Discursos Sobre A Sintaxe Do Português Brasileiro: Questões Político-Ideológicas
Discursos Sobre A Sintaxe Do Português Brasileiro: Questões Político-Ideológicas
Discursos Sobre A Sintaxe Do Português Brasileiro: Questões Político-Ideológicas
(ii) “Terá certamente uma vida melhor o aluno que dominar o instrumental da norma culta da língua, contra o qual o livro se
posiciona abertamente. Assim, esse “instrumental didático”, que conta com o endosso do MEC, se algum efeito tiver, será no
sentido de piorar a vida do estudante; na melhor das hipóteses, contribui para mantê-lo na ignorância.” (blog de Reinaldo
Azevedo, Revista Veja)
A CRENÇA DO SENSO COMUM NO MONOLINGUISMO BRASILEIRO
- Ops! 😔
- Linguistas dizem coisas bastante
diferentes (e às vezes mesmo
con itantes)
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A minha hipótese é a de que há um con ito de interesses e de visões (cf. SOWELL, 2012) sobre a
língua portuguesa no Brasil que di culta sobremaneira um reajuste produtivo no seu ensino-
aprendizagem (e, portanto, di culta a mudança na visão que as pessoas têm de língua(s) no país).
De um lado do continuum de discursos sobre esse tema, há uma visão cuja origem é tributária de
um modo de ser/estar no mundo corolário do discurso da expansão ocidental. Isso signi ca, a
meu ver, que herdamos, na colonização deste país, saberes que plasmam, até hoje, a
generalizada concepção de que um Estado precisa ser monolíngue e de que a língua boa é
aquela alheia a qualquer desvirtuamento perpetrado pelos usos reais. Do outro lado do
continuum, há uma visão cuja origem é o movimento pós-moderno e, mais especi camente, os
estudos decoloniais, responsáveis não raro por uma negação do Ocidente (cf. BOCK-CÔTÉ, 2019)
que por vezes leva a crer que a existência de uma norma, mesmo para a escrita, é dispensável
em nossa sociedade.
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Entre esses dois extremos, há uma série de outros diferentes discursos, como o que defende que o
português de Portugal e o português do Brasil já são línguas diferentes, sem, porém, militar por
mudanças contra-hegemônicas, por assim dizer (cf. TARALLO, 1986, 1993; KATO, 1993; ROBERTS,
1993, 2019; GALVES & KATO, 2019; MATTOS E SILVA, 2004 etc.), e o que defende a necessidade de,
no cenário globalizado em que vivemos, lutar por uma gestão política da língua portuguesa comum
como um ativo econômico no mercado externo (cf. OLIVEIRA, 2013, 2016).
No que se refere ao discurso cientí co, especi camente, mesmo discursos que parecem
compartilhar de um mesmo interesse (reajustar a norma-padrão no Brasil ou internacionalizar o
português, p.e.) guardam entre si diferenças teóricas e metodológicas fundamentais e, não raro,
irreconciliáveis.
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O QUE DIZEM OS ESTUDOS SOBRE AS GRAMÁTICAS DO PB?
À luz do que se sabe hoje sobre o papel dos processos de aquisição, transferência e
reestruturação que operam durante o desenvolvimento da segunda língua (L2), como
características de L2 podem permear o desenvolvimento de uma primeira língua (L1) quando
essa recebe dados linguísticos primários (DLP) de L2 e o complexo panorama histórico-
demográfico e social do Brasil, concordo que a emergência de uma gramática diferente da do
PE neste país é tributária do contato massivo do português com outras línguas tipologicamente
distintas, ao longo de muitos séculos (cf. BAXTER, 1995; LUCCHESI et al, 2009 etc.).
🤔
EM QUE PESE HAVER TANTAS EVIDÊNCIAS EMPÍRICAS DE QUE PB E PE SÃO
LÍNGUAS DISTINTAS, POR QUE AINDA SE AFIRMA UMA SUPOSTA UNIDADE
TRANSNACIONAL, MESMO NO ÂMBITO DA LINGUÍSTICA?
A QUEM INTERESSA AFIRMAR A UNIDADE, NEGANDO A DIVERSIDADE?
A QUEM INTERESSA AFIRMAR A DIVERSIDADE, NEGANDO A UNIDADE?
2. AS VISÕES LINGUÍSTICAS SOBRE SINTAXE NOS
DISCURSOS CIENTÍFICOS
O QUE ESTOU CHAMANDO DE VISÃO LINGUÍSTICA?
Visão: “moldadoras silenciosas do nosso pensamento" (Sowell, 2012)
Ideologia linguística:
“o sistema cultural de ideias sobre relações sociais e linguísticas, juntas com sua carga
de interesses morais e políticos” (cf. IRVINE, 1989);
“crenças ou sentimentos sobre as línguas como são usadas em seus mundos sociais”
(cf. KROSKRITY, 2004)
Sempre foi maxima inalteravelmente praticada em todas as Naçoens, que conquistaraõ novos
Dominios, introduzir logo nos Póvos conquistados o seu proprio idiôma, por ser indisputavel, que este
he hum dos meios mais e cazes para desterrar dos Póvos rusticos a barbaridade de seus antigos
costumes; e tem mostrado a experiencia, que ao mesmo passo, que se introduz nelles o uso da
Lingua do Principe, que os conquistou, se lhes radica tambem o a ecto, a veneraçaõ, e a obediencia
ao mesmo Principe. (Directorio, 1758, p. 3 parágrafo 6).
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(II) A VISÃO LINGUÍSTICA DA IDENTIFICAÇÃO
(i) “Ao se misturarem com outros grupos, caminha-se na direção de um denominador comum” (SILVA NETO, 1960, p.
589);
(ii) “(…) o homem do campo tem bem a noção da superioridade dela [língua das cidades]” (SILVA NETO, 1960, p. 589);
(iii) “É natural, portanto, que, no decorrer deste primeiro século de colonização, se tenha formado entre estes índios,
negros e mestiços, uma linguagem rude de gente inculta, denominada crioulo, ou semicrioulo” (SILVA NETO, 1960, p.
593);
(iv)“(…) português estropiado de negros e índios” (SILVA NETO, 1960, p. 596)
(v) “A existência de uma língua comum, capaz de se elevar acima de todas as particularidades dialetais, é indício certo
de que surgiu aquela consciência unitária, aquele sentimento e desejo de participar num destino comum que, de um
povo, faz uma nação. Pode-se a rmar com absoluta certeza que, quando um povo atingiu uma unidade linguística
própria por um ato de adesão à forma expressiva de maior prestígio, atingiu também o espírito de sua unidade
nacional (PAGLIARO, 1967, p. 136, apud BECHARA, 2014, p. 22)
(vi)(…) mesmo quando convém a correção de um procedimento linguístico (porque marca desfavoravelmente o indivíduo
do ponto de vista da sua posição social, ou porque prejudica a clareza e a e ciência da sua capacidade de
comunicação, ou porque cria um cisma perturbador num uso mais geral adotado), é preciso saber a causa profunda
desse procedimento, para poder combatê-lo na gramática normativa” (BECHARA, 2014, p. 21)
(vii)“Há uma confusão entre o que se espera de um cientista e de um professor. O cientista estuda a realidade de um
objeto para entendê-lo como ele é. Essa atitude não cabe em sala de aula. O indivíduo vai para a escola em busca
de ascensão social” (BECHARA, 2011)
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(III) A VISÃO LINGUÍSTICA DA DIFERENÇA
“Sem vias de dúvidas (…), pode ser a rmado que o cidadão brasileiro já estava de posse, ao nal do
século XIX, de sua própria língua/gramática” (TARALLO, 1986 [2018], p. 79)
> PB é uma “gramática marginal” no conjunto das línguas românicas (ROBERTS, 2019);
> o contato interlinguístico;
> norma culta é uma “gramática periférica” na mente/cérebro dos brasileiros (KATO, 2018);
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(IV) A VISÃO LINGUÍSTICA DA RUPTURA
“2. é PROPOSITIVA, porque não se limita a descrever ou a expor o português brasileiro, mas propõe efetivamente a
plena aceitação de novas regras gramaticais que já pertencem à nossa língua há muito tempo e, por isso, devem
fazer parte do ensino sistemático da língua. Ela formula um “discurso herético”, no sentido conferido à expressão por
Pierre Bourdieu no trecho que lhe serve de epígrafe (…)
5. é POLÍTICO-IDEOLÓGICA porque é um produto humano e não existe produto humano que não se con gure,
consciente ou inconscientemente, como uma tomada de posição política inspirada por uma ou mais ideologias; o
mito da ciência “neutra” não tem mais lugar na era em que vivemos. Assim, essa obra milita a favor do
reconhecimento do português brasileiro como uma língua plena, autônoma, que deve se orientar por seus próprios
princípios de funcionamento e não por uma tradição gramatical voltada exclusivamente para o português europeu
literário antigo. Essa militância se traduz no emprego consciente de formas linguísticas há muito tempo incorporadas
à gramática do português brasileiro, mas que ainda são alvo da perseguição dos puristas mais empedernidos. Por
isso, ninguém se assuste ao topar com construções do tipo “nos grupos que fazemos parte”, ou “tem muitos
problemas nessa descrição”, ou “tendo transformado ela numa regra”, ou “não se conhece as origens exatas dessas
palavras”, entre outras” (BAGNO, 2012, p. 13-14)
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OPS…
IL DA RUPTURA:
Bagno (2012; 2014 etc.): dados do NURC devem orientar ensino-aprendizagem de língua portuguesa oral e escrita, na
Educação Básica.
(i) “Dadas essas pressões, entre outras, podemos propor que o Acordo Ortográ co da Língua Portuguesa de 1990
assinado por todos os países de língua o cial portuguesa e rati cado por todos, menos Angola e Moçambique, e
sua tardia entrada em vigor no Brasil, a partir de 2009, e em Portugal, a partir de 2011, foi o primeiro indício do
avanço das pressões por uma normatização convergente” (OLIVEIRA, 2013, p. 70)
(ii) “A conclusão necessária dessas considerações é que a constituição de uma língua comum (…) passa pela criação
de instâncias comuns de gestão (…)” (OLIVEIRA, 2013, p. 73)
(iii) “Quadro ainda embrionário nessa nova fase geopolítica na qual entramos, a língua portuguesa comum sofre suas
dores do parto neste início do século XXI (…)” (OLIVEIRA, 2013, p. 73)
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(V) A VISÃO LINGUÍSTICA TRANSNACIONAL
A UM SÓ TURNO, POR PARADOXAL QUE PAREÇA, DEFENDE:
Isto é…
- a) foca no capitalismo (IL globalista); b) evoca ideias da IL da ruptura; c) reverbera
discursos colonialistas (IL colonial).
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4. OK, ESTAMOS DIANTE DE UM APARENTE “CAOS
DISCURSIVO”. É POSSÍVEL ORGANIZÁ-LO?
FOCO 1: NAS CONVERGÊNCIAS, NÃO NAS DIVERGÊNCIAS:
- “PB e PE são línguas diferentes (quer se entendam essas diferenças como variedades
de um mesmo idioma, quer se entendam essas diferenças como su cientes para a
de nição de línguas distintas)”;
- “A educação linguística, no Brasil, de modo geral, está bastante longe de ser e ciente”.
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INAF (2001-2018)
SAEB (2019)
- 5º ano (leitura): nível 4, de 0 a 9;
- 9º ano (leitura): nível 3, de 0 a 8;
- 3ª série do Ensino Médio (leitura): nível 3, de 0 a 8.
REDAÇÃO DO ENEM (2019, 2020 E 2021)
PISA (2018) - LEITURA
Nos próximos anos, pedagogos e professores brasileiros das várias
licenciaturas serão, via de regra, esses alunos cujos dados aparecem nas
atuais avaliações do SAEB, do ENEM e do PISA: aqueles que muito pouco
sabem ler e escrever (quatro anos de graduação serão su cientes para
dirimir sérios problemas da formação básica que tem sido a eles
oferecida?). Ora, os cursos de licenciaturas e o de Pedagogia são aqueles
com as menores notas de corte nas universidades púbicas e com as
menores mensalidades nas faculdades privadas, muitas das quais ofertam,
inclusive, ensino à distância.
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FOCO 2: CLAREZA QUANTO ÀS MENTALIDADES EM CONFLITO!
Uma mentalidade colonial (ocidental) diz: “Os ocidentais são racionais e científicos, enquanto os asiáticos são
irracionais e supersticiosos. Portanto, os europeus devem governar a Ásia para o seu próprio bem”. Uma
mentalidade liberal diz: “Todos os seres humanos têm a capacidade de ser racionais e científicos, mas os
indivíduos variam muito. Portanto, todos os seres humanos devem ter todas as oportunidades e liberdades.”
Uma mentalidade pós- moderna diz: “O Ocidente construiu a ideia de que a racionalidade e a ciência são boas
para perpetuar o próprio poder e marginalizar formas não racionais e não científicas de produção de
conhecimento de outros lugares.” Assim, enquanto a mentalidade liberal rejeita a arrogante alegação colonial de
que a razão e a ciência pertencem aos brancos ocidentais, a mentalidade pós-moderna a aceita, mas considera a
razão e a ciência em si como apenas uma maneira de saber e oprimir – uma opressão que tenta corrigir aplicando
os pressupostos fundamentais do pós-modernismo. A mentalidade do pós-modernismo aplicado em relação ao
colonialismo é semelhante à mentalidade do pós-modernismo, mas acrescenta uma conclusão ativista. Uma
mentalidade do pós-modernismo aplicado diz: “O Ocidente construiu a ideia de que a racionalidade e a
ciência são boas para perpetuar o próprio poder e marginalizar formas não racionais e não científicas de
produção de conhecimento de outros lugares. Portanto, devemos agora desvalorizar as formas brancas ocidentais
de saber por pertencerem aos brancos ocidentais e promover as orientais (a fim de equalizar o desequilíbrio de
poder)”. Essa prática costuma ser referida como descolonização e busca a justiça em pesquisa.
PLURALIDADE TEÓRICA NA LINGUÍSTICA E NECESSIDADE DE CONFLITOS
Não vejo por que se deva deplorar a proliferação de teorias, nem vejo a proliferação como causa de
“crise” [como afirmou Rajagopalan (1988)]. Ao contrário. Em ciência, só se obtém o progresso quando
há pontos de vista em conflito – a ciência só progride “pela discussão crítica de visões alternativas”,
como diz Feyerabend. A ideia de paradigma único, embora possa parecer atraente, significa o monopólio
de um ponto de vista, de uma ideologia, e todo monopólio ideológico leva ao dogmatismo. Não há por
que temer a proliferação. Não há por que desejar “aproximações” ou “compatibilizações”. Cada teoria é
uma estrada que, assim como pode levar a uma cidade, pode terminar num precipício ou num fundo de
vale. Cada teoria deve ser levada às últimas consequências, sem “camaleonices”, para que possamos
saber da fertilidade de seu ponto de vista […]. Se queremos sonhar com utopias, busquemos as
“aproximações”. Se, por outro lado, queremos nos engajar na atividade real da ciência, deixemos as
teorias desenvolverem-se, com todas as suas virtudes e limitações. Nunca deixemos, porém, de submeter
todas as propostas à mais severa crítica. Não pretendo ser o dono da verdade. Não pretendo ter
demonstrado “efetiva e cabalmente” nenhuma tese. Posso estar profundamente errado em meu
posicionamento. Somente a discussão franca e honesta dos pontos de vista conflitantes poderá levar a
avanços nessa área (BORGES NETO, 2004, p. 215-216).
DE BORGES NETO (2004) A OLIVEIRA (2022)
Pragmatismo: "concepção filosófica […] que valoriza a prática mais do que a teoria e considera que
devemos dar mais importância às consequências e efeitos da ação do que a seus princípios e
pressupostos. A teoria pragmática da verdade mantém que o critério de verdade deve ser encontrado
nos efeitos e consequências de uma ideia, em sua eficácia, em seu sucesso. A validade de uma ideia
está na concretização dos resultados que se propõe obter” (JAPIASSU; MARCONDES, 1990, p. 199,
apud BORGES NETO, 2004, p. 76).
"Diante da pluralidade de discursos conflitantes sobre como lidar, nos dias atuais, com a variação
linguística e com as mudanças linguísticas implementadas na língua portuguesa em uso no Brasil,
parece-me ético e democrático pensar não em que discurso é verdadeiro, correto, mas em que
discursos podem resultar em políticas linguísticas eficientes – e eficiência aqui tem relação
indissociável com a democracia." (OLIVEIRA, 2022, p. 256)
FOCO 3: FORMAÇÃO DO PROFISSIONAL DE LETRAS
i. compreender a história da língua portuguesa de forma objetiva, sem enviesamentos
meramente ideológicos, e distante, portanto, da criação de heróis e vilões, da censura
do bem e do banimento preventivo, nas palavras de Coscioni (2022);
ii. dominar as teorias cientí cas que se debruçam sobre variação e mudança
linguísticas;
iii. dominar as diversas normas (incluídas aí, é claro, as normas culta e padrão);
iv. não confundir ciência e militância política (o que não signi ca, em nenhuma
hipótese, que um professor não possa militar pelas causas em que acredita).
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Espero que tenha cado claro que o que estou propondo, ao m e ao
cabo, seguindo uma premissa aristotélica, é que, nos extremos, estão
os vícios. A virtude está no meio. Em outras palavras, virtus in medium
est.
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OBRIGADO!
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