pelas contradições da vida
cotidiana. Busca, por meio de uma análise sobre as imposições do capitalismo à classe
trabalhadora, compreender a “rejeição à fruição do poema clássico” (FIGUEIREDO, 2020, p.
10). Identifica a síntese pelo capital de um projeto “antipoético”. A autora postula ainda no
primeiro capítulo a defesa da emancipação do homem, identificando a pedagogia histórico-
crítica como projeto educacional que milita por essa emancipação.

Em seu segundo capítulo, Figueiredo (2020) apresenta o poema clássico como um gênero
literário historicamente desenvolvido. Orienta-se, para isso, pelos estudos estéticos de Lukács.
A autora traz, assim como Costa (2018), o conceito de “decadência ideológica” (LUKÁCS,
1968, 1979), afirmando entender, a partir de Costa (2018), tal conceito como o que aproxima
as produções do autor a uma problematização dos dias atuais.

Logo, é substancial situarmos a poesia em tempos de “decadência ideológica”. Assim,


por compreendermos o ataque que essa poesia decadente promulga a uma educação
crítica e revolucionária, objetivamos neste capítulo contrapor as expressões da
decadência aos apontamentos lukacsianos sobre a arte como a “memória da
humanidade”, isto é, como uma objetivação humana que reúne de modo particular um
reflexo singular e ao mesmo tempo universal da vida, já que é a arte uma mimese
peculiar do real (FIGUEIREDO, 2020, p. 11).

Em seu último capítulo, a autora discorre, de acordo com os pressupostos de Vigotski, sobre a
relação entre desenvolvimento cognitivo e recepção estética. Identifica as orientações
pedagógicas que embasam o ensino da recepção poética tendo como recurso o referido poema
de Drummond. Para isso, Figueiredo (2020) expõe a biografia do autor e as informações sobre
a obra Sentimento do Mundo, em que foi publicada o poema.

Em suas considerações finais, Figueiredo (2020) elucida a contribuição ofertada pela educação
escolar à emancipação humana. “A escola sozinha não conseguirá transformar o mundo,
contudo, ela pode ser um espaço que colabora, à sua maneira, à transformação deste mundo
79

desigual, conforme o ensino se alicerce em uma concepção educativa histórico-crítica”


(FIGUEIREDO, 2020, p. 169).

Nesse sentido, a autora considera que a educação escolar, pautada na pedagogia histórico-crítica
e nos ideais marxistas que lutam pela emancipação humana, contribui para a transformação “à
medida que socializa uma concepção de mundo histórica” (FIGUEIREDO, 2020, p. 169). Dos
saberes clássicos, aqueles que permitem ao sujeito “diluir o imediatismo da sua cotidianidade
em uma vivência histórica e radicalmente humana”, a autora reitera que elegeu a poesia
(FIGUEIREDO, 2020, p. 169).

Por ser um legado socializador dos costumes, dos sentimentos, das ações, dos
pensamentos e dos valores de uma particular sociedade, a poesia permite aos sujeitos
uma relação autoconsciente da riqueza humana historicamente acumulada. Além
disso, por ser uma objetivação humana cujo núcleo é a ação, o poema é determinado
(e à sua maneira, dialeticamente, determina) pelo modo de produção e pelas relações
de produção e reprodução da vida de seu tempo. O poema carrega em si um reflexo
das múltiplas contradições que forjam determinado convívio coletivo. Portanto, ele é
um recurso que propicia aos sujeitos uma interpretação mais crítica e consciente da
realidade (FIGUEIREDO, 2020, p. 171).

O trabalho de Figueiredo (2020) é um dos que contribuem sobremaneira com o


desenvolvimento da presente tese, uma vez que se dedica a fornecer subsídios metodológicos
para o trabalho com poemas em sala de aula. Pretendemos avançar a fim de que tenhamos
condições de, conforme citado anteriormente, propor elementos norteadores para a seleção de
repertórios de leitura literária a serem trabalhados no contexto escolar do Ensino Médio.

Após análise dos trabalhos citados, ressaltamos que nosso objeto de pesquisa foi escolhido a
partir do estudo da tese de doutoramento de Ferreira (2012), A catarse estética e a pedagogia
histórico-crítica: contribuições; da tese de doutorado de Costa (2018), O romance na educação
escolar: reverberações da arte narrativa na concepção de mundo; e da dissertação de mestrado
de Figueiredo (2020), O poema clássico na educação escolar à luz da pedagogia histórico-
crítica. Os trabalhos elencados despertam nossa atenção à medida que se mostram coerentes à
teoria pedagógica que ora defendemos e ao direcionamento da importância em se trabalhar com
textos clássicos em sala de aula. As análises feitas pelas pesquisadoras citadas tomam como
escopo a defesa da pedagogia histórico-crítica e a transmissão do saber elaborado, com vistas à
importância do ensino de Literatura para a humanização do indivíduo e para o desenvolvimento
de suas funções psíquicas superiores.

Após breve análise das pesquisas que dialogam com a nossa, buscaremos nortear a relação entre
trabalho e educação, falar sobre a especificidade e a natureza da educação. Faremos ainda um
80

breve percurso sobre a constituição da escola como um espaço de luta de classes. Traremos as
pedagogias críticas e não críticas de acordo com as concepções de Saviani, falaremos, portanto,
das pedagogias do aprender a aprender e do esvaziamento do currículo escolar para
justificarmos nossa escolha e predileção pela pedagogia histórico-crítica e pela defesa da
transmissão do saber elaborado em contexto escolar.

2.2 TRABALHO E EDUCAÇÃO

Por meio do materialismo histórico e dialético, entendemos que o homem é um ser histórico e
social. De acordo com Saviani (2015, p. 28), a dialética materialista desenvolvida por Marx tem
como ponto de partida indivíduos produzindo seus próprios meios de vida e sua história.

É basicamente isso que diferencia o homem dos animais: o fato de aquele tratar-se de um ser
social que se constitui a partir da relação com outros de sua espécie. Desde os primórdios, o
homem modifica a natureza por meio do trabalho, produzindo os meios dos quais necessita. Na
produção do que necessita para sobrevivência, a intencionalidade é o que diferencia o humano
do animal. Em O Capital, Marx (1985, p. 188) faz analogia entre uma abelha – exímia na arte
de construir sua colmeia – e um arquiteto ruim:

Pressupomos o trabalho numa forma em que ele diz respeito unicamente ao homem.
Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma abelha envergonha
muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém, o que desde o início
distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia
em sua mente antes de construí-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-
se a um resultado que já estava presente na representação do trabalhador no início do
processo, portanto, um resultado que já existia idealmente. Isso não significa que ele
se limite a uma alteração da forma do elemento natural; ele realiza neste último, ao
mesmo tempo, seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, o tipo e o modo de
sua atividade e ao qual ele tem de subordinar sua vontade.

Dessa forma, o homem não só tem a capacidade de planejar o objeto que deseja/necessita
produzir, mas também tem plenas condições de modificar o que lhe é dado pela natureza,
alterando não somente a forma, mas realizando nesses objetos seu objetivo. Assim, a partir do
momento que se produz um banco de madeira, aquela madeira deixa de ser um elemento
essencialmente natural para se transformar em uma objetivação12 da ação humana, ou seja, em

12
Entendemos o conceito de objetivação a partir da reflexão feita por Leontiev (1978, p. 283) sobre as produções
humanas: “(...) no decurso da atividade dos homens, as suas aptidões, os seus conhecimentos e o seu saber-fazer
cristalizam-se de certa maneira nos seus produtos (materiais, intelectuais, ideais)”, ou seja, no decorrer da história
da humanidade, os seres humanos foram depositando nos objetos que construíram um pouco deles mesmos, suas
ideias, habilidades.
81

um objeto cultural e social. Tal processo, que diz respeito unicamente ao homem, denomina-se
trabalho. Por meio do trabalho o homem produz sua existência e se produz como homem.

Saviani (2013, p. 11) diferencia o homem do animal afirmando que enquanto este se adapta à
realidade natural, aquele necessita “produzir sua existência” e para isso, ele precisa transformar
a natureza por meio do trabalho. O autor destaca que o trabalho é uma ação adequada a
determinadas finalidades, sendo, portanto, “intencional”. Declara que o mundo da cultura é
criado a partir da transformação da natureza. “Para sobreviver, o homem necessita extrair da
natureza, ativa e intencionalmente, os meios de sua subsistência. Ao fazer isso, ele inicia o
processo de transformação da natureza, criando um mundo humano (o mundo da cultura)”
(SAVIANI, 2013, p. 11).

Uma vez que a educação é um fenômeno característico dos seres humanos, o autor destaca que
ela se torna não somente uma exigência do “processo de trabalho”, mas se constitui ela mesma
em “um processo de trabalho”.

Assim, esclarece que no processo de produção de sua existência, o homem precisa


primeiramente garantir sua “subsistência material” que se dá com a produção de bens materiais
cada vez mais complexos, esse processo é denominado por Saviani (2013, p. 12) de produção
de “bens materiais”. Para produzir tais bens, o autor reafirma a necessidade da representação
mental dos objetivos reais do homem por meio de ideias, tal “representação inclui o aspecto de
conhecimento das propriedades do mundo real (ciência), de valorização (ética) e de
simbolização (arte)”; à medida em que tais aspectos se tornam preocupação do homem, eles
abrem o leque para outra categoria de trabalho: o “trabalho não material”, que engloba produção
de conceitos, ideias, do saber de modo geral, o “conjunto da produção humana” (SAVIANI,
2013, p. 12).

Saviani (2013, p. 12) afirma ainda que existem duas formas de trabalho não material: aquela
em que o produto se separa de seu produtor – os livros, por exemplo, que guardam um intervalo
entre produção e consumo – e aquela em que o produto não se separa de seu produtor enquanto
é produzido – a educação se enquadra nesse segmento, pois uma aula é consumida – pelo aluno
– ao mesmo tempo em que é produzida – pelo professor; portanto para que a atividade educativa
aconteça são necessárias a presença tanto do aluno quanto do professor. Essa, para Saviani, é a
natureza da educação: “se a educação não se reduz ao ensino, é certo, entretanto, que ensino é
82

educação e, como tal, participa da natureza própria do fenômeno educativo” (SAVIANI, 2013,
p. 12).

Sobre a especificidade da educação, o autor considera que os elementos do trabalho não


material (tais como conceitos, ideias, hábitos, valores, habilidades, dentre outros) não
interessam como elementos exteriores ao ser humano. Eles interessam à educação do ponto de
vista pedagógico, quando são assimilados pelo ser humano de modo a constituírem sua
“segunda natureza”.

Portanto, o que não é garantido pela natureza tem que ser produzido historicamente
pelos homens, e aí se incluem os próprios homens. Podemos, pois, dizer que a natureza
humana não é dada ao homem, mas é por ele produzida sobre a base da natureza
biofísica. Consequentemente, o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e
intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida
histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação diz
respeito, de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser
assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se formem humanos e,
de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para
atingir esse objetivo (SAVIANI, 2013, p. 13).

Com relação aos elementos culturais cuja assimilação se torna necessária para a humanização,
o autor afirma que a escola deve priorizar a transmissão do saber elaborado, ou seja, o ensino
dos conteúdos clássicos do campo da ciência, da filosofia e da arte produzidos pelo homem ao
longo da história. Em relação às formas mais adequadas para se atingir esses objetivos, o autor
destaca que se trata da organização dos meios a partir dos quais o indivíduo poderá internalizar
a aprendizagem obtida em forma de segunda natureza, de modo a refletir a humanidade
historicamente produzida. Sobre os conteúdos clássicos e métodos de ensino trataremos mais
adiante. Antes disso, faz-se ainda necessário um breve percurso para entendermos como a
educação se constitui na sociedade capitalista.

2.3 EDUCAÇÃO ESCOLAR E A LUTA DE CLASSES

A educação é o processo de ensino e aprendizagem dos saberes necessários para que se viva
em sociedade. Sua origem se confunde com a do ser humano que se distingue dos demais
animais, pois, em vez de se adaptar à natureza, ele adapta a natureza a si mesmo. Entendemos
que a partir da transformação da natureza por intermédio do trabalho o homem se humaniza,
aprendendo, ensinando e produzindo cultura. “E nestas bases, a produção do conhecimento e a
educação não estão separados da forma como se constitui a sociedade. São, portanto,
historicamente produzidos” (MARSIGLIA et al. 2017, p. 108).
83

De acordo com Leontiev (1978), os progressos realizados pelo ser humano são transmitidos a
novas gerações, de modo que todo aperfeiçoamento marca um novo grau no desenvolvimento
histórico. Dessa forma:

Cada geração começa, portanto, a sua vida num mundo de objetos e de fenômenos
criado pelas gerações precedentes. Ela apropria-se das riquezas deste mundo
participando no trabalho, na produção e nas diversas formas de atividade social e
desenvolvendo assim as aptidões especificamente humanas que se cristalizaram,
encarnaram nesse mundo. Com efeito, mesmo a aptidão para usar a linguagem
articulada só se forma, em cada geração, pela aprendizagem da língua. O mesmo se
passa com o desenvolvimento do pensamento ou da aquisição do saber. Está fora de
questão que a experiência individual de um homem, por mais rica que seja, baste para
produzir a formação de um pensamento lógico ou matemático abstrato e sistemas
conceituais correspondentes. Seria preciso não uma vida, mas mil. De fato, o mesmo
pensamento e o saber de uma geração formam-se a partir da apropriação dos
resultados da atividade cognitiva das gerações precedentes (LEONTIEV, 1978, p.
284).

Podemos compreender, portanto, que o processo do trabalho (que é educativo, uma vez que
envolve comunicação entre seres humanos para que aconteça a aprendizagem), por meio do
qual o ser humano transforma a natureza e se humaniza, vai se tornando mais complexo e
desenvolvido ao longo das gerações. Aos poucos, com a modernização da sociedade e o
desenvolvimento do capitalismo com o consequente deslocamento do eixo de produção do
campo para a cidade, o seio familiar e a sociedade em si não mais dão conta de serem a forma
de educação dominante. A partir desse momento, a educação escolar passa a ocupar tal espaço
privilegiado.

Saviani (2018, p. 32) afirma que na época moderna, com a decadência do feudalismo e ascensão
da burguesia, esta se manifesta como uma “classe revolucionária” que direciona críticas à
nobreza e ao clero sob a adoção da “filosofia da essência”, segundo a qual se defende a
igualdade entre os homens. O autor assegura que nesse momento a burguesia ocupa tal postura
revolucionária, uma vez que seus interesses coincidiam com os interesses da mudança,
direcionando a sociedade a um desenvolvimento histórico.

Nesse momento, portanto, essa classe lutava pela igualdade de direitos, por uma sociedade
“igualitária”, uma vez que os privilégios da nobreza e do clero não poderiam – para eles –
persistir. Assim, segundo Saviani (2018, p. 32), a burguesia substitui uma sociedade pautada
em um suposto “direito natural” por uma “sociedade contratual”. O autor explica o raciocínio:

[...] Os homens são essencialmente livres; essa liberdade funda-se na igualdade


natural, ou melhor, essencial dos homens, e se eles são livres, então podem dispor de
sua liberdade e na relação com os outros homens, mediante contrato, fazer ou não
concessões. (...) Então, quem possui os meios de produção é livre para aceitar ou não
84

a oferta de mão de obra e vice-versa, quem possui a força de trabalho é livre para
vendê-la ou não (...). Esse é o fundamento jurídico da sociedade burguesa.
Fundamento (...) formalista, de uma igualdade formal (SAVIANI, 2018, p. 33).

Na sequência, o autor explica que logo que a burguesia se torna a classe dominante, em meados
do século XIX, ela estrutura os sistemas nacionais de ensino e passa a advogar “a escolarização
para todos”, o que não foi um ato sem intenção política, muito pelo contrário; a ideia da
burguesia em escolarizar os homens visava convertê-los em cidadãos que pudessem participar
da vida política como votantes, escolhendo líderes representantes da burguesia. Dessa forma, a
“escola era proposta como condição para a consolidação da ordem democrática” (SAVIANI,
2018, p. 33).

A partir do desenvolvimento da história, entretanto, a burguesia percebeu que a participação


política das massas populares não garantia a manutenção de seus interesses, pelo contrário,
entrava em contradição com eles. Desse modo, à medida que a burguesia ascendeu ao poder,
Saviani (2018, p. 33) destaca que a mesma passou de revolucionária a reacionária, pois já não
se interessava em modificar a ordem vigente, mas agora sua luta era em prol de mantê-la. Assim,
os interesses da burguesia passaram a ir de encontro à transformação da sociedade, de modo
que ela não mais se manteve “na linha do desenvolvimento histórico”.

Então, para a burguesia defender seus interesses, ela não tem outra saída senão negar
a história, passando a reagir contra o movimento da história. É nesse momento que a
escola tradicional, a pedagogia da essência já não vai servir e a burguesia vai propor
a pedagogia da existência. (...) Com base neste tipo de pedagogia, considera-se que os
homens não são essencialmente iguais; os homens são essencialmente diferentes, e
nós temos que respeitar as diferenças entre os homens. Então, há aqueles que têm mais
capacidade e aqueles que têm menos capacidade; há aqueles que aprendem mais
devagar; há aqueles que se interessam por isso e os que se interessam por aquilo
(SAVIANI, 2018, p. 33).

Por meio da propagação de ideias embasadas na “pedagogia da existência”, legitimam-se


desigualdades, a dominação de uns sobre outros, os privilégios para poucos. Pensando no
ideário burguês, os currículos escolares são construídos buscando esvaziá-los de conteúdos,
dando prioridade ao que é secundário; surgem, assim, as pedagogias de projetos, de
competências, tudo em prol de um suposto “respeito às diferenças entre os homens”, uma vez
que quem não se desenvolve humanamente pouco questiona.

Entendemos que o motivo pelo qual alguns alunos não se interessam pelos conteúdos clássicos
se justifica muito mais pela luta – em uma sociedade totalmente desigual – pela manutenção de
suas condições básicas de vida do que pela capacidade ou não de aprendizagem, uma vez que
até mesmo o desenvolvimento cognitivo está atrelado às condições de subsistência; portanto, é
85

um problema estrutural de uma sociedade dividida em classes com interesses antagônicos;


todavia, mesmo com todas as dificuldades, a classe trabalhadora precisa se apropriar daquilo
que os dominantes dominam. Nós enquanto profissionais precisamos lutar pela disseminação
do saber sistematizado, patrimônio histórico e coletivo da humanidade, por meio do qual os
indivíduos podem ter condições de desenvolver suas máximas capacidades psíquicas, tornando-
se plenamente humanos, passíveis de compreender progressivamente, em círculos cada vez
mais abrangentes, a totalidade da realidade ao seu redor.

2.4 POLÍTICAS EDUCACIONAIS NO BRASIL E O ESVAZIAMENTO DA ESCOLA

Já discutimos que quando a burguesia chega ao poder definitivamente, passa de classe


revolucionária a reacionária. Tal classe percebe que o desenvolvimento das massas não atende
diretamente aos seus interesses e começa, dessa forma, a lutar pela manutenção da ordem
vigente, indo na contramão do desenvolvimento da história.

Falamos também que a pedagogia da existência vai legitimar dentre diversas coisas as
desigualdades e os privilégios dentro das escolas, dando margem para falas do tipo: “cada
pessoa aprende no seu ritmo”, “se a escola servir para socialização, já cumpriu seu papel”,
“alguns alunos só servem para o trabalho pesado”. Essas frases são extremamente excludentes,
preconceituosas e reverberam o ideário burguês do esvaziamento dos currículos, visando a
manutenção da sociedade capitalista em pleno funcionamento. Dessa forma, a burguesia que
exerce o poder econômico, ideológico, estatal e legal não se preocupa em promover a
democratização do acesso ao saber, de modo que a educação escolar – no seio da luta de classes
– acaba por sofrer um profundo esvaziamento, à medida em que a classe trabalhadora luta pelo
direito de acesso à mesma e aos conhecimentos coletivamente e historicamente produzidos pela
humanidade.

Sendo uma característica da própria sociedade capitalista, essa tendência assume


características marcantes na fase de maior acirramento das contradições sociais, em
que o desenvolvimento das forças produtivas passa a exigir a socialização dos meios
de produção. Levando em consideração que o saber é também um meio de produção,
essa contradição atravessa também todo o campo educacional, pois se a classe
trabalhadora luta pela democratização do acesso ao conhecimento produzido pelo
conjunto da humanidade ao longo de sua história, a burguesia busca secundarizar a
escola esvaziando-a. (MARSIGLIA et al. 2017, p. 108).

Para pensarmos nessa luta de classes, passemos, primeiramente, a uma breve reflexão sobre
como se deram as transformações socioeconômicas no Brasil e sobre as consequências de uma
série de acontecimentos que repercutiram na formação de uma estrutura educacional
86

fragmentada, sob interesse de grupos empresariais e descompromissada com a transmissão do


saber elaborado.

Ao refletir sobre a transformação socioeconômica do Brasil para os moldes capitalistas, Costa


(2018) ressalta que enquanto no continente europeu houve manifestações devidamente oriundas
da massa, em nosso país, as transformações sempre aconteceram “pelo alto”, “tendo o Estado
como protagonista e com o intuito de adequar a estrutura agrária às necessidades da
modernização capitalista” (COSTA, 2018, p. 138).

Isso se justifica em função de as velhas forças sociais no Brasil terem sido extintas sob
orientação antipopular e elitista, nunca pelos movimentos populares das massas, tal como era
característico nos moldes franceses. Tais transformações “pelo alto” foram chamadas por Lenin
e por Lukács de “via prussiana”:

[...] quem proclamou nossa independência política foi um príncipe português, numa
típica manobra “pelo alto”; a classe dominante do Império foi a mesma da época
colonial; quem terminou capitalizando os resultados da proclamação República
(também ela implantada “pelo alto”) foi a velha oligarquia agrária; a Revolução de
1930, apesar de tudo, não passou de uma “rearrumação” do antigo bloco de poder,
que cooptou - e, desse modo, neutralizou e subordinou - alguns setores mais radicais
das camadas médias urbanas; a burguesia industrial floresceu sob a proteção de um
regime bonapartista, o Estado Novo, que assegurou pela repressão e pela demagogia
a neutralização da classe operária, ao mesmo tempo em que conservava quase
intocado o poder do latifúndio etc. (COUTINHO, 1984, p. 36-37 apud COSTA, 2018,
p. 137).

Costa (2018, p. 141) traz em seu texto que, conforme pontua Coutinho (1984), a revolução
“pelo alto” encontrou seu auge no período da ditadura militar, entre os anos 1960 e 1970,
cenário que se delineou no país, criando condições políticas para a solidificação de uma
“modalidade dependente de capitalismo monopolista de Estado, extremando a velha tendência
a excluir as grandes massas da população nacional tanto dos frutos do progresso quanto das
decisões políticas”.

Do período da ditadura brasileira, herdamos, segundo Costa (2018, p. 181), tendências de


pensamento semelhantes às do processo de decadência ideológica da burguesia europeia (do
momento em que ela passa a ser reacionária) do século XIX, isto é:

[...] herdamos um “vazio cultural” penetrado perigosamente pelo anti-humanismo e


irracionalismo, as ideologias apologéticas da realidade social do capitalismo
contemporâneo, enfim, herdamos o universo ideológico neoliberal e pós-moderno - o
qual interfere atualmente na educação escolar e, por conseguinte, no processo de
socialização da arte literária (COSTA, 2018, p. 181, 182).
87

Herdamos também dessa época o esvaziamento da educação brasileira que se tornou apta a
formar indivíduos de acordo com as necessidades da lógica formal burguesa e a modelar sua
concepção de mundo baseada nas aparências.

O crescente processo de desumanização das relações sociais, que ganhou força de


meados da década de 1960 até o fim do século XX, acarretou efeitos tão destrutivos
quanto duradouros em todos os âmbitos e inclusive na esfera educacional; pois o
esvaziamento da educação escolar destinada à maioria da população é hoje um dos
aspectos característicos das concepções pós-modernas, ambiente ideológico do
capitalismo contemporâneo (COSTA, 2018, p. 180).

As políticas neoliberais da década de 1990 ajustaram a economia nacional às exigências da


economia capitalista global, aprofundando as heranças de nossa formação histórica,
“atualizando as bases de subordinação estrutural do país aos termos impostos pela ‘nova ordem
mundial’” (COSTA, 2018, p. 183).

A partir de 1990, o cenário político no Brasil é marcado pelo neoliberalismo que se caracteriza
pelo estímulo às políticas de privatização, pela precarização e intensificação do trabalho, pela
redução de gastos com políticas sociais, pela priorização da empresa privada e do livre mercado
e criação de condições para internacionalizar a economia brasileira (COSTA, 2018, p. 199). O
país passa a assumir tal condição pós-moderna que intensifica a exclusão econômica e social,
bem como a precarização escolar e o empobrecimento cultural.

Ademais, a mesma sociedade que desenvolveu meios extremamente eficazes para a


produção e para a difusão do conhecimento gera uma decadência cultural: “[...] no seu
período conservador, as expressões culturais burguesas tendem a fazer coexistir o
rebaixamento vulgar da cultura para as massas com a sofisticação esterilizadora da
cultura para as elites” (SAVIANI, 1997a, p. 193). Essa decadência cultural, por sua
vez, é expressa na chamada crise da educação; pois, como atesta Saviani, o
esvaziamento do trabalho pedagógico na escola está intimamente atrelado à crise
cultural característica da condição pós-moderna (COSTA, 2018, p. 200, grifo nosso).

Percebemos que o desenvolvimento da máquina capitalista faz com que – cada vez mais – as
desigualdades sociais e econômicas venham à tona, relegando às massas a cultura vulgar, já às
elites, a cultura mais sofisticada. O que, conforme Costa (2018) afirma, se reflete ainda hoje –
e cada vez mais – no contexto escolar, no esvaziamento do currículo escolar, no mascaramento
de informações pelos índices que medem a educação e, ao contrário do que presenciamos na
escola, dizem que tudo está “ótimo”. Sabemos, todavia, que a escola continua repercutindo as
desigualdades sociais e subsidiando políticas públicas que não dão conta de formar indivíduos
que tenham condições sequer de conhecer a realidade que os cerca, muito menos de agir para
transformá-la, o que, inclusive é o objetivo dos grupos hegemônicos. Em outras palavras,
88

manter a massa em plena miséria intelectual é importante para a manutenção da ordem vigente
e para o bom funcionamento do capital.

Com o desenvolvimento do neoliberalismo, a educação pública do país foi se moldando


conforme as demandas da globalização. Em função do endividamento externo, da necessidade
de honrar compromissos com credores e dos consequentes impactos na sociedade oriundos das
reformas neoliberais, a política educacional foi vista como estratégia para atenuar – ainda que
no plano ideológico – os efeitos das reformas ocorridas no sistema econômico. (MARSIGLIA
et al., 2017, p. 112).

Um marco inicial para tal redefinição da educação pública se deu quando o Banco Mundial,
juntamente com a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura), Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e PNUD (Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento) divulgou a nova agenda para a educação básica. No evento,
ocorrido em 1990, em Jomtien, foi aprovada a “Declaração mundial sobre Educação para
Todos”, um documento que apresenta as intenções de quem o financia e planeja de implementar
uma reforma na educação “sobre as bases de um novo projeto de formação humana, qual seja,
o projeto neoliberal de educação” (MARSIGLIA et al., 2017, p. 112-113).

O programa de “Educação para todos”, de acordo com Marsiglia et al. (2017, p. 113),
corresponde a uma “perspectiva de educação seletiva e minimalista para os que provavelmente
vão exercer trabalho simples durante toda a vida, priorizando a educação básica e se
restringindo às necessidades básicas de aprendizagem”, o que – conforme viemos discutindo
até aqui – é de interesse dos grupos dominantes: formar indivíduos que alimentem a máquina
capitalista sem questioná-la e sem pretender desmontá-la.

A partir de 2005, passa a vigorar no Brasil o programa “Todos pela educação”, criado, segundo
Marsiglia et al. (2017, p. 113) para atender aos interesses dos líderes empresariais, sintetizando
os interesses do capital em formar – educar – trabalhadores. Com base no “Todos pela
educação”, surge a defesa das competências básicas, as metas de desempenho escolares
medidas pelo “índice de desenvolvimento da educação básica” – IDEB e demais instrumentos
de avaliação.

Dessa forma, de acordo com a autora, as referências incorporadas pela política educacional
permitiram que a escola pública intensificasse sua subordinação em relação ao programa
neoliberal de sociedade e de educação. Assim o programa neoliberal avança conquistando seus
89

objetivos: formando trabalhadores competentes para exercerem determinada função, reduzindo


gastos públicos e aumentando o controle do trabalho que é desenvolvido na escola
(MARSIGLIA et al. 2017, p. 114).

Tais reformas que buscaram alinhar a educação escolar ao projeto neoliberal da classe
dominante também se refletiram no currículo da escola pública. Destaca-se como importante
marco nesse sentido a publicação dos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) em 1990, que
buscaram “redirecionar e uniformizar os conteúdos curriculares”. Para tal redirecionamento, a
autora ressalta que o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso recorreu ao lema do
“aprender a aprender”.

Para tanto, a coalização de poder representada pelo governo FHC não só recorreu ao
lema “aprender a aprender”, reforçando a concepção de formação humana enquanto
adaptação constante e dinâmica dos indivíduos às necessidades do mercado, como,
também, buscou instituir formas de controle para verificar a ligação entre o “currículo
unificado” e o ensino na escola, a exemplo da criação do Sistema de Avaliação da
Educação Básica (SAEB) (MARSIGLIA et al., 2017, p. 114, grifo nosso).

Ao que parece, a superação do “Programa de Educação para Todos” pelo “Programa Todos
pela Educação”, a partir dos anos 2000, somente enfatizou o que já vinha acontecendo em
relação ao esvaziamento do currículo escolar. Sobre um pretensioso disfarce, ancorado por
grandes representantes da classe empresarial, a escola continuou reverberando os interesses da
elite dominante. O lema “aprender a aprender” veio para esvaziar tanto o papel do professor na
escola, quanto o acesso ao conteúdo elaborado para os filhos da classe trabalhadora. Se o
indivíduo é responsável por sua própria aprendizagem, ele não dará conta de – em sua visão de
mundo – ultrapassar o nível das aparências, será eternamente um operário da grande máquina
capitalista, subserviente, obediente.

Dessa forma, conforme percebemos, a burguesia reacionária do século XXI, pautada no ideário
pós-moderno, busca a todo custo a manutenção da sociedade vigente; para isso, ela precisa
atender aos interesses dos países desenvolvidos, das grandes corporações, de quem está no
poder econômico, ideológico, político; esses interesses são sempre contrários aos da classe
trabalhadora, uma vez que o princípio do capitalismo é a meritocracia, o privilégio para poucos,
para o sistema existir, faz-se necessária a existência de dominantes e dominados, e isso se reflete
nas políticas educacionais e consequentemente na escola.
90

2.5 PEDAGOGIAS A SEREM SUPERADAS

Já mostramos aqui que o homem não nasce humano, mas se humaniza a partir do trabalho e
consequentemente da educação. Discutimos também que com o desenvolvimento da história
são criados objetos cada vez mais complexos e o ser humano sente necessidade de aprender
cada vez mais, não somente para dominar a natureza, mas para transformá-la em seu benefício
e interesse.

Depois, fizemos uma breve trajetória sobre a burguesia que passa de revolucionária a
reacionária, não mais adepta ao desenvolvimento da história e dos próprios homens como seres
integrais. Abordamos a questão das políticas educacionais no Brasil e evidenciamos a forma
como a escola é duramente violentada a partir dos interesses burgueses em manter a classe
trabalhadora na mais profunda miséria econômica, social e intelectual.

Desenvolvemos a presente tese no pensamento de que aquilo que poderia satisfazer e ao mesmo
tempo realizar plenamente o ser humano – o trabalho – por meio de sua produção para-si, passa
a ser uma mercadoria na sociedade capitalista, que preza em fazer com que esse ser humano
seja um tipo de escravo moderno do capital (para a imensa maioria dos seres humanos só há
um tipo de “liberdade”: aceitar o trabalho alienante ou morrer de fome); desse modo, o ser
humano deixa de satisfazer suas próprias necessidades para satisfazer a de seus patrões (os
capitalistas), em troca do básico para comer, vestir e existir. Portanto, não consegue dar
sequência ao seu próprio desenvolvimento enquanto humano. Esse domínio do capital se reflete
duramente na escola, uma vez que a burguesia busca disseminar entre os filhos da classe
trabalhadora apenas aquilo que lhes é necessário para as aprendizagens do ofício, para a vida
em sociedade.

Para prosseguimento de nosso estudo e encerramento do presente capítulo, evidenciaremos as


pedagogias críticas e não críticas, conforme divisão feita por Saviani, a fim de chegarmos à
nossa defesa da pedagogia histórico-crítica, da transmissão do saber elaborado, do ensino de
Literatura clássica na educação escolar, no intuito de que todos os indivíduos possam ter de fato
o direito de lutar por sua formação integral; sabemos que esta não será concluída nas atuais
circunstâncias da sociedade em que vivemos, mas fazer com que os alunos pensem para além
das aparências pode ser um início favorável à transformação da sociedade.
91

No livro Escola e Democracia, Saviani (2018) faz um apanhado geral sobre as relações entre
escola e política; para isso, inicia seu primeiro capítulo fazendo um comparativo entre as teorias
da educação que existiam até a década de 1980. O autor inicia suas discussões com o dado de
que, em 1970, aproximadamente metade dos alunos das escolas públicas deixavam a escola em
condição de semianalfabetismo ou analfabetismo, muitos outros sequer tinham acesso à escola.
Com base nessa questão de marginalidade, o autor divide as teorias pedagógicas em dois
grupos: as que entendem a educação como possibilidade de superação da marginalidade (as
teorias não críticas) e as que entendem que a educação é um instrumento voltado para a
discriminação social, sendo palco para a marginalização (as crítico-reprodutivistas). Para o
autor:

[...] percebe-se facilmente que ambos os grupos explicam a questão da marginalidade


a partir de determinada maneira de entender as relações entre educação e sociedade.
Assim, para o primeiro grupo a sociedade é concebida como essencialmente
harmoniosa, tendendo à integração de seus membros. A marginalidade é, pois, um
fenômeno acidental que afeta individualmente um número maior ou menor de seus
membros, o que, no entanto, constitui um desvio, uma distorção que não só pode como
deve ser corrigida. A educação emerge aí como um instrumento de correção dessas
distorções. [...] Sua função coincide, no limite, com a superação do fenômeno da
marginalidade. Enquanto esta ainda existir devem se intensificar os esforços
educativos; quando for superada, cumpre manter os serviços educativos num nível
pelo menos suficiente para impedir o reaparecimento do problema da marginalidade
(SAVIANI, 2018, p. 4).

Para esse primeiro grupo de teorias, segundo o autor, a educação tem grande autonomia em
relação à sociedade, ela garante, inclusive, a construção de uma sociedade coesa, igualitária. O
segundo grupo vê a sociedade como um ambiente onde coexistem classes antagônicas que se
relacionam a partir da força.

[...] Nesse quadro, a marginalidade é entendida como um fenômeno inerente à própria


estrutura da sociedade. Isso porque o grupo ou classe que detém maior força se
converte em dominante se apropriando dos resultados da produção social, tendendo,
em consequência, a relegar os demais à condição de marginalizados. Nesse contexto,
a educação é entendida como inteiramente dependente de estrutura social geradora de
marginalidade, cumprindo aí a função de reforçar a dominação e legitimar a
marginalização (SAVIANI, 2018, p. 4).

Dessa forma, as pedagogias críticas são críticas porque entendem que a marginalidade é um
fenômeno social, sendo que a escola legitima a marginalidade, reproduzindo a sociedade, sendo,
portanto, para o autor, denominadas crítico-reprodutivistas.

Dentre as teorias não críticas, Saviani (2018) inclui a “pedagogia tradicional”, a “pedagogia
nova” e a “pedagogia tecnicista”. As teorias crítico-reprodutivistas são divididas em “teoria do
92

sistema de ensino como violência simbólica”, “teoria da escola como aparelho ideológico de
Estado” e “teoria da escola dualista”. Falaremos brevemente sobre cada uma delas.

2.5.1 Teorias não críticas e seu impacto na educação escolar

Apresentaremos as teorias não críticas, a partir de Saviani (2018), em subitens abaixo.

2.5.1.1 Pedagogia Tradicional

Saviani (2018, p. 5) afirma que os “sistemas nacionais de ensino” surgem em meados do século
XIX inspirando-se no princípio de que a “educação é direito de todos e dever do Estado”,
princípio esse que resguardava os interesses em se consolidar a democracia burguesa, classe
que acabara de chegar ao poder. Dessa forma, para estabelecer uma sociedade pautada no
“contrato social celebrado ‘livremente’ entre os indivíduos, era necessário vencer a barreira da
ignorância. Só assim seria possível transformar os súditos em cidadãos (...)”. Nessa nova
sociedade, segundo o autor, a causa da marginalidade é a ignorância, e a escola surge como um
remédio para resolver o problema da falta de conhecimento e consequentemente a
marginalidade. Portanto, seu papel é: “difundir a instrução, transmitir os conhecimentos
acumulados pela humanidade e sistematizados logicamente” (SAVIANI, 2018, p. 5).

A pedagogia tradicional coloca o professor no centro do processo educativo, de modo que ele
transmite seu saber aos alunos. Segundo o autor, era essencial que a escola tivesse um professor
bem preparado para a função, cada um era responsável por uma classe, o mestre fazia a
exposição dos conteúdos e era seguido atentamente pelos alunos que respondiam às atividades
com disciplina. Nem todos, entretanto, de acordo com Saviani, se acostumaram a esse modelo
de escola, muitos não eram bem-sucedidos e alguns que eram bem-sucedidos não se ajustavam
ao tipo de sociedade vigente. Dessa forma, começaram a se avolumar as críticas à referida teoria
e surge a pedagogia nova.

2.5.1.2 Pedagogia Nova

A partir do momento em que se avolumam as críticas à pedagogia tradicional, passam a ser


tecidas ideias para o que viria a se chamar pedagogia nova, esta, segundo Saviani (2018),
mantinha a crença de que o fenômeno da marginalidade poderia ser corrigido pela escola que
teria poder para a equalização social.
93

Segundo essa teoria, o marginalizado, de acordo com Saviani (2018), não é mais o ignorante, o
que não domina conhecimentos transmitidos pela escola, mas sim o rejeitado. Essa pedagogia
abriu margem para a “biopsicologização da sociedade, da educação e da escola” (SAVIANI,
2018, p. 7), uma vez que ela prevê um tratamento diferenciado aos estudantes a partir da suposta
descoberta de diferenças individuais, postulando que marginalizados são os desajustados e
inaptos. Dessa forma, a educação deve cumprir a função de equalização social para corrigir a
marginalidade “na medida em que cumprir a função de ajustar, de adaptar os indivíduos à
sociedade, incutindo neles o sentimento de aceitação dos demais pelos demais”, pois, em uma
sociedade equânime, importa que as pessoas se aceitem e se respeitem conforme são em sua
individualidade (SAVIANI, 2018, p. 7).

Assim surge uma teoria pedagógica que tira o papel central do professor na transmissão do
saber elaborado e considera que o importante não é “aprender, mas aprender a aprender”.
Compreende-se, então, que essa maneira de entender a educação, por referência à
pedagogia tradicional, tenha deslocado o eixo da questão pedagógica do intelecto para
o sentimento; do aspecto lógico para o psicológico; dos conteúdos cognitivos para os
métodos ou processos pedagógicos; do professor para o aluno; do esforço para o
interesse; da disciplina para a espontaneidade; do diretivismo para o não diretivismo,
da quantidade para a qualidade; de uma pedagogia de inspiração filosófica centrada
na ciência da lógica para uma pedagogia de inspiração experimental baseada
principalmente nas contribuições da biologia e da psicologia (SAVIANI, 2018, p. 8).

Para que esse modelo fosse implantado, o autor afirma que seria necessária uma nova
configuração nas escolas, em lugar de classes com professores que ficavam à frente
encarregados na transmissão de conteúdos; a escola deveria funcionar agrupando os alunos por
“áreas de interesses decorrentes de sua atividade livre”. O professor, dessa forma, teria papel
de orientar e estimular esses alunos que seriam responsáveis por sua própria aprendizagem.
Saviani (2018, p. 8) descreve como deveria ocorrer a aprendizagem, nessa teoria:

Tal aprendizagem seria uma decorrência espontânea do ambiente estimulante e da


relação viva que se estabeleceria entre os alunos e entre estes e o professor. Para tanto,
cada professor teria de trabalhar com pequenos grupos de alunos sem o que a relação
interpessoal, essência da atividade educativa, ficaria dificultada e num ambiente
estimulante, portanto, dotado de materiais didáticos ricos, biblioteca de classe etc. Em
suma, a feição das escolas mudaria seu aspecto sombrio, disciplinado, silencioso e de
paredes opacas, assumindo um ar alegre, movimentado, barulhento e multicolorido.

Compreendemos com Saviani (2018) que uma escola com a estrutura proposta também não iria
à frente, uma vez que os custos para isso seriam muito elevados. Dessa forma, o autor menciona
que a “escola nova” se organizou em algumas escolas experimentais ou núcleos de estudo
direcionados às elites.
94

Se, por um lado, o modelo de escola proposta pelo escolanovismo não foi adiante, por outro,
fez profundos estragos na escola pública, agravando o problema da marginalidade. Isso, porque,
segundo o autor, essa pedagogia ficou enraizada nas cabeças de educadores das escolas
tradicionais provocando, entre outras coisas, disciplina menos rígida, despreocupação em
relação à transmissão do saber elaborado, gerando, consequentemente, o rebaixamento do
“nível de ensino destinado às camadas populares, as quais muito frequentemente têm na escola
o único meio de acesso ao conhecimento elaborado” (SAVIANI, 2018, p. 9).

2.5.1.3 Pedagogia Tecnicista

O escolanovismo fracassou na prática, mas se tornou dominante no campo da teoria, tendo


inspirado as pedagogias de Freinet e Paulo Freire. Saviani (2018, p. 10) afirma que os sinais de
cansaço da escola nova se dão em função desse modelo se mostrar incapaz – na prática – de
revolver a questão da marginalidade. Assim, em meados do século XX, surge a pedagogia
tecnicista, que buscava reordenar o processo educativo, tornando-o “objetivo e operacional”.

O autor explica que essa pedagogia se inspira no pressuposto de neutralidade científica, na


racionalidade, eficiência e produtividade. Dessa forma, o aluno participa de um processo
objetivo e automatizado tal como o operador de uma fábrica que aprende o ofício referente ao
posto ocupado por ele na linha de montagem. Assim, para planejar a educação de maneira
racional, era necessário “operacionalizar os objetivos e, pelo menos em certos aspectos,
mecanizar o processo”.

Daí a proliferação de propostas pedagógicas tais como o enfoque sistêmico, o


microensino, o telensino, a instrução programada, as máquinas de ensinar etc. Daí
também o parcelamento do trabalho pedagógico com a especialização de funções,
postulando-se a introdução no sistema de ensino de técnicos dos mais diferentes
matizes. Daí, enfim, a padronização do sistema de ensino a partir de esquemas de
planejamento previamente formulados aos quais devem se ajustar as diferentes
modalidades de disciplinas e práticas pedagógicas (SAVIANI, 2018, p. 11).

Sob a desculpa de organizar o processo a fim de garantir eficiência, na pedagogia tecnicista o


professor e o aluno ocupam lugar secundário, de modo que o próprio processo define o que
alunos e professores deverão fazer, o momento e a metodologia. Nesse contexto, marginalizado
é o aluno ineficiente e improdutivo. Nesse sentido, formando cidadãos produtivos, a pedagogia
tecnicista cumpriria sua função de equalização social e contribuiria para o aumento da
produtividade (SAVIANI, 2018, p. 11).
95

Saviani (2018, p. 12) destaca que “se para a pedagogia tradicional a questão central é aprender
e para a pedagogia nova, aprender a aprender, para a pedagogia tecnicista o que importa é
aprender a fazer”, este lema diz respeito ao pensamento da escola como instrumento para que
os indivíduos aprendam suas funções no trabalho.

A pedagogia tecnicista fracassou, como era de se esperar, com um esvaziamento de conteúdo


mais profundo ainda, com um processo crescente de burocratização, de modo que o controle do
ato pedagógico passou a ser feito por meio de formulários. Dessa forma, ao tentar reproduzir
na escola o modelo fabril, a pedagogia tecnicista “perdeu de vista a especificidade da educação,
ignorando que a articulação entre escola e processo produtivo se dá de modo indireto e por meio
de complexas mediações” (SAVIANI, 2018, p. 12).

2.5.2 Teorias crítico-reprodutivistas e sua falta de perspectiva

Saviani (2018, p. 13) afirma que as teorias não críticas são assim denominadas em função do
desconhecimento das determinações sociais do fenômeno educativo; já as teorias críticas
enfatizam que não há possibilidade de entender a educação se não for a partir de seus
condicionantes sociais. O que diferencia as teorias críticas (como a pedagogia histórico-crítica)
das teorias crítico-reprodutivistas é que estas últimas chegam à conclusão de que a função da
escola é tão-somente reproduzir a sociedade na qual estão inseridas.

Uma vez que as teorias crítico-reprodutivistas não possuem proposta pedagógica (uma teoria
da atividade de ensino), visando apenas “explicar o mecanismo de funcionamento da escola tal
como está constituída” (SAVIANI, 2018, p. 13), nosso esforço será apenas em resumi-las
brevemente para termos um parâmetro do que foi elencado por Saviani (2018), uma vez que
elas não interferem diretamente na escola. Todavia, cabe pensarmos no funcionamento do
sistema conforme essas teorias expuseram e irmos adiante, não somente acreditarmos na
mudança, mas lutarmos por ela.

Dentre as teorias crítico-reprodutivistas que mais tiveram repercussão e nível de elaboração,


Saviani (2018) destacou a “teoria do sistema de ensino como violência simbólica”, a “teoria da
escola como aparelho ideológico do Estado” e a “teoria da escola dualista”.
96

2.5.2.1 Teoria do sistema de ensino como violência simbólica

A teoria do sistema de ensino como violência simbólica foi desenvolvida na obra A reprodução:
elementos para uma teoria do sistema de ensino (1975), de Bourdieu e Passeron. Nessa teoria,
defende-se que o sistema de ensino é definido como uma modalidade própria de violência
simbólica. Segundo Saviani (2018, p. 15), a base desse pensamento está no fato de que os
autores partem do princípio de que toda sociedade se estrutura “como um sistema de relações
de força material entre grupos ou classes. Sobre a base da força material e sob sua determinação,
erige-se um sistema de relações de força simbólica cujo papel é reforçar, por dissimulação, as
relações de força material”.

A violência simbólica acontece na escola a partir do momento em que ela presta serviço à
reprodução cultural das desigualdades sociais, reforçando-as. As pessoas marginalizadas, de
acordo com tal teoria, são as que vivem sob domínio de outras classes, “marginalizados
socialmente porque não possuem força material (capital econômico) e marginalizados
culturalmente porque não possuem força simbólica (capital cultural)” (SAVIANI, 2018, p. 17).

Dessa forma, segundo o autor, os defensores dessa teoria consideram que o domínio exercido
pela classe dominante anula qualquer possibilidade de reação da classe dominada, é, portanto,
impossível – para esses pensadores – a luta de classes.

2.5.2.2 Teoria da escola como aparelho ideológico de Estado

Ancorado na teoria de Althusser sobre os aparelhos ideológicos de Estado, Saviani (2018, p.


18) explica que o conceito deriva da tese que defende uma existência material para a ideologia,
portanto, ela se materializa nesses aparelhos. A escola, como aparelho ideológico dominante é
o instrumento que melhor reproduz as relações da produção capitalistas, de modo que apenas
uma pequena parte dos indivíduos escolarizados vai alcançar sucesso dentro da sociedade, a
maioria é apenas preparada para o trabalho.

Nesse contexto, segundo o autor, os marginalizados são os próprios trabalhadores, uma vez que
o aparelho ideológico de Estado escolar se constitui em um mecanismo construído pela
sociedade burguesa para perpetuar seus interesses, não abrindo margem para a equalização
social.
97

Saviani (2018, p. 20) afirma que Althusser “não nega a luta de classes” e, diferentemente de
Bourdieu e Passeron, considera que a escola pode ser um local para tal luta. Todavia, ao
descrever o funcionamento do aparelho, a luta de classes fica apagada, resultando “nesse caso
heroica, mas inglória, já que sem nenhuma chance de êxito”.

2.5.2.3 Teoria da escola dualista

A teoria fundamentada por Baudelot e Establet é chamada por Saviani (2018) de dualista, uma
vez que considera a escola dividida em duas: de um lado, a burguesia, do outro, o proletariado,
sujeitos, entretanto, à mesma ideologia dominante imposta sob formas não compatíveis.

Para essa teoria, a escola reproduz as relações de produção, dessa forma, todas as práticas desse
meio são de “inculcação da ideologia burguesa” que, por sua vez, se dá de duas formas: “em
primeiro lugar, a inculcação explícita da ideologia burguesa; em segundo lugar, o recalcamento,
a sujeição e o disfarce da ideologia proletária” (SAVIANI, 2018, p. 22).

O autor considera que a teoria dualista admite a existência de uma ideologia proletária, mas
chama atenção para o fato de que esta tem origem fora do ambiente escolar, sendo, portanto, a
escola um aparelho do sistema capitalista que trabalha em defesa de seus próprios interesses.
Assim, “a escola tem por missão impedir o desenvolvimento da ideologia do proletariado e a
luta revolucionária. Para isso ela é organizada pela burguesia como um aparelho separado da
produção” (SAVIANI, 2018, p. 23). Dessa forma, a escola “qualifica o trabalho intelectual e
desqualifica o trabalho manual, sujeitando o proletariado à ideologia burguesa”:

[...] a escola, longe de ser um instrumento de equalização social, é duplamente um


fator de marginalização: converte os trabalhadores em marginais, não apenas por
referência à cultura burguesa, mas também em relação ao próprio movimento do
proletário, buscando arrancar do seio desse movimento (colocar à margem dele) todos
aqueles que ingressam no sistema de ensino (SAVIANI, 2018, p. 23).

O autor conclui que, para essa teoria, a escola não pode se converter em um instrumento de luta
da classe trabalhadora. “Uma vez que a ideologia proletária adquire sua forma acabada no seio
das massas e organizações operárias, não se cogita utilizar a escola como meio de elaborar e
difundir a referida ideologia” (SAVIANI, 2018, p. 23).
98

2.5.3 Pedagogia histórico-crítica: uma proposta de superação

Conforme vimos, as teorias não críticas foram elaboradas com propostas pedagógicas que
tinham como objetivo central defender os interesses da burguesia. Dessa forma, se, por um lado,
elas não deram conta de resolver a questão da marginalidade, por outro lado, elas cumpriram
seu papel implícito de manter a ordem vigente, fazendo com que a classe trabalhadora pensasse
que uma das principais causas do fracasso escolar seria culpa dos próprios alunos, de suas
dificuldades de aprendizagem, nunca de suas condições sociais e ainda que a escola seria
responsável por resolver as questões sociais. Ainda hoje vemos raízes dessas correntes
pedagógicas no ambiente escolar brasileiro. Com relação às teorias crítico-reprodutivistas,
vimos que elas cumprem sua função crítica, mas não apresentam proposta de superação, sendo,
portanto, pessimistas com relação à possibilidade de futuro para a classe trabalhadora.

Em ambos os casos, segundo Saviani (2018, p. 24), “a história é sacrificada”, uma vez que
enquanto as teorias críticas pretendem sob uma suposta ilusão resolver o problema da
marginalidade, as teorias não críticas explicam a razão do fracasso.

A fim de levar educadores a encararem a escola como uma realidade histórica e passível de
transformação, Saviani elabora uma teoria da educação que supera as correntes aqui
mencionadas. A pedagogia histórico-crítica é formulada sob o ponto de vista de interesses dos
dominados, assim, a ela

[...] impõe-se a tarefa de superar tanto o poder ilusório (que caracteriza as teorias não
críticas) como a impotência (decorrente das teorias crítico-reprodutivistas), colocando
nas mãos dos educadores uma arma de luta capaz de permitir-lhes o exercício de um
poder real, ainda que limitado (SAVIANI, 2018, p. 25).

A arma de luta à qual o autor se refere é a garantia do acesso ao saber elaborado para os filhos
da classe trabalhadora. Para isso, Saviani descreve os cinco passos (ou momentos) da pedagogia
proposta por ele, ressaltando que eles não acontecem necessariamente em uma sequência
cronológica, mas têm como ponto de partida a prática social, e como ponto de chegada a prática
social. Dessa forma, a pedagogia histórico-crítica, de acordo com Saviani (2005, p. 1) parte de
uma prática onde professor e aluno se encontram inseridos, mas em posições distintas, este com
uma visão desorganizada do todo (sincrética) e aquele com uma visão mais elaborada
(sintética), embora como síntese primária. Todavia, essa condição desigual no ponto de partida
é necessária para que juntos encaminhem a solução dos problemas postos pela prática social
global, tendo o método momentos intermediários: problematização (identificação das questões
99

a serem trabalhadas), instrumentalização (instrumentos teóricos e práticos para a solução do


problema) e catarse (quando o conhecimento se incorpora como segunda natureza do aluno).

Defendemos a concepção de conhecimento que subsidia o conceito de clássico na pedagogia


histórico-crítica e se constitui a partir da apreensão da realidade por processos abstratos que
permitem – cada vez mais abrangentemente – o entendimento do real. Para Saviani, são dois os
momentos do movimento global do conhecimento:

[...] Parte-se do empírico, isto é, do objeto como se apresenta à observação imediata,


tal como é figurado na intuição. Nesse momento inicial, o objeto é captado numa visão
sincrética, caótica, isto é, não se tem clareza do modo como ele está constituído.
Aparece, pois, sob a forma de um todo confuso, portanto, como um problema que
precisa ser resolvido. Partindo dessa representação primeira do objeto, chega-se por
meio da análise aos conceitos, às abstrações, às determinações mais simples. Uma vez
atingido esse ponto, faz-se necessário percorrer o caminho inverso (segundo
momento) chegando, pela via da síntese, de novo ao objeto, agora entendido não mais
como “representação caótica de um todo”, mas como “uma rica totalidade de
determinações e relações numerosas”. (SAVIANI, 2012, p. 61, 62).

Sobre os cinco passos da pedagogia histórico-crítica, Martins (2015) considera que os


momentos elencados por Saviani ultrapassam a didática, não havendo necessariamente
correspondência linear entre eles, por isso, os mesmos não devem ser sintetizados em
sequências didáticas ou procedimentos de ensino, sob o risco de se fazer uma leitura
reducionista do método proposto pela pedagogia histórico-crítica.

Ao apresentar os passos, Martins (2015, p. 289), com base no pensamento de Saviani, elucida
que estão articulados em uma dinâmica entre aprendizagem e ensino. Sendo o primeiro passo
correspondente à prática social como ponto de partida do trabalho pedagógico, a autora fala da
importância em se reconhecer que a compreensão do professor em relação a essa prática é uma
espécie de síntese precária, enquanto a do aluno é uma visão sincrética. Isso porque o docente
já guarda uma compreensão de conceitos, de conhecimentos, mas ainda não tem uma visão da
parcela de realidade que disporá junto a seus alunos. A autora considera que quanto maior a
fragilidade da formação docente, maior será “o embotamento da síntese a favor da
precariedade”, em outras palavras, se o professor não tem uma compreensão acerca de sua
própria realidade, o processo não terá êxito. Quanto ao aluno, ele ainda “não dispõe de
elementos que lhe possibilitem a identificação das articulações entre sua escolarização e a
decodificação do real”. O que está em jogo nesse passo é a natureza histórico-social da
educação, “[s]eu cunho é filosófico e não procedimental, isto é, o que está em questão, a rigor,
é o trabalho pedagógico como uma das formas de expressão da prática social [...]”. Assim:
100

[...] não entendemos que o ponto de partida seja representado por algum “problema”
que se desprenda da realidade circundante e imediata e se coloque como conteúdo
escolar, muito menos por aquilo que os alunos já sabem – seus conhecimentos
experienciais – e que coabitam seu nível de desenvolvimento real. Pensamos que, em
tela, está a necessidade de se reconhecer tanto o professor quanto o aluno em sua
concretude, isto é, como sínteses de múltiplas determinações, e a prática pedagógica
como um tipo de relação que pressupõe o homem unido a outro homem, em um
processo mediado pelas apropriações e objetivações que lhes são disponibilizadas
(MARTINS, 2015, p. 290).

A autora fecha assim suas considerações sobre o primeiro passo da pedagogia histórico-crítica,
afirmando que aluno e professor devem ser reconhecidos como sínteses de múltiplas
determinações inseridos em uma mesma realidade social. Professor na condição de quem ensina
e aluno na condição de quem aprende.

Sobre o segundo passo – problematização – Martins (2015, p. 201) identifica os problemas não
como situações desconexas da realidade, mas aqueles impostos à própria prática educativa, ao
trabalho docente, tendo em vista o encaminhamento de soluções. Para a autora, o problema que
se impõe à educação escolar é o ensino que promova o desenvolvimento do sujeito.

[...] Portanto, em nosso entendimento, o segundo momento aponta na direção das


condições requeridas ao trabalho pedagógico, à prática social docente. Aspectos
infraestruturais, salariais, domínios teórico-técnicos, estrutura organizativa da escola
e, sobretudo, a qualidade da formação docente são algumas questões a serem
problematizadas. Da mesma forma deve se impor à problematização as razões das
conquistas e também dos fracassos que permeiam a aprendizagem dos alunos – dado
umbilicalmente relacionado à qualidade do ensino, quiçá o verdadeiro e maior
problema enfrentado pela educação escolar – especialmente, a pública (MARTINS,
2015, p. 201, grifo da autora).

Acreditamos, assim como Martins, que as condições em que a educação ocorre, a qualidade de
formação docente, o tempo disponível para planejamento, as condições objetivas de existência
do docente e dos alunos estão estritamente ligados à questão da aprendizagem escolar, sendo,
portanto, o maior problema enfrentado nas escolas – em especial na educação pública, onde as
diferenças sociais são mais patentes.

Sobre o terceiro momento – instrumentalização – a autora elucida que o mesmo se refere “à


apropriação dos instrumentos teóricos e práticos requeridos aos encaminhamentos dos
problemas identificados”, assim, deve-se pensar nas apropriações de que o professor dispõe
para objetivar no ensino, “objetivos, seleção de conteúdos e procedimentos”, trata-se também
das apropriações a serem realizadas pelos discentes, “do acervo cultural indispensável à sua
formação escolar, as quais lhes permitam superar a ‘síncrese’ em direção à ‘síntese’”
(MARTINS, 2015, p. 201, 202).
101

A instrumentalização requer domínio de conteúdo a ser ensinado, não somente do conteúdo em


si, mas de seu complexo envolvimento com a realidade que nos cerca, com a construção
histórico e social objetivada nos conhecimentos. Assim, quando um docente vai para a sala de
aula ensinar a seus alunos sobre Vidas Secas, por exemplo, não basta ler fragmentos isolados
do texto, falando de aspectos semânticos desconexos da totalidade. É necessário ter
conhecimento de quem foi Graciliano Ramos, de suas lutas, do contexto histórico e social de
construção da própria obra, ter uma visão dos personagens retratados e sua relação com a
realidade, entender a obra como um todo representativo do real. Para isso, o docente precisa
minimamente ter lido a obra na íntegra, assimilado interpretações, feito a leitura de críticas
sobre a obra, sobre o autor, ter uma bagagem cultural sobre o que irá ensinar. Sabemos, todavia,
que nas condições objetivas de existência em que muitos professores precisam trabalhar em três
turnos para sustentar suas famílias sem direito digno a descanso e sem tempo suficiente para
planejamento, em meio a tantas exigências impostas pela sociedade do capital para manter
elevados índices educacionais que obnubilam a realidade, tal domínio permanece – muitas
vezes – precário.

O quarto passo – catarse – é analisado por Martins (2015, p. 202) como aquele correspondente
aos resultados que possibilitam a afirmação de que a aprendizagem aconteceu de fato; “produz,
como diria Vygotski, “rearranjos” dos processos psíquicos na base dos quais se instituem os
comportamentos complexos, culturalmente formados”. A autora afirma que essa etapa se trata
da “efetivação da intencionalidade educativa condensada na conquista por parte de cada aluno
singular ‘da humanidade produzida pelo conjunto de homens’, isto é, pela prática social [...]”
(MARTINS, 2015, p. 202). A educação visa, dessa forma, a formação de pessoas capazes de,
por intermédio de suas ações planejadas, transformar a realidade social.

Em função da complexidade das etapas instituídas pela pedagogia histórico-crítica, Martins


(2015, p. 204, 205) faz algumas considerações que sistematizaremos a seguir: a) o percurso de
ensino precisa pautar-se em conceitos, sempre atendendo ao princípio do abstrato ao concreto,
visando superar a síncrese do aluno; b) a aprendizagem tem como referência básica o processo
de apropriação dos conteúdos, já o ensino tem como processo de objetivação as apropriações já
realizadas pelo docente, que precisa já ter superado o pensamento sincrético e os
pseudoconceitos sobre o que ensina; c) quando a instrumentalização segue os pré-requisitos
teóricos e metodológicos para o ensino, transforma-se a prática social do ponto de chegada, de
modo que ela se torna superior à do ponto de partida; d) a catarse ocorrerá justamente quando
o processo educacional – em que o docente transmite ao aluno as objetivações por ele
102

conquistadas – tem êxito, provocando transformações no psiquismo dos alunos; e) o ensino


assim realizado contribuirá para a superação das representações primárias de objetos e
fenômenos em direção à representação conceitual, possibilitando ao aluno pensar para além das
aparências.

Vale ressaltar que, segundo Martins (2015, p. 207), a proposta de que a educação escolar seja
firmada nos conhecimentos clássicos não reproduz a afirmativa da escola tradicional sob a qual
a proposta educacional era meramente conteudista, centrada na transmissão do conteúdo em si
e por si. “A tríade forma-conteúdo-destinatário se impõe como exigência primeira no
planejamento de ensino. Como tal, nenhum desses elementos, esvaziados das conexões que os
vinculam podem, de fato, orientar o trabalho pedagógico” (MARTINS, 2015, p. 207). Ademais,
o aluno precisa ser entendido como um indivíduo que “sintetiza, a cada período da vida, a
história das apropriações que lhes foram legadas” (MARTINS, 2015, p. 207), tendo condições
de se desenvolver plenamente enquanto indivíduos que vislumbram a realidade para além das
aparências.

Por isso, defendemos a transmissão dos conhecimentos científicos elaborados pelo conjunto de
homens ao longo da história da humanidade, segundo os pressupostos da pedagogia histórico-
crítica, visando o desenvolvimento omnilateral do ser, o “desenvolvimento multilateral (...) que
incide sobre a área de desenvolvimento iminente fazendo surgir ‘algo novo’, aqui identificado
com os comportamentos complexos culturalmente formados”, com o que se denomina
“processos funcionais superiores”, a fim de que o homem seja sujeito de sua própria história
(MARTINS, 2015, p. 298).

É na pedagogia histórico-crítica, portanto, que esta pesquisa se ancora, considerada como


revolucionária por seu idealizador, centra-se na igualdade entre os homens em termos reais.
Preocupa-se em transmitir à classe trabalhadora – na educação escolar - os conteúdos clássicos
construídos pelos homens no decorrer da história, considerando ser essa uma das tarefas
principais da escola (SAVIANI, 2018, p. 25).

Ressaltamos que nosso trabalho aqui tratará especificamente do ensino de Literatura, mais
precisamente reiteramos que nosso objetivo principal é identificar quais são os princípios que
devem nortear a seleção de leituras literárias a serem realizadas na educação básica de nível
médio, a partir das aulas da disciplina escolar de Língua Portuguesa, visando ao máximo
desenvolvimento dos estudantes, no contexto contemporâneo.
103

Dessa forma, se, por um lado, as pedagogias não críticas têm lastreado as propostas para a
elaboração de repertórios de leitura, informando que os critérios para a seleção devem estar
baseados no gosto pessoal do aluno; por outro lado, as pedagogias crítico-reprodutivistas
afirmam que toda Literatura é alienadora, que dissemina a ideologia burguesa, uma vez que é
majoritariamente produzida pela classe dominante. A pedagogia histórico-crítica com a qual
estamos trabalhando, por sua vez, vê nas obras clássicas um potencial para o desenvolvimento
do sujeito na medida em que permite que ele se desloque de sua experiência imediata e se
reporte a outras realidades. Passaremos às questões relacionadas ao currículo, ao pensamento
do adolescente e ao conceito de clássico no próximo capítulo.
104

3. CONHECIMENTO, CURRÍCULO E POLÍTICAS EDUCACIONAIS

No segundo capítulo, destacamos pesquisas que, de algum modo, dialogam com a nossa, a partir
de uma busca minuciosa no Catálogo de Teses e Dissertações da Capes e no Repositório da
Ufes, em especial no Programa de Pós-Graduação em Educação. Foi necessário um esforço
para compreendermos a natureza da educação enquanto trabalho que produz no homem sua
própria humanidade; pudemos, assim, compreender que a educação surgiu a partir da
necessidade do homem de desenvolver-se.

Entretanto, com o surgimento e consolidação da burguesia e sua consequente transformação de


classe revolucionária a classe reacionária, a educação se molda para atender aos interesses da
classe dominante. Para refletir sobre essa questão, além de recorrermos à própria história,
abordamos as teorias não críticas e crítico-reprodutivistas da educação, conforme estudos de
Saviani (2018), para chegarmos à nossa defesa da educação escolar com base na pedagogia
histórico-crítica, considerando a importância da apropriação do saber elaborado e sistematizado
para a classe que vive do trabalho, a fim de que os seres humanos possam iniciar um processo
de transformação da própria sociedade e de si mesmos. No campo da Literatura, defendemos
veementemente a importância do professor na socialização de textos clássicos que
potencialmente poderiam promover no aluno ao menos algum desconforto quando postos frente
à realidade e, portanto, auxiliar no processo de sua formação com vistas à omnilateralidade,
uma vez que dominar o que os dominantes dominam é condição de transformação e libertação.

Neste capítulo relacionaremos conhecimento, currículo e políticas educacionais a partir de


autores vinculados à teoria pedagógica histórico-crítica (SAVIANI, 2020; MALANCHEN,
2016; MALANCHEN, MATOS, ORSO, 2020). Para isso, contextualizaremos a ideologia pós-
moderna e o pensamento multiculturalista presentes nos currículos contemporâneos,
discutiremos sobre as pedagogias do “aprender a aprender”, em especial sobre a pedagogia das
competências. Chegaremos, por fim, à contextualização de currículo para a pedagogia
histórico-crítica, discutiremos os saberes integrantes do processo educativo e a forma como
entendemos que se dá a aquisição do conhecimento, apresentando uma proposta de um currículo
segundo a pedagogia histórico-crítica, baseado na transmissão do saber elaborado produzido
coletivamente ao longo da história da humanidade.
105

3.1 CONHECIMENTO, CURRÍCULO E POLÍTICAS EDUCACIONAIS

Em sua pesquisa de doutorado, Malanchen (2016, p. 1) teve como objeto de análise as relações
que “sustentam a tríade currículo, cultura e conhecimento”. No livro intitulado Cultura,
conhecimento e currículo, a autora apresenta o esforço de sua tese voltada para a elaboração e
implementação do currículo na rede pública de Cascavel, no Paraná. Tendo como referência o
materialismo histórico e dialético, a pedagogia histórico-crítica e a psicologia histórico-cultural,
a autora afirma que uma das principais dificuldades encontradas ao longo das discussões foi a
falta de referências bibliográficas para a definição da questão do currículo com base na
concepção adotada. Tais dificuldades se acentuaram, segundo a autora, em função das
orientações contidas nos documentos oficiais se voltarem para uma perspectiva
multiculturalista, diferente do referencial adotado.

O trabalho de Malanchen (2016) nos ajuda a avançar na compreensão das perspectivas inerentes
à manutenção do capitalismo que estão engendradas nos documentos que norteiam os currículos
nas escolas públicas. Para a autora, a adoção de perspectivas como o multiculturalismo, por
exemplo, faz com que os currículos sejam esvaziados de conhecimento, o que se reflete no
ambiente escolar.

A autora aponta para o fato de que, desde a década de 1990, ocorrem reformas nas políticas
curriculares da educação nacional que têm sido influenciadas pela perspectiva multiculturalista.
A necessidade de tais reformas surgiu a partir da adequação do país à reestruturação do sistema
produtivo capitalista mundial, o que fez com que a escola se ajustasse aos interesses do capital.
Nesse contexto, surgem os Parâmetros Curriculares Nacionais que adotam o construtivismo em
correlação com outras contribuições afins como teoria pedagógica nacional, e, após isso são
elaboradas diversas medidas governamentais que buscam reformular o currículo em todos os
níveis educacionais (MALANCHEN, 2016, p. 4). A partir daí, configura-se um cenário que vai
culminar no esvaziamento do conteúdo do currículo escolar e na defesa do multiculturalismo,
que tenta convencer grupos dominados de que alguns programas de inclusão, o respeito às
diferenças e diversidades, dentre outros poderão resolver os problemas da sociedade vigente.

O discurso da multiculturalidade situa-se, portanto, nesse processo de disseminação


de uma visão de mundo que, aparentemente, defende a inclusão social, a
democratização, o respeito à diversidade cultural, etc., mas que na realidade tem como
função principal a legitimação ideológica do capitalismo contemporâneo
(MALANCHEN, 2016, p. 5).
106

A autora chama atenção para o fato de que desde a década de 1990 o MEC já adota o discurso
de que a educação deve ser voltada aos grupos excluídos ou minoritários, tendo organizado,
inclusive, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, um seminário internacional
com estudiosos da área para refletir sobre a temática. Dessa forma, deu-se a impressão de ação,
legitimada por um envolvimento dos grupos minoritários.

Malanchen (2016, p. 6) afirma que embora o multiculturalismo seja hegemônico nos estudos
contemporâneos acerca do currículo, ele vem recebendo críticas de autores que não se
relacionam à perspectiva pós-moderna. A autora cita que vários estudiosos, dentre eles Duarte
(2000, 2004a, 2008), defendem que “o pós-modernismo caracteriza-se sobretudo por uma
atitude negativa, na medida em que contesta a razão, a ciência, o conhecimento objetivo, o
sujeito e a perspectiva da totalidade”. Em outras palavras, a ideologia pós-moderna esvaziaria
o currículo escolar de conteúdos que deveriam ser acessíveis aos alunos em formação e
hipervaloriza, por exemplo, o conhecimento de mundo do educando em detrimento do saber
elaborado; insere práticas que reforçam a alienação e conformismo diante de uma realidade que
não pode ser totalmente mudada, mas pode ser trabalhada na mente das pessoas (respeito ao
próximo, valores, valorização de culturas, etc.); faz – portanto – com que a escola trabalhe em
prol de manter a ordem vigente.

Fazem parte do discurso dos representantes dos organismos internacionais, de


governantes e intelectuais alinhados à ideologia dominante, questões como a
formação do indivíduo flexível, criativo, adaptável e empreendedor, formação para a
cidadania, o trabalho, a adaptação ao meio social imediato, bem como a formação para
a tolerância, a paz e o respeito à diversidade cultural e, como síntese de tudo, o
desenvolvimento do indivíduo da capacidade de aprender a aprender
(MALANCHEN, 2016, p. 12).

A autora aponta para o fato de que questões referentes à valorização da diversidade cultural e
pluralidade de ideias são frequentes em documentos elaborados na década de 1990. Malanchen
(2016, p. 12) destaca que entre esses, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) são
influenciadas pelo neoliberalismo, pós-modernismo e multiculturalismo, de modo que o próprio
documento apresenta explicitamente esse projeto de sociedade e educação:

Em nosso entendimento, as referências teóricas e concepções de sociedade dessas


DCN resultam em um relativismo cultural e epistemológico, que acabam também por
relativizar a função da escola e do professor. O resultado é o caos na formação de
professores e na formação ofertada pelos novos currículos. As consequências, para os
novos sujeitos, são uma formação que não permite a compreensão da realidade
objetiva para além das questões cotidianas imediatas e da superfície dos
acontecimentos (MALANCHEN, 2016, p. 12).
107

Em suas análises, a autora conclui que toda a discussão sobre o currículo e sobre a elaboração
das DCN foi guiada e direcionada pelo respeito à diversidade cultural e ao pluralismo de ideias.
Condena-se a ideia de que existam conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos cuja
riqueza em função de seu desenvolvimento, de sua universalidade e de sua historicidade
justifique o ensino a todos os educandos. Ainda de acordo com Malanchen (2016, p. 47):

A objetividade e a universalidade do conhecimento não são consideradas relevantes,


visto que se tornaram um desrespeito às culturas populares que devem ser
consideradas e valorizadas em um currículo escolar. Essa defesa está pautada em um
outro discurso: o da humanização do capitalismo por meio de atitudes que valorizem
a democracia política e cultural.

Assim como Malanchen (2016), não pretendemos desmerecer a luta legítima de movimentos
contra o preconceito, exclusão social e cultural, discriminação. Todavia, cumpre-nos ressaltar
que a perspectiva multiculturalista traz engendrado um discurso de que a escola dará conta de
resolver os problemas sociais, como se não houvesse um problema de desigualdade social e
exploração do ser humano por outros seres humanos que ultrapassa os muros da escola, fazendo
– em consequência – com que se legitime a forma vigente do modo de produção capitalista.

Não pretendemos aqui fazer um estudo profundo sobre o currículo, nosso objetivo é mostrar de
onde falamos, ou seja, a partir de um sistema educacional que serve à ideologia do capital por
meio de diversas políticas elaboradas justamente para legitimar as ações desse modelo de
sociedade, fortalecendo-o. Dessa forma, parece relevante para nós o entendimento das ações
neoliberais, pós-modernas e multiculturalistas sobre o campo educacional.

Difundido a partir da década de 1980 e implementado no Brasil nos anos 1990 com a reforma
do Estado, o neoliberalismo, de acordo com Malanchen (2016, p. 13-15), reordena as estruturas
dos Estados, permite a abertura de mercados, visando à superação da crise capitalista e
reconstituição da margem de lucro. As reformas neoliberais, portanto, buscaram traduzir as
demandas do capital, exigindo mudanças na economia impostas pela globalização e passam a
uma consequente exigência de que os trabalhadores se adaptem às necessidades do mercado,
demonstrando maior eficiência e produtividade. “Desse modo, a estratégia neoliberal é colocar
a educação como prioridade, apresentando-a como alternativa de ascensão social e de
democratização das oportunidades” (MALANCHEN, 2016, p. 15), o que entendemos como um
discurso vazio, uma vez que a escola não tem como carregar o peso de resolver injustiças sociais
advindas do próprio seio da sociedade.
108

Sobre o discurso pós-moderno, Malanchen (2016) afirma que o reflexo das reformas neoliberais
no campo do conhecimento se materializa no pós-modernismo, que serve para legitimar o
processo de globalização social. Esse discurso inserido nas teorias curriculares defende uma
teoria do conhecimento que se limita aos fenômenos do cotidiano, “aos aspectos circunstanciais
da realidade, levando a um entendimento de que esses acontecimentos não podem ser
assimilados pelo método racional e científico” (MALANCHEN, 2016, p. 18).

Para os intelectuais do pós-modernismo, segundo a autora, tudo advém da compreensão


subjetiva, baseia-se na experiência pessoal e nas interpretações da mesma. Dessa forma, alegam
que a realidade é “incognoscível”, ou seja, é o que cada ser pode perceber, dependendo do ponto
de vista. Malanchen (2016, p. 68) prossegue sua reflexão:

Desse modo, as concepções da realidade precisam ser niveladas, para que nenhuma
seja considerada mais verdadeira que a outra. Em algumas versões do pós-
modernismo postulam-se concepções do conhecimento um pouco menos
individualistas, o qual é considerado uma construção cultural compartilhada por um
grupo. Nesse caso, serão verdadeiras aquelas ideias que integram a cultura do grupo,
não cabendo qualquer juízo de valor externo a essa cultura. Assim, para o pós-
modernismo, os critérios para distinção do que é verdadeiro ou falso são sempre
relativos, sempre circunscritos à subjetividade individual ou do grupo/comunidade
(MALANCHEN, 2016, p. 68).

A ideologia pós-moderna foi, segundo a autora, rapidamente absorvida pelo campo educacional
agregando diversas teorias educacionais que se põem a serviço de superar aspectos
problemáticos “como a dominação cultural burguesa (etnocêntrica, colonizadora e
imperialista), o racismo, a questão de gênero, etnia, entre outros” (MALANCHEN, 2016, p.
71). Entre os principais pontos da chamada agenda pós-moderna está o multiculturalismo sobre
o qual já refletimos aqui que aparece, segundo a autora, com o objetivo de, por meio do
currículo, corrigir problemas que dizem respeito à desvalorização de movimentos sociais
legítimos (MALANCHEN, 2016, p. 71).

Segundo a autora, a articulação do pensamento pós-moderno ao multiculturalismo marca os


currículos da atualidade que embasam a educação nacional e podem ser claramente observados
os seguintes pontos:

a) considera-se impossível a superação do capitalismo [...];


b) abandona-se a luta unificada, pautando-se no entendimento de que a luta de classes
não é o motor da história;
c) critica-se qualquer pretensão ao conhecimento objetivo e nega-se que existam
saberes com maior nível de desenvolvimento, transformando tudo em uma questão de
reconhecimento do saber cotidiano de cada grupo [...];
d) a ciência é vista apenas como uma maneira pela qual um grupo social, o de
cientistas, busca dar significado a fenômenos naturais ou sociais [...];
109

e) celebram-se as diferenças, o local e o indivíduo recluso à sua subjetividade,


negando-se a possibilidade de compreensão da realidade como um todo estruturado e
dos processos essenciais à dinâmica que movimenta esse todo;
f) assim como o conhecimento sistematizado nos livros é posto sob suspeita, a escola
também o é, já que o saber relevante para a vida seria construído diretamente na
vivência cotidiana e nas lutas sociais;
g) a cultura oral é considerada mais rica e significativa que a escrita;
h) a cultura parece ser entendida mais como uma questão de reconhecimento das
diferenças entre “nós” e “os outros”;
i) afirma-se que a linguagem da escola é colonizada, etnocêntrica, discriminadora e
precisa ser descolonizada;
j) nega-se o ideal de formação do sujeito racional e consciente;
k) o ideal de transformação social é substituído pelo de inclusão social, que ocorreria
pela valorização da cultura de cada grupo.
(MALANCHEN, 2016, p. 80-81)

Com os pontos elencados pela autora, podemos perceber que a articulação do pensamento pós-
moderno está não somente nos documentos oficiais, mas no discurso de professores,
funcionários das secretarias de educação, políticos que têm uma pretensão crítica – pois, na
realidade coetânea, existem, paralelamente, grupos radicais de direita que defendem a
intolerância, o preconceito, o racismo, o machismo, o capacitismo, etc. Ao contrário de transpor
segregações e preconceitos, o discurso ao qual Malanchen (2016) dirige suas críticas reverbera
a manutenção da ordem social vigente por meio do conformismo de que a sociedade vai
continuar como está e que o melhor a fazer é nos adaptarmos a ela com ações individuais de
respeito e boa convivência. Nesse sentido, como não oferta saberes elaborados, tampouco
desvenda a gênese dos problemas (ficando na aparência dos fenômenos), tal perspectiva
legitima a a negação do acesso ao conhecimento que extrapola o cotidiano às classes menos
favorecidas, por meio da desvalorização da escola e do trabalho docente, como se a produção,
apropriação e objetivação do conhecimento fosse excludente. Defendemos, todavia, juntamente
com Malanchen (2016), Saviani (2012, 2020) e Duarte (2010) que o acesso ao conhecimento
científico, artístico e filosófico produzido ao longo da história pelo conjunto dos seres humanos
não pode ser negado ao aluno, em uma perspectiva de superação do estado atual de coisas.

3.1.1 Pedagogias do aprender a aprender

Seguindo a linha de raciocínio da ideologia pós-moderna, surgem o que Duarte (2010)


denomina de “pedagogias do aprender a aprender”, dentre estas, o autor destaca o
“construtivismo”, a “pedagogia do professor reflexivo”, a “pedagogia das competências”, a
“pedagogia dos projetos” e a “multiculturalista” (DUARTE, 2010, p. 33).

Todas as pedagogias relacionadas pelo autor apresentam – a despeito de suas características


próprias – uma mesma ideia: a negação da educação tradicional, ou seja, não admitem as formas
110

clássicas de educação, o que, segundo o autor, remonta ao início do século passado, ao


movimento Escolanovista. Todavia, embora tais pedagogias se filiem a um movimento do
século XIX, elas não são vistas como anacrônicas, uma vez que suas ideias assumem novos
sentidos de acordo com a ideologia pós-moderna (DUARTE, 2010, p. 34).

Duarte (2010) destaca algumas ideias comuns às pedagogias da atualidade, sendo a primeira
delas a ausência de perspectiva de superação do capitalismo. Em segundo lugar, o autor aborda
a negação da perspectiva da totalidade; nesse movimento de negação, o que ocorre é a:

afirmação do princípio de que a realidade humana seria constituída de fragmentos que


se unem não por relações determinadas pela essência da totalidade social, mas sim por
acontecimentos casuais, fortuitos e inacessíveis ao conhecimento racional. Segundo
essa perspectiva, seriam os acasos da vida de cada sujeito que determinariam o que é
ou não relevante para sua formação (DUARTE, 2010, p. 35).

O autor afirma que da negação da totalidade decorre o relativismo epistemológico (que nega a
universalidade e a objetividade do conhecimento) e o relativismo cultural (que apregoa que –
em função da diversidade de culturas – nenhum conhecimento poderia ser considerado certo ou
errado) (DUARTE, 2010, p. 35, 36).

Outra ideia propagada pelas pedagogias da atualidade, segundo Duarte (2010), é a de que a
referência central para as atividades escolares deve ser o cotidiano do aluno, afirmando que os
“conteúdos significativos” são os que têm utilidade prática no cotidiano do educando. O autor
afirma que a valorização dos conhecimentos do cotidiano conduz à valorização do
conhecimento “tácito” (“pessoal, não verbalizado e circunstancial”). Disso advém um grande
problema da atualidade: a desvalorização do professor.

Se o conhecimento mais valorizado na escola passa a ser o conhecimento tácito,


cotidiano, pessoal, então o trabalho do professor deixa de ser o de transmitir os
conhecimentos mais desenvolvidos e ricos que a humanidade venha construindo ao
longo de sua história. O professor deixa de ser um mediador entre o aluno e o
patrimônio intelectual mais elevado da humanidade, para ser um organizador de
atividades que promovam o que alguns chamam de negociação de significados
construídos no cotidiano dos alunos. Mesmo quando os projetos surgidos nas
atividades escolares demandem algum tipo de conhecimento proveniente do campo
da ciência, o que articula os conhecimentos é o objetivo de formação de habilidades e
competências requeridas pela prática cotidiana (DUARTE, 2010, p. 38).

Sobre a noção de competências, Ramos (2006) discute que na atualidade ela é vista como
ordenadora de relações educativas. A autora afirma que a ideia central quanto à questão das
competências é que elas dariam conta de promover a associação entre formação e emprego:

No plano pedagógico testemunha-se a organização e a legitimação da passagem de


um ensino centrado em saberes disciplinares a um ensino definido pela produção de
111

competências verificáveis em situações e tarefas específicas. Essas competências


devem ser definidas com referência às situações que os alunos deverão ser capazes de
compreender e dominar. Em síntese, em vez de se partir de um corpo de conteúdos
disciplinares existentes, com base no qual se efetuam escolhas para cobrir os
conhecimentos considerados mais importantes, parte-se de situações concretas,
recorrendo-se às disciplinas na medida das necessidades requeridas por essas
situações (RAMOS, 2006, p. 221).

A partir da reflexão de Ramos (2006), podemos perceber que a pedagogia das competências
presta serviço à manutenção da ordem vigente, uma vez que – segundo ela – os conhecimentos
devem ser adquiridos desde que tenham aplicabilidade prática, servem para que o indivíduo
tenha condições de se inserir no mercado de trabalho fazendo parte da engrenagem do sistema,
movimentando o capital. Saviani (2014) afirma que a pedagogia das competências se apresenta
como a outra face da pedagogia do aprender a aprender, que tem como objetivo:

[...] dotar os indivíduos de comportamentos flexíveis que lhes permitam ajustar-se às


condições de uma sociedade em que as próprias necessidades de sobrevivência não
estão garantidas. Sua satisfação deixou de ser um compromisso coletivo, ficando sob
a responsabilidade dos próprios sujeitos que, segundo a raiz etimológica dessa
palavra, se encontram subjugados à “mão invisível do mercado” (SAVIANI, 2014, p.
437).

Se as necessidades básicas dos indivíduos não são supridas na sociedade contemporânea, muito
menos serão supridas as necessidades secundárias. Discutimos aqui sobre educação, sobre
formação de leitores autônomos e críticos, sobre a propagação do conhecimento científico,
artístico e filosófico produzidos pelo conjunto de homens no decorrer da história e que têm uma
alta probabilidade de serem válvulas propulsoras da transformação desse indivíduo que se
mantém alienado e sem perspectiva de mudanças sobre as condições impostas pela sociedade,
mas que, compreendendo em sua essencialidade a realidade posta, pode organizar-se
coletivamente com os demais visando à superação da atual organização social.

3.1.2 Pedagogia das competências

Não vamos nos delongar na discussão das pedagogias do “aprender a aprender”, uma vez que
essa discussão não é o objetivo principal desta tese, mas parece necessário ressaltarmos algumas
características da “pedagogia das competências”, tão presente nos documentos oficiais da
atualidade.

Duarte (2001) apresenta a pedagogia das competências – hoje hegemônica nas orientações
curriculares nacionais – como uma das pedagogias do “aprender a aprender”. Para distinção
dessas correntes pedagógicas, o autor chama atenção para os posicionamentos contidos no lema
“aprender a aprender”:
112

1) é mais desejável a aprendizagem que ocorra sem a transmissão de conhecimentos


por alguém; 2) o método de construção do conhecimento é mais importante do que o
conhecimento já produzido socialmente; 3) a atividade do aluno deve ser
impulsionada pelos interesses e necessidades do indivíduo; 4) a educação deve
preparar os indivíduos para um constante processo de adaptação e readaptação à
sociedade em acelerado processo de mudança (DUARTE, 2001, p. 151).

O autor chama atenção para o fato de que vivemos hoje uma nova fase do capitalismo. O que
não significa, todavia, que a essência da sociedade tenha sofrido alteração, tampouco significa
que estejamos vivendo em uma sociedade nova, a dita “sociedade do conhecimento”. O autor
afirma ser a “sociedade do conhecimento [...] uma ideologia produzida pelo capitalismo, [...]
um fenômeno no campo da reprodução ideológica do capitalismo" (DUARTE, 2001, p. 39).
Tal ideologia nos dá a falsa impressão de que o conhecimento está sendo constantemente
propagado nos dias atuais, o que é, segundo o autor, um conjunto de ilusões:

Primeira ilusão: O conhecimento nunca esteve tão acessível como hoje, isto é,
vivemos numa sociedade na qual o acesso ao conhecimento foi amplamente
democratizado pelos meios de comunicação, pela informática, pela Internet etc.

Segunda ilusão: A capacidade para lidar de forma criativa com situações singulares
no cotidiano ou, como diria Perrenoud, a habilidade de mobilizar conhecimentos, é
muito mais importante que a aquisição de conhecimentos teóricos, especialmente nos
dias de hoje, quando já estariam superadas as teorias pautadas em metanarrativas, isto
é, estariam superadas as tentativas de elaboração de grandes sínteses teóricas sobre a
história, a sociedade e o ser humano.

Terceira ilusão: O conhecimento não é a apropriação da realidade pelo pensamento


mas, sim, uma construção subjetiva resultante de processos semióticos intersubjetivos
nos quais ocorre uma negociação de significados. O que confere validade ao
conhecimento são os contratos culturais, isto é, o conhecimento é uma convenção
cultural.

Quarta ilusão: Os conhecimentos têm todos o mesmo valor, não havendo entre eles
hierarquia quanto à sua qualidade ou quanto ao seu poder explicativo da realidade
natural e social.

Quinta ilusão: O apelo à consciência dos indivíduos, seja através das palavras, seja
através dos bons exemplos dados por outros indivíduos ou por comunidades, constitui
o caminho para a superação dos grandes problemas da humanidade. Essa ilusão
contém uma outra, qual seja, a de que esses grandes problemas existem como
consequência de determinadas mentalidades. (DUARTE, 2001, p. 39, 40).

As ilusões apontadas por Duarte têm reverberado continuamente nos discursos do ideário pós-
moderno, sendo amplamente aceitas por boa parte dos intelectuais da atualidade. O autor afirma
que as pedagogias do “aprender a aprender” se apoiam nessas ilusões cujo núcleo fundamental
se desvela em sua forma mais pura: “trata-se de um lema que sintetiza uma concepção
educacional voltada para a formação da capacidade adaptativa dos indivíduos” (DUARTE,
2001, p. 38).
113

Como já discutido anteriormente, as pedagogias do “aprender a aprender” correspondem às


pedagogias que se fundamentam a partir do esvaziamento do currículo escolar, retirando a
função da escola na transmissão do saber elaborado, valorizando excessivamente o
protagonismo do aluno em detrimento do papel do professor e do próprio conhecimento.

O esvaziamento escolar se reflete na constituição da Base Nacional Comum Curricular, na


definição de quais conteúdos, objetivos e finalidades estão presentes na educação, além de se
refletir em diversos outros documentos que norteiam a educação no Brasil, uma vez que o
esvaziamento do currículo gera como consequência a formação de indivíduos cuja
subjetividade não ultrapassa o nível das aparências.

Tal esvaziamento reflete os interesses da classe empresarial que tem – historicamente – atuado
para submeter a escola pública a concepções que visam a promoção do ensino com conteúdos
superficiais, inibindo a transmissão de um saber elaborado e historicamente sistematizado para
as camadas populares, sob alegação de que a classe trabalhadora necessitaria de conhecimentos
que satisfizessem suas necessidades imediatas.

Com efeito, a política educacional no Brasil tem reiterado a tendência de apropriação


privada das formas mais desenvolvidas dos conhecimentos científicos, filosóficos e
artísticos produzidos pela humanidade, o que se observa, inclusive, no âmbito das
reformas curriculares (MARSIGLIA et al., 2017, p. 112).

Marsiglia et al. (2017, p. 116) considera sobre a afirmativa de Duarte (2006), segundo a qual as
pedagogias que veem de modo negativo a transmissão do saber sistematizado por parte da
escola acabam por limitar esse conhecimento atrelando-o ao saber cotidiano, legitimando sua
superficialidade: “Essa concepção implica que, para os alunos, não cabe compreender a
realidade para fazer a crítica e se comprometer com sua transformação, mas sim para entender
melhor quais as ‘competências’ o mercado exige dos indivíduos”.

É o que afirma a BNCC em relação aos conteúdos escolares. De acordo com o


documento, os conteúdos devem estar a serviço das competências, cujo conceito é
sintetizado, conforme consta na LDB, enquanto “[...] a possibilidade de mobilizar e
operar o conhecimento em situações que requerem aplicá-lo para tomar decisões
pertinentes” (BRASIL, 2017, p. 3), e define o conhecimento como uma soma das
habilidades necessárias para aplicá-lo, mais a atitude para refletir e utilizar as
habilidades adequadamente. Isto é, trata-se de utilizar o conhecimento para encontrar
novas formas de ação que permitam melhorar adaptação desses indivíduos aos
interesses da classe empresarial (MARSIGLIA et al., 2017, p. 116).

Ao elegermos para a nossa pesquisa a pedagogia histórico-crítica como fundamento para o


ensino de Literatura em sala de aula, queremos romper com essa realidade já engessada nas
escolas, lutamos para que os filhos da classe trabalhadora tenham acesso ao saber elaborado, o
114

que lhes foi e ainda é negado ao longo dos tempos, a fim de que cada indivíduo tenha condições
de se humanizar no mais profundo sentido da palavra. Para isso, é necessário pensarmos na
possibilidade de construção de um currículo segundo os princípios da pedagogia histórico-
crítica.

3.2 CURRÍCULO E A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA

De acordo com Saviani (2020), o currículo é entendido pelo senso comum como a relação de
disciplinas ou de assuntos que compõem um curso ou uma matéria a ser estudada, coincidindo
com o termo “programa”. Todavia, o autor destaca que para estudiosos da área prevalece a
tendência de “considerar o currículo como sendo o conjunto das atividades (incluído o material
físico e humano a ele destinado) que se cumprem com vistas a determinado fim”. Este é,
segundo o autor, o conceito ampliado do currículo, pois envolve todos os elementos
relacionados à escola (SAVIANI, 2020, p. 7).

Em síntese, pode-se considerar que o currículo em ato de uma escola não é outra coisa
senão essa própria escola em pleno funcionamento, isto é, mobilizando todos os seus
recursos, materiais e humanos, na direção do objetivo que é a razão de ser de sua
existência: a educação das crianças e jovens. Poderíamos dizer que, assim como o
método procura responder à pergunta: “como se deve fazer para atingir determinado
objetivo”, o currículo procura responder à pergunta “o que se deve fazer para atingir
determinado objetivo”. Diz respeito, pois, ao conteúdo da educação e sua distribuição
no tempo e espaço que lhe são destinados (SAVIANI, 2020, p. 8).

A partir dessa definição ampla de currículo, pensando na escola em funcionamento, envolvendo


recursos materiais e humanos, o autor chega à conclusão de que o conteúdo fundamental da
escola deve se ligar à questão do saber elaborado e sistematizado, uma vez que o conhecimento
do cotidiano, da vida do aluno, aquele que nasce no seio familiar e social é adquirido
independentemente da escola, sendo esta necessária para a transmissão e apropriação do saber
sistematizado, ou seja, do conhecimento que não se adquire na vivência cotidiana, pelo senso
comum.

Considerando a definição ampla de currículo, Saviani (2020) destaca haver um avanço em


relação à noção que o considera como programa ou relação de disciplinas. Entretanto, tal
conceito ainda apresenta problemas. Se tudo o que acontece dentro da escola é considerado
currículo, tem-se um apagamento da diferença entre curricular e extracurricular e o secundário
pode tomar lugar do principal, relegando a segundo plano as atividades que constituem a razão
de a escola existir. Como exemplo, o autor destaca a presença de inúmeras datas comemorativas
que se estendem do início ao fim do ano, sempre com exigência de projetos e comemorações.
115

O ano letivo encerra-se e estamos diante da seguinte constatação: fez-se de tudo na


escola; encontrou-se tempo para toda espécie de comemoração, mas muito pouco
tempo foi destinado ao processo de transmissão-assimilação de conhecimentos
sistematizados.

[...] de semana em semana, de comemoração em comemoração, a verdade é que a


escola perdeu de vista sua atividade nuclear, que é a de propiciar aos alunos o ingresso
na cultura letrada assegurando-lhes a aquisição dos instrumentos de acesso ao saber
elaborado. Em suma, o currículo incorporou as mais diversas atividades, mas dedicou
pouco tempo para o estudo da língua vernácula, matemática, ciências da natureza,
ciências da sociedade, filosofia, artes (SAVIANI, 2020, p. 9).

Para resolver esse problema conceitual que leva – muitas vezes – a escola a colocar em segundo
plano o que deve ser primordial, ou seja, o ensino, o autor acrescentou um adjetivo à definição
proposta pelos estudiosos: “currículo é o conjunto das atividades nucleares desenvolvidas pela
escola” (SAVIANI, 2020, p. 9), deixando claro que as atividades comemorativas são
extracurriculares e devem acontecer apenas se há possibilidade de – a partir delas – enriquecer
as atividades curriculares, sem atrapalhar a função que é própria da escola.

Outra definição de currículo, também tendo a pedagogia histórico-crítica como base e o método
materialista histórico e dialético, é a de Malanchen (2016), que considera o currículo como o
“saber objetivo13 organizado e sequenciado de maneira a possibilitar seu ensino e sua
aprendizagem ao longo do processo de escolarização” (p. 166). Para a autora, o currículo não é
um agrupamento qualquer de conteúdos, mas se constitui a partir dos conhecimentos
organizados de forma sequencial que permita sua transmissão sistemática.

Malanchen (2016) traz uma definição ainda mais ampla:

Sintetizando a ideia de currículo para a pedagogia histórico-crítica, podemos afirmar


que ele é compreendido como a expressão da concepção do que é o mundo natural e
social; do que é o conhecimento desse mundo; do que é ensinar e aprender esse
conhecimento, bem como do que são as relações entre escola e sociedade
(MALANCHEN, 2016, p. 176).

O currículo, de acordo com a autora, tem por objetivo – na perspectiva da pedagogia histórico-
crítica – a apreensão da totalidade do conhecimento, sendo que a compreensão do todo se dá a
partir da análise das partes. Isso justifica a importância da seleção de conteúdos para o processo
de ensino-aprendizagem, uma vez que a partir deles os indivíduos terão condições de chegar “à
compreensão unitária, coerente e articulada da realidade” (MALANCHEN, 2016, p. 202). Por
isso também se justifica o objetivo desta tese que é o de elaborar, com base nos estudos da

13
Compreendemos saber objetivo – segundo Saviani – como a característica do conhecimento de traduzir com
fidelidade os processos da realidade externa à consciência humana. O saber objetivo, segundo Saviani (2013) nega
a neutralidade, assume uma postura de que não há saber desinteressado.
116

pedagogia histórico-crítica (sobre a função social da escola, sobre a organização do trabalho


pedagógico, sobre o papel do conhecimento objetivo e dos conteúdos clássicos na produção de
currículo escolar e sobre a atividade-guia ou dominante na adolescência), princípios gerais para
a seleção de leituras literárias a serem realizadas pelos estudantes de nível médio, a partir das
aulas da disciplina escolar de Língua Portuguesa, visando a seu máximo desenvolvimento no
contexto contemporâneo.

Utilizaremos nesta tese, contrariamente a todas as questões impostas pelas pedagogias do


“aprender a aprender”, a noção de que o currículo é o conjunto de atividades essenciais – ou
nucleares – desenvolvidas pela escola, que precisa ter como base o conhecimento científico,
artístico e filosófico produzido historicamente pelo conjunto de homens. Consideraremos a
escola como o meio pelo qual o conhecimento elaborado deve tornar-se acessível a todos.

Quanto à questão do saber, Saviani (2020) enfatiza que os conhecimentos desenvolvidos ao


longo da história não se transpõem de forma mecânica para dentro das escolas por meio do
currículo. A existência do saber elaborado não condiciona a existência da escola, mas esta –
como vimos defendendo – deve garantir a função que lhe é própria, assim, “é necessário
viabilizar as condições de (...) transmissão e assimilação” desse saber que deve ser dosado e
sequenciado (SAVIANI, 2020, p. 9).

Dessa forma, pela mediação da escola, passa-se do saber espontâneo ao saber sistematizado,
todavia, isso não significa que o conhecimento elaborado seja mais importante ou superior ao
conhecimento popular:

Trata-se, na verdade, de um movimento dialético, isto é, a ação escolar permite que


se acrescentem novas determinações que enriquecem as anteriores, e estas, de alguma
forma, são excluídas. Ao contrário, o saber espontâneo, baseado na experiência de
vida, a cultura popular, portanto, é a base que torna possível a elaboração do saber e,
em consequência, a cultura erudita. Isso significa que o acesso à cultura erudita
possibilita a apropriação de novas formas pelas quais se podem expressar os próprios
conteúdos do saber popular. Mantém-se, portanto, a primazia da cultura popular da
qual deriva a cultura erudita, que se manifesta como uma nova determinação que a ela
se acrescenta. Nessa condição, a restrição do acesso à cultura erudita conferirá,
àqueles que dela se apropriam, uma situação de privilégio, uma vez que o aspecto
popular não lhes é estranho. A recíproca, porém, não é verdadeira: os membros da
população marginalizados da cultura letrada tenderão a encará-la como uma potência
estranha que os desarma e domina (SAVIANI, 2020, p. 10).

Sendo a cultura popular necessária para a elaboração do saber e consequentemente da cultura


erudita, não defendemos que aquela não seja importante, devemos compreender, todavia, a
importância da apreensão do saber elaborado que permite ao sujeito a apropriação de novas
formas de se expressar os conteúdos do saber cotidiano. Como afirma o autor, os que se
117

apropriam da cultura erudita permanecem em posição de privilégio, já a população às margens


da cultura letrada verá a cultura erudita como algo que os aliena, desarma e domina.

A mentalidade de que o erudito é para as classes abastadas e o popular para as classes


marginalizadas precisa ser modificada, uma vez que o acesso, a compreensão, a internalização
do que o homem produziu de saber mais elaborado ao longo da história pode proporcionar o
desenvolvimento do sujeito e a consequente compreensão dos elementos de domínio/opressão
e de organização com vistas à liberdade, por isso, a escola democrática, para Saviani (2020),
deve ter o papel de “viabilizar a toda a população o acesso à cultura letrada” (SAVIANI, 2020,
p. 10).

Sobre a questão da cultura, cabe aqui um parêntese no sentido de que defendemos o conceito
segundo o qual a cultura se constitui a partir da ação produtiva do homem sobre a natureza. Em
outras palavras, cultura é tudo o que não é imediatamente natural, mas tem atividade humana
objetivada e desempenha determinada função em atividades humanas, sendo, portanto,
indissociável do processo de produção (MALANCHEN, 2016, p. 107). Tal reflexão se torna
necessária em função da miscelânea que é trazida pelo pós-modernismo acerca da definição de
cultura, confundindo representações de grupos sociais com tipos de cultura. Defendemos aqui
que a cultura acumulada é transmitida pelo processo educativo, sendo essencial para o processo
de formação integral do ser humano.

Retomando a questão dos currículos formativos, Saviani (2020) afirma que para que eles se
organizem, é necessário considerar que a educação enquanto trabalho não material se relaciona
a ideias, valores, conceitos, símbolos, atitudes, habilidades e hábitos que não têm fim em si
mesmos. Interessa que o homem assimile tais conhecimentos que se constituem em sua segunda
natureza, uma vez que “o que não é garantido pela natureza tem que ser produzido
historicamente pelos homens; e aí se incluem os próprios homens” (SAVIANI, 2020, p. 14).

Já discutimos nesta tese sobre a questão do trabalho, o que diferencia o homem dos animais,
uma vez que aquele é capaz de transformar a natureza de acordo com suas necessidades,
produzindo sua própria natureza humana. Para isso, o homem precisa antecipar em ideias seus
objetivos. Dessa forma, a origem da educação confunde-se com a origem do próprio ser humano
que precisa – a princípio – garantir meios para viver e cada vez mais tais processos educativos
se tornam mais complexos, de modo a satisfazer as necessidades novas criadas pelos seres
humanos em função da superação de estágios anteriores. Segundo Saviani (2020), a forma mais
118

distinta do desenvolvimento dos processos educativos se constitui com o surgimento das


escolas que passam a ser a “forma dominante de educação”:

Essa passagem da escola à forma dominante de educação coincide com a etapa


histórica em que as relações sociais passaram a prevalecer sobre as relações naturais
estabelecendo-se o primado do mundo da cultura (o mundo produzido pelo homem)
sobre o mundo da natureza. Em consequência, o saber metódico, sistemático,
científico, elaborado passa a predominar sobre o saber espontâneo, “natural”,
assistemático, resultando daí que a especificidade da educação passa a ser
determinada pela forma escolar. A etapa histórica em referência – que ainda não se
esgotou – corresponde ao surgimento e desenvolvimento da sociedade capitalista
cujas contradições vão colocando de forma cada vez mais intensa a necessidade de
sua superação (SAVIANI, 2020, p. 15).

A educação como trabalho imaterial do homem, ou seja, como produção do saber sobre o
conjunto da produção humana proporciona o desenvolvimento de sua própria humanidade,
segundo Saviani (2020), “para saber pensar e sentir, para saber querer, agir ou avaliar, é preciso
aprender, o que implica o trabalho educativo” (p. 14). Dessa maneira, defendemos em coro com
o autor que o saber que interessa à educação deve ser o conhecimento objetivo produzido
historicamente pelos homens. Compreendemos, de acordo com Malanchen (2016), que o acesso
ao saber objetivo “possibilita o combate ao preconceito ao desmitificar crenças e evidenciar a
superficialidade de alguns argumentos e atitudes em relação a alguns grupos sociais” (p. 95).

Reiteramos, todavia, que nossa defesa pela objetividade dos conteúdos escolares não implica
na desconsideração dos aspectos subjetivos da atividade própria ao ser humano e da atividade
educativa em geral. “O valor universal dos conhecimentos não está em conflito com o fato de
que são sempre produzidos em condições sociais específicas e por indivíduos temporal e
espacialmente situados”, dessa forma, a aprendizagem do saber universal não anula o fato de o
aluno ser um sujeito situado em determinado contexto (MALANCHEN, 2016, p. 166).

3.2.1 Saberes integrantes do processo educativo e prática social

Analisando o processo educativo como um complexo fenômeno, Saviani (2020) chega à


conclusão de que cinco tipos de saberes (categorizados a partir de seu esforço) devem ser
dominados pelos educadores e devem, portanto, integrar o processo de formação dos mesmos.

Saber “Atitudinal”, segundo o autor, refere-se ao domínio de comportamentos e vivências


adequados ao trabalho educativo, abrangendo posturas e atitudes inerentes ao papel docente,
disciplina, pontualidade, dentre outros. O saber “Crítico-Contextual” refere-se à compreensão
das condições sociais e históricas que determinam o ato educativo, o educador precisa estar
atento ao movimento da sociedade, compreendendo características básicas e detectando
119

necessidades presentes e futuras a serem atendidas no processo educativo. Já os “Saberes


Específicos”, segundo Saviani (2020), são aqueles que correspondem às disciplinas, vindos das
ciências da natureza, das humanas, artes ou das técnicas, considerados como elementos que
precisam ser apropriados pelos alunos. O “Saber Pedagógico” inclui os conhecimentos
produzidos por meio das ciências que estudam a educação e sintetizado nas vertentes teóricas
que fornecem fundamentos e orientações que se manifestam no trabalho educativo. Por fim, o
“Saber Didático-Curricular” engloba os conhecimentos sobre o “saber fazer”, ou seja, sobre as
formas de organização e realização da atividade educativa desempenhada na relação educador
e educando.

Segundo o autor, os saberes sistematizados acima foram organizados de acordo com os


conteúdos que enunciam. Todavia, há um eixo comum que perpassa todas as formas de
conhecimento apresentadas, embora manifestadas com diferenciadas ênfases, a forma “sofia”
(que diz respeito ao saber advindo da vivência) e “episteme” (que é o saber decorrente da
construção de conhecimento) tendem a estar presentes em tais saberes enunciados pelo autor
(SAVIANI, 2020, p. 17).

Uma vez que aqui defendemos a transmissão do saber elaborado com base no materialismo
histórico e dialético, na pedagogia histórico-crítica e na psicologia histórico-cultural,
precisamos compreender como se dá, para a pedagogia histórico-crítica, a transmissão-
assimilação do conhecimento por intermédio da prática educativa.

Saviani (2020) elaborou a pedagogia histórico-crítica sob o fundamento de que educando e


educador se põem em uma relação prática socialmente definida como “prática social global”
onde o processo educativo tem seu ponto de partida e de chegada. Assim, a prática educativa
assume “caráter de mediação no seio da prática social”, não se justificando por si própria, mas
pelos efeitos produzidos na “prática social global por ela mediada”. Dessa forma, sua eficácia
se mede a partir das mudanças qualitativas que ela provoca na prática social, “os agentes
educativos são, então, antes como depois, mas também durante o trabalho educativo, agentes
sociais cuja qualidade se modifica por efeito do trabalho pedagógico” (SAVIANI, 2020, p. 18).

Conforme mencionamos anteriormente, são participantes da prática educativa educador e


educando que estão inseridos na prática social, porém com diferentes níveis de compreensão.
O educador possui uma compreensão sintética, mesmo precária, já o educando possui uma
compreensão sincrética, desordenada, segundo Saviani (2020):
120

[...] A compreensão do educador é sintética porque implica certa articulação dos


saberes que detém relativamente à prática social, o que lhe permite dispor a relação
educativa como um processo cujo ponto de chegada é percebido com razoável clareza.
Tal síntese, porém, é precária uma vez que, por mais articulados que sejam os saberes
que domina, a inserção de sua própria prática pedagógica como uma dimensão da
prática social envolve uma antecipação do que lhe será possível fazer com educandos
cujos níveis de compreensão ele não pode conhecer, no ponto de partida, senão de
forma precária. Por seu lado, a compreensão do educando é sincrética uma vez que,
por mais saberes que detenha, sua própria condição de educando implica uma
impossibilidade, no ponto de partida, de articulação da experiência com a prática
social de que participa (SAVIANI, 2020, p. 19).

Considerando a relação educativa no ponto de chegada, Saviani (2020) aponta para o fato de
que o ponto de chegada é também a prática social, agora com o educando em nível de
compreensão sintético, no qual o educador já se encontrava no ponto de partida. De igual modo,
no ponto de chegada, a precariedade da síntese do educador se reduz e ele eleva seu nível de
compreensão:

Essa elevação do educando ao nível do educador é essencial para se compreender a


especificidade da relação pedagógica. É com efeito, pela mediação analítica levada a
cabo na relação educativa, que se dá a passagem da síncrese à síntese. Em
consequência, no ponto de chegada manifesta-se no educando a capacidade de
expressar uma compreensão da prática em termos tão elaborados quanto era possível
ao educador no ponto de partida (SAVIANI, 2020, p. 19).

Desse modo, segundo o autor, ocorre uma mudança qualitativa na compreensão da prática
social do ponto de chegada que se difere daquela posta no ponto de partida do processo
educativo. Tal prática é e não é a mesma, de acordo com Saviani (2020, p. 19 - 20):

Por um lado, trata-se da mesma prática, uma vez que é a prática social que constitui
ao mesmo tempo o suporte e o contexto, o pressuposto e o alvo, o fundamento e a
finalidade da prática pedagógica. Em suma, trata-se da própria prática social global
em cujo interior situa-se a educação.

Por outro lado, não se trata da mesma prática, se considerarmos que o modo de nos
situarmos em seu interior alterou-se qualitativamente pela mediação da ação
pedagógica; e já que somos, enquanto agentes sociais, elementos objetivamente
constitutivos da prática social, é lícito afirmar que a própria prática alterou-se
qualitativamente.

Por consequência, o autor assinala que os saberes articulados pelo professor são postos em
função do objetivo pedagógico que é promover o desenvolvimento do educando, transformando
qualitativamente seu modo de inserção na prática social. Dessa forma, reitera que os saberes
produzidos historicamente não interessam em si mesmos, mas enquanto elementos que são
sintetizados por cada indivíduo em prol de promover em si a humanidade produzida histórica e
coletivamente pelos homens da sociedade (SAVIANI, 2020, p. 20).
121

Dessa forma, diferentemente do que afirmam as pedagogias do “aprender a aprender”, em que


o aluno é colocado no papel de protagonista de seu próprio processo de ensino e aprendizagem,
sendo defendidas práticas autodidatas, promovendo o esvaziamento do papel do professor,
colocando-o como mero gestor de conflitos, bom ouvinte e gestor de experiências cotidianas
dos próprios alunos; defendemos que o docente e o discente estão ambos inseridos na prática
social e que ela mesma é o ponto de partida e de chegada, todavia, o docente tem uma visão
sintética ainda que primária dessa prática, já o discente possui uma visão sincrética, ou seja,
desordenada. Para que o aluno chegue à síntese, o papel do professor é de extrema importância,
não acreditamos que a consciência crítica e o pensamento por conceitos – de que trataremos
mais adiante – se adquiram por simples processo de maturação biológica.

Sobre a seleção do que deve ser ensinado na escola, Saviani (2020) afirma que os objetivos
educativos devem determinar a seleção dos saberes que irão compor a organização curricular.
O autor acredita que tendo o processo educativo como ponto de partida e de chegada, ou seja,
colocando a educação no centro das preocupações, será possível construir currículos que
contemplem os diferentes saberes que contém o conhecimento produzido socialmente. Tem-se,
dessa forma, a problemática educativa como referência para determinar o conteúdo a ser
ensinado nos currículos, tanto na formação de educadores quanto na organização do ensino nas
diversas modalidades e níveis educacionais. “Dessa forma, o trabalho educativo estará
capacitado a responder adequadamente aos problemas postos pela prática social que se
desenvolve na sociedade contemporânea” (SAVIANI, 2020, p. 22).

Para identificar os conteúdos básicos que devem compor o currículo da educação básica, o autor
propõe “que se tome como referência o conceito do trabalho como princípio educativo”.
Assegura que o trabalho é princípio educativo porque determina “o modo de ser da educação
em seu conjunto”; porque “coloca exigências específicas que o processo educativo deve
preencher”; e, por fim, porque determina a educação como modalidade específica e diferenciada
do próprio trabalho: ‘o trabalho pedagógico’” (SAVIANI, 2020, p. 24).

Saviani (2020) afirma que considerando o sentido do trabalho como princípio educativo, o
modo segundo o qual a sociedade se organiza já dá embasamento para o ensino fundamental,
pois coloca exigências de conhecimentos mínimos para a vida em sociedade. A linguagem
escrita, a matemática, as ciências da natureza e as ciências da sociedade fazem parte desse
conjunto de saberes que constituem pré-requisitos para a compreensão do mundo em que se
122

vive. Isso se constitui em uma relação implícita e indireta entre trabalho e educação (SAVIANI,
2020, p. 26, 27).

Já o Ensino Médio, segundo o autor, deve tratar de maneira explícita e direta a relação entre
trabalho e educação e entre conhecimento e atividade prática. Dessa forma, o papel da escola
nesse nível será o de recuperar a relação entre conhecimento e prática do trabalho. Não basta,
portanto, que o estudante de Ensino Médio domine elementos básicos e gerais do conhecimento
que resultam do trabalho em sociedade e contribuem para o seu processo. Deve explicitar como
o conhecimento enquanto ciência se converte em potência material integrante do processo de
produção. “Tal explicitação deve envolver o domínio não apenas teórico, mas também prático
sobre o modo como o saber articula-se com o processo produtivo” (SAVIANI, 2020, p. 27).

Para ilustrar como a atividade prática pode contribuir para exemplificar a relação entre ciência
e produção, Saviani (2020) fala da transformação tanto da madeira quanto do metal a partir do
trabalho humano, afirmando que os mesmos têm valor educativo, uma vez que envolvem não
apenas a produção de diversos objetos modernos, mas também a produção de instrumentos com
os quais tais objetos são fabricados. Assim, por meio desse trabalho prático, o aluno pode
compreender a forma de aplicação da ciência no processo de produção, mais que isso, é possível
perceber como funcionam as leis da química e da física para permitir a geração de novos
produtos vencendo a resistência dos materiais. Faz-se assim, portanto, a articulação da prática
ao conhecimento teórico (SAVIANI, 2020, p. 27).

Sugere que, para que a prática se articule ao conhecimento, o Ensino Médio envolva acesso a
oficinas em que os alunos sejam levados a manipular processos práticos da produção, não
reproduzindo no espaço escolar a especialização que ocorre no processo produtivo da sociedade
capitalista, ou seja, o Ensino Médio deveria se organizar de modo a permitir que os alunos
dominem técnicas diversas utilizadas na produção, não pautar-se, como hoje acontece, pela
formação de técnicos especializados em um único serviço, mas pela formação de politécnicos
(SAVIANI, 2020, p. 27).

Para o autor, a politecnia é uma proposta totalmente diferente do Ensino Médio


profissionalizante, ela trata a especialização como “domínio dos fundamentos científicos das
diferentes técnicas utilizadas na produção moderna”. Já o ensino profissionalizante é entendido
como “um adestramento em uma determinada habilidade sem o conhecimento dos fundamentos
123

dessa habilidade e, menos ainda, da articulação dessa habilidade com o conjunto do processo
produtivo” (SAVIANI, 2020, p. 27-28).

A concepção politécnica implica a progressiva generalização do Ensino Médio como


formação necessária para todos, independentemente do tipo de ocupação que cada um
venha a exercer na sociedade. Sobre a base da relação explícita entre trabalho e
educação desenvolve-se, portanto, uma escola média de formação geral (SAVIANI,
2020, p. 28).

Na definição do que deveria ser a Base Nacional Comum Curricular, Saviani (2020) afirma que
se deve considerar o problema da educação a ser desenvolvido no sistema de ensino de forma
global. Analisa que o objetivo da educação posto pelos documentos oficiais, como a
Constituição Federal e a LDB, não pode ser atingido com as propostas curriculares vigentes, ou
seja, não se atinge a finalidade do pleno desenvolvimento da pessoa, o preparo para o exercício
da cidadania e a qualificação para o trabalho com currículos que:

[...] pretendam conferir competências para a realização das tarefas de certo modo
mecânicas e corriqueiras demandadas pela estrutura ocupacional, concentrando-se na
questão da qualificação profissional e secundarizando o pleno desenvolvimento da
pessoa e o preparo para o exercício da cidadania, tal como se evidencia na proposta
divulgada pelo MEC sobre a base nacional comum curricular (SAVIANI, 2020, p.
29).

Diferentemente do currículo atual, em que predomina a tendência dominante, segundo o autor,


um currículo segundo os pressupostos da pedagogia histórico-crítica deve tomar como
referência a organização da sociedade, assegurando que os alunos tenham plena compreensão
de seu funcionamento. Uma educação de qualidade deve não apenas tornar acessíveis os
computadores, mas a compreensão dos princípios científicos e dos processos que tornaram
possíveis os desenvolvimentos dessas máquinas. Adicionalmente, trata-se de prover formação
artística e filosófica.

Um dos grandes desafios da pedagogia histórico-crítica parece ser, segundo Malanchen (2016)
sistematizar de maneira consciente a concepção de que o ser humano se “autoconstrói no
processo histórico de transformação da realidade objetiva” (p. 208). Devemos considerar,
todavia, que, em função das limitações existentes, um currículo pensado segundo a pedagogia
histórico crítica pode ser disciplinar, porém trazendo a concepção de mundo “do materialismo
histórico e dialético, devendo propor a articulação das disciplinas considerando o elemento
fundante do ser humano e de todo o conhecimento produzido que é o trabalho”
(MALANCHEN, 2016, p. 210).
124

4. CONTEÚDOS CLÁSSICOS E DESENVOLVIMENTO DO PSIQUISMO

No capítulo anterior, relacionamos conhecimento, currículo e políticas educacionais a partir das


reflexões de Saviani (2020), Malanchen (2016) e Malanchen, Matos e Orso (2020). Para isso,
contextualizamos a ideologia pós-moderna e o pensamento multiculturalista, tendências
dominantes nos currículos contemporâneos e nos documentos em geral que norteiam a
educação. Trouxemos uma reflexão sobre as pedagogias do “aprender a aprender”, em especial
sobre a pedagogia das competências, com base nos estudos de Duarte (2001). Chegamos, por
fim, à contextualização de currículo para a pedagogia histórico-crítica, sobre os saberes
integrantes do processo educativo e sobre a forma como entendemos que se dá a apropriação
do conhecimento. Abordamos ainda a importância de um currículo segundo a pedagogia
histórico-crítica, baseado na transmissão do saber elaborado produzido coletivamente ao longo
da história da humanidade.

Neste capítulo, discutiremos as noções de clássico em oposição a cânone, retomando a


importância da apreensão do conhecimento artístico, científico e filosófico pela classe que vive
do trabalho. Falaremos da relevância desse saber para o desenvolvimento do psiquismo do
nosso público-alvo, a saber, o adolescente. No capítulo seguinte, abordaremos a questão do
realismo e do valor estético de uma obra para chegarmos ao objetivo desta tese.

4.1 CÂNONE LITERÁRIO

No Dicionário de termos literários (online), organizado por Carlos Ceia, João Ferreira Duarte
afirma que a palavra “cânone” deriva da palavra grega “kanon” que se referia a um tipo de vara
utilizada para medida. No século VI, a expressão passa a ser utilizada como referência à lista
de livros Sagrados adotados pela igreja cristã, excluindo-se dessa listagem os livros “apócrifos”;
desse modo, o cânone bíblico se tornou fechado, não passível de alteração. Outro cânone citado
pelo dicionário é o teológico, o conjunto de “Santos Padres” elencados pela igreja Católica por
meio do processo de “canonização”. Dessa forma o cânone torna-se uma seleção em forma de
lista – de textos ou pessoas – dentro de determinada comunidade sob a imposição de critérios
de medida que permitam distinguir o legítimo do marginal, do proibido. “Nesse sentido, torna-
se claro que um cânone veicula o discurso normativo e dominante de determinado contexto,
125

teológico ou outro, e é isso que subjaz a expressões como ‘cânone aristotélico’, ‘cânones da
crítica’, etc.”. (DUARTE, 2009).

Tal embasamento teórico já seria o bastante para justificar nossa opção em não trabalhar com a
noção de cânone, uma vez que ela é excludente, elitista, interessada. Todavia, João Ferreira
Duarte (2009) prossegue analisando o verbete associando seu uso à Literatura, objeto de nosso
interesse. Segundo o dicionário, no Renascimento o termo ainda carrega o núcleo semântico-
ideológico posto pela Igreja Medieval, de modo que se entende por cânone literário, “o corpo
de obras (e seus autores) social e institucionalmente consideradas ‘grandes’, ‘geniais’, perenes,
comunicando valores humanos essenciais, por isso dignas de serem estudadas e transmitidas de
geração em geração”. Tal definição vale tanto para o cânone nacional quanto para o universal.

A partir do século XX, com o surgimento da obrigatoriedade da educação formal, a escola passa
a ser determinante na fixação e transmissão de cânones que acabaram por ocupar um lugar de
disputa dividindo opiniões. Defendemos aqui que os critérios a partir dos quais os cânones são
escolhidos não parecem estar a serviço de uma sociedade democrática, uma vez que tal seleção
privilegia os interesses dominantes, com a prevalência de autores homens brancos, pautada na
ideologia patriarcal.

Jaime Ginzburg (2004), em “Cânone e valor estético em uma teoria autoritária da Literatura”,
ao fazer uma análise das ideias de Harold Bloom elencando elementos do autoritarismo que se
coadunam a uma concepção elitista do processo formativo de leitor, afirma que a formação do
cânone tem suscitado discussões desde a década de 1980, com questionamentos sobre os
critérios do valor estético. Segundo o autor, é fácil perceber como segmentos culturais correm
à margem do cânone, situação em que se encontram o cordel, a tradição oral, os registros
indígenas, muitos textos produzidos por mulheres, dentre outros.

No Ensino Médio, a articulação aos exames de vestibular, segundo Ginzburg (2004, p. 98),
reforça a reverência aos valores canônicos assumidos pelos programas dos exames. Ainda hoje,
após a maioria das universidades brasileiras adotarem o ENEM como meio de ingresso nos
cursos superiores, o ensino do cânone literário prevalece nas escolas brasileiras, com indicativos
nos documentos oficiais – conforme já mencionamos anteriormente –, nos manuais de Língua
Portuguesa, na tradição pautada no viés positivista da historiografia literária. Enfatizamos,
todavia, que, nos dias atuais, tal afirmação é relativa, uma vez que: com críticas cada vez mais
incisivas ao ensino de conceitos científicos, artísticos e filosóficos; com o escasso tempo para
trabalho em sala de aula; com a falta de preparo de muitos docentes – em função de suas
condições objetivas de existência – para trabalharem ao menos com o cânone literário; com a
126

burocratização do ensino que visa atingir “metas” que mascaram as verdadeiras lacunas da
educação; com a propagação de textos de baixa qualidade crítica; a educação em sala de aula
tem se afastado também, cada vez mais, do ensino de Literatura a partir de textos selecionados
pelo cânone escolar.

Entendemos que a reprodução da Literatura de massa já é um grande problema; mas o ensino


de Literatura como reprodução do cânone – de acordo com Ginzburg (2004, p. 99) – também
não se relaciona ao ensino da reflexão sobre valor, pelo contrário:

(...) o componente reflexivo é abandonado em favor de uma pura confirmação


esquemática de sistemas de valor que, em muitos casos, não são conceitualmente
discutidos com os estudantes. Estes, desse modo, passam a defender que um autor é
bom sem saber por quê, ou sem formular opinião própria a respeito dos critérios de
valor (GINZBURG, 2004, p. 99).
O autor discute que a reprodução passiva dos textos canônicos na formação do estudante limita
o desenvolvimento do pensamento crítico. Discutiremos sobre a aquisição do pensamento por
conceitos ainda nesse capítulo, todavia, as palavras de Ginzburg (2004) reforçam o que temos
discutido na presente tese, uma vez que a reprodução passiva de textos e conteúdos na formação
do educando não presta serviço ao processo de desenvolvimento integral do indivíduo. Os
textos em sala de aula precisam ser lidos a partir de uma mediação crítica e reflexiva, e de um
arcabouço conceitual sólido e devidamente historicizado, incitando debates que oportunizem
ao aluno ampliar sua consciência crítica sobre a realidade que o cerca.

Por defender um cânone autoritário, sob uma postura elitista, desvinculando a educação
democrática da crítica literária, sem considerar – inclusive – a experiência literária de autores
brasileiros (GINZBURG, 2004, p. 107), não trabalharemos com as noções de Bloom sobre o
cânone. Considerando que o cânone possui uma visão elitista, patriarcal, voltada aos interesses
das classes superiores e que exclui muitas obras de relevância produzidas pelo conjunto de
homens ao longo da história, também não trabalharemos com essa noção na presente tese, mas
sim com o conceito de clássico, do qual trataremos a seguir.

4.2 CONTEÚDOS CLÁSSICOS E A DEFESA DA TRANSMISSÃO DO SABER


ELABORADO

Carlos Ceia, no Dicionário de termos literários (online), analisa o verbete “clássico” sob a
afirmativa de que os acadêmicos alexandrinos já assim designavam os textos da cultura grega
antiga, fixando a ideia de que clássica é a obra cuja excelência é capaz de resistir ao tempo.
127

Segundo o autor, o termo foi trazido para a Literatura no século II, d.C., por Aulo Gélio,
distinguindo escritor clássico (o mais notável, que escrevia para os mais abastados) de escritor
proletário (o que escrevia para as classes menos letradas, sendo ele mesmo um escritor de baixa
classe social). Clássico, assim, deve ser “anterior a nós e deve constituir um modelo de
referência” (CEIA, 2009).

Visto, segundo Ceia (2009), como “saudável” por Goethe e “obra de arte perfeita” por Hegel,
o termo “clássico” divide opiniões, todavia trabalhamos com a noção de clássico definida pela
pedagogia histórico-crítica, segundo a qual, clássico é “aquilo que se tornou fundamental ou
essencial” (SAVIANI, 2013, p. 14), em outras palavras, definiremos como clássicos da
Literatura obras que se destacaram e que continuam se destacando como fundamentais à
compreensão de sua própria época de produção e recepção, ou seja, que conseguem captar a
totalidade de dada realidade social complexa e multifacetada.

Em sua dissertação de mestrado, Carolina Góis Ferreira (2019) estuda o conceito de clássico na
pedagogia histórico-crítica discutindo como problema de pesquisa as críticas feitas à referida
teoria pedagógica que acusam o clássico como elitista, etnocêntrico e distanciado da realidade
dos alunos. Ancorando-se em autores marxistas como Lukács, a autora defende que – na
contramão do pensamento hegemônico – o clássico deve ser pensado como um produto da
atividade humana de valor universal.

Para a autora, é importante entender que o clássico se torna um valor à medida que sua validade
supera seu tempo de produção, todavia, nem todo valor é necessariamente um clássico. Além
do valor humano, o clássico deve se constituir como modelo e referência a ser seguida (GÓIS,
2019, p. 102). Para que o clássico se torne um modelo a ser seguido pelas gerações seguintes,
faz-se necessário, segundo a autora, o trabalho educativo cuja concepção se pauta na produção
de humanidade em cada indivíduo.

Ressaltamos que – conforme discutido anteriormente – para a pedagogia histórico-crítica, a


tarefa da educação escolar diz respeito a:

a) Identificação das formas mais desenvolvidas em que se expressa o saber objetivo


produzido historicamente, reconhecendo as condições de sua produção e
compreendendo as suas principais manifestações, bem como as tendências atuais
de transformação.
b) Conversão do saber objetivo em saber escolar, de modo que se torne assimilável
pelos alunos no espaço e tempo escolares.
c) Provimento dos meios necessários para que os alunos não apenas assimilem o
saber objetivo enquanto resultado, mas apreendam o processo de sua produção,
bem como as tendências de sua transformação. (SAVIANI, 2013, p. 8, 9, grifo
nosso).
128

A partir desses três pontos elencados por Saviani (2013) se constitui o trabalho educativo.
Reiteramos que defendemos na presente tese que os conteúdos que devem estar presentes na
educação escolar são os clássicos tanto no campo das artes – inclui-se aqui a Literatura – quanto
da ciência e da filosofia. O autor faz uma reflexão sobre o que considera clássico:

[...] E o que é a fase clássica? É a fase em que ocorreu uma depuração, superando-se
os elementos próprios da conjuntura polêmica e recuperando-se aquilo que tem caráter
permanente, isto é, que resistiu aos embates do tempo. Clássico, em verdade, é o que
resistiu ao tempo. É nesse sentido que se fala na cultura greco-romana como clássica,
que Kant e Hegel são clássicos da Filosofia, Victor Hugo é um clássico da Literatura
universal, Guimarães Rosa um clássico da Literatura brasileira etc. (SAVIANI, 2013,
p. 17).

Em outro texto, Saviani – juntamente com Duarte – afirma que clássico não coincide com o
tradicional, mas também não se opõe ao moderno:

[...] Tradicional é o que se refere ao passado sendo frequentemente associado ao


arcaico, a algo ultrapassado, o que leva à rejeição da pedagogia tradicional,
reconhecendo-se a validade de algumas das críticas que a Escola Nova formulou a
essa pedagogia. Moderno deriva da expressão latina modus hodiernus, isto é, “ao
modo de hoje”. Refere-se, pois, ao momento presente, àquilo que é atual, sendo
associado a algo avançado. Em contrapartida, clássico é aquilo que resistiu ao tempo,
tendo uma validade que extrapola o momento em que foi formulado. Define-se, pois,
pelas noções de permanência e referência. Uma vez que, mesmo nascendo em
determinadas conjunturas históricas, capta questões nucleares que dizem respeito à
própria identidade do homem como um ser que se desenvolve historicamente, o
clássico permanece como referência para as gerações seguintes que se empenham
em apropriar-se das objetivações humanas produzidas ao longo do tempo
(SAVIANI; DUARTE, 2010, p. 430, 431, grifo nosso).

Considerando o clássico como aquilo que resistiu ao tempo, tendo uma validade que vai além
do seu momento de formulação, faz-se necessário refletirmos sobre as noções de permanência
e referência postas pelo autor. Entendendo o clássico como um texto que capta as questões
nucleares de seu tempo, ele se torna uma rica fonte que possibilita ao homem o conhecimento
de si mesmo e da construção de sua história ao longo dos tempos. Para ser clássico, portanto,
não basta que o texto resista ao tempo, mas é necessário que ele se torne referência para as
gerações futuras, continuando a contribuir para a elucidação da realidade humana em sua
riqueza e multiplicidade: por isso mesmo, há uma tendência de que não tenham possibilidade
de se converter em clássicos textos com possibilidades de produção de sentidos muito limitados
e fechados – um clássico não permanece fixado em seu tempo, mas é historicizado (isto é,
transformado) pelos leitores (comuns ou especializados).

Sobre a questão de referência e permanência, Góis (2019, p. 116) chama atenção para o fato de
que se um dos critérios para a definição dos clássicos é que ele permaneça, ou seja, resista ao
129

tempo, as produções da atualidade ainda não foram capazes de atender a esse critério. Em
relação a essas, a autora afirma que nossa atitude pode ser no sentido de preservá-las e difundi-
las, a fim de que – a seu tempo – elas se tornem clássicos. Sobre a questão da referência, a
autora afirma que uma obra tanto serve como referência para compreensão de um período
histórico quanto como referência para o entendimento de obras contemporâneas.

Ao falar das formas mais desenvolvidas em que se expressa o saber objetivo, Saviani (2013)
não afirma que qualquer saber deve ser ensinado na escola, mas o saber da cultura erudita, ou
seja, o saber histórico que é apropriado pelas classes dominantes, hoje denominado “saber
burguês”, saber do qual a burguesia se apropriou em prol de seus interesses. Todavia, o autor
chama atenção para a necessidade de se superar a dicotomia popular x erudito possibilitando à
população o acesso à cultura elaborada de modo que possa expressar também de forma
elaborada seus próprios interesses, assim como a burguesia o faz atualmente. “Se o povo tem
acesso ao saber erudito, o saber erudito não é mais sinal distintivo de elites, quer dizer, ele
torna-se popular”, ou seja, a cultura erudita pode vir a ser popular, uma vez que esta passe a ser
dominada pelo povo (SAVIANI, 2013, p. 69).

Em sua defesa de uma escola democrática, Saviani (2013) afirma que a escola não deve se
limitar a reiterar a cultura popular, uma vez que ao fazer isso ela se tornaria desnecessária –
haja vista que há espaços de convivência popular mais apropriados a tal socialização. A cultura
popular é desenvolvida no seio da sociedade por meio de lutas, relações sociais e práticas. “O
povo precisa da escola para ter acesso ao saber erudito (...) e, em consequência, para expressar
de forma elaborada os conteúdos da cultura popular que correspondem a seus interesses”
(SAVIANI, 2013, p. 69, 70).

Conforme mencionamos anteriormente, Candido (2017) considera a Literatura como um fator


humanizador cuja “fruição” pode ser ampliada ou restrita pela sociedade. Considera duas
questões: o homem que não tem acesso à Literatura pode ter sua personalidade mutilada, porque
a mesma, por dar forma aos nossos sentimentos e à nossa visão de mundo, nos organiza e nos
liberta do caos, por isso, “negar a fruição da Literatura é mutilar nossa humanidade”; além
disso, a Literatura pode servir como um consciente instrumento de “desmascaramento”, em
função de “focalizar as situações de restrição dos direitos, ou negação deles (...)”. (CANDIDO,
2017, p. 188).
130

O que acontece, infelizmente, é que em uma sociedade dividida em classes antagônicas, a


cultura erudita não está acessível às camadas populares. O autor afirma que, em uma sociedade
como a brasileira, os homens do povo não têm acesso a um autor como Machado de Assis,
ficam relegados às canções populares, aos provérbios, ao folclore, à Literatura de massa, dentre
outros saberes espontâneos produzidos pela cultura popular.

Ao citar o exemplo de como milhares de italianos conhecem a Divina Comédia, tendo inclusive
decorado muitos de seus cantos, entre tantos outros exemplos de pessoas empobrecidas que
apreciam a Literatura erudita quando apresentados a ela, Candido (2017, p. 192) fala do poder
universal dos clássicos, “que ultrapassam a barreira da estratificação social e de certo modo
podem redimir as distâncias impostas pela desigualdade econômica, pois têm a capacidade de
interessar a todos e, portanto, devem ser levados ao maior número”. Dessa forma, caso o povo
não fosse incentivado apenas a consumir conhecimentos cotidianos, Candido chega à conclusão
de que:

O Fausto, o Dom Quixote, Os Lusíadas, Machado de Assis podem ser fruídos em


todos os níveis e seriam fontes inestimáveis de afinamento pessoal, se a nossa
sociedade iníqua não segregasse as camadas, impedindo a difusão dos produtos
culturais eruditos e confinando o povo a apenas uma parte da cultura, a chamada
popular. A este respeito, o Brasil se distingue pela alta taxa de iniquidade, pois como
é sabido temos de um lado os mais altos níveis de instrução e de cultura erudita, e de
outro a massa numericamente predominante de espoliados, sem acesso aos bens desta,
e aliás aos próprios bens materiais necessários à sobrevivência (CANDIDO, 2017, p.
192, 193).

Sobre a questão das pessoas que não têm sequer acesso aos bens necessários à sobrevivência,
já vimos com Ferreira (2012) que a arte e o conhecimento científico se manifestam como
necessidade ontológica do homem. Todavia, suprir tal necessidade é uma tarefa precedida pela
satisfação das necessidades básicas de sobrevivência. Portanto, lutar por leitura literária de
qualidade, elaborando possíveis critérios de seleção – como nos propusemos a fazer nesta tese
– não poderia ocorrer apartadamente de uma luta pela transformação das condições de vida
material, ou seja, da luta pela superação da exploração de uns seres humanos pelos outros.

Na luta desigual pelas condições mínimas de existência é bastante compreensível que não haja
espaço para a formação estética. Por sua força humanizadora, por sua importância, a “arte não
pode ser vista como uma contemplação imparcial e desconectada do todo social, tampouco
como puro entretenimento deleitável e deslumbrado” (FERREIRA, 2012, p. 50).

Entendendo a arte – clássica – como necessidade ontológica, não desconectada do todo social,
pelo contrário, como resultado do desenvolvimento do gênero humano, como expressão das
131

formas mais elaboradas de cultura produzidas em determinadas épocas, não podemos permitir
que ela seja reservada apenas às elites. Duarte (2016, p. 109, 110) afirma que:

A definição do que sejam os conteúdos clássicos a serem ensinados na educação


escolar e das formas pelas quais eles serão trabalhados, se não tomar como referência
a concepção de mundo materialista, histórica e dialética, acaba por se enredar na
antinomia entre relativismo e dogmatismo. No caso do relativismo, os clássicos são
negados inteiramente, como mera expressão de concepções etnocêntricas e
colonialistas, ou são considerados como significativos apenas para uma cultura em
particular, perdendo total ou parcialmente seu valor em outras referências culturais.
No caso do dogmatismo, os clássicos são definidos a partir de hierarquias de valor
idealisticamente tomadas como existentes em si mesmas, independentemente das
circunstâncias históricas. A pedagogia histórico-crítica situa-se na perspectiva de
superação tanto do relativismo quanto do dogmatismo e toma a luta histórica pela
emancipação do gênero humano como referência para postular que a escola trabalhe
com conteúdos clássicos no campo científico, no artístico e no filosófico.

Dessa forma, para além do relativismo que nega os clássicos, acusando-os de serem
etnocêntricos, excludentes, etc; e para além do dogmatismo que define os clássicos por
hierarquia de valor independentemente das circunstâncias históricas; defendemos que tais
concepções devem ser superadas, uma vez que, com base no materialismo histórico e dialético,
o homem se constitui como transformador da natureza e produtor de sua própria humanidade e
de sua história, criando necessidades por meio de sua atividade vital que é o trabalho. Dessa
forma, não negamos o processo histórico, muito menos negamos os conteúdos clássicos, fruto
do trabalho do próprio homem que se especializou – e especializa – em produzir avanços seja
no campo das artes, seja na ciência ou na filosofia. Lutamos para que em uma sociedade de
contrários, o ser humano se aproprie das produções mais elaboradas que fazem parte de sua
própria história (desidentificando-as como se fossem propriedade privada da burguesia), a fim
de ter condições de transformar essa mesma sociedade. Não se trata de um processo linear,
progressivo e retilíneo, mas sem ele, tampouco, os dominados dominarão o que hoje apenas os
dominantes dominam.

4.3 MEDIAÇÃO NA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA

Conforme já discutimos com base nos pressupostos do materialismo histórico e dialético, toda
produção humana surge a partir da atividade do trabalho. Nos primórdios da humanidade, o
trabalho se voltava apenas a satisfazer necessidades elementares, todavia, com o
desenvolvimento da história da humanidade, o intercâmbio do homem com a natureza torna
possível o conhecimento da realidade e cria necessidades cada vez mais complexas.
132

De acordo com D’Incao, Assumpção e Saccomani (2015, p. 183), ao criar outras necessidades
por meio da objetivação do trabalho, o homem não mais as restringe à vida material, mas tais
necessidades passam a ter relação com elaborações teóricas que se manifestaram no campo das
ciências, das artes, da filosofia e também da política.

É conveniente salientarmos que estes tipos de objetivação constituíram-se, portanto,


como necessidades tardias que puderam ser satisfeitas à medida que as condições
mínimas de vida eram garantidas por uma parcela da população dedicada aos
trabalhos penosos, enquanto a outra tinha a possibilidade de se debruçar sobre
a atividade de reflexão. Sem perder, contudo, o rigor metodológico marxiano, deve-
se entender todos esses processos como dialéticos. Isso porque a divisão social do
trabalho – divisão esta entre aqueles que fazem e aqueles que pensam - e por
consequência o trabalho alienado contribuíram sobremaneira para que a humanidade
alcançasse patamares elevados de conhecimento sobre a realidade e sobre si mesma
(D’INCAO; ASSUMPÇÃO; SACCOMANI; 2015, p. 183, grifo nosso).

Duarte (2013, p. 70) afirma que o conhecimento é necessário ao homem para que ele
compreenda o mundo e a si mesmo, de modo que se supere a superficialidade do senso comum.
Nesse contexto desigual pontuado por D’Incao, Assumpção e Saccomani (2015), o papel da
escola não deve ser o de reproduzir a lógica do sistema, mas posicionar-se a favor da classe que
vive do trabalho na socialização dos conhecimentos. Por isso, a escola não deve satisfazer as
necessidades dos alunos pautadas no imediatismo, mas se preocupar em superar as necessidades
já postas e produzir novas necessidades, o que não é uma tarefa fácil, mas implica na
transformação da subjetividade do aluno (D’INCAO; ASSUMPÇÃO; SACCOMANNI; 2015,
p. 184).

Sobre essa questão, reiteramos que Saviani (2013, p. 70, 71) explicita a diferença entre
conteúdos empíricos, que se manifestam na experiência imediata, e conteúdos concretos,
captados em suas múltiplas relações. O autor afirma que só se tem acesso aos conteúdos
concretos quando se supera o empírico pela via do abstrato, dessa forma, quando se depara com
o aluno em sala de aula, o professor não está diante de um indivíduo empírico a respeito do qual
há conclusões precisas; mas sim diante de um indivíduo concreto, uma síntese de múltiplas
relações sociais. O aluno empírico seria um recorte, o aluno concreto é vivo, inteiro. Esse aluno
concreto não se dá conta de suas reais necessidades, logo, é tarefa da escola produzi-las.

[...] Uma questão fundamental na pedagogia, e que o movimento da Escola Nova


expôs com veemência, é a questão dos interesses do aluno. O objetivo do processo
pedagógico é o crescimento do aluno, logo, seus interesses devem necessariamente
ser levados em conta. O problema é o seguinte: quais são os interesses do aluno? De
que aluno estamos falando, do aluno empírico ou do aluno concreto? O aluno
empírico, o indivíduo imediatamente observável, tem determinadas sensações,
desejos e aspirações que não correspondem necessariamente aos seus interesses reais,
133

definidos pelas condições sociais que o situam enquanto indivíduo concreto. [...] Nem
sempre o que a criança manifesta à primeira vista como sendo de seu interesse é de
seu interesse como ser concreto, inserido em determinadas relações sociais. Em
contrapartida, conteúdos que ela tende a rejeitar são, no entanto, de seu maior interesse
enquanto indivíduos concretos (SAVIANI, 2013, p. 71).

Se a escola serve apenas para reproduzir o que o aluno vive em sociedade, não há necessidade
de escola, nas palavras de Saviani (2013, p. 69), “se as escolas se limitarem a reiterar a cultura
popular, qual será sua função? Para desenvolver cultura popular14, essa cultura assistemática e
espontânea, o povo não precisa de escola”. Logo, o papel da escola, segundo o autor, deve ser
o de identificar as formas mais desenvolvidas de saber objetivo, reconhecendo as condições de
produção; converter esse saber em saber escolar, assimilável ao aluno; e prover os meios para
que os alunos assimilem tal saber e mais apreendam o processo de produção do mesmo. A
escola deve-se firmar no “princípio de que o atendimento aos interesses dos alunos deve
corresponder sempre aos interesses do aluno concreto” (SAVIANI, 2013, p. 121).

Para fazer com que os alunos percebam suas reais necessidades enquanto seres concretos,
sínteses de múltiplas determinações, é necessária a mediação do adulto, uma vez que:

[...] as necessidades mais complexas, em geral, não são construídas de maneira


espontânea, como também não o são as necessidades artísticas em particular. A
produção de necessidades superiores requer intencionalidade, ou seja, o contato da

14
Conforme discussão realizada no momento da defesa, neste momento, conforme posição elaborada verbalmente
pela orientadora do trabalho, Saviani (2013) utiliza o termo “cultura popular” para se referir àquela que seja
assistemática e espontânea (esse é o núcleo de sua caracterização), e não para se referir a todo e qualquer elemento
proveniente da cultura popular (que, como sabemos, pode ter passado por longos períodos de elaboração e,
inclusive, ter-se convertido em popular tendo sido antes um saber erudito – e vice-versa – já que há trânsito entre
as esferas da atividade humana). Ressaltamos que, de acordo com nossa discussão sobre os clássicos, muitos textos
que foram colocados à margem pelas elites e relegados à “cultura popular” podem ser considerados clássicos, por
gozarem de sistematicidade e elaboração, confirmando-se como ricos em historicidade e, portanto, pertinentes e
relevantes; como já mencionamos, é o caso, para ficar em alguns exemplos, de alguns cantos tradicionais indígenas
(que agora começam a ser traduzidos para a Língua Portuguesa e conhecidos para além das comunidades
originárias); de parte das literaturas de cordel; de parte das literaturas orais passadas de geração em geração
(normalmente chamada de “folclórica”); de algumas tradições no interior das literaturas afro-brasileiras etc. Todas
essas produções passam a exigir novos esforços teórico-críticos e historiográficos, bem como a problematização
em chave crítica da questão do “valor”, justamente porque quanto mais se desvenda sua sistematização e
elaboração mais se nota que seu desprestígio e apagamento não tem relação com aquilo que Saviani critica, antes,
com a insuficiência de nosso conhecimento. Nossa discussão aqui, com base em Saviani (2013), se relaciona à
cultura popular assistemática e espontânea, não às produções – quaisquer que sejam suas origens – bem elaboradas,
ricas de historicidade, que permanecem pertinentes e relevantes para a compreensão do mundo em sua diversidade
e totalidade e que, portanto, podemos considerar clássicas. O núcleo da questão não está, pois, na oposição entre
popular e erudito como se fossem categorias essenciais e anistóricas (mesmo porque são categorias que só fazem
sentido em uma sociedade, como a nossa, dividida em classes com interesses antagônicos); tampouco está na
identificação da cultura popular com a classe trabalhadora ou proletária, ou da cultura erudita com a classe
burguesa ou proprietária dos meios de produção – essa identificação direta seria não apenas esquemática, mas
flagrantemente equivocada. Convém, pois, tomar os critérios sistematicidade, elaboração, historicidade,
pertinência e relevância para a análise – e não a esfera de origem ou circulação; proceder de modo diverso pode
levar a juízos equivocados, elitismo e preconceitos que nosso referencial (que luta pela socialização do saber
elaborado produzido histórica e coletivamente pelo conjunto dos seres humanos, quaisquer que sejam suas origens
e classes sociais de pertencimento ou adoção) não endossa.
134

criança com a cultura mais geral deve se dar pela mediação do professor durante o
processo educativo (D’INCAO; ASSUMPÇÃO; SACCOMANNI, 2015, p. 185, grifo
nosso).

Dessa forma, reiteramos que para que se produzam necessidades superiores nos alunos, faz-se
necessário um ensino intencional, que requer seleção prévia de conteúdos que potencialmente
possam produzir no educando o efeito de catarse, de superação do senso comum e apreensão
da realidade em suas múltiplas determinações. A mediação do par mais desenvolvido é
essencial e indispensável nesse processo de modificação na subjetividade do sujeito.

4.4 PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA E O DESENVOLVIMENTO DO PSIQUISMO

Temos defendido nesta tese o ensino por intermédio de conteúdos clássicos, visando ao
desenvolvimento pleno do psiquismo do indivíduo, e defendemos a pedagogia histórico-crítica
como corrente pedagógica mais adequada para tal fim. Para tratarmos do desenvolvimento do
indivíduo em suas máximas potencialidades, faz-se necessário trazermos à baila os estudos da
psicologia histórico-cultural, uma vez que relações sociais produzidas a partir da modificação
da natureza pelo homem por intermédio do trabalho têm estrita relação com o desenvolvimento
do psiquismo. Articulando as relações entre psicologia histórico-cultural e pedagogia histórico-
crítica, Martins (2014, p. 44) aborda os aspectos da natureza social do psiquismo humano, a
partir do pensamento de Vigotski e Leontiev.

Conforme temos discutido, por meio da atividade humana – o trabalho – o homem se relaciona
com a natureza para a satisfação de suas necessidades que se tornam cada vez mais complexas.
Martins (2014, p. 45) afirma que, justamente para captar e dominar a natureza de modo mais
eficiente, os processos mentais se tornam cada vez mais complexos desenvolvendo o
psiquismo. “Assim, a inteligibilidade acerca dos fenômenos da realidade é conquista do
desenvolvimento histórico da atividade humana e, portanto, condição para que os sujeitos se
insiram nela” (MARTINS, 2014, p. 45).

Ao apresentar a definição de psiquismo, a autora aborda a subjetivação em sua unidade material


e ideal. O psiquismo não é outra coisa:

[...] senão unidade material e ideal expressa na subjetivação do objetivo, isto é, na


construção da imagem subjetiva do mundo objetivo. É material na medida em que é
estrutura orgânica e é ideal posto ser o reflexo da realidade, a ideia que a representa
subjetivamente. (MARTINS, 2014, p. 45).
135

Segundo a autora, baseada no pensamento de Leontiev, a construção da imagem subjetiva do


mundo objetivo não se trata de dispensar a materialidade da imagem (ideia), tampouco
contrapô-las. Trata-se sim de situá-las – matéria e ideia – no mundo da atividade humana no
qual o psiquismo se desenvolve e se torna imagem subjetiva, ou “reflexo psíquico da realidade”
(MARTINS, 2014, p. 45). Ainda de acordo com a autora, a unidade material e ideal em que se
resume o psiquismo se estrutura por meio de funções psicológicas denominadas afetivo-
cognitivas – sensação, percepção, atenção, memória, linguagem, pensamento, imaginação,
emoção e sentimento – que devem ser entendidas como uma totalidade dinâmica.

Sobre a sensação, a autora afirma ser a mais elementar das funções afetivo-cognitivas; por meio
dela, os estímulos são captados a fim de construir uma imagem e seus respectivos componentes
que se unificam por meio da percepção que promove a formação da imagem do objeto. A
percepção, por sua vez, se desenvolve à medida que os reflexos “incondicionados” cedem lugar
aos “condicionados” e consequentemente às “aprendizagens sociais”: “São resultados de uma
estimulação complexa, ou seja, de articulações e integrações entre diversas sensações”
(MARTINS, 2014, p. 46).

A atenção se desenvolve para permitir ao indivíduo organizar seu comportamento para um fim
específico, a partir das percepções às quais o ser é exposto. Em função da atenção, pode-se
construir “a imagem de uma figura em relação a um fundo, ou seja, determinados influxos são
selecionados e seus concorrentes são inibidos, possibilitando, assim, a concentração em um
conteúdo específico” (MARTINS, 2014, p. 46).

Além da sensação, da percepção, da atenção e da imagem, a autora afirma ainda que a


experiência dos homens ao longo da história se tornaria impossível caso as imagens
desaparecessem, para isso, surge a memória, “a quem cumpre a formação de imagem por
evocação daquilo que no passado foi sentido, percebido e atentado”. A memória permite que as
experiências sejam fixadas e armazenadas para serem posteriormente lembradas (MARTINS,
2014, p. 46).

Tais imagens elencadas pela autora são as psíquicas que orientam homens e animais na
realidade. Todavia, o ser humano se diferencia dos animais por conseguir converter imagens
em signos e construir o sistema de signos chamado linguagem. Por ter desenvolvido a
linguagem, o ser humano superou os limites da representação sensorial imediata da realidade,
136

representando-a por meio de palavras. “Dessa superação resulta a possibilidade para a


construção de ideias, que são, a rigor, os conteúdos do pensamento” (MARTINS, 2014, p. 47).

Martins (2014, p. 47) afirma que – a partir do pensamento de Vigotski – obtém-se o nexo entre
pensamento e linguagem que ocorre durante o desenvolvimento, na medida em que
comunicação demanda o pensamento e este se manifesta por intermédio da linguagem. No
desenvolvimento das funções psicológicas superiores, a autora verifica “(...) um trânsito de
superação contínua que implica: captação do real – imagem – signo – palavra – ideia. As ideias
manifestam-se como conceitos e/ou juízos” (MARTINS, 2014, p. 47).

Os conceitos “refletem as características gerais, essenciais e distintivas dos objetos e fenômenos


da realidade”, enquanto os juízos “compreendem os conteúdos dos conceitos, ou seja,
produzem-se pelo estabelecimento de conexões e relações entre eles”. Os conceitos e os juízos
se formam a partir das ideias – do pensamento – que é a “atividade prática do homem na
realidade concreta”. O pensamento surge a partir do reconhecimento sensorial, porém vai além
em função do desenvolvimento da linguagem e das operações racionais – “análise/síntese,
comparação, generalização e abstração”. (MARTINS, 2014, p. 47, 48).
A análise e a síntese são operações fundamentais ao pensamento. A análise propicia a divisão
mental do todo em partes, facilitando a captação de aspectos específicos. A partir da síntese, as
partes voltam a se unir gerando novas combinações mentais. A análise possibilita a comparação,
a partir da qual se estabelecem diferenças entre os objetos e os fenômenos. “Para comparar-se
é necessário separar aspectos específicos e, ao mesmo tempo, unificá-los em outra configuração
e, assim sendo, a comparação é uma premissa indispensável para a generalização” (MARTINS,
2014, p. 48).

A generalização, por sua vez, possibilita identificar as propriedades de objetos e fenômenos,


“transpondo-os para outros que lhes sejam semelhantes”, destacam-se os traços comuns
indispensáveis às classificações. Esta, por sua vez, se une à abstração. Assim:

[...] A abstração, portanto, pressupõe a representação mental de algo elaborado por


superação de sua imagem sensorial e, nesse sentido, só pode ocorrer a partir de
conceitos. Apenas o pensamento, em sua qualidade de abstração, torna possível o
alcance daquilo que é essencial nos objetos e fenômenos. (MARTINS, 2014, p. 48).

Elencamos as operações aqui expostas a partir de Martins (2014, p. 49) para chegarmos à
conclusão de que o pensamento é produto das mesmas e de que ele se desenvolve a partir da
137

prática. À medida em que se desenvolve, o pensamento se desprende da prática e se firma como


atividade teórica. Todavia, a prática dos homens que se acumula historicamente não deixará de
ser “a base e o critério de exatidão do pensamento, e, da mesma forma, o pensamento nunca
deixará de ser a mediação central da prática social”.

De acordo com as pesquisas de Davidov, Martins (2014, p. 49) afirma que as diferenças entre
os conteúdos do pensamento se expressam em pensamento empírico e pensamento teórico,
cujas distinções citamos a seguir:

[...] o pensamento empírico se constitui como representação derivada diretamente da


atividade objetal-sensorial expressa verbalmente por palavras denominadoras,
identificando-se com as formas primárias de se pensar. Abarca a identidade e as
características distintivas do objeto tal como se revelam em sua existência presente e
imediata, indicando aquilo que o fenômeno é em dadas condições. Esse tipo de
pensamento, mesmo cumprindo uma importante função no processo de construção do
conhecimento sobre a realidade, ainda se revela insuficiente para apreendê-la em suas
múltiplas determinações, dado que demanda o pensamento teórico.

[...] o pensamento teórico expressa-se no estabelecimento de conexões entre os


fenômenos da realidade e entre suas propriedades e características. Operando por
meio de ideias, extrai dimensões do fenômeno que não se revelam sensorial e
imediatamente. Ao apreender aquilo que ele é, apreende também como chegou a sê-
lo e como poderá tornar-se diferente. Assim, apenas pelo pensamento teórico o
homem pode captar a realidade em seu movimento e transformação, isto é, em sua
historicidade. (MARTINS, 2014, p. 49, 50).

Partindo do pressuposto de que o pensamento empírico é dado pela realidade imediata, é fruto
da vivência cotidiana, ele não permite ao indivíduo uma visão total da realidade que o cerca. O
pensamento teórico, em contrapartida, possibilita ao sujeito uma breve elevação – que
discutiremos na abordagem do processo de catarse – que permite ao homem a captação da
realidade em sua historicidade. Dessa forma, faz-se necessário ressaltar que trabalhamos em
prol da superação do conhecimento empírico pelo conhecimento conceitual que se produz a
partir do pensamento teórico.

Martins (2014, p. 50) afirma que a imaginação se une ao pensamento teórico, ela é vista como
uma função tão complexa quanto o próprio pensamento e se manifesta na construção antecipada
da imagem do produto a ser elaborado a partir da atividade. “Graças a ela, o homem pode criar
modelos psíquicos do produto final de uma atividade futura, bem como selecionar os meios
pelos quais possa realizá-la”, pode propor e resolver problemas transformando criativamente a
realidade. O caráter da imaginação é analítico-sintético.
138

[...] Na transformação de representações já construídas, condição para a imaginação,


a análise opera desagregando elementos da imagem existente visando a uma nova
combinação, que, por sua vez, determina nova síntese. Portanto, a origem objetiva da
imaginação é a representação da realidade concreta e seu curso pressupõe a ruptura
de conexões habituais entre dado objeto e dada imagem, tendo em vista novas
conexões, novo objeto, nova imagem, e assim sucessivamente (MARTINS, 2014, p.
50).

Martins (2014, p. 51) nomeia as funções apresentadas até o momento de cognitivas: sensação,
percepção, atenção, memória, linguagem, pensamento e imaginação. Elas são responsáveis pela
construção da “imagem subjetiva da realidade concreta”, ou seja, pela construção “do
conhecimento objetivo”. Importante ressaltar que a realidade concreta “afeta o sujeito do
conhecimento”, suscitando vivências cognitivas e afetivas. Enquanto as funções cognitivas
possibilitam a construção da imagem subjetiva dos objetos e fenômenos, as emoções e
sentimentos se produzem nas relações do indivíduo com o mundo, surgem à medida que objetos
e fenômenos correspondem ou não às suas exigências e necessidades pessoais.

As emoções surgem da atividade cerebral segundo transformações registradas a partir do mundo


exterior. Expressam-se como reflexo sensorial direto, como reação a qualidades isoladas dos
objetos, cumprindo a função de sinalização interna para a orientação da atividade do indivíduo.
Mobilizam mecanismos fisiológicos e possuem um caráter intenso, porém circunstancial. [...].

Os sentimentos, por sua vez, desenvolvem-se por influência da cultura, quando as


reações emocionais, por decisiva influência da linguagem, conquistam significações.
Dependem de objetos e fenômenos em conjunto e não de propriedades isoladas deles,
mobilizando-se por relações entre realidade presente, experiências passadas e
expectativas futuras. Sua expressão é mais prolongada e constante, obedecendo a uma
dinâmica figura/fundo, ao contrário das emoções, que são sempre figuras. Graças às
expressões das emoções e sentimentos, as imagens construídas por meio das funções
cognitivas – como posto, supraindividuais – adquirem também um caráter pessoal
particular (MARTINS, 2014, p. 52).

Dessa forma, as funções afetivas representadas pelas emoções e sentimentos são indissociáveis
das funções cognitivas e caracterizam o psiquismo humano; além disso, se colocam a serviço
da “inteligibilidade do real”. O desenvolvimento psíquico está ligado à construção de
conhecimentos (MARTINS, 2014, p. 52).

Todas as funções psicológicas contribuem, segundo a autora, para a formação de “imagens


mentais”. As imagens mentais apontam para a relação que se estabelece entre sujeito e objeto.
Em relação ao sujeito, ele não somente representa subjetivamente o objeto, mas há graus de
fidedignidade nessa representação. “Ao máximo grau de fidedignidade da representação
subjetiva da realidade chamamos de conhecimento objetivo” (MARTINS, 2014, p. 53). Em
relação ao objeto, a autora afirma que ele é tomado como realidade:
139

[...] Conforme disposto pela filosofia marxiana, a realidade é uma miríade de


fenômenos resultantes da matéria em movimento, de processos naturais e sociais que
se transformam continuamente. A realidade objetiva é, pois, a história de suas
mudanças, de seu movimento constituinte. Tal movimento não se processa de modo
casual, aleatório, mas é produzido na e pela relação ativa homem-natureza. Portanto,
a realidade existe independentemente da consciência dos homens, mas não independe
de sua capacidade para nela intervirem. A representação subjetiva dela, em sua
materialidade, historicidade e essencialidade, é o que compreendemos como
conhecimento objetivo (MARTINS, 2014, p. 53, grifo nosso).

Uma vez que o conhecimento objetivo é o produto da representação subjetiva da realidade que
é construída pelo conjunto de seres humanos ao longo da história, realidade essa que está em
constante movimento produzido pela relação entre o homem e natureza; para que o homem se
aproprie desse conhecimento, tendo condições de observar a realidade em suas múltiplas
determinações, é necessário que ele se aproprie dos conhecimentos elaborados produzidos ao
longo da história, uma vez que tais conhecimentos promoverão o desenvolvimento de sua
subjetividade dentro das máximas potencialidades.

Por meio da relação ativa entre sujeito e objeto, se produz o conhecimento objetivo da realidade,
ela se torna “inteligível”; entretanto, embora o conhecimento seja produzido a partir da
atividade, ela em si não dá conta de produzir o conhecimento. Para isso, faz-se necessário o
ensino. Segundo Martins (2014, p. 53), “a atividade cognoscitiva edifica-se em condições
histórico-sociais de transmissão, isto é, de ensino”. A produção do conhecimento, por sua vez,
requer o desenvolvimento do “pensamento por conceitos”; a partir dessa mediação, a realidade
pode ser captada como “síntese de múltiplas determinações” (MARTINS, 2014, p. 53).

Para a formação do pensamento por conceitos, como temos afirmado nesta tese, o pensamento
teórico, ou seja, a apreensão dos conteúdos da ciência, das artes e da filosofia produzidos ao
longo da história é fundamental, sendo “(...) pré-requisito para a transformação crítica da
realidade. Visa o futuro a partir das possibilidades concretas do presente”. Tal pensamento é
visto como uma conquista do desenvolvimento humano, por se distanciar da visão da realidade
fragmentada a partir das aparências, por superar por meio da incorporação, o pensamento
empírico (MARTINS, 2014, p. 54). A autora enfatiza que, todavia,

[...] essa superação não ocorre espontânea e naturalmente. Ela precisa ser provocada
e, portanto, coloca-se na dependência de condições planejadas e organizadas em face
desse objetivo. Logo, a efetivação da possibilidade de superação do pensamento
empírico em direção ao teórico não se constitui à margem das condições culturais e
materiais de desenvolvimento das funções psicológicas e, da mesma forma, das
condições educacionais disponibilizadas – dado que reitera a importância ímpar do
ensino escolar sobre as dimensões qualitativas dessa formação (MARTINS, 2014, p.
54).
140

Dessa forma, a autora considera que o processo de superação do pensamento empírico pelo
pensamento teórico é uma construção social que depende do processo educativo. Eis a
importância da defesa da pedagogia histórico-crítica na transmissão do saber elaborado, ou seja,
dos conhecimentos que representam ao máximo as conquistas dos seres humanos na ciência, na
arte e na filosofia ao longo da história, que permitem, por meio da prática pedagógica, tornar a
realidade compreensível ao ser humano, promovendo sua humanização. Além disso, com base
no pensamento de Vigotski, Martins (2014, p. 56) afirma que “funções complexas não se
desenvolvem na base de atividades que não as exijam e possibilitem, e essa tarefa deve ser
assumida na prática pedagógica por meio da transmissão dos conhecimentos clássicos”.

Consideramos direito inalienável de todos os indivíduos o seu máximo


desenvolvimento, cabendo à educação escolar trabalhar a serviço deste, promovendo
a conquista das capacidades intelectuais, das operações lógicas do pensamento, dos
sentimentos éticos, enfim, de tudo que garanta, a cada indivíduo, a qualidade de ser
humano. Porém, para a efetivação dessa conquista não podemos partir do princípio
ingênuo de que quaisquer aprendizagens corroboram para sua realização e, nessa
direção, urge superar os ideários que naturalizam a formação humana e preterem a
inteligibilidade do real como necessariedade e direito de todos (MARTINS, 2014, p.
56).

Acreditamos assim que a educação escolar tem como tarefa imprescindível garantir aos homens
o que não seria garantido naturalmente no seio social, o acesso e as condições de apreensão dos
saberes ricamente construídos pelo conjunto de seres humanos ao longo da história. Nesta tese,
interessa-nos dentro das artes a Literatura em especial, cuja riqueza não deve (e não pode) ser
negada aos indivíduos, até mesmo porque a escola pode ser o único meio de contato do
indivíduo com os clássicos, de acordo com as reflexões apresentadas. Por meio de um processo
dialético, ou seja, dominando o que os dominantes dominam, apropriando-se da riqueza
imaterial de natureza intelectual historicamente produzida pelo conjunto dos seres humanos,
mas convertida em propriedade privada pelas camadas burguesas, os filhos da classe
trabalhadora terão condições de, organizando-se coletivamente, se libertarem, superando o
estágio atual de desenvolvimento social.

4.4.1 O processo educativo e o desenvolvimento psíquico

Partindo da compreensão de que a pedagogia histórico-crítica se articula à psicologia histórico-


cultural, por ambas se assentarem no materialismo histórico e dialético e por discutirem que
não é qualquer modelo de educação que se coloca a serviço do desenvolvimento do psiquismo;
141

Martins (2015) analisa o papel da educação escolar no desenvolvimento psíquico, trazendo à


luz o estabelecimento de uma relação entre a educação escolar e a formação da imagem
subjetiva da realidade. Para ela,

[...] o desenvolvimento do psiquismo humano identifica-se com a formação dos


comportamentos complexos culturalmente instituídos, isto é, com a formação das
funções psíquicas superiores, [onde] radica a afirmação do ensino sistematicamente
orientado à transmissão dos conceitos científicos, não cotidianos [...] (MARTINS,
2015, p. 269).

Em outras palavras, o desenvolvimento do psiquismo, das funções psíquicas superiores está


diretamente ligado à apreensão de conceitos científicos, filosóficos, artísticos culturalmente
produzidos pelos seres humanos ao longo da história. Já mencionamos na presente tese que não
é qualquer tipo de conhecimento que se colocará a serviço do desenvolvimento psíquico do
sujeito, muito menos qualquer corrente pedagógica. Na verdade, as correntes pedagógicas do
“aprender a aprender” não se preocupam com a transmissão do saber elaborado, mas sim com
as habilidades e competências que os alunos deverão adquirir para integrar o mercado de
trabalho.

Abrimos aqui um parêntese para a compreensão do que seriam as funções psíquicas superiores.
De acordo com Martins (2020, p. 15), Vigotski buscou explicitar a origem das transformações
psíquicas, diferenciando aquelas advindas da vida em sociedade, daquelas legadas pela
natureza. Assim divide em “funções psíquicas elementares” as que realizam respostas imediatas
aos estímulos e expressam relação direta entre sujeito e objeto; e “funções psíquicas
superiores”, as que não advém da evolução biológica, mas das transformações “condicionadas
pela atividade que sustenta a relação do indivíduo com seu entorno físico e social, ou seja,
resultam engendradas pelo trabalho social”. Dessa forma, compreendemos que as funções
psíquicas superiores irão requerer para seu desenvolvimento estímulos diferenciados, dos quais
seguiremos tratando no decorrer desta seção. A autora enfatiza que – segundo os estudos do
psicólogo – a partir do trabalho que é fator para humanização do psiquismo, deve-se obter a
ruptura entre os estímulos e respostas, de modo que o indivíduo estabeleça o “autocontrole” da
conduta para “os atos voluntários orientados pela consciência”.

Para Vigotski, na base da formação da consciência existe um sistema instituído pelas


funções psíquicas, de sorte que a complexificação das referidas funções condiciona
os alcances da consciência. Todavia, a transformação das funções psíquicas
elementares em funções psíquicas superiores revela-se um processo condicionado, e
Vigotski (VIGOTSKY, 1997) identificou no signo o condicionante nuclear da
requalificação do sistema psíquico humano (MARTINS, 2020, p. 15).
142

O signo possui especial destaque para a psicologia histórico-cultural, à medida que ele
condiciona o desenvolvimento do psiquismo. Segundo Martins (2020, p. 16), Vigotski
reconhece os signos como meios que auxiliam o ser humano na solução de tarefas psicológicas
e “analogamente às ferramentas ou instrumentos técnicos de trabalho, exigem adaptação do
comportamento a eles, do que resulta a transformação psíquica estrutural que promovem”,
assim “o real significado do papel do signo na conduta humana só pode ser encontrado na
função instrumental que assume”.

Partindo do princípio segundo o qual o homem é um ser social, cujo desenvolvimento se assenta
nas conquistas das gerações passadas, Martins (2015) afirma que o processo de aquisição dos
comportamentos complexos culturalmente formados é dependente das objetivações construídas
pelo homem ao longo da história, sendo o desenvolvimento psíquico resultado da apropriação
de signos. Já os processos de internalização, que se “interpõem entre os planos das relações
interpessoais (interpsíquicas) e das relações intrapessoais (intrapsíquicas)”, se constituem a
partir das objetivações humanas que são ofertadas a cada indivíduo pela mediação de outros
sujeitos por meio do processo educativo.
Se, por um lado, o patrimônio material e ideal se coloca como dado para apropriação,
por outro e ao mesmo tempo, é tido como condição imprescindível do processo de
transformação de um ser hominizado, isto é, que dispõe de dadas propriedades
naturais filogeneticamente formadas, em um ser humanizado, isto é, que se
(trans)forma por apropriação da cultura [...].
Transformar, do latim transformare, significa conferir outra forma por superação dos
limites da forma anterior ou conquistar outro estado ou condição. Conforme disposto
por Vigotski, no cerne da transformação dos indivíduos reside a internalização de
signos, condição sine qua non para as referidas formação e transformação. Destarte,
a qualidade dos signos disponibilizados à internalização e as condições nas quais ela
ocorre não são fatores alheios ao alcance da formação conquistada. (MARTINS, 2015,
p. 272).

Portanto, conforme Martins (2020, p. 16) afirma, quem medeia o processo de elevação da
subjetividade é o signo, mas este é disponibilizado por outro ser social que já o domina. O
conceito de mediação – no âmbito da psicologia – é visto como uma interposição que provoca
transformações, potencializando o trabalho. “Trata-se de um processo que ocorre em atividades
específicas, que, valendo-se de suas propriedades essenciais, permitem aos seus integrantes
exercerem entre si uma influência recíproca da qual depende a consecução dos objetivos da
atividade em pauta” (MARTINS, 2020, p. 16).

[...] Vigostki, ao propor os signos na qualidade de “instrumentos” do psiquismo,


estava referindo-se ao universo simbólico pelo qual os objetos e fenômenos da
realidade concreta conquistam outra forma de existência: a forma de existência
abstrata consubstanciada na imagem subjetiva da realidade objetiva. E a essa imagem,
143

tornada consciente por meio da palavra, compete orientar o comportamento do sujeito


na referida realidade. Esse universo simbólico, por sua vez, resulta da atividade
coletiva objetivada na cultura e, sendo assim, revela-se uma produção supraindividual
a ser compartilhada entre os homens e transmitida às novas gerações, ou seja, exige o
ensino (MARTINS, 2020, p. 17).

A partir da percepção de que a palavra representa o signo de modo a orientar o comportamento


do sujeito na realidade, a autora trata da importância do significado da palavra para Vigotski,
uma vez que – ao ser convertida em ato de pensamento – ela representa não somente seu próprio
conteúdo, mas também se impõe como generalização ou conceito. Portanto, o psicólogo
afirmou ser o desenvolvimento da fala um “salto qualitativo na humanização do psiquismo, à
medida que ela resulta do entrecruzamento de pensamento e linguagem, funções que em suas
origens seguem linhas distintas e independentes de desenvolvimento” (MARTINS, 2020, p.
17). Por consequência, a autora vai afirmar que o desenvolvimento da linguagem e do
pensamento guarda estreita relação com o processo de complexificação da palavra:

No que tange a essa complexificação, Vigotski e Luria (VIGOTSKY; LURIA, 2007)


apontaram que, no princípio do desenvolvimento da fala, a palavra apresenta-se como
mera extensão do objeto, ou como representação do “objeto em si” – quando a face
fonética prepondera sobre a face semântica. Sendo assim, a complexificação da
palavra pressupõe a transição de correlações mais diretas e condição requerida ao
desenvolvimento do pensamento abstrato e função precípua da educação escolar que
o tenha como objetivo. Em nosso entendimento, essa proposição corrobora uma das
teses centrais da pedagogia histórico-crítica: à educação escolar cabe promover a
formação de conceitos, naquilo que apresentem como “rica totalidade de
determinações e de relações numerosas” (MARS, 1973, p. 229). Tais conceitos foram
denominados por Vigotski como verdadeiros conceitos e por Saviani como conceitos
clássicos (MARTINS, 2020, p. 17).

Consideramos, juntamente com Martins (2020, p. 17), a internalização de signos como


intermédio entre psicologia histórico-cultural e pedagogia histórico-crítica, uma vez que para
ambas “a socialização/transmissão do universo simbólico culturalmente formado” está no
centro de seus destaques sobre o desenvolvimento humano. Compreendemos, entretanto, que,
se a qualidade dos signos disponibilizados à internalização e as condições em que o processo
ocorre não são adequados, a transformação não acontece tal como deveria, o indivíduo não
alcança o desenvolvimento de suas funções superiores. Por isso, um currículo que promove o
esvaziamento do papel da escola, eliminando conteúdos científicos, filosóficos e artísticos, sob
a justificativa de utilização do conhecimento tácito, fruto da vivência cotidiana do aluno, não
presta serviço ao desenvolvimento psíquico. Reiteramos para que não se esqueça: se não for
para transmitir os saberes elaborados na forma de conhecimentos e conteúdos sistematizados e
organizados produzidos pelo homem ao longo de sua história, a existência da escola não se
144

justifica, uma vez que as aprendizagens cotidianas acontecem no seio social espontaneamente
ou semiespontaneamente, não necessitando, para tal, da forma de organização social que é
própria da escola no estágio atual de nosso desenvolvimento. Dessa forma, de acordo com
Martins (2015, p. 272), compete à escola oportunizar por meio da transmissão desse
conhecimento, “o enriquecimento do universo de significações -, tendo em vista a elevação para
além das significações mais imediatas e aparentes disponibilizadas pelas dimensões meramente
empíricas dos fenômenos”.

A autora pondera que os conhecimentos transmitidos na escola devem ser avaliados em sua
natureza. Para isso, destaca duas observações relevantes relacionadas à formação da imagem
subjetiva da realidade e à construção de conhecimentos:

A primeira delas diz respeito à afirmação da possibilidade de que na relação ativa


sujeito-objeto se construa o conhecimento objetivo sobre a realidade, tornando-a
inteligível. No esteio do materialismo dialético, o referido conhecimento se identifica
com a construção dessa imagem por meio da captação, pela consciência, daquilo que
existe fora e independentemente dela. Essa captação, por sua vez, subjuga-se à
identificação dos objetos e fenômenos no complexo sistema de relações que
comportam sua existência objetiva e, assim sendo, não resulta meramente do contato
sensorial direto do sujeito em face do objeto.

A segunda observação refere-se à própria concepção marxista de realidade, isto é, à


afirmação de que a realidade, e tudo que a constitui, possui existência objetiva, de
maneira que as sensações, as ideias, os conceitos etc. não emergem da consciência
humana a partir dela mesma, mas originam-se da materialidade do real. O mundo
objetivo é que será captado pelos sentidos e representado pela consciência, a quem
compete torná-lo cognoscível ao sujeito (MARTINS, 2015, p. 273, grifo nosso).

A partir das discussões da autora, podemos perceber, portanto, que não é qualquer
conhecimento que promoverá o desenvolvimento do sujeito, tampouco o simples contato entre
sujeito e objeto possibilitará a construção do conhecimento objetivo da realidade, até mesmo
porque a captação da realidade objetiva não resulta de um mero contato sensorial, mas de uma
atividade intencional, planejada, sistemática guiada pelo par mais desenvolvido que ali se
coloca como portador do signo a ser transmitido. A realidade objetiva, segundo Martins (2015,
p. 273), está em mudança constante, sendo um conjunto de fenômenos que resultam de
processos naturais e sociais em constante transformação. Nessa perspectiva, segundo a autora,
“nenhuma apreensão circunstancial e imediata da realidade pode ser representativa de sua mais
completa decodificação”. A realidade objetiva somente pode ser captada como síntese de
múltiplas determinações, para além das aparências.
145

Uma vez que as formas mais complexas do pensamento se instituem por meio da apropriação
de signos culturais, o conhecimento cotidiano, as sensações figurativas não dão conta dessa
atividade. Martins (2015, p. 276) afirma que os saberes da vida cotidiana, os que não são
passíveis de sistematização, permitem apenas que o homem chegue ao nível dos
pseudoconceitos. Sobre isso, a autora considera que:
[...] não é ao nível dos pseudoconceitos, dos quais resultam pseudoconhecimentos,
que os seres humanos conquistam a inteligibilidade do real, isto é, representam na
forma de imagem subjetiva a realidade objetiva com a máxima fidedignidade. Os
conceitos requeridos para tanto são, por sua vez, mediações culturais do
desenvolvimento psíquico; operam como ferramentas, como instrumentos
psicológicos para a orientação da conduta e para o enfrentamento das tarefas
requeridas no trato com a realidade. Como tal, são objetivações histórico-sociais e não
“descobertas” construídas particularmente pelos indivíduos. Na qualidade de
objetivações, os conceitos, na exata acepção do termo, precisam ser disponibilizados
a cada geração para que deles se aproprie, dado que nos remete à questão da
aprendizagem e do ensino (MARTINS, 2015, p. 276, 277).

A autora afirma desse modo que a instrução é condição para o desenvolvimento. A defesa do
ensino de conhecimentos científicos é feita tanto pela pedagogia histórico-crítica – que preza
por diferenciar qualitativamente a educação formal de educações cotidianas, assistemáticas e
informais por meio da seleção de conteúdos sistematizados, do planejamento intencional e das
ações didáticas específicas – quanto pela psicologia histórico-cultural a partir dos estudos de
Vigotski:
[...] para quem a formação de conceitos reorganiza todas as funções psíquicas, ou seja,
requalifica o sistema psíquico. Conforme o autor, ao requalificar as funções psíquicas,
a aprendizagem escolar cumpre uma de suas principais funções – incidir na
personalidade dos indivíduos, posto que nela sintetizam-se todas as propriedades
culturalmente formadas (MARTINS, 2015, p. 278).

Dessa forma, compreendemos que a educação deve ter como principal objetivo a socialização
do saber elaborado construído ao longo da história pelo conjunto de homens, uma vez que a
requalificação das funções psíquicas incide na personalidade do aluno. O desenvolvimento de
conceitos, segundo os estudos de Martins (2015, p. 280) sobre os escritos de Vigotski, exige
uma série de funções como comparação, generalização, etc. São processos bastante complexos
que se desenvolvem apenas a partir da apreensão de conceitos científicos.

Soma-se a isso o fato de que Vigotski, segundo Martins (2015), demonstrou que os conceitos
científicos não se desenvolvem como os conceitos cotidianos. Em relação às crianças e ao
processo de educação, destaca que os conceitos científicos se formam não como aquisição de
memória, mas por meio de tensões de atividades que fomentam o pensamento, não são,
portanto, ações isoladas ou casuais. Além disso, os conceitos científicos e os conceitos
146

cotidianos têm traços comuns, sendo tênue a diferença entre ambos; todavia, ao observar a
qualidade de desenvolvimento do pensamento, os científicos são superiores aos cotidianos. Por
último, o ensino de conceitos se dá ao longo de toda a idade escolar (MARTINS, 2015, p. 281).

A autora considera ainda que, segundo Vigotski, não é possível esperar um salto espontâneo de
generalização dos conceitos espontâneos para os científicos. Caso não se prime pelo ensino de
conceitos científicos, a capacidade de pensar e a formação de consciência do indivíduo ficam
comprometidas. O papel da escola deve ser o de mediar a superação do saber espontâneo em
direção ao saber sistematizado. Por isso, a importância da escola na transmissão de conteúdos
clássicos, uma vez que:
O ensino dos conceitos científicos, diferindo radicalmente do ensino calcado em
conceitos espontâneos, engendra transformações nas atitudes do sujeito em face do
objeto, posto que, em última instância, os conceitos científicos são mediados por
outros conceitos em um sistema de conexões internas, apresentando o objeto ao
pensamento de forma multilateral e profunda. A tomada de consciência dos conceitos
científicos pressupõe, necessariamente, o processo de generalização e abstração [...]
(MARTINS, 2015, p. 284).

Entende-se que, segundo a autora, somente o ensino de conceitos científicos possibilita ao


sujeito a transformação da capacidade de análise sobre o real, o desenvolvimento de sua
consciência em suas máximas possibilidades. Vigotski aponta em seus estudos os conceitos de
nível de desenvolvimento real e área do desenvolvimento iminente.

Para o pensador, de acordo com Martins (2015), o nível de desenvolvimento real mostra as
“conexões interfuncionais já estabelecidas pela criança”, que podem ser identificadas a partir
de tarefas que ela realiza sozinha. Todavia, quando uma criança realiza uma ação e demonstra
a assimilação de determinado conceito, o desenvolvimento apenas está começando.

[...] Assim, Vigotski considerou que as finalidades do reconhecimento desse “nível”


no trabalho pedagógico não se limitam à mera constatação daquilo que a criança é
capaz de realizar por si mesma, mas no fornecimento de elementos que orientem o
trabalho na área de desenvolvimento iminente, isto é, na direção de outras e mais
complexas relações interfuncionais (MARTINS, 2015, p. 287).

Ao desenvolver relações cada vez mais complexas, a criança evolui intelectualmente, isso
acontece apenas por intermédio do ensino. Existe um vínculo entre a área de desenvolvimento
real e a iminente que é representado pela “complexificação das funções psíquicas que pautam
as tarefas do ensino, no qual a referida área se apresenta como superação do nível de
desenvolvimento real na direção da formação de conceitos”, eis o motivo pelo qual ao nível de
desenvolvimento real, a formação de conceitos tem apenas seu início (MARTINS, 2015, p.
147

287). Para que o processo de formação de conceitos aconteça, faz-se necessário, conforme
vimos afirmando, uma formação sólida dos docentes que os leve à condição de – enquanto
portadores do signo – mediar a aprendizagem dos discentes, promovendo um ensino que vise
ao desenvolvimento do sujeito.

Por isso, a pedagogia histórico-crítica defende a transmissão dos saberes elaborados, como
conhecimentos historicamente sistematizados, alinhando-se às exigências do “desenvolvimento
das capacidades humanas complexas, do autodomínio da conduta, em suma, dos processos
funcionais superiores” (MARTINS, 2015, p. 275).

Funções complexas, segundo a autora, que se baseia nos estudos de Vigotski e Leontiev,
somente se desenvolvem a partir de atividades que as exijam e as possibilitem. Os
condicionantes primários para o desenvolvimento do psiquismo estão associados ao grau de
complexidade que se requer nas ações dos indivíduos e na qualidade das mediações
disponibilizadas para sua execução. Por isso, a necessidade de um trabalho educativo realizado
de maneira adequada, com planejamento, visando a transmissão do saber elaborado que se
relaciona diretamente à formação de funções psíquicas superiores e ao consequente processo
de desenvolvimento do indivíduo.
Ao privilegiar o ensino dos conhecimentos historicamente sistematizados, dos
conhecimentos clássicos, a pedagogia histórico-crítica faz uma defesa absolutamente
alinhada às condições requeridas para o desenvolvimento omnilateral dos sujeitos, no
que se inclui a formação de um psiquismo apto a orientar a conduta na base de
operações lógicas do raciocínio – análise, síntese, comparações, generalizações e
abstrações -, do autocontrole da conduta, dos sentidos éticos e estéticos, em suma,
apto a sustentar a atividade como unidade afetivo-cognitiva própria a um ser humano.
Defende também que as ações de ensino desenvolventes não são aquelas que
meramente reproduzem a vida cotidiana, em seu funcionamento tipicamente
espontâneo, assistemático, mas aquelas que requerem e ao mesmo tempo promovem
a complexificação das funções psíquicas (MARTINS, 2020, p. 19).

Reiteramos que o ensino que visa ao desenvolvimento humano – ensino desenvolvente, nas
palavras de Martins – deve se pautar na transmissão de conteúdos clássicos a partir de atividades
que exijam a formação de funções complexas e consequentemente promovam o enriquecimento
do universo simbólico do sujeito. A formação de conceitos, segundo Martins (2020, p. 19), é o
meio mais adequado de se conhecer a realidade. Para que se desenvolva o pensamento, a autora
afirma que devem ocorrer mediações cada vez mais abstratas entre as impressões concretas
elaboradas a partir da captação da realidade, “[tal processo] requer o estabelecimento de
relações e generalizações entre distintos objetos à vista do ordenamento e sistematização da
experiência individual e da imagem subjetiva dela resultante”. A origem do desenvolvimento
148

do pensamento está no material que se extrai a partir da captação sensorial e na ampliação do


mesmo, isso porque é na tensão entre concreto e abstrato que as operações lógicas de raciocínio
são impulsionadas. A autora coloca ainda que tal tensão não acontece espontaneamente,

[...] ela precisa ser provocada, instigada, dado que nos permite afirmar a educação
escolar como uma importante condição na geração dessa tensão e o ensino dos
conceitos científicos como criação de “desconfiança” em relação ao imediatamente
evidente na realidade concreta. Entendemos que o raciocínio “nasce do ventre” dessa
“desconfiança”. O raciocínio, por meio de suas operações lógicas se impõe, então,
como necessidade ao conhecimento do objeto, quando esse conhecimento, radicado
na captação sensível, mostra-se parcial e insuficiente, ou seja, o raciocínio começa
quando o conhecimento sensorial revela-se insuficiente no atendimento aos motivos
da atividade (MARTINS, 2020, p. 20).

O raciocínio se desenvolve, portanto, à medida em que se desenvolve a subjetividade do


indivíduo e vice-versa. Percebe-se, dessa forma, que sem ensino adequado, planejado,
sistematizado, o pensamento não atinge maior complexidade e abstração, não corroborando,
consequentemente, o desenvolvimento da consciência. Esta supera, por incorporação, “as bases
elementares e estruturais do psiquismo – inclusive as orgânicas -, e o núcleo dessa superação
radica na formação de conceitos, que sintetiza (...) o movimento evolutivo do pensamento
(MARTINS, 2020, p. 20).

Martins (2020, p. 20) reitera que – segundo Vigotski – o ensino é condição primária para que o
desenvolvimento aconteça; há entre ensino e desenvolvimento uma relação de interdependência
e de reciprocidade, que se pode explicar a partir do conceito de unidade dialética entre
“quantidade e qualidade”. “A “quantidade” de aprendizagens promovidas pelo ensino qualifica
o desenvolvimento, à mesma medida que a “quantidade” de desenvolvimento alcançado
qualifica as possibilidades para o ensino”. Assim, a tese central do psicólogo está na constatação
de que o desenvolvimento humano se dá por intermédio de contradições biológicas e culturais.
Sobre as contradições, a autora enfatiza que:

[...] Tais contradições, por sua vez, são instaladas, isto é, provocadas pela vida social
conforme a apropriação dos signos da cultura. Vale observar, nesse enfoque, a
concepção dialética de desenvolvimento apresentada pelo autor, uma vez que sendo
processo o desenvolvimento é movimento, e, como todo movimento, encerra
contradições internas que o movem. Esse preceito metodológico assume importância
ímpar para a análise da periodização do desenvolvimento evidenciando,
primeiramente, que o desenvolvimento não resulta nem do polo sujeito nem do polo
objeto (condições sociais de vida), mas da natureza e da qualidade das mediações
interpostas entre ambos. Por conseguinte, os dispositivos biológicos naturais –
“localizados” no polo sujeito, a exemplo da idade cronológica – não são os parâmetros
reais que balizam a evolução / transformação dos períodos experienciados pelos
indivíduos (MARTINS, 2020, p. 21).
149

Uma vez que o desenvolvimento se dá de forma processual e se dá a partir da dialética entre


quantidade e qualidade, percebe-se que – conforme vimos afirmando nesta tese – não é qualquer
tipo de educação que proporcionará desenvolvimento. Para a psicologia histórico-cultural não
podem ser desprezados, segundo Martins (2020, p. 21), a seleção dos conteúdos e a forma pela
qual a aprendizagem ocorre; complementarmente, a pedagogia histórico-crítica afirma que a
partir do planejamento intencional “de forma e conteúdo, de ações didáticas e saberes
historicamente sistematizados que a educação escolar se diferencia qualitativamente das demais
formas de educação informais, assistemáticas e cotidianas”.

De acordo com Martins (2020, p. 21, 22), a pedagogia histórico-crítica afirma que os conteúdos
prescreverão as formas que, por sua vez, requisitam ou não determinado grau de complexidade
psíquica. “Urge explicitar, então, que o planejamento pedagógico fundamentado nessa teoria
pedagógica assenta-se na tríade forma-conteúdo-destinatário, de sorte que nenhum desses
elementos, esvaziados das conexões que os vinculam, podem de fato orientar o ato de ensinar”
(MARTINS, 2020, p. 22). Dessarte, a forma por meio da qual o conteúdo será apresentado e a
seleção de qual conteúdo será apresentado poderão incidir diretamente na formação do
pensamento por conceitos, no desenvolvimento da subjetividade do indivíduo. A autora lembra
que o aluno (destinatário) de que se fala não é o ser empírico, mas o ser visto em sua concretude
como síntese de múltiplas determinações.

Assim, o ensino de conceitos científicos (dos conceitos autênticos) supera em qualidade o


ensino de conceitos cotidianos. Martins (2020, p. 23) aponta para o fato de que, nos estudos de
Vigotski, o processo de desenvolvimento de conceitos exige do indivíduo uma série de funções,
articulando-se a elas: atenção, memória lógica, generalização, abstração, dentre outros. Dessa
forma, “diante de processos tão complexos, não pode ser simples o processo de instrução
escolar que vise de fato a esse desenvolvimento”.

A autora considera ainda que – para Vigostki – os conceitos científicos se formam a partir da
tensão problematizadora de diversas atividades que “colocam o pensamento em curso”, dessa
forma, o ensino de conceitos científicos não se dá por meio de ações separadas, mas “como
expressão do próprio processo de desenvolvimento psíquico da criança articulado ao processo
de transmissão de conhecimentos” (MARTINS, 2020, p. 24).
150

Ao considerar que a formação de conceitos se dá a partir da relação “tripartida e sistêmica”


entre conceitos espontâneos, seus objetos e conceitos científicos, Martins (2020, p. 24) afirma
que caberá ao ensino confrontar os conceitos espontâneos por intermédio dos conceitos
científicos, “ampliando a decodificação abstrata do objeto (que é o mesmo para ambos os tipos
de conceitos, posto representar a realidade concreta a que se visa conhecer), e, com isso,
transformar continuamente o sistema consubstanciado na referida tríade”.

Ressalta-se que não haverá formação de conceitos científicos, caso não haja estímulos
adequados, uma vez que o ensino de conceitos científicos engendra transformações “nas
atitudes do sujeito em face do objeto, uma vez que, em última instância, os conceitos científicos
são mediados por outros conceitos em um sistema de conexões internas que apresenta o objeto
ao pensamento”, de modo cada vez mais profundo (MARTINS, 2020, p. 25).

Assim, a formação de conceitos se faz presente em todos os níveis da educação escolar, e mais,
o tipo de ensino interfere diretamente na formação psíquica do indivíduo. Martins (2020, p. 24,
25) ainda apresenta que na qualidade dos conteúdos de ensino se dá a formação da consciência
que radica na formação dos processos funcionais superiores, possibilitando o desenvolvimento
do “autocontrole da conduta”. Não se formam alunos críticos, cidadãos participativos por meio
de um ensino carente ou esvaziado de conteúdos científicos. Nosso próximo objetivo é abordar
o cérebro do adolescente e o desenvolvimento da subjetividade a partir do estudo como
atividade-guia; todavia, antes de adentrarmos nessa seara, trataremos mais detalhadamente do
desenvolvimento dos processos funcionais a partir da educação escolar.

4.4.1.1 Educação escolar e desenvolvimento dos processos funcionais

No início da seção 4.4, refletimos brevemente o fato de que o psiquismo se estrutura por meio
de funções psicológicas, a saber: sensação, percepção, atenção, memória, linguagem,
pensamento, imaginação, emoção e sentimento; entendidos como processos funcionais que
devem ser analisados em uma totalidade, tais funções se desenvolvem, segundo Martins (2015,
p. 208), principalmente a partir do ensino escolar.

Sobre a sensação, destaca-se que, mesmo sendo um mecanismo primário, o meio natural não
promove seu desenvolvimento, assim a importância do processo educativo para que a criança
discrimine propriedades de objetos, desenvolva sensações visuais e sinestésicas, gustativas,
151

proprioceptivas por meio da música, da dança, do esporte, dos diferentes sabores, de diferentes
atividades direcionadas a tal fim. Constatando que a sensação é educável, ela deve ser
reconhecida como objeto da educação escolar (MARTINS, 2015, p. 299).

A percepção, de igual modo, é dependente do processo educativo. Seu desenvolvimento se dá


a partir do vínculo com a realidade e com as mediações culturais, por intermédio da
comunicação com o adulto que permite à criança conhecer o mundo “destacando a
multiplicidade de signos que o constituem, ensinando-a a atuar com eles e por meio deles”,
induzindo a superação da percepção elementar em direção a uma percepção propriamente
humana (MARTINS, 2015, p. 299).
Nessa direção, o ensino escolar, na medida da natureza das ações realizadas, alia-se
às condições objetivas de desenvolvimento dessa função. As exigências fundamentais
de observação, a atividade dirigida com vista à consecução de dado objetivo, a
apreensão sistemática e detalhada de objetos e fenômenos, a comparação,
generalização, abstração são, dentre outros, alguns dos aspectos que vinculam o
ensino sistematizado e a percepção (MARTINS, 2015, p. 299).

A percepção – por sua vez – requer o desenvolvimento da atenção em direção à atenção


voluntária – para além do interesse imediato – que se forma a partir do ensino. Para o
desenvolvimento do que a autora denomina “atenção superior”, é necessário permitir que o
indivíduo se aproprie do conhecimento do mundo que o cerca, “organizando sua percepção
sobre ele e dirigindo sua atenção, tendo em vista a análise, a discriminação, a síntese (...),
ativando formas de pensamento as quais a atenção corrobora para a identificação do essencial”,
que vai além do que é mais atrativo ou mais atraente para a criança (MARTINS, 2015, p. 300).

O desenvolvimento da atenção voluntária, da percepção e da sensação colaboram – operando


em unidade – para a “ampliação do círculo de representações psíquicas, do enriquecimento de
conhecimentos e hábitos transpostos na forma de ato atencional voluntário”. A atenção
voluntária somente se desenvolverá a partir da educação se houver atividades que a colocam
como requisito, e ela mesma é premissa para a formação conceitual, uma vez que a “forma
superior de atenção (...) mantém estreitas conexões com o pensamento em conceitos e,
especialmente, com os conceitos científicos” (MARTINS, 2015, p. 300, 301).

A autora entende a importância do adulto enquanto mediador da criança, partindo do princípio


de que as mudanças que possibilitam a passagem da atenção e da memória involuntárias a
voluntárias são processos com ponto de partida exógeno, ou seja, são induzidas externamente,
dependem de ações e operações sociais a partir das quais pode se conquistar o autocontrole.
152

Assim, “o adulto (no caso, o professor) ‘cede de empréstimo’ o desenvolvimento de seu


psiquismo às crianças” (MARTINS, 2015, p. 301).

Sobre a memória, Martins (2015, p. 301) destaca ser o ponto de apoio primário do pensamento;
todavia, é importante diferenciar que a memorização mecânica e involuntária é diferente
daquela “culturalmente formada”, da “memória histórica”. Enquanto a memória natural permite
o registro de situações casuais, a memória “culturalmente formada” é um processo que depende
da vontade do indivíduo, condição para que se una a outros processos superiores como a
linguagem, o pensamento, os sentimentos e a imaginação. A memória “retentiva voluntária”
supera a memorização mecânica a partir da apropriação dos signos, mas a mudança não é
natural, depende das modificações de atividades realizadas pelo próprio indivíduo ao longo de
sua existência. Desse modo, o ensino escolar tem papel fundamental na formação da dimensão
retentiva voluntária da memória.
A natureza da atividade escolar promove modificações na organização de todo esse
processo, convertendo-o em premissa e ao mesmo tempo resultado da aprendizagem.
Tais modificações unem-se ao desenvolvimento do pensamento, do qual dependem o
incremento da mente, essa complexificação mnêmica sofre decisiva influência do
desenvolvimento da linguagem, graças à qual ampliam-se as conexões interfuncionais
e o grau de sistematização com que operam (MARTINS, 2015, p. 302).

Conforme podemos perceber, o desenvolvimento da memória está estritamente ligado ao


desenvolvimento da linguagem, o ensino possui a base de características que se destinam a esse
fim. Dentre eles, Martins (2015, p. 302) destaca a organização, a sistematização, o
estabelecimento de “relações e conexões internas entre os objetos e fenômenos percebidos,
mediando a percepção de conceitos lógicos, abstratos e, sobretudo, pelo domínio de
significados a eles vinculados”. Dessa forma, a organização do trabalho pedagógico que fornece
técnicas dependentes de memória, seja escrita, leitura, atividades de fixação, técnicas
instrumentais vinculadas à atividade, que demandam combinação de procedimentos
inicialmente naturais e depois artificiais vão aos poucos “graças à internalização de signos, (...)
se colocando a serviço das funções culturais de memorização” (MARTINS, 2015, p. 302),
propiciando o desenvolvimento da memória superior.

Assim como o pensamento resulta da apropriação de cultura, a linguagem também depende da


ação do outro, a partir de um processo complexo que vai muito além da capacidade para falar,
sendo que seu pleno exercício depende da qualidade de ensino a que se submete. Segundo
Martins (2015, p. 303),
153

[...] se por meios espontâneos a criança aprende a falar, apenas por procedimentos
específicos de ensino pode reorganizar essa capacidade, apreendendo os elementos da
linguagem e sua utilização tanto no discurso coordenado quanto na própria
organização do pensamento. O domínio da linguagem se realiza, pois, no processo
ativo que vai além da assimilação do material fonético, da aprendizagem e domínio
do aparato verbal e do entendimento geral da língua (MARTINS, 2015, p. 303).

Reiteramos que a educação – uma educação de qualidade – tem papel fundamental na


organização do pensamento com vistas ao domínio da linguagem que não se dá de forma
mecânica, mas é dependente de processos organizados. A autora destaca que a educação escolar
tem papel fundamental no desenvolvimento de domínios “fonéticos, semânticos, gramaticais
(...) e cognitivos” com vistas ao desenvolvimento da linguagem. Este, por sua vez, ultrapassa o
domínio do código, uma vez que se estabelecem relações complexas entre a linguagem e os
processos funcionais. As relações entre linguagem e pensamento, “a história de
desenvolvimento do significado da palavra, a unidade entre palavra e imagem psíquica são
algumas das questões a serem levadas em conta no processo de ensino escolar” (MARTINS,
2015, p. 303).

Dessa forma, podemos perceber que o ensino escolar contribui para a formação e para o
desenvolvimento dos processos funcionais, sendo indispensável ao desenvolvimento do
pensamento. O ápice da educação escolar, segundo a autora, é possibilitar a formação de
conceitos que proporciona ao sujeito o conhecimento verdadeiro da realidade que o cerca.
“Como resultado dos domínios do pensamento por conceitos e, particularmente, dos conceitos
científicos, é que a dinâmica do mundo objetivo refletida na forma de dinâmica de conceitos se
institui como conteúdo da consciência, balizando (...) a concepção construída” sobre a realidade
e sua consequente compreensão. A educação escolar, portanto, corrobora o desenvolvimento
do pensamento teórico, “uma vez que o conceito (...) eleva a mera vivência à condição de saber
sobre o vivido, isto é, permite avançar da experiência ao entendimento daquilo que a sustenta
– condição imprescindível para as ações intencionais” (MARTINS, 2015, p. 304).

As transformações da percepção, atenção, memória e demais funções, segundo a autora, não


são modificações isoladas, mas formam o sistema psíquico como um todo, a partir do qual as
funções “se intelectualizam e passam a ser regidas pelo pensamento conceitual”. Investir em
uma educação que vise o desenvolvimento do pensamento complexo, que vise ao “autocontrole
da conduta” é tarefa imprescindível à formação de indivíduos livres, sujeitos de sua própria
154

história. A partir do desenvolvimento do pensamento complexo, pode-se dizer que a educação


incide sobre a personalidade:
A formação de conceitos genuínos não intervém apenas no pensamento, já que para
isso são requeridas diversas combinações funcionais que, em última instância,
sustentam a maneira de ser da pessoa. Nisso reside o maior alcance do pensamento
conceitual: a consciência da realidade e da própria personalidade (MARTINS, 2015,
p. 304).

Ainda na discussão sobre a formação de conceitos, pensando nas conexões funcionais que tal
formação requer, Martins (2015, p. 305) afirma que ela age também sobre a imaginação e sobre
as questões afetivas. Partindo do princípio de que imaginação e criatividade não são processos
naturais desconexos da consciência humana, a autora reconhece que “apenas a liberdade interna
do pensamento, do conhecimento e da ação, alcançada tão somente pela formação dos
conceitos, possibilita-lhes existir objetivamente” (MARTINS, 2015, p. 305).

Combatendo a noção segundo a qual a imaginação e a fantasia seriam – sob concepção


naturalizante – totalmente dependentes da vida emocional, desconsiderando o vínculo
cognitivo, Martins (2015, p. 305) afirma que Vygotski deixou bastante claro em seus estudos
que a imaginação – assim como as outras funções – deve ser desenvolvida a partir da
apropriação de conceitos científicos, o que propicia o desenvolvimento psíquico. Contrariando
as orientações impostas pelos documentos oficiais que regem a educação nacional, segundo as
quais a criatividade do aluno deveria se dar a partir de seu conhecimento de mundo, a autora
reflete que:
[...] a imaginação, a criatividade e a fantasia não são “entes autônomos”,
independentes de todo o sistema psíquico. Pelo contrário, seu desenvolvimento se
vincula, sobretudo, à formação do pensamento teórico e resulta desta, isto é, vincula-
se a um alto grau de desenvolvimento conceitual. Apenas as firmes conexões
existentes entre o objeto e a imagem mental que lhe corresponde tornam possível o
estabelecimento de novas conexões no plano psíquico, isto é, liberta a imagem de sua
concretude – dado factível apenas na ação do pensamento abstrato.
Por conseguinte, do ponto de vista pedagógico, as reais condições de desenvolvimento
da imaginação se identificam com a ampliação da experiência. Ou seja, quanto mais
o indivíduo ver, ouvir, atuar, conhecer, quanto mais rica sua experiência, tanto mais
produtiva será sua imaginação. Da mesma forma, mais vastas e ricas de sentidos serão
suas vivências afetivas, posto que a unidade afetivo-cognitiva é mediadora constante
nas atividades realizadas. Assim, tudo que a constitui é ao mesmo tempo objeto do
pensamento e fonte de sentimentos (MARTINS, 2015, p. 305).

As funções psíquicas, juntamente com a imaginação, o processo funcional afetivo são


elementos que não se desconectam no desenvolvimento da subjetividade. Partindo do princípio
de que o homem é um ser social que se humaniza a partir do trabalho, a educação deve interferir
diretamente na formação omnilateral dos educandos, ciente – inclusive – de que os conteúdos
155

dos próprios sentimentos são conceitos. Ademais, ainda de acordo com a autora, “os conteúdos
escolares mobilizadores dos pensamentos incluem ‘sentimentos intelectuais’, isto é, os
sentimentos mobilizados pela atividade mental requerida na construção do conhecimento”
(MARTINS, 2015, p. 306).

[...] Considerando-se a natureza social dos sentimentos, os mesmos não emergem


espontaneamente e, como todas as vivências afetivas, são engendrados pelo
experienciado. Destarte, sua formação condiciona-se, sobretudo, pela qualidade dos
processos de ensino e aprendizagem (MARTINS, 2015, p. 306).

Podemos concluir, portanto, que o desenvolvimento produzido a partir da educação escolar não
condiz com qualquer tipo de educação, nem, para retomar nosso objeto específico de
investigação, com qualquer qualidade de leitura literária, feita de qualquer maneira. É
necessário que o ensino tenha como objetivo a socialização de conceitos, não de conceitos
espontâneos, mas dos conteúdos clássicos em detrimento daqueles do senso comum e da
experiência ordinária do cotidiano. É necessário que professor e aluno sejam vistos enquanto
indivíduos síntese de múltiplas determinações, para além dos sujeitos empíricos.

4.4.2 O cérebro adolescente e a atividade-guia

A psicologia histórico-cultural compreende que há uma periodização do desenvolvimento


humano que vai desde o nascimento até a idade adulta, sendo que, para que esse
desenvolvimento ocorra, é necessária não somente a ação biológica, mas a interação social do
sujeito que precisa do par mais desenvolvido para seu próprio desenvolvimento.

Tuleski e Eidt (2020) chamam atenção para o fato de que há dois conceitos centrais para a
compreensão de como se dá o desenvolvimento humano, que são o da atividade dominante e o
da neoformação. Tal compreensão se dá a partir das contribuições de Vigotski, que apontam
que o desenvolvimento das crianças não ocorre separadamente do meio social, cultural e das
relações materiais e simbólicas existentes nesses meios.

Vigotski (...) entendia que o desenvolvimento das funções psíquicas superiores


envolve grupos de fenômenos que inicialmente parecem totalmente distintos, mas na
realidade estão completamente unidos. É preciso fazer distinção entre os meios
externos do desenvolvimento cultural (instrumentos e signos) e os processos de
desenvolvimento das funções. Enquanto os primeiros se referem às ferramentas
materiais e simbólicas que produziram as transformações psíquicas (fala, escrita,
cálculo, desenho etc.), os últimos se referem às funções específicas, como memória,
percepção, atenção e pensamento conceitual, que se transformam valendo-se dos
primeiros (...) (TULESKI; EIDT, 2020, p. 38).
156

Tanto os meios externos de desenvolvimento cultural quanto os processos de desenvolvimento


das funções integram o processo de desenvolvimento das formas superiores de conduta. Mas é
necessário diferenciar as duas formas para que se compreenda sua relação (TULESKI; EIDT,
2020, p. 38). De acordo com os autores, Vigotski chama atenção para o fato de que é necessário
entender onde termina a evolução biológica e onde começa o desenvolvimento histórico e
cultural, a fim de que se compreenda a história da humanidade. É importante ressaltar que
durante o percurso de desenvolvimento das funções psicológicas superiores, não houve
considerável evolução biológica do homem, todavia, “a transformação maior ocorreu no
desenvolvimento dos órgãos artificiais (as ferramentas)” (TULESKI; EIDT, 2020, p. 38).

Partindo-se do princípio de que o desenvolvimento infantil – segundo Vigotski – é um sistema


de atividade “determinado simultaneamente pelos órgãos naturais e artificiais, em unidade
dialética” (TULESKI; EIDT, 2020, p. 39), o que diferencia homens de animais – em termos
psicológicos – é a “significação”, ou seja, “a capacidade de criar e empregar signos”, que, por
sua vez, são sinais artificiais: “porém é de suma importância não desconectar a criação e o
emprego de signos do fabrico e utilização de instrumentos, ou seja, o domínio de si, do domínio
da natureza” (TULESKI; EIDT, 2020, p. 43).

A partir da introdução de estímulos artificiais, o ser humano dá significado à conduta e produz


novas conexões cerebrais, assim formam-se as condições para criar signos e modificar as
conexões. Os autores esclarecem que, para Vigotski, o que permite a nova forma de regulação
da conduta é a “vida social”, “a interação dos seres humanos imbricada nas relações sociais de
produção”.
Por sua vez, a possibilidade de autorregulação do comportamento ou a capacidade de
dirigir voluntariamente e colocar a seu serviço suas funções psíquicas decorre de um
processo de internalização das relações exteriores, sociais. Pela regulação da conduta
alheia exercida por meio dos signos (diversas formas de linguagem simbólica) ou
processos de significação no interior de atividades sociais compartilhadas, cria-se em
cada sujeito singular a condição de recriar internamente tais dispositivos externos
(essencialmente culturais) e colocá-los a seu dispor, em forma de autoestimulação
(TULESKI; EIDT, 2020, p. 43).

Portanto, o processo de significação permite ao ser humano que modifique a si mesmo. Os


autores esclarecem que enquanto a atividade mediadora que envolve o emprego de ferramentas
dirige-se a objetos externos, a atividade que envolve o emprego de signos se volta para o próprio
homem, com vistas a modificar sua conduta e os seus processos psíquicos. “O signo dirige-se
para dentro, portanto para o psiquismo próprio ou alheio. Não obstante, as duas atividades
157

mediadoras possuem nexos entre si, uma vez que o domínio da natureza e o domínio de si estão
inter-relacionados tanto na filogênese quanto na ontogênese” (TULESKI; EIDT, 2020, p. 44).

A lei de internalização constitui-se desse modo como a principal lei de desenvolvimento do


psiquismo, seu fator determinante está “posto nas relações sociais de produção que colocam as
condições para a superação do comportamento direto, imediato, para o comportamento cultural
mediatizado por instrumentos (ferramentas) e signos (símbolos)” (TULESKI; EIDT, 2020, p.
44).
Essa lei nos permite compreender que atividades anteriormente dirigidas
externamente, isto é, por signos externos, posteriormente passam a ser dirigidas
internamente, por signos internalizados, dando a falsa ideia de reação direta, dada a
velocidade que adquire a tomada de decisões (eleição), a memória lógica e o cálculo
mental, por exemplo (TULESKI; EIDT, 2020, p. 44).

Esse realinhamento na subjetividade do indivíduo que permite ao ser humano dirigir suas
atividades com base nos signos internalizados só acontece – conforme temos mencionado –
caso haja fatores favoráveis a esse fim, transmissão de conteúdos que exijam o desenvolvimento
do cérebro, instrumentos adequados para essa transmissão, dentre outros. É importante
pensarmos – inclusive – nas atividades que guiam os interesses do sujeito em cada etapa de seu
desenvolvimento, uma vez que, segundo os autores, tais atividades norteiam a relação entre
desenvolvimento da criança e meio social que a envolve.

4.4.2.1 Atividade-guia e desenvolvimento

De acordo com a psicologia histórico-cultural, atividade é a relação a partir da qual se estabelece


um vínculo real entre a pessoa e o mundo que a cerca; todavia, nem tudo pode ser considerado
atividade. “A atividade humana é sempre movida por uma intencionalidade e busca responder
a uma necessidade. Para que a necessidade possa ser satisfeita, ela precisa encontrar um objeto
que a satisfaça”. A necessidade é, assim, a primeira condição para que a atividade ocorra
(TULESKI; EIDT, 2020, p. 45).

O motivo da atividade, segundo a psicologia histórico-cultural, de acordo com os autores, é


“aquilo que impulsiona o homem a agir e que dirige esse agir para a satisfação de uma
determinada necessidade”. A atividade, por sua vez, necessita da mobilização de processos
internos e externos que são denominados ações (TULESKI; EIDT, 2020, p. 45). De acordo com
os autores, um indivíduo com fome, por exemplo, tem como objetivo saciar sua necessidade de
alimento, mas, para isso, ele planeja inúmeras ações: ir ao mercado, comprar os ingredientes,
158

prepará-los, pensar na apresentação do prato, etc., são ações que em si mesmas não dão conta
de saciar a fome, mas seu encadeamento permite ao sujeito a satisfação da necessidade.

Para melhor compreensão do que seria uma atividade, os autores retomam um exemplo extraído
da obra se Leontiev, segundo o qual, um estudante, que se preparava para uma prova de história
lendo um livro dessa disciplina, recebeu a visita de um amigo que informou que o conteúdo
daquele livro não cairia na prova. Diante disso, para responder se a leitura seria uma atividade,
deve-se pensar em qual foi o real motivo que levou o aluno a ler: se a preparação para o exame
ou se o interesse no conteúdo. Caso a leitura seja abandonada após a notícia, saber-se-á que a
ela não era uma atividade, a atividade na verdade era a preparação para a prova e a leitura seria
uma das ações para tal preparo.

Os autores consideram que – segundo Leontiev – quando uma função se converte em ação é
porque a mesma se tornou intencional e consciente. Assim, quando uma criança utiliza a
memorização de determinado conteúdo (o uso da pontuação na escrita, por exemplo) para a
resolução de atividades que exijam tal conhecimento, o uso da memória se converteu em ação
no interior da atividade, tornando-se intencional (TULESKI; EIDT, 2020, p. 47).

Outro componente destacado pelos autores que – de acordo com Leontiev – pertence à estrutura
da atividade é a operação, “entendida como a maneira de se executar uma ação, maneira que
depende das condições em que a ação é realizada” (TULESKI; EIDT, 2020, p. 47). Os autores
chamam a atenção para o fato de que uma ação pode se converter em operação e vice-versa.

[...] Um exemplo de conversão de ação em operação pode ser verificado quando a


criança aprende a escrever. No início da apropriação da linguagem escrita, a atividade
da criança consiste em uma soma de ações não automatizadas, ou seja, exige a
constante mediação da consciência para a reprodução de cada uma das letras.
Mediante a prática e o treinamento, elas se convertem em operações, tornando-se
automatizadas, dispensando, assim, essa constante mediação da consciência. O ato
de escrever depende da memorização gráfica de cada uma das letras. Esse processo
ocorre por meio de uma cadeia de impulsos motores isolados que responde a apenas
um elemento da estrutura gráfica. A prática faz com que essa estrutura seja
radicalmente alterada, de modo que o ato de escrever converte-se em uma “melodia
cinética” única, pois nele não se utiliza mais a mediação da consciência para guiar o
agir. Quando isso acontece, as ações transformam-se em operações que compõem a
ação de escrever; entretanto, quando o indivíduo está aprendendo a escrever, cada
uma das operações é, na verdade, uma ação que contém um fim independente em si.
As operações possibilitam o desenvolvimento de estruturas de pensamento cada vez
mais complexas e condensadas, bem como o surgimento de novas ações e, por
consequência, de novas atividades (TULESKI; EIDT, 2020, p. 48, grifo nosso).
159

Podemos perceber, portanto, que a ação se converte em operação quando a partir da prática e
do treinamento, determinada atividade se torna automatizada, não exigindo mediação constante
da consciência para guiar a ação. Outro exemplo que poderíamos utilizar é o ato de dirigir.
Quando se está aprendendo, é necessário ter atenção redobrada nos pedais, no volante, no ato
de passar marchas; à medida em que se adquire prática nessa atividade, pisar no freio, no
acelerador, trocar a marcha e praticar outras ações que direcionam o ato de conduzir um veículo
se tornam automatizadas, de modo que as ações se transformam em operações. Os autores
afirmam que a passagem de operação para ação também é possível, ocorre quando determinados
comportamentos que a criança realizava sem intencionalidade sofrem mudanças em suas
características, a partir da mediação do adulto.

Para que a ação se transforme em atividade, faz-se necessário, segundo os autores, compreender
o processo de criação de motivos:
[...] Leontiev (1960) explica que existem dois tipos de motivos: os motivos apenas
compreensíveis, também chamados de particulares ou estreitos, e os motivos
realmente eficazes, também chamados de gerais e amplos. Os motivos apenas
compreensíveis atuam durante pouco tempo e sob circunstâncias diretas. Como
exemplos, podem-se citar receber prêmios ou não receber castigos. Os motivos
realmente eficazes são mais constantes, atuam durante muito tempo e não dependem
de situações causais e imediatas. Podem-se citar como exemplos desses motivos
adquirir formação cultural, preparar-se para o trabalho futuro e outros.
Quando ambos os motivos atuam simultaneamente, formam uma espécie de sistema
único no qual cada um deles tem um papel: os motivos realmente eficazes dão ao
estudo escolar, por exemplo, um sentido determinado, enquanto os motivos apenas
compreensíveis estimulam a ação imediata (TULESKI; EIDT, 2020, p. 48, 49).

Os autores utilizam como exemplo a questão colocada por Leontiev de uma criança que não
consegue se concentrar para fazer as lições, mesmo sabendo que seu desempenho seria condição
fundamental para seu futuro. Ter essa noção não era, no entanto, suficiente para que ela
conseguisse fazer as lições. Diante disso, a criança recebeu a informação de que não sairia para
brincar se não tivesse feito as lições. A criança – a partir daí – começou a fazer as atividades a
partir de um motivo compreensível, mas, aos poucos, sua conduta se modificou: ela começou a
se sentar por conta própria para realizar as tarefas e percebeu que ela não apenas poderia ir
brincar ao terminar, mas teria também como recompensa boas notas nas provas e a
aprendizagem escolar. Suas necessidades são assim objetivadas, o que quer dizer que ela as
compreende em um nível mais elevado. Temos assim que “uma ação (fazer a tarefa) adquiriu
um novo motivo que a direcionou; então a ação transformou-se em atividade” (TULESKI;
EIDT, 2020, p. 49):
160

[...] Por isso a compreensão do caráter dinâmico da atividade e do modo como ações
convertem-se em operações, operações transformam-se em ações e ações
transformam-se em atividades é de fundamental importância para o psicólogo que
trabalha com desenvolvimento infantil e para os educadores de modo geral. Se é por
meio da atividade que o homem atua sobre a realidade circundante, visando satisfazer
suas necessidades físicas e psíquicas, não há apenas uma forma de relação do homem
com a realidade. Em cada momento do desenvolvimento nos relacionamos com o
mundo de um modo particular e irrepetível.

Partindo, pois, do princípio de que a cada momento do nosso desenvolvimento nos


relacionamos com o mundo de modo diferente, os autores exemplificam que o psiquismo no
recém-nascido não se diferencia, uma vez que suas ações são involuntárias; em contrapartida,
a criança na idade pré-escolar – embora tenha um psiquismo elementar – já possui algumas
funções que estão se tornando voluntárias, embora a criança ainda dependa do adulto para
satisfazer suas necessidades, essa dependência diminui gradativamente, ao passo que ocorre
uma mudança qualitativa no psiquismo desse indivíduo. Tal mudança ocorre em função de:

[...] transformações na atividade dominante, principal ou guia, entendida como


“aquela cujo desenvolvimento condiciona as principais mudanças nos processos
psíquicos da criança e as particularidades psicológicas da sua personalidade num dado
estágio do desenvolvimento” (LEONTIEV, 1978, p. 312). A atividade-guia
possibilita: a) o surgimento, no interior de sua própria estrutura, de novos tipos de
atividade; b) a formação ou a reorganização dos processos psíquicos (neoformações),
produzindo as principais mudanças psicológicas na personalidade infantil em cada
fase (TULESKI; EIDT, 2020, p. 50).

Ao longo do desenvolvimento humano, torna-se possível destacar quais as atividades


dominantes de cada momento da vida. Com base em Elkonin (1987), os autores destacam que
no primeiro ano de vida estabelece-se a “atividade de comunicação emocional direta”, enquanto
na primeira infância surge a “atividade objetal manipulatória”; já na idade pré-escolar,
desenvolve-se a “atividade do jogo de papeis”, na idade escolar a “atividade de estudo”, na
adolescência inicial a “atividade de comunicação íntima pessoal” e na adolescência a “atividade
profissional/estudo” (TULESKI; EIDT, 2020, p. 52). Trataremos a seguir da adolescência e das
atividades-guia desse período da vida, uma vez que, para atingirmos nosso objetivo na presente
tese, faz-se necessário compreender o funcionamento do adolescente – nosso público alvo ao
longo do Ensino Médio.

4.4.2.2 Adolescência e desenvolvimento do psiquismo

Segundo a psicologia histórico-cultural, o período de adolescência não pode ser reduzido às


mudanças biológicas sob a desculpa de que os hormônios seriam responsáveis por todas as
atitudes nessa fase da vida. Anjos e Duarte (2020, p. 196) afirmam que as mudanças biológicas
161

ocorridas ao longo da vida não podem ser negligenciadas, todavia, tais mudanças não se
desprendem do ser social. A adolescência, inclusive, teria surgido – segundo os autores – em
consequência do grau de complexidade alcançado pela vida social ao longo da história, sendo,
portanto, um “fenômeno produzido pela história das sociedades divididas em classes sociais”.

Os autores afirmam que – segundo os estudos de Vigotski – a conversão da atração – cuja base
é biológica, instintiva – em interesses é a forma adequada para que se compreenda o
desenvolvimento do psiquismo na adolescência.

[...] Os interesses constituem, portanto, o produto da complexidade da atividade


social, também denominados de necessidades superiores. Os velhos interesses da
infância vão desaparecendo e surgem então outros novos. Para o autor, a extinção dos
velhos interesses e o desenvolvimento dos novos são, particularmente, um processo
longo, sensível e doloroso. Existem períodos de crise no desenvolvimento humano, e
a perda dos interesses que antes orientavam a atividade do indivíduo provoca a
necessidade de uma viragem. Não obstante, as crises que o adolescente enfrenta
marcam o surgimento de uma nova maneira de pensar, engendrada pela atividade-
guia de estudo, qual seja: o pensamento por conceitos e a consequente estruturação da
personalidade e da concepção de mundo (ANJOS; DUARTE, 2020, p. 196, 197).

Portanto, as necessidades superiores surgem à medida em que ocorre o desenvolvimento, os


interesses antigos são substituídos por novos de modo que a atividade-guia na adolescência –
em função das profundas transformações sofridas – tem duas faces: comunicação íntima pessoal
e atividade profissional / de estudo, conforme afirmam os autores. Anjos e Duarte (2020, p.
197) destacam que, segundo os estudos de Elkonin, o período da adolescência vai de 11 ou 12
anos até os 15. Nessa idade há um salto da infância ao período da juventude que vai de 15 até
17 ou 18 anos, é, portanto, uma fase de transição.

A comunicação íntima pessoal é, segundo Anjos e Duarte (2020, p. 198), a maneira de se


reproduzir juntamente a outros adolescentes as relações que existem entre os indivíduos adultos.
Com base nos estudos de Elkonin, os autores explicitam que a comunicação pessoal é a
atividade dentro da qual se estabelecem os pontos de vista sobre vida, futuro, as relações
interpessoais, forma-se, portanto, a “autoconsciência como consciência social transladada ao
interior” (ANJOS; DUARTE, 2020, p. 198).

Segundo os autores, tal atividade-guia tem como base e como referência as atividades do adulto;
nessa fase da vida, os adolescentes têm tendência a imitar os adultos, “procurando parecer-se
com eles em tudo, reproduzindo sua conduta, suas ações, sua maneira de proceder” (ANJOS;
162

DUARTE, 2020, p. 198). A busca por um ideal de ser humano – tendo o adulto como referência
– permite que o adolescente manifeste seu autoconhecimento com um sentimento de maturidade
(ANJOS; DUARTE, 2020, p. 198).

Esse modelo de ser humano é buscado pelo adolescente, segundo os autores, em heróis da
Literatura, personagens históricos e nas pessoas que estão ao seu redor como seus pais e seus
professores. O que acontece, todavia, é que o adolescente vive em um mundo alienado, marcado
pela divisão do trabalho e pela desigualdade social, dessa forma, chega à vida adulta – muitas
vezes – com essa mesma visão alienada de mundo (ANJOS; DUARTE, 2020, p. 200).
Entendemos que, na sociedade em que vivemos, os indivíduos – em suas condições objetivas
de existência e sem acesso adequado a um ensino que vise ao desenvolvimento omnilateral –
chegam à vida adulta com uma visão fragmentada da realidade; tais adultos serão os modelos
para os adolescentes, que – consequentemente – não terão condições de desenvolver suas plenas
capacidades psíquicas. O intuito da educação deve ser romper com esse círculo vicioso, de
modo que os indivíduos tenham acesso a uma educação de qualidade com ensino intencional,
planejado e sistematizado de conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos que exijam um
grau de desenvolvimento psíquico superior.

Sobre a atividade de estudo, os autores defendem – ainda com base em Elkonin – que durante
a adolescência tal atividade tem como motivo principal preparar o adolescente para o futuro. O
maior desafio da educação escolar do adolescente seria o de prepará-lo para o mundo do
trabalho e não limitar sua formação à adaptação à lógica do capital. Em outras palavras,

[...] trata-se de não se limitar a formação do indivíduo a um processo de reprodução


da força de trabalho sem, contudo, ignorar o fato de que vivemos numa sociedade
capitalista na qual boa parte da humanidade precisa vender sua força de trabalho para
obter os recursos necessários à sobrevivência (ANJOS; DUARTE, 2020, p. 202).

Os autores afirmam a importância de se criar uma mentalidade no adolescente de modo que ele
tenha necessidade de se apropriar das produções humanas mais elaboradas e adquira – em
consequência – uma relação cada vez mais consciente com a vida cotidiana, com a realidade
que o cerca, desenvolvendo o pensamento por conceitos e sua própria personalidade. O
adolescente precisa ter necessidade de se apropriar dos conteúdos clássicos, uma vez que o
indivíduo empírico não se dá conta da importância da apropriação dos saberes elaborados
(conhecimentos artísticos, científicos e filosóficos) para seu próprio desenvolvimento.
163

Elkonin (1960) afirma que umas das particularidades dos interesses dos adolescentes
é seu caráter ativo, conduzindo, algumas vezes, ao desprezo dos conhecimentos
científicos e técnicos por considerarem que estes não têm significado prático. A
escola, desse modo, deve fazer o seu papel para o desenvolvimento psíquico do
adolescente, produzindo necessidades de conhecimento sistematizado nos alunos,
considerando-se até mesmo o importante papel das etapas de escolarização na criação
de tais necessidades (ANJOS; DUARTE, 2020, p. 202).

Assim, faz-se importante que todo o período educacional – da infância à adolescência – tenha
atividades que incitem o desenvolvimento intelectual do indivíduo, de modo que o
desenvolvimento psíquico acontece gradativamente, pela complexificação das atividades a
serem desenvolvidas.

É na adolescência que se atinge a possibilidade de pensar por conceitos. Para entendermos as


fases de desenvolvimento do pensamento, recorremos a Martins (2014, p. 158) que – a partir
dos estudos de Vigotski – destaca que elas se dividem em três:
a) pensamento sincrético (fase própria aos anos iniciais de vida que se caracteriza pelo
significado da palavra e “por seu limite como signo relacionado à percepção sensível”);
b) pensamento por complexos (fase que possui longo percurso e se caracteriza pela
formação de conceitos desde o final da primeira infância até o início da adolescência e adquire
superior grau de coerência e objetividade em relação à fase anterior. Ainda conforme a autora,
há cinco tipos de complexos: associativo, por coleção, por cadeia, complexos difusos e
pseudoconceitos – formados por generalizações que, embora se aparentem ao pensamento por
conceitos, referente à próxima etapa, ainda refletem em sua essência os traços visíveis e
concretos dos objetos, não significando o pleno exercício do pensamento abstrato); e
c) pensamento abstrato (ocorre na adolescência, quando o pensamento adquire a
possibilidade de operar a partir de conceitos, atingindo, portanto, seu mais alto grau de
abstração, ultrapassando as ações práticas e das imagens sensoriais “torna possível a apreensão
dos fenômenos para além das aparências, isto é, em sua essencialidade concreta como síntese
de múltiplas relações”).

Faz-se necessário esse breve comentário sobre as fases de desenvolvimento de pensamento,


uma vez que temos afirmado ser importante ao adolescente adquirir a capacidade de pensar por
conceitos. Tal desenvolvimento não se dá por maturação biológica, mas por meio – segundo
Martins (2014) – da apropriação das objetivações simbólicas a partir do ensino que precisa
acontecer pela mediação do par mais desenvolvido. Em uma sociedade na qual as pessoas são
privadas das condições culturais de desenvolvimento, muitas vezes o próprio adulto não se
164

constitui como mediador adequado, pois ele mesmo não teve condições de desenvolver seu
psiquismo ao nível do pensamento por conceitos, mantendo-se ao nível dos pseudoconceitos.
Romper com esse ciclo é necessário.

Isso é possível por meio da educação, uma educação de qualidade que vise ao desenvolvimento
máximo dos indivíduos, por meio do ensino de conteúdos clássicos, fornecendo aos filhos da
classe trabalhadora o que lhes é negado na sociedade capitalista. O conteúdo de estudo do
adolescente, segundo Anjos e Duarte (2020, p. 203), com base nos estudos de Elkonin, precisa
de novos métodos de ensino; a educação deve fazer com que o adolescente aumente sua
independência e aprenda a preparar suas tarefas, organizar seu tempo, o que, consequentemente,
promove seu desenvolvimento e autonomia. O adolescente em formação precisa ser levado à
necessidade de formação dos conceitos artísticos, científicos e filosóficos, o que requer
qualidade na educação escolar. “Sem a formação do pensamento por conceitos, sem a
capacidade de trabalhar com abstrações, o adolescente não se desenvolve” (ANJOS; DUARTE,
2020, p. 205).

Para superar a dicotomia da ruptura entre forma e conteúdo no cérebro dos adolescentes – fator
predominante nas teorias psicológicas do início do século XX –, Vigotski propôs que a relação
entre forma e conteúdo se estabelece em uma concepção dialética, de modo que um conteúdo
novo não poderia surgir sem novas formas de pensar; em outras palavras, os conteúdos da vida
do adolescente podem sim alterar as formas de pensar (ANJOS; DUARTE, 2020, p. 206).

[...] Vigotski afirma que tanto os conteúdos como as formas de pensamento


desenvolvem-se histórica e dialeticamente, isto é, que tanto na história social da
humanidade como no desenvolvimento psicológico individual surgem funções
psicológicas novas e superiores, indispensáveis à ampliação dos horizontes culturais
coletivos e individuais (ANJOS; DUARTE, 2020, p. 206, 207).

Na adolescência, a nova forma de pensamento é caracterizada pela formação de conceitos.


Segundo os autores – conforme estudos de Vigotski – o pensamento por conceitos representa
as verdadeiras mudanças no conteúdo e nas formas de pensar. Estando no centro do
desenvolvimento do pensamento nessa fase da vida, a formação de conceitos é compreendida
como “o passo para uma forma nova e superior de atividade intelectual, um modo novo de
conduta e a chave de todo o problema do desenvolvimento do pensamento” (ANJOS;
DUARTE, 2020, p. 207).
165

O pensamento por conceitos surge a partir do domínio da abstração que tem início na
adolescência, ele não faz com que o pensamento sincrético e o pensamento por complexos
desapareçam, o que ocorre é sua superação por incorporação (por isso, os conteúdos da vida
cotidiana não superam espontaneamente os pseudoconceitos) (ANJOS; DUARTE, 2020, p.
211).

Ainda de acordo com os autores, o pensamento por conceitos não será possível caso as
condições sociais, em especial às relacionadas à educação, não se mostrem favoráveis ao
processo. Se o adolescente não tiver mediação adequada, conteúdos adequados que exijam o
desenvolvimento de seu cérebro, ele poderá não chegar a esse nível intelectual do pensamento
abstrato que permite ao sujeito alcançar a imagem subjetiva da realidade. Essa afirmação,
segundo Anjos e Duarte (2020, p. 216), tem como base o método científico do conhecimento:

[...] Duarte (idem, p. 92), explicando a análise que Marx fez do método científico de
conhecimento, afirma que o pensamento parte da representação caótica do todo para
chegar às abstrações. Em seguida, faz o caminho inverso, ou seja, ascende das
abstrações mais simples “à complexidade do conjunto que foi representado,
inicialmente de forma caótica.
O pensamento afasta-se momentaneamente do concreto por meio das abstrações para,
em última instância, voltar ao concreto, porém agora conhecendo suas múltiplas
determinações, ou seja, com maior inteligibilidade do real. Essa ideia remete-nos à
compreensão da forma do pensamento por conceitos, pois, de acordo com Leontiev
(1999), os conceitos cotidianos são generalizações que vão do concreto ao abstrato,
enquanto os conceitos científicos caracterizam-se pelo caminho do abstrato ao
concreto, ou seja, à compreensão de suas múltiplas determinações. O concreto no
pensamento (o conceito científico) é o conhecimento mais profundo dos fenômenos
da realidade, já que seu conteúdo não é o imediatamente observável (conceito
cotidiano), mas sim a síntese de múltiplas determinações que só é possível por meio
das abstrações (ANJOS; DUARTE, 2020, p. 216).

Ainda de acordo com os autores, a relação dialética entre atividade de estudo e a formação dos
conceitos na adolescência se dá ao passo que o pensamento por conceitos é fruto da
internalização psíquica da produção cultural e é também condição para tal internalização. Em
outras palavras, sem acesso ao conhecimento científico, filosófico, artístico elaborado, não há
possibilidade da formação do pensamento por conceitos, na medida que o desenvolvimento
psíquico cria também condições para que esse material produzido pelo conjunto de seres
humanos ao longo da história possa ser apropriado.

Evidentemente, não se trata aqui de estabelecer uma relação direta e imediata entre a frequência
a instituições escolares de nível básico e superior e o desenvolvimento do pensamento
conceitual, pois, como a prática social demonstra, existem pessoas que não completaram sua
educação escolar e, ainda assim, alçaram o pensamento conceitual e, igualmente, existem
166

pessoas que completaram todos níveis e graus acadêmicos e não ultrapassam o pensamento por
complexos. O que diferencia ambas as situações é a possibilidade de um par (ou vários pares)
mais desenvolvido(s) que medeie a apropriação de saberes elaborados objetivados em
produções culturais variadas, bem como uma experiência cultural rica. No entanto, temos
defendido que a escola e o trabalho pedagógico assumam esse compromisso haja vista que, para
a esmagadora maioria da classe que vive do trabalho, tais pares, saberes e produções culturais
não estão acessíveis de outro modo.

Reiteramos, todavia, que a possibilidade de se atingir o pensamento por conceitos na


adolescência não se concretiza para muitos indivíduos que – até mesmo já na fase adulta –
continuam com seu desenvolvimento no nível dos pseudoconceitos, não dando conta de
reconhecer sua própria realidade com vistas a transformá-la. Isso porque Anjos e Duarte (2020,
p. 217) afirmam que o impedimento de acesso às riquezas materiais e imateriais produzidas
pelo conjunto dos seres humanos não permite que o indivíduo forme pensamentos por
conceitos, nem na adolescência, nem em qualquer outra época de seu desenvolvimento. Por
isso, devemos investir em uma educação de qualidade que vise por meio dos conteúdos
clássicos o desenvolvimento do psiquismo do sujeito e sua consequente evolução.
167

5 ARTE COMO NECESSIDADE ONTOLÓGICA E SELEÇÃO DE REPERTÓRIO


PARA TRABALHO EM SALA DE AULA

Ao longo desta tese, temos discutido sobre formação, sobre currículo, sobre a importância dos
conteúdos clássicos para o desenvolvimento do sujeito e sobre a atividade-guia que permite a
passagem do pensamento por complexos para o pensamento por conceitos. Entendemos o
trabalho educativo como produtor direto e intencional da humanidade historicamente produzida
pelos seres humanos, conforme defesa da pedagogia histórico-crítica, reiteramos que
acreditamos na potência da educação – da educação literária (dentro de nosso campo de
atuação) – para que os indivíduos se humanizem e construam sua história.

Quando questionado sobre o processo de humanização, Duarte (2013, p. 64) afirmou que o
recém-nascido é e não é humano ao mesmo tempo, isso porque, por um lado, todos os
organismos vivos da mesma espécie são iguais ao nascer; por outro lado, o autor defende que
o ser tornar-se-á um indivíduo, um humano, somente por meio do processo educativo que
consiste em transmitir a riqueza acumulada ao longo da história da humanidade necessária ao
desenvolvimento da individualidade15. Sobre esse bebê, o autor afirma que ele será
paulatinamente inserido na cultura humana “ainda não totalmente indivíduo e ainda não
totalmente humano”, a fim de que ao longo de sua vida possa desenvolver sua individualidade
e sua humanidade (DUARTE, 2013, p. 64).

Compreendemos que a formação do indivíduo – e o processo de humanização – passa pela


apropriação dos conteúdos clássicos a partir da mediação com o par mais desenvolvido.
Defendemos que a Literatura clássica – objeto de nossa pesquisa – tem a possibilidade de
provocar o efeito catártico no indivíduo, o que, segundo Costa (2014) implica em mover a

15
Ressaltamos que, de acordo com Anjos e Duarte (2017), todo ser humano forma sua individualidade em si em
função da apropriação das objetivações genéricas em si (aquelas com vistas à satisfação das necessidades mais
imediatas e pragmáticas do ser humano). Os autores destacam que, a partir das objetivações genéricas em si, o ser
humano produziu formas mais complexas de se relacionar com a natureza, as objetivações genéricas para si (que
não têm finalidade de satisfazer necessidades imediatas e pragmáticas), dentre as quais se destacam a ciência, a
arte e a filosofia; tais objetivações exigem maior grau de complexidade psíquica de quem delas se apropria. “A
apropriação, pelo ser humano, das objetivações genéricas para si, forma a individualidade para si, ou seja, a
máxima possibilidade da formação do indivíduo, uma individualidade que se relaciona com a cotidianidade de
forma consciente, mediada pelas objetivações genéricas para si. Portanto, assim como o gênero humano ascendeu-
se de sua genericidade em si à genericidade para si, importa que o indivíduo também ascenda de sua
individualidade em si à individualidade para si” (ANJOS; DUARTE, 2017, p. 118). Ressaltamos que, ainda
segundo os autores, a individualidade para si não ocorre de maneira espontânea, mas pela apropriação das
objetivações humanas para si por intermédio da educação, a fim de que o indivíduo supere sua relação espontânea
com a cotidianidade.
168

subjetividade individual em direção às formas mais ricas de subjetividades desenvolvidas pelo


gênero humano ao longo da história.

Sobre apropriação, entendemos que se o ser humano objetiva seu trabalho, ou seja, transfere
sua atividade para os objetos, ele também é capaz de fazer o inverso, em outras palavras, o ser
humano tem condições de se apropriar da atividade acumulada em objetos e fenômenos
culturais, transformando-a em “atividade do sujeito”. O trabalho pode ser – conforme já
discutimos – material ou não; os signos, por exemplo, trabalho imaterial são também produto
da atividade humana. A objetivação, mais do que transformar o trabalho em algo externo,
condensa a história da própria experiência humana. “Os produtos do trabalho humano, seja ele
material ou não, carregam atividade em estado latente”, quando um indivíduo faz a leitura de
uma obra, ele se apropria da atividade de pensamento do autor, de modo que para concordar ou
discordar terá que “movimentar seu pensamento a partir da atividade pensante objetivada na
obra do autor estudado” (DUARTE, 2013, p. 65, 66). Defendemos, por isso, que para o processo
de formação integral do homem é necessário que ele se aproprie das objetivações de
conhecimento mais elaboradas produzidas pela humanidade, o que, na Literatura, inserida no
campo das artes, entendemos serem as obras clássicas.

Já abordamos o conceito de clássico segundo a pedagogia histórico-crítica, discutimos sobre a


importância dos conteúdos clássicos para o desenvolvimento do pensamento por conceitos,
todavia, para chegarmos ao objetivo de nosso trabalho, faz-se ainda necessária uma passagem
pela noção de formação integral do homem (formação omnilateral) e sua relação com a
dimensão estética da experiência, além de um aprofundamento na discussão da Literatura
enquanto reflexo da realidade e das especificidades da atividade de leitura literária em face
desse projeto de formação humana.

Nossas considerações sobre formação humana e dimensão estética da experiência se pautam


em Della Fonte (2020); já nossas discussões sobre a Literatura enquanto arte que reflete a
realidade se pautam nos estudos do filósofo húngaro Lukács, sobre os quais não temos espaço
nesta tese para ampla discussão, nem condições de aprofundar-nos, até mesmo porque
estudiosos que se debruçaram sobre a estética do filósofo já o fizeram com maestria. Todavia,
cabe – para a conclusão de nosso entendimento do que trazemos enquanto elementos
norteadores para a seleção dos textos que devem compor a educação literária – uma passagem
por elementos que julgamos essenciais.
169

5.1 FORMAÇÃO HUMANA E DIMENSÃO ESTÉTICA DA EXPERIÊNCIA

Conforme temos afirmado ao longo desta tese, defendemos que todos os educandos devem ter
acesso a um ensino de qualidade, a um ensino de Literatura cuidadosamente planejado a partir
de textos clássicos que tiveram importância não somente em seu tempo, mas que ainda
permitem o desvelamento de aspectos ocultos da vida humana em sociedade, uma vez que a
grande Literatura traz em si uma historicidade que acompanha o desenvolvimento humano.
Defendemos que o ensino e a aprendizagem dos conteúdos clássicos – da Literatura enquanto
objeto de nosso estudo – pode nos levar ao questionamento, a uma maior aproximação com
uma realidade até então fragmentada, a uma visão da totalidade negada pelo pós-modernismo;
defendemos, ainda, que uma educação de qualidade com vistas ao desenvolvimento da
subjetividade objetiva também o desenvolvimento omnilateral do indivíduo.

Em Formação omnilateral e dimensão estética em Marx, Della Fonte (2020) realiza um estudo
sobre o conceito de omnilateralidade em textos marxianos desde os manuscritos de 1844,
passando pelos textos de transição, até os escritos de maturidade. Segundo a autora, os textos
abordados em seu trabalho indicam que a concepção de omnilateralidade ganha densidade à
proporção que a sociedade capitalista se desenvolve. Quando as concepções de
omnilateralidade e ser humano total aparecem pela primeira vez na obra de Marx, evidencia-se
um deslocamento do idealismo hegeliano (reconhecido por Marx como um “índice, no campo
ideológico, da fática situação da divisão social do trabalho que atravessa a história das
sociedades de classe e tem seu auge na unilateralidade do capitalismo”) para o materialismo
histórico (DELLA FONTE, 2020, p. 113).

Segundo a autora, a partir do momento em que Marx centra suas pesquisas na produção
material, a formação omnilateral se recontextualiza no sentido de que faz alusão não somente
ao horizonte comunista, mas também aos aspectos de viver no mundo capitalista.

[...] Nesse sentido, a mediação geral do valor na base da sociabilidade burguesa


(exacerbada na sua forma de dinheiro), a dependência recíproca e generalizada dos
indivíduos, a produção diversificada e mundial da riqueza humana, a mobilidade geral
do trabalhador nos ramos da produção etc., enfim, todos esses fenômenos têm o
caráter omnilateral e são movidos por forças contraditórias. O comunismo e a
formação desse novo ser humano, rico e total, são possibilidades inscritas nas digitais
do capitalismo [...] (DELLA FONTE, 2020, p. 114).
170

Se, por um lado, o capitalismo apresenta grandes avanços no campo do conhecimento, por outro
lado, sua estrutura alienante produz indivíduos “sem subjetividade, sem modo peculiar de se
relacionar com o mundo, sem capacidade de algo próprio” (DELLA FONTE, 2020, p. 114).

[...] Por isso, na sociedade capitalista, habita o indivíduo heterônimo, reificado, sem
alma, assujeitado. Dessa maneira, o capital provoca a dependência generalizada e
multifacetada entre indivíduos, que se dá pela via da indiferença de uns com os outros
e consigo mesmo. Não agindo por si, o sujeito reificado orbita ao redor de um sistema
de dominação (DELLA FONTE, 2020, p. 114).

Nesse contexto de sociedade em que vivemos, portanto, o desenvolvimento omnilateral é


apenas um objetivo, temos consciência de que – em função das estruturas de dominação e
alienação em que a sociedade está inserida – o ser humano de nosso tempo, quer na situação de
explorado, quer na situação de explorador da força de trabalho alheia, não tem condições de se
desenvolver em todos os aspectos. Della Fonte (2020, p. 115) considera que “a apropriação
coletiva dos meios de produção é condição para o desenvolvimento subjetivo completo”, em
outras palavras, é na sociedade comunista que o homem – coletivamente – tem condições de
regular sua produção, o intercâmbio com a natureza, não sendo mais dominado pelo sistema.
“No comunismo, a possibilidade de exercer o máximo da sua subjetividade, de desenvolver
todos os seus aspectos existenciais, está no centro da universalidade humana”. Uma vez que se
rompe a “integração forçada” ao modelo social vigente, o ser humano passa a ser livre tendo a
oportunidade de cultivar sua subjetividade a partir do contato com a riqueza historicamente
produzida por seus pares (DELLA FONTE, 2020, p. 115).

Nessa sociedade, de acordo com a autora, a partir da liberdade para o desenvolvimento das
individualidades, ocorre a redução do tempo necessário à produção, de modo que o indivíduo
passa a ter condições de usufruir de outras produções intelectuais e materiais.

Por ser uma sociedade com elevado grau de desenvolvimento das forças produtivas e
abundância da riqueza coletiva, não há necessidade de se condicionar o consumo a
uma medida de equivalência com o trabalho realizado. Abandona-se, portanto, o
trabalho abstrato (DELLA FONTE, 2020, p. 116).

A partir de seus estudos em Marx, Della Fonte (2020) chega ao entendimento de que na
sociedade comunista vislumbra-se um nível superior de relações sociais, de modo que as
individualidades são respeitadas, podendo apresentar-se em suas múltiplas faces, pensando o
homem como uma totalidade complexa, um ser humano rico pela apropriação de si mesmo,
desenvolvido em todos os sentidos. Nesse contexto, “a dimensão estética ganha dignidade como
faceta existencial”. Assim, Della Fonte (2020, p. 116) conclui que Marx estabelece uma relação
171

não hierárquica entre o campo conceitual e a arte, de modo que “há uma tensão e
complementaridade entre o conceitual e o expressivo nos escritos marxianos”.

Pautada nas reflexões de Manacorda, teórico estudioso do marxismo, Della Fonte (2020, p. 120)
afirma que Marx posicionou-se sobre a educação, considerando os modelos mais desenvolvidos
da tradição socialista e da tradição burguesa que – embora reproduzissem os ideais do
capitalismo – traziam elementos necessários ao que seria uma “educação do futuro”. Assim,
segundo a autora, Marx adotou a omnilateralidade – “a criação desse ser humano total” – como
objetivo principal da educação.

A partir daí, evidencia-se a relação educação e trabalho. Conforme discutimos, Saviani (2020)
afirma que o desenvolvimento do educando está atrelado a uma educação politécnica, que seria
a proposta ideal para o Ensino Médio, permitindo que os alunos dominassem técnicas diversas
utilizadas no processo produtivo, compreendessem e interviessem no processo do
desenvolvimento tecnológico, o que difere – para o autor – do ensino profissionalizante que
visa à formação de técnicos especializados em uma única atividade. Para Della Fonte (2020, p.
125), há um consenso entre os debatedores de matriz marxista no sentido de que a associação
entre escola e trabalho não significa um tipo de treinamento “pluriprofissional”, “mas se trata
de uma abordagem teórica e prática vinculada aos fundamentos gnosiológicos dos processos de
produção”.

A autora enfatiza que Saviani considera o trabalho como princípio educativo com base em três
sentidos articulados entre si.

[...] Em primeiro lugar, o trabalho é princípio educativo porque determina o modo de


ser da educação em seu conjunto, ou seja, para cada modo histórico de produção da
vida, existem modos distintos de educar com sua respectiva forma dominante de
educação. Em segundo sentido, o trabalho é princípio educativo ao estipular
exigências que o processo educativo precisa cumprir para assegurar a participação
direta dos membros da sociedade no trabalho socialmente produtivo. Por fim, o
trabalho é princípio educativo porque determina também a educação como uma
modalidade própria de trabalho: o trabalho pedagógico (DELLA FONTE, 2020, p.
124, 125).
Dessa forma, considera-se que há uma determinação dialética do trabalho sobre os modelos
dominantes de educação, sobre as exigências que devem ser garantidas para a inserção do
sujeito no trabalho produtivo. “A base dessa determinação é a determinação do trabalho como
fundante do ser social”. Atualiza-se, assim, “sobre as bases materialistas, aquilo que Hegel [...]
insistira: o trabalho forma, modela, estrutura; ele é Bildung, ou seja, agir formativo. Ele forma
o objeto e o sujeito do trabalho [...], [...] define a existência humana diante dos outros seres da
natureza” (DELLA FONTE, 2020, p. 125).
172

O trabalho precisa ser defendido como princípio educativo, segundo a autora, uma vez que a
partir de sua existência contraditória, por um lado, condensa as formas mais avançadas de
conhecimento, da tecnologia, dos saberes; enquanto que, por outro lado, a existência dessas
formas de desenvolvimento na sociedade capitalista se dá a partir da exploração do trabalho.
Tal exploração precisa ser colocada em pauta, criticada, a fim de que se tenha em vista “a
construção de um novo modo de viver que tenha o desenvolvimento das potencialidades
humanas como fim em si mesmo” (DELLA FONTE, 2020, p. 130).

A partir das discussões elencadas, podemos perceber que se, por um lado, não é possível o
desenvolvimento omnilateral do ser humano na sociedade atual, não se pode deixar de lado que
uma educação de qualidade deve ter como guia a emancipação humana:

[...] contra a formação unilateral, coloca-se a emancipação de todo ser humano e do


ser humano inteiro, sem hierarquia de faculdades e capacidades humanas; faculdades
e capacidades humanas cultivadas e valorizadas em sua diversidade e
complementaridade (DELLA FONTE, 2020, p. 131, 132).
Sabemos que a educação por si não transformará a sociedade, mas um trabalho intencional,
visando ao desenvolvimento da subjetividade do educando, com vista ao seu desenvolvimento
integral permitirá que esse indivíduo obtenha o conhecimento de si e do mundo que o cerca,
com vistas a lutar por sua transformação.

5.1.1 Dimensão estética nos manuscritos de Marx

A partir de suas pesquisas nos manuscritos de Marx, Della Fonte (2020) desenvolve uma
reflexão sobre a experiência estética no pensamento do autor. Para ela, o diálogo entre
conhecimento conceitual e conhecimento artístico nos manuscritos de Marx pode ser abordado
por duas vias: a partir de suas reflexões sobre problemas estéticos e artísticos, tendo a arte como
objeto; e a partir da reflexão sobre como a literatura adentra as elaborações conceituais do autor.

Della Fonte (2020) considera que as ideias estéticas de Marx não tiveram lugar de destaque em
seus textos, mas aparecem separadamente em várias ocasiões. De todo modo, destaca a
relevância da reflexão filosófica marxiana tendo como objeto a estética e a arte.

Primeiramente, a autora destaca que, com base nos estudos de Marx, a arte coloca o humano
em contraste com o animal, uma vez que sua produção não parte de necessidades imediatas. A
composição de uma obra exige maior esforço, a arte – dessa forma – ilustra produções mais
complexas visando à satisfação dessas necessidades (DELLA FONTE, 2020, p. 85).
173

Em segundo lugar, Della Fonte (2020, p. 85) traz a lume que, em seus escritos sobre a liberdade
de imprensa, Marx denuncia a exploração do trabalho artístico e a transformação da arte em
mercadoria, sob a alegação de que para que a escrita seja livre, ela não pode ser um negócio.
Em algumas passagens, o escritor denuncia que seu próprio estilo de escrita passara por censura,
reconhecendo que o modelo capitalista não simpatiza com certas produções intelectuais, em
especial a arte e a poesia. Assim, a “literatura mundial como patrimônio humano-genérico
convive com a submissão da arte ao utilitarismo e ao mercado” (DELLA FONTE, 2020, p. 86).

Em algumas de suas análises, Marx denuncia a “danificação do campo artístico no capitalismo”,


sob a perspectiva de que a Literatura que atende aos pressupostos do sistema traz discussões
triviais e a solução do conflito é “romântico-burguesa”. Isso converge para a conclusão de que
– segundo Marx – o desenvolvimento da produção artística no capitalismo não acompanha o
desenvolvimento da produção material (DELLA FONTE, 2020, p. 86, 87).

Na sequência, Della Fonte (2020, p. 88) enfatiza que Marx diferencia, a partir do campo
artístico, “o trabalho produtivo do improdutivo e os diversos tipos de produção não material”.
Além disso, a autora esclarece que Marx e Engels – ao abordarem o “romance de tendência” –
não julgam uma obra a partir do posicionamento político de seu autor.

[...] O exemplo de Balzac é enaltecido por Engels; a grandiosidade de sua obra repele
“[...] as suas próprias simpatias de classe e preconceitos políticos” (ENGELS, 2012a,
p. 69) monarquistas; nela se revela a totalidade de uma produção artística autêntica
produzida por artistas conservadores, assim como de uma arte empobrecida produzida
por artistas adeptos de posições políticas revolucionárias [...] (DELLA FONTE, 2020,
p. 88).

Trazendo as reflexões dos autores para o campo da Literatura, percebe-se que consideram o
fato de que mesmo um autor conservador pode produzir textos ricos de totalidade, que se
manifestem enquanto reflexo da realidade. Em contrapartida, pode haver autores
revolucionários que não dão conta de captar a totalidade das contradições sociais por meio de
seus personagens e enredos.

Soma-se a isso o fato de que Marx e Engels defendem o realismo enquanto critério estético
definidor da dita “boa literatura”. Ao fazerem uma análise sobre o texto de Ferdinand Lassale
Franz von Sickingen, os autores emitiram, cada um, um parecer. Chama atenção o fato de que
Marx afirma que Lassale deveria “shakespeareanizar” muito mais o drama. Engels também
afirma que o drama peca por “insuficiência realista” em alguns momentos (DELLA FONTE,
2020, p. 89). O termo “shakespeareanizar”, segundo a autora, é um neologismo criado por
Marx com sentido estético e literário.
174

[...] A predileção pelo poeta e dramaturgo inglês é tamanha que serve de critério para
a valoração estética de outras obras. A tragédia de Lassalle está longe desse ideal;
ilustra aquela literatura de tendência que pretende que os personagens expressem
diretamente a opinião de seu autor; no caso específico, Lassalle faz uma analogia
ideológica inadequada entre o fracasso das revoluções burguesas na Europa de 1848-
49 e o fracasso da insurreição de cavaleiros no século XVI (abordado no livro) que
nada tinham de revolucionário; a aliança idealizada na tragédia entre cavalaria e
camponeses não se sustenta em termos histórico-objetivos e também artísticos; na
narrativa lassalliana, esse pacto fica no plano do discurso e das intenções dos
personagens, sem figurar em suas ações. [...] (DELLA FONTE, 2020, p. 89).

Della Fonte (2020, p. 90) afirma que concorda com Vázquez considerando que “Marx não
poderia deixar de se referir às questões estéticas, pois sua concepção abrangente de ser humano
envolve o estético como dimensão humana essencial”. Assim, a arte se configura enquanto
necessidade ontológica do ser humano, possibilitando seu desenvolvimento a partir do processo
de apropriação.

A autora aborda ainda o fato de que Marx utiliza as manifestações estéticas como inspiração
conceitual em seus escritos, de modo que ele extrai do campo da arte – principalmente da
Literatura – diversas estruturas argumentativas em seus escritos. Exemplificando os escritos de
Marx sobre o 18 Brumário de Luís Bonaparte, Della Fonte (2020, p. 91) afirma que o autor se
vale de empréstimos do drama trágico para retomar os acontecimentos do golpe de Estado dado
pelo sobrinho de Napoleão na França, a fim de “desacreditar Napoleão III e seus seguidores”.

O universo teatral adentra a estrutura narrativa marxiana de modo que a sua retomada
dos eventos assume a composição de um drama teatral que revela a farsa histórica de
suposta repetição dos feitos de Napoleão Bonaparte. A distinção entre a grandeza da
tragédia e a dramaturgia burlesca torna-se elemento central em sua compreensão da
própria história (DELLA FONTE, 2020, p. 91).

A partir de estudos sobre a obra de Marx, Della Fonte (2020, p. 92) chega à conclusão de que
as menções mais relevantes do autor partem da Literatura ficcional. Considera que, em um
primeiro momento, pode-se pensar que a composição Literária da obra de Marx são apenas
epígrafes, finalizações ou ilustrações dos argumentos, todavia, tem-se a suspeita de que, para
além do uso ornamental, a apropriação da linguagem literária desempenhe papel importante na
configuração do pensamento do autor.

A autora destaca que muitas citações literárias de Marx são utilizadas a fim de compor o estilo
irônico de suas narrativas:

Ao descrever as condições de vida do trabalhador, ele contrasta de modo sarcástico:


“A habitação-luz que Prometeu, em Ésquilo, denota como uma das maiores dádivas
pelas quais ele fez do selvagem um homem, cessa de existir para o trabalhador. Luz,
ar etc., a mais elementar limpeza animal cessam de ser, para o homem, uma carência”
(MARX, 2004a, p. 140). Por sua vez, [destaca] que os economistas esforçam-se por
175

demonstrar ao trabalhador que eles não têm direito de participar do lucro e isso se
mostra vantajoso, pois, ao menos, eles possuem uma fixidez de renda, ao contrário do
capitalista sujeito às instabilidades do capital [...] (DELLA FONTE, 2020, p. 92).

Como podemos perceber a partir das reflexões da autora, a Literatura perpassa a obra de Marx
alimentando não somente as ironias dos textos, mas também alusões que compõem alegorias e
metáforas. “O recurso à prosopopeia não se mostra pertinente apenas para explicar o fetichismo
da mercadoria; torna-se também crucial para abordar o fenômeno do capital” (DELLA FONTE,
2020, p. 93).

Della Fonte (2020, p. 94) aborda ainda o fato de que Marx criou neologismos com base em sua
experiência literária. Uma conhecida figuração que migrou do campo artístico para o filosófico
na obra do autor é a palavra robinsonadas que faz alusão à personagem Robinson Crusoe, do
romance escrito por Daniel Defoe.

Em Introdução de Para a crítica da economia política, ao declarar: “O caçador e o


pescador, individuais e isolados, de que partem Smith e Ricardo, pertencem às pobres
ficções das robinsonadas do século XVIII” (MARX, 1987a, p. 3). Isso se repete em
O capital: “a economia política adora imaginar experimentos robinsonianos”
(MARX, 1985b, p. 85). Cunhado em referência ao personagem Robinson Crusoe, do
romance de Daniel Defoe, publicado em 1719 no Reino Unido, o termo foi
inicialmente atribuído às imitações desse gênero literário. Para Marx, as ficções de
robinsonadas têm correlatos no campo filosófico. O romance não é somente uma
alegoria do individualismo moderno. O sentido é o de que o ser humano abstrato,
desprendido de suas relações sociais, ilustra não apenas o coração da sociedade
civil, esfera regida pelos interesses particulares, mas é transformado em modelo da
gênese da humanidade, um ponto de partida natural da história e não o seu resultado.
Ao tomar emprestada a expressão robinsonadas, Marx extrai do âmbito estético-
literário uma figuração que é, com algum grau de liberdade, explorada e ampliada de
modo a ganhar um conteúdo filosófico: a naturalização da história (DELLA FONTE,
2020, p. 94, grifo nosso).

Em outras palavras, as ficções robinsonadas é um neologismo criado por Marx para satirizar
os economistas liberais que entendiam o ser humano não como um processo histórico, mas
como um ser individual, desconexo da realidade social em que está inserido. Entendemos que
de acordo com o materialismo histórico e dialético o homem constrói sua história por meio da
atividade vital que é o trabalho, todo esse processo não é individual, mas faz parte do contexto
social, de um percurso histórico. Assim, o homem não é o ponto de partida da história, mas sim
seu produtor e seu resultado, ao mesmo tempo.

Della Fonte (2020, p. 94) afirma que as citações literárias nos textos de Marx desvelam aspectos
da vida do pensador e de sua época, sendo que a Literatura se fez presente em seu ambiente
familiar, em experiências de escrita poética e no desejo frustrado do próprio autor em ser
176

escritor e crítico literário. A autora enfatiza que Marx conviveu com escritores e poetas ao longo
de sua vida, tanto que

[...] não causa surpresa encontrar, em alguns textos marxianos, o reconhecimento do


mérito de vários escritores ao revelarem aspectos da vida por meio de suas obras
artísticas. Depois de apresentar versos de Timão de Atenas nos Manuscritos, Marx
(2004a, p. 154) afirma: “Shakespeare descreve acertadamente a essência do
dinheiro”. Marx era bem familiarizado com o trabalho de Shakespeare e, segundo
White (1993), pode-se achar, dispersa por sua obra, a referência a, pelo menos, 25
peças shakespearianas. White sublinha que Marx tinha um grau tão elevado de
conhecimento do poeta que discutia não só interpretações, mas detalhes de grafia e
problemas de traduções das publicações shakespearianas. Além disso, o autor destaca
algumas alusões literárias feitas por Marx que, longe de serem instrumentais, indicam
“[...] seu profundo respeito pela visão dos poetas acerca dos processos sociais [...]”
(WHITE, 1993, p. 99). Nesse sentido, por vezes, Marx toma Shakespeare como fonte
primária, adiantando um dos seus principais conceitos referente ao poder de alienação
e desumanização do dinheiro (DELLA FONTE, 2020, p. 95).

Como podemos perceber, Marx utiliza-se da linguagem literária para desenvolver conceitos
caros a seu pensamento, considera Shakespeare um autor de elevada excelência, dada a sua
maestria ao tratar de problemas e questões sociais. A obra Timão de Atenas citada no excerto
acima traz a história de um nobre ateniense que era muito bom para todos que o cercavam,
dando banquetes e presentes aos conhecidos. A generosidade de Timão o leva à ruína, tem suas
propriedades hipotecadas e contrai uma dívida muito alta. Quando ele recorre às pessoas as
quais ajudou, elas se recusam a auxiliá-lo, não obtendo auxílio sequer do Estado, Timão se isola
em Atenas e passa a nutrir enorme aversão às pessoas (SHAKESPEARE, 2017). Esse breve
resumo de Timão de Atenas nos alinha ao pensamento de Marx, uma vez que Shakespeare faz
uma análise profunda da sociedade em que vive, da ganância do ser humano, da ingratidão e
sobretudo da linha que separa a riqueza da pobreza em uma sociedade dividida em classes
antagônicas.

Por fim, chama atenção o fato de que Della Fonte (2020, p. 96) afirma que as menções aos
textos literários na obra de Marx evidenciam uma preocupação do autor em relação ao estilo de
sua escrita, uma vez que ao longo de sua produção conceitual sempre houve cuidado com o
caráter expressivo desta. Acrescenta que a trama literária envolvida no texto científico do
filósofo serve não somente para explicar suas reflexões, mas também para extrapolar a barreira
imposta pela prosa conceitual em relação à representação do mundo em sua totalidade, em sua
realidade. “Assim, há momentos em que seu suporte reflexivo reside no imaginário figurativo”
(DELLA FONTE, 2020, p. 97).
177

5.2 PONTO DE PARTIDA DO MÉTODO LUKÁCSIANO E O REFLEXO DA REALIDADE

Discutimos neste capítulo – com base nos estudos de Della Fonte (2020) – a questão da
formação omnilateral e da dimensão estética em Marx. Entendemos que a apropriação dos
conteúdos historicamente produzidos pela humanidade – incluímos aqui a Literatura –
desempenha papel fundamental no desenvolvimento do ser humano em todos os seus aspectos.
Sabemos, em contrapartida, que na sociedade capitalista não há possibilidades concretas para
que se atinja tal grau de desenvolvimento. Vimos que Marx recorria à Literatura para reforçar,
ilustrar, exemplificar conceitos caros à sua teoria e que o autor se interessava por textos que
evidenciavam a realidade como um todo e reproduziam na mais profunda essência os conflitos
e problemas sociais. Marx também nos leva – em consequência – a inferir a relevância da
Literatura para o desenvolvimento do sujeito.

Para adentrarmos mais especificamente no campo das artes, recorremos à estética de Lukács, a
partir da qual vamos pensar o valor estético da obra de arte, a arte como síntese entre o singular
e o universal, a arte como história da humanidade, a importância de personagens ricos e
complexos como a própria realidade e o papel realista da arte. Para isso, recorremos a Ferreira
(2012), Costa (2014, 2018), Frederico (2000), Saccomani (2016) e ao próprio Lukács (2010,
2018).

A partir de uma visão materialista histórica e dialética, que considera que os homens se
organizam na sociedade para produzir sua humanidade ao longo da história por intermédio do
trabalho; Lukács16 cria uma estética com base marxista para analisar alguns problemas relativos
à arte. O autor analisa a arte em sua gênese histórica tendo – de acordo com Ferreira (2012, p.
25) – o trabalho como principal atividade geradora dos elementos que constituem a vida
cotidiana, ou seja, o trabalho é a atividade por meio da qual as pessoas constroem e transformam
sua própria realidade. Assim, segundo o princípio da imanência do humano, a arte é vista como
desfetichizadora da realidade.

16
Importante ressaltar que Lukács apresenta uma guinada em sua concepção teórica que vai de um idealismo
pautado no subjetivismo de Hegel, a partir do qual a noção de totalidade não seria possível, à aproximação com o
marxismo, quando sua visão estética sofre uma grande transformação a partir da concepção materialista histórica
e dialética (COSTA, 2018, p. 24-32). Não apresentaremos aqui as discussões do chamado “jovem Lukács”, uma
vez que, conforme delimitamos, nosso objetivo não é dar conta da estética do filósofo, mas elencar pontos que
foram construídos com base no materialismo histórico e dialético e que – por se adequarem à nossa defesa de uma
educação para o desenvolvimento da subjetividade do sujeito – julgamos importantes para a conclusão deste
trabalho.
178

Parte-se do princípio de que tanto a ciência quanto a arte são reflexos da mesma realidade, o
que implica em duas questões: “a existência objetiva da realidade e a possibilidade de ela ser
captada pela consciência”. A autora deixa claro, entretanto, que tal reflexo da realidade não diz
respeito à formação de uma imagem estática e passiva na mente humana, mas ao processo de
captação de constantes aproximações dos objetos e suas múltiplas relações (FERREIRA, 2012,
p. 25).

Saccomani (2016, p. 107) discute que algumas concepções teóricas têm o entendimento de que
ao reconhecer a obra de arte como forma de reflexo da realidade, o papel do sujeito passa a ser
passivo, portanto, a criatividade é anulada. Contrariando tais tendências, a autora afirma que
não somente a arte, mas também a ciência traz um reflexo da realidade que não pode ser visto
como mecânico, uma vez que
a elaboração das abstrações como mediação necessária à reprodução do concreto pelo
pensamento é, por si mesma, uma refutação da ideia de que o reflexo seja mecânico e
imediato, eliminando a atividade dos sujeitos que produzem tal reflexo ou dele se
apropriam (SACCOMANI, 2016, p. 107).

Dessa forma, a afirmação de Saccomani (2016) de que o conhecimento objetivo é criativo, parte
do princípio de que, para obtê-lo, é necessário ver a realidade para além das aparências dos
fenômenos que cercam o sujeito, é necessária a abstração, a formação de conceitos, a fim de
que mentalmente se reconstrua a totalidade de uma realidade antes fragmentada. “A consciência
humana é reflexo da realidade objetiva, é construção subjetiva do real. E, nesse sentido,
concebemos como possível o conhecimento objetivo do mundo” (SACCOMANI, 2016, p. 108).

Uma concepção de educação que nega a perspectiva da totalidade e apresenta uma visão
relativista da realidade, segundo Saccomani (2016, p. 108), não colabora com a construção da
imagem subjetiva, impedindo que os indivíduos reproduzam “subjetivamente, o mais
fidedignamente possível, a realidade concreta”, impedindo, portanto, que o ser humano se dê
conta das condições de alienação nas quais está inserido.

Outro discurso que critica a arte enquanto reflexo da realidade, segundo a autora, é aquele
segundo o qual a arte deveria se autojustificar, “a arte pela arte”, o que é defendido por aqueles
que consideram a arte uma fuga da realidade. Quando se assume a postura de que a arte deve
ser para deleite, para se buscar um momento de distração, consequentemente, incorre-se no erro
de justificar uma vida alienada e despojada do direito de completude. “A arte, desse modo, corre
179

o risco de se tornar uma espécie de adoçamento da alienação, em vez de ser uma forma de luta
contra ela” (SACCOMANI, 2016, p. 109).

Consideramos juntamente com a autora equivocado o argumento segundo o qual vincular a arte
com a realidade limitaria a criatividade, uma vez que para criar, o ser humano precisa refletir a
realidade subjetivamente.
[...] No senso comum, alguém realista é uma pessoa conservadora, não criativa e até
mesmo “não sonhadora”. Há uma generalizada e falsa ideia de que o indivíduo
altamente criativo se refugia no mundo das ideias e se esquiva da realidade. E, desse
modo, ensinar o conhecimento já existente e buscar conhecer objetivamente o mundo
seria limitar a criatividade. Entendemos as objetivações artísticas como formas de
apropriação da realidade e não como uma maneira de afastamento ou abandono do
real. A arte não pode ser tomada como sinônimo de devaneio e fantasia, pois, dessa
forma, rompe-se com a própria essencialidade da arte, que é sua capacidade de ser
uma expressão do real. Assim, ao contrário do que asseveram essas concepções, é
justamente por ser reflexo da realidade que a obra de arte possibilita o
desenvolvimento da criatividade (SACCOMANI, 2016, p. 111).

Devemos entender que o ato de produzir uma ferramenta depende da criatividade, uma vez que
tal instrumento não existia anteriormente na natureza, a ferramenta precisa ser criada e, para
criá-la, “a mente humana precisa ser capaz de trabalhar no plano das ideias, com os processos
e fenômenos objetivamente existentes” (SACCOMANI, 2016, p. 111). Portanto, o
conhecimento da realidade objetiva possibilita ao ser humano muitas conquistas, como o
domínio das leis da natureza para conseguir que um avião voe, por exemplo. “Se o ser humano
não tivesse construído o reflexo subjetivo da realidade objetiva de forma mais desenvolvida
que o reflexo do psiquismo animal, os indivíduos jamais seriam criadores” (SACCOMANI,
2016, p. 111).

Conceito caro aos estudos lukácsianos, a questão do reflexo da realidade, segundo Frederico
(2000, p. 301), relacionada à especificidade da arte, constitui-se justamente no fato de que o
reflexo desta é antropomorfizador. Sendo o comportamento do cotidiano do homem o início e
o fim de todas as ações, Lukács considera que arte, ciência e vida cotidiana são reflexos da
realidade, partindo da vida cotidiana. Arte e ciência, todavia, são formas puras desse reflexo,
formas “desenvolvidas de reflexo, de recepção, da realidade objetiva na consciência dos
homens”:

Enquanto a arte e a ciência se desenvolvem intensamente e, por isso, atingem uma


visão depurada da realidade, o pensamento cotidiano debate-se com os seus limites.
Evidentemente, existe nele já um conhecimento (= reflexo) do mundo exterior. Basta
pensar aqui no trabalho e na linguagem, formas básicas de objetivação da vida
cotidiana. O trabalho aproxima-se da arte (artesanato), mas seu compromisso com a
180

subsistência tolhe a possibilidade de desenvolvimento. Ele também aproxima-se da


ciência, mas sua natureza fluida e mutável impede sua identificação com o reflexo
universalizante e abstrato, próprio da atividade científica (FREDERICO, 2000, p. 304,
grifo nosso).

A diferença entre os tipos de reflexo da realidade, segundo Saccomani (2016, p. 112) resulta do
“caráter ativo, seletivo e ordenador de cada tipo de reflexo”, o que não significa que essas
formas sejam um tipo de “deformação subjetiva do real”, isso porque a realidade é uma só,
podendo ser refletida de diferentes maneiras. Lukács considera, portanto, que ciência e arte são
reflexos de uma mesma realidade, mas enquanto a ciência se pauta no conhecimento do mundo
objetivo, sendo, desantropomorfizadora; a arte se pauta no autoconhecimento, sendo, portanto,
conforme já afirmamos, antropomorfizadora, ou seja, tem em seu centro sempre o ser humano.
Saccomani (2016, p. 113) afirma que a objetividade estética (antropomorfizadora) difere da
objetividade científica (desentropomorfizadora) porque a ciência prima por buscar a essência
da realidade e explicá-la a partir de abstrações,

[...] desse modo, ultrapassa os sentidos humanos e formula suas leis para além da
aparência, a fim de captar a essência da realidade. Isto é, busca captar a essência de
todos os fenômenos com a mesma objetividade, reflete a realidade
desantropomorficamente por meio de abstrações e instrumentos objetivos. Assim, a
essência, por meio de um sistema de abstrações, adquire forma autônoma em relação
à aparência17 (SACCOMANI, 2016, p. 113).

A grande questão é que o pensamento cotidiano também tem o ser humano em seu centro,
todavia, deve-se considerar que: “O antropomorfismo do pensamento cotidiano está centrado
no imediato da vida do indivíduo, ao passo que a arte insere os problemas vividos pelos
indivíduos no curso mais amplo da história da humanidade” (FERREIRA, 2012, p. 33). Nas
palavras de Frederico (2000), o pensamento cotidiano é limitado pelas questões objetivas de
existência humana, prova disso é o exemplo dado pelo autor em relação ao trabalho, quando
afirma que o mesmo se aproxima da arte, mas seu compromisso com o sustento do homem
impede seu desenvolvimento. O reflexo da vida cotidiana pressupõe um materialismo
espontâneo:
[...] os homens intuitivamente percebem que o mundo exterior existe de modo
independente de sua consciência. Mas o conhecimento das coisas fica bloqueado por
uma outra característica da cotidianidade: a vinculação imediata entre teoria e prática,
que conduz a uma imediatez do comportamento restrito à aparência manipulável das
coisas, e desconhecedor da essência constitutiva dos fenômenos (FREDERICO, 2000,
p. 304).

17
Pode parecer – em um primeiro momento – “que entendemos que a ciência desconsidera totalmente aquilo que
é aparente. De modo algum! A aparência também faz parte do fenômeno e é a expressão da essência”. A aparência
faz parte do processo, uma vez que ela é uma das determinações da essência (SACCOMANI, 2016, p. 114).
181

Essa vinculação imediata entre teoria e prática, a necessidade do “materialismo espontâneo”


imposta pela imediatez da vida cotidiana faz com que o ser humano se mantenha apegado às
aparências dos fenômenos, a uma realidade fragmentada, distorcida, o que faz com que ele se
relacione com o mundo de forma heterogênea. Esse homem Lukács denomina, segundo
Frederico (2000, p. 304), de “homem inteiro”, ou seja, o homem imerso na cotidianidade que é
contraposto pelo “homem inteiramente”, o que está concentrado na arte e na ciência.

Com base nos clássicos marxistas, reiteramos que Lukács defende que o ser humano se
relaciona com a natureza por meio do trabalho em uma relação dialética que modifica tanto o
mundo exterior quanto ele mesmo. Ferreira (2012, p. 28) assegura que falar das formas abstratas
do reflexo artístico requer uma compreensão de sua origem a partir do trabalho humano ao
longo da história até o momento em que a arte ganhou características específicas, assim, a
origem das artes é marcada pelas transformações ao longo dos tempos, pela passagem do ser
natural ao ser social.

Nomeia-se reflexo estético, segundo Ferreira (2012, p. 38), o processo de apropriação da


realidade humana pela consciência. Sendo assim, a arte nasce na humanidade e se orienta em
direção a ela. Contra sua vontade ou não, pintores, escritores, escultores e outros artistas
produzem obras que refletem um momento histórico da humanidade.

O longo processo de constituição da especificidade do reflexo artístico é, portanto, um


processo de construção de uma forma de objetivação, por meio da qual os seres
humanos fazem das obras de arte recursos externos, nos quais está contida a memória
viva da humanidade. Por meio do contato com as obras de arte, os indivíduos não
apenas adquirem conhecimentos sobre a história da humanidade, eles a revivem
como se fosse sua própria vida. A arte faz o indivíduo reviver o passado da
humanidade, vivenciar dramas da humanidade como se fossem seus dramas pessoais
(FERREIRA, 2012, p. 38, grifo nosso).

Outras formas de reflexo da realidade – como a apropriação dos conteúdos clássicos científicos
e filosóficos – acumulam conhecimento sobre a humanidade, sobre sua história. A arte,
entretanto, tem uma função a mais, ela proporciona ao leitor/apreciador reviver dramas da
sociedade como se fizessem parte diretamente de sua vida. Não se trata de adotar uma
perspectiva pós-moderna de atemporalidade da história: “O passado continua a ser passado,
mas por meio da arte ele é revivido com a mesma força com que são revividos em sua mente
momentos importantes de sua infância” (FERREIRA, 2012, p. 39).
182

Saccomani (2016, p. 114) afirma que a obra de arte possui uma forma própria de objetividade,
sendo que “cada obra de arte constitui-se em uma totalidade em si mesma, na qual cada
elemento está necessariamente em relação com esse todo”. Esse poder de evidenciar a realidade
desfragmentada mostrando a totalidade dos fenômenos faz com que a apropriação das grandes
obras de arte potencialmente promova um desenvolvimento na personalidade do indivíduo a
partir do desenvolvimento de sua subjetividade. Assim, a “especificidade da obra de arte
consiste em ser um tipo de reflexo antropomorfizador da realidade objetiva”, porque ela reflete
por meio dos homens e para os homens uma realidade que é propriamente humana, “atua na
subjetividade para mostrar o mundo como fruto do processo histórico – resultado da
criatividade humana – e evidenciar que somos resultado da prática social (...)” (SACCOMANI,
2016, p. 114, 115).

Quando se fala na arte como reflexo da realidade, Saccomani (2016, p. 117, 118) afirma que o
termo não pode ser tomado em sentido literal, isso porque esse reflexo não se constitui em uma
cópia mecânica e direta da realidade que exclua a criatividade do artista:

[...] O reflexo não é uma fotocópia da realidade. Vale dizer que até mesmo a forma
aparentemente mecânica de reflexo, que seria a fotografia, não é uma cópia
empobrecida da realidade. A fotografia reproduz o real em um processo ativo, repleto
de filtros e intenções na escolha de aspectos e momentos daquilo que se pretende
destacar da realidade fotografada. Com efeito, a obra de arte ultrapassa os limites de
uma reprodução meramente mecânica da realidade; trata-se de um reflexo mimético
(SACCOMANI, 2016, p. 118).

Assim, mesmo uma imagem estática como a exposta em uma fotografia não é uma cópia
meramente mecânica, uma vez que ela surge a partir do processo criativo do artista. De igual
modo, dá-se o trabalho de reprodução da realidade na Literatura, não como uma cópia
empobrecida, mas como a possibilidade de vivência de uma realidade mais intensa, fator que
abordaremos mais adiante.

Faz-se ainda necessário afirmar que, segundo Ferreira (2012), a arte deve ser entendida como
uma necessidade ontológica, todavia, em uma sociedade onde a luta de classes se mostra
presente, um indivíduo alienado não reconhece sua própria humanidade em obras de arte. Para
a autora:
A ideia de “homem rico” tratada nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos é
fundamental para que entendamos a arte como necessidade humana ontologicamente
condicionada. Para Marx (1989, p. 178) “[...] o homem rico é simultaneamente o
homem necessitado de uma totalidade de manifestação humana da vida. O homem do
qual a sua própria realização efetiva existe como necessidade, como carência”. Por
183

consequência, para que a realização humana plena se consubstancie, o ser humano


deve ter autonomia e controle de sua existência” (FERREIRA, 2012, p. 47, 48).

Um ser humano rico nos termos de Marx é, portanto, um homem que carrega necessidades de
múltiplas e ricas relações. “À medida que o ser humano se faz senhor de sua existência e
necessita da totalidade das manifestações humanas da vida, ele aproxima-se da verdadeira
essência humana, essência criada historicamente pela prática social” (FERREIRA, 2012, p. 48).
No conjunto dessas necessidades ontológicas, segundo a autora, a arte e o conhecimento
científico estão contidos.

Embora a arte e o conhecimento científico sejam necessidades ontológicas do ser humano,


segundo pensadores do marxismo, devemos rememorar que para o homem se aproximar de sua
verdadeira essência18 humana, ele não pode estar alienado às questões impostas pela sociedade
capitalista, conforme já discutimos; por exemplo, uma pessoa que não tem suas necessidades
básicas satisfeitas, não vai ter necessidade de humanizar-se por meio das artes. Uma criança
que vai para a escola com fome, não tem condições objetivas de se apropriar da mais
interessante das aulas, tampouco um adulto que chega de um dia exaustivo de trabalho pesado
terá condições de descansar apreciando a leitura de Morte e Vida Severina, de João Cabral de
Melo Neto, ou de qualquer obra da grande Literatura. Na sociedade em que vivemos, a
apreciação estética é reservada às elites, mas devemos romper com essa questão – é preciso que
todas as pessoas possam se apropriar da criação artística fruto do desenvolvimento histórico
dos seres humanos individualmente e da humanidade coletivamente. Como afirma Saviani, é
imprescindível à classe trabalhadora dominar o que os dominantes dominam para alcançar sua
libertação.

Conforme temos afirmado, a arte está estritamente ligada à produção humana ao longo da
história, não sendo possível compreendê-la desconexa do todo social, muito menos possível
entender que a Literatura deva ser utilizada para deleite ou entretenimento descompromissado;
isso porque a arte, e, portanto, a educação literária tem o compromisso social de produzir no
homem sua humanidade, permitir que o ser humano tenha uma compreensão da realidade que
o cerca para além das aparências, seja conhecedor de sua própria história e tenha condições
assim de modificá-la.

18
Entendemos como essência a síntese das múltiplas possibilidades de desenvolvimento humano (FERREIRA;
DUARTE, 2021).
184

Entendemos com Ferreira (2012, p. 51) que se há possibilidade de desenvolvimento humano


ou de manutenção da vida e tais possibilidades não se concretizam, vive-se um processo de
alienação. Alienação estética acontece quando o ser não conhece e não utiliza as possibilidades
de apropriação e objetivação da arte, tais indivíduos se alienam da essência humana, da síntese
de possibilidades esteticamente produzidas no decorrer da história. Por isso insistimos em que
a educação escolar seja utilizada para fins de transmissão do saber elaborado – do texto literário
de qualidade – uma vez que a escola pode ser o único meio de contato constante e mediado do
indivíduo com as produções mais apuradas elaboradas ao longo da história da humanidade.

Antes de nosso aprofundamento, precisamos abordar ainda duas questões. A primeira diz
respeito à distinção entre singular, particular e universal; a segunda diz respeito à catarse. Os
conceitos de singular e universal são amplamente utilizados pelas teorias do “aprender a
aprender” no sentido de que o singular evoca o subjetivismo do indivíduo desconectado da
realidade, e o universal evoca uma ideia de arte atemporal, desconectada da história. Veremos
essa distinção a seguir.

5.2.1 Singular, particular e universal

Entendida, sob perspectiva marxista, como mediação entre a singularidade e a universalidade,


a particularidade é exposta por Lukács em algumas de suas obras. Ferreira (2012, p. 62) afirma
ser decisiva a questão da particularidade na estética lukacsiana, uma vez que ela indica a
superação de duas concepções unilaterais: a singularidade – que limita a arte à subjetividade do
artista e/ou a do receptor; e a universalidade – que limita a arte à representação de valores
universais humanos desconectados da história, onde os indivíduos são exemplos abstratos de
uma universalidade abstrata, carente de historicidade.

Em Introdução a uma estética marxista, Lukács (2018, p. 193) chama atenção para o fato de
que um dos grandes interesses da burguesia decadente – que visa a manutenção da ordem
vigente – é o de identificar “inteiramente a subjetividade – e sobretudo a artística – com a
particularidade mais imediata de cada sujeito”. Não à toa, várias escolas literárias colocam a
subjetividade descompromissada e imediata no centro de suas reflexões:

Inteiras escolas e correntes de nosso tempo, como o surrealismo, colocam-na no


centro da investigação estética. O surrealismo pretende, precisamente, anular qualquer
limite, qualquer norma, qualquer valoração no interior da subjetividade imediata.
185

Breton busca um ângulo a partir do qual desapareça inteiramente qualquer distinção


entre a vida e a morte, entre o real e o imaginário, entre o passado e o futuro. E,
coerentemente, o surrealismo chega ao ponto de não reconhecer nenhuma diferença
entre homem normal e homem louco. Enquanto o expressionismo se limitou a
reclamar para si certos desenhos de loucos “geniais”, os surrealistas não pretendem se
limitar a estes casos e exigem que seja reconhecido um igual direito para todos os
loucos, de qualquer ponto de vista (LUKÁCS, 2018, p. 193).

Embora as teorias caricaturizadas pelo autor representem casos mais extremos, devemos ficar
atentos para o fato de que não somente no passado, mas no presente, as pedagogias do “aprender
a aprender” têm reverberado práticas, teorias curriculares, indicações de leituras que visam
apenas ou prioritariamente ao deleite, à aproximação com o cotidiano do aluno, ao atendimento
dos interesses imediatos do educando, ao mero devaneio e à “expressão da subjetividade”, da
criatividade (supostamente) espontânea – como se tais expressões fossem desconexas da
totalidade histórica e do desenvolvimento intelectual do educando; enfim, teorias que esvaziam
o currículo básico sob o falso preceito – conforme já discutimos nesta tese – de se pautarem na
defesa de uma educação democrática.

Superando tais conceitos, a particularidade em Lukács reconhece a obra de arte como única,
mas afirma que a mesma está ligada à história da humanidade e ao seu desenvolvimento.
Ferreira (2012, p. 62) afirma que a categoria da particularidade faz com que possamos
compreender o fato de que a individualidade de uma obra da Literatura não se desconecta do
desenvolvimento da humanidade, realiza uma síntese entre singular e universal. Sobre essa
questão, Lukács (2018) discute que:

No que diz respeito à superação dos dois extremos da universalidade e da


singularidade na particularidade, a teoria do reflexo — corretamente entendida —
demonstra mais uma vez como são radicalmente falsas todas as teorias irracionalistas,
ou antirracionais, da arte. Esta superação jamais significa desaparecimento, mas trata-
se sempre também de uma conservação. Isto deve ser particularmente sublinhado,
sobretudo com relação ao papel que desempenha a universalidade no reflexo estético.
Toda obra de valor discute intensamente a totalidade dos grandes problemas de sua
época: tão somente nos períodos de decadência estas questões são evitadas, o que se
manifesta, nas obras, em parte como carência de real universalidade, em parte como
enunciação nua de universalidades não superadas artisticamente (falsas e distorcidas
como conteúdo) (LUKÁCS, 2018, p. 149, grifo nosso).

De acordo com o filósofo húngaro, a arte não pode estar desconectada da realidade, o que anula
teorias antirracionais. Seu papel universal no reflexo estético deve estar ligado aos problemas
– aos grandes problemas – de sua época. Chama atenção o fato de que, em momentos de crise
ou decadência, abordar grandes questões da época é tema comumente evitado por autores que
visam – ou são forçados a – seguir as regras impostas pelos sistemas de governo e pelas classes
dominantes.
186

A obra de arte – em sua individualidade – deve ser uma totalidade que reflita a realidade social
de uma forma intensificada, colocando os sujeitos em contato com a realidade da forma como
não acontece no cotidiano. “Essa síntese entre o singular e o universal faz da obra de arte um
recurso que permite às pessoas viverem intensificadamente aquilo que custou à humanidade
muito tempo, muitas gerações, muitas vidas” (FERREIRA, 2012, p. 63). Alegrias, sofrimentos,
lutas, perdas e vitórias produzem no indivíduo um tipo de “elevação”, a que se denomina
catarse.

Abrimos um parêntese para a observação de que Saccomani (2016, p. 129) considera que a
particularidade na obra do esteta húngaro é utilizada em dois momentos: primeiramente para se
referir à qualidade da obra de arte como síntese entre singularidade e universalidade – conforme
citamos anteriormente – e, em segundo lugar, para se referir ao indivíduo que se encontra
limitado às necessidades imediatas voltadas à reprodução de sua própria singularidade. Assim,
a autora afirma que o particular enquanto condição do indivíduo é o ponto central do processo
da criação artística e, em consequência, a chave para que se entenda como a subjetividade
própria do indivíduo se incorpora à arte e é – ao mesmo tempo – superada por esta.

Podemos dizer que cada artista (indivíduo singular) existe como síntese de múltiplas
determinações. Nessas multideterminações, há determinações universais
particularizadas que se expressam, por exemplo, em objetivações artísticas. Trata-se,
portanto, da síntese entre a singularidade do artista e sua relação com o gênero humano
(universalidade). A superação da singularidade transforma, vai além, supera por
incorporação, incorpora o que já existia e transforma-o de maneira superior
(SACCOMANI, 2016, p. 130).

De acordo com Lukács (2018), as categorias de particularidade, singularidade e universalidade


estão – em uma constante relação dialética – convertendo-se uma em outra e o movimento de
reflexo da realidade conduz de um extremo ao outro.

No interior deste último movimento é que consegue se expressar o caráter peculiar do


reflexo estético. De fato, enquanto no conhecimento teórico este movimento de dupla
direção vai realmente de um extremo a outro, tendo o termo intermediário, a
particularidade, uma função mediadora em ambos os casos, no reflexo estético o
termo intermediário torna-se literalmente o ponto do meio, o ponto de recolhimento
para o qual os movimentos convergem. Neste caso, portanto, existe um movimento
da particularidade à universalidade (e vice-versa), bem como da particularidade à
singularidade (e ainda vice-versa), e em ambos os casos o movimento para a
particularidade é o conclusivo. Tal como o gnosiológico, o reflexo estético quer
compreender, descobrir e reproduzir, com seus meios específicos, a totalidade da
realidade em sua explicitada riqueza de conteúdos e formas. Modificando
decisivamente, do modo acima indicado, o processo subjetivo, provoca modificações
qualitativas na imagem reflexa do mundo. A particularidade é fixada de tal modo que
não mais pode ser superada: sobre ela se funda o mundo formal das obras de arte. O
187

processo pelo qual as categorias se resolvem e se transformam uma na outra sofre uma
alteração: tanto a singularidade quanto a universalidade aparecem sempre superadas
na particularidade (LUKÁCS, 2018, p. 149, grifo nosso).

Essa modificação no processo subjetivo do ser que provoca modificações qualitativas na


imagem do mundo objetivo, é o tipo de “elevação” do qual Ferreira (2012) fala também com
base nos estudos de Lukács. Tal modificação, conforme temos discutido, é denominada pelos
teóricos marxistas catarse. É o momento em que o indivíduo consegue se desconectar da vida
cotidiana, não para fugir de sua realidade, mas para produzir uma conexão mais profunda que
lhe permita viver com maior intensidade suas contradições e a realidade que o cerca.

Vale ressaltar que a singularidade e a universalidade são superadas pela particularidade, o que
não significa seu desaparecimento, mas, segundo Saccomani (2016, p. 132), a “superação por
incorporação”. A particularidade – segundo a autora – é obtida por meio do típico, categoria
trabalhada por Lukács:

[...] de grande importância para a compreensão da obra de arte como reflexo da


realidade. Engels reportou-se à categoria da tipicidade em carta enviada à jornalista e
escritora inglesa Margaret Harkness. Nessa carta, Engels afirma que “o realismo
significa reproduzir os caracteres típicos em circunstâncias igualmente típicas”
(MARX & ENGELS, 2010, p. 67). O típico é, pois, a síntese de singular e universal.
Tanto os personagens quanto as situações típicas são, para a estética lukacsiana,
características essenciais da rica obra de arte. Não se trata, portanto, de “personagens
e situações médias, fixas e estereotipadas” (FREDERICO, 1997, p. 53), mas da junção
entre a vida singular de um personagem e as possibilidades de desenvolvimento
histórico-social do gênero humano (SACCOMANI, 2016, p. 132).

Por meio do típico, segundo a autora, a arte se constitui como reflexo da realidade, dirigindo-
se ao universal, mas não se desligando do singular. “O típico, assim, não é uma média do que
é comum às pessoas. É uma síntese do que há de mais essencial, na qual aparecem as mais
importantes tendências do desenvolvimento do gênero humano” (SACCOMANI, 2016, p. 133).

Reiteramos que não temos o objetivo nesta tese de esmiuçar a estética de Lukács, todavia, as
reflexões contidas nas breves linhas deste capítulo tendem a corroborar o nosso objetivo que é
o de identificar elementos norteadores para a seleção de textos literários a serem lidos e
trabalhados em sala de aula para alunos do Ensino Médio. Não estamos trabalhando com listas
de leitura, mas tentando mostrar ao docente que há critérios que podem ser adotados na escolha
de textos que permitam aos seus alunos uma visão ampla da realidade que os cerca.
Logicamente, conforme já discutimos, entendemos que muitas questões objetivas prejudicam
as escolhas dos docentes, como a falta de bibliotecas e bibliotecários, a ausência de exemplares
188

para todos os alunos, a falta de valorização do professor que precisa trabalhar muitas vezes em
três horários para sustentar sua família e que – devido a isso – não consegue ele mesmo tempo
para se apropriar da Literatura clássica. Ressaltamos, todavia, que precisamos aproveitar
eventuais oportunidades para adquirir livros de qualidade para a escola e, assim, poder utilizá-
los com os alunos: seja por meio de programas governamentais que vez ou outra permitem ao
docente escolher, seja utilizando o que está em domínio público na internet, seja por meio de
plataformas digitais como “Árvore de livros”. Não defendemos neste trabalho o uso
desgovernado de textos eletrônicos, até mesmo porque existem várias implicações nessa
questão e porque consideramos a importância da materialidade do texto para o desenvolvimento
da leitura e o consequente desenvolvimento do aluno. Todavia, se não há meios de conseguir
os exemplares impressos ou boas edições virtuais (tratamento editorial e design favorável à
acessibilidade e legibilidade), fazer uso de meios legais para trabalhar textos clássicos digitais
com alunos, não lhes negando o direito à Literatura, pode ser uma alternativa. Traremos, na
sessão seguinte, um breve apontamento sobre o conceito de catarse para a estética lukácsiana,
tal como entendemos.

5.2.2 Catarse e mudança na subjetividade do indivíduo

Defendido como princípio teórico-metodológico central para o ensino de Literatura por Ferreira
(2012), o conceito de catarse se dimensiona no materialismo histórico e dialético que tem por
base – conforme temos afirmado – a concepção de que o desenvolvimento do mundo se pauta
na matéria e de que o pensamento é reflexo filosófico do ser humano com o mundo que está em
constante movimento e processo de mudança.

De acordo com Lukács (1966), tanto na vida cotidiana, quanto na ciência, faz-se necessário o
processo de suspensão das atividades ativas do homem, ou seja, de sua vontade de intervir
efetivamente no mundo circundante, a fim de que se alcancem os objetivos traçados. No caso
da ciência, a desconexão com a atividade prática como um dos momentos do processo é mais
importante ainda para que se alcancem as elaborações teóricas mais apuradas. Em relação à
arte, Lukács (1966, p. 495, 496) esclarece que:
[...] a receptividade estética difere qualitativamente desses dois esquemas receptivos
da vida cotidiana e da ciência. Difere do primeiro, antes de tudo, porque lhe falta o
propósito autônomo e concretamente determinado como motivo para a suspensão da
atividade. E também porque a suspensão de atividades concretas na vida não suprime,
pelas razões acima mencionadas, a intenção de atividade; é meramente um recuo para
saltar melhor, de tal forma que o sujeito, o homem inteiro, permanece inalterado antes,
189

depois e durante esta suspensão. (Não precisamos detalhar a diferença com relação à
situação no reflexo científico; essa diferença é determinada pelo contraste entre as
tendências de desantropomorfização e antropomorfização).

Dessa forma, reiteramos que, segundo Lukács, conforme já discutimos, a ciência tem uma
tendência desantropomorfizadora, segundo a qual a suspensão das atividades práticas visa
eliminar ao máximo as interferências humanas de relacionamento com a realidade. Já na
vivência estética, cuja tendência é antropomorfizadora, visa-se a transformação da
subjetividade, ou seja, pela vivência estética o homem consegue se conectar inteiramente com
a realidade que o cerca.

Como para a receptividade estética a suspensão da atividade e da finalidade é ao


mesmo tempo conscientemente transitória e absoluta, há uma necessidade de
transformar o homem inteiro no homem inteiramente tomado por aquela recepção. O
poder orientador e evocativo do meio homogêneo penetra na vida mental do receptor,
submete sua maneira habitual de contemplar o mundo, impõe-lhe acima de tudo um
novo “mundo”, enche-o de conteúdos novos ou vistos de uma nova maneira e assim
o move a receber este “mundo” com sentidos e pensamentos rejuvenescidos e
renovados. A transformação do homem inteiro em homem inteiramente tomado atua
aqui, portanto, como uma ampliação e enriquecimento de sua psique em termos de
conteúdo e forma, tanto real quanto potencial. Novos conteúdos chegam a ele e
aumentam seu tesouro experiencial. O ambiente homogêneo o orienta a recebê-lo, a
apropriar-se do novo do ponto de vista do conteúdo, e assim sua capacidade
perceptiva, sua capacidade de reconhecer e desfrutar como tais novas formas
objetivas, novas relações, etc., se desenvolve simultaneamente (LUKÁCS, 1966, p.
496, grifo nosso, trad. nossa).

Lukács (1966) concebe que a arte nasce na vida cotidiana, todavia, se manifesta como uma
forma superior de recepção e de reprodução da realidade. Não à toa, partindo da esfera
cotidiana, o receptor – antes em meio heteregêneo (sob influência de questões próprias de sua
vivência) –, depara-se com a figura homogeneizadora (a obra de arte) que torna possível a
elevação da consciência desse indivíduo, de modo que ele reconheça sua essência e seu papel
na história ao longo do desenvolvimento humano.

De acordo com Saccomani (2016, p. 134), a arte somente desempenha seu papel social quando
promove a catarse no indivíduo. Esta, por sua vez, pode ocorrer tanto no momento de criação
da obra quanto durante a recepção da mesma, ou ainda em momentos proporcionados pela
educação escolar nos quais o aluno é posto em contato com as “demais objetivações genéricas
para si”. Em outras palavras, “o momento catártico é parte do processo de homogeneização,
que marca a superação da singularidade e da vida cotidiana em direção à genericidade para si”
(SACCOMANI, 2016, p. 134).
190

O processo catártico é, pois, entendido como o momento em que a cultura


historicamente acumulada é incorporada pelo indivíduo e se efetiva como parte de sua
individualidade. Mas, como bem explica Marsiglia (2013, p. 235), “a catarse não é
‘uma luz que se acende’, um ‘clique’ que acontece na cabeça do aluno e que muda
tudo em sua vida. Isso nos levaria a uma naturalização do processo catártico”. No
processo de catarse há um salto qualitativo, que pode ser de maior ou menor
intensidade, mas, de alguma forma, esse salto modifica qualitativamente a relação do
indivíduo com as objetivações humanas [...] (SACCOMANI, 2016, p. 125, 136).

Vale ressaltar que, segundo Saccomani (2016, p. 136, 137), Vigotski defendia a importância da
“concepção da arte como catarse” e o “sentido social desempenhado por ela” no
desenvolvimento do gênero humano. Segundo a autora, o psicólogo soviético analisou a arte
como uma:
[...] técnica criada pelo ser humano para objetivar seus sentimentos, o que, por sua
vez, possibilita que outros indivíduos entrem em contato e se relacionem com esses
sentimentos como um objeto externo, que se interioriza por meio da catarse. Assim,
por meio da obra de arte, os seres humanos podem objetivar seus sentimentos,
desenvolvê-los e deles se reapropriar.

Em linhas gerais, na acepção vigotskiana, a arte é um procedimento no qual o ser


humano atribui existência social objetiva aos sentimentos e, quando tais sentimentos
retornam aos indivíduos, ou seja, quando são apropriados por eles, ocorre a catarse,
ou, em outras palavras, os indivíduos interiorizam por meio da catarse os sentimentos
objetivados pela criação artística (SACCOMANI, 2016, p. 136).

Dessa forma, a autora conclui que quando um indivíduo se apropria de uma obra de arte – seja
pela leitura de um poema, por escutar uma música ou por assistir a uma peça de teatro – ele se
apropria – em consequência – “dos sentimentos, emoções, hábitos e valores ali objetivados”
(SACCOMANI, 2016, p. 137), entende-se, em contrapartida, que não é qualquer obra de arte
que dará conta desse processo. Para obter-se o efeito catártico, faz-se necessário que a obra de
arte reflita temas decisivos para a humanidade em determinado contexto histórico. Mais que
isso, as obras que aqui nomeamos “clássicas” emocionam não apenas no contexto em que são
produzidas, mas ao longo dos tempos, “ampliando a visão humana acerca da realidade social e
contribuindo para a formação e enriquecimento subjetivo dos seres humanos” (SACCOMANI,
2016, p. 146).

Importante considerar que o momento da fruição estética não gera efeito imediato na prática
social, mas proporciona uma ruptura com o imediatismo e com o pragmatismo da vida
cotidiana. Em consequência, o receptor modifica sua visão sobre a prática social, uma vez que
ocorre um salto qualitativo em sua subjetividade (SACCOMANI, 2016, p. 139).

Saccomani (2016, p. 142) reitera que não somente Vigotski, mas também Lukács (conforme
vimos afirmando) aborda a categoria de catarse. Reconhecendo que tal categoria é inicialmente
191

utilizada no gênero trágico por Aristóteles, a autora diferencia tal acepção das considerações de
Lukács.
[...] O filósofo húngaro, embora reconheça que a categoria da catarse, tanto na vida
como na arte, tem certa afinidade com o trágico, discorda de Aristóteles, o qual
reconhece a catarse apenas em um gênero artístico específico: a tragédia. Ao mesmo
tempo, Lukács concorda e reconhece que nesse gênero a catarse aparece de forma
mais evidente, na medida em que os conflitos e as relações são mais agudos,
colocando em evidência todo o núcleo da individualidade [...] (SACCOMANI, 2016,
p. 142).

Segundo a autora, em Lukács o termo ganha sentido mais amplo, tendo origem na vida social
do ser humano.
A catarse é esse duplo movimento de crítica da vida (da sociedade) e da subjetividade
individual; para que ela ocorra, faz-se necessário, pelo lado da obra de arte, que esta
reflita com riqueza e profundidade a dialética entre a singularidade de determinada
realidade sócio-histórica e a universalidade do gênero humano (SACCOMANI, 2016,
p. 144).

Ao longo desta tese temos defendido a importância da educação voltada para o ensino de
conteúdos clássicos, em especial, do ensino de Literatura com base em textos clássicos que
possibilitem a humanização do indivíduo e seu processo de desenvolvimento omnilateral.
Conforme discutimos, Lukács (1966) afirma que a catarse ocorre a partir da vivência estética e
promove a transformação da subjetividade do indivíduo, o que abre portas para seu processo de
humanização e para seu desenvolvimento em todos os aspectos. Quando o filósofo afirma que
o homem se transforma e recebe um novo mundo com sentidos e pensamentos rejuvenescidos
ele não está tratando de uma visão onírica, desconectada da realidade, pelo contrário, ele fala
de uma visão inteira da realidade, livre de fragmentações, na qual o homem enriquece sua
psique tanto real quanto potencial, ou seja, entende-se que o processo não tem um fim em si
mesmo, mas ele continua acontecendo, é importante que continue por dois motivos: para que a
história da humanidade continue sendo construída e objetivada nos campos da ciência, das artes
e da filosofia e para que o ser humano se liberte dos processos de alienação que o constituem
na sociedade capitalista. A educação não vai dar conta disso diretamente, mas tem o papel de
formar indivíduos que tenham consciência de si, do mundo em que vivem e do que esperam
para seu futuro.

5.2.3 Valor da historicidade

Quando se fala em formação humana, segundo Duarte (2013, p. 66), o valor das grandes obras
de arte e da Literatura está no fato de elas preservarem e sintetizarem a experiência histórica da
192

humanidade e, por intermédio delas, o indivíduo tem condições de vivenciar experiências como
sua própria vida.

Otelo, de Shakespeare, teve sua primeira publicação em 1622 e ainda hoje chama atenção pela
abordagem de temas que afetam a realidade humana como ciúmes, traição, amor, inveja,
racismo; o autor trouxe para os palcos a discussão sobre um casamento inter-racial entre Otelo
e Desdêmona, o que era um escândalo para a época. Capitu, a mulher indecifrável do romance
Dom Casmurro, de Machado de Assis, com olhos de ressaca, problematiza o lugar social
reservado à mulher na sociedade dos Novecentos, perturbando, ainda que obliquamente, o
macho-rico-branco dominante; diferentemente de A Moreninha, moça submissa, criada para se
entregar ao amor. Todos – em menor ou maior grau – fazem com que possamos refletir sobre
nós mesmos, sobre a vida, sobre a sociedade, sobre as questões que nos cercam ainda hoje e
marcaram determinadas épocas. Por intermédio de uma personagem, o indivíduo entra em
contato com uma rica síntese de personalidades, com sua própria história, com valores que lhe
permitem enxergar além da fragmentação existente em uma sociedade dividida em classes
antagônicas.

Retomando as discussões da tese de Ferreira (2012), rememoramos que a autora afirma ser o
valor da obra de arte diretamente proporcional à sua ligação em relação aos grandes problemas
da humanidade.
Isso é que torna significativa para um indivíduo de hoje uma obra de arte escrita noutro
momento histórico e noutras circunstâncias sociais. A categoria de particularidade
permite compreender que a individualidade da obra literária, seja um poema, seja um
conto ou um romance, não se isola do desenvolvimento da humanidade em sua
universalidade, realizando isto sim uma síntese entre o singular e o universal
(FERREIRA, 2012, p. 62).

Dessa forma, de acordo com Duarte (2013, p. 67), a arte traz para a vida de cada pessoa uma
riqueza que dificilmente seria trazida pela cotidianidade, uma vez que, por mais rica que seja a
vida de determinada pessoa, ela nunca terá a riqueza acumulada pela história da humanidade
ao longo dos tempos: “Essa riqueza, experiências, lutas, dramas, alegrias, tristezas etc. chegará
à vida do sujeito e será por ele vivenciada como se fosse sua própria vida por meio das
objetivações artísticas”.

Complementarmente, Saccomani (2016, p. 110) afirma que “em qualquer sociedade, a vida do
gênero humano será sempre maior e mais rica que a vida do indivíduo singular”, todavia
importa ressaltarmos que a vida de cada indivíduo é parte representativa da história da
193

humanidade. A arte, dessa forma, não é necessária para fazer com que o indivíduo fuja da
realidade,

[...] não como complemento de uma vida diante da qual estamos sempre insatisfeitos
e frustrados, e sim como enriquecimento permanente da vida humana e como maneira
para melhor compreendermos a realidade concreta, o mundo, a vida e a nós mesmos.
Quando a arte é verdadeiramente rica, traz contraditoriamente o sentimento da
grandeza da humanidade e a acentuação do sentimento de insatisfação com nossa
vida individual. E a mediação entre essas duas coisas deve ser a busca pela
transformação da sociedade (SACCOMANI, 2016, p. 110, grifo nosso).

Por sua expressividade, pelo poder de realizar a síntese entre particular e universal, tendo
marcado não apenas seu tempo, mas apresentando relevância para o tempo presente, por
incomodar, levar à reflexão, à necessidade de mudança, a verdadeira obra de arte – que
entendemos aqui como clássica – tem função educativa. Educa, segundo Frederico (2000, p.
305), porque faz o homem ultrapassar a fragmentação produzida pelo fetichismo da sociedade
capitalista. Ao fazer a operação de reflexão sobre a vida cotidiana, saindo da vida cotidiana,
promovendo um momento de “elevação” e retornando a ela, a arte produz enriquecimento na
subjetividade da humanidade.

Costa (2014) chama atenção para o fato de que a função educativa da arte influencia a prática
social dos indivíduos, transformando não somente sua subjetividade, mas agindo sobre sua
personalidade. Para a autora, uma verdadeira obra de arte é uma crítica à vida:

É importante dizermos aqui que as verdadeiras obras de arte não são ilustrações
moralistas nem instrumentos de propaganda ideológica. Seu efeito - a catarse - decorre
do fato de dirigir-se ao núcleo humano de cada indivíduo e, assim, impeli-los a
estabelecer uma visão crítica a partir desse núcleo. Seu efeito se dá porque se dirige à
condição do ser humano, questiona acerca do desenvolvimento de sua personalidade,
acerca da sua condição de ser fragmentado em papéis sociais alienados, enfim, acerca
da vida. A verdadeira arte é uma “crítica da vida”, é uma crítica que se dirige à vida e
por isso é capaz de se relacionar tão profundamente com a realidade e com a
subjetividade do receptor a ponto de convocá-lo e desafiá-lo a desenvolver sua
personalidade no sentido de suas melhores possibilidades, isto é, convocá-lo a tomar
para si, sem abdicar de suas inclinações pessoais, as tarefas do gênero, vivenciando-
as como tarefas suas e, assim, descobrindo os laços que unem sua vida à do gênero
(COSTA, 2014, p. 91).

Tanto na antiguidade quanto nos dias atuais, os problemas humanos continuam sendo humanos,
as questões que giram em torno da vida sempre estiveram presentes, por isso a importância da
arte como uma crítica à vida alienada, fragmentada, incompleta, atomizada, mesmo a que foi
produzida em 1930, em 1500 ou antes da Era Cristã tem algo a nos dizer. Reiteramos que não
defendemos a atemporalidade da arte, mas reconhecemos as obras artísticas como expressão de
194

seu tempo e como reflexos da realidade que é construída ao longo da história, por isso jamais
podemos desconsiderar a historicidade de uma obra.

Nosso objetivo nesta tese – conforme mencionamos anteriormente – não é o de fazer juízo de
valor entre tipos textuais; assim, consideramos que existam poemas, contos, crônicas, peças,
romances clássicos que devem fazer parte do acervo destinado ao trabalho do docente nas aulas
de Literatura. Todavia, como o estudo do romance tem grande espaço na obra de Lukács,
passaremos brevemente pela questão com base principalmente na tese de Costa (2018) que
estudou especificamente esse gênero.

5.3 ROMANCE E REALISMO EM LUKÁCS

Em sua tese de doutorado, Larissa Quachio Costa (2018) debate sobre o romance na educação
escolar e as reverberações na arte narrativa na concepção de mundo do sujeito. Para tais
reflexões, a autora lança mão do materialismo histórico e dialético, adotando a pedagogia
histórico-crítica como teoria pedagógica e a estética lukácsiana para a reflexão sobre a arte, o
realismo e – em especial – o romance. Nosso intuito aqui – conforme já mencionamos – não é
aprofundar as discussões acerca do romance em Lukács, mas como esse gênero ocupa boa parte
das reflexões do esteta húngaro, vale a pena uma breve passagem.

5.3.1 Realismo e mimese

Costa (2018) faz uma exegese da obra do filósofo húngaro, considerando o pensamento que vai
desde o jovem até o velho Lukács, como é denominado por muitos. Interessa-nos o período a
partir de 1930/1931, quando o autor incorpora a seu universo teórico a questão do conhecimento
humano como reflexo da realidade com base na teoria marxista. A partir dos Escritos de Moscou
(1934-35), Lukács coloca o realismo no centro das atenções, ou seja, a necessidade de se avaliar
a realidade corretamente. Esta deve ser refletida com fidelidade pela arte (COSTA, 2018, p.
37), uma vez que:

[...] a verdadeira arte apreende a objetividade como configuração de um momento


profundo e essencial da realidade, promove uma ruptura com a impressão
fantasmagórica de uma sociedade fragmentada, reflete o mundo dos homens
ameaçado pelos fatores sociais que mutilam a integridade humana e, sobretudo,
posiciona-se em defesa da própria humanidade (COSTA, 2018, p. 38, 39).

A verdadeira arte de que a autora fala é justamente a arte clássica, conforme vimos discutindo,
a Literatura que não se limita à fruição, mas que dá conta de captar a realidade da vida para
195

além das aparências, possibilitando, consequentemente, ao sujeito, ver também além das
aparências por meio do processo de catarse. Tal Literatura se posiciona em defesa da
humanidade.

A arte, de acordo com os estudos de Costa (2018, p. 48), é, para Lukács, mimese, sendo
concebida como uma “forma específica de espelhamento da realidade objetiva”.

O esteta húngaro compreende a mimese como manifestação dos modos como se dá a


relação do homem com a realidade, captada em seus momentos essenciais, por meio
do reflexo estético. Na definição de Lukács, a mimese é a conversão do reflexo em
prática e só pode ser compreendida em sua inserção histórica (COSTA, 2018, p. 49).

Ainda segundo a autora, a arte enquanto mimese é reconhecidamente a imitação da vida. Não
uma imitação que reproduz as experiências humanas no nível das aparências, mas sim de modo
intensificado, tendendo a captar os aspectos fundamentais da realidade. Costa (2018) reitera
que – de acordo com seus estudos em Lukács – as manifestações miméticas não são reduzidas
aos fatos imediatos, uma vez que o processo de captação da realidade pressupõe uma seleção
prévia do que é essencial e do que não é para se aproximar ao máximo de uma objetividade
mais autêntica (COSTA, 2018, p. 50).

Saccomani (2016, p. 119) afirma que de acordo com Lukács, a objetivação artística se utiliza
da mimese – forma específica de reflexo – para reproduzir determinadas vivências, produzindo
na vivência estética uma “realidade intensificada”. Segundo a autora, na obra de arte, o artista
imita a vida humana, mas não em sua forma cotidiana e imediata, tal imitação é, “em realidade,
o reflexo da realidade de modo intensificado, abordando ao mesmo tempo a essência e a
aparência, o particular e o universal” (SACCOMANI, 2016, p. 119).

Se a arte imita a vida, vale destacar que Lukács (2010, p. 19), ao analisar os escritos de Marx,
chega à conclusão de que essa imitação não pode estar no nível da consciência pré-estabelecida
dos homens, isso porque “na consciência humana, o mundo aparece completamente diverso
daquilo que na realidade ele é: aparece deformado em sua própria estrutura, separado de suas
efetivas conexões”. Torna-se assim essencial um trabalho na subjetividade do homem imerso
no capitalismo, a fim de que ele descubra, por trás das categorias que marcam a vida cotidiana
(dinheiro, mercadoria, preço, etc.), a sua verdadeira essência, “a de relações sociais entre os
homens”.
Ora, a humanitas - ou seja, o estudo apaixonado da substância humana do homem-
faz parte da essência de toda Literatura e de toda arte autênticas. Não basta, para que
196

sejam chamadas de humanistas, que estudem apaixonadamente o homem, a


verdadeira essência da sua substância humana; é preciso também, ao mesmo tempo,
que elas defendam a integridade do homem contra todas as tendências que a atacam,
a envilecem e a adulteram. Como todas essas tendências (e, naturalmente, em
primeiro lugar, a opressão e a exploração do homem pelo homem) não assumem em
nenhuma sociedade uma forma tão inumana como na sociedade capitalista -
exatamente por causa de seu caráter reificado e, portanto, aparentemente objetivo -,
todo verdadeiro artista ou escritor é um adversário instintivo destas deformações do
princípio humanista, independentemente do grau de consciência que tenham de todo
este processo (LUKÁCS, 2010, p. 19, grifo nosso).

A importância da arte realista para Lukács (2010) é inegociável, uma arte que fale da vida, que
estude o próprio homem, além disso, que defenda a essência do ser contra todas as tendências
que o obliteram. Interessante reiterar que um grande escritor, por mais que não se dê conta, é
um adversário por instinto das deformações do princípio humanista, uma vez que suas obras
conseguem captar a realidade para além das aparências e promover um nível de consciência de
totalidade no indivíduo que se apropria desse conteúdo artístico.

Para Costa (2018, p. 68), o humanismo que se manifesta nas obras de arte autênticas – que são,
portanto, realistas – possibilita que o texto transcenda as condições históricas de sua gênese e
exerça um “fascínio duradouro”, na medida em que – ao captar a totalidade de cada etapa da
história – compreende o passado que constitui o gênero humano.

Para a autora, a visão humanista de mundo permite uma captação de conteúdo verdadeiro,
portanto, “o humanismo latente no reflexo estético do mundo se concretiza no pressuposto
segundo o qual toda grande arte, no capitalismo dominante, está sempre em conflito com a
realidade social burguesa e, portanto, é essencialmente partidária”, isso porque toda grande arte
se posiciona em função da realidade que apresenta (COSTA, 2018, p. 69).

Toda grande arte preza em reproduzir com fidelidade o reflexo do real e tem importância
fundamental em levar o homem a romper com sua condição de alienação. Sendo a Literatura,
para Lukács, um campo vasto de investigação da realidade, das relações sociais, dos conflitos:

[...] A Literatura pode representar os contrastes, as lutas e os conflitos da vida social


tal como eles se manifestam no espírito, na vida do homem real. Portanto, a Literatura
oferece um campo vasto e significativo para descobrir e investigar a realidade. Na
medida em que for verdadeiramente profunda e realista, ela pode fornecer, mesmo ao
mais profundo conhecedor das relações sociais, experiências vividas e noções
inteiramente novas, inesperadas e importantíssimas (LUKÁCS, 2010a, p. 80)
197

Visto por Lukács (2010a) como campo adequado para se chegar à totalidade do ser social, o
realismo verdadeiramente grandioso:
[...] que extrai sua força do profundo conhecimento das transformações históricas da
sociedade, só pode alcançar este conhecimento se abarcar realmente todos os estratos
sociais, se destruir a concepção “oficial” da história e da sociedade e se acolher – no
vivo processo criador - as camadas e as correntes sociais que operam a verdadeira
transformação da sociedade, a verdadeira formação desses novos tipos humanos.
Imergindo nessas profundidades e trazendo-as, através de sua obra, à luz do dia, o
grande realista cumpre a missão verdadeiramente original e criadora da Literatura.
[...] (LUKÁCS, 2010a, p. 45, grifo nosso).

O realismo expresso por Lukács (2010a) não é uma corrente literária, mas uma condição em
qualquer tempo da história para que uma obra possa ser considerada grandiosa. Ou seja, grandes
autores reproduzem fielmente o reflexo da realidade objetiva captando as camadas e correntes
sociais em suas diversas esferas; tais autores têm compromisso para com a realidade e produzem
obras que – ao serem apropriadas – proporcionam ao indivíduo a compreensão objetiva do
mundo em que vivem.

A rica obra de arte, segundo Saccomani (2016, p. 120, 121), vai além da imediatez do cotidiano
e, a partir da dialética entre essência e aparência, acentua vivências do ser humano, dramas,
sentimentos que na sociedade de classes se mostram em condições de alienação. “[...] o realismo
é um reflexo da realidade que supera a aparência fetichista dos fenômenos na vida cotidiana”.

Assim sendo, seja na atividade de criação artística, seja na de recepção da obra de arte,
estabelece-se uma forma específica de relação entre o indivíduo e o gênero humano.
Por meio das objetivações artísticas, o indivíduo toma como objeto, de seus sentidos
e de sua consciência, sua própria condição de ser humano. Com isso, a obra de arte
intensifica a relação entre a vida do indivíduo e a vida da humanidade. O receptor da
arte é tocado sensivelmente pela obra, enriquece sua subjetividade na medida em que
se relaciona com experiências do gênero humano como se fossem suas próprias
experiências. É por isso que a concepção lukacsiana da estética compreende o reflexo
artístico como autoconsciência do gênero humano (SACCOMANI, 2016, p. 121,
grifo da autora).

Dessa forma, a autora completa que por intermédio da obra de arte nós vivemos dramas,
questões, problemas da humanidade que não vivenciaríamos normalmente, ou tal vivência seria
alienada. O passado vem à tona no momento em que se dá a recepção estética. Assim, a obra
de arte se faz “memória da humanidade”, uma vez que carrega o percurso do gênero humano
como referência e – em consequência – “o desenvolvimento já alcançado pelo gênero humano
é a fonte inspiradora e geradora de nosso desenvolvimento individual” (SACCOMANI, 2016,
p. 122, 123). Isso é o que justifica a defesa dos princípios que temos apresentado para a seleção,
198

com vistas ao trabalho pedagógico, de obras visando à leitura literária no ensino médio em
correlação com a perspectiva de uma formação omnilateral.

5.3.2 Romance como epopeia burguesa

Sendo campo vasto e significativo para desvelar e investigar a realidade, a grande Literatura
tem sido – por vezes – obscurecida por regimes decadentes. Ao prosseguir em suas reflexões
sobre o romance, Costa (2018) afirma que, para Lukács, o romance é o gênero épico da época
burguesa. Isso porque enquanto a epopeia reproduzia a totalidade extensiva da vida que era
comunitária, o romance tem o mesmo intuito, porém é o gênero pertencente a uma sociedade
dividida em classes, fragmentada19.
A partir da emergência da sociedade burguesa, portanto, o mundo grego antigo perde
o sentido da imanência e a epopeia, que tem por objeto a vida, perde seu manancial -
a totalidade sensível e segura e, logo, o caráter orgânico da sociedade antiga -, uma
vez que as condições históricas marcadas pela fragmentação da comunidade humana
inviabilizam a sua criação. Tal fato, entretanto, não denota a morte definitiva de tal
gênero e sim o seu deslizamento em direção à épica burguesa: o romance (COSTA,
2018, p. 29).

Costa (2018, p. 99) afirma com base em seus estudos que enquanto a burguesia estava na
condição de classe revolucionária, as produções intelectuais tinham total espaço e grandes obras
realistas surgiam. Todavia, quando a burguesia se encontra definitivamente no poder, passando
a ser classe reacionária, declara-se um período de decadência ideológica e de apagamento das
produções realistas.
A decadência ideológica e cultural da burguesia caracteriza-se pela contradição entre
o avanço material e uma espécie de estagnação cultural, cujas consequências se
desdobraram em diversos níveis da atividade humana, inclusive na ciência, na
filosofia e na arte. Além disso, a decadência ideológica não possui fronteiras nacionais
e compreende o conjunto do mundo ocidental, o que nos permite refletir acerca da
correspondência que pode haver entre a decadência ideológica burguesa e o “vazio
cultural” que se instaura no Brasil após o Ato Institucional nº 5, decreto que inaugurou
um dos períodos mais autoritários da história brasileira (COSTA, 2018, p. 99, grifo
nosso).

A decadência ideológica burguesa, segundo a autora, se manifesta – de acordo com os estudos


de Marx e Engels; e Lukács – a partir de um distanciamento da visão progressista e de uma
consequente defesa a uma visão que faz apologia à realidade capitalista. A partir desse momento
– após 1848 – a burguesia se coloca em posição defensiva, demonstrando sua necessidade de

19
Não entraremos aqui na questão de que – a princípio – os estudos de Lukács em relação ao romance têm base
idealista e não vislumbram a totalidade como algo concebível, o que é contrário à concepção marxista
posteriormente adotada pelo filósofo. Recomendamos, para aprofundamento nesse debate, a leitura da tese de
Costa (2018).
199

erguer um aparato ideológico que mantivesse a ordem vigente, o que a distancia cada vez mais
do reflexo da realidade objetiva.

Lukács (1968) destaca que, após 1848, o estado de decadência ideológica da burguesia liquida:

[...] todas as tentativas anteriormente realizadas pelos mais notáveis ideólogos


burgueses, no sentido de compreender as verdadeiras forças motrizes da sociedade,
sem temor das contradições que pudessem ser esclarecidas; essa fuga numa pseudo-
história construída a bel-prazer, interpretada superficialmente, deformada em sentido
subjetivista e místico, é a tendência geral da decadência ideológica (LUKÁCS, 1968,
p. 52).

A partir da decadência ideológica da burguesia intensificam-se as correntes subjetivistas, o lema


da arte para deleite. Todo incentivo de produção se volta para uma arte – uma Literatura – que
não supere o nível das aparências e não leve o leitor à reflexão sobre a realidade. De acordo
com Costa (2018, p. 116 - 119), após o período revolucionário, a burguesia passa a encobrir as
contradições geradas a partir de seu domínio por meio de classes. Assim, os cientistas e
intelectuais diretamente ligados à ideologia burguesa “afastam-se do compromisso com a busca
pela verdade e transformam-se, em graus diversos, em apologistas do capital”, negando a
tradição humanista da arte, dando lugar ao irracionalismo.

Assim, como explica Lukács, a função social dessa vertente intelectual própria da
decadência ideológica da burguesia, o irracionalismo, direciona-se contra a ideologia
progressista - que justificava as mudanças históricas e configurava-se como elemento
ideológico da transformação social em seus aspectos políticos, jurídicos, legais,
culturais, entre outros -, a fim de promover a apologia indireta do capitalismo
(COSTA, 2018, p. 122).

Nessa nova forma de expressão de arte, a falta de sentido da vida implica na liberação dos
sujeitos de seus papéis sociais, de sua responsabilidade pelo desenvolvimento da humanidade.
Quando a razão perde a relevância para a burguesia – porque esta já se colocou no poder – não
há mais possibilidade de apreensão da essência da realidade (COSTA, 2018, p. 122).

A decadência ideológica é seguida, enfatiza Costa (2018, p. 127), pela decadência literária:
[...] assim como os pensadores e os partidos burgueses esquivaram-se da realidade e
da tentativa de apreender suas forças motoras, as formas de reflexo da realidade foram
submetidas aos imperativos da divisão capitalista do trabalho, o que resultou - entre
outras formas de arte decadente - numa Literatura impossibilitada de figurar o que
existe na realidade objetiva como verdade.

Isso porque, conforme afirma a autora com base em Lukács, a Literatura da era da burguesia
decadente precisa perder sua capacidade de compreensão da realidade objetiva, a fim de que
200

não se torne um entrave na segmentação da sociedade em classes, não revele os efeitos


degradantes do capitalismo à humanidade.

Costa (2018, p. 135) afirma que, embora a grande Literatura tenha passado por diversas
transformações históricas, oriundas da decadência ideológica da burguesia, isso não extingue a
possibilidade de que sejam criadas grandes obras literárias cuja temática e forma dos problemas
centrais extraiam questões do nosso tempo, “isso não impede que grandes romancistas, ligados
concretamente às tradições do humanismo clássico democrático-revolucionário, criem obras
realistas e de elevadíssimo valor estético”.

Diferentemente dos países europeus, o Brasil, cuja ausência de um mundo democrático foi
marcada pelas transformações “pelo alto”, negociadas entre frações da sociedade burguesa, ou
seja, sem participação popular, teve seu maior “vazio cultural” durante o regime ditatorial,
aderindo a tendências que desviam o realismo literário das produções artísticas (COSTA, 2018,
p. 158, 159).

Assim, ao longo do período do vazio cultural, a reinterpretação da herança cultural


conduziu à legitimação do irracionalismo e, consequentemente, à institucionalização
de posturas anti-humanistas, cujo raio de influência atingiu, entre tantos sistemas
institucionais e esferas da dinâmica cultural, o sistema de ensino - cujo acesso foi
democratizado durante a ditadura, mas dentro de uma lógica de vinculação da
educação pública aos interesses do mercado - e a produção literária - que passou a
sofrer com maior ênfase os efeitos nefastos oriundos de sua subordinação aos
interesses do capitalismo, tanto do ponto de vista econômico quanto do ideológico
(COSTA, 2018, p. 160, grifo nosso).

Conforme temos debatido nesta tese, o sistema de ensino brasileiro se constituiu dentro de uma
lógica voltada aos interesses do mercado capitalista. Defendendo a formação para o emprego,
com vistas a formar profissionais que atendam às necessidades mercadológicas, sob o falso
discurso de respeitar a individualidade do aluno e estimular seu protagonismo, fazendo com
que o mesmo seja o centro do processo educativo, a educação nacional tem se alinhado aos
interesses da burguesia. De igual modo, acontece com a produção literária que tem se ampliado
e tem sido amplamente divulgada pela indústria cultural, uma vez que os famosos best sellers
em sua maioria reproduzem o ideário burguês, não sendo suficientes para promover
desenvolvimento pleno da subjetividade do indivíduo.

Todavia, é necessário que nos mantenhamos na posição de defesa da educação pública, de uma
educação de qualidade para todos, de um ensino de Literatura com vistas à promoção do
desenvolvimento da subjetividade do indivíduo. Temos consciência das questões objetivas de
201

nossa própria existência, das questões sociais em que nossos alunos estão inseridos, sabemos
que a escola por si não tem o poder de resolver as questões sociais, mas ainda assim é nosso
papel enquanto educadores possibilitar que nossos educandos se apropriem das grandes
produções desenvolvidas pela humanidade ao longo dos tempos, tratamos aqui especificamente
da Literatura, no campo das artes.

5.3.3 Fisionomia intelectual das personagens

Ao enfatizar a importância da fisionomia intelectual das personagens para que uma obra de arte
seja considerada de valor, Lukács (1968) afirma ser indispensável que a grande arte apresente
as personagens e o conjunto de relações que os liga com a realidade social e com seus
problemas. “Quanto mais profundamente estas relações forem percebidas, quanto mais
múltiplas forem as ligações evidenciadas, tão mais importante se tornará a obra de arte, pois
então ela se aproximará mais da verdadeira riqueza da vida” (LUKÁCS, 1968, p. 167).

O filósofo destaca que o aspecto mais importante da personagem criado pelo autor deve ser a
caracterização da concepção de mundo própria dessa personagem, uma vez que a concepção de
mundo é a forma mais elevada de consciência: “é uma profunda experiência pessoal do
indivíduo singular, uma expressão altamente característica de sua íntima essência, e reflete ao
mesmo tempo os problemas gerais da época” (LUKÁCS, 1968, p. 167).

Lukács (1968) chama atenção para as personagens ricas em fisionomia intelectual criadas por
Shakespeare, ao falar sobre Cassius e Brutus, da tragédia Júlio César; o filósofo húngaro ilustra
como o autor em poucas linhas de sua trama estabelece complexa relação entre a vida individual
das personagens e os grandes problemas sociais. Destaca a importância dos elementos da
poética para que o texto literário cumpra sua função de reflexo artístico da realidade objetiva
com riqueza e profundidade:

O enredo, como síntese concreta dessas ações e reações complexas na práxis dos
homens; o conflito, como forma fundamental dessas ações e reações contraditórias; o
paralelismo e o contraste, como expressões da direção - convergente ou antitética - na
qual operam as paixões humanas: todos os princípios básicos da composição poética
não fazem mais do que refletir, concentrando-as no filtro da síntese literária, as formas
mais universais e necessárias da própria vida humana. Mas não se trata apenas dessas
formas. Os fenômenos típicos e universais devem ser, ao mesmo tempo, ações
específicas, paixões individuais de homens determinados. O artista inventa situações
e meios expressivos através dos quais torna-se evidente que as paixões individuais
transcendem os limites do mundo puramente individual (LUKÁCS, 1968, p. 171).
202

Por transcenderem os limites do mundo individual, as situações expressivas de personagens


com fisionomia intelectual bem delineada vão também, juntamente com suas obras, romper os
limites de seu tempo, tendo sido relevantes em sua época, por marcarem um momento
expressivo, mas continuando com alto grau de relevância em função de sua interlocução com a
própria vida. De acordo com Costa (2014), tais personagens se erguem diante de nós tão ricos
e complexos como a própria realidade:
Os personagens da grande Literatura são aqueles capazes de identificar como seus
problemas particulares [...] emanam da estrutura profunda de uma situação histórica
ou de uma sociedade, são personagens típicos que experimentam, no desenvolvimento
da trama literária requerida pelo realismo, um crescimento pessoal e psicológico à
medida que elevam elementos pessoais e acidentais do próprio destino a certo nível
de universalidade, vivem diante de nós, leitores, os problemas de seu tempo como
individualmente seus, como algo que possui para eles uma relevância vital (COSTA,
2014, p. 103).

Tais personagens somente podem ser representadas assim para o leitor, elevando a
individualidade à tipicidade, intensificando seus traços individuais, caso o artista tenha tais
capacidades adormecidas. “A verdade poética do reflexo da realidade objetiva consiste no fato
de que, como realidade representada, aparece tão somente aquilo que já estava contido no
homem como possibilidade” (LUKÁCS, 1968, p. 171). O filósofo húngaro reitera que a
personagem só pode ser típica e significativa quando o autor consegue captar e revelar as
conexões que relacionam os traços individuais dos heróis aos problemas gerais de sua época,
quando a personagem vive problemas de seu tempo como se fossem individualmente seus.

Além disso, toda grande obra de arte cuja composição é cuidadosa, resguarda-se em apresentar
uma hierarquia entre protagonista e coadjuvantes. O posto de protagonista em uma obra,
segundo Lukács (1968, p. 173), depende diretamente do seu grau de consciência em face de seu
próprio destino, “da capacidade de elevar - inclusive no plano da consciência - os elementos
pessoais e acidentais do próprio destino a um certo nível de universalidade”.

Para que o autor elabore a fisionomia intelectual das personagens de sua trama, é necessário
que ele distancie sua exposição do nível da cotidianidade, entendendo os conflitos de uma
época, suas grandes questões.
[...] E isto porque, na vida cotidiana, os grandes contrastes são atenuados, aparecem
ofuscados pela intromissão de acasos indiferentes e desconexos, jamais assumindo
uma forma verdadeiramente plena e completa; esta só se pode manifestar quando todo
contraste for levado às suas últimas e extremas consequências, e tudo o que nele existir
de implícito se tornar patente e tangível. A capacidade, própria dos grandes escritores,
de criar personagens e situações típicos, portanto, vai muito além da observação -
ainda que exata - da realidade cotidiana. O profundo conhecimento da vida jamais se
limita à observação da realidade cotidiana, mas consiste, pelo contrário, na capacidade
203

de captar os elementos essenciais, bem como de inventar, sobre o seu fundamento,


personagens e situações que sejam absolutamente impossíveis na vida cotidiana, mas
que estejam em condições de revelar, à luz da suprema dialética das contradições, as
tendências e forças operantes, cuja ação é dificilmente perceptível na penumbra da
vida de todos os dias (LUKÁCS, 1968, p. 175).

Sobre as personagens impossíveis na vida cotidiana, o filósofo húngaro cita como exemplo
Dom Quixote, um dos mais típicos da Literatura universal. Segundo o autor, a batalha contra
os moinhos de vento que não pode sequer ser imaginada no cotidiano, pressupõe uma superação
da realidade cotidiana. Assim, em toda a riqueza da obra de Cervantes (2013), destacam-se
Dom Quixote – fidalgo de meia idade, que, após ler muitos romances, decidiu se tornar
cavaleiro – e Sancho Pança – seu escudeiro, homem do povo, porém ambicioso, que se une a
Quixote em busca de poder e dinheiro. Personagens cuja fisionomia intelectual é construída
cuidadosamente por seu autor. Para além das aparências de que Dom Quixote seria um louco
que tenta derrotar gigantes impossíveis de serem derrotados, por nem existirem na vida real, a
personagem reflete a presença da humanidade na fantasia e seus anseios de mudar uma
realidade que pode sim ser mudada (mesmo que pareça impossível, ou “quixotesco”), uma vez
que o ser humano se constrói e constrói sua humanidade ao longo da história, a partir do
trabalho. Além disso, de uma forma mais ampla, o texto de Cervantes (2013) é também uma
crítica da impotência de seu país frente à modernidade burguesa. Exemplo máximo em que o
autor se distancia da realidade cotidiana para apresentá-la na forma mais elaborada possível de
reflexo artístico.

Lukács (1968, p. 195) defende que a chamada “velha” Literatura sempre desprezou a superfície
da realidade cotidiana, permitindo ao leitor reviver e compreender os resultados do processo
como um todo. A Literatura moderna, em contrapartida – incluímos aqui os livros postos em
destaque pela indústria cultural, os famosos best sellers – baseia-se no cotidiano, nas questões
superficiais da vida, sendo incapaz de permitir ao leitor uma compreensão do processo.

O esteta húngaro cita como exemplo as grandes situações da “velha” poesia que serviam para
iluminar um estado de coisas até então bastante confuso; esclarece que Aristóteles dizia ser essa
a função das “cenas de reconhecimento”, iluminar uma situação caótica. Dessa forma, “a grande
poesia do passado coloca-se sempre em pontos cruciais, que iluminam o passado e o futuro, e
cuja principal função, como vimos, é a de mostrar como o significado dos eventos transcende
as pessoas que os vivem” (LUKÁCS, 1968, p. 195, 196).
204

Ao contrário disso, a Literatura moderna, segundo o autor, não provoca tais momentos
dramáticos:
Ela não constrói suas composições segundo a dinâmica dos contrastes da realidade
objetiva, já que no mundo cotidiano os contrastes jamais se explicitam até ao fim, de
modo que situações falsas, ou mesmo "insustentáveis", podem aí se manter por um
tempo extraordinariamente longo. Este método compositivo não é contraditado, mas
antes reforçado, pela predileção em descrever violentas catástrofes e explosões. E isto
porque tais catástrofes e explosões têm sempre um caráter irracional; tão logo cessam,
a vida retoma o seu curso habitual (LUKÁCS, 1968, p. 196).

Essas catástrofes eram, nos escritos do passado, conforme assegura Lukács (1968), sempre
“episódicas”, não serviam como substitutos para o desenvolvimento da ação.
As grandes reviravoltas que se produziam neste desenvolvimento verificavam-se nos
pontos de cruzamento das ações - hostis ou amigáveis - dos homens. Contudo, em
obras nas quais um homem nada tem a ver com o outro, estes pontos cruciais da ação
são supérfluos e impossíveis. A ligação desta superfície imediata da vida com os
grandes processos sociais só pode ser estabelecida de um modo abstrato (LUKÁCS,
1968, p. 196).

Justamente por serem vazios de conteúdo, não abordarem de forma direta a vida e a realidade
que é – no nível das aparências – totalmente fragmentada, muitas obras contemporâneas são
produzidas para também manter a população em condição de inércia, negando a ela seu próprio
direito à humanização. Afinal, o homem se humaniza, a partir do momento que tem condições
de assimilar as riquezas culturalmente construídas pelo conjunto de seres humanos ao longo
dos tempos, aí se insere a Literatura. Por isso defendemos que o ensino de Literatura para
potencializar o desenvolvimento omnilateral precisa partir de textos clássicos. Obviamente,
personagens bem delineados, com fisionomia intelectual bem construída serão encontrados
preferencialmente em romances, uma vez que textos muito curtos podem não dar espaço para
esse tipo de construção; todavia, conforme já informamos, não delimitaremos gênero textual
para ser trabalhado em sala de aula, mas a principal questão colocada aqui tem relação direta
com o valor da obra literária.

Dessa forma, a Literatura clássica, ao contrário da vida cotidiana, segundo Costa (2014, p. 104),
com base nos pensamentos de Lukács, pode nos apresentar um mundo livre da heterogeneidade
do dia a dia, portanto, homogêneo. Isso quer dizer que o leitor se depara com uma figuração
totalmente homogeneizadora que mobiliza sua atenção para adentrar em um mundo livre das
variáveis do cotidiano. Tal concentração de atenção gera uma elevação do cotidiano, será o
momento em que o indivíduo passa a questionar sua perspectiva de vida e a si mesmo.
205

A grande obra literária narra uma situação em que o herói tenha de enfrentar um
destino humano típico, de maneira que o receptor possa se identificar com o sujeito
representado e reviver a sua experiência. Assim, a humanidade essencial presente na
concepção do mundo do herói é compartilhada com o receptor que, por sua vez, tem
sua individualidade enriquecida pela experiência de plenitude vivida em nível
intelectual. Dessa maneira, o mundo refigurado pela Literatura clássica pode servir de
orientação para a vivência receptiva, impelir o leitor a compreender-se na totalidade
do mundo, subjugar seu modo habitual de contemplar o mundo, impor-lhe - por meio
do efeito catártico - uma nova concepção de mundo que lhe fortaleça a consciência de
si e a sua responsabilidade em relação aos problemas da esfera pública (COSTA,
2014, p. 104, 105).

Na perspectiva da pedagogia histórico-crítica, esse deve ser o papel da educação, o de permitir


ao sujeito ver além das aparências, adquirir uma nova concepção de mundo, tomando
consciência de si e de sua responsabilidade frente à sociedade. Por isso, Costa (2014) ainda
afirma que para Lukács as formas de reflexo da realidade cotidiana são insuficientes, é
necessário atingir determinada altitude para que os leitores tenham diante de si diversos
personagens que reflitam em pensamentos e sentimentos as contradições da vida cotidiana.

Com base na obra lukacsiana, portanto, a Literatura, como uma das artes, revela o
mundo e o indivíduo e nisso não há nada de ideal, pois se trata de um mundo concreto,
de um indivíduo concreto, com suas peculiaridades e história pessoal, mas imbricados
de tal forma que se tornam, como na realidade fora da arte, inseparáveis e
interdependentes (COSTA, 2014, p. 106).

Embora Lukács (1968) faça a divisão entre a “velha” Literatura e a Literatura “moderna”,
conforme já discutimos, não entendemos que esses adjetivos sejam os mais adequados para
distinguir o clássico dos textos da Literatura de massa, uma vez que textos de qualidade podem
ser – e são – produzidos na atualidade podendo um dia se tornarem clássicos em função da
realidade que conseguem captar fugindo das aparências, diferentemente dos textos que retratam
a vida média burguesa ideal que prestam serviço à manutenção da ordem vigente e não ao
desenvolvimento intelectual dos sujeitos.

Frederico (2000) afirma que essa produção artística menor é nomeada por Lukács de “círculo
problemático do agradável”, uma vez que novelas, filmes policiais, e outros derivados são
produzidos em larga escala e não dão conta de exercer o papel da arte almejado pelo esteta.
Além disso, são produtos voltados para o mero entretenimento, não podendo ser confundidos
com obras de arte clássicas.

Tanto a obra de arte quanto os produtos menores voltados para o mero entretenimento
são emanações da vida cotidiana, mas não devem ser confundidos. Sem a esfera do
agradável não existiria a arte. Os críticos literários gostam de lembrar a propósito que
uma grande obra tem atrás de si uma infinidade de obras menores formando um caldo
de cultura que lhe serve de referência. Mas, diz Lukács, a arte não nasce do agradável
206

e, principalmente, as duas esferas desempenham papéis diferentes em sua relação com


a vida cotidiana (FREDERICO, 2000, p. 305, 306).

Não queremos dizer aqui que o ensino de Literatura não deva ser agradável, mas ele não pode
ter mera função de entretenimento dentro da escola, as leituras devem ser direcionadas,
mediadas, a fim de que o indivíduo tenha condições de se desenvolver e compreender o todo
da realidade que o cerca. Em uma vida fragmentada pelas condições sociais que nos cercam,
sob divisão do trabalho, em que não se conhecem os processos, alcançar o desenvolvimento da
subjetividade pode ser – para o sujeito – parte de seu processo de tomada de consciência,
organização e libertação.

Esse é o caráter “evocativo” da obra de arte, segundo Frederico (2000), a possibilidade de ação
sobre a personalidade do ser humano:
Essa presentificação, contudo, não é a vida anterior de cada indivíduo, mas a sua vida
enquanto pertencente à humanidade. O que é posto em relevo pela arte é o caráter
social da personalidade humana. O indivíduo, perante a figuração estética, pode se
generalizar e, assim, confrontar a sua existência com a epopeia do gênero humano,
retratado pela arte, num momento determinado de sua evolução. Ocorre então uma
suspensão da cotidianidade, uma elevação da subjetividade do plano meramente
singular para o campo mediador da particularidade (a síntese do singular e do
universal) (FREDERICO, 2000, p. 306).

Ao contrário disso, as obras que integram o “ciclo problemático do agradável” fazem com que
o indivíduo permaneça sob a imediatez da vida cotidiana. De acordo com Frederico (2000), elas
se dirigem ao individual, à esfera privada, com o objetivo de apenas entreter. Enquanto as obras
clássicas generalizam, colocando o indivíduo em contato com o gênero humano. Essas obras
do ciclo problemático, segundo o autor, ao propiciarem ao indivíduo sua permanência na mera
singularidade, não permitem aquele momento de “elevação”, o contato enriquecedor com o
gênero humano, e, consequentemente, o caráter social de sua personalidade não se desenvolve.

5.3.4 Arte e educação escolar

Se pudesse mudar-se, gritaria bem alto que o roubavam. Aparentemente resignado,


sentia um ódio imenso a qualquer coisa que era ao mesmo tempo a capina seca, o
patrão, os soldados e os agentes da prefeitura. Tudo na verdade era contra ele. Estava
acostumado, tinha a casca muito grossa, mas às vezes se arreliava. Não havia
paciência que suportasse tanta coisa.
- Um dia um homem faz besteira e se desgraça.
Pois não estavam vendo que ele era de carne e osso? Tinha obrigação de trabalhar
para os outros, naturalmente, conhecia o seu lugar. Bem. Nascera com esse destino,
ninguém tinha culpa de ele haver nascido com um destino ruim. Que fazer? Podia
mudar a sorte? Se lhe dissessem que era possível melhorar de situação, espantar-se-
ia. Tinha vindo ao mundo para amansar brabo, curar feridas com rezas, consertar
cercas de inverno a verão. Era sina. O pai vivera assim, o avô também. E para trás não
207

existia família. Cortar mandacaru, ensebar látegos — aquilo estava no sangue.


Conformava-se, não pretendia mais nada. Se lhe dessem o que era dele, estava certo.
Não davam. Era um desgraçado, era como um cachorro, só recebia ossos. Por que
seria que os homens ricos ainda lhe tomavam uma parte dos ossos? Fazia até nojo
pessoas importantes se ocuparem com semelhantes porcarias (RAMOS, 1997, p. 95,
96).

A obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos, teve sua primeira publicação em 1938 e retrata a
miséria de uma família de retirantes nordestinos que precisa migrar periodicamente para fugir
da seca que assola suas vidas de todas as formas, a começar pela falta de alimentos. No trecho
acima, Fabiano – protagonista da obra – vive um momento de extrema revolta contra seu patrão
desonesto que lhe “passara a perna” não pela primeira vez, visto que o vaqueiro era
continuamente explorado pelo fazendeiro.

Acostumado a sofrer com as injustiças das pessoas e da própria vida – seca –, o protagonista se
conformava com a extrema exploração, mas não aceitara a injustiça cometida pelo patrão.
Fabiano representa a figura do vaqueiro típico do Nordeste - homem de coragem, com força e
dignidade para viver as atrocidades de seu tempo. Grande obra clássica do período modernista
brasileiro, Vidas Secas mostra a região nordestina, caracterizando a seca, a fragilidade
econômica, a comida escassa. Durante todo o processo de leitura, nós ficamos indignados diante
do sofrimento da família, diante das injustiças cometidas, diante do reflexo da realidade de um
povo representado por Fabiano e sua família.

Sendo “mediadora entre o indivíduo e a vida” (DUARTE, 2009, p. 467), Vidas Secas ainda hoje
representa a visão da totalidade não somente do povo nordestino, mas do povo brasileiro que –
em menor ou maior grau – é marcado pela injustiça, pela desigualdade social, pelas condições
de exploração do capital. Por isso, podemos dizer que a obra reflete dilemas de seu tempo, mas
também se atualiza, não sob uma perspectiva atemporal, mas trazendo uma historicidade que
se repete, porque reflete a vida, e esta continua sendo construída em meio a contradições.
Fabiano se conforma com a realidade da vida, mas se resigna frente à desonestidade do patrão
para nos mostrar que não podemos nos conformar com uma realidade que nos negue o
desenvolvimento próprio do ser humano.

Em função de sua construção cuidadosa, do delineamento de personagens que – embora pobres


e simples – têm fisionomia intelectual complexa, do reflexo da realidade, da visão de totalidade
possível a partir da leitura de Vidas Secas, tal obra pode permitir ao sujeito uma breve elevação
208

para o desenvolvimento de sua subjetividade. Assumpção e Duarte (2017, p. 178) acrescentam


que:
[...] o critério necessário para se definir uma obra de arte genuína é o quanto a
dinâmica entre essência e aparência e a contradição posta entre o conteúdo e a forma
artística provocam no sujeito um aguçamento de emoções em um movimento que
tende a romper, momentaneamente, com a alienação do cotidiano favorecendo uma
compreensão mais digna da realidade em que se vive (ASSUMPÇÃO; DUARTE,
2017, p. 178).

Não somente Vidas Secas, mas inúmeros romances, contos, crônicas, poemas que fazem parte
da Literatura nacional e internacional desvelam a realidade em que vivemos, construindo diante
de nós tal dinâmica entre essência e aparência, revelando a contradição entre conteúdo e forma
que – em consequência – conforme afirmam Assumpção e Duarte (2017) – evidenciam para
nós – leitores – uma compreensão mais evidente, digna, honesta da realidade em que vivemos.
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
- porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira
(GULLAR, 2004)

O poema “Não há vagas”, de Ferreira Gullar (2004) tece críticas aos textos literários que
figuram apenas a beleza das coisas: a mulher perfeita que não tem fome; a fruta lindamente
colhida de uma horta sem problemas, sem pragas; poemas que não denunciam as atrocidades
sociais, não falam de fome, miséria, pobreza, trabalho duro, como se falar da realidade fosse
209

uma agressão à dita “Alta Literatura”. Compreendemos, todavia, que Gullar (2004) apresenta
para nós – leitores – uma realidade que se ergue a partir de seu trabalho com as palavras em
forma de denúncia, reflexão, como forma de resistência contra as forças alienantes da vida
cotidiana regida pelo capital que negam à maioria da população condições mínimas de
existência. Além disso, os versos de “Não há vagas” criticam um elemento caro à nossa
discussão: as condições alienantes de produção da própria Literatura após a consolidação da
sociedade burguesa.

Uma sociedade em que o homem é explorado pelo homem, sendo – por isso – impedido de se
desenvolver omnilateralmente. Uma sociedade de muitos “Joões da Silva” que moram em
variadas casas, ou até mesmo na rua, que não têm passado nem presente importante, que vivem
à margem da sociedade, tal como expõe Rubem Braga em “Luto da família Silva”:

Nós somos os Joões da Silva. Nós somos os populares Joões da Silva. Moramos em
várias casas e em várias cidades. Moramos principalmente na rua. Nós pertencemos,
como você, à família Silva. Não é uma família ilustre; nós não temos avós na história.
Muitos de nós usamos outros nomes, para disfarce. No fundo, somos os Silva. Quando
o Brasil foi colonizado, nós éramos os degredados. Depois fomos os índios. Depois
fomos os negros. Depois fomos imigrantes, mestiços. Somos os Silva. Algumas
pessoas importantes usaram e usam nosso nome. É por engano. Os Silva somos nós.
Não temos a mínima importância. Trabalhamos andamos pelas ruas e morremos.
Saímos da vala comum da vida para o mesmo local da morte. Às vezes, por modéstia,
não usamos nosso nome de família. Usamos o sobrenome “de Tal”. A família Silva e
a família “de Tal” são a mesma família. E, para falar a verdade, uma família que não
pode ser considerada boa família. Até as mulheres que não são de família pertencem
à família Silva (BRAGA, 1984).

Tantos outros exemplos poderiam ser utilizados para evidenciar que a Literatura deve ter um
fim social, deve deixar atuar enquanto reflexo da realidade objetiva, deve, conforme afirmamos
– de acordo com Costa (2014) – impelir o leitor a se compreender na totalidade do mundo, levá-
lo a uma nova compreensão desse mundo, dessa realidade que o cerca; fortalecendo – em
consequência – sua consciência e sua responsabilidade em relação aos problemas da sociedade.
Reiteramos que – ainda de acordo com a autora – a Literatura deve revelar um mundo e um
sujeito que nada têm de ideal, uma vez que se trata de um mundo concreto e de um indivíduo
concreto inseridos em uma realidade não mais fragmentada, captada em sua essência.

Utilizamos esses breves exemplos no intuito de demonstrar que – conforme temos discutido ao
longo desta tese – a Literatura passível de promover – a partir de um planejamento intencional
e sistemático, de uma mediação adequada, com vistas à apropriação do reflexo da realidade –
o desenvolvimento do sujeito, não visa levar o indivíduo a um “mundo de faz de conta”, mas a
uma profunda reflexão sobre si mesmo, sobre a vida, sobre a humanidade, sobre os caminhos
210

percorridos por seus pares ao longo da história que promoveram o desenvolvimento da


realidade.

Uma Literatura realista, conforme afirma Lukács (2010a), que tem a potência de captar a
realidade em suas múltiplas determinações, representando contrastes, lutas e conflitos da vida
em sociedade que se manifestam no indivíduo real. Consequentemente, “Na medida em que for
verdadeiramente profunda e realista, ela [a Literatura realista] pode fornecer, mesmo ao mais
profundo conhecedor das relações sociais, experiências vividas e noções inteiramente novas,
inesperadas e importantíssimas (LUKÁCS, 2010a, p. 80).

Reiteramos que, de acordo com a pedagogia histórico-crítica, a questão central da educação não
está nas relações entre professor e aluno, “mas nas relações que eles estabelecem com produtos
intelectuais da prática social humana em sua totalidade” (DUARTE, 2009, p. 467). Por ser
extremamente necessário que a escola seja ambiente propício ao estabelecimento dessas
relações com os produtos intelectuais da prática humana, defendemos aqui que o critério
principal para a seleção de repertórios de leitura para as aulas de Literatura deve ser o reflexo
artístico da realidade objetiva com riqueza de detalhes e em profundidade, o que é possível a
partir da seleção de textos que aqui denominamos “clássicos”.

Para além dessa questão, cumpre informar que não nos limitamos a elaborar listas de seleção
de repertório de leitura, mas evidenciar – a partir de nossa pesquisa teórica, bibliográfica e
documental – a importância de se analisar criticamente a escola erigida sob as bases do capital
com vistas a – a partir de um ensino que vise ao desenvolvimento do indivíduo – cumprir o
papel precípuo da educação que deve ser o de socializar, por meio do ensino e aprendizagem,
os saberes elaborados produzidos historicamente pela coletividade humana.

A apropriação de tais saberes não se dá “ao acaso”, conforme afirma Saviani (2013), é
necessário viabilizar as condições de assimilação, processo que se dá a partir de um
planejamento intencional e sistemático em que identifique, organize, sequencie e dose os
conteúdos e as formas de transmissão que melhor possam cumprir tal papel. Galvão, Lavoura
e Martins (2019, p. 85) discutem que o processo educacional deve se pautar em três elementos:
“conteúdo, formas e o sujeito do processo educativo”, sob o que se entende por “tríade
conteúdo-forma-destinatário” que, segundo os autores, devem estar dialeticamente articulados
entre si, não podendo ser tratados separadamente.
211

Reiteramos que o professor em sala de aula se depara com um indivíduo concreto, síntese de
múltiplas determinações, sendo que em sua prática social inicial o docente tem uma visão
sintética desordenada do todo, isso porque ele não conhece a realidade daquele aluno. Em
função disso, consideramos com Galvão, Lavoura e Martins (2019) impossível utilizar um
esquema único, um modelo de estruturação didática nas aulas que têm como base os
pressupostos da pedagogia histórico-crítica.

[...] Temos acompanhado, ao longo dos últimos anos em nossas atividades de pesquisa
e ensino na formação inicial e continuada de professores, certa ansiedade em
encontrar exemplos e modelos de aplicabilidade dessa teoria pedagógica na prática
em sala de aula por parte daqueles que desejam desenvolver seu trabalho pedagógico
com base na pedagogia histórico-crítica. Nossa resposta a essa exigência costuma ser:
Há que se dominar a teoria para desenvolvê-la na prática (GALVÃO; LAVOURA;
MARTINS, 2019, p. 116).

Por isso, somos contrários a formas prontas, uma vez que não é um mesmo planejamento que
se adaptará a todo tipo de turma. A partir de um estudo minucioso sobre a pedagogia histórico-
crítica e sua aplicabilidade em sala de aula, Galvão, Lavoura e Martins (2019, p. 139)
desenvolvem o que denominam “cinco fundamentos da didática histórico-crítica”, com base no
que consideram ser o “método pedagógico”:

[...] [o método pedagógico é] um conjunto articulado de fundamentos lógicos que


alicerçam toda a organização e o desenvolvimento do trabalho educativo com vistas
a orientar o agir do professor na apreensão das múltiplas determinações constitutivas
da dinâmica, da processualidade e das contradições da relação entre o ensino e a
aprendizagem (GALVÃO; LAVOURA; MARTINS, 2019, p. 139).

Pensando, portanto, no desenvolvimento do trabalho educativo, na necessidade de orientar o


professor, nas contradições da relação entre o ensino e a aprendizagem, os autores propõem os
fundamentos que consideram nucleares para o movimento de superação da didática proposta
por Gasparin (2012). Apresentaremos brevemente os pontos elucidados pelos autores.

Sobre a afirmativa de que “A didática histórico-crítica caracteriza-se por uma atividade cuja
dimensão ontológica não pode ser desconsiderada”, Galvão, Lavoura e Martins (2019, p. 139)
entendem que o ato de ensinar deve ser visto como “atividade humana” e não como
procedimento de ensino tal como posto por Gasparin (2012). A partir dessa questão, os autores
elucidam que é necessário que os docentes identifiquem os elementos que compõem “a
estrutura de dinâmica e funcionamento de sua atividade de prática pedagógica”, delimitem a
“finalidade do ensino”, seus objetos de ensino e as “possíveis ações e operações a serem
realizadas para a efetiva incorporação dos instrumentos culturais transmitidos” (GALVÃO;
LAVOURA; MARTINS, 2019, p. 140).
212

Assim, segundo os autores, o trabalho educativo precisa promover ações intencionais,


sequenciadas e planejadas de modo a possibilitar que a “unidade contraditória entre as
especificidades do ensino e da aprendizagem ocorra”, mediante o ensino desenvolvido pelo
docente (que seleciona e organiza diferentes tipos de conhecimento a serem convertidos em
saber escolar e planeja as formas mais adequadas de transmissão desse conteúdo, reconhecendo
sua relevância para a formação humana) e mediante a aprendizagem realizada pelo aluno (que
ao se apropriar do saber poderá desenvolver complexas funções psíquicas superiores que
propiciem a captação da realidade objetiva em sua máxima expressão de fidelidade)
(GALVÃO; LAVOURA; MARTINS, 2019, p. 140).

A delimitação das finalidades (para que ensinar), do(s) objeto(s) (o que ensinar), das
respectivas formas materializadas em ações e operações (como ensinar), bem como a
devida consideração do destinatário (a quem se ensina) e das condições objetivas do
trabalho educativo (em quais condições), compõe elementos constitutivos dessa
atividade humana denominada ensinar, a qual, por sua vez, somente se materializa em
situações didáticas concretas que não podem ser substituídas por uma formalização
esquemática que se expressa em passos lineares e mecânicos sequencialmente
adotados como regras formais mistificadoras do tipo “receita universal” (GALVÃO;
LAVOURA; MARTINS, 2019, p. 141).

Outro ponto elencado pelos autores é o fato de que “uma didática histórico-crítica assume
dialeticamente a transmissão de conhecimentos como núcleo essencial do método pedagógico”
(GALVÃO; LAVOURA; MARTINS, 2019, p. 141). Os autores elucidam que a “transmissão”
dos conhecimentos sistematizados constitui-se como nuclear no método pedagógico, visando
“produzir, em cada indivíduo singular, a humanidade que é elaborada universalmente pelo
conjunto do gênero humano” (GALVÃO; LAVOURA; MARTINS, 2019, p. 143).

Galvão; Lavoura e Martins (2019, p. 144) evidenciam como terceiro ponto dos fundamentos da
didática histórico-crítica o fato de que “a didática histórico-crítica exige professores com pleno
domínio do objeto do conhecimento a ser ensinado aos alunos”. Isso porque a didática histórico-
crítica, segundo os autores, se assenta sob um processo de transmissão e assimilação de
conceitos científicos, artísticos e filosóficos que determina a formação e o consequente
desenvolvimento de formas superiores de conhecimento que – por sua vez – dependem do
“conteúdo a ser ensinado, o qual reproduza esse mesmo conhecimento objetivo da realidade
social em cada aluno singular” (GALVÃO; LAVOURA; MARTINS, 2019, p. 144).

Na sequência, os autores evidenciam que “a didática histórico-crítica é determinada por uma


concepção ampliada de eixo e de dinâmica de ensino pautada na lógica dialética” (GALVÃO;
LAVOURA; MARTINS, 2019, p. 146), de modo que o desenvolvimento do conhecimento se
213

dá a partir da mudança do conteúdo e da forma de pensamento, uma mudança que vai aos
poucos expressando o enriquecimento da lógica do pensamento “determinada por um sistema
de categorias que correspondem às formas de ‘ser’ do objeto ou fenômeno do conhecimento,
refletindo as propriedades mais essenciais do ser” (GALVÃO; LAVOURA; MARTINS, 2019,
p. 148).

Por último, os autores afirmam que “a didática histórico-crítica reconhece o ensino e a


aprendizagem como percursos lógico-metodológicos contraditórios e inversos, no interior de
um único e indiviso movimento” (GALVÃO; LAVOURA; MARTINS, 2019, p. 153):

Se as abstrações elementares que os alunos são capazes de realizar por si sós nas
atividades de aprendizagem são insuficientes para a apreensão do objeto plenamente
saturado de determinações (MARX, 2011), apropriando-se de suas íntimas conexões
internas e essenciais e captando seu movimento contraditório que se expressa em seu
vir a ser, tais alunos necessitam de um par mais experiente que possa conduzi-los a
esse nível de desenvolvimento (GALVÃO; LAVOURA; MARTINS, 2019, p. 140).

Esse par mais desenvolvido, conforme vimos afirmando nesta tese, é o docente que, segundo
os autores, a partir do percurso lógico de ensino poderá levar o aluno a uma nova e superior
relação com o objeto do conhecimento. Assim, “a lógica do ensino se identifica com a
exposição do conhecimento que visa produzir objetivações fundamentais, as quais devem ser
apropriadas pelos alunos” (GALVÃO; LAVOURA; MARTINS, 2019, p. 155). Em outras
palavras:

A atividade de ensino realizada pelo professor visa reproduzir os traços essenciais do


objeto, com graus cada vez maiores de elementos que o constituem, permitindo a
reprodução processual e sucessiva da integralidade das conexões do sistema interno
de relações constitutivas desse objeto. Quanto mais o ensino se efetiva e se institui
como uma atividade mediadora da relação sujeito-objeto, mais o aluno é capaz de
saturar o objeto de determinações, mais ele o capta de maneira concreta. A concreção
é o desvelamento da processualidade, da mutabilidade e da historicidade do
movimento contraditório do objeto, ou seja, do seu vir a ser (GALVÃO; LAVOURA;
MARTINS, 2019, p. 155).

Os cinco fundamentos da didática histórico-crítica elencados por Galvão; Lavoura e Martins


(2019) evidenciam que não há um modelo pronto para o trabalho pedagógico e nem, no caso
do ensino de Literatura, uma lista pronta e fechada de textos e obras a serem lidos; mais ainda,
que é necessário ao docente defensor de uma educação de qualidade com vistas à humanização
dos indivíduos conhecer a fundo a proposta da pedagogia histórico-crítica de relacionar, a partir
do trabalho educativo, segundo Duarte (2009, p. 470), a espontaneidade da vida cotidiana e a
elevação da vida individual “a uma relação consciente com o processo histórico de objetivação
do gênero humano”.
214

A pedagogia histórico-crítica considera como um elemento primordial na educação


escolar o papel desempenhado pelo professor na sua função de transmitir, a cada
aluno, as produções culturais que, tendo sido desenvolvidas pelo gênero humano no
decorrer da história social, possam se constituir em elementos formadores da
humanidade nos indivíduos. O processo de reconhecimento da cultura como produção
imanente à atividade humana desencadeia o desenvolvimento da consciência, sem o
qual não ocorre a humanização dos indivíduos em suas formas mais desenvolvidas e
plenas (ASSUMPÇÃO; DUARTE, 2017, p. 170).

Mesmo tendo em vista as condições alienantes impostas pelo capitalismo, seguimos


trabalhando em prol de um ensino de Literatura de qualidade que vise ao máximo
desenvolvimento do ser humano, a partir de repertório de leitura que se constitua enquanto
reflexo da realidade objetiva com vistas à apropriação cada vez mais concreta da realidade que
nos cerca.
215

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pátria
aqui, tudo segue
ao contrário

(eu aguardo
meu retorno
aos ovários).

perdi o bonde
ou essa praga
pregressa

– achaque –

estuporou
e justiça
nunca chega;

essa chaga
não fecha?
(DALVI, 2019a)

Ao fim da jornada, nossos olhos se abrem como os de Miguilim (ROSA, 1984) se abriram ao
usar óculos pela primeira vez. Tudo se clareia, tudo se faz novo, as novidades, entretanto, não
têm nada de ideais. Aqui, como afirma Dalvi (2019), tudo segue “ao contrário”, a justiça não
chega e a ferida não fecha. Todavia, num mundo de contrários, faz-se necessária a luta pela
mudança, para que os olhos de muitos também se abram como os de Miguilim e consigam
enxergar a realidade que os cerca, visando a mudança.

Partindo do princípio de que a educação de qualidade tem importância central para que os filhos
da classe trabalhadora possam transformar a sociedade de modo a pôr fim à existência de classes
sociais com interesses antagônicos, essa pesquisa se baseou na defesa da pedagogia histórico-
crítica de que a escola deve transmitir o saber elaborado, visando, de acordo com a Psicologia
Histórico-Cultural, o desenvolvimento do indivíduo e a formação do pensamento por conceitos.

Para atingirmos nosso objetivo de elaborar, com base nos estudos da pedagogia histórico-
crítica, princípios gerais para a seleção de leituras literárias a serem realizadas pelos estudantes
de nível médio, a partir das aulas da disciplina escolar de Língua Portuguesa, visando a seu
máximo desenvolvimento no contexto contemporâneo; iniciamos nossas reflexões sobre o fato
de que a leitura é uma ação política que precisa ser sistematizada e ensinada, uma vez que “[...]
não existe a figura do leitor isento, alienado do mundo, que se “esconde atrás dos livros”: ler (o
216

que lemos, como lemos e o que fazemos com o que lemos) é uma ação política” (DALVI, 2012,
p. 22).

Percebemos, assim, que na contramão dos discursos cotidianos que romantizam o ato de ler
como possibilidade de “fuga da realidade”, “ingresso no mundo do faz de conta”, “devaneio”,
“deleite”; devemos entender que os textos literários não podem estar desconectados da
realidade, pelo contrário, o primeiro ponto que elencamos para a seleção de repertórios de
leitura para serem trabalhados nas aulas de Língua Portuguesa do Ensino Médio é a necessidade
de que a obra literária se constitua enquanto reflexo da realidade. Um reflexo que permita uma
vivência estética que transforme o “homem inteiro”, no “homem inteiramente tomado” a partir
da “ampliação e enriquecimento de sua psique”, de acordo com Lukács (1966, p. 495), reflexo
que – a partir de sua potência homogeneizadora – apresente ao leitor um mundo livre da
heterogeneidade do dia a dia, gerando uma consequente elevação do cotidiano, constituindo-se
em um momento em que o indivíduo passe a questionar sua perspectiva de vida e a si mesmo.

Partindo do princípio de que o ser humano se distingue dos demais animais por – em vez de se
adaptar à natureza – adaptá-la a seus próprios interesses, modificando-a, transformando-a a
partir do trabalho; entendemos que a origem da educação se confunde com a do ser humano,
uma vez que entendemos ser educação o processo de ensino e aprendizagem dos saberes
necessários para que se viva em sociedade. Compreendemos, assim, que a educação surgiu a
partir da necessidade do homem de desenvolver-se, sendo o trabalho educativo, de acordo com
Saviani (2013, p. 13), “o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular,
a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”.

Compreendemos, todavia, que, em uma sociedade dividida em classes antagônicas, em função


da exploração do ser humano pelo próprio ser humano, ao mesmo tempo em que a atividade do
trabalho ampliou as possibilidades de existência humana a partir da relação dialética entre
apropriação e objetivação, tais possibilidades de desenvolvimento são negadas a muitos seres
humanos, o que culmina em um processo de alienação.

Isso porque – conforme discutimos – na sociedade capitalista a luta pela existência, por questões
básicas que garantam a sobrevivência dos seres humanos impede frequentemente que haja
necessidade estética, ou seja, que os seres humanos reconheçam a necessidade – enquanto
indivíduos concretos e sínteses de múltiplas determinações – de se apropriarem das ricas
produções artísticas elaboradas ao longo da história da humanidade pelo conjunto de homens.
217

Limitam-se assim, conforme Ferreira (2012, p. 49) afirma, as possibilidades de apreciação,


fruição ou catarse estética. Tal desinteresse no indivíduo é avaliado na maioria das vezes como
resultados de incapacidades naturais ou de questões individuais que afastariam ou
aproximariam as pessoas da arte – focalizamos aqui a Literatura.

Consideramos, entretanto, que a Literatura, conforme os estudos de Candido (2011, p. 175), e


a consequente fruição estética, não pode ser negada a ninguém, uma vez que se constitui em
um bem incompressível. Nas palavras do autor, a Literatura se põe como necessidade universal
– entendemos aqui que essa necessidade é do indivíduo que muitas vezes não reconhece suas
próprias necessidades para além daquelas que são básicas à sua subsistência – atuando como
fator humanizador. Mais ainda, conforme vimos afirmando, entendemos com Candido (2011,
p. 188) que a Literatura pode ser fator de desmascaramento, uma vez que focaliza situações de
restrição dos direitos dos seres humanos ou negação dos mesmos.

Defendemos, a partir de nossos estudos sobre a pedagogia histórico-crítica, com base em


Saviani (2012), que o papel precípuo da escola é o de socializar os saberes elaborados. Em
nossa pesquisa, portanto, reconhecemos e defendemos que a Literatura precisa ser ensinada a
partir de textos clássicos, para isso, devem ser viabilizadas as condições de assimilação,
processo que se dá a partir de um planejamento intencional que identifique, organize, sequencie
e dose os conteúdos e as formas de transmissão que melhor possam cumprir tal papel.
Compreendemos, segundo Galvão, Lavoura e Martins (2019, p. 85), que o processo educacional
deve se preocupar com o conteúdo a ser ensinado, com as formas de ensino desse conteúdo,
adequando-as ao destinatário, ou seja, ao discente. Tais elementos são indissociáveis no
processo educativo, uma vez que são interdependentes.

Entendemos que, para isso, faz-se necessário que o professor seja o par mais desenvolvido, que
coloque o aluno em contato com as objetivações artísticas e, de acordo com Sacomanni (2016,
p. 141), apresente mediações necessárias à compreensão das objetivações. Por isso, o simples
contato com a obra de arte não basta, a escola precisa fazer com que os alunos aprendam a se
relacionar esteticamente com as obras clássicas.

Defendemos veementemente que os textos adotados para o ensino de Literatura sejam os


clássicos, também porque, com vistas ao desenvolvimento humano, entendemos que não é
qualquer aprendizagem que promoverá desenvolvimento, conforme temos discutido, segundo
Sacomanni (2016, p. 142) “[a] pobreza ou a riqueza da atividade determina a condição do
218

desenvolvimento psíquico”. Entendemos ainda com a autora que a percepção de um aluno


acerca de uma obra de arte dependerá da riqueza de experiências anteriores disponibilizadas a
ele e mais, que o gosto pelos conteúdos estéticos é também ensinado com vistas à produção da
catarse como reflexo da elevação do desenvolvimento singular.

Ressaltamos que, ao falarmos da escola como espaço privilegiado para o ensino e a


aprendizagem desses saberes, reconhecemos que ela pode funcionar como “aparelho de
hegemonia do Estado”, mas entendemos que, ao mesmo tempo, pela apropriação do
conhecimento objetivo, os sujeitos em formação podem ir além da mera reprodução da
ideologia dominante, convertendo um saber que foi transmitido com a finalidade de reprodução
ideológica em veículo de questionamento e superação da ordem posta. Nesse sentido, a tarefa
de uma pedagogia verdadeiramente crítica é incidir nessa contradição, disputando o processo
desde dentro.

Acrescentamos que, segundo Loureiro, Della Fonte e Oliveira (2017), o trabalho educativo se
inicia quando o docente se indaga sobre quais conhecimentos se tornaram clássicos, quais são
os que “sobreviveram ao tempo e condensaram a atividade humana de gerações a gerações a
ponto de se tornar[em] cruciais para a compreensão e formação do mundo e do sujeito
contemporâneo”. Assim, o docente – ao selecionar obras para trabalhar em sala de aula – deve
se questionar:

Quais os conhecimentos (sejam eles expressivos ou conceituais) que, por valorizarem


a objetividade, por serem dissonantes com o viver cotidiano, portarem uma abertura
para o devir, serem imanentemente catárticos, abrem faíscas realmente de
reconciliação do ser humano com sua própria história? (LOUREIRO; DELLA
FONTE; OLIVEIRA, 2017, p. 22).

Reiteramos o fato de que o docente terá condições de selecionar textos bem elaborados para
suas aulas de Literatura apenas caso tenha domínio dos mesmos, uma vez que o trabalho em
sala de aula não pode ser reduzido a resumos e discussões de questões superficiais, é necessário
conhecer o texto, compreender os elementos da poética conforme afirma Lukács (1968, p. 171)
para que o texto cumpra sua função de ser reflexo artístico da realidade objetiva, a saber: o
enredo como síntese de ações e relações sociais complexas; o conflito como forma dessas ações
e reações contraditórias; o paralelismo e o consequente contraste segundo os quais operam as
paixões humanas; “todos os princípios básicos da composição poética não fazem mais do que
refletir, concentrando-as no filtro da síntese literária, as formas mais universais e necessárias
da própria vida humana”.
219

Alertamos, todavia, que nas condições alienantes em que vivemos, muitas vezes o professor
que trabalha arduamente para sustentar sua família não tem ele mesmo tempo nem condições
de dar margem à fruição estética, não tem tempo adequado para planejamento, enfim, várias
questões objetivas da própria existência dificultam o processo, o que não quer dizer que
deixaremos de lutar com as ferramentas acessíveis, uma vez que nosso intuito é de que a
sociedade como um todo seja mais humana, mais igualitária, que os seres humanos possam se
apropriar do que deveria se constituir em sua segunda natureza.

Uma outra dificuldade encontrada pelo docente é a discussão levantada por Pin (2019, p. 240)
acerca da resistência dos alunos enquanto seres empíricos em lerem os textos clássicos
selecionados pelo docente. Sobre essa questão, a autora declara que a leitura de um texto
clássico que pode ser denso aos alunos requer um exercício paciente de desbravamento da
linguagem e da temática que fazem parte de um processo criativo complexo, cuja apropriação
depende de uma leitura mais especializada. “De forma que sua leitura contribui
significativamente para o desenvolvimento cognitivo dos alunos, mas também se torna um
desafio para estes, em que a linguagem pode se tornar um grande empecilho” (PIN, 2019, p.
240).

Embora as dificuldades sejam muitas e tenhamos consciência de que elas não se resolverão na
conformação atual de sociedade, compreendemos que nosso trabalho em sala de aula deve ser
o de não nos conformarmos com o esvaziamento do currículo, com alunos que se tornam cada
vez mais alienados da realidade que os cerca. Lutamos para que nossos filhos e os filhos de
nossos pares possam viver em uma sociedade mais justa, mais humana, mais equânime, onde
não lhes seja negado o direito de apropriação dos conteúdos artísticos, filosóficos e científicos
produzidos pelo conjunto de seres humanos ao longo do processo de desenvolvimento histórico.

Defendendo que o trabalho com textos clássicos precisa se evidenciar no contexto da escola
brasileira, faz-se necessário selecionar textos que tenham caráter realista, que, de acordo com
Costa (2018, p. 38, 39), apreendam a objetividade como um momento profundo e essencial da
realidade, que promovam ruptura com a impressão de uma sociedade fragmentada, refletindo o
mundo dos seres humanos ameaçado por fatores sociais que mutilam sua integridade e
posicionando-se em defesa da própria humanidade. Somente assim os seres humanos poderão
se desenvolver com vistas a promover uma mudança necessária no contexto social.
220

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