Pedra Papel Tesoura Alice Feeney

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ROCK

PAP E R

SCISSORS

ALICE FEENEY

FLATIRON

BOOKS

NEW YORK
As coisas estao erradas com o Sr. e a Sra. Wright ha muito t empo. Quando
Adam e Amelia ganham um im de semana na Escocia, isso pode ser
exatamente o que seu casamento precisa. O viciado em

trabalho e roteirista confesso Adam Wright viveu com cegueira f acial


durante toda a sua vida. Ele nao consegue reconhecer amigos ou

familiares, nem mesmo sua propria esposa.

Todo aniversario o casal troca presentes tradicionais – papel, algoda o,


ceramica, estanho – e todo ano a esposa de Adam lhe escreve uma carta que
ela nunca o deixa ler. Ate agora. Ambos sabem que este im de semana
salvara ou destruira seu casamento, mas nao ganharam esta viagem
aleatoriamente. Umdeles esta mentindo e alguemnao quer que vivam felizes
para sempr e.

Dez anos de casamento. Dez anos de segredos. E um aniversario que eles


nunca esquecera o.

FEVEREIRO 202 0

Meu marido nao reconhece meu rost o.

Sinto-o olhando para mim enquanto dirijo e me pergunto o que ele ve.
Ninguem mais lhe parece familiar, mas ainda e estranho pensar que o
homem com quem casei nao seria capaz de me identi icar numa ila policial.

Eu sei a expressao que seu rosto esta usando sem precisar olhar. E a versao
mal-humorada e petulante do tipo “eu avisei”, entao me concentro na
estrada. Preciso. A neve esta caindo mais rapido agora, e como dirigir em
uma nevasca, e os limpadores de para-brisa do meu Morris Minor Traveler
estao lutando para lidar com isso. O carro –

como eu – foi fabricado em 1978. Se voce cuidar das coisas, elas

durarao a vida toda, mas suspeito que meu marido gostaria de tr ocar nos
dois por um modelo mais jovem. Adam veri icou o cinto de segurança uma
centena de vezes desde que saımos de casa, e suas ma os estao fechadas em
punhos no colo. A viagem de Londres ate a Esco cia nao deveria ter
demorado mais de oito horas, mas nao me atrevo a conduzir mais depressa
nesta tempestade. Mesmo que est eja

começando a escurecer e pareça que podemos estar perdidos em mais de um


aspect o.

Um im de semana fora pode salvar um casamento? Foi o que meu marido


disse quando o conselheiro sugeriu. Cada vez que suas palavr as se repetem
em minha mente, uma nova lista de arrependimentos se escreve em minha
cabeça. Ter desperdiçado tanto de nossas vidas por nao vive-las realmente
me deixa muito triste. Nem sempre fomos as pessoas que somos agora, mas
nossas memorias do passado podem transformar todos nos em mentirosos. E
por isso que estou me concentrando no futuro. Meu. Alguns dias ainda o
imagino assim, mas ha momentos em que imagino como seria estar sozinha
novament e. Nao e o que eu quero, mas me pergunto se seria melhor para
nos dois. O tempo pode mudar os relacionamentos como o mar remodela a
ar eia.

Ele disse que deverıamos adiar a viagem quando vimos os a visos


meteorologicos, mas nao consegui. Nos dois sabemos que este im de semana
fora e a ultima chance de consertar as coisas. Ou pelo menos para tentar. Ele
nao se esqueceu disso.
Nao e culpa do meu marido que ele se esqueça de quem eu sou.

Adam tem uma falha neurologica chamada prosopagnosia, o que signi ica
que ele nao consegue ver caracterısticas distintivas nos rost os, incluindo o
seu. Ele passou por mim na rua em mais de uma ocasia o, como se eu fosse
uma estranha. A ansiedade social que isso inevitavelmente causa afeta a nos
dois. Adam pode estar rodeado de amigos em uma festa e ainda assim sentir
que nao conhece ninguem na sala. Entao passamos muito tempo sozinhos.
Juntos, mas separados. S o nos. A cegueira facial nao e a unica maneira pela
qual meu marido me faz sentir invisıvel. Ele nao queria ilhos... sempre disse
que na o suportava a ideia de nao reconhecer seus rostos. Ele viveu com essa
condiçao durante toda a vida, e eu vivi com ela desde que nos conhecemos.
As vezes, uma maldiçao pode ser uma bença o.

Meu marido pode nao conhecer meu rosto, mas ha outr as

maneiras pelas quais ele aprendeu a me reconhecer: o cheiro do meu

perfume, o som da minha voz, a sensaçao da minha mao na sua quando ele
ainda a segurav a.

Os casamentos nao falham, as pessoas sim.

Nao sou a mulher por quem ele se apaixonou anos atras. Eu me pergunto se
ele pode dizer o quanto pareço mais velha agora? Ou se ele notou a in
iltraçao de cabelos grisalhos em meus longos cabelos loir os? Quarenta
podem ser os novos trinta, mas minha pele esta cheia de rugas que raramente
eram causadas pelo riso. Costumavamos ter muit o em comum, compartilhar
nossos segredos e sonhos, nao apenas uma cama. Ainda terminamos as
frases um do outro, mas hoje em dia err amos.

— Sinto que estamos andando em cırculos — ele murmur a baixinho, e por


um momento nao tenho certeza se ele esta se ref erindo ao nosso casamento
ou as minhas habilidades de navegaçao. O ceu de ardosia ameaçador parece
re letir seu humor, e a primeira vez que ele fala em varios quilometros. A
neve caiu na estrada a frente e o vent o esta aumentando, mas ainda nao e
nada comparado com a t empestade que se forma dentro do carr o.
— Voce pode simplesmente encontrar as instruçoes que imprimi e le-las
novamente? —Digo, tentando, mas nao conseguindo, esconder a irritaçao na
minha voz. —Tenho certeza de que devemos estar pert o.

Ao contrario de mim, meu marido envelheceu incrivelmente bem. Seus mais


de quarenta anos sao habilmente disfarçados por um bom corte de cabelo,
pele bronzeada e um corpo moldado pelo excesso de meias maratonas. Ele
sempre foi muito bom em fugir, principalment e da r ealidade.

Adam e um roteirista. Ele começou bem abaixo do ultimo degr au da escada


retratil de Hollywood, sem conseguir alcança-lo sozinho. Ele diz as pessoas
que saiu direto da escola para o mundo do cinema, o que

e apenas uma mentira descarada. Ele conseguiu um emprego no

Electric Cinema em Notting Hill quando tinha dezesseis anos, v endendo


lanches e ingressos de cinema. Aos 21 anos, ele vendeu os direitos de

seu primeiro roteiro. Rock Paper Scissors1 nunca foi alem do

desenvolvimento, mas Adam conseguiu um agente fora do acordo, e o


agente conseguiu trabalho para ele, escrevendo uma adaptaçao de um horror.
O livro nao foi um best-seller, mas a versao cinematogra ica – um caso
britanico de baixo orçamento – ganhou um Bafta e nasceu um escritor. Nao
foi o mesmo que ver seus proprios personagens g anhando vida na tela – os
caminhos para nossos sonhos raramente sao diretos – mas signi icou que
Adam poderia parar de vender pipoca e escrever em tempo integr al.

Os roteiristas nao costumam ser nomes conhecidos, enta o algumas pessoas


podem nao conhece-lo, mas estou disposta a apostar que viram pelo menos
um dos ilmes que ele escreveu. Apesar dos nossos problemas, estou muito
orgulhosa de tudo o que ele conquist ou. Adam Wright construiu uma
reputaçao no ramo por transf ormar horrores desconhecidos em ilmes de
grande sucesso e ainda est a sempre em busca do proximo. Admito que as
vezes sinto ciumes, mas acho que isso e natural, dada a quantidade de noites
em que ele prefer e levar um livro para a cama. Meu marido nao me trai com
outr as mulheres, nem com homens, ele tem casos amorosos com as palavr
as deles.

Os seres humanos sao uma especie estranha e imprevisıv el. Pre iro a
companhia de animais, que e um dos muitos motivos pelos quais trabalho na
Battersea Dogs Home. Criaturas de quatro patas tendem a ser melhores
companhias do que aquelas com duas, e os ca es nao guardam rancor nem
sabem odiar. Pre iro nao pensar nas outr as razoes pelas quais trabalho la, as
vezes e melhor deixar a poeira de nossas memorias sem varrer .

A vista alem do para-brisa ofereceu uma paisagem dramatica em constante


mudança durante nossa viagem. Houve arvores em todos os tons de verde,
lagos gigantescos e brilhantes, montanhas cobertas de neve e uma
quantidade in inita de espaço perfeito e intocado. Est ou apaixonada pelas
Terras Altas da Escocia. Se existe um lugar mais bonito na Terra, ainda nao
o encontrei. O mundo parece muito maior aqui do que em Londres. Ou
talvez eu seja menor. Encontro paz na quietude silenciosa e no afastamento
de tudo. Faz mais de uma hor a

que nao vemos ninguem, o que faz deste o local perfeito para o que planejei.

Passamos por um mar tempestuoso a nossa esquerda e seguimos para o


norte, com o som das ondas quebrando nos fazendo uma serenata. A medida
que a estrada sinuosa se transforma numa faix a estreita, o ceu – que mudou
de azul para rosa, para roxo e agora preto – re lete-se em cada um dos lagos
parcialmente congelados pelos quais passamos. Mais para o interior, uma
loresta nos envolve. Pinheir os antigos, cobertos de neve e mais altos que a
nossa casa, estao sendo deformados pela tempestade como se fossem palitos
de fosforo. O vento uiva como um fantasma fora do carro, constantemente t
entando nos desviar do rumo, quando escorregamos um pouco na estr ada
gelada, agarro o volante com tanta força que os ossos dos meus dedos
parecem se projetar atraves da minha pele. Percebo minha aliança de
casamento. Um lembrete solido de que ainda estamos juntos, apesar de todos
os motivos pelos quais talvez devessemos estar separados. A nostalgia e uma
droga perigosa, mas gosto da sensaçao de lembr anças mais felizes
inundando minha mente. Talvez nao estejamos ta o perdidos quanto nos
sentimos. Olho de relance para o homem sentado ao meu lado, me
perguntando se ainda conseguirıamos encontrar o caminho de volta para nos.
Entao faço algo que nao faço ha muit o tempo e estendo a mao para segurar
a mao dele.

—Pare! —Ele br ada.

Tudo acontece tao rapido. A imagem borrada e nevada de um cervo parado


no meio da estrada a frente, meu pe pisando no freio, o carro desviando e
girando antes de inalmente derrapar e parar bem na frente dos enormes
chifres do cervo. Ele pisca duas vezes em nossa direçao antes de se afastar
calmamente como se nada tiv esse acontecido, desaparecendo na loresta. Ate
as arvores parecem frias.

Meu coraçao esta batendo forte dentro do peito enquanto pego minha bolsa.
Meus dedos tremulos encontram minha bolsa, chaves e quase todos os outros
conteudos antes de localizar meu inalador. E u agito e dou uma trag ada.

—Voce esta bem? —Pergunto, antes de pegar outr o.

—Eu disse que isso era uma ma ideia —responde A dam.

Ja mordi a lıngua tantas vezes nesta viagem que deve estar cheia de bur acos.

—Nao me lembro de voce ter tido uma melhor —r espondo. —Uma viagem
de oito horas para um im de semana for a…

— Ha muito tempo que dizemos que seria bom visitar as Terr as Altas.

— Pode ser bom visitar a Lua tambem, mas pre iro que conversemos sobre
isso antes de voce nos reservar um foguete. Voc e sabe como as coisas estao
ocupadas para mim agor a.

“Ocupado” se tornou uma palavra-chave em nosso casament o. Adam usa


sua ocupaçao como um distintivo. Como um escoteiro. E algo de que ele se
orgulha: um sımbolo de status do seu sucesso. Isso o f az se sentir
importante e me da vontade de jogar na cabeça dele os ls que ele adapta.
— Estamos onde estamos porque voce esta sempre muit o

ocupado — digo com os dentes cerrados e batendo. Esta tao frio no carro
agora que posso ver minha propria respiraça o.

— Sinto muito, voce esta sugerindo que e minha culpa esta rmos na
Escocia? Em fevereiro? No meio de uma tempestade? Esta foi sua ideia.
Pelo menos nao terei que ouvir suas insistencias incessant es quando formos
esmagados ate a morte pela queda de uma arvore ou morrermos de
hipotermia neste carro de merda que voce insiste em dirigir .

Nunca discutimos assim em publico, apenas em privado. Nos dois somos


muito bons em manter as aparencias e acho que as pessoas veem o que
querem ver. Mas, a portas fechadas, as coisas estao err adas com o Sr. e a
Sra. Wright ha muito t empo.

— Se eu estivesse com meu telefone, ja estarıamos la — diz ele, remexendo


no porta-luvas em busca de seu querido celular, que na o

consegue encontrar. Meu marido acha que gadgets e aparelhos sao a resposta
para todos os problemas da vida.

—Perguntei se voce tinha tudo o que precisava antes de sairmos de casa —


digo.

—Eu tinha tudo. Meu telefone estava no porta-luv as.

—Entao ainda estara la. Nao e meu trabalho arrumar suas c oisas para voce.
Eu nao sou sua ma e.

Arrependo-me imediatamente de ter dito isso, mas as palavr as nao vem com
os recibos de presentes e voce nao pode retira-las. A ma e de Adam esta no
topo da longa lista de coisas sobre as quais ele na o gosta de falar. Tento ser
paciente enquanto ele continua procurando seu telefone, apesar de saber que
nunca o encontrara. Ele tem razao. Ele colocou no porta-luvas. Mas tirei-o
antes de sairmos de casa esta manha e escondi-o la dentro. Pretendo dar uma
liçao importante ao meu marido neste im de semana e ele nao precisa do
telefone par a isso.

Quinze minutos depois, estamos de volta a estrada e parec emos estar


progredindo. Adam aperta os olhos na escuridao enquanto estuda as
instruçoes que imprimi... a menos que seja um livro ou um manuscrito,
qualquer coisa escrita no papel em vez de uma tela par ece deixa-lo perplex
o.

—Voce precisa virar na primeira a direita na proxima rotatoria — diz ele,


parecendo mais con iante do que eu esperav a.

Logo dependeremos da lua para iluminar nosso caminho e sugerir a ascensao


e queda da paisagem nevada que temos pela frente. Nao h a iluminaçao
publica e os farois do Morris Minor mal iluminam a estr ada a nossa frente.
Percebo que estamos com pouca gasolina novament e,

mas nao vejo lugar para abastecer ha quase uma hora. A neve e

implacavel agora, e nao ha nada alem dos contornos escuros de

montanhas e lagos por quilometr os.

Quando inalmente vemos uma placa antiga coberta de neve par a


Blackwater, o alıvio no carro e palpavel. Adam le o ultimo conjunto de

instruçoes com algo que beira o entusiasmo.

— Atravesse a ponte, vire a direita ao passar por um banco com vista para o
lago. A estrada fara uma curva para a direita, conduzindo ao vale. Se voce
passar pelo pub, voce foi longe demais e perdeu a curv a para a pr opriedade.

—Umjantar em um pub pode ser bom mais tarde —sugir o. Nenhum de nos
diz nada quando o Blackwater Inn aparece a

distancia. Desligo antes de chegarmos ao pub, mas ainda assim chegamos


perto o su iciente para ver que as janelas estao fechadas com tabuas. O
edifıcio fantasmagorico parece estar abandonado ha muit o t empo.
A estrada sinuosa que desce para o vale e ao mesmo t empo

espetacular e assustadora. Parece que foi esculpida na montanha a ma o. A


pista mal e larga o su iciente para o nosso pequeno carro, ha uma queda
acentuada de um lado, sem uma unica barreira de colisa o.

—Acho que consigo ver alguma coisa —diz Adam, apro ximando- se do
para-brisa e olhando para a escuridao. Tudo o que posso ver e um ceu negro
e um manto branco cobrindo tudo abaixo dele.

— Onde?

—La. Logo alemdaquelas arvor es.

Diminuo um pouco a velocidade enquanto ele aponta para o nada. Mas entao
noto o que parece ser um grande edifıcio branco a dista ncia.

—E apenas uma igreja —diz ele, parecendo derr otado.

—E isso! —Digo, lendo uma velha placa de madeira a frente. — A Capela


Blackwater e o que procuramos. Devemos estar aqui!

—Viemos ate aqui para icar em... uma igreja antig a?

—Uma capela convertida, sim, e eu organizei tudo.

Diminuo a velocidade e sigo a trilha de terra coberta de neve que sai da


estrada de pista unica e entra no fundo do vale. Passamos por uma pequena
casa de palha a direita – o unico outro edifıcio que

consigo ver num raio de quilometros – e depois atravessamos uma pequena


ponte e somos imediatamente confrontados por um r ebanho de ovelhas. Elas
estao amontoadas, estranhamente iluminadas pelos nossos farois e
bloqueando nosso caminho. Acelero suavemente o motor e tento tocar a
buzina do carro, mas elas nao se movem. Com seus olhos brilhando na
escuridao, elas parecem um pouco sobrenaturais. Entao ouço o som de um
rosnado na parte de tras do carr o.

Bob – nosso labrador preto gigante – icou quieto durante a maior parte da
viagem. Na sua idade ele gosta principalmente de dormir e comer, mas tem
medo de ovelhas. E penas. Tambem tenho medo de coisas bobas, mas tenho
razao em ter. O rosnado de Bob nao assusta o rebanho. Adam abre a porta do
carro sem avisar, e uma rajada de nev e sopra imediatamente para dentro,
atingindo-nos de todas as direço es. Observo enquanto ele sai, protege o
rosto e depois espanta as ov elhas, antes de abrir uma porteira que estava
escondida atras delas. Nao sei como Adam viu isso no escur o.

Ele volta para o carro sem dizer uma palavra, eu aproveito o tempo enquanto
percorremos o resto do caminho. A trilha ica perigosamente perto da borda
do lago e posso entender por que der am ao lugar o nome de Blackwater. Ao
estacionar em frente a velha capela branca, começo a me sentir melhor. Foi
uma jornada exaustiva, mas conseguimos, e digo a mim mesma que tudo
icara bem assim que entr armos.

Entrar em uma nevasca e um choque para o sistema. Enr olo-me no casaco,


mas o vento gelado ainda tira o ar dos meus pulmoes e a neve bate no meu
rosto. Tiro Bob do porta-malas e nos tre s caminhamos pela neve em direçao
a duas grandes portas de madeira de aparencia gotica. Uma capela
convertida parecia romantica a princı pio. Peculiar e divertido. Mas agora
que estamos aqui, parece um pouco com a abertura do nosso proprio ilme de
terror .

As portas da capela estao tr ancadas.

— Os proprietarios mencionaram alguma coisa sobre uma caix a de chaves?


—Adam per gunta.

—Nao, eles apenas disseram que as portas estariam abertas — eu digo.

Olho para o imponente edifıcio branco, protegendo os olhos da neve


implacavel, e admiro as grossas paredes de pedra branca, a torr e do sino e
os vitrais. Bob começa a rosnar novamente, o que nao e tı pico dele, mas
talvez haja mais ovelhas ou outros animais a distancia? Algo que Adam e eu
simplesmente nao conseguimos v er?

—Talvez haja outra porta nos fundos? —Adam suger e.

—Eu espero que voce esteja certo. O carro ja parece precisar ser retirado da
nev e.

Caminhamos em direçao a lateral da capela, com Bob na frent e, forçando a


liderança como se estivesse rastreando alguma coisa. Embora existam in
initos vitrais, nao encontramos mais portas. E apesar da frente do edifıcio ser
iluminada por luzes exteriores – aquelas que podıamos ver a distancia – la
dentro esta completament e escuro. Seguimos em frente, de cabeça baixa
contra o clima implacav el, ate completarmos o cır culo.

—E agora? —Eu pergunt o.

Mas Adam nao r esponde.

Olho para cima, protegendo os olhos da neve, e vejo que ele est a olhando
para a frente da capela. As enormes portas de madeira esta o agora abertas.
Se toda historia tivesse um inal feliz, nao terıamos motivos par a começar de
novo. A vida e feita de escolhas e de aprender como nos recompor quando
desmoronamos. O que todos nos fazemos. At e

mesmo as pessoas que ingem que nao. So porque nao consigo

reconhecer o rosto da minha esposa, nao signi ica que nao sei quem ela e .

— As portas estavam fechadas antes, certo? — Pergunto, mas Amelia nao r


esponde.

Ficamos lado a lado do lado de fora da capela, ambos tr emendo, com a neve
soprando ao nosso redor em todas as direçoes. Ate Bob parece infeliz e esta
sempre feliz. Foi uma viagem longa e t ediosa, agravada pela constante dor
de cabeça na base do cranio. Bebi mais do que deveria com alguem que nao
deveria ontem a noite. De novo. Em defesa do alcool, iz algumas coisas
igualmente estupidas enquant o estava completamente so brio.

— Nao vamos tirar conclusoes precipitadas — diz minha e sposa

eventualmente, mas acho que nos dois ja ultrapassamos va rios

obsta culos.

—As portas nao se abriram sozinhas...

—Talvez a governanta nos tenha ouvido bater? —Ela interr ompe. — A


governanta? Qual site voce usou para reservar este lug ar

novament e?

— Nao estava em um site. Ganhei um im de semana fora no sorteio de Natal


dos funciona rios.

Nao respondo por alguns segundos, mas o silencio pode prolongar o tempo,
fazendo com que pareça mais longo. Alem disso, meu rosto esta tao frio
agora que nao tenho certeza se consigo mov er minha boca. Mas acontece
que eu posso.

—So para deixar isso claro... voce ganhou um im de semana for a, para icar
em uma antiga igreja escocesa, em um sorteio de funcionarios no Battersea
Dogs Home?

— E uma capela, mas sim. O que ha de errado nisso? F azemos sorteio todos
os anos. As pessoas doam presentes, ganhei algo bom, para variar .

—Otimo —eu respondo. —Isso de initivamente tem sido “bom ” ate agor a.

Ela sabe que detesto viagens longas. Eu odeio carros e d irigir ponto inal –
nunca iz um teste – entao oito horas preso em sua lata antiga sobre quatro
rodas, durante uma tempestade, nao e minha ideia de diversao. Olho para o
cachorro em busca de apoio moral, mas Bob esta muito ocupado tentando
comer locos de neve que caem do ce u. Amelia, sentindo a derrota, usa
aquele tom melodioso passiv o- agressivo que costumava me divertir. Hoje
em dia isso me faz desejar ser sur do.

— Vamos entrar? Fazer o melhor disso? Se estiver muito ruim,


simplesmente iremos embora, encontraremos um hotel ou dormir emos no
carro, se for necessa rio.

Pre iro comer meu proprio fıgado a voltar para o carro dela.

Minha esposa diz as mesmas coisas ultimamente, repetidament e, e suas


palavras sempre parecem um beliscao ou um tapa. “Eu nao t e entendo” e o
que mais me irrita, por que o que ha para entender? Ela gosta mais de
animais do que de pessoas. Eu pre iro icçao. Suponho que os verdadeiros
problemas começaram quando começamos a preferir essas coisas um ao
outro. Parece que os termos e condiçoes do nosso relacionamento foram
esquecidos ou nunca foram lidos adequadamente. Nao e como se eu nao
fosse um viciado em tr abalho quando nos conhecemos. Ou “escritor
viciado” como ela gosta de chamar. Todas as pessoas sao viciadas e todos os
viciados desejam a mesma coisa: fugir da realidade. Acontece que meu
trabalho e minha droga fav orita.
Igual, mas diferente, e o que digo a mim mesmo quando co meço um novo
roteiro. Acho que e isso que as pessoas querem, e por que mudar os
ingredientes de uma formula vencedora? Posso dizer nas primeiras paginas
de um livro se ele funcionara ou nao na tela – o que e uma coisa boa, porque
recebo muitos deles para ler todos os dias. Mas so porque sou bom no que
faço nao signi ica que quero fazer isso pelo resto da vida. Tenho minhas
proprias historias para contar. Mas Hollywood nao esta mais interessado em
originalidade, eles so quer em transformar livros em ilmes ou programas de
TV, como o vinho em agua. Diferente, mas igual. Mas sera que essa regra
tambem se aplica aos relacionamentos? Se interpretarmos os mesmos
personagens por

muito tempo em um casamento, nao e inevitavel que iquemos

entediados com a historia e desistamos ou desliguemos antes de cheg ar ao


im?

— Nos devemos? — Amelia diz, interrompendo meus pensamentos e


olhando para a torre do sino no topo da capela assustador a.

— Damas primeiro. — Nao posso dizer que nao sou um cavalheiro. —Vou
pegar as malas no carro —acrescento, ansioso par a aproveitar meus ultimos
segundos de solidao antes de entr armos.

Passo muito tempo tentando nao ofender as pessoas: produtor es, executivos,
atores, agentes, autores. Adicione a cegueira facial nessa

mistura, e acho justo dizer que sou do nıvel olımpico quando se trata de pisar
em ovos. Certa vez, conversei com um casal em um casamento por dez
minutos antes de perceber que eram os noivos. Ela nao usava um vestido
tradicional e ele parecia um clone de seus muitos padrinhos. Mas me safei
porque encantar pessoas faz parte do meu trabalho. F azer com que um autor
me con ie o roteiro de seu livro pode ser mais difı cil do que persuadir uma
mae a deixar um estranho cuidar de seu ilho primogenito. Mas sou bom
nisso. Infelizmente, encantar minha esposa parece ser algo que esqueci como
fazer .
Nunca conto as pessoas sobre ter prosopagnosia. Em primeir o lugar, nao
quero que isso me de ina, honestamente, quando algue m sabe, e so sobre
isso que quer falar. Nao preciso e nem quero pena de ninguem e nao gosto de
me sentir uma aberraçao. O que as pessoas

parecem nunca entender e que para eu e normal nao conseguir

reconhecer rostos. E apenas uma falha na minha programaçao, aquela que


nao pode ser consertada. Nao estou dizendo que estou bem com isso.
Imagine nao ser capaz de reconhecer seus proprios amigos ou

familiares? Ou nao saber como e o rosto da sua esposa? Detest o

encontrar Amelia em restaurantes, caso me sente na mesa errada. E u


escolheria comida para viagem sempre que dependesse de mim. A s vezes
nem reconheço meu proprio rosto quando me olho no espelho. Mas aprendi
a conviver com isso. Como todos nos fazemos quando a vida nos da uma
mao nada perf eita.

Acho que tambem aprendi a conviver com um casamento nada perfeito. Mas
nao e todo mundo? Nao estou sendo derrotista, apenas honesto. Nao e disso
que se tratam os relacionamentos de sucesso? Compromisso? Algum
casamento e realmente perfeit o?

Eu amo minha esposa. So acho que nao gostamos um do outr o tanto quanto
costumav amos.

—Isso e quase tudo —eu digo, reunindo-me com ela nos degr aus da capela,
sobrecarregada com mais malas do que poderemos pr ecisar para algumas
noites fora. Ela olha para meu ombro como se isso a tivesse of endido.

— Essa e a bolsa do seu laptop? — Ela pergunta, sabendo muit o bem que e
.

Nao sou um novato, entao nao posso explicar ou desculpar meu

erro. Imagino Amelia fazendo uma cara de cartao de ir para a cadeia2 . Este
nao e um bom começo. Nao terei permissao para escrever nest e

im de semana ou evitar o cartao para a cadeia. Se nosso casament o fosse um


jogo de Banco Imobiliario, minha esposa me cobraria o dobr o toda vez que
eu acidentalmente pousasse em um de seus hote is.

— Voce prometeu nao trabalhar — diz ela naquele t om

desapontado e choroso que se tornou tao familiar. Meu trabalho pagav a


nossa casa e nossas ferias, ela nao reclamou disso.

Quando penso em tudo o que temos – uma bela casa em Londr es, uma vida
boa, dinheiro no banco – penso a mesma coisa de sempr e: deverıamos ser
felizes. Mas todas as coisas que nao temos sao mais difıceis de ver. A
maioria dos amigos da nossa idade tem pais idosos ou ilhos pequenos com
quem se preocupar, mas so temos um ao outr o. Sem pais, sem irmaos, sem
ilhos, so nos. A falta de pessoas para amar e algo que sempre tivemos em
comum. Meu pai foi embora quando eu er a muito jovem para me lembrar de
alguma coisa sobre ele, minha ma e morreu quando eu ainda estava na
escola. A infancia da minha esposa

nao foi menos que Oliver Twist3, ela era orfa antes de nascer .

Bob nos salva de nos mesmos rosnando novamente para as portas da capela.
E estranho, porque ele nunca faz isso, mas ico grato pela distraçao. E difıcil
acreditar que ele era um cachorrinho a bandonado em uma caixa de sapatos e
jogado no lixo. Desde entao, ele se tornou o maior labrador preto que ja vi.
Ele tem uma coleçao de pelos grisalhos no queixo atualmente e anda mais
devagar do que antes, mas o cachorro e o unico ainda capaz de amor
incondicional em nossa famı lia de tres pessoas. Tenho certeza de que todos
pensam que o tr atamos como um ilho substituto, mesmo que sejam
educados demais par a dizer isso. Eu sempre disse que nao me importava de
nao ter um de verdade. As pessoas que nao conseguem dar um nome aos
seus ilhos conseguem dar um nome a um futuro diferente. Alem disso, de
que

adianta querer algo que voce sabe que nao pode ter? Tarde demais par a isso
agor a.

Normalmente nao sinto com quarenta. As vezes tenho di iculdade em


entender para onde foram os anos e quando iz a transiçao de menino para
homem. Talvez fazer um trabalho que adoro tenha algo a ver com isso. Meu
trabalho me faz sentir jovem, mas minha esposa me faz sentir velho. O
conselheiro matrimonial foi ideia de Amelia e esta viagem foi deles.
“Chame-me de Pamela”, a suposta especialista, pensou que um im de
semana fora poderia nos resolver. Acho que todos os ins de semana e noites
que passamos juntos em casa foram nulos e sem efeito. Visitas semanais
para compartilhar os cantos mais ıntimos de nossas vidas com um completo
estranho custam mais do que apenas a taxa exorbitante. Por esse dinheiro, e
por varios outros motivos, liguei repetidamente para Pammy ou Pam sempre
que nos encontrav amos. “Chame-me de Pamela” nao gostou disso, mas eu
nao gostei muito dela entao ajudou a equilibrar as coisas. Minha esposa nao
queria que ninguem soubesse que estavamos tendo problemas, mas suspeito
que alguns tenham notado. A maioria das pessoas consegue ver o que est a
escrito na parede, mesmo que nem sempre consiga ler o que est a escrit o.

Um im de semana fora pode realmente salvar um casamento? Foi o que


Amelia disse quando “Chame-me de Pamela” sugeriu. Eu nao acho. E por
isso que criei meu proprio plano para nos muito antes de concordar com o
dela. Mas agora estamos aqui... subindo os degraus da capela... e nao sei se
conseguirei continuar com isso.

— Voce tem certeza de que quer fazer isso? — Eu digo, par ando antes de
entrar .

— Sim. Por que? — Ela pergunta, como se nao pudesse ouvir o cachorro
rosnando e o vento uiv ando.

—Nao sei. Algo nao parece cert o...

— Esta nao e uma historia de terror escrita por um de seus autores favoritos,
Adam. Isto e vida real. Talvez o vento tenha aberto as portas?

Ela pode dizer o que quiser, mas as portas nao estav am simplesmente
fechadas antes. Elas estavam trancadas e nos dois sabemos disso.

Nos nos encontramos no que as pessoas elegantes chamam de sala de


bagagens e eu coloco as malas no chao. Uma poça de nev e derretida se
forma ao redor dos meus pes. O piso de laje parece antigo e

ha armazenamento embutido ao longo da parede posterior com

cubıculos de madeira rusticos projetados para botas. Ha tambe m

ileiras de ganchos para casacos, todos vazios. Nao tiramos nossos sapatos ou
jaquetas cobertos de neve. Em parte porque esta tao frio aqui quanto la fora,
mas tambem talvez porque ainda parece incerto se vamos icar .

Uma parede esta coberta de espelhos, pequenos, do tamanho da minha mao.


Eles tem formas e tamanhos estranhos, com molduras de metal intrincadas,
foram pendurados aleatoriamente no lugar com pregos enferrujados e
barbante rustico. Deve haver cinquenta conjuntos de nossos rostos re letidos
para nos. Quase como se todas as versoes de nos mesmos que nos tornamos
para tentar fazer nosso casamento funcionar, se reunissem para desprezar
quem nos t ornamos. Parte de mim esta feliz por nao poder reconhece-los.
Nao tenho cert eza se gostaria do que via, se pudesse.

Essa nao e a unica caracterıstica interessante do design de

interiores. Os cranios e chifres de dois veados foram montados como trofeus


na parede caiada mais distante, com quatro penas br ancas projetando-se dos
buracos onde seus olhos deveriam ter estado. E um pouco estranho, mas
minha esposa olha mais de perto e ica f ascinada, como se estivesse
visitando uma galeria de arte. Ha um antigo banco de igreja no canto que me
chama a atençao. Parece antigo e esta coberto de poeira, como se ninguem
estivesse aqui ha muito tempo. No que diz respeito as primeiras impressoes,
esta nao e das melhor es.

Lembro-me de como Amelia e eu eramos juntos, no começo. Naquela epoca,


nos simplesmente nos demos bem... amavamos a mesma comida, os mesmos
livros, e o sexo era o melhor que eu ja tinha feito. Tudo o que eu podia e nao
conseguia ver nela era lindo. Tı nhamos

muito em comum e querıamos as mesmas coisas na vida. Ou pelo menos


pensei que sim. Hoje em dia ela parece querer outra coisa. Talvez outra
pessoa. Porque nao fui eu quem mudou.

—Voce nao precisa levantar poeira para defender uma posiçao — diz
Amelia. Olho para o rostinho infantil e sorridente a que ela se refer e no
banco da igreja. Eu nao tinha notado isso ant es.

Eu nao desenhei.

As grandes portas externas de madeira se fecham atras de no s antes que eu


possa me defender .

Nos dois giramos, mas nao ha ninguem aqui alem de nos. Todo o edifıcio
parece tremer, os pequenos espelhos na parede balançam um pouco nos
pregos enferrujados e o cachorro choraminga. Amelia olha para mim com os
olhos arregalados e a boca formando um O perfeit o. Minha mente tenta
oferecer uma explicaçao racional, porque e isso que sempre f az.

— Voce pensou que o vento poderia ter aberto as portas... talv ez as tenha
fechado —eu digo, e Amelia assent e.

A mulher com quem casei ha mais de dez anos nunca acr editaria nisso. Mas
hoje em dia, minha esposa so ouve o que quer ouvir e ve o que quer ver .

PEDR A

Palavra do ano :

Limerência substantivo. Um estado de espírit o

involuntário causado por uma atração romântica po r outra pessoa


combinada com uma necessidad e

avassaladora e obsessiva de ter os sentimento s correspondido s.


Outubro de 200 7

Prezado Adam ,

Foi algo à primeira vista quando nos conhecemo s. Eu não tinha certeza do
quê, mas sei que voc ê

também sentiu .

O Cinema Elétrico foi um primeiro encontr o

diferente. Nós dois tínhamos ido ver um film e

sozinhos, mas eu sentei na sua cadeira por engano , começamos a conversar


e saímos juntos depois d o

filme. Todos pensaram que éramos loucos e que o romance turbulento não
duraria, mas sempre tiv e

grande satisfação em provar que as pessoas estava m

erradas. Assim como você. É uma das muitas coisa s que temos em comum .

Confesso que morar juntos não foi exatament e

como imaginei. É mais difícil esconder o lado mai s sombrio de alguém com
quem você mora, e você fe z um trabalho melhor em esconder toda a
desorde m

quando eu só vim visitá-lo. Mudei o nome d o

corredor para Rua da História, porque ele est á

repleto de tantas pilhas oscilantes de manuscritos e livros que temos que


desviar para passar por ele .
Eu sabia que ler e escrever eram uma grande part e da sua vida, mas talvez
precisemos encontrar alg o maior do que um estúdio no porão de uma antig a

casa em Notting Hill, agora que moro aqui também . Estou tão feliz.
Acostumei-me a ficar em segund o

plano na nossa orquestra e aceito que sempr e

seremos três nesta relação: você, eu e sua escrita .

Foi a causa da nossa primeira grande discussão , lembra? Suponho que


deveria ter pensado melho r

antes de vasculhar as gavetas da sua mesa, ma s estava apenas procurando


fósforos. Foi quand o

encontrei o manuscrito de RockPaperScissors, co m seu nome digitado em


Times New Roman n a

primeira página. Eu tinha o apartamento só para mi m e uma garrafa de


vinho decente, então li tud o

naquela noite. Pela sua expressão quando chegou e m

casa, qualquer um pensaria que eu tinha lido se u diário .

Mas acho que entendo agora. Esse manuscrito nã o era apenas uma história
não vendida; era como um a

criança abandonada. RockPaperScissorsfoi se u primeiro roteiro, mas nunca


chegou às telas. Voc ê

colaborou com três produtores, dois diretores e u m ator de primeira linha.


Você passou tantos ano s

escrevendo rascunho após rascunho, mas ainda assi m nunca foi além do
desenvolvimento. Deve se r
perturbador que sua história favorita tenha sid o esquecida, deixada para
morrer na gaveta d a

escrivaninha, mas tenho certeza de que não ficar á assim para sempre.
Tornei-me seu primeiro leito r

oficial desde então – um papel do qual tenho muit o orgulho – e sua escrita
está cada vez melhor .

Eu sei que você prefere ver seus próprios conto s transformados em filmes,
mas por enquanto é tud o

sobre os de outras pessoas. Ainda não me acostume i com a quantidade de


tempo que você gasta lend o

seus livros, porque alguém em algum lugar pen sa que poderia funcionar na
tela. Mas eu vi voc ê

desaparecer dentro de um livro como um coelho dentr o da cartola de um


mágico, e aprendi a aceitar que à s vezes você é um pouco egocêntrico e não
reaparece po r dia s.

Felizmente, os livros são outra coisa que temo s em comum, embora eu ache
justo dizer que temo s

gostos diferentes. Você gosta de histórias de terror , suspense e romances


policiais, que não são minh a preferência. Sempre pensei que devia haver alg
o

muito errado com as pessoas que escrevem ficçã o sombria e distorcida.


Prefiro uma boa história d e

amor. Mas tentei ser compreensiva em relação ao se u trabalho, embora às


vezes doa quando você escolh e

passar seu tempo em um mundo de fantasia, e m vez de aqui, no mundo real,


comigo .

Acho que foi por isso que fiquei tão chatead a quando você disse que não
conseguiríamos u m

cachorro. Tenho apoiado você e sua carreira desd e que nos conhecemos,
mas às vezes me preocupav a que nosso futuro fosse realmente apenas sobre
o seu. Sei que trabalhar para Battersea Dogs Hom e não é tão glamoroso
quanto ser roteirista, mas gost o do meu trabalho, me deixa feliz. Suas razões
par a não comprar um cachorro foram racionais (voc ê

sempre é). O apartamento é ridiculamente pequeno e nós dois trabalhamos


muitas horas, mas eu sempr e disse que poderia levar o cachorro para o
trabalh o

comigo. Afinal, você traz seu trabalho para casa .

Vejo cachorrinhos abandonados todos os dias, ma s este foi diferente. Assim


que vi aquela linda bol a

de pelo preto, soube que era ele. Que tipo d e

monstro coloca um filhote de Labrador em uma caix a de sapatos, joga-o em


uma lixeira e o deixa lá par a morrer? O veterinário disse que ele não tinha
mai s

de seis semanas e a raiva que senti me consumiu . Eu sei o que é ser


abandonada por alguém qu e

deveria te amar. Não há nada pior .

Eu queria levar o cachorrinho para casa no di a seguinte, mas você disse não
e fiquei com o coraçã o

partido pela primeira vez desde que nos conhecemo s. Achei que ainda tinha
tempo de convencê-lo, mas n a tarde seguinte, uma das recepcionistas de
Batterse a
veio ao meu escritório e disse que alguém tinha vind o adotar o cachorro. É
meu trabalho avaliar todos o s

possíveis donos de animais de estimação, então ,

enquanto caminhava pelo corredor para encontrá-los , secretamente esperava


que fossem inadequado s.

Ninguém vai para uma casa onde não será realment e amado sob minha
supervisão .

A primeira coisa que vi quando entrei na sala d e espera foi o cachorrinho.


Sozinho, sentado no meio d o chão frio de pedra. Ele era uma pequena
mancha .

Então notei o pequeno colarinho vermelho que ele usav a e o crachá


prateado em forma de osso. Não fazi a

sentido. Eu ainda nem conhecia os possíveis donos , então eles não deveriam
se comportar como se o

cachorro já fosse deles. Peguei o cachorrinho do chã o para dar uma olhada
mais de perto na inscrição n o metal brilhante :

VOCÊ QUER SE CASAR COMIGO ?

Quase o deixei cair .

Não sei o que meu rosto fez quando você sai u

de trás da porta. Eu sei que chorei. Lembro-me qu e metade da minha equipe


parecia estar nos observand o pela janela de observação. Eles também tinha
m

lágrimas nos olhos e grandes sorrisos nos rosto s.


Todo mundo estava envolvido nisso, menos eu! Que m diria que você era tão
bom em guardar segredo s?

Me desculpe por não ter dito sim imediatamente . Acho que entrei em
choque quando você caiu d e

joelhos. Quando vi o anel de noivado de safira – qu e eu sabia que era da sua


mãe – fui dominada po r

uma onda de emoções que não consegui processar. E com todos olhando
para nós, me senti completament e sobrecarregada .

— Acho que é melhor tomar todas as decisõe s

importantes da vida com um jogo de pedra, papel e tesoura — provoquei,


porque acredito na sua escrit a

tanto quanto acredito em nós, e não acho qu e

deveríamos desistir de nenhum dele s.

Você sorriu. — Então, só para esclarecer, se e u perder, é sim ?

Assenti e fechei o punho .

Minha tesoura cortou seu papel, como sempre fa z quando jogamos esse
jogo, então não foi uma grand e aposta. Sempre que ganho alguma coisa,
você sempr e gosta de pensar que me deixou .

Durante os primeiros meses de no sso

relacionamento, zombei de você por usar muita s

palavras longas, e você me provocou por não saber o que elas significavam .

— Não sei se isso é limerência ou amor — foi o que você disse depois de me
beijar pela primeir a
vez. Tive que pesquisar quando cheguei em casa. A s coisas estranhas que
você às vezes dizia, junto co m

a disparidade em nosso vocabulário, deram início à nossa tradição de


“palavra do dia” antes de dormir . As suas são muitas vezes melhores que as
minha s porque às vezes também deixo você ganhar. Talve z

pudéssemos começar a ter uma palavra do ano? O

deste ano deveria ser “limerência,” ainda tenho um a queda por isso .

Eu sei que você acha que as palavras sã o

importantes – o que faz sentido dada a carreira qu e você escolheu – mas


percebi recentemente que a s

palavras são apenas palavras, uma série de letra s, organizadas em uma


determinada ordem ,

provavelmente no idioma que nos foi atribuído n o

nascimento. As pessoas são descuidadas com sua s palavras hoje em dia.


Elas as jogam fora em u m

texto ou tweet, elas as escrevem, fingem que a s

leem, distorcem-nas, citam-nas erroneamente, mente m com, sem e sobre


elas. Elas as roubam e depois a s doam. O pior de tudo é que elas as
esquecem. A s palavras só têm valor se nos lembrarmos de com o

sentir o que elas significam. Não esqueceremos, nã o é? Gosto de pensar que


o que temos é mais do qu e apenas palavra s.

Estou feliz por ter encontrado seu roteiro secret o escondido em sua mesa e
entendo por que el e
significa mais para você do que qualquer outra coi sa que você escreveu. Ler
RockPaperScissorsfoi com o ter um pequeno vislumbre da sua alma; uma
part e

de você que você ainda não estava pronto para m e

mostrar, mas não deveríamos esconder segredos u m do outro ou de nós


mesmos. Sua história de amo r

sombria e distorcida, sobre um homem que escrev e uma carta para sua
esposa todos os anos n o

aniversário de casamento, mesmo depois que el a morre, me inspirou a


começar a escrever minha s

próprias cartas. Para você. Uma vez por ano. Nã o sei se irei compartilhá-las
com você ainda, ma s

talvez um dia nossos filhos possam ler com o

escrevemos nossa própria história de amor e vivemo s felizes para sempre .

Sua futura espo sa

xx
Bati as portas da capela. Eu nao queria fazer isso com tanta for ça, ou
perceber que iria causar um estrondo tao alto. E nao sei por que
simplesmente nao confessei isso em vez de culpar o vento. Talv ez porque
esteja cansado de ser repreendido pela minha esposa a cada cinco minut os.

Ha outra porta no bagageiro, bem no meio da parede de espelhos em


miniatura. Bob começa a arranhar, deixando marcas na madeir a. Junto com
o rosnado anterior, e outra coisa que ele nunca fez ant es.

Hesito antes de girar a maçaneta, mas quando o faço, a porta se abre


revelando um corredor longo e escuro. O som de nossos passos no chao de
pedra parece ecoar nas paredes brancas, enquanto nos tre s caminhamos em
direçao a proxima porta ao longe. Quando passamos por isso, tudo que
consigo ver e escuridao. Mas quando meus dedos encontram um interruptor
de luz, vejo que estamos em uma cozinha de aparencia bastante normal. E
enorme, mas ainda parece aconchegant e e caseiro. Se nao fosse pelo teto
abobadado, pelas vigas expostas e pelos vitrais, voce nunca saberia que a
cozinha fazia parte de uma capela.

Um grande fogao de cor creme ocupa o centro das atenço es, cercado por
armarios de aparencia cara. Ha uma mesa de madeira de aparencia solida no
meio da cozinha, cercada por bancos de igr eja restaurados. E o tipo de
cozinha que voce ve nas revistas, exceto pela espessa camada de poeira que
cobre todas as superfı cies.

Algo na mesa chama minha atençao. Dou um passo mais perto e vejo que e
uma nota digitada, endereçada a no s:

Queridos Amelia, Adam e Bob,

Por favor, sintam-se em c asa.

O quarto no inal do patamar foi preparado para vocês. Há co mida no


freezer, vinho na cripta e você encontrará lenha extra no depósito de toras
nos fundos, caso pr ecise.

Nós esperamos que aproveitem sua est adia.

— Bem, pelo menos sabemos que estamos no lugar certo — diz Amelia,
girando o anel de noivado no dedo. E algo que ela sempre f az quando esta
nervosa. Uma daquelas pequenas peculiaridades que eu costumava achar
cativant e.

—Quem e o “nos” na nota? —Eu pergunt o.

—O que ?

— “Esperamos que aproveitem sua estadia”. Voce disse que

ganhou um sorteio este im de semana, mas quem e o dono do lug ar? —Nao
sei… acabei de receber um e-mail dizendo que g anhei. —De quem?

Amelia da de ombros. —A governanta. Ela enviou as instruçoes e uma foto


da capela com Blackwater Loch ao fundo. Parecia incrıvel. Mal posso
esperar para voce ver isso a luz do dia...

—Tudo bem, mas qual era o nome dela?


Ela da de ombros. — Nao sei. O que te faz pensar que e uma mulher? Os
homens tambem sao capazes de limpar, mesmo que voc e nunca o f aça.

Ignoro a indireta, aprendi que e melhor faze-lo, mas nem minha esposa pode
negar que ha algo muito estranho nisso tudo.

— Estamos aqui agora — diz ela, envolvendo os braços em v olta de mim. O


abraço parece estranho, como se estivessemos sem pra tica. —Vamos tentar
aproveitar ao maximo. Sera apenas por algumas noit es e sera uma daquelas
historias engraçadas que podemos contar aos nossos amigos depois.

Nao consigo ver expressoes nos rostos, mas ela consegue, enta o tento
manter a minha neutralidade e resistir a apontar que nao t emos mais amigos.
Nao aqueles que vemos juntos. Nosso cırculo social tornou-se um pouco
quadrado. Ela tem a vida dela e eu tenho a minha.

Exploramos o resto do res-do-chao, que foi basicamente di vidido em duas


grandes divisoes: a cozinha e um amplo salao, que mais par ece uma
biblioteca. Estantes de madeira personalizadas revestem as paredes do chao
ao teto – exceto pelos ocasionais vitrais – e todas as prateleiras estao repletas
de livros. Eles estao bem organizados e com cores coordenadas,
possivelmente organizados por alguem com muit o tempo disponıv el.

Uma escada em espiral de madeira de design complexo domina o meio da


sala de um lado. Do outro, ha uma enorme lareira de pedr a, enegrecida pela
fuligem e pelo tempo, literalmente grande o su icient e para se sentar nela. A
lareira ja foi preparada com papel, gravetos e lenha, e ha uma caixa de
fosforos ao lado dela. Acendo imediatamente – o lugar esta gelado e nos
tambem. Amelia pega a caixa de fosforos da minha mao e acende as velas da
igreja na lareira de aparencia go tica, alem de algumas outras que encontra
em lanternas espalhadas pela sala. Ja parece e e muito mais aconchegant e.

O piso irregular de pedra – que deve ter sido o mesmo quando a capela ainda
era uma capela – e coberto por tapetes de apare ncia antiga, e os dois sofas
xadrez de cada lado da lareira parecem bem-

usados e desgastados. Ha marcas no assento e nas almofadas, como se


alguemestivesse sentado ali momentos antes de cheg armos.

Quando estou começando a relaxar, ouço um estranho som de batidas e


arranhoes em uma das janelas. Bob late, e meu coraça o começa a acelerar
um pouco quando vejo o que parece ser uma ma o esqueletica batendo no
vidro. Mas e apenas uma arvore. Seus g alhos nus, parecidos com ossos,
sendo soprados contra o predio pelo vendaval la for a.

—Por que voce nao coloca uma musica? Talvez possamos abaf ar o som da
tempestade? — Amelia diz, e eu obedientemente encontro a bolsa onde
coloquei os alto-falantes de viagem. Tenho uma seleçao de musicas muito
melhor no meu telefone do que ela, mas lembro que na o estava no carro.
Olho para minha esposa e me pergunto se isso foi um test e.

— Nao estou com meu celular — digo, desejando poder ver sua expressa o.

Nao gosto de falar sobre cegueira facial, nem com ela. As c oisas que nos de
inem raramente sao o que podemos escolher. Mas as v ezes, quando olho
para os rostos de outras pessoas, as feiçoes delas começam a girar como uma
pintura de Van Gog h.

— Acho que um cirurgiao teria di iculdade em separar voce do

telefone na maior parte do tempo. Provavelmente e uma bença o

disfarçada que voce o tenha deixado em casa por engano. Ha alguns albuns
que voce gosta no meu, e uma pausa de icar olhando para as telas o dia todo
vai te fazer bem —diz ela.

Mas e uma resposta ruim e err ada.

Eu a vi tirar meu celular do porta-luvas antes de sairmos de casa esta manha.


Sempre coloco la para viagens longas – sinto nauseas se olho para telas em
carros ou taxis – e ela sabe disso. Eu a observei tira - lo e coloca-lo de volta
em casa. Entao eu a ouvi mentir sobre isso at e aqui.

Tendo sido casado ha tanto tempo, sei que nao devo pensar que minha
esposa nao tem alguns segredos – eu certamente tenho – mas nunca a vi se
comportando assim. Nao preciso ver o rosto dela par a saber quando ela nao
esta me dizendo a verdade. Voce pode sentir quando alguem que voce ama
esta mentindo. O que ainda nao sei e por que .

Observo Adam enquanto ele coloca outra lenha no fogo. Ele est a se
comportando de maneira ainda mais estranha do que o normal e parece
cansado. Bob parece igualmente impressionado, estirado no tapete. Ambos
sao propensos ao mau humor quando estao com f ome. Temos muita comida
para cachorro – Adam sempre diz que cuido melhor do cachorro do que dele,
mas isso nao ajuda a resolver o problema do que podemos comer. Eu deveria
ter embalado mais do que apenas biscoitos e salgadinhos para a viagem. A
loja onde eu pret endia parar fechou mais cedo devido a tempestade, e meu
plano alternativ o de jantar no Blackwater Inn foi um fracasso epico – o pub
abandonado parecia ter sido abandonado ha anos.

—O bilhete na cozinha dizia algo sobre haver comida no freezer . Por que
nao vemos o que podemos encontrar? —Sugiro voltando par a a cozinha sem
esperar r esposta.

Os armarios estao vazios e nao consigo encontrar um freezer .

A geladeira tambem esta vazia e nem ligada. Ha uma maquina de

cafe, mas nao ha cafe ou cha. Nao ha nem panelas e frigideir as.
Encontro dois pratos, duas tigelas, duas taças de vinho e duas facas e garfos,
mas e isso. A propriedade e tao grande que parece estranho t er apenas duas
peças de tudo.

Posso ouvir Adam na outra sala. Ele colocou um dos albuns que adoramos
ouvir quando nos conhecemos, e eu me sinto amolecer um pouco. Essa
versao de nos era boa. As vezes, meu marido me lembr a dos caes vadios no
trabalho... alguem que precisa de proteçao do mundo real. Provavelmente e
por isso que ele passa tanto tempo da

vida desaparecendo nas historias. Acreditar em alguem e um dos

maiores presentes que voce pode dar, e gratis e os resultados podem

ser inestimaveis. Tento aplicar essa regra a minha vida pessoal e

tambemao meu tr abalho.

Na semana passada, entrevistei tres possıveis proprietarios em Battersea de


um cockapoo chamado Bertie. A primeira foi uma mulher loira de quase
quarenta anos. Ambiente familiar estavel, bom tr abalho, otimo no papel.
Consideravelmente menos pessoalmente. Donna estav a atrasada para seu
compromisso, mas sentou-se em meu pequeno escritorio sem sequer o
menor sinal de desculpas, vestida com um tr aje de corrida rosa chiclete e
esfaqueando seu telefone com uma unha postiça combinando.

—Isso vai demorar? Tenho um almoço marcado —disse ela, mal erguendo
os olhos.

— Bem, sempre gostamos de conhecer novos proprietarios em potencial.


Gostaria de saber se voce poderia me dizer o que havia em Bertie que fez
voce se interessar em adota -lo?

Seu rosto se contraiu, como se eu tivesse pedido que ela resolvesse uma
equaçao complex a.
—Bertie? —Ela fez beicinho.

—O cachorr o…

Ela gargalhou. — Claro, desculpe, vou mudar o nome dele par a Lola assim
que o levar para casa. Todo mundo tem um cockapoo agor a, nao e? Eu os vi
em todo o Insta.

—Nao recomendamos mudar o nome de um cachorro quando ele for um


pouco mais velho, Donna. E Bertie e um menino. Mudar o nome dele para
Lola seria como se eu te chamasse de Fred. Depois de

conversarmos, levarei voce para conhecer Bertie e ver como voces dois

se dao. Mas infelizmente voce nao podera leva-lo para casa hoje.

Existem varias etapas neste processo. Para que possamos ter certeza de que e
o ajuste cert o.

—Tenho certeza que icarei bem.

—O ajuste certo para o cachorr o.

—Mas... eu ja comprei as roupas combinando.

—R oupas?

—Sim, no eBay. Trajes dos Caça-Fantasmas. Um para mim e uma versao


mini cachorro para Lola. Meus seguidores do Insta vao ador ar! Faz truques?

Rejeitei a candidatura da Donna. Rejeitei as proximas duas pessoas que


vieram ver Bertie tambem – embora uma tenha ameaçado “falar com meu
gerente” e a outra me chamasse de “ate a pro xima terça.” Ninguem vai para
uma casa onde nao sera realmente amado sob minha supervisa o.

Existem tantas variedades de desgosto quanto de amor, mas o medo e


sempre o mesmo, e nao tenho vergonha de admitir que t enho medo de tantas
coisas agora. Acho que talvez a verdadeira razao pela qual estou com tanto
medo de perder “ou abandonar” meu marido seja porque nao tenho mais
ninguem. Nunca soube o que e ter uma famı lia de verdade e sempre fui
melhor em fazer amizades do que em f azer amigos. Nas raras ocasioes em
que sinto que conheci alguem em quem posso con iar, aguento irme.
Apertado. Mas meu julgamento pode estar errado. Ha algumas pessoas na
minha vida das quais eu nao deveria t er me afastado: deveria ter fugido.

Nunca conheci meus pais. Eu sei que meu pai gostava de carr os antigos,
talvez seja por isso que eu tambem gosto, por que nao consigo largar meu
antigo Morris Minor, apesar das constantes reclamaçoes de Adam. Acho
difıcil con iar em coisas, lugares ou pessoas novas. Meu pai trocou seu MG
Midget antigo por um carro familiar novo pouco antes de eu nascer. Novo
nem sempre signi ica melhor. Os freios falharam no

caminho para o hospital quando minha mae estava em trabalho de parto, um


caminhao bateu no lado do motorista do carro e os dois morreram
instantaneamente. O medico – que estava dirigindo na outr a direçao – de
alguma forma me trouxe ao mundo na beira da estrada. Ele me chamou de
bebe milagroso e me chamou de Amelia por causa de sua obsessao pela
aviadora. Ela gostava de voar para longe tambe m. Voei de um lar adotivo
para outro ate os dezoito anos.

—Acho que as pessoas nao icam aqui com muita frequencia. Est a

um frio de rachar e tudo esta coberto de poeira — Adam diz,

aparecendo atras de mim e me fazendo pular. — Desculpe, nao queria


assustar voce .

Ele fe z.

—Eu nao estava com medo…

Eu estav a.

— Estou cansada da viagem e nao consigo encontrar nada par a comer .


— Voce tentou aqui? — Ele pergunta, indo em direçao a uma porta em arco
no canto da cozinha.

— Sim, mas esta trancada — respondo, sem erguer os olhos. Adam sempre
pensa que sabe mais do que eu.

— Talvez a maçaneta estivesse um pouco rıgida — diz ele, enquanto a porta


se abr e.

Ele aperta um botao, quando o alcanço, vejo que a porta leva ao que parece
ser uma despensa. Mas as prateleiras estao cheias de ferramentas em vez de
comida. Ha caixas bem empilhadas de pregos e parafusos, porcas, chaves
inglesas e martelos de diferentes tamanhos e uma seleçao de serras e
machados pendurados na parede posterior. H a tambem uma serie de
ferramentas menores de aparencia estranha que nao reconheço, como cinzeis
em miniatura, facas curvas e la minas redondas, todas com cabos de madeira
combinando. O espaço umido e escuro e iluminado por uma unica lampada
pendurada no teto. Ela se esforça para iluminar tudo abaixo, mas e
impossıvel nao notar o gr ande

freezer no canto da sala. E maior do que eu – do tipo que voce encontr a em


um supermercado, – ao contrario da geladeira, ja sei que est a conectado
pelo zumbido que f az.

Hesito antes de levantar a tampa, mas nao preciso me preocupar .

O freezer esta abastecido com o que parecem ser refeiço es

congeladas caseiras individuais. Cada recipiente de papel alumınio e tampa


de papelao sao cuidadosamente etiquetados com escrita elaborada. Deve
haver mais de cem jantares aqui, uma seleçao e tant o:

lasanha, espaguete a bolonhesa, rosbife, torta de carne, sapo no

buraco4 ...
—Curry de galinha? —Eu sugir o.

— Parece bom. Agora so precisamos de um pouco de vinho.

Felizmente, acho que posso ter encontrado a cripta —diz A dam.

Ele descobriu uma lanterna entre todas as outras ferramentas e a ilumina no


chao de pedra. So entao percebo que algumas das lajes gigantes sobre as
quais estamos pisando sao lapides antigas, cujos nomes gravados nelas estao
desgastados depois de anos sendo pisados.

— Aqui embaixo. — Adam diz, apontando a lanterna para um alçapao de


madeira que parece antigo.

Eu tremo, e nao apenas porque esta sala esta inexplicavelment e fria.

PAPE L

Palavra do ano :

Peripécias substantivo plural. Atividade o u

manobra secreta ou desonesta. Comportamento bobo o u espirituoso,


peripécia s.

28 de fevereiro de 2009 – nosso primeir o

aniversári o

Prezado Adam ,

É nosso primeiro aniversário de casamento, com o

prometido, estou escrevendo minha carta secreta anua l para você, assim
como os personagens do seu roteir o

favorito. Estou convencida de que RockPaperScissor s será um grande


sucesso em Hollywood um dia, e

mesmo que eu nunca deixe você ler as cartas qu e escrevo, ainda adoro a
ideia de poder relembrar a

verdadeira história de você e eu quando formos mai s velho s.

Os últimos doze meses foram uma montanha - russa para nós. Casar em dia
bissexto foi idei a minha, ir para a Escócia em lua de mel foi idei a

sua. Se existe um canto mais bonito do mundo ,

ainda não o encontrei. Espero que visitemos lá co m

frequência. Fui promovida no trabalho e pediram qu e você escrevesse uma


adaptação moderna de A

ChristmasCarolpara um especial da BBC. Eu se i que não é o que você


realmente quer fazer, mas a encomenda foi um alívio. Depois de dois piloto s

fracassados, seu trabalho de redação estav a

acabando. Você ficava dizendo que isso acontece co m

todo mundo, mas é óbvio que você nunca pensou qu e isso aconteceria com
você .

Tenho tentado ajudar – lendo livros sobre escrita e roteiros, aprendendo


sozinha sobre como conta r

histórias – e você sempre me pede para ler o qu e

você escreveu. Gosto de me sentir parte do processo , além de ser seu


primeiro leitor, comecei a edita r

alguns de seus trabalhos. Apenas algumas nota s


sobre o manuscrito aqui e ali, que você muitas veze s parece apreciar. Eu só
queria que houvesse algo mai s que eu pudesse fazer para ajudar. Eu acredito
em

você e em suas história s.

Ser casada com um roteirista não é tão glamoro so quanto às pessoas


pensam, nem morar em u m

estúdio em Notting Hill. Nossa rotina matinal com o marido e mulher é


quase sempre a mesma. Se est e fosse um dia normal, você teria me beijado
na

bochecha, se levantado, vestido o roupão, feito café e torradas e depois se


sentado em sua mesinha n o

canto do estúdio para começar a trabalhar. Se u trabalho parece envolver


muito tempo sonhand o

acordado olhando para seu laptop e ocasionalment e

digitando no teclado. Você gosta de começar cedo, ma s isso nem sempre o


impede de continuar escrevend o

tarde da noite. Às vezes você só parece parar par a dormir ou comer. Mas eu
não me importo. Aprend i que você tem uma baixa tolerância ao tédio e que
o trabalho é sua cura favorita .

Se este fosse um dia normal, eu teria passad o meu uniforme na cama – não
temos tábua e não h á espaço ou necessidade real de uma – então teria m e

vestido enquanto o tecido ainda estava quente. Eu teri a colocado um pouco


do seu café que sobrou na minh a

garrafa térmica, agarrado Bob e pulado no me u

velho carro para ir para o trabalho. Todos os dias é dia de trazer seu animal
de estimação para o

trabalho no Battersea Dogs Home .

Mas hoje não era um dia normal .

É nosso primeiro aniversário, é fim de semana e li algo muito emocionante


assim que acordei .

— Ele está morto !

— Quem está morto? — Você perguntou ,

esfregando o sono dos olho s.

Sua voz estava uma oitava abaixo do normal ,

como sempre acontece depois de muito vinho tinto n a noite anterior. Você
começou a beber mais do qu e

costumava, e o álcool barato só parece lubrificar a

roda de hamster da escrita noturna em que você est á preso. Mas não
podemos pagar pelas coisas boas. O orçamento com que vivemos parece um
pouc o

desgastado, e isso nos mantém acordado s.

Segurei meu telefone bem na frente do seu rosto , para que você pudesse ler
a manchete .

— Henry Winter .

— Henry Winter morreu? — Você disse ,

sentando-se e me dando meia atenção .


Eu já sabia que Henry Winter era seu auto r favorito, você falava dele e de
seus livros co m

frequência e de como adoraria vê-los na tela. O escritor idoso é famoso por


não ser famoso ,

raramente dá entrevistas e tem a mesma aparênci a há mais de vinte anos:


um velho sério, com um a

cabeleira branca crescida e os olhos mais azuis qu e já vi. Nas raras fotos
dele online, ele sempre u sa

jaquetas de tweed e gravata-borboleta. Acho que é um disfarce: uma persona


atrás da qual ele se

esconde. Não partilho do seu entusiasmo pelo home m ou pelo seu trabalho,
mas isso não muda o fato d e

ele ser um dos autores mais bem sucedidos de todo s os tempos. Mais de
cem milhões de cópias de seu s mistérios de assassinato e thrillers
assustadore s

foram vendidas em países ao redor do mundo, e el e é um gigante no mundo


literário. Embora hostil .

— Não, Henry Winter está vivo e bem. — Resisti à vontade de acrescentar a


palavr a

“tristemente”. — Esse homem viverá até os cem ano s. É o agente dele que
está morto .

Esperei que você reagisse da maneira qu e

esperava, mas em vez disso você apenas bocejou . — Por que você está me
acordando com e ssa

notícia? — Você perguntou, fechando os olhos e se escondendo sob as


cobertas. Seus trinta ano s

combinam com você. Você está crescendo em sua bo a aparência .

— Você sabe por quê — eu disse .

Você parou de fingir que não, mas balançou a

cabeça. — Ele nunca disse sim a nenhuma adaptaçã o

de seus livros para a TV ou para o cinema. Nunca . A morte de seu agente


não vai mudar isso, e

mesmo que mude, Henry Winter nunca vai concorda r que eu escreva um
roteiro de seu trabalho, quand o

ele passou a vida inteira dizendo não a todo mundo . — Bem, eu concordo
que você não tem chance co m

essa atitude. Mas com o porteiro removido do jogo ,

não vale a pena tentar? Talvez tenha sido seu agent e quem não gostou da
ideia? Alguns autores faze m

tudo o que seus agentes lhes mandam fazer .

Imagine se ele dissesse sim .

Seu cabelo caía sobre os olhos – sempre ocupad o

demais escrevendo para visitar o barbeiro – então nã o pude ver o que você
estava pensando. Mas eu nã o

precisava. Nós dois sabíamos que se voc ê

conseguisse que Henry Winter deixasse você adapta r um de seus livros, isso
mudaria sua carreira .
— Acho que você deveria pedir ao seu agent e para marcar uma reunião —
eu disse .

— Meu agente está entediado comigo. Eu nã o ganho dinheiro suficiente


para ele .

— Isso não é verdade. Escrever é um negóci o inconstante, mas você é um


roteirista ganhador d o

prêmio BAFTA.. .

— O Bafta foi há anos.. .

— Com um currículo repleto de estrelas.. .

— Não fui indicado para nenhum prêmio desde.. . — E uma série de


adaptações bem-sucedidas. Qu e

mal isso poderia causar ?

— Que bem isso poderia fazer? Além disso, se o agente de Henry Winter
acabou de morrer, o pobr e homem provavelmente está de luto. Seria
inapropriado . — Então não está pagando o aluguel deste mê s.

Sua ingenuidade em relação a alguns dos autore s que você tanto admira me
deixa perplexa. Você é um a das pessoas mais inteligentes que já conheci,
mas é facilmente enganado ao ver todos os autores atravé s de óculos de
leitura cor-de-rosa. A capacidade d e

escrever um bom livro não faz de alguém uma bo a pessoa .

Eu sabia que essa não era uma batalha que e u

venceria sem mudar de estratégia, então abri a gavet a

da mesinha de cabeceira e tirei um pequeno embrulh o de papel pardo .


— O que é isso? — Você perguntou enquanto eu o colocava na cama .

— Abra e veja .

Você desamarrou o barbante com tanto cuidado ,

como se quisesse guardar o embrulho. Nós dois nã o tínhamos muito o que


chamar de nosso quand o

crianças, e acho que um pouco dessa mentalidade d e “fazer e consertar”


acompanha pessoas como nós at é a idade adulta. Encontrar dinheiro para
pagar o

nosso casamento foi outro desafio este ano. Não er a o local... as fileiras de
cadeiras no cartório estava m quase vazias, sem família de nenhum dos lados
e apenas alguns amigos próximos morando e m

Londres. Adoro o anel de noivado de safira da su a mãe. Cabe perfeitamente


– como se sempre fosse me u – e nunca o tiro, mas ainda havia alianças par a

comprar, um terno e um vestido. Casar custa u m

bom dinheiro, e os centavos são mais bonitos quand o você não tem muitos
deles .

— É um grou5 — expliquei, evitando que voc ê

perguntasse qual era o presente quando o segura sse

contra a luz. — O papel é o presente tradiciona l para um primeiro


aniversário de casamento, então ,

quando um poodle abandonado chamado Origami fo i

largado na porta da Battersea Dogs Home durant e a noite na semana


passada, isso me deu a ideia .
Aprendi sozinha a fazer isso assistindo a um víde o no YouTube e escolhi o
grou porque é um símbolo d e felicidade e boa sorte .

— É... adorável — você disse .

— É para trazer boa sorte .

Eu sabia que você gostaria mais quando soube sse disso. Você é o homem
mais supersticioso que j á

conheci. Na verdade, gosto muito da maneira com o você saúda as pegas,


evita passar por baixo d e

escadas e fica horrorizado com as pessoas qu e

abrem guarda-chuvas dentro de casa. Eu acho i sso cativante. A sorte, seja


ela boa ou má, é algo qu e você leva muito a sério .

Eu sorri quando você colocou o pequeno grou d e papel dentro da sua


carteira. Será que você va i

mantê-lo aí para sempre? Espero que sim, gosto d a ideia disso. A menos que
algo mais sortud o

apareça .
— Eu não esqueci — você disse. — E u

simplesmente não sabia que faríamos isso hoje .

Tecnicamente, nosso aniversário só será em 2012 . — É assim mesmo ?

— Bem, nos casamos no dia 29 de fevereiro d e 2008. Hoje é dia 28. Não
será um ano bissext o

novamente por mais três ano s.

— Podemos estar mortos até lá .

— Ou divorciado s. — Não diga isso . — Desculpe .

Você tem estado tão ocupado ultimamente. Nã o estou surpresa que você
tenha esquecido. Alé m

disso, você é apenas um homem, esquece r

aniversários é algo que você está pré-programad o para fazer .

— Você apenas terá que me compensar — e u disse .

Então você enfiou a mão dentro da calça do me u pijama. Acho que você vai
se lembrar do qu e

fizemos depois disso sem que eu escrevesse. Eu nã o te contei, mas fiz um


desejo. Se tivermos um beb ê

nesta época no ano que vem, você saberá que isso se tornou realidade .

Eu sabia que você precisava trabalhar neste fi m de semana, apesar de ser


nosso aniversário, e o

estúdio mal tem espaço para três pessoas, na melho r das hipóteses, então
deixei você escrevendo e Bo b
dormindo, e saí para passar uma tarde na cidade . Gosto bastante da minha
própria companhia, entã o

nunca me importei que você também precisasse fica r sozinho. Passeei um


pouco por Covent Garden e

depois passei algumas horas na National Portrai t Gallery. Adoro olhar para
todos aqueles rostos, é

um lugar onde nunca poderemos ir juntos. Não se r capaz de reconhecer


ninguém torna o dia um pouc o

chato para você .

Quando cheguei em casa, nosso pequen o

apartamento no porão estava tão cheio de velas qu e

era preciso tirar as pilhas do alarme de fumaça. A mesa de centro (não temos
espaço para mesa d e

jantar) estava posta com dois pratos, dois conjunto s de talheres, duas taças e
uma garrafa d e

champanhe. O cardápio do nosso lanche indian o

favorito estava encostado nele, junto com um envelop e com meu nome.
Você e Bob observaram enquanto e u

abria .

FELIZ ANIVERSÁRIO !

Lia do lado de fora. As três palavras interna s eram menos previsívei s:

Eledissesim .
— O que isto significa? — Perguntei. O sorri so em seu rosto e seu olhar já
me disseram a

resposta. Eu simplesmente não conseguia acreditar .

— Você está olhando para o primeiro roteirista d a história em quem se pode


confiar para adaptar u m dos livros de Henry Winter — você disse, radiant e
como um estudante que acabou de marcar o gol d a

vitória .

— Você está falando sério ?

— Quase sempre .

— Então vamos abrir a champanhe !

— Acho que seu sortudo grou de papel me de u

o lugar — você disse, estourando a rolha e enchend o os copos – não temos


taças. — Meu agente m e

ligou, do nada, para dizer que Henry Winter queri a me conhecer. A


princípio pensei que estava sonhand o – com você sugerindo a ideia ainda
hoje de manhã – mas não estava, era real! Eu o conheci esta tarde .

Nós brindamos. Você tomou um gole e eu tome i um grande gole .

—E?

— Meu agente me deu um endereço no norte d e Londres, disse que eu tinha


que estar lá à um a

hora em ponto. Havia um portão enorme do lado d e fora, tive que ser
chamado para entrar, então um a mulher – que presumo ser algum tipo de
governant a – me levou até uma biblioteca. Era como estar nu m
romance policial de Henry Winter, e eu meio qu e

esperava que as luzes se apagassem e que algué m me atacasse com um


castiçal. Mas então ele entra , um pouco mais baixo na vida real do que e u

esperava, mas vestindo uma jaqueta de tweed e gravata borboleta azul. Ele
serviu dois copos d e uísque – o primeiro de muitos – e entã o

conversamo s.

— E ele pediu que você escrevesse o roteiro d e um de seus livro s?

Você balançou a cabeça. — Não, ele não menciono u isso nenhuma vez .

Minha empolgação começou a diminuir um pouc o quando você disse isso .

— Acabamos de conversar sobre os romance s

dele, todos eles, e ele fez muitas perguntas sobr e mim... e sobre você.
Mostrei a ele o grou que voc ê fez para mim e foi à única vez que ele sorriu.
A tarde toda pareceu tão surreal, como se eu tive sse

inventado tudo, mas então meu agente ligou novament e meia hora depois
que eu saí e disse que Henr y

gostaria que eu escrevesse uma adaptação de se u

primeiro livro, ODoppelgänger.Se Henry gostar, el e diz que posso vender!


Que peripécia s!

— Ninguém usou a palavra “peripécias” desde a guerra — provoquei. —


Talvez essa possa ser a

palavra do dia, ou mesmo do ano ?

Então eu chorei .
Você presumiu que eram lágrimas de felicidade e pelo menos algumas delas
eram .

— Estou tão orgulhosa de você — eu disse. — Tudo vai mudar agora, você
verá. Depois de escreve r a primeira adaptação da obra de Henry Winter ,

haverá estúdios batendo na porta implorando par a que você escreva para
eles — acrescentei, sabend o

que era verdade. Então brindamos de novo e eu beb i meu champanhe .

Terminamos a garrafa e comemoramos do me u jeito preferido – duas vezes


no mesmo dia! Com o

resultado, vários manuscritos foram danificados, ma s não há muito espaço


em nosso apartamento e nã o

conseguimos chegar ao quarto. De certa forma, est a noite pareceu a melhor


noite de nossas vidas. Ma s

agora você está dormindo e eu estou bem acordada – como sempre – e pela
primeira vez desde que no s

casamos, tenho um novo segredo que preciso esconde r de você. Um que não
tenho certeza se podere i

compartilhar. Tecemos nossas vidas com fios d e

oportunidades e pontos de acaso, ninguém quer u m futuro cheio de buracos.


Mas temo que se voc ê

soubesse que Henry Winter só confiou seu livro e m você por minha causa,
isso poderia ser o nosso fim .

Suponho que também não posso compartilhar est a carta com você agora.
Talvez um dia .
Todo meu amor ,

Sua espo sa x x

Adam abre o alçapao fragil. Uma escadaria de pedra desce e ele nao hesita.

—Tenha cuidado —eu grito atras dele, e ele ri.

—Nao se preocupe, acho que muitas capelas antigas tem cr iptas. Alem
disso, qual e a pior coisa que pode acontecer? A menos que seja uma
masmorra secreta, contendo os cadaveres apodrecidos das u ltimas pessoas
que icaram aqui. Isso pelo menos explicaria o cheir o.

Fico onde estou, mas ouço o som de seus passos ate que ele desapareça de
vista. A luz da lanterna pisca e depois se apag a.

Tudo esta em sile ncio.

Percebo que estou prendendo a respiraça o.

Mas entao Adam pragueja e uma luz se acende la embaix o. —Voce esta
bem? —Eu pergunt o.

—Sim, acabei de bater a cabeça no teto baixo quando a lant erna se apagou.
Provavelmente precisa de baterias novas. Mas encontrei um interruptor de
luz e tenho o prazer de informar que nao ha f antasmas ou gargulas aqui,
apenas prateleiras cheias de vinho!

Adam surge como um explorador triunfante, com um sorriso e uma garrafa


de vinho tinto empoeirada. Consigo encontrar um saca- rolhas e – embora
nenhum de nos seja esnobe do vinho – tomamos um gole e concluımos que
2008 foi um excelente ano para Ribera del Duero. Algumas pessoas dizem
que o casamento e como o vinho e melhora com a idade, mas acho que tudo
depende das uv as. De initivamente, ha anos que foram mais prazerosos do
que outros, e eu os teria engarrafado se pudesse.

Começo a relaxar depois de tomar um copo e comer. O curry de frango


congelado icou surpreendentemente saboroso depois de ser aquecido no
microondas, e posso sentir que estou começando a relax ar enquanto
bebemos nosso vinho em frente a lareira, no salao que mais parece uma
biblioteca. O silvo e o crepitar reconfortantes sa o hipnoticos, as chamas
parecem saltar e balançar, lançando padro es sombrios por toda a sala cheia
de livr os.

A tempestade la fora intensi icou outra marcha. A neve ainda est a caindo e o
vento sopra forte, mas esta quente o su iciente no sofa em frente ao fogo.
Bob esta roncando suavemente no tapete aos nossos pe s, talvez seja o
cansaço da viagem, ou o vinho, mas me sint o estranhamente... contente.
Meus dedos caminham em direçao aos de Adam – nao consigo me lembrar
da ultima vez que nos tocamos – mas minha mao para, como se estivesse
com medo de me queimar. Carinho e como tocar piano e voce pode esquecer
como fazer isso sem praticar .

Posso senti-lo olhando, mas continuo olhando para minhas ma os.

Eu me pergunto o que ele ve quando olha para mim? R ecursos

desfocados? Um esboço familiar, mas inde inıvel de uma pessoa? E u


simplesmente pareço igual a todo mundo para ele?

Dez anos e muito tempo para estar casado com alguem que voc e esquece.
Nao fui completamente honesta com ele sobre este im de semana fora. Nao
tenho sido completamente honesta sobre muitas coisas e a s vezes acho que
ele sabe. Mas digo a mim mesma que isso nao e possıv el. Tentamos
encontros noturnos e aconselhamento matrimonial, mas

passar mais tempo juntos nem sempre e o mesmo que passar menos

tempo separados. Nao da para chegar tao perto da beira de um

penhasco sem ver as pedras no fundo, e mesmo que meu marido na o


conheça a historia completa, ele sabe que este im de semana e uma ultima
tentativa de consertar o que quebr ou.

O que ele nao sabe e que se as coisas nao correrem conforme o planejado,
apenas um de nos ira para casa.

Ficamos sentados em silencio depois do jantar. O curry congelado nao era


tao sombrio quanto eu esperava e o vinho er a consideravelmente melhor. Eu
poderia tomar outro copo. Percebo a mao de Amelia perto da minha no sofa.
Sinto uma vontade irresistıv el de mante-la e nao sei o que aconteceu
comigo... o afeto esteve ausent e sem permissao por muito tempo em nosso
casamento. Quando est ou prestes a pegar sua mao, ela a coloca no colo.
Provavelmente e o melhor , dado o que realmente e este im de semana e o
que pretendo fazer .

Olhando para as chamas dançando na enorme lareira, minha mente vagueia


por outros caminhos, para outras coisas. Tr abalho, principalmente. Adaptei
tres romances de Henry Winter para o cinema na ultima decada e estou
orgulhoso de cada um deles. Conseguir luz verde para esses roteiros foi
umverdadeiro ponto de viragem na minha carreira, mas nao falo com o
homem ha muito tempo. Nao sei por que estou pensando nele agora. Esta
sala provavelmente parece mais uma biblioteca do que uma sala de estar, ele
teria ador ado.

Estou entre projetos no momento. Nao consigo icar

entusiasmado com nada que meu agente envia para mim e me pergunt o

se e hora de começar a trabalhar em algo meu novamente. Ja faz algum


tempo que pretendo fazer isso, mas acho que minha con iança f oi expulsa de
mim. Talvez este seja o momento certo par a...

— Talvez voce possa revisitar um de seus proprios roteiros, se nao estiver


trabalhando em mais nada por um tempo — diz Amelia, interrompendo
meus pensamentos como se pudesse ouvi-los. Odeio que ela sempre consiga
ler minha mente; como as mulheres fazem isso?

—Nao e o momento certo —r espondo.

—E aquele em que voce passou anos trabalhando, vale a pena dar uma
olhada?

Ela nem consegue lembrar o nome do meu roteiro favorito. Na o sei por que
isso me incomoda, mas incomoda. Ela costumava se interessar muito mais
pelo meu trabalho e parecia realmente se importar com a minha escrita. A
indiferença dela hoje em dia doi mais do que dev eria.
— Meu agente disse que havia um novo thriller em oito part es que eu
poderia estar interessado. Outra nova adaptaçao. Mas um antigo... —Olho
por cima do ombro para todas as estantes —...pode at e haver uma copia dele
em uma dessas prateleir as.

—Nos concordamos em nao trabalhar neste im de semana — ela retruca,


ignorando o senso de humor .

—Eu estava brincando e voce tocou no assunt o!

—So porque pude ouvir voce pensando sobre isso. E voce estav a fazendo
aquela cara vazia que voce faz quando nao esta realmente aqui, mesmo
quando esta sentado ao meu lado.

Nao consigo ver que cara ela esta fazendo, mas me ressinto do tom dela.
Amelia nao entende. Eu sempre preciso trabalhar em uma historia ou o
mundo real icara muito barulhento. Nao consigo f alar sobre nada
ultimamente sem que ela ique chateada. Ela ica de mau humor se estou
muito quieto, mas abrir a boca e como navegar em um campo minado. Eu
nao posso vencer. Nao contei a ela o que acont eceu com Henry Winter
porque isso e outra coisa que ela nao ent enderia.

Henry e seus livros nao foram apenas trabalho para mim, ele se t ornou uma
igura paterna substituta. Duvido que ele sentisse o mesmo, mas os
sentimentos nao precisam ser mutuos para serem r eais.

O vento sacode os vitrais e ico grato por qualquer coisa que possa abafar os
pensamentos mais altos da minha cabeça. Eu nao gostaria que ela ouvisse
isso. Minhas maos ainda precisam de algo para fazer... na o quero mais
segurar as dela e meus dedos parecem redundantes sem o telefone. Tiro
minha carteira do bolso e encontro o grou de papel amassado entre as dobras
de couro. O velho e bobo passaro de orig ami sempre me trouxe sorte e
conforto. Eu seguro por um tempo e nao me importo que Amelia me veja
fazendo isso.

—Ha muito tempo que carrego esse passaro de papel comigo — digo.
Ela suspira. —Eu sei.

—Mostrei-o a Henry Winter na primeira vez que o encontrei em sua


elegante casa em Londr es.

—Eu me lembro da histo ria.

Ela parece entediada e infeliz e isso me faz sentir o m esmo.

Tambem ja ouvi todas as historias dela antes, e nenhuma delas e

particularmente emocionant e.

Eu gostaria que as pessoas fossem mais parecidas com livr os.

Se voce perceber no meio de um livro que nao esta mais gostando dele, basta
parar e encontrar algo novo para ler. O mesmo acontece com ilmes e dramas
de TV. Nao ha julgamento, nem culpa, ninguem pr ecisa saber, a menos que
voce decida contar. Mas com as pessoas, voce t ende a ter que ir ate o im,
infelizmente, nem todos conseguem viver f elizes para sempr e.

A neve virou granizo. Gotas grandes e furiosas caem nas janelas antes de
escorrerem pelo vidro como lagrimas. As vezes tenho v ontade de chorar,
mas nao consigo. Porque isso nao combinaria com quem minha esposa pensa
que eu sou. Somos todos responsaveis por lançar as estrelas nas historias de
nossas proprias vidas, e ela me escalou par a

o papel de seu marido. Nosso casamento foi um teste aberto e na o tenho


certeza se algum de nos conseguiu os papeis que merecı amos.

Seu rosto e um borrao irreconhecıvel, suas feiçoes girando como um mar


furioso. Parece que estou sentado ao lado de uma estranha, na o da minha
esposa. Ficamos juntos o dia todo e me sinto claustrofo bico. Sou alguem
que precisa de espaço, de um tempinho sozinho. Nao sei por que ela tem que
ser tao... sufocant e.

Amelia arranca o grou de papel da ponta dos meus dedos.


— Voce passa muito tempo vivendo no passado em vez de se concentrar no
futuro —diz ela.

— Espere, nao! — Eu grito, enquanto ela joga meu amuleto da sorte no f


ogo.

Levanto-me e saio do sofa xadrez num piscar de olhos e quase queimo a mao
ao recuperar o passaro. Uma borda esta chamuscada, mas sem danos. E isso.
O ato inal. Se eu nao tinha certeza antes, agor a tenho, estou contando as
horas ate que isso acabe de uma vez por t odas.

ALGODÃ O

Palavra do ano :

Growlery substantivo. Um lugar de refúgio o u santuário para usar enquanto


alguém se sent e

indisposto. Uma sala privada, ou porão .

28 de fevereiro de 2010 – nosso segund o

aniversári o

Prezado Adam ,

Mais um ano, mais um aniversário, e foi ótimo ! Desde que vendeu a


primeira adaptação de Henr y Winter, você tem estado mais ocupado com o
trabalh o do que nunca. O estúdio de Hollywood que o

comprou em leilão pagou mais por essas 120 página s do que eu poderia
ganhar em dez anos. Foi incrível , e estou muito feliz por você, mas muito
triste po r

nós, porque agora nos vemos ainda menos do qu e


antes. Você não parece precisar tanto de mim ou d a minha contribuição em
seu trabalho agora. Mas e u

entendo. Eu realmente entendo .

Muita coisa mudou para você durante os último s doze meses, mas
infelizmente não para mim. Aind a não temos um bebê. Você manteve sua
palavra d e

tirar uma folga para o nosso aniversário – algo qu e se tornou inconcebível


nos últimos meses – para qu e pudéssemos passar o fim de semana fora. Voc
ê

providenciou para que um vizinho cuidasse de Bob , me disse para fazer uma
mala e meu passaporte ,

mas não me disse para onde estávamos indo. Troque i meus jeans cobertos
de pelos de cachorro por u m

vestido de grife que encontrei em uma loja d e

caridade de Notting Hill, e até usei um batom novo . Você chamou um táxi
preto assim que saímos d o

apartamento para o nosso fim de semana d e

aniversário. Achei que o táxi poderia nos levar a St . Pancras... ou ao


aeroporto. Mas depois de trint a

minutos negociando o horário de pico de Londre s, paramos em uma rua


residencial em Hampstea d Village, uma das partes favoritas de Londre s.

Provavelmente porque Henry Winter é dono de um a

casa lá. É super chique, mas não achei que pessoa s como nós precisassem
de passaporte para visitar ,
então me perguntei por que você me disse par a trazer o meu .

Depois de pagar ao motorista, incluindo um a gorjeta generosa, subimos na


calçada com nossa s

malas e você enfiou a mão no bolso .

— O que é isso? — Eu perguntei, olhando para o presente pequeno, mas


perfeitamente embrulhado, e m sua mão. A fita estava amarrada com um
laço tã o lindo que me perguntei se alguém tinha feito i sso

para você .

— Feliz aniversário — você respondeu com u m sorriso .

— Não deveríamos trocar presentes até domingo.. . — Oh sério? Eu retiro


isso então .

Peguei o lindo pacote. — Eu vi agora, então é melhor abri-lo. Espero que


seja algodão. Esse é o presente tradicional para sobreviver a dois anos d e
casamento .

— Acho que se trata de comemorar, não d e sobreviver, e não sabia que tinha
me casado co m alguém tão exigente .

— Sim, você fez isso — eu disse, removend o cuidadosamente o papel .

Revelou uma pequena caixa de veludo – do tip o que pode conter joias – e
era turquesa; minha co r favorita. Acho que esperava brincos, mas quand o
abri a tampa encontrei uma chave .

— Se você pudesse morar em qualquer ca sa

desta rua, qual você escolheria? — Você perguntou .

Olhei para a velha casa vitoriana de frente dupl a onde estávamos do lado de
fora. Suas paredes d e
tijolos vermelhos estavam cobertas pelo que pareci a ser uma mistura de
galhos de glicínias e hera .

Alguns dos vidros das janelas salientes fora m

quebrados, outros foram tapados com tábuas. Era a definição de um conserto


superior – quebrado, ma s bonito – e não pude deixar de notar a placa d e

VENDIDO do lado de fora .

— Você está falando sério? — Perguntei .

— Quase sempre .

Eu me senti como uma criança que recebeu a chav e de uma fábrica de


chocolate .

A porta da frente era da mesma cor turque sa da caixa de veludo e fora


pintada recentemente ,

diferentemente de qualquer outra parte do edifício .

Quando a chave abriu a porta, eu chorei... nã o

conseguia acreditar que éramos donos de uma ca sa

de verdade, depois de ter lutado tanto para pagar o aluguel de um minúsculo


apartamento de merda .

A cena lá dentro era tão abandonada quanto a vista da rua. Todo o lugar
cheirava a umidade ,

havia tábuas faltando no chão, papel de pared e

descascado e acessórios antigos cobertos de poeira e teias de aranha. Fios


soltos pendiam de buracos n o teto onde eu presumi que deviam ter existido
luze s, e havia pichações em algumas paredes. Mas eu j á estava apaixonada.
Vagueei pelas salas grandes e iluminadas, todas vazias, mas cheias d e

possibilidades e potencial .

— Você mesmo decorou? — Eu perguntei e voc ê riu .

— Não, pensei que talvez você pudesse. Eu se i que precisa de um pouco de


trabalho.. .

— Um pouco ?

— Mas nunca teríamos conseguido pagar de outr a forma .

— Eu amo isso .

— Você ama? — Você perguntou .

— Sim. Tudo que comprei para você foi um pa r de meia s.

— Bem, isso estragou a surpresa …

— Pelo menos meu presente foi feito de algodão . — Em que ano são os
tijolos? Poderíamos espera r

até então …

Minha ansiedade veio à tona e estragou no ssa diversão. — Podemos


realmente pagar por isso ?

Você sorriu para encobrir sua hesitação mentirosa , mas eu ainda vi. Você
sempre gostou de medir sua s

respostas antes de dá-las, nunca oferecendo muito o u pouco .

— Sim, foi um ano muito bom. Tenho estado u m pouco ocupado para
aproveitar, mas acho que é hor a de começarmos a viver a vida que sempre
sonhamo s. Não é? Achei que poderíamos dedicar nosso temp o

reformando... fazer parte do trabalho nós mesmo s. Transforme-o em nosso


próprio growlery e faze r

deste nosso lar para sempre. — Fiz uma not a

mental para procurar a palavra “growlery.” — S e

você acha que o térreo é bom, deveria ver o andar d e cima — você disse .

Minhas mãos subiram pelo velho corrimão d e madeira e meus pés foram
cautelosos – tomand o

cuidado para não torcer o tornozelo em nenhum do s degraus quebrados na


escuridão. Havia mais teia s de aranha, poeira e sujeira cobrindo quase todas
a s superfícies, mas eu já conseguia ver como as coisa s poderiam ser lindas
um dia. E nunca tive medo d e

trabalhar duro .

Acompanhei você pelo patamar até chegarmos a um quarto grande. Eu


engasguei alto quando vi a cama lindamente arrumada – era o único móvel d
a casa – e havia uma garrafa de champanhe em u m balde de gelo no chão .

— Os lençóis são cem por cento de algodã o

egípcio. Veja, eu não esqueci. Feliz aniversário, Sra . Wright — você disse,
passando os braços em volt a de mim .

— E os outros quartos? — Perguntei .

— Bem, acho que deveríamos começar a trabalha r para preenchê-los, não é


?

Estamos aqui há três dias, só saindo par a


passear e buscar comida. Obrigada por um fim d e

semana maravilhoso, um aniversário muito feliz e po r ser o amor da minha


vida. Pretendo passar todo o

meu tempo livre reformando esta casa e decorand o

todos os cômodos até que seja a casa para sempr e que ambos sonhamos. É
difícil imaginar me senti r mais sortuda do que agora .

Todo meu amor ,

Sua espo sa

xx

E difıcil imaginar me sentir mais infeliz do que estou agor a.

Eu nao tive a intençao de jogar o grou de papel no fogo, eu apenas... explodi.


Nao foi minha culpa; foi dele por me fazer sentir ta o louca em primeiro
lugar. Observo enquanto ele o coloca de volta na carteira antes de olhar para
mim com nada alemde odio nos olhos.

— Desculpe. Nao sei por que iz isso — digo, mas Adam na o r esponde.
As vezes me sinto como um daqueles bichinhos abandonados que vejo todos
os dias no trabalho, do jeito que meu marido desapar ece dentro de sua
escrita o tempo todo. Deixando-me para tras. Esquecida. Esta e sempre uma
epoca difıcil do ano no meu trabalho. Todas as pessoas que compraram
cachorrinhos no Natal muitas v ezes descobrem que nao os querem para o
resto da vida perto do Dia dos Namorados. Um pastor alemao chamado
Lucky foi trazido esta semana,

infelizmente seu cracha nao tinha endereço. Eu gostaria de t er

conseguido rastrear seus donos e prende-los. Lucky foi deix ado amarrado a
um poste de luz na chuva, gravemente desnutrido, famint o, coberto de
pulgas e sujeira e encharcado ate os ossos. O veterina rio disse que seus
ferimentos so poderiam ser resultado de espancament os regulares durante
um longo perıodo de tempo. Aquele pobre cachorr o

nao teve nenhuma “sorte”, nem o grou de papel que Adam guarda na
carteira. E apenas um absurdo supersticioso.

—Nao sei por que voce ica tao brava o tempo todo —diz ele.

Suas palavras me deixam com mais raiv a.

—Eu nao estou brava —eu digo, soando assim. —Estou cansada de ser a
unica que se esforça nesse relacionamento. Nos nunca mais conversamos. E
como viver com um colega de casa, nao com um marido. Voce nunca
pergunta sobre meu dia, ou meu trabalho, ou como estou me sentindo.
Apenas — o que ha para o jantar? — ou — Onde esta minha camisa azul?
— ou — Voce viu minhas chaves? — Eu na o sou so dona de casa. Tenho
uma vida e um trabalho proprios. Voce me faz sentir tao desagradavel, nao
amada, invisível e...

Raramente choro, mas nao consigo me conter .

Adam quase nunca demonstra afeto hoje em dia, como se nao se lembrasse
de como, mas entao ele faz a coisa mais estranha. Ele me segur a.
—Sinto muito —ele sussurra, antes que eu possa perguntar por

qual parte ele esta se desculpando especi icamente, ele me beija.

Apropriadamente. Segurando meu rosto entre as maos, do jeito que


costumavamos nos beijar quando icavamos juntos, antes que a vida nos
separ asse.

Sinto minhas bochechas corarem, como se tivesse sido beijada por um


estranho, nao por meu marido.

Fiquei boa em me sentir culpada por fazer o que e melhor par a mim. E a
culpa e uma daquelas emoçoes que raramente vem com um botao para
desligar. As vezes sinto que preciso sair da vida da mesma forma que outras
pessoas saem dos hoteis. Assine tudo o que pr eciso assinar, devolva as
chaves da vida que estou vivendo e encontre um lugar novo. Em algum lugar
seguro. Mas talvez ainda haja algo pelo qual valha a pena icar?

— Foi um longo dia, acho que nos dois estamos um pouco cansados —diz A
dam.

— Poderıamos subir, encontrar o quarto e dormir cedo? — E u sugir o.

—Que tal outra taça de vinho primeir o?

—Boa ideia. Vou tirar os pratos e pegar a garraf a.

Nao sei por que ele deixou na cozinha se queria mais, mas nao se importou
de ir busca-la. Esta e a coisa mais ıntima que existe entre no s ha meses. A
musica parou e posso ouvir o vento assobiando por t odas as frestas e fendas
que encontra nas paredes da capela. O chao de pedr a esta tao frio que parece
morder meus pes calçados com meias. T enho pressa de voltar para o calor
do outro comodo, mas algo nos vitr ais chama minha atençao. Quando olho
mais de perto, eles parecem muit o incomuns. Nao ha cenas religiosas,
apenas uma serie de rostos de cor es diferent es.

Eu congelo quando um deles se mov e.


E entao eu grito, porque o rosto branco na janela e real. Algue m esta la fora
e esta olhando diretamente para mim.

—O que esta errado? —Pergunto, correndo para a cozinha.

Ouvi algo quebrar antes de Amelia começar a gritar e posso v er que ela
deixou cair a garrafa de vinho tinto. Ha pedaços de vidr o espalhados pelo
chao de pedra, agarro Bob pela coleira para impedi-lo de pisar neles. —O
que aconteceu? Voce esta bem?

—Nao. Tem alguemla for a!

—O que? Onde?

—A janela —ela diz, apontando.

Ando ate la e espio a escuridao. —Nao consigo ver nada...

—Bem, eles se foram agora. Eles correram assim que eu gritei — diz ela, e
começa a recolher os cacos de vidr o.
—Vou la fora, dar uma olhada.

— Nao! Voce esta louco? Estamos no meio do nada, quem sabe quem
poderia estar la fora? Mer da!

Ela cortou o dedo em um pedaço a iado de garrafa, e ver sangue me deixa


enjoado. Posso escrever sobre todos os tipos de coisas horrıveis para a tela,
mas quando se trata da vida real, sou um covar de.

—Aqui —eu digo, entregando-lhe um lenço limpo.

Envolvo meus braços em volta de Amelia e a seguro com for ça, perto o su
iciente para sentir o cheiro de seu cabelo. O cheiro f amiliar do shampoo
desperta lembranças de tempos mais felizes. Nao consigo ver um rosto
bonito, mas sempre senti como se tivesse um instinto par a a beleza interior.
Quando penso na noite em que nos conhecemos, ainda consigo me lembrar
de tudo sobre ela com muita clareza e de como eu queria e precisava
conhece-la melhor. Sempre con iei em meu instint o quando se trata de
pessoas e raramente estou errado. Posso dizer se alguem e bom ou mau
poucos minutos depois de conhece-lo, o tempo e a vida tendem a provar que
estou certo. Quase sempr e.

—Vou limpar isso —digo, me afastando e encontrando uma pa e uma


vassoura no primeiro armario que abr o.

— Como voce sabia que isso estava la? — Ela pergunta, e eu hesito antes de
responder .

— Suponho que seja um palpite de sorte. Voce esta bem? Voc e precisa do
seu inalador?

Amelia tem asma e as vezes as coisas mais estranhas p odem desencadear


um ataque. Certa vez, ela icou de olho em um casaco r osa na vitrine de uma
loja por meses. Economizou seu dinheiro par a comprar. Comprou, usou uma
vez, quando foi reduzido para metade do preço no dia seguinte, ela
literalmente teve um ataque. Amelia sempr e foi alguemque conta centavos,
mesmo nao precisando mais.

— Eu realmente queria que este im de semana fosse perfeito — diz ela,


parecendo que vai chorar. — Ja parece que nada esta indo conforme o
planejado...

—Olha, este lugar e um pouco assustador, tomamos um pouco de

vinho e estamos ambos cansados. Voce acha que talvez t enha

imaginado isso?

Usei o tom que reservo para crianças pequenas ou autor es exigentes que nao
amam os roteiros de seus livros, mas posso dizer que nao era a coisa certa a
fazer antes mesmo de ela explodir .

—Nao, eu nao imaginei isso. La. Era. Um rosto. Na janela la for a, olhando
diretamente para mim.

— Ok, sinto muito! — Digo, jogando o vidro quebrado na lixeir a. —Como


er a?

—Era um rost o!

—Umhomem? Uma mulher?

— Nao sei, aconteceu tudo muito rapido… eu te disse, assim que gritei, eles
correr am.

— Talvez tenha sido a governanta misteriosa? — Amelia me encara, mas


nao responde. —O que ?

— Talvez devessemos ligar para a governanta e dizer que h a alguemla for


a?

—O que voce acha que eles vao fazer sobre isso? —Eu digo, mas ela nao
esta ouvindo e ja esta procurando o telef one.
—Otimo —ela diz, descobrindo.

—Sem sinal?

—Nem mesmo uma barr a.

Bob, aparentemente entediado com nossa conversa, saiu da cozinha e seguiu


pelo corredor em direçao a sala de bagagens por onde entramos. So notamos
que ele se foi quando ele começa a rosnar par a as velhas portas de madeira
da capela, com os dentes a mostra, os pelos arrepiados.. E a terceira vez que
nosso velho cachorro faz algo completamente fora do comum desde que
cheg amos.

— E isso. Vou la fora dar uma olhada — digo, vestindo meu casaco.

— Por favor, nao va la — sussurra Amelia, como se algue m

pudesse nos ouvir .

—Nao seja idiota —digo a ela, prendendo a guia do cachorro na coleira. —


Eu tenho Bob para proteçao. Nao e, garot o?

Bob para de rosnar e abana o rabo ao ouvir seu proprio nome.

—Bob e o pior cao de guarda do mundo, ele tem medo de penas! —Ela diz.

— Sim, mas eles nao sabem disso. Se houver alguem la fora, v ou assusta-lo
e podemos abrir outra garrafa de vinho.

A neve entra assim que abro as portas, e a rajada de frio tira o ar dos meus
pulmoes. Bob ica furioso, rosnando, latindo e forçando a guia, tanto que
tenho di iculdade para segura-lo. Esta escuro como br eu

e e difıcil ver qualquer coisa no inıcio, mas quando piscamos na

escuridao, logo ica terrivelmente claro por que o cachorro esta ta o chateado.
Do lado de fora, a poucos metros de distancia, ha varios par es de olhos nos
encar ando.

COUR O

Palavra do ano :

Biblioclepta substantivo. Uma pessoa que roub a histórias. Um ladrão de


livro s.

28 de fevereiro de 2011 – nosso terceir o

aniversári o

Prezado Adam ,

Suspeito que a maioria dos casais comemor a

aniversários sozinhos – talvez uma mesa para doi s em um restaurante


especial – mas não você e eu .

Não esse ano. Esta noite passamos nosso aniversári o com centenas de
estranhos e parecia que todos o s

olhos estavam voltados para nó s.

Nunca conheci ninguém que odeie tanto festa s quanto você, mas parece que
você vai a tanta s

ultimamente. Não estou sugerindo que você sej a antissocial e entendo por
que você as evita tanto .

Reuniões de mais de um punhado de pessoas sã o

problemáticas quando você não consegue reconhecer u m único rosto.


Portanto, uma festa chique da indústri a
cinematográfica na Tower Bridge, com centenas d e pessoas pretensiosas
que acham que você deveri a saber quem elas são, deve ser como entrar com
o s olhos vendados em um campo minado cheio de ego .

— Por favor, entre direto, Sr. Wright — ronrono u a mulher na porta, com
um sorriso largo e um a

prancheta de aparência ocupada .

Eu observei enquanto ela verificava cuidadosament e os nomes de outras


pessoas em sua lista codificad a por cores, mas não havia necessidade com
você. Tod o mundo sabe quem você é agora... o garoto novo n o

quarteirão que teve que ficar. Roteiro é um negócio d e última sorte.


Nenhuma dessas pessoas olhou d e

soslaio quando você estava sem sorte, mas com u m filme de grande sucesso
– graças ao romance d e Henry Winter – todos querem ser seus melhore s
amigos novamente. Por agora .

A razão pela qual você começou a me convida r para grandes festas, eventos
e cerimônias d e

premiação foi para que eu pudesse sussurrar que m são as pessoas quando se
aproximam de nós, par a

evitar o constrangimento de não reconhecer alguém qu e deveria. Não que eu


me importe. Eu gosto bastante – ao contrário de você – e é divertido me
vestir bem d e vez em quando, arrumar o cabelo e usar salto alt o

novamente. Não há muita necessidade desse tipo d e coisa quando você


trabalha com cães o dia todo .

Temos uma rotina muito boa agora. Depois d e alguns anos ouvindo você
falar sobre produtore s, executivos, diretores, atores e autores, já havi a

imaginado um elenco com seus rostos. Mas agora se i como são todos eles
na vida real, e passamos noite s

como esta conversando com pessoas do seu mundo .

Raramente tenho muito em comum com eles, mas ach o bastante fácil falar
sobre livros, filmes e dramas d e TV... todo mundo adora uma boa história .

Eu estava ansiosa para ver o interior da Towe r Bridge pela primeira vez, e a
promessa d e

champanhe grátis e petiscos sofisticados criados po r um chef com estrela


Michelin ainda é um grand e

prazer. Mas assim que vi o nome de Henry Winte r na lista de convidados,


tive medo de entrar. A

partir daquele momento, ficou óbvio que o verdadeir o motivo de passarmos


nosso aniversário com estranho s era porque você esperava encontrar Henry
e

convencê-lo a lhe dar outro livro. Você já pergunto u duas vezes. Eu lhe
disse para não implorar, ma s

você sempre acha que sabe que é melhor não ouvir .

Escrever é uma maneira difícil de ganhar a vida co m facilidade .

A Tower Bridge estava iluminada contra o cé u noturno de Londres quando


chegamos. A festa j á

estava a todo vapor, a batida monótona da música e das risadas acima de


nós, competindo com o suav e bater do turvo Tâmisa lá embaixo. Assim que
o

elevador nos cuspiu no último andar, percebi qu e

seria uma noite interessante. O espaço era menor d o que eu imaginava,


pouco mais que um longo corredo r abarrotado tipos de filmes. Um garçom
passou co m

uma bandeja de champanhe e fiquei feliz em lh e servir duas taças. Depois


de fazer um teste d e

gravidez naquela manhã, por precaução, eu sabia qu e não havia razão para
não beber. Parei de lhe conta r

as más notícias mensais e você parou de perguntar . — Feliz aniversário —


você sussurrou, e

brindamos antes de você tomar um gole .

Eu mesmo tomei vários, de modo que minha taç a de champanhe já estava


meio vazia. Acho que o

álcool ajuda a afogar minha ansiedade social, qu e

ainda sinto sempre que participo de um evento com o

este. Todo mundo aqui sabe quem você é. As única s expectativas que você
ainda luta para cumprir são a s suas. Mas nunca senti que me encaixasse co
m

essas pessoas, talvez porque não me encaixe. E u

prefiro cachorros. Tomei outro gole, depois fiz o qu e

tinha que fazer e examinei sutilmente a sala, meu s olhos procurando o que
os seus não conseguiam ver .

Trocamos presentes de aniversário esta manhã . Dei a você uma bolsa de


couro com suas iniciai s

gravadas em letras douradas. Durante anos, observe i você carregando seus


preciosos manuscritos e m
sacolas feias, então me pareceu um present e

apropriado. Seu presente para mim foi um par d e botas de couro até o joelho
que eu estava de olho . Achei que talvez estivesse velha demais para usá - las
– aos trinta e dois anos, mas você clarament e discordou. Usei-as pela
primeira vez esta noite e notei você olhando para minhas pernas no táxi a
caminho da festa. Foi bom se sentir querida .

— Chegando — sussurrei em seu ouvido enquant o caminhávamos pelo


corredor lotado de festeiro s.

— Bom, ruim ou feio? — Você perguntou .

— Ruim. A produtora que queria que voc ê

trabalhasse naquela adaptação de romance policial n o mês passado... aquela


que ficou arrogante quand o

você recusou. Lisa? Linda? Liz ?

— Lizzy Par ks?

— Sim .

— Merda. Toda festa tem um estraga-prazere s. Ela já parece chateada ?

— Muito mesmo . — Ela nos viu ? — Afirmativo .

— Droga. Aquela mulher trata os escritores com o fábricas e o seu trabalho


como latas de feijã o

cozido. Nem era o livro dela para adaptar. Ela é uma biblioclepta que anda,
fala e.. .

— Código vermelho .
— Lizzy, querida, como você está? Você est á

maravilhosa — você disse, com aquela voz que só usa quando fala com
crianças pequenas ou pessoa s pretensiosas. Espero que você nunca fale assi
m

comigo, ficarei chateada se você fizer isso .

Vocês beijaram o ar ao lado das bochechas um d o outro, fiquei maravilhada


com a forma como você s

fazem o que fazem. É como se você tivesse u m interruptor, um interruptor


que claramente esto u

perdendo. Você se torna uma versão diferente de si mesmo nas festas, aquela
que todo mundo adora :

charmoso, elogioso, inteligente, popular, o centro da s atenções. Nada como


o homem tímido e quieto qu e

conheço, que desaparece em seu novo e adorável porã o de escrita todos os


dias. Foi como assistir a um a

apresentação. Adoro todas as diferentes versões d e você, mas prefiro meu


Adam, o verdadeiro que só eu consigo ver .

— Chegando — sussurrei novamente, depois d e

saborear uma vieira perfeitamente cozida, coberta co m um pouquinho de


purê de ervilha, servida em um a

concha em miniatura e com uma pequena colher d e prata .

— Quem agora? — Você perguntou .

Eu conhecia esse. — Nathan .


Observei enquanto você apertava a mão dele e

escutei enquanto você falava sobre negócios. O chef e do estúdio que


organiza a festa é um daquele s

homens que está sempre trabalhando na sala .

Constantemente olhando por cima do ombro dele ou d o seu, para ver com
quem mais ele poderia ou deveri a estar conversando. Ele era um homem
que gostava d e exagerar na alegria, sempre sugando um pouco d a

alegria dos outros para aumentar a sua. Você m e apresentou e me senti


encolher um pouco sob se u olhar .

— E o que você faz? — Ele perguntou .

Era uma pergunta que eu odiava. Não por cau sa da resposta, mas por causa
das respostas d e

outras pessoas a ela .

— Eu trabalho para a Battersea Dogs Home — eu disse, e fiz meu rosto


sorrir .

— Oh, meu Deus. Bom para você .

Decidi não explicar como ou porque não era bo m para mim que tantas
pessoas fossem cruéis o u

irresponsáveis quando se tratava de animais. També m achei melhor ignorar


seu tom condescendente. Fu i

ensinada a ser sempre educada: você não pod e cruzar uma ponte se a
queimar. Felizmente a

conversa e a companhia prosseguiram como sempr e fazem nessas coisas, e


finalmente nos encontramo s sozinho s.
— Algum sinal dele? — Você sussurrou .

Não precisei perguntar quem. — Temo que não . Poderíamos tentar o outro
lado ?

Seguimos pelo segundo corredor, um túnel intern o que liga uma torre à
outra acima da famosa ponte . A vista do Tâmisa e de Londres iluminada l á

embaixo era espetacular .

— Você pode ver Henry agora? — Você pergunto u de novo, e pareceu tão
triste quando eu disse qu e

não achei. Como um garotinho que foi surpreendid o pela garota dos seus
sonho s.

Havia uma fila invisível de pessoas se

preparando para atacar você a noite toda, esperand o pela chance de dizer
olá: produtores que queria m

trabalhar com você, executivos que desejavam não te r sido rudes com você
no passado e outros escritore s

que queria que eles fossem você. Meus pés estava m começando a doer,
então fiquei encantada – e també m surpresa – quando você sugeriu sair mais
cedo .

Você chamou um táxi preto, assim que estávamo s no banco de trás, você me
beijou. Sua mão encontro u o topo das minhas novas botas de couro e
deslizo u

entre minhas pernas e por baixo do vestido. Assi m que chegamos em casa,
você começou a tirar minha s roupas no corredor, até que eu só vestisse as
bota s.
Sexo na escada recentemente reformada foi um a

experiência nova. Eu ainda podia sentir o cheiro d o verniz .

Mais tarde, bebemos uísque na cama ,

conversamos sobre a festa e todas as pessoas qu e conhecemos esta noite: as


boas, as más e as feia s.

— Você ainda me ama tanto quanto quando no s casamos? — Perguntei .

— Quase sempre — você respondeu com u m

sorriso atrevido. É uma das suas coisas favoritas d e dizer. Você estava tão
lindo que tudo que pude faze r foi rir .

Quase sempre também te amo. Mas não mencione i que tinha visto Henry
Winter várias vezes durante a noite, vestindo sua marca registrada de jaqueta
de

tweed, gravata-borboleta e uma expressão estranha n o rosto fortemente


enrugado. Ele parecia mais velho d o

que nas fotos do autor. Com seus grossos cabelo s

brancos, olhos azuis e pele extremamente pálida, er a como ver um


fantasma. Eu não te contei que se u

autor favorito estava olhando em nossa direção , constantemente nos


seguindo pela festa, tentand o desesperadamente chamar sua atenção .

Três anos e tantos segredo s.

Há coisas que você esconde de mim também ? Todo meu amor ,

Sua espo sa
xx

Adam ri quando as ovelhas do lado de fora da capela começam a balir. Ate


eu acho difıcil nao sorrir enquanto ele arrasta Bob – que ainda esta latindo
como um louco – de volta para dentr o.

Quando vimos pela primeira vez os varios pares de olhos olhando em nossa
direçao, parecia uma cena de um ilme de terror, mas a lanterna de Adam
logo revelou que os unicos vizinhos intrometidos a espreita do lado de fora
da capela eram o pequeno rebanho de ov elhas por quem passamos na
estrada mais cedo. Elas provavelmente nos

seguiram ate aqui esperando que alguem pudesse alimenta-las. No

escuro, seus corpos se misturavam ao espesso manto de neve br anca que


cobria tudo desde que chegamos, de modo que tudo o que podıamos ver
eram seus olhos.

— Um dia vamos rir disso — diz Adam, tirando o c asaco novament e.

Nao tenho tanta certeza disso.

Mantenho minha jaqueta – estou congelando – e observ o enquanto ele


tranca as portas da frente com uma chave gigante e v elha. Nunca tinha visto
isso antes, mas estou tao cansada, talvez estivesse ali o tempo todo e eu
simplesmente nao percebi. Estou planejando essa

viagem ha tanto tempo que mal podia esperar para ir embora e

praticamente o intimidei para vir aqui, mas agora sinto uma estr anha
saudade de casa.

Adam e um eremita confesso. Ele ica mais feliz em sua escrita com seus
personagens, desaparecendo tao profundamente no mundo imaginario em
sua cabeça que as vezes luta para encontrar o caminho de volta. Juro que
nunca irıamos a lugar nenhum se nao fosse por mim. Ele tem orgulho da
nossa casa, eu tambem, mas isso nao signi ica que nunca devemos sair dela.
A casa vitoriana isolada de fachada dupla em Hampstead Village ica muito
longe da propriedade municipal onde ele cresceu, mas Adam nao conta as
pessoas sobre essa parte de seu passado. Ele nao apenas reescreve sua
propria historia, ele a apagou.

Nem sempre sinto que pertenço a um canto tao rico de Londr es, mas ele se
encaixa perfeitamente, apesar de ter deixado a escola aos dezesseis anos para
trabalhar em um cinema, com muita ambiçao e poucos creditos academicos.
Mas todo mundo adora um provador e Adam nunca aprendeu a desistir. Ha
um diretor de teatro a duas portas da nossa casa, um locutor a nossa direita e
uma atriz indicada ao Oscar mora ao lado, a esquerda. Pode ser intimidante:
me preocupar com quem posso encontrar quando passear com o cachorro.
Tenho pouco em comum com nossos vizinhos, ao contrario de meu marido.
Nao que eu tenha algo contra os alpinistas sociais... sempre achei que quant
o mais alto voce sobe na vida, melhor e a visao. Mas as vezes o sucesso dele
me faz sentir um fracasso. Adam e o verdadeiro negocio hoje em dia,
enquanto eu ainda sou mais um primeiro rascunho, um tr abalho em
andament o.

Ele me beija na testa entao. E tao gentil, como um pai dando um beijo de boa
noite em um ilho antes de apagar as luzes. Houve tantas vezes recentemente
em que ele me fez sentir como se eu nao fosse boa o su iciente. Mas talvez
eu esteja projetando minhas pro prias inseguranças. Talvez ele ainda se
import e.
— Nao ha necessidade de icar envergonhada — diz ele, ico preocupada com
a possibilidade de estar pensando em voz alta.

—Sobre o que ?

— Imaginando um rosto na janela e quebrando aquela linda garrafa de


vinho. — Ele sorri para mim e eu faço meu rosto sorrir de volta, ate que ele
diz: —Voce so precisa relaxar .

Sempre que meu marido me diz para relaxar, isso tende a ter o efeito oposto.
Nao digo nada... ele nao me levaria a serio se eu dissesse, mas acho que nao
imaginei o rosto na janela. Ao contrario dele, vivo na realidade, em tempo
integral. Tenho certeza do que vi, quase certeza, e nao consigo afastar a
sensaçao de estar sendo observ ada.

Robin afastou-se da janela da capela assim que a mulher la dentr o a viu,


mas ja era tarde demais. Quando ela começou a gritar, R obin corr eu.

Ja faz muito tempo que ninguem veio visitar Blackwater. Mais de um ano
desde que ela viu alguem inesperado aqui, alem de um caminhante ocasional
– perdido apesar de todos os dispositivos e engenhocas que parecem carregar
hoje em dia – e sempre ha muit os cervos e ovelhas no vale. Mas nao
pessoas. E muito remoto e muit o longe dos roteiros mais conhecidos para a
maioria dos turistas

visitarem, ate mesmo os moradores locais sabem que devem icar

longe. Blackwater Loch e a capela ao lado tem uma reputaçao desde que ela
se lembra, e nunca foi boa.

Felizmente, Robin gosta da propria companhia e nao tem medo de


fantasmas. Os vivos sempre foram uma preocupaçao maior para ela, por isso
ela observa os visitantes e seu cachorro desde que chegar am.

Robin sabia que uma tempestade estava chegando, entao foi uma surpresa
quando passaram por sua pequena cabana de palha no inal

da trilha. Ela nao achava que alguemseria louco o su iciente para peg ar a
estrada costeira ou arriscar as trilhas nas montanhas com esse t empo. Robin
nao tem TV, mas houve varios avisos no radio, e nao era pr eciso ser
meteorologista para olhar pela janela. Faz dias que esta nublado e muito frio,
como sempre acontece antes da neve chegar. Robin passou varios anos da
sua vida a viver nas Terras Altas, por isso sabe que na o deve con iar no
clima escoces, pois tem um ritmo proprio e nao t em regras. Quando uma
tempestade se aproxima, todos os habitantes locais reservam tempo para se
prepararem e tomarem as precauço es necessarias, porque sabem, por
experiencias anteriores, que isso pode signi icar icarem presos ou isolados
dentro de casa durante dias. Ninguemem sa consciencia viria aqui nesta
epoca do ano. A menos que quisessem icar isolados do resto do mundo.

Robin observava pela janela de seu chale, escondida atras das cortinas
improvisadas, paralisada pela visao do carro de visitantes que se
aproximava. Era uma coisa antiquada, verde menta, e par ecia pertencer a
um museu, nao a uma estrada. Como eles conseguir am chegar ate
Blackwater foi nada menos que um milagre ou um miste rio. Robin nao
conseguia decidir qual.

Ela observou enquanto eles seguiam pela estrada em direçao a capela, antes
de estacionarem perigosamente perto da beira do lago. Estava escuro como
breu la fora. O vento aumentava e a neve caıa fort e, mas os visitantes
pareciam alheios ao perigo. A capela icava a poucos passos de sua casa,
entao ela os seguiu para ver mais de pert o, mantendo dista ncia.

Robin observou-os sair do carro e icou satisfeita ao ver o gr ande cachorro


preto saltar do porta-malas. Ela sempre gostou de animais, mas ovelhas nao
sao as melhores quando se trata de companhia. Mesmo a poucos metros de
distancia, ela achou que o homem par ecia cansado e infeliz, mas as viagens
longas tendem a ter esse efeito nas pessoas, e ambos pareciam ter estado em
uma delas. Robin icou perfeitamente imovel enquanto o casal e seu cachorro
caminhavam at e a velha capela, apenas para descobrir que as portas estavam
tr ancadas

e nao havia ninguempara cumprimenta-los. Ambos pareciam tao frios e


derrotados. Alguemteria que deixa-los entrar .

Era a mulher quem dirigia o carro, e Robin estava fascinada por tudo nela: as
roupas da moda que usava, os longos cabelos loiros e a maquiagem
habilmente aplicada. Robin nao tem nada de novo par a vestir ha anos, ela se
veste para se aquecer e se sentir confortavel. Na o ha nada em seu guarda-
roupa que nao seja feito de algodao, la ou tweed. Na maioria dos dias, ela
usa um uniforme de camisetas de mangas compridas por baixo do macacao
antigo, junto com dois par es de meias de trico para manter os pes aquecidos.
O cabelo de Robin est a longo e grisalho agora, e ela mesma o corta quando
os emar anhados icam muito problematicos. Suas bochechas rosadas sao o
resultado de ventos frios, nao de rubor, ate ela acha difıcil se lembrar de uma
e poca antes de parecer e viver dessa maneir a.

Robin observou-os entrar e depois deu a volta na capela, olhando atraves dos
vitrais. Ela desejou poder ouvir o que eles estavam dizendo, mas o vento
roubou as palavras de seus ouvidos. As camadas que ela usava valeram a
pena, mas ela nao estava imune ao frio. Ou curiosidade. Apesar da poeira
que baixou desde a ultima vez que alguem habitou o local, os visitantes logo
pareceram se sentir em casa. Acenderam velas e o fogo que lhes foi
preparado, aqueceram alguma comida, beberam um pouco de vinho. O
cachorro se esticou no tapete e o casal quase deu as maos em determinado
momento. Olhando de fora, era uma cena bastante romantica. Mas as
aparencias enganam, todo mundo sabe disso.

Eles nao pareciam nem um pouco assustados.

Ela se perguntou se era porque eles estavam juntos. O m undo pode parecer
menos assustador quando voce nao precisa enfrenta -lo sozinho. Mas a vida
e um jogo de escolhas, e algumas das escolhas de Robin foram erradas. Ela
pode admitir isso agora, mesmo que seja apenas para si mesma, porque nao
sobrou ninguem para contar . Observando o casal começar a relaxar dentro
da capela, ela per cebeu que eles tambem haviam feito escolhas erradas. E
vir aqui provavelmente estava no topo da lista.

— O que esta errado? — Adam diz. E uma pergunta que meu marido faz
com frequencia, sem realmente querer saber a r esposta.

— Nada. E agora? — Eu respondo enquanto estamos na sala de bagagens


olhando um para o outro. Vejo meu re lexo em alguns dos espelhos em
miniatura na parede e desvio o olhar. Este lugar e um pouco Alice no Paıs
das Maravilhas para o meu gosto. So falta um coelho br anco.

— Eu estava ansioso por outra taça de vinho, mas voce estr agou essa ideia
quando deixou cair a garrafa… —Adam diz.

— Bem, voce disse que a cripta estava cheia delas. Poderı amos
simplesmente abrir outr a...

—Foi, e verdade, e a sua vez de ir ate la .

—O que ?

— Quando voce perceber que nao ha nada a temer, voce deixar a de ter
medo.

Nao tenho certeza se concordo com a logica dele, mas tenho uma espinha
dorsal feminista, e qualquer coisa que meu marido possa fazer ,

eu tambem posso fazer. Entao, embora eu nao queira entrar na cripta, irei.
Para deixar claro e tambempara obter o alcool tao necessa rio.

Percebo que Adam fecha todas as portas atras de nos enquant o voltamos
para a cozinha, como se estivesse tentando esconder alguma coisa. Embora
eu tenha certeza de que ele deve estar apenas t entando manter o calor.
Quando chegamos a despensa, ele abre o alçapao no chao, e meus sentidos
sao imediatamente assaltados pelo cheiro u mido e mof ado.

—O que e isso? —Eu pergunt o.

Ele da de ombros. — Umidade?

E muito mais pungente do que qualquer cheiro de umidade que j a encontrei


ant es.

—Passe-me a lanterna —eu digo.

—A bateria esta completamente descarregada agora, mas ha um interruptor


de luz la embaixo. Esta a direita assim que voce chega ao fundo.

Ele mantem o alçapao aberto enquanto começo a descer os

degraus de pedra. Nao ha corrimao para me segurar, entao desço


tateando a parede. Nao esta apenas frio, esta molhado. Viscoso pode ser uma
descriçao mais precisa. Meus dedos encontram o interruptor, e um tubo
luorescente feio no teto ganha vida, criando um brilho ver de misterioso. O
zumbido que faz e estranhamente reconfortant e.

Adam estava certo, nao existem fantasmas ou gargulas, mas o lugar de


initivamente parece assustador. Tudo e feito de pedras que parecem antigas –
as paredes, o teto, o chao – e esta tao frio aqui que consigo ver minha
respiraçao. Conto tres aneis de metal enf errujados embutidos na parede e
faço o possıvel para nao pensar no que eles serviam. Vejo as prateleiras de
vinho ao longe e corro para olhar mais de perto, ansiosa para voltar para
cima. Algumas das garrafas esta o cobertas de tanta sujeira e poeira que e
impossıvel ler os rotulos, mas vejo o que parece ser uma garrafa de Malbec.

Entao as luzes se apag am.

—Adam? —Eu chamo.

O alçapao acima de mim se f echa.

— Adam! — Eu grito, mas ele nao responde, e tudo que consigo ver e
escurida o.
Robin nunca teve medo do escuro. Ou tempestades. Ou as c oisas estranhas
que as vezes acontecem na Capela Blackwater. Mas, diferentemente dos
visitantes, Robin esta sempre prepar ada.

Hoje cedo, ela fez uma viagem mensal a cidade para cons eguir tudo o que
precisava. A viagem pelo vale e pelas montanhas leva pouco mais de uma
hora de ida e volta, e fazer compras nunca foi uma das coisas favoritas de
Robin. Ela esta um pouco enferrujada quando se trata de habilidades
pessoais, morar sozinha por muito tempo pode fazer isso com uma pessoa. A
solidao de sua vida e algo com que ela aprendeu a conviver, mas ainda se
preocupa com os sons estranhos que sua boca faz hoje em dia, nas raras
ocasioes em que a abre. Entao ela tende a mante-la f echada.

Ser tımida e hostil nao e a mesma coisa, mas infelizmente a

maioria das pessoas nao consegue perceber a difer ença.

Seu velho Land Rover ja viu dias melhores – um pouco como sua dona –
mas e pelo menos facil de dirigir e con iavel, mesmo nos pior es tipos de
clima. “Cidade” e na verdade apenas a aldeia mais proxima. Um lugar
tranquilo chamado Hollowgrove, na costa oeste da Esco cia. Consiste em
pouco mais que um punhado de casas e uma “loja local.” A

loja – que tambem funciona como correio – armazena apenas it ens


essenciais na melhor das hipoteses. Todo mundo começa a entrar em panico
ao comprar quando sabe que ha uma tempestade a caminho e

muitas prateleiras ja estavam vazias. As frutas e vegetais fr escos

desapareceram, assim como o pao e o papel higienico. Por que as pessoas


precisavam armazena-los estava alemde sua compreensa o.

Robin pegou o ultimo litro de leite, um pouco de queijo, alguns fosforos,


velas e seis latas de aros de espaguete Heinz. Ela ja tinha em casa pelo
menos vinte latas de feijao cozido Heinz e um armario cheio de nada alem
de tangerinas em lata Del Monte, alem de caixas de leit e longa vida su
icientes para hidratar uma escola primaria. Suas escolhas alimentares nao
tem nada a ver com a tempestade. Robin gosta de comida enlatada. E ela
gosta de ter sempre o su iciente empilhado em casa, para saber que nao
morrera de fome tao cedo.

Ela colocou os ultimos potes de comida para bebe das prateleir as em sua
cesta. A mulher atras do caixa fez uma pausa antes de examina - los – como
sempre – e Robin sentiu-se encolher um pouco sob o peso de seu olhar. Ela
comprava comida para bebe nesta loja desde que alguem se lembrava, mas
as pessoas sabiam que nao era melhor perguntar sobre um bebe. Todos
sabiam que ela nao tinha um.

O cracha da caixa dizia: PATTY. Junto com o rosto da mulher, R obin


pensou em hamburguer cru, o que a deixou enjoada. Patty estava na casa dos
cinquenta, mas parecia mais velha com suas r oupas desalinhadas e avental
vermelho. Ela tinha cabelo loiro bagunçado, de menino, pele palida e
sombras escuras sob os olhos redondos. R obin notou que a mulher engolia
em seco sem motivo, o que parecia apenas acentuar a papada caıda. Patty era
uma pessoa que se afundava em fofocas maldosas e autopiedade. Robin nao
pretendia julgar a mulher que a estava julgando, ela tendia a evitar seres
humanos rudes ou vazios e testemunhou Patty sendo as duas coisas. A
mulher usava sua amargura como um distintivo, o tipo de pessoa que escreve
resenhas de livros com uma estr ela.

Robin pensou em dizer ola, sabendo que e isso que as – pessoas normais –
fazem. Mas se houvesse um teste decisivo para a bondade,

estava claro que Patty falharia todas as vezes. Portanto, embora R obin as
vezes desejasse puxar conversa, so para ver se ainda conseguia, P atty era
alguemcom quem ela nao gostava de conversar .

Quando Robin voltou para o chale, ja havia faltado energia e o lugar estava
escuro e frio. Nao era grande coisa: uma pequena construçao de pedra com
dois quartos, telhado de palha e um banheir o externo. Mas era dela. E era o
mais proximo de uma casa que ela tinha ultimamente. A casa tinha sido
construıda a mao ha mais de duzent os anos, para o padre que cuidava da
capela quando ela ainda era usada para o seu proposito original. Algumas
das grossas paredes de pedr a branca desmoronaram em alguns lugares,
revelando tijolos de granit o escuro. As impressoes digitais dos homens que
as izeram ainda sa o visıveis, dois seculos depois, e Robin sempre anima
pensar que ninguem desaparece completamente. Todos nos deixamos para
tra s uma pequena parte de nos mesmos.

A mae de Robin as vezes dormia nesta casa. Anos atras, qu ando Robin era
apenas uma criança e as coisas eram... difıceis em casa. A ma e dela tinha
uma chave e vinha aqui sempre que ela precisava fugir ou se esconder. Ela
era uma mulher feliz presa dentro de uma mulher trist e. Ela adorava cantar,
cozinhar e costurar, tinha a habilidade mais maravilhosa de fazer com que
tudo – inclusive ela mesma – icasse bonito. Ate mesmo esta casinha triste.
Robin a seguiria ate aqui – ela sempre icava do lado da mae em qualquer
discussao – e elas se sentavam juntas em frente ao fogo. Confortando uma a
outra sem palavras e esperando que a ultima tempestade conjugal passasse.
O lugar se tornou um santuario em ruınas para ambas. Elas o tornar am
aconchegante, com cortinas e almofadas caseiras, velas para iluminar e
cobertores para aquecer. Mas tudo isso ja havia passado quando R obin
voltou anos depois. Assim como a mae de Robin. Nada alem do po de uma
memo ria.

A palha e um pouco mais recente que as paredes do chale, na o sem buracos,


mas podem ser consertados quando o tempo esquentar. E vai acontecer,
porque sempre acontece. Isso e o que Robin apr endeu sobre a vida agora
que esta mais velha: o mundo continua girando e os

anos passam, independentemente do quanto ela deseja poder voltar no


tempo. Ela se pergunta muito sobre isso: por que as pessoas s o aprendem a
viver o momento quando o momento ja passou.

Robin nao tem muitos moveis. Sua cama e feita de uma serie de estrados de
madeira que ela encontrou na beira da estrada, mas e surpreendentemente
confortavel graças a uma espessa camada de cobertores de la e almofadas
caseiras. Na sala com lareira – onde ela passa a maior parte do tempo para se
aquecer – ha uma mesinha com uma perna bamba e uma velha poltrona de
couro que ela resgatou de uma lixeira em Glencoe. Ter pertences que eram
dela era mais importante para Robin do que sua aparencia ou de onde
vieram. Ela nao tinha muito quando chegou aqui, apenas uma mala cheia de
suas coisas favoritas. Robin deixou todo o resto para tra s.

Os pratos, talheres, xıcaras e copos do chale foram t odos

emprestados – alguns poderiam dizer levados – de cafes e pubs que ela


visitara nas Terras Altas. Robin nunca viu isso como roubo quando colocava
as coisas sujas na bolsa, porque sempre deixava uma gorjeta. Certa vez, ela
pegou um livro de visitas de uma sala de cha, embora na o soubesse ao certo
por que. Talvez todas as mensagens amigav eis escritas a mao dentro dele a
izessem se sentir menos solitaria. R obin reuniu todas as coisas que
precisava antes que o dinheiro acabasse. Ela nao tinha tudo o que queria,
mas essa era uma historia diferente. O dinheiro que lhe restava era guardado
apenas para emergencias, e esta era de initivamente uma delas.

Sem eletricidade no futuro proximo, ela acende algumas v elas antes de


acender uma pequena fogueira na lareira para se aquecer . Entao ela amarra
uma lata de feijao cozido acima das chamas. Refeiço es quentes sao
importantes em climas frios, e esta nao e a primeira v ez que Robin cozinha
para si mesma durante uma tempestade. Quando a lata estiver vazia, ela a
lavara, esculpira dois olhos e um sorriso na lata e depois a usara como
castiçal. Ha rostos em forma de lata por toda a sua casinha. Alguns felizes,
outros tristes. Alguns com raiv a.

Usando luvas de forno que nao combinam, ela tira a lata de cima do fogo e
come o feijao quente direto da lata. Isso economiza tempo e

lavagem. Quando ela termina seu jantar, ela abre um pote de comida para
bebe e coloca o conteudo em uma tigela. Ela sabe que ele comer a quando
estiver com f ome.

Robin se acomoda na velha poltrona de couro. Ela esta usando luvas


semdedos dentro de casa, mas suas maos ainda estao geladas. Ela joga outra
lenha no fogo, depois procura o cachimbo de madeira dentr o do bolso do
cardiga, segurando-o como um velho amigo. Nem sempr e foi dela... outra
coisa que ela pegou emprestada. As vezes basta sentir , mas nao esta noite.
Ela o tira, junto com uma lata pequena e redonda de tabaco. E um cachimbo
Rattray, feito na Escocia, igualzinho a ela. Um classico Cisne Negr o.

Ela desenrosca a lata e espalha tres pitadas de tabaco, exatament e como ele
lhe ensinou quando ela era pequena. E como embelezar um ninho antes de
queima-lo. Alguns ios caem em seu colo, onde icam, abandonados por maos
instaveis. Ela percebe a pele seca e as unhas roıdas ao acender um fosforo,
entao fecha os olhos brevemente, para se esconder de si mesma, enquanto
aprecia o cheiro do cachimbo e a dose de nicotina que desejou o dia t odo.

Robin olha para a capela a distancia. Da janela ela pode ver que as luzes
ainda estao acesas. Ao contrario da sua casinha, a capela ainda tem energia,
porque o proprietario sofreu muitas tempestades na Escocia e instalou um
gerador ha alguns anos. Por todo o bem que isso lhes fez. Ela ouve radio
enquanto espera, Robin e boa em esperar . Paciencia e a resposta para muitas
das perguntas da vida. Ela senta e espera, mesmo quando o cachimbo esta
vazio e o fogo ja se e xtinguiu. Ela ouve as vozes no radio – tao familiares
quanto de velhos amigos –

enquanto elas relatam que a tempestade ja resultou em va rios

acidentes rodoviarios. Robin se pergunta se os visitantes sabem que sorte


tiveram ao escapar, conseguindo chegar aqui inteiros. Quando olha
novamente pela janela e ve que a capela esta completamente a s escuras,
pensa que a sorte dos visitantes pode estar prestes a mudar .

Talvez tenha acabado completamente, so o tempo dira .

Robin ouve algo entao, passos minusculos na escuridao atras dela. A tigela
de comida para bebe esta vazia. Foi lambida completament e limpa e isso a
deixa feliz. Companhia e companhia, seja qual for a f orma que assuma.

Sinto-me louca por pensar nisso, mas nao creio que esteja sozinha na cripta.
Pisco na escuridao e giro, mas nao consigo ver nada. Na minha imaginaçao,
as paredes estao se fechando sobre mim e acho que ouço meu nome sendo
sussurrado nas sombr as.

Amelia. Amelia. Ame lia.

Minha respiraçao logo começa a icar fora de controle. Sinto meu peito
apertar como se um peso estivesse pressionando meus pulmoes, e imagino
maos invisıveis me estrangulando enquanto minha garg anta começa a fechar
.

Entao o alçapao se abre acima, mas ainda nao consigo ver . —Voce esta
bem? —A voz de Adam chama na escurida o. —Nao! O que acont eceu?

— Nao sei, corte de energia, eu suspeito. Deixei cair a porta quando as luzes
se apagaram, desculpe. Tente seguir em direçao a s escadas.

—Eu… nao consigo respir ar!

Ele nao apenas ouve minhas palavras, ele ouve o som aspero da minha
respiraçao entre elas.

—Onde esta o seu inalador? —Ele grita.

—Nao... sei. Bolsa.

—Onde esta isso?

—Nao consigo me lembrar. Mesa da cozinha?

—Espere aı —diz ele, como se eu tivesse escolha.

Tenho asma desde pequena... ser criada por pessoas que fumav am sem parar
e morar em apartamentos no centro da cidade provavelmente nao ajudou.
Nem todos os meus pais adotivos er am amigos das crianças. Minha asma
nao e um problema tao grande hoje em dia, mas ainda ha coisas que podem
desencadear um ataque. Ficar presa em uma cripta subterranea no escuro
parece ser um deles. Avanço tentando encontrar os degraus para sair daqui,
mas meus dedos so encontram uma parede umida e um anel de metal frio.
Isso me f az estremecer. Se ao menos as baterias da lanterna nao tivessem
acabado ou eu estivesse com meu telefone. Penso em todas as velas da
biblioteca, desejando ter uma agora, mas entao me lembro da caixa de
fosforos que usei para acende-las. Ainda esta no meu bolso.

O primeiro fosforo que acendo apaga-se quase instantaneament e – e uma


caixa v elha.

Uso o segundo para tentar me orientar, mas ainda nao consigo v er os


degraus e estou lutando para colocar ar su iciente nos pulmo es.

O terceiro fosforo que acendo ilumina brevemente parte da parede e noto


todas as marcas de arranhoes na superfıcie. Parece que alguem, ou alguma
coisa, uma vez tentou sair daqui.

Tento manter a calma, lembrar de respirar, mas entao a chama queima as


pontas dos meus dedos e deixo cair o ultimo fosforo no cha o.

Tudo e pret o.

E entao eu ouço de novo. Meu nome sendo sussurrado. Bem atra s de mim.

Amelia. Amelia. Ame lia.

Minha respiraçao esta muito super icial, mas nao consigo

controla-la e acho que vou desmaiar. Nao importa em que direçao eu olhe,
tudo que consigo ver e escuridao. Entao ouço o som de arranho es.

Demora muito mais do que deveria para encontrar o inalador de Amelia.

Seus ataques de asma sao poucos e raros, mas sempre acho que e melhor
estar preparado para o pior. A vida me fez pensar assim e est ou melhor com
isso. Procurar a bolsa da minha esposa nunca e uma taref a facil – mesmo
para ela – mas tentar adivinhar onde ela a deixou em um predio
desconhecido, na escuridao total, e algo que leva tempo. T empo que eu sei
que ela nao tem. Quando inalmente sinto a bolsa de cour o, encontro o
inalador dentro dela e corro de volta para o alçapao. Bob começou a arranhar
a madeira e posso ouvir Amelia chor ando.

—Voce precisa encontrar os degraus —eu digo. —O que voce acha que
estou tentando... f azer? Ela nao consegue respirar .

—Ok, vou descer .

—Nao! Nao faça isso, voce vai... cair .

—Pare de falar e concentre-se na sua respiraçao. Estou cheg ando.

Tateio meu caminho lentamente, um pe se conectando com um passo de


cada vez, o som da respiraçao em panico de Amelia me guiando na
escuridao. Encontro-a encostada na parede oposta de onde ela deveria estar e
coloco o inalador em suas maos tremulas. Ela sacode e ouço duas baforadas.
Entao a energia e ligada novamente, o tubo luorescente no teto volta a vida e
a cripta e banhada por uma luz

fantasmago rica.

—Deve haver um gerador —digo, mas Amelia nao responde. Em vez disso,
ela apenas se agarra a mim e eu a abraço. Ficamos assim por muito tempo e
me sinto estranhamente protetor com ela.

O que eu deveria sentir e culpa, mas nao sint o.


Ele me segura e eu deixo, enquanto espero minha respiraça o voltar ao
normal. Penso no que o conselheiro matrimonial pergunt ou em nossa
primeira sessao. “Chame-me de Pamela” como Adam a apelidou sempre
soava como se ela soubesse do que estava f alando, mas confesso que minha
con iança nela diminuiu um pouco quando descobri que ela mesma ja havia
se divorciado duas vezes. O que o casamento signi ica para você? Lembro-
me de como ela ronronou a pergunta e lembro-me da resposta de Adam. O
casamento é um bilhet e de loteria premiado ou uma camisa de força. Ele
achou engraçado. E u na o.

Ele me beija na testa, gentilmente, como se estivesse com medo de que eu


pudesse quebrar. Mas sou mais durona do que ele imagina. Mais inteligente
tambem. O beijo parece antisseptico, nada mais do que algo para acalmar .

— Que tal levarmos essa garrafa para a cama? — Ele perg unta, pegando o
Malbec e segurando minha mao enquanto me leva para for a da cripta. As
vezes e melhor deixar as pessoas pensarem que voce as seguira, ate ter
certeza de que nao se perdera sozinha.

No meio da sala da biblioteca existe uma escada circular de madeira que


conduz ao que deve ter sido uma varanda do primeir o

andar, quando esta ainda era uma capela. Suponho que a madeira seja toda
original, certamente parece, e cada segundo degrau range de uma forma
bastante teatral. Bob avança, trotando escada acima, quase como se soubesse
para onde esta indo.

Nao consigo deixar de olhar para as fotos que passamos nas paredes de
pedra caiadas. A serie de retratos emoldurados em preto e branco começa na
parte inferior da escada e segue ate o topo, como uma arvore genealogica
fotogra ica. Algumas das fotos estao quase completamente desbotadas,
descoloridas pela luz do sol e pelo t empo, mas as mais novas – mais
proximas do primeiro andar – estao em boas condiçoes e ate parecem um
pouco familiares. Eu nao reconheço os rostos neles. E nao adianta perguntar
a Adam, que nem reconhece o seu no espelho. Percebo que faltam tres
quadros, formas retangular es descoloridas e pregos cor de ferrugem onde
costumavam icar pendur ados.

Um tapete vermelho preso com hastes de metal sobe no meio da escada – ao


contrario do piso frio de lajes no andar de baixo – e eles se abrem para um
patamar estreito. Existem quatro portas a nossa frent e. Todas elas estao
fechadas e tem exatamente a mesma aparencia, excet o uma que tem uma
placa vermelha PERIGO, MANTENHA-SE F ORA pendurada na maçaneta.
Ha uma cesta de cachorro xadrez na frent e dela, junto com uma nota
digitada como a que encontramos na cozinha quando cheg amos:

Não há cães no quart o.

Por favor .

Esperamos que aproveite sua est adia.

A palavra, “por favor,” parece uma re lexao tardia e um p ouco passivo-


agressiva em uma nova linha por si so, mas talvez eu est eja lendo demais
sobre isso. Bob fareja a cama, abana o rabo e senta-se satisfeito, como se
fosse a dele. Meu cachorro nao sofre de ansiedade de

separaçao como eu e – ao contrario de mim – ele pode dormir em qualquer


lugar, a qualquer hor a.

— Bem, ele esta sendo cuidado. O bilhete anterior nao dizia que um dos
quartos havia sido arrumado para nos? —Adam diz.
—Sim, mas nao consigo lembrar qual.

—So ha uma maneira de descobrir .

Ele experimenta cada uma das portas disponıveis, t odas trancadas, ate que a
ultima se abre com um rangido dramatico que combina com a trilha sonora
das escadas. Junto com o vento uivante l a fora, e o su iciente para dar a
qualquer um uma dose de calafrios.

— Este lugar realmente precisa de um pouco de WD-406 — diz Adam,


acendendo a luz, e eu o sigo para dentro do quart o.

Estou chocada com o que v ejo.

O quarto e igual ao nosso em casa. Nao e uma copia carbono – a

mobılia e diferente – mas a cama esta coberta com os mesmos

travesseiros, cobertores e mantas. E as paredes foram pintadas exatamente


no mesmo tom: Mole's Breath de Farrow and Ball. Redecorei como uma
surpresa ha alguns anos e nunca esquecerei o quanto Adam odiou isso.

Nos dois icamos parados e olhamos por um moment o.

—Nao entendo o que estou vendo —sussurr o.

—Suponho que se pareça um pouco com o nosso...

—Um pouco?

—Bem, nao temos vitrais em Londr es.

—Isso e muito estr anho.

— Tambem nao temos relogio de pendulo — diz ele, e isso e verdade. O


relogio de aparencia antiga no canto do quarto est a completamente fora de
lugar, e o som dele parece icar mais alto em meus ou vidos.

— Adam, estou falando serio. Voce nao acha que tudo isso e um pouco estr
anho?

—Sim e nao. Eles provavelmente tiveram a ideia do mesmo lug ar que voce.
Voce nao comprou tudo do nosso quarto de uma empr esa porque conseguiu
um desconto de cinquenta por cento na venda? Voc e se apaixonou pela foto
de um quarto na brochura e literalment e comprou tudo. De initivamente me
lembro da fatura do cartao de credito. Talvez o dono deste lugar tenha feito o
mesmo?

O que ele esta dizendo e verdade. Eu me apaixonei pela foto de um quarto


em um folheto e comprei quase tudo que havia nele, apesar dos preços
ridıculos. Suponho que nao e impossıvel que quem quer que tenha
reformado a capela tenha gosto semelhante. O local f oi lindamente
decorado, apesar de todas as superfıcies estarem cobertas de poeira. O que
me faz notar que, ao contrario do resto da propriedade, o quarto esta
impecavel. Posso ate sentir o cheiro de lustra-mov eis.

—Esta limpo —eu digo.

—Certamente isso e uma coisa boa?

—Todos os outros comodos estavam empoeirados e...

— Talvez devessemos substituir nossos abajures de mesa por estes em casa?


— Adam diz, me interrompendo e acendendo um dos castiçais antigos ao
lado da cama. Ele tinha uma caixa de fosforos no bolso, como se soubesse
que eles estariam aqui. A medida que eles começam a piscar e lançar
sombras pelo quarto, nao posso deixar de pensar que eles parecem
emprestados do set de A Christmas Carol. — Eles ainda tem o preço preso
no fundo. Parecem tao velhos, mas dev em ser novos —diz ele, erguendo
um.

— Tudo parece tao… pouco autentico, como se estivessemos em um ilme de


nossas vidas e alguem tivesse acabado de vestir o cena rio com replicas
baratas dos originais.

—Eu acho que eles sao leg ais.

—Acho que eles representam risco de ince ndio.

Abro outra porta e encontro um banheiro que nao se parece em nada com o
nosso em casa. Tudo e genuinamente antigo, e ha marcas na parede e no
chao onde suponho que costumava haver uma banheir a com pes. Acontecia
a mesma coisa no banheiro do andar de baixo – sem banheira, apenas um
espaço vazio onde alguma claramente estava. H a mofo nos azulejos e na
pia. Quando abro as torneiras, ouço um som estranho, mas nada acont ece.

—Suspeito que os canos possamestar congelados —diz Adam do quart o.

—Otimo. Eu queria tomar um banho quente —respondo, s aindo para me


juntar a ele. O quarto agora esta iluminado apenas com velas e parece mais
aconchegante. Percebo que ele abriu o vinho e serviu duas taças. Quero
aproveitar desta vez, entao vou fechar as cortinas, ainda

um pouco assustada porque alguem poderia estar la fora nos

observando mais cedo. Ha um aquecedor velho abaixo da janela, mas esta


muito frio, o que explica por que est ou.

— Existem outras maneiras de se manter aquecido — diz A dam, passando


os braços em volta da minha cintura e beijando meu pescoço.

Ja faz um tempo que nao durmo com meu marido.

Era diferente quando icavamos juntos – nao conseguıamos tir ar as maos um


do outro naquela epoca – mas tenho certeza de que esse e o caso de muitos
casais. Parece bobagem estar casado ha tanto t empo, mas a ideia de tirar a
roupa me enche de pavor. Meu corpo nao par ece mais como ant es.

— So vou me refrescar — digo, tirando algo da bolsa antes de ir


para o banheiro. — Veri ique se ha fantasmas embaixo da cama

enquanto esper a.

—Entao o que ?

—Espere mais.

Com a porta fechada entre nos, começo a me sentir mais calma novamente.
Mais no controle. Finjo nao saber por que estou tao nerv osa por ter
intimidade com meu proprio marido, mas e uma daquelas

mentirinhas inocentes que conto a mim mesma. Assim como todos no s


fazemos. Fico descalça no chao frio do banheiro desconhecido e olho para a
mulher no espelho, depois desvio o olhar enquanto tiro o rest o das minhas
roupas. A nova camisola preta de seda e renda que compr ei so para esta
viagem nao me transforma em outra pessoa, mas pode ajudar a excita-lo. E
errado querer ser desejada pelo homem com quem casei?

Abro a porta do banheiro, tentando parecer sexy quando saio de tras dela,
mas nao precisava ter me incomodado. O quarto esta v azio. Adam se f oi.
Mantenha-se fora nao faz com que todos queiram ver o que est a por tras
dela? E sempre me senti bastante atraıdo pelo perigo.

Eu sei que Amelia vai demorar uma eternidade para “se refre scar” no
banheiro e estou entediado de esperar. Entao tomo um gole de vinho e volto
para o patamar para ver se Bob quer me fazer companhia. Mas ele ja esta
dormindo. E r oncando.

Foi entao que a placa de PERIGO MANTENHA-SE FORA c hama minha


atençao e eu simplesmente nao consigo resistir a tentar a maçaneta da porta
em que ela esta pendurada. Certamente nada ta o perigoso poderia estar
escondido por tras disso. Todas as outras portas aqui em cima estavam
trancadas, mas quando giro a maçaneta, esta se abre. Nao sei o que esperava,
mas suponho que esperava algo mais emocionante do que uma estreita
escada de madeira que subia. P osso ver outra porta no topo dela. Bob abriu
um olho e resmunga em minha direçao. Mas a curiosidade matou o gato, nao
o cachorro ou o homem, e agora quero muito saber o que ha no topo da
escada.

Nao ha luz, entao pego uma das velas do quarto e subo. Um passo
barulhento de cada vez. Sinto algo tocar meu rosto na penumbra e imagino
dedinhos, mas sao apenas teias de aranha. Acho que faz muit o tempo que
ninguem limpa essa parte da casa tambem. Estou prev endo que a porta no
topo da escada proibida estara trancada. Mas nao esta . Assim que abro, uma
forte rajada de vento apaga a vela e quase me derruba.

A torre do sino.

O ar artico la fora parece um tapa na cara, mas a vista do topo da capela e


espetacular. Sinto que posso ver o mundo inteiro daqui de cima... o vale, o
lago, as montanhas ao longe, tudo iluminado por uma lua cheia. A neve
inalmente parou e as nuvens se separaram par a revelar um ceu negro
decorado com estrelas. O sino – que e consideravelmente maior do que
parece visto do chao – e cercado por

quatro paredes brancas na altura dos joelhos. Nao ha grade de

segurança e apenas espaço su iciente para contornar a atraça o principal, mas


vale a pena arriscar para apreciar a visao de trezentos e sessenta graus de
todos os angulos possıv eis.

Ao olhar para o ceu noturno, parece-me quase inconcebıvel que algo tao
magico esteja sempre la. Estamos todos muito ocupados olhando para baixo
para nos lembrarmos de olhar para as estrelas. Fico triste quando penso em
todas as coisas que ja perdi na vida, mas pretendo mudar isso.

Tiro meu telefone do bolso para tirar uma foto... o telefone que minha esposa
acha que ainda esta em casa, em Londres. Fiquei enjoado quando a vi
tirando-o do porta-luvas do carro antes de sairmos de casa e depois
escondendo-o dentro de casa. Me senti ainda pior quando ela mentiu sobre
onde estava, me culpando por deixa-lo para tras. Ela est a se comportando de
maneira estranha ha meses e agora sei que na o estava imaginando isso.

Amelia foi recentemente consultar um consultor inanceiro. Ela nao me


contou sobre isso ate depois do evento. Disse que passei muit o tempo me
preocupando com o passado e que ela queria se prepar ar

melhor para o futuro. A princıpio nao percebi que ela se referia ao dela , nao
ao nosso. Que outra explicaçao existe para ela ter feito um segur o de vida
em meu nome e me pedido para assina-lo quando ela pensou que eu estava
bebado algumas semanas atra s?

— Acho que estamos numa idade em que precisamos planejar com


antecedencia —disse ela, depois das onze, em uma noite de aula, com uma
caneta na ma o.

—Tenho apenas quar enta.

— E se algo acontecesse com voce? — Ela persistiu. — Eu na o teria


condiçoes de pagar sozinha por uma casa grande em Hampst ead Village
com meu salario. Bob e eu serıamos sem-teto. — O cachorro – ao ouvir seu
nome – olhou para mim entao, como se estivesse metido naquilo.

—Voce nao seria uma sem-teto. Na pior das hipoteses, talvez voc e precise
reduzir o tamanho…

Ela balançou a cabeça e segurou a caneta em minha direça o. Assinei a


papelada porque estava cansado demais para discutir e porque minha esposa
e uma daquelas mulheres a quem e difıcil dizer na o.

Talvez seja porque os pais dela morreram quando ela nasceu, ou talvez seja
por causa de todas as coisas tristes que ela ve no tr abalho quase todos os
dias, mas Amelia pensa mais na morte do que eu acho normal. Ou saudavel.
Especialmente agora que ela parece ta o preocupada comigo.

Minha esposa esta planejando algo, tenho certeza disso. So nao sei o que .

E nao estou tendo uma crise de meia-idade.

E disso que ela continua me acusando ultimament e.

Suspeito que todo mundo chega a uma idade em que começa a questionar o
que conquistou na vida. Se as escolhas que izeram for am as corretas. Mas
tambem acredito que o que faço – contar historias – e
importante. As historias nos ensinam sobre o nosso passado, enriquecem o
nosso presente e podem prever o nosso futuro. Mas entao eu diria isso. As
palavras que escrevi sao tudo o que restara de mim quando eu partir .

Atores e diretores recebem toda a gloria no meu negocio, e passei a maior


parte da minha carreira adaptando livros de outras pessoas, mas essas sao as
minhas palavras que voce ouve quando assiste a um programa de TV ou
ilme em que trabalhei. Minha. Eu nem li o livro que me pediram para
adaptar no ano passado. Decidi que – de uma f orma ou de outra – a historia
que seria contada pertenceria a mim. A produtora do programa disse que
amou mais minha versao do que o

romance policial e eu iquei em extase. Brevemente. Aı ela pediu

mudanças porque e isso que essas pessoas fazem. Entao eu as iz e entreguei


o proximo rascunho. Aı o diretor pediu mudanças, porque e isso que eles
fazem. Avançamos alguns meses e ate um dos atores pediu mudanças,
porque e claro que eles conhecem os personagens melhor do que eu, embora
tenham vindo da minha cabeça. Entao, embora eu jur e que meu terceiro ou
quarto rascunho foi muito melhor do que a versa o inal, iz as alteraçoes
porque, se nao tivesse feito isso, teria sido demitido e algum outro idiota
teria me substituıdo. Porque e assim que esse negocio funciona.

Minha vida parece igual ao meu trabalho, com pessoas sempr e querendo me
mudar. Tudo começou com minha mae. Quando meu pai foi embora, ela
trabalhou em turnos duplos no hospital para me criar e manter um teto sobre
nossas cabeças. Moravamos no decimo terceir o andar de um predio de
apartamentos no sul de Londres. Nao tı nhamos muito, mas sempre tivemos
o su iciente. Ela costumava me repr eender por assistir muita TV quando
estava trabalhando – dizia que meus olhos icavam quadrados –, mas nao
havia muito mais a fazer que na o envolvesse me meter em encrencas. Ela
preferiu me ver lendo, entao eu iz isso, e no meu aniversario de treze anos
ela me deu treze livr os. Eram todas ediçoes especiais de autores que adorei
quando menino, ainda as guardo ate hoje, numa estante do porao onde
escrevo. Ela escreveu uma nota na primeira ediçao do meu livro favorito de
St ephen
King: Aproveite as histórias da vida de outras pessoas, mas não se esqueça
de viver a sua pr ópria.

Ela morreu tres meses depois.

Saı da escola aos dezesseis anos porque era necessario, mas

sempre estive determinado a deixa-la orgulhosa. Tudo o que iz desde entao


foi para tentar me tornar alguemque ela nao gostaria de mudar .

Tive uma serie de amigas que tambem tentaram me mudar, mas nao
conseguiram, ate que conheci minha esposa. Pela primeira vez na minha
vida, encontrei alguem que me amava por ser eu e nao queria mudar quem
eu era. Poderia inalmente ser eu mesmo e escrever minha propria historia,
sem medo de ser abandonado ou substituıdo. Talv ez seja por isso que eu a
amei tanto, no começo. Mas o casamento muda as pessoas, gostem ou nao.
Voce nao pode quebrar um ovo quando ja o tiver batido e fazer uma omelet
e.

Tento afastar os pensamentos negativos da minha mente e me concentrar na


vista. Estar tao alto me lembra de quando era criança, quando morava no
decimo terceiro andar. A noite, quando na o conseguia dormir (o
apartamento tinha paredes inas), eu abria a janela do meu quarto ao maximo
e olhava para o ceu noturno. O que mais me lembro sao os avioes... nunca
estive em nenhum. Eu costumava conta - los e imaginar todas aquelas
pessoas inteligentes, sortudas e ricas o su iciente para voar para algum lugar
diferente de mim. Eu me senti preso, mesmo entao. Ao contrario da vista de
um bloco de apartamentos em Londres, aqui nao ha edifıcios em nenhuma
direça o, nenhum sinal de vida, e tudo esta coberto de neve, banhado pelo
luar . Estamos realmente sozinhos aqui, e era isso que Amelia queria.

As pessoas deveriam ter mais cuidado com o que desejam.

Ha um lado da minha esposa que ninguem mais ve, porque ela e

muito boa em esconde-lo. So porque Amelia trabalha para uma


instituiçao de caridade animal, isso nao faz dela uma santa. Isso na o signi
ica que ela nunca fez nada de ruim, muito pelo contrario. Exist em lorestas
menos sombrias que a minha esposa. Ela pode enganar t odo mundo, mas eu
sei quem ela realmente e e do que e capaz. E por isso

que estou emocionalmente falido atualmente... todo o amor que me resta por
ela esta gast o.

Nao estou ingindo ser inocente em tudo isso.

Nunca pensei que fosse o tipo de homem que trairia a esposa. Mas eu iz. E
de alguma forma, ela descobriu.

Suponho que isso me faz parecer o vilao, mas tambem ha uma garota ma
nesta historia. Dois erros as vezes tornam algo feio. E eu na o fui o unico que
dormiu com alguem que nao deveria. Santa Amelia tambemf ez.

—A dam?

Estou no patamar, segurando uma vela e chamando seu nome. Mas ele nao r
esponde.

Bob olha para mim, irritado por eu ter perturbado seu sono, depois olha para
a porta com a placa PERIGO MANTENHA-SE FORA e
suspira. As vezes acho que nosso cachorro e mais esperto do que

imaginamos. Mas entao me lembro de todas as vezes em que o vi correndo


em cırculos, perseguindo o proprio rabo, e percebo que ele esta tao confuso
com a vida quanto o resto de no s.

Nunca fui muito boa em seguir regras, entao ignoro a placa e abr o a porta.
Revela uma estreita escadaria de madeira que conduz a outr a porta no topo.
Dou alguns passos e quase derrubo a vela quando entr o numa teia de
aranha. Tento desesperadamente afasta-la do rosto, mas ainda sinto como se
algo estivesse rastejando pela minha pele no escur o.

—Adam? Voce esta aı em cima?

—Sim, a vista e incrıvel. Traga o vinho e alguns cobertores — diz ele, e a


onda de alıvio que sinto me surpr eende.

Cinco minutos depois, estamos amontoados na torre do sino da capela, ele


tem razao, a vista e realmente magica. Nao ha muito espaço e estou com
frio, mesmo com o cobertor enrolado nos ombros, mas o vinho esta
ajudando, quando Adam me ve tremer, ele me abr aça.

— Nao consigo me lembrar da ultima vez que vi lua cheia — ele sussurr a.

—Ou tantas estrelas —respondo. —O ceu esta tao clar o.

—Sem poluiçao luminosa. Voce consegue ver aquela estrela mais brilhante,
logo a esquerda da lua? — Ele pergunta, apontando para o ceu. Concordo
com a cabeça e observo enquanto ele move o dedo como se estivesse
escrevendo a letra W. — Essas cinco estrelas formam a

constelaçao de Cassiopeia. — Adam e cheio de conheciment os

aleatorios, as vezes acho que e por isso que nao sobra espaço dentro de sua
cabeça para pensar em nos, ou em mim.

—Qual delas e Cassiopeia mesmo?


— Cassiopeia era uma rainha na mitologia grega cuja vaidade e arrogancia
levaram a sua queda. — Meu marido sabe mais do que eu sobre muitas
coisas. Ele e culto e um pouco pavao quando se trata de conhecimentos
gerais. Mas se houvesse um teste de QI para intelige ncia emocional, eu teria
sempre uma pontuaçao mais alta. Ha um certo t om em seu tom quando ele
fala sobre as estrelas, e acho que nao est ou imaginando isso.

Eu estava fazendo uma limpeza recentemente, v asculhando algumas coisas


antigas, e encontrei uma linda caixa de lembranças de casamento. Era como
uma capsula do tempo do casamento. Uma que eu selecionei
cuidadosamente e depois escondi para meu futuro eu encontrar. Havia alguns
cartoes de amigos e colegas da Dogs Home, pequenos enfeites de bolo
LEGO de uma noiva e do noivo e seis centavos da sorte. As superstiçoes de
Adam insistiam que eu precisav a disso em nosso grande – e bem pequeno –
dia, e concordamos que o anel de sa ira de sua mae era ao mesmo tempo
meu, algo emprestado e algo azul. No fundo da caixa encontrei um envelope
contendo nossos votos manuscritos. Todas aquelas boas intençoes em forma
de

promessa me izeram chorar. Isso me lembrou de quem eramos e de quem eu


pensei que serıamos para sempre. Mas as promessas per dem o valor quando
quebradas ou lascadas, como antiguidades empoeir adas e esquecidas. A
triste verdade sobre o nosso presente sempre pontua minhas lembranças
felizes do nosso passado com pontos inais.

Eu me pergunto se todos os casamentos acabam da m esma maneira. Talvez


seja apenas uma questao de tempo ate que a vida desfaça o amor. Mas entao
penso naqueles velhos casais que voce v e nos noticiarios todo Dia dos
Namorados, aqueles que estao juntos h a sessenta anos e ainda estao muito
apaixonados, sorrindo com dent es falsos para as cameras como namorados
adolescentes. Eu me pergunt o

qual e o segredo deles e por que ninguem nunca o compartilhou

conosco?
Meus proprios dentes começam a bater. — Talvez deve ssemos voltar para
dentr o?

— O que voce quiser, meu amor. — Adam so me chama de “meu amor”


quando esta bebado e percebo que a maior parte da garrafa est a vazia,
embora eu so tenha tomado uma taça de vinho.

Tento voltar para a porta, mas ele me segura. A visao muda de algo
espetacular para algo sinistro; se algum de nos caısse da torre do sino,
estarıamos mortos. Nao tenho medo de altura, mas tenho medo de morrer,
entao me afasto. Ao fazer isso, esbarro no sino. Nao com for ça su iciente
para faze-lo tocar, apenas para balançar, e assim que isso acontece, ouço
cliques bizarros, seguidos por uma cacofonia de guinchos agudos. Minha
mente leva um momento para processar o que esta vendo e ou vindo.

Morcegos, muitos deles, voam para fora do sino e na nossa car a. Adam
cambaleia para tras, perigosamente perto do muro baix o, jogando os braços
na frente do rosto e tentando afasta-los. Ele tropeça e tudo parece mudar para
camera lenta. Sua boca esta aberta e seus olhos

estao arregalados e selvagens. Ele esta caindo para tras e se

aproximando de mim ao mesmo tempo, mas pareço estar congelada no lugar,


paralisada de medo enquanto os morcegos continuam a voar ao

redor de nossas cabeças. E como se estivessemos presos dentro do nosso


proprio ilme de terror personalizado. Adam cai com força contr a a parede e
grita quando parte dela desmorona e cai. Eu saio do meu transe, agarro seu
braço e o puxo de volta da borda. Segundos depois, ouve-se um grande
estrondo quando os tijolos antigos caem no chao. O som parece ecoar pelo
vale enquanto os morcegos voam ao longe.

Eu o salvei, mas ele nao me agradece nem demonstra qualquer sinal de


gratidao. A expressao do meu marido e uma que nunca vi em seu rosto antes
e isso me faz sentir medo.
Ela quase me deixou cair .

Eu sei que Amelia tambem estava com medo, mas ela quase m e deixou cair.
Isso nao e algo que eu possa simplesmente esquecer. Ou perdoar .

Estamos indo embora. Nao me importa quao tarde seja ou que haja neve na
estrada. Nao me lembro de termos sequer discutido isso. Estou feliz por
estarmos saindo deste lugar. Mesmo que eu nao queir a admitir isso – para
mim mesmo ou para qualquer outra pessoa – est ou preso. Neste carro, neste
casamento, nesta vida. Ha dez anos, pensei que poderia fazer qualquer coisa,
ser qualquer pessoa. O mundo parecia cheio de possibilidades in initas, mas
agora nao passa de uma serie de becos sem saıda. As vezes eu so quero...
começar de nov o.

A estrada a frente esta escura, nao ha iluminaçao publica e sei que nao nos
resta muita gasolina. Amelia nao esta falando comigo – nao f ala ha mais de
uma hora – mas o silencio e um alıvio. Agora que desistimos do im de
semana fora, a unica coisa que ainda me preocupa e o t empo. A neve parou,
mas ha uma chuva forte que bate no capo, fazendo uma

percussao desagradavel. Deverıamos diminuir a velocidade, mas acho


melhor nao dizer isso: ninguem gosta de um motorista no banco do
passageiro. E estranho como nao vimos nenhum outro carro ou pre dio desde
que partimos. Eu sei que e meio da noite, mas ate as estr adas parecem
estranhas. A visao raramente muda, como se estive ssemos presos em um
loop. Todas as estrelas desapareceram e o ceu parece t er um tom mais
escuro de preto. Percebo que estou com mais frio do que antes tambe m.

Viro-me para olhar para Amelia e ela e um borrao irreconhecıv el, os traços
de seu rosto girando como um mar furioso. Parece que est ou sentado ao
lado de uma estranha, nao da minha esposa. O fedor do arrependimento se
espalha pelo carro como um ambientador barato, e impossıvel nao saber o
quanto estamos infelizes. Quando se trata de casamento, nem sempre e
possıvel consertar e salvar. Tento falar, mas as palavras icam presas na
minha garganta. Eu nem tenho certeza do que eu ia dizer .

Entao vejo a forma de uma mulher andando na estrada ao longe. Ela esta
vestida de v ermelho.

A princıpio acho que e um casaco, mas a medida que nos

aproximamos, vejo que ela esta usando um quimono v ermelho.

A chuva cai com mais força, ricocheteando no asfalto, e a m ulher esta


encharcada ate os ossos. Ela nao deveria estar la fora. Ela na o deveria estar
na estrada. Ela esta segurando alguma coisa, mas na o consigo ver o que .

— Va mais devagar — eu digo, mas Amelia nao me ouve, ela parece


acelerar .

— Desacelere! — Digo de novo, desta vez mais alto, mas ela pisa no
acelerador .

Olho para o velocımetro enquanto ele sobe de sessenta quilometros por hora,
para oitenta e depois noventa, antes que o mostrador gire completamente
fora de controle. Coloco as maos na frente do rosto, como se tentasse me
proteger da cena a frente, e v ejo
que meus dedos estao cobertos de sangue. O barulho das gotas de chuva do
tamanho de balas no carro e ensurdecedor, quando olho par a cima, vejo que
a chuva icou v ermelha.

A mulher esta quase bem na nossa frente agor a.

Ela ve nossos farois, protege os olhos, mas nao sai do caminho.

Eu grito quando ela bate no capo. Emseguida, assisto comhorro r enquanto o


corpo dela ricocheteia no para-brisa rachado e voa no ar . Seu quimono de
seda vermelho ondula atras dela como uma cap a quebrada .

—Acor de!

Digo isso tres vezes, sacudindo-o suavemente, antes de A dam abrir os


olhos.

Ele olha para mim. —A mulher, ela...

—Que mulher?

—A mulher de v ermelho...

Isso de novo. Eu deveria saber .


—A mulher de quimono vermelho? Ela nao e real, Adam. Lembr a- se? Foi
apenas um sonho.

Ele olha para mim do jeito que uma criança olha para os pais quando estao
com medo. Toda a cor sumiu de seu rosto e ele est a coberto de suor .

— Voce esta bem — eu digo, pegando sua mao umida na m inha. — Nao ha
mulher de quimono vermelho. Voce esta aqui comigo. Voc e esta segur o.

Mentiras podem curar e machucar .

Ele mal falou comigo quando descemos da torre do sino mais cedo. Nao sei
se foi o choque de quase cair na parede desmoronada, ou os morcegos, ou o
excesso de vinho tinto, mas ele se despiu, subiu na cama desconhecida – que
se parece com a nossa em casa – e foi diret o para dormir sem dizer uma
palavr a.

Ja faz um tempo que Adam nao tem um de seus pesadelos, mas eles
acontecem com bastante frequencia e sao sempre iguais, excet o que ele ve o
acidente de um ponto de vista diferente. As vezes, nos sonhos, ele esta no
carro, em outros, esta andando pela rua, ou h a sonhos em que observa a
cena pela janela de um apartament o municipal no decimo terceiro andar de
um predio, batendo com os punhos no vidro. Ele nunca me reconhece
imediatamente depois – o que e normal para nos, dada a sua cegueira facial –
mas as vezes ele pensa que sou outra pessoa. Sempre leva varios minutos
para acalma -lo e convence-lo de que nao sou. Seus sonhos costumam
assombra -lo, independentemente de ele estar dormindo ou acordado. Sua
mente na o esta garimpando ouro, esta procurando por algo muito mais
sombrio. Pequenas pepitas de arrependimentos enterrados as vezes escapam
pelas brechas, mas as lembranças mais pesadas tendem a afundar em vez de
vir a t ona.

Eu gostaria de saber como faze-los parar .

Considero acariciar as sardas em seu ombro ou passar os dedos por seu


cabelo grisalho como costumava fazer. Mas eu nao faço. Por que posso ouvir
sinos.
Depois de tocar uma musica assustadora, o relogio de pendulo no canto do
quarto começa a badalar meia-noite como um aprendiz do Big

Ben. Se ja nao estivessemos totalmente acordados, ambos estamos

agor a.

— Me desculpe por ter acordado voce — ele diz, sua respiraça o ainda mais
rapida do que dev eria.

— Tudo bem. Se voce nao tivesse feito isso, o relogio quase

certamente teria feito isso —digo a ele. Aı faço o que sempre faço: pego

meu bloco e um lapis e depois anoto tudo o mais rapido possıv el. Porque
nao e apenas um sonho – ou pesadelo – e uma memo ria.

Ele balança a cabeça. —Nao precisamos fazer isso esta noit e...

Faço um registro silencioso de suas emoçoes, assinalando o padrao familiar,


um por um: medo, arrependimento, tristeza e culpa. E sempre a mesma
coisa.

— Sim, temos — digo, ja tendo encontrado uma das poucas

paginas em branco que restam no caderno. Sempre pensei que poderia


escavar suas lembranças infelizes e substituı-las por outras melhor es. De
nos. Hoje em dia nao tenho tanta cert eza.

Adam suspira, recosta-se na cama e me conta tudo o que consegue lembrar


antes que as bordas do sonho desapareçam demais para ser em vistas.

Os pesadelos começam sempre da mesma forma: com a mulher do quimono


v ermelho.

Apesar do traje, ela nao e japonesa. Adam acha difıcil descrever o rosto dela
– ele luta com as feiçoes nos sonhos da mesma forma que na vida real –, mas
sabemos que ela e uma mulher britanica de quarenta e poucos anos, mais ou
menos da mesma idade que eu tenho agora. Ela e atraente. Ele sempre se
lembra do batom vermelho dela, exatamente no mesmo tom do quimono. Ela
tambem tem longos cabelos loiros como os meus, mas os dela sao mais
curtos, na altura dos ombr os.

Ele nao diz o nome dela esta noite, mas nos dois sabemos qual e .

A ordem do que acontece no sonho as vezes muda, mas a mulher de


vermelho esta sempre presente. O carro tambem esta na chuva. E a razao
pela qual Adam nao possui um e nao dirige. Ele nunca quis aprender como.

Ha um adolescente nos pesadelos tambeme ele esta apavor ado. Adam viu
tudo acontecer: a mulher, o carro, o acident e.

Nao apenas em um sonho, na vida r eal.

Foi na noite em que sua mae morreu. Ele tinha treze anos.

Adam nao conseguiu reconhecer a pessoa no carro ha quase trinta anos,


quando ele subiu na calçada e colidiu com sua mae enquanto ele observava.
Mas isso nao signi ica que ele nao sabia quem eles er am. Poderia ter sido
um amigo, um professor, um vizinho... todos os rost os parecem iguais para
ele. Imagine nao saber se alguem que voc e conhecia foi responsavel pela
morte de alguem que voce amava. Na o admira que ele se esforce para con
iar nas pessoas, ate mesmo em mim. Se meu marido nao sofresse de
prosopagnosia, toda a sua vida poderia ter sido diferente, mas ele nao foi
capaz de descrever a polıcia quem tinha visto. Nao entao, nao agora. E ele
ainda se culpa. Sua mae estav a passeando com o cachorro quando isso
aconteceu, porque ele estav a com preguiça de fazer isso.

Fico triste como ele idolatra um f antasma.

Segundo todos os relatos, a mae de Adam era uma mulher bastante simpatica
– era enfermeira e muito popular na pr opriedade onde viviam – mas nao era
perfeita. E ela de initivamente nao era uma santa. Acho estranho como ele
compara todas as outras mulheres de sua vida a ela. Incluindo eu. O pedestal
em que ele colocou sua ma e morta nao e apenas instavel, esta quebrado. Por
exemplo, ele parece t er esquecido convenientemente por que ela estava
usando o quimono vermelho. Era o que ela sempre usava – junto com o
batom combinando – sempre que “amigos” homens vinham visitar o
pequeno apartament o onde moravam. O lugar tinha paredes inas, inas o su
iciente par a Adam ouvir que sua mae tinha um “amigo” diferente que icava
na cama dela quase toda semana.

As memorias mudam de forma e os sonhos nao estao vinculados a verdade, e


por isso que escrevo tudo o que ele escolhe lembrar. E u quero conserta-lo. E
eu quero que ele me ame por isso. Mas nem tudo que quebra pode ser
consertado.

Um dia ele podera se lembrar do rosto que viu naquela noite, e as perguntas
sem resposta que o perseguiram durante anos podera o inalmente ser
respondidas. Eu tentei tanto acabar com os pesadelos:

remedios de ervas, podcasts de atençao plena antes de dormir, ch a


especial… mas nada parece ajudar. Quando tudo esta anotado, apago a luz
para que iquemos novamente na escuridao, e espero que ele consiga voltar a
dormir .

Nao demora muit o.

Adam logo esta roncando suavemente, mas nao consigo desligar .

Eu engulo um comprimido para dormir – eles sao prescritos, e s o os tomo


quando nada mais funciona – mas tenho tomado mais do que o normal
ultimamente. Estou muito preocupada com o numero crescent e de
rachaduras em nosso relacionamento, aquelas que sao gr andes demais para
serem preenchidas ou ignoradas. Eu sei exatamente por que e quando nosso
casamento começou a desmoronar. A vida e imprevisıvel, na melhor das
hipoteses, e imperdoavel, na pior .

Devo ter cochilado em algum momento – a pılula inalmente f ez


efeito – porque acordo com uma inquietante sensaçao de deja vu.

Demoro alguns segundos para lembrar onde estou – o quarto est a escuro
como breu –, mas quando pisco na escuridao e meus olhos se ajustam a luz,
lembro que estamos na Capela Blackwater. Um raio de luar entre a persiana
da janela e a parede ilumina um pequeno canto do quarto, me esforço para
ver a hora no mostrador do relogio de pe ndulo. Seus inos ponteiros de metal
ainda sugerem que e apenas meia-noite e meia, o que signi ica que nao
durmo ha muito tempo. Minha ment e parece confusa, mas entao me lembro
do que me acordou porque ouço novament e.

Ha um barulho la embaix o.

Robin tambemnao consegue dormir .

Ela esta preocupada com os visitantes. Eles nao deveriam t er vindo aqui.

Quando ela olha por tras da cortina e ve que a capela est a

completamente as escuras, ela sabe o que precisa fazer .


Parece mais longe do que esta. Mas Robin acha que a dista ncia entre os
lugares as vezes pode ser tao difıcil de perceber quanto a distancia entre as
pessoas. Alguns casais parecem mais proximos do que realmente sao,
enquanto outros parecem mais distantes. Quando ela os observou comendo
seus jantares congelados em bandejas no colo, os visitantes nao pareciam
especialmente felizes juntos. Ou apaixonados. Mas o casamento pode fazer
isso tanto com as melhor es pessoas quanto com as piores. Ou talvez ela
estivesse apenas imaginando.

A caminhada atraves dos campos, desde a sua casa ate a capela,


normalmente nao demorava mais de dez minutos. Menos ainda quando
corre, como ela descobriu antes. Mas agora que caiu tanta neve, lev a mais
tempo do que deveria para percorrer um caminho sem escorregar .

Nao ajuda que suas botas Wellington sejam varios tamanhos maior es. Elas
sao de segunda mao: ela nao tem as suas. Ela teria que dirigir at e Fort
William para comprar um par, nao ha lojas de calçados v endendo calçados
perto de Blackwater Loch ou mesmo em Hollowgrove. Ela poderia ter
comprado online, mas isso exigiria um cartao de credito em vez de dinheiro,
que e tudo o que ela tem hoje em dia. Robin cort ou todos os seus cartoes ha
muito tempo. Ela nao queria que ningue m tivesse como encontra -la.

Ela gosta do som da neve sendo compactada sob seus pes, e o unico barulho
que prejudica o silencio, alem do clique distante dos morcegos. Ela gosta de
observa-los voando sobre o lago a noite, e uma visao bastante bonita de se
ver. Robin leu recentemente que os

morcegos dao a luz seus bebes pendurados de cabeça para baix o.

Depois, eles tem que pegar os ilhos antes que caiam muito, mas essa parte e
a mesma para todos os pais. Seu caminho esta noite e iluminado pela luz da
lua cheia, sem ela o ceu noturno seria um mar negro, ja que as nuvens
esconderam tudo, exceto as estrelas mais brilhant es novamente agora. Mas
tudo bem: Robin nunca teve medo do escur o.

Ela nao se incomoda com tempestades de neve ou ventos uivant es e nao se


importa em icar isolada do resto do mundo por alguns dias – nao e tao
diferente de sua rotina normal, para ser honesta. E R obin sempre tenta ser
verdadeira, especialmente consigo mesma. Ela se acostumou a morar aqui
agora, embora planejasse icar apenas por um curto perıodo quando chegasse.
A vida faz outros planos quando as pessoas esquecem de viver. Semanas se
transformaram em meses, e meses se transformaram em anos, e quando o
que acont eceu, aconteceu, ela sabia que nao poderia ir embor a.

Os visitantes tambemnao poderao sair quando quiserem, nao que saibam


disso ainda. E impossıvel nao sentir um pouquinho de pena deles.

Robin chega ao carro coberto de neve e para por um moment o. Ela


reconheceu o homem assim que ele saiu, e a lembrança disso a deixa
perturbada. Ela nao sabia se o veria novamente. Nem tinha certeza se ela
queria. Ele esta mais velho agora, mas ela rarament e

esquece um rosto e nunca poderia esquecer o dele. Sua mente volta no tempo
e ela pensa no que aconteceu quando ele era menino. O que ele viu e o que
nao viu. A historia e tao tragica agora quanto era ant es, Robin se pergunta
se ainda tem pesadelos com a mulher de v ermelho. Ela acha que chegou a
hora de ele saber a verdade, mas ele nao v ai gostar. As pessoas raramente o
f azem.

Quando Robin chega as grandes portas de madeira da capela, ela da uma


ultima olhada ao redor, mas nao ha ninguem aqui para ver o que ela esta
prestes a fazer. O luar que teve a gentileza de iluminar seu caminho revela o
lago e as montanhas ao longe, ela nao pode deixar de notar o quao intocado e
lindo este lugar e. Pessoas que fazem coisas feias nao pertencem a este lugar,
ela pensa, enquanto olha para o Morris Minor dos visitantes coberto de neve.
E o clima preferido dela, porque a neve cobre o mundo com um lindo manto
branco, e scondendo tudo o que e escuro e feio por baix o.

A vida e como um jogo onde os peoes podem virar rainhas, mas nem todo
mundo sabe jogar. Algumas pessoas permanecem peo es durante toda a vida
porque nunca aprenderam a fazer os moviment os

certos. Isto e apenas o começo. Ninguem jogou suas cartas ainda


porque nao sabia que estavam sendo distribuı das.

Robin tira uma chave do bolso do casaco e entra silenciosament e na capela.

LINH O

Palavra do ano :

Enganar verbo. Para tirar o melhor de alguém po r meio de trapaça ou


engano .

29 de fevereiro de 2012 – nosso quart o

aniversári o

Prezado Adam ,

Sinto como se sempre tivéssemos compartilhado o s mesmos sonhos – e


pesadelos – mas foi um an o

difícil. Você me decepcionou, deveria estar ao me u lado, mas não estava.


Fiquei sentada na sala d e espera sozinha e com medo, apesar de você te r

prometido estar lá comigo .

Depois de três anos de tentativas, dois anos d e consultas, todo um elenco de


médicos e enfermeira s diferentes, viagens aparentemente intermináveis a

hospitais e clínicas nos últimos doze meses e um a rodada fracassada de


fertilização in vitro, sinto-m e arrasada. Não era assim que eu queria passa r

nosso aniversário .

Eu deveria saber que hoje seria horrível, nã o começou bem .

Dois cães jovens foram resgatados ontem à noit e de um apartamento no sul


de Londres. Eles fora m trazidos para Battersea e fui um dos primeiros a vê-
los. Apesar de todos os meus anos nest e

trabalho, até eu fiquei chocada. Os beagles ficara m sozinhos por muito


tempo. O veterinário de plantã o

adivinhou pelo menos uma semana. Se não tivesse m bebido água do


banheiro já estariam mortos. Seu s

corpos emaciados faziam com que parecessem urso s de pelúcia com todo o
recheio retirado. Fizemos tud o o que podíamos para tentar salvá-los, mas ele
s

morreram esta manhã. No final, não havia mai s

nada que pudéssemos fazer e foi mais gentil colocá - los no chão. A dona
deles estava de férias n a

Espanha e eu gostaria que pudéssemos ter dado a ela uma injeção letal. Às
vezes desprezo os sere s

humanos, então talvez seja bom que nunca tenhamo s conseguido criar um .

Devíamos nos encontrar na London Bridge à um a da tarde. Tenho tido


problemas para dormi r

recentemente, estou exausta, mas ainda cheguei lá e na hora certa. Porque a


consulta na clínica d e

fertilização era importante para mim. Achei que er a importante para nós,
mas você tem estado mai s

distraído e egoísta do que nunca ultimamente. Fique i preocupada que você


pudesse esquecer, então mande i uma mensagem para lembrá-lo .

Cinco veze s.

Você não respondeu .


Nesta ocasião, realmente acho que você deveria te r colocado sua esposa
antes de escrever .

A London Bridge estava movimentada e

barulhenta, não apenas com os passageiros. Homen s com capacetes


pareciam estar por toda parte quand o saí da estação, havia uma coleção
impressionante d e guindastes bloqueando minha visão do céu. O Shar d

está em construção, segundo os transeuntes que ouvi , será o edifício mais


alto da Europa. Tenho certez a

que será por um tempo. Até que alguém constru a algo mais alto. Aposto que
não demorará muito ,

porque os humanos estão sempre tentando supera r uns aos outro s.

Mesmo quando fingem que se importam .

Liguei para você quando cheguei à entrada d a

clínica. Seu telefone tocou duas vezes antes de se r desviado para o correio
de voz. Eu sei com que m

você estava. Um produtor que demonstrou intere sse em seu primeiro


roteiro: RockPaperScissors. É o manuscrito que encontrei em uma gaveta
que m e

inspirou a escrever minhas próprias cartas secreta s

para você. Um lampejo de atenção de alguém do ram o sobre uma história


que você escreveu, em oposição a uma adaptação de outra pessoa, e você é
como u m

cachorro no cio. Eu me pergunto se todos o s


escritores são egomaníacos com baixa autoestima? O u é só você? Você
disse que o almoço com ele nã o

demoraria muito, mas acho que colocar se u

primogênito em produção era mais importante do qu e criarmos um filho de


verdade .

Nosso médico de família nos encaminhou para a clínica em London Bridge.


Eventualmente. Tudo o qu e tem a ver com a nossa tentativa de ter um filho
te m sido uma batalha desde o primeiro dia. E u

simplesmente nunca pensei que isso resultaria e m

brigarmos um com o outro. Conheci esse lugar estéri l

e sem alma nos últimos meses. Se eu somasse toda s as horas que passei
naquela sala de espera –

muitas vezes sozinha – suspeito que deva te r

passado vários dias da minha vida ali. Esperand o por algo que sempre soube
que poderia nunc a

acontecer .

Demorou meses para conseguir uma consulta , seguidos de vários meses


sendo cutucado s,

espremidos e entrevistados por conselheiros que se

intrometeram em nossa tristeza mais íntima. Olhand o para trás agora, às


vezes me pergunto com o

conseguimos sobreviver tanto tempo. Sempre que m e sentia mais sozinha,


dizia a mim mesma que voc ê me amava e que eu amava você. Tornou-se u
m
mantra silencioso dentro da minha cabeça, ali par a me firmar sempre que
sentisse que poderia cair . Mas o nosso casamento não é tão sólido ou estáve
l como eu pensava .

Eu sei que você achou os compromissos difícei s. Tenho certeza de que


entrar em uma sala privada , ser capaz de trancar a porta, escolher algum
film e pornô para ver e se masturbar em um pote d e

amostras deve ser muito estressante. Desculpe. Nã o desejo menosprezar a


sua experiência, mas pen so

que a maioria das pessoas sãs concordaria que a sua contribuição para este
processo foi meno s

dramática, embora ainda psicologicamente invasiva .

Tive que abrir as pernas, às vezes em uma sal a cheia de médicos e


enfermeiras, deixá-los coloca r

instrumentos de metal em meu corpo. Os mesmo s estranhos me viram nua,


me examinaram, m e

apalparam, me tocaram, alguns deles até colocara m

as mãos dentro de mim. Fui testada, repetidament e espetada com agulhas,


cheia de drogas, colocad a

para dormir e operada. Coletei meus óvulos, mije i

sangue por dias depois e não conseguia ficar de pé , muito menos andar
devido à dor incapacitante apó s

uma operação malsucedida. Mas superamos i sso juntos. Você disse que tudo
ficaria bem. Voc ê

prometeu e eu acreditei em você .


Afinal, outras pessoas têm filho s.

Pessoas que conhecemos, pessoas que nã o

conhecemos. Eles fazem parecer tão fácil. Alguma s delas até engravidam
sem querer, nem precisa m

tentar. Algumas delas matam as crianças qu e

crescem dentro delas, porque, em primeiro lugar, nã o as queriam. Algumas


pessoas que conhecemos nã o

queriam ter filhos, mas os tiveram mesmo assim .

Porque elas poderiam. Porque todo mundo pode. Todo s menos nós. É assim
que parece: como se fôssemos o único casal na história com quem isso
aconteceu. À s vezes é ainda pior que isso: parece que esto u

sozinha no mundo e que foi você quem m e

abandonou .

Eu queria tanto um bebê que doía fisicamente .

Então, hoje, em nossa primeira consulta após noss a

segunda – e possivelmente última – rodada d e fertilização in vitro, você não


estava lá .

Você não estava lá quando a recepcionista no s

chamou e eu tive que entrar naquele quarto sozinha . Ou quando o homem


que apelidamos de Douto r

Destino sentou-se atrás de sua mesa e apontou par a as duas cadeiras vazias à
sua frente. Ou enquant o
esperávamos por você em um silêncio constrangedor e ele verificava sua
pasta para lembrar nossos nome s. A clínica nunca nos tratou como seres
humano s,

mais como talões de cheques solitário s.

O pior de tudo é que você não estava lá par a ouvir a notícia que esperávamo
s.

Depois de tudo que passamos, o médic o

finalmente disse que eu estava grávida .

Eu não acreditei nele no início .

Eu o fiz repetir. Depois fiz com que el e

verificasse o arquivo, convencido de que estava lend o os resultados das


anotações de outra pessoa. Ma s

era verdade .

Doutor Destino até me fez deitar na cama e

examinou minha barriga. Ele apontou uma pequen a

mancha na tela e disse que era o nosso embrião. O conteúdo do seu pote de
amostras e do meu óvulo ,

cultivados juntos em laboratório, foram implantado s

com sucesso em meu útero e estavam ali na tela. Viv o e crescendo dentro de
mim .

Você perdeu isso .


Você chegou na recepção da clínica no momento e m

que eu estava saindo, e quando você começou a tenta r explicar, eu disse


para você não se incomodar. Esto u farta de ouvir você falar sobre seu
trabalho como se fosse à única coisa que importa. Você ganha a vid a

inventando merda e seu agente vende. Acho que já é hora de vocês se


superarem. Os produtore s,

diretores, atores e autores sobre os quais você m e conta histórias parecem


uma classe de criança s

mimadas, e não entendo por que você os satisfaz, o u seus acessos de raiva.
Você foi realment e

surpreendido por pelo menos um deles, mesmo qu e seja cego demais para
ver .

Sinto muito. Espero que você nunca encontre est a carta, no caso improvável
de encontrar, eu não qui s dizer o que disse. Estou sofrendo muito agora; e

essa dor precisa de um lugar para ir. Às veze s,

parte meu coração a maneira como você dedica todo o seu tempo a essas
pessoas e não guarda nada d e

si para mim. Sou sua esposa. Minhas histórias sã o reais. Isso faz com que
não valha a pena ouvi-la s?

Eu queria pegar o metrô, mas você insistiu qu e pegássemos um táxi.


Recusei-me a falar com voc ê durante a primeira metade da viagem. Sinto
muit o por isso também, mas nunca fui de lavar roup a suja em público. Eu
gostaria de ter contado a voc ê antes, no entanto. Poderíamos ter sido mais
felize s por mais tempo do que fomo s.

Eu não te contei até chegarmos em casa. Já tinh a arrumado a mesa da


cozinha com uma toalha d e
linho – um aniversário deve ser sempre comemorad o – mas a minha cara
deu a notícia quando tirei um a garrafa de champanhe do novo refrigerador
Smeg .

Renovar a casa ajudou a me manter ocupada e a

distrair minha mente de outras coisas. O térreo est á finalmente concluído e


estou orgulhosa de ter feito a maior parte do trabalho sozinha: lixar pisos,
reboca r paredes, fazer persianas romanas – é incrível o qu e você pode
aprender apenas assistindo a algun s

vídeos no YouTube .

Você chorou quando eu contei que estava grávida . Chorei quando lhe
mostrei o exame. Tendo sonhad o

com aquele momento por tanto tempo, aquela image m em preto e branco
era a única coisa que fazia co m

que tudo parecesse real. Como você não estava l á

para ouvir, fiquei preocupada com a possibilidade d e ter imaginado o que o


médico disse .

— Espero que seja uma menina — sussurrei . — Por que? Espero que seja
um menino. Vamo s

usar pedra, papel e para isso .

Eu ri. — Você quer brincar de pedra, papel e

tesoura para determinar o sexo do nosso filho aind a não nascido ?

— Existe uma maneira mais científica? — Voc ê respondeu, com uma cara
séria .
Minha tesoura cortou seu papel, como sempre . — Você me deixou vencer!
— Eu disse .

— Sim, porque eu realmente não me importo se é menino ou menina. Eu os


amarei de qualque r

maneira, mas sempre amarei você mai s.

Você abriu o champanhe – eu só bebi uma taç a pequena – e pedimos uma


pizza .

— A propósito, não esqueci nosso aniversário — você disse, devorando sua


terceira fatia de Pepperon i Passion uma hora depoi s.

— É assim mesmo? — Perguntei, tomando u m gole de limonada em uma


taça de champanhe .

— Tive dificuldades com o tema do linho e est á manhã fiquei preocupado


por ter comprado a coi sa

errada.. .

— Então me dê agora. Então você saberá .

Você enfiou a mão na bolsa de couro que eu lh e dei no ano anterior e me


entregou um pacot e

quadrado. Era suave. Normalmente sou muit o

cuidadosa ao desembrulhar as coisas, mas sabia qu e a pizza estava


esfriando, então rasguei o papel .

Havia uma almofada de linho dentro. Tinha me u nome bordado junto com
as seguintes palavra s

abaixo :
ELA ACREDITOU QUE PODERIA, ENTÃ O FEZ .

Tentei não fazer isso, mas chorei de novo .

Lagrimas de felicidade. Parecia que você já sabi a

que eu estava grávida. Você acreditou em mim, mesm o

quando eu não era capaz de acreditar em mi m mesma .

Eu estava prestes a agradecer quando olhei par a cima e percebi a expressão


estranha em seu rosto .

Você estava olhando para minhas pernas e quand o

segui seu olhar pude ver por quê. Um fio grosso d e sangue vermelho
brilhante desceu até meus chinelos .

Quando me levantei em pânico, havia mai s.

De acordo com o primeiro médico que nos atende u no pronto-socorro, eu


não fiquei grávida o temp o

suficiente para chamar aquilo de aborto espontâneo. O ginecologista que me


examinou em seguida foi u m

pouco mais simpático, mas não muito. Olhando par a

trás agora, eu gostaria de nunca ter contado a você – você não seria capaz de
lamentar por algo que nunc a soube que tinha. E sinto muito e estou
quebrada o suficiente por nós doi s.

Fui direto para o nosso quarto quando chegamo s em casa e até deixei Bob
se esticar na ponta d a

cama. Tentei chorar até dormir, mas não funcionou , nada funciona. Posso
conversar com o médico sobr e
como tomar alguns comprimidos para dormir. Perceb i que meu relógio
havia parado às oito e três minuto s e me perguntei se essa seria a hora exata
em qu e

nosso bebê morreu. Tirei o relógio do pulso e nã o


quero vê-lo nem usá-lo nunca mais. Sempre m e lembrarei do que você disse
quando subiu e m e abraçou :

— Eu te amo. Sempre amei, sempre amarei .

— Quase sempre não? — Eu perguntei, tentand o fazer você sorrir, mesmo


estando quebrada. Ma s

você não fez isso. Sorriso. Em vez disso, voc ê parecia mais sério do que
nunca .

— Sempre, sempre. Lamento muito que nã o possamos ter filhos, porque sei
o quanto i sso

significa para você e que mãe maravilhosa você seria . Mas isso não muda
nada para mim. Estarei co m

você para o resto da vida, não importa o qu e

aconteça, porque esta é a nossa família: você, eu e Bob. Não precisamos de


mais ninguém nem d e

nada. Nada jamais mudará isso .

Mas as palavras não podem resolver tudo, nã o importa o quanto você goste
dela s.

Horas depois, quando você estava dormindo, ma s eu ainda não conseguia,


pensei que era melhor m e

levantar e descer. Bob me seguiu, como se soubes se

que algo estava muito errado. Coloquei a pizza fria e intacta – que ainda
estava onde a havíamos deixad o

quando comecei a sangrar – na lixeira, junto com a almofada de linho que


você me deu. As palavra s
costuradas nela são dolorosas demais para sere m

lidas novamente. Você acreditou que eu poderia, entã o brevemente eu


acreditei. Agora não tenho certeza d e nada. Não sei quem devo ser se não
puder se r

quem sonhei que seria. Não sei o que isso signific a para nó s.

Passei a gostar de escrever cartas que nunc a

deixarei você ler. Acho isso catártico. Elas me faze m sentir melhor, embora
eu saiba que isso destruiri a

você se você as encontrasse. É por isso que eu a s

escondo. Vou guardar o exame do hospital com essa . Um lembrete do que


quase tivemos. Já coloque i

dentro do envelope que a clínica me deu com me u nome :

Sra. A Wright .

Estou segurando agora. Não consigo deixar ir. A recepcionista usou uma
caligrafia ondulada na minh a inicial, como se fosse algo bonito. Lembro-me
de

quando nos casamos e peguei seu sobrenome pel a

primeira vez. Pratiquei assinar minha nova assinatur a por semanas com
minhas próprias letras ondulada s. Fiquei muito feliz por ser sua esposa, mas
nenhu m dos desejos que fiz desde então se tornou realidade .

Acho que a culpa pode ser minha, não sua. Esper o que, se você descobrir a
verdade, seja capaz de m e perdoar e me amar, não importa o que aconteça .

Sempre, sempre. Como você prometeu .


Sua espo sa

xx

Ouço outro barulho la embaixo na capela e sei que nao est ou imaginando.

Procuro as cegas o interruptor de luz ao lado da cama, mas ele nao funciona.
Ou houve outro corte de energia – o que parece estr anho se houver um
gerador – ou alguemcortou a energia. Tento nao permitir que minha
imaginaçao hiperativa torne essa experiencia ainda mais assustadora do que
e. Digo a mim mesma que deve haver uma explicaçao racional. Mas entao
ouço o som inconfundıvel de passos no inal da escada rangent e.

Prendo a respiraçao, determinada a nao ouvir nada alem do sile ncio.

Mas ha outro gemido vindo das tabuas antigas do piso, seguido por outro
rangido, e o som de alguem subindo a escada ica cada v ez mais alto. E mais
perto. Tenho que cobrir a boca com a mao para na o gritar quando os passos
param do lado de fora da porta do quart o.

Quero alcançar Adam, mas estou congelada de medo.

Quando ouço o som da maçaneta da porta começando a girar , praticamente


caio da cama na pressa de me afastar de quem esta l a fora, e desejo estar
usando mais do que apenas uma camisola fra gil.

Agarro-me aos moveis desconhecidos, tateando nas sombras, andando o


mais rapida e silenciosamente que posso em direçao ao banheir o. Tenho
quase certeza de que a porta tinha uma fechadura. Assim que encontro o que
procuro, fecho a porta atras de mim e me barrico l a dentro. O interruptor de
luz tambem nao funciona aqui, mas talvez isso seja uma coisa boa.

Ouço a porta do quarto abrir lentamente e mais passos rastejantes. Pisco na


escuridao, desejando que meus olhos se ajustem a luz fraca, depois prendo a
respiraçao e recuo o maximo que posso enquanto o som do rangido das
tabuas do piso se aproxima. Per cebo que estou girando meu anel de noivado
no dedo – algo que so f aço quando estou mais ansiosa. O anel – que
pertenceu a mae de Adam – nao sai mais e começou a icar muito apertado.
Meu peito sente o mesmo, meu coraçao esta batendo tao alto que tenho
medo de que quem esta la fora possa ouvir quando parar do lado de fora da
porta do banheir o.

A maçaneta gira muito lentamente. Ao descobrirem que a porta esta


trancada, tentam novamente. Mais agressivamente desta vez. Sint o como se
estivesse em O Iluminado7, mas a unica janela deste banheiro e feita de
vitral – mesmo que ela abrisse, eu nunca passaria por ela, e a queda desta
altura no chao provavelmente seria me matar. Procuro uma arma, qualquer
coisa para me defender, mas encontro pouco confort o na minha navalha
Gillette Venus. Eu o seguro na minha frente de qualquer maneira, entao me
pressiono contra a parede, incapaz de me afastar mais. Os azulejos das
minhas costas nuas estao gelados.

Tudo ica quieto por alguns segundos. Entao o silencio e quebr ado pelo som
de um punho batendo na porta. Estou com tanto medo que começo a chorar,
com lagrimas escorrendo pelo meu rost o.

—Amelia, voce esta aı? Esta tudo bem?

A voz do meu marido me confunde e ao mesmo tempo me acalma. —Adam?


Isso e voce ?
—Quem mais poderia ser?

Abro a porta e o vejo parado ali, de calça de pijama, abafando um bocejo,


com os cabelos espetados em todas as direçoes. A luz do castiçal antigo que
ele carrega lança sombras fantasmagoricas pelo quarto, de modo que agora
me sinto como se estivesse em um livro de Char les Dick ens.

—Porque voce esta chorando? Voce esta bem? —Ele per gunta. Minhas
palavras tropeçam na pressa de dize-las. — Nao, eu na o

estou. Algo me acordou, ouvi um barulho la embaixo, as luzes na o


funcionavam, entao ouvi alguemsubindo as escadas e...

—Fui so eu, boba. Eu estava comsede e fui pegar um copo d'a gua. Mas
acho que todos os canos devem estar congelados porque nenhuma das
torneiras funciona.

—Nao ha a gua?

—Ou energia. A tempestade deve ter destruıdo o gerador. Tent ei encontrar


uma caixa de fusıveis enquanto estava la – para o caso de conseguir
consertar alguma coisa – mas nao tive alegria. Bom tr abalho, temos esses
castiçais assustador es!

Ele segura a chama bruxuleante abaixo do queixo e faz uma se rie de caretas
bobas, como as crianças fazem com lanternas no Hallow een. Começo a me
sentir melhor. Um pouco. Pelo menos ha uma explicaça o racional. Entao me
sinto uma t ola...

— Pensei ter ouvido um barulho la embaixo. O som de algue m rastejando.


Eu estava tao assustada...

—Eu tambem, foi isso que me acordou. —Adam interr ompe. Apos uma
breve ausencia, meu terror retorna. —O que ?

— Essa foi a outra razao pela qual desci, para veri icar se estav a tudo bem.
Mas as portas principais ainda estao trancadas, nao ha outr a forma de entrar
ou sair, este lugar e como Fort Knox. Dei uma boa olhada ao redor, nenhum
ladrao – ou ovelha – conseguiu entrar e est a tudo bem. Assim como o
deixamos. Alem disso, Bob teria latido se um estranho tivesse entr ado.

Isso e verdade: Bob rosna se um estranho bate na porta da frent e de casa,


mas apenas ate que a abramos. Em seguida, ele abana o r abo em velocidade
dupla e rola para mostrar sua barriga aos visitantes – labradores sao
amigaveis demais para serem bons caes de guar da.

Voltamos para a cama e faço uma pergunta que ele nunca quer responder .

—Voce ja desejou que tivessemos tido ilhos?

—Na o.

—Por que ?

Espero que Adam mude de assunto – e o que normalment e

acontece a seguir – mas ele nao muda. — As vezes ico feliz por na o termos
ilhos, porque tenho medo de que possamos te-los fodido de alguma forma,
do jeito que nossos pais nos foderam. Acho que talv ez nossa linhagem tenha
chegado ao im por algum motiv o.

Acho que preferia quando ele nao respondia. Nao gosto que ele nos descreva
assim, mas parte de mim se pergunta se ele pode estar certo. Sempre me
senti abandonada por pessoas com quem fui tola o su iciente para me
importar, incluindo meus pais. Sim, eles morrer am num acidente de carro
antes de eu nascer, mas o resultado – eu cr escer sozinha – e o mesmo que se
eles me abandonassem deliberadament e. Se voce nao tem ninguem para
amar ou ser amado quando criança, como voce apr ende?

Mas entao, o amor nao e como respirar? Nao e instinto? Algo que nascemos
sabendo fazer? Ou o amor e como falar frances? Se ningue m

te ensinar, voce nunca sera luente, se nao praticar, esquecera como…


Eu me pergunto se meu marido realmente ainda me ama. —Nao gosto daqui
—conf esso.

—Eu tambem nao. Talvez devessemos sair de manha? Encontr ar um bom


hotel em algum lugar um pouco menos remot o?

—Isso soa bem.

— OK. Vamos tentar dormir um pouco ate amanhecer la for a, depois fazer
as malas e ir embora. Talvez tome outro comprimido par a dormir, pode
ajudar?

Faço o que ele diz, apesar dos avisos na receita, porque est ou

exausta, se amanha terei que dirigir por horas novamente, pr eciso

descansar um pouco. Mas antes de fechar os olhos, noto que o relo gio de
pendulo no canto do quarto parou. Estou feliz, pelo menos isso na o vai nos
acordar novamente durante a noite. Aperto os olhos para ver a hora e vejo
que parou as oito e tres, o que parece estranho – pensei que

tivessemos ouvido os sinos a meia-noite –, mas minha mente est a

cansada demais para sequer tentar entender. Adam passa o braço em volta da
minha cintura e me puxa para ele. Nao consigo me lembrar da ultima vez
que ele fez isso na cama, ou me fez sentir segura assim. No mınimo, a
viagem ja nos aproximou. Como sempre, ele adormece em poucos minut os.
Finjo que estou dormindo e me pergunto quanto tempo terei de abraça-la
antes de poder voltar ao que estava fazendo la embaix o.

Amelia sempre teve di iculdade para dormir, mas os comprimidos ajudam e


sua respiraçao muda quando eles fazem efeito. Entao tudo que tenho que
fazer e esperar. E ouvir. Da mesma forma que iz um pouco antes. A segunda
pılula deve resolver o problema – normalment e funciona, mesmo quando eu
secretamente a esmago e coloco no ch a dela. Ela e uma pessoa muito
ansiosa. E para o bem dela. Assim que ela volta a dormir, saio de baixo dos
lençois, pego o castiçal que esta ao lado da cama e saio do quarto o mais
silenciosamente possıvel. Na verdade, nao preciso disso para iluminar meu
caminho – sei para onde estou indo – mas faço uma anotaçao mental para
evitar as tabuas mais barulhentas do piso: sei quais r angem.

Bob me segue pela escada em espiral de madeira, e adoro ter um cachorro:


eles sao tao amorosos e leais. Os caes nao sao implacaveis ou descon iados.
Eles nao icam com ciumes e brigam o tempo todo, enta o voce nao tem
medo de estar com eles. Os caes nao mentem. Ele pode

estar um pouco surdo hoje em dia, mas Bob ica sempre feliz em me ver ,
enquanto Amelia so ve as coisas do ponto de vista dela.
Estou cansado. De tudo isso.

Eu costumava acreditar no amor, mas naquela epoca eu acreditav a no Papai


Noel e na Fada do Dente. Ja ouvi pessoas descreverem o casamento como
duas peças faltantes de um quebra-cabeça que se juntam e descobrem que se
encaixam perfeitamente. Mas isso est a errado. As pessoas sao diferentes e
isso e bom. Duas peças de quebr a- cabeças diferentes nao podem e nao irao
se encaixar, a menos que uma tenha sido forçada a dobrar, quebrar ou mudar
para caber na outr a. Posso ver agora que minha esposa passou muito tempo
tentando me mudar, para me fazer sentir menor, para que nos adaptassemos
melhor .

Ninguem deveria prometer amar outra pessoa para sempre, o

maximo que qualquer indivıduo sensato deveria fazer e promet er

tentar. E se a pessoa com quem voce se casou icar irreconhecıvel dez anos
depois? As pessoas mudam e as promessas – mesmo aquelas que tentamos
cumprir – as vezes sao quebr adas.

Comecei a correr novamente ha alguns meses. Escrever e uma pro issao


solitaria e tambem nao muito ativa. Passo um t empo assustador sentado de
bunda no porao, e a unica parte do meu corpo que faz um treino decente sao
meus dedos, digitando no teclado. Bob me leva para passear uma vez por
dia, mas – assim como eu – ele est a envelhecendo. A corrida era apenas
para icar em forma e tentar cuidar melhor de mim mesmo. Mas e claro que
minha esposa presumiu que isso signi icava que eu estava planejando ter um
caso. Algumas semanas atras, ela colocou meus tenis de corrida no lixo na
noit e

anterior a coleta das lixeiras. Eu a vi fazer isso. Esse nao e um

comportamento normal.

Acabei de comprar tenis de corrida novos, mas eles nao sao a unica coisa na
minha vida que precisa ser substituıda. Posso nao ser bom em reconhecer
rostos, mas posso dizer que pareço mais velho. E u certamente sinto isso.
Talvez porque todo mundo na minha indu stria pareça estar icando mais
jovem atualmente: os executivos, os

produtores, os agentes. Quase todo mundo na ultima sala de rot eiristas em


que estive envolvido parecia que deveria estar na escola. Esse costumava ser
eu. Eu ja fui o garoto novo no quarteirao. E estr anho quando voce ainda se
sente jovem, mas todos começam a trata-lo como se voce fosse velho. Estou
na casa dos quarenta e ainda nao est ou pronto para a aposentadoria.

Sinto atraçao por outras pessoas? Claro, sou humano, f omos projetados para
ser. Nunca por causa de um rosto bonito – de qualquer maneira, nao consigo
ve-los. Nesse sentido, as pessoas sao um pouco como livros para mim, e
tendo a icar genuinamente excitado com o que esta dentro, em vez de apenas
com uma capa chamativa. Admito que tenho pensado muito em outra pessoa
ultimamente, imaginando como seria se eu estivesse com ela. Mas nao e
todo mundo que tem pequenas fantasias de vez em quando? Isso e tudo que
eles sao e isso nao signi ica que eu realmente vou fazer algo a respeito. A
ultima vez que dormi com alguem que nao deveria, nao acabou bem para
mim. Eu aprendi essa liçao. Eu penso. Alem disso, estou sempre
trabalhando, nao t enho tempo para ter um caso hoje em dia. Faço o possıvel
para aplacar o ciume constante de minha esposa, mas nao importa o que eu
diga, ela simplesmente nao parece capaz de con iar em mim.

De certa forma, ela esta certa em nao faze -lo.

Nunca fui totalmente honesto com minha esposa, mas isso e par a o bem
dela.

Ha tantas coisas que nao posso contar a ela; um pouco como as pılulas para
dormir que as vezes coloco em suas bebidas quentes ant es de dormir. Coisas
que ela nao precisa saber. Fui eu quem desligou a energia quando ela estava
na cripta mais cedo. Ela nao entende caix as de fusıveis... tudo o que precisei
fazer foi apertar um botao e soltar o alçapao. Esqueci o gerador la fora, mas
desliguei-o agora tambem e na o teremos energia de volta tao cedo.

MADEIR A
Palavra do ano :

Humano substantivo. Uma boa pessoa. Algué m que é gentil e age com
integridade e honra .

28 de fevereiro de 2013 – nosso quint o

aniversári o

Prezado Adam ,

Me desculpe por ter agido com tanto ciúm e ultimamente, espero que
possamos deixar esse s

últimos meses para trás. Pareceria estranho nã o

mencionar as coisas do bebê. Não posso fingir qu e

não aconteceu, ou que não queria ser mãe. Nunca fo i sobre ter seus filhos
(desculpe), eu só queria o s

meus. Desisti de desistir de tantas coisas na vida , mas sabia que não poderia
continuar tentando ter u m filho. Não depois da última ronda de fertilização i
n vitro não ter funcionado. O desgosto estava m e

matando e minha infelicidade estava matando noss o casamento .

Eu ainda esperava secretamente que isso pude sse acontecer por um tempo.
Já li todas aquela s

histórias de casais que engravidam assim que para m de tentar, mas não foi
isso que a vida planejo u

para nós. Nos primeiros meses eu ainda chorav a toda vez que minha
menstruação chegava, não qu e
você tenha perguntado, eu te disse isso. Mas ach o

que segui em frente agora, ou pelo menos me afaste i o suficiente para


respirar novamente. A vida pod e

começar a ficar cheia de buracos quando o amor nã o tem para onde ir .

Bob não é um bebê – eu sei disso –, mas ach o que o trato como um filho
substituto. E voltei a o

trabalho na casa dos cachorros nos últimos meses . A promoção inesperada


que recebi não rende muit o mais do que antes, mas é bom me senti r

reconhecida. E percebi que sou uma boa pessoa. Nã o poder engravidar não
era um castigo, simplesment e

não era o plano. Quando eu era criança, diziam-m e repetidamente que eu


era má, às vezes, aind a

acreditava nisso. Mas eles estavam errados sobr e mim. Todos ele s.

Tivemos uma briga na semana passada, a

primeira em muito tempo, lembra? Ainda me sint o culpada por isso. Para
ser justa, acho que muita s

esposas podem ter reagido da mesma maneira. Voc ê

chegou em casa bêbado e muito mais tarde do qu e

prometeu. Talvez não tivesse me incomodado tanto se eu não tivesse me


esforçado para cozinhar. Mas e m vez de pegar minha raiva silenciosa
quando fiz a

cena de jogar seu jantar frio e intocado no lixo, voc ê me contou tudo sobre
October O'Brien. A jovem e
premiada atriz irlandesa havia se apaixonado po r seu roteiro:
RockPaperScissors. Ela entrou e m

contato através do seu agente, e uma reunião à tard e para três se


transformou em bebidas e uma refeiçã o para dois. Só você e ela. Eu não
estava nem u m

pouco preocupada até que pesquisei a garota n o Google e vi como ela era
linda .

— Você mesma terá que conhecê-la — voc ê

balbuciou com um sorriso ridículo no rosto. Seu s

lábios estavam um pouco manchados de vinho tinto , pelo menos eu


esperava que fosse isso. — Seu s

pensamentos sobre como melhorar o roteiro sã o

simplesmente… geniais! — Eu ajudei você com ess e roteiro anos atrás.


Posso não ser uma atriz d e

Hollywood, mas leio. Bastante. E achei que o No sso Time fez um ótimo
trabalho. — Você vai amá-la... — você disse emocionado, mas eu duvidei
muito disso . — Ela é simplesmente encantadora... tã o

absolutamente charmosa, e inteligente, e.. .

— Eu não sabia que ela tinha idade suficient e

para beber — interrompi. Eu mesmo tomei um pouc o de vinho enquanto


fiquei acordada esperando .

— Não seja assim — você disse, com um olha r que me deu vontade de dar
um soco em você .

— Como o quê? Não é como se não estivéssemo s aqui antes. Um ator ou


atriz diz que ama su a

história e que não descansará até que ela seja feit a em Hollywood.. .

— Isso é diferente .

— É isso? A menina mal saiu da escola.. .

— Ela tem vinte e poucos anos e já ganhou u m Bafta.. .

— Você ganhou um Bafta aos vinte e pouco s anos, mas ainda não conseguiu
o que queria .

Certamente é um produtor que você precisa par a apoiar o projeto... ou um


estúdio .

— Tenho uma chance muito melhor com uma atri z como October. Se ela
bater nas portas de Lo s

Angeles, elas abrirão para ela. Enquanto comigo, a menos que eu consiga
outro grande livro par a

adaptar em breve, todas as portas parecem estar se fechando. — Eu me senti


mal então. Tem sido difíci l para você este ano. Você ainda está conseguind o

trabalho, mas não do tipo que realmente deseja. E u estava prestes a mudar
de assunto, tentar ser u m pouco mais gentil, mas você atacou em legítim a

defesa. — É uma pena que você ainda não seja tã o apaixonada por sua
carreira, então talvez voc ê

entendesse .

— Isso não é justo — eu disse, embora fosse . — Não é? Há anos que você
não recebe u m

aumento salarial decente de Battersea, mas aind a assim fica .


— Porque adoro trabalhar lá .

— Não, porque você está com muito medo d e pensar em trabalhar em outro
lugar .

— Nem todos queremos governar o mundo ,

alguns de nós só querem torná-lo um lugar melhor . A ideia de você não


estar orgulhoso de mim fo i

totalmente dolorosa e devastadora. Bastante. Eu se i

que você acha que eu poderia estar fazendo mais n a minha vida, mas não é
tudo culpa minha. Quando a

pessoa que você ama tem muitas ideias brilhantes , elas podem eclipsar
completamente as suas. E e u

ainda faço. Amo você. Gastei minha ambição no s seus sonhos, em vez dos
meu s.

Você dormiu no quarto de hóspedes naquela noite , mas nós fizemos as pazes
desde então. Bem a

tempo para o aniversário deste ano .

Você acordou antes de mim esta manhã, o que é praticamente inédito, e


inesperado, considerando o

quão tarde você dormiu reescrevendo um roteiro d e

dez anos atrás na noite passada. Quando você levo u

uma bandeja de café da manhã para o nosso quarto , pensei que devia estar
sonhando. Em todos os ano s
que estamos juntos, você nunca fez isso antes. Entã o eu deveria saber que
algo estava errado .

Comemos ovos dippy, como gosto de chamá-los – cozidos é o termo


preferido dos adultos – co m

torradas. Eu estava ansiosa para passar o di a

juntos, então não conseguia entender por que voc ê

acordou tão cedo ou por que parecia tão ansioso par a levar as xícaras e
pratos sujos de volta para baixo .

— Não precisamos nos apressar, não é? — Perguntei .

Seu rosto confessou antes de você. — Sinto muito , preciso ir ver meu
agente. Realmente não vai demora r muito.. .

— Mas concordamos em passar o dia inteir o juntos este ano. Tirei férias
anuai s.

— E nós faremos, é só por algumas horas. E u realmente acho que


RockPaperScissorspod e

realmente ser feito desta vez. Só quero conversar co m ele pessoalmente –


você sabe que é a única maneir a

de saber o que ele realmente pensa sobre qualque r

coisa – enquanto o projeto ganha impulso novamente . Ver se ele concorda


com os próximos passos e …

Eu sei que você não conseguiu ver a cara que e u fiz, mas deve ter lido
minha linguagem corporal .

— Eu sei que é nosso aniversário, mas promet o que vou compensar você
esta noite .
— Ainda vamos jantar? — Eu disse .

— Serão bebidas às cinco da tarde, no máximo . Telefono para você assim


que terminar e trouxe ist o para você .

Era um ingresso para uma peça de teatro que e u queria ver há meses. Está
esgotado desde que abriu . O ingresso era para hoje, então pelo menos eu teri
a

algo divertido para fazer enquanto você estive sse

trabalhando. Mas também significava que você sabi a que eu precisaria de


algo para fazer. Sozinha .

Havia apenas um ingresso. Eu te dei seu present e de aniversário então.


Cinco anos é para ser u m

presente de madeira, então comprei para você um a régua com uma inscrição
:

CiNCO ANOS CASADOS, QUEM ACREDITA ? Você sorriu, ergueu duas


gravatas e me pedi u

para escolher uma. Para ser sincera, detesto a s

duas, mas apontei para aquela com os pássaro s. Parecia estranho até na
época, visto que voc ê

normalmente nunca se veste bem para ver seu agente . — Não é para mim, é
para você — você disse ,

lendo minha mente .

Você enrolou a gravata de seda em volta do me u rosto para cobrir meus


olhos. Então você me pego u pela mão e me levou para baixo .
— Não posso sair de camisola! — E u

sussurrei, quando ouvi você abrir a porta da frente .

— Claro que pode, você ainda está tão lind a

quanto no dia em que nos casamos, além disso, é a única maneira de mostrar
seu verdadeiro presente d e aniversário .

— Achei que fosse o ingresso do teatro — e u disse .

— Dê-me algum crédito .

— Não posso, desculpe. Você já está endividad o demai s.

— O presente deste ano é para ser feito d e madeira, certo ?

Dei mais alguns passos incertos, o caminho fri o mordendo meus pés
descalços, até chegar à grama . Paramos e você removeu minha venda
improvisada .

Havia uma pequena árvore feia e sem folhas n o meio do que costumava ser
meu gramado perfeito .

— É uma árvore — você disse .

— Eu posso ver isso .

— Eu sei que você sempre quis uma magnólia , então.. .

— É isso que é? — Você parecia magoado. — Sinto muito, é muito gentil da


sua parte. Eu am o

isso. Quero dizer, talvez não agora, mas quando a s flores aparecerem,
aposto que ficará incrível. — Voc ê parecia feliz novamente. — Obrigada, é
o present e
perfeito. Agora vá e transforme seu roteiro em u m sucesso de bilheteria de
Hollywood, para que Bob e eu possamos andar no tapete vermelho da
Leiceste r

Square .

Assim que você teve minha permissão, você sai u pela porta e eu fiquei
sozinha no nosso aniversário . De novo .

Olhando para trás agora – retrospectiva é um a

merda – acho que tudo teria ficado bem se o alarm e de fumaça não tivesse
disparado no teatro naquel a

tarde. Todos na plateia foram evacuados pouco depoi s de a cortina subir, o


corpo de bombeiros se r

chamado e a matinê que eu deveria ver foi cancelada . É por isso que voltei
para casa mais cedo do qu e

o planejado .

Eu me peguei olhando para um casal no metr ô

para casa. Eles tinham a nossa idade, mas estava m de mãos dadas e sorrindo
um para o outro com o

dois adolescentes apaixonados. Aposto que ele s

sempre passavam aniversários juntos e comecei a m e perguntar onde


estávamos na escala do normal. O

júri na minha cabeça ainda estava decidido quand o

voltei à estação de Hampstead. Os céus se abrira m quando comecei a andar


e eu estava encharcad a
quando cheguei ao portão do jardim. Senti uma raiv a inexplicável ao ver a
magnólia feia que você havi a

plantado, quando cheguei à porta da frente, minha s mãos tremiam de mau


humor e frio .

Enquanto eu lutava para colocar a chave n a

fechadura, ouvi uma mulher rindo dentro de noss a

casa. Quando abri a porta e entrei no corredor, sent i como se estivesse


sonhando. Havia uma atriz d e

Hollywood bebendo vinho na minha cozinha. Co m você. No nosso


aniversário .

— O que você está fazendo em casa tão cedo? — Você perguntou,


parecendo tão chateado quanto eu .

— A peça foi cancelada — eu disse, olhand o para ela o tempo todo – não
pude evitar. Octobe r

O'Brien era ainda mais bonita na vida real do qu e em todas as fotos que
pesquisei online no Google .

Sua pele extremamente pálida, semelhante a

porcelana, era impecável, e seu cabelo acobreado e cortado em forma de


duende brilhava sob as luze s da cozinha. Se eu tivesse o meu estilo assim ,

pareceria um menino, mas ela parecia uma prince sa elfa feliz, com seus
grandes olhos verdes e u m

largo sorriso branco. Mesmo aos vinte e poucos ano s, nunca pareci tão bem
.

Então você nos apresentou, como se voltar par a


casa e encontrar seu marido bebendo vinho à tard e com outra mulher – que
você só viu na TV e e m

filmes – fosse normal. Eu estava prestes a faze r papel de boba, mas então os
lábios vermelho s

perfeitos de October sorriram e ela explicou o qu e você deveria ter .

— É um prazer conhecer você — ela ronronou ,

estendendo uma mão perfeitamente cuidada. Por u m momento não tive


certeza se deveria sacudi-la, beijá - la ou dar um tapa nela. Tive uma
estranha vontad e de fazer uma reverência. — Seu marido confesso u ontem
à noite que nunca preparou uma refeição d e

aniversário para você. Eu disse que não queria nad a com o roteiro dele até
que a situação fosse corrigida , quando ele disse que não sabia cozinhar, me
oferec i para ajudar. Era para ser uma surpresa... ma s

talvez tenha sido uma surpresa ruim ?

Senti meu rosto esquentar por vários motivos a o mesmo tempo .

Em primeiro lugar, desejei ter limpado no ssa

geladeira mais recentemente, depois entrei em pânic o

com o estado de nossas panelas e frigideiras velha s – preocupada com o que


ela deveria pensar sobr e

mim e sobre nós e sobre o estado de nossa cozinha . Então desejei ter usado
um pouco mais d e

maquiagem, porque ao lado daquela linda criatura, e u me sentia como um


morcego velho e enlameado .
Eu não precisava ter me preocupado. Acho qu e

nunca conheci uma mulher mais gentil ou generosa – não admira que você
quisesse trabalhar com ela. At é Bob se apaixonou pela nossa hóspede, mas
ele am a

a todos. Insisti para que October ficasse e come sse a refeição que ela havia
preparado conosco – você nã o discute – e depois que coloquei roupas secas
e abr i

outra garrafa, tivemos uma noite maravilhosa. Todo s os três pratos estavam
deliciosos – especialmente o

pudim de chocolate. Achei que ficaria intimidada po r alguém como October


O'Brien. Ela é tão deslumbrante , bem-sucedida e inteligente... mas era
totalment e

charmosa, modesta e doce. Isso me fez percebe r que, independentemente de


quem todos pensam qu e são as celebridades, no final das contas elas sã o

apenas pessoas. Como você e eu. Mesmo o s

perturbadoramente bonito s.

— Eu sabia que você também a amaria se a conhecesse — você disse


quando October partiu . — Você estava certo, mas eu te amo mai s.

— Quase sempre? — Você perguntou e sorriu. — Então você não se importa


que eu trabalhe com el a

agora? E você não vai ficar com ciúme s?

— Quem disse que eu estava com ciúmes? — E u respondi e você levantou


uma sobrancelha .

— Você não precisa estar. Ela é adorável, ma s ainda é atriz .


— Você me acha adorável ?

— Você é meu PMi — você disse .

— PMi ?

— Pessoa mais importante .

Obrigada por um aniversário memorável este ano , que certamente não


esquecerei. Cinco anos. Para ond e

foi? Tantas lembranças, principalmente felizes, e

estou ansiosa para fazer mais com você no futuro . Suspeito que todo mundo
tem uma pessoa mai s

importante. Eu sou sua e você é meu. Agora e sempre .

Sua espo sa

xx
Robin ica perfeitamente imovel, escondida em um canto frio e

escuro da capela, ate que todos os visitantes voltem para cima. O

homem desceu duas vezes e ela quase foi pega. Ela se pergunta se ele a
reconheceria agora. Independentemente da cegueira facial dele, ela teme que
tenha mudado de forma irreconhecıvel desde a ultima v ez que se conhecer
am.

Quando Robin entrou, ha mais de uma hora, ela pensou que eles tinham ido
dormir e teve que se esconder quando o ouviu descendo a velha escada em
espiral de madeira. De alguma forma, ele conseguiu evitar todos os passos
mais barulhentos. Felizmente, a sala – que ela sempre pensou ser mais uma
biblioteca com sofas – tinha muit os espaços escuros, as estantes forneciam
ampla cobertura ate que ela pudesse ver quem era. Depois disso, ela entrou
na sala secr eta. Segredos sao segredos apenas para quem ainda nao os
conhece. Eles podem se transformar em mentiras quando compartilhadas,
como lagartas que se transformam em borboletas, lindas mentiras podem
voar para muito, muito longe. Nao ha nada que Robin nao saiba sobr e esta
antiga capela: ela morava aqui.
Ela ainda poderia morar aqui agora se quisesse, mas optou por nao faze -lo.

Robin nao gosta de icar dentro do lugar por mais tempo do que o necessario
atualmente. Ela sempre precisa reunir muita coragem par a entrar pelas
portas da velha capela, nas raras ocasioes em que isso na o pode ser evitado,
ela faz o que precisa fazer o mais rapido possıv el antes de sair novamente.
Os visitantes tambem gostariam de sair se soubessem a verdade sobre onde
estao hospedados, mas as pessoas veem o que querem ver .

A sala secreta ica atras da biblioteca e Robin odeia mais essa parte da capela.
E bastante facil encontra-la atras da estante – se voc e souber onde procurar
– mas e preciso usar os olhos. A maioria das pessoas passa a vida com os
olhos fechados. E os livros sao bons par a esconder todo tipo de coisas,
principalmente os livros fechados, assim como as pessoas f echadas.

Algumas memorias sao claustrofobicas, e a variedade que esta sala invoca


sempre a sufoca, di icultando a respiraçao. Robin ica o mais imovel possıvel,
estudando o piso de parquet da sala secreta como se fosse um quebra-cabeça
que ela pudesse resolver, tentando nao olhar para nada que a lembrasse de
um passado que ela preferiria esquecer . Mas as memorias nao obedecem a
ordens; elas vem e vao quando quer em.

A lua esta cheia e brilhante esta noite. Ela brilha atraves dos vitrais,
lançando uma serie de padroes que parecem estranhos e desconhecidos. A
visao de sua propria sombra na parede chama sua atençao e a faz se sentir
pequena. Ate a sombra dela parece triste. R obin nao tem a intençao de
fechar o punho, mas quando ve sua silhueta f azer o mesmo, ela levanta a
mao, mudando o formato dos dedos. Primeir o uma pedra. Depois plano,
como papel. Entao ela faz um moviment o cortante, como uma tesoura, e
sorri.

Quando ela tem certeza de que e seguro faze-lo, Robin se lev anta para sair.
Ela congela quando pensa que ve alguem, mas e apenas o seu proprio re lexo
no espelho acima da lareira. A visao a choca: ela quase

nao se reconheceu. Nao ha espelhos em sua casinha. A mulher aqui no


espelho, olhando para ela na sala secreta, parece tao velha, e sua pele palida
e tao branca que poderia ser confundida com um f antasma.

Robin en ia a mao no bolso em busca da chave para trancar a sala secreta


atras dela, mas seus dedos encontram outra coisa, proporcionando-lhe uma
pequena onda de conforto muito necessa rio:

seu batom vermelho favorito. Esta desgastado ate virar um cot o

achatado. Ela se lembra da primeira vez que usou: choveu naquela noit e e
ela se machucou gravemente. Mas reforçou a importancia de na o con iar em
ninguemalemde si mesma.

As melhores liçoes sao muitas vezes aquelas que nao perceb emos que
estamos apr endendo.

Robin passa um pouquinho de batom – querendo guardar o que sobrou pelo


maior tempo possıvel – e depois admira seu novo re lex o no espelho. Ela
sorri de novo, mas nao demora, sua boca logo se curvando nas bordas. Ainda
assim, e uma melhoria e lhe da cor agem para fazer o que veio fazer aqui.

Os visitantes nao pareciam felizes quando chegaram, nem quando ela os


observou pela janela. Enquanto ela descia as escadas, passando os dedos
pelas lombadas dos livros na sala que mais parecia uma biblioteca, ela notou
que os visitantes tambemnao pareciam felizes. Ela os ouviu enquanto
conversavam no quarto do andar de cima. Suas vozes eram ouvidas e suas
palavras pareciam saltar do teto abobadado de altura dupla ate seus ou vidos.

Parece-lhe estranho que os visitantes realmente pensassem que poderiam


icar aqui de graça. Somente os tolos acreditam em algo por nada. Ela teve
que reprimir uma risada quando os ouviu concor dando em partir pela
manha. Mas sua diversao logo se transformou em raiv a. Esse e o maior
problema das pessoas hoje em dia: elas nao valorizam o que tem, querem
sempre mais. Eles nao querem trabalhar para isso. Eles querem ganhar isso.
E eles reclamam e gemem como crianças mimadas quando nao conseguem o
que querem. Muitas pessoas pensam que o mundo lhes deve algo e culpam
os outros pelas suas
proprias escolhas de vida erradas. E todos pensam que podem simplesmente
fugir se as coisas nao correrem de acordo com os seus planos.

Isso nao vai acontecer aqui.

Os visitantes podem dizer o que quiserem, podem ate optar por acreditar se
isso os ajudar a dormir quando deitarem a cabeça nos travesseiros. A
tempestade la fora pode ter parado, por enquanto, mas ninguem saira daqui
amanha de manha. Depois do que ja viu e ou viu, Robin tem quase certeza
de que pelo menos um deles nunca mais sair a deste lugar .

Ainda esta escuro la fora, mas sacudo Adam para acorda -lo. —Bob se foi.
Nao consigo encontra -lo!

Observo com impaciencia enquanto meu marido esfrega os olhos para tirar o
sono, pisca na escuridao e espia ao redor do quarto. Cheir a como se
estivessemos em uma capela agora. Aquele cheiro bolorento de Bıblias
antigas e fe cega. A unica fonte de luz e a chama do castiçal que estou
segurando, e Adam demora um pouco para lembrar onde estamos. Esta tao
frio aqui quanto suspeito que esteja la fora agor a,

graças a completa perda de energia durante a noite, e ele

instintivamente puxa as cobertas para cima de si.


Eu os puxo de volta. —Ouviu-me? Bob esta desapar ecido!

—Ele estava dormindo no patamar —diz Adam, reprimindo um bocejo.

—Bem, ele nao esta la agor a.

—Talvez ele tenha descido...

—Ele tambem nao esta la! Procurei em todo o lugar, ele nao est a aqui!

Agora Adam parece pr eocupado.

Ele inalmente esta ouvindo o que estou dizendo. A preocupaça o


desconhecida em seu rosto me faz sentir pior... quem se preocupa sou eu,
nao ele. Quando estou mais ansiosa, ele sempre permanece calmo.
Equilibramos as emoçoes um do outro, e assim que funciona o nosso
casamento. Ou costumava ser .

— Bem, as portas da frente estavam de initivamente trancadas e Bob nao


tem chave, entao ele deve estar aqui em algum lugar. V ou ajuda-la a
procurar — diz ele, acendendo a outra vela e vestindo um sueter por cima do
pijama... uma tentativa debil de combater o frio. — Tenho certeza de que se
colocarmos um pouco de comida na tigela dele ele vira correndo...
normalmente v em.

Adam ainda esta meio adormecido, mas se arrasta para fora da cama e corre
para o patamar. Ele faz uma pausa para olhar para a cama vazia do cachorro
– como se eu pudesse estar inventando que Bob est a desaparecido – e desce
as escadas correndo na minha frente. Per cebo que ele erra deliberadamente
alguns degraus, que rangem alto quando eu os piso.

—Como voce sabia quais degraus nao deveria pisar? —Pergunt o, seguindo-
o um pouco mais de pert o.

—O que ?

—Voce pulou alguns degraus. Aqueles que r angem.


—Oh... bem, isso me irrita. Como armarios ou portas que r angem. —Mas so
chegamos ontem a noite. Como voce sabia qual...

— Talvez eu nao consiga me lembrar de rostos, mas fatos e numeros, ou as


coisas que a maioria das pessoas ignora – como os degraus que rangem –
tendem a icar na minha mente. Voce sabe disso sobre mim.

Adam muitas vezes se lembra de detalhes peculiares. Uma espe cie de


memoria fotogra ica, para coisas sem importancia. Decido deix ar isso de
lado – temos problemas maiores com os quais nos pr eocupar agora – e
juntos procuramos em cada canto de cada comodo o cachorr o desapar ecido.

—Nao entendo, as portas ainda estao trancadas, ele nao pode t er saıdo —diz
A dam.

— Bem, ele nao desapareceu no ar — respondo, colocando um pouco de


raçao na tigela de comida de Bob e chamando seu nome.

O convite e recebido com um silencio que parece ainda mais sinistro do que
antes. Eu nao sei o que fazer. Pego meu telefone, mas e claro que nao ha
sinal, e para quem eu ligaria mesmo se houv esse?

—Devıamos procurar la fora —diz Adam, e corremos para a sala de bag


agens.

Ele destranca as antigas portas da capela e as abr e.

A cena que elas revelam nos par alisa.

O sol esta começando a nascer atras de uma montanha ao longe, e ha luz su


iciente la fora para vermos uma parede de neve mais alta que meus joelhos.
Tudo esta coberto por uma espessa manta branca, e mal consigo distinguir a
forma do nosso carro na entrada. Se Bob realment e estiver em algum lugar,
com neve tao profunda, ele nao durara muit o.

Adam le minha mente e faz o possıvel para acalmar os


pensamentos de panico que giram dentro dela.

— Voce me viu abrir as portas, elas estavam de initivament e

trancadas. A neve e mais alta que Bob – mesmo que ele pudesse t er saıdo,
ele nao teria conseguido – aquele cachorro nem gosta de chuv a. Ele deve
estar la dentro... voce olhou na cripta?

—Depois da noite passada? Com apenas uma vela? Claro que na o. —Vou
usar a lanterna do meu telefone —diz ele.

Estou prestes a corrigi-lo – ele esqueceu que seu celular ainda esta em
Londres, mas entao observo enquanto ele corre para encontr ar a velha bolsa
de couro que usa para trabalhar. Esta tao surrada que eu deveria comprar
algo novo para ele. Ele chega la dentro e pega seu telef one.

Aquele que ele ingiu nao encontrar no carro quando o esteve com ele o
tempo t odo.

A razao pela qual uma pessoa mente e quase sempre mais

interessante do que a propria mentira. Meu marido nao deveria contar elas;
ele nao e muito bom nisso.
Pego meu celular, ligo a lanterna e corro ate o alçapao. Est a

fechado, entao nao vejo como Bob poderia ter ido ate la, mas tambem e o
unico lugar que nao procuramos. Abro e desço correndo os degr aus de pedra
o mais rapido que posso. Tudo o que encontro sao as mesmas prateleiras de
vinho empoeiradas e um pan leto sujo e de apare ncia caseira no chao: —A
Historia da Capela Blackwater .

Tenho certeza de que isso nao existia ant es.

—Bob nao esta aı embaixo —digo, subindo os degraus, distraı do pelo


pedaço de papel em minhas ma os.

Amelia nao responde, apenas olha. Se eu pudesse ver a expressa o em seu


rosto, sei que seria ruim – seus braços estao cruzados e ela est a naquela
posiçao que signi ica problemas. Para mim.

—O que? —Eu pergunt o.

—Achei que voce nao conseguiu encontrar seu telef one?


Peg o.

A culpa que sinto e logo substituıda pela raiv a.

— Bem, felizmente percebi que voce tirou meu telefone do carr o antes de
sairmos. Voce mentiu para mim sobre isso e esta agindo de forma estranha
ha semanas. Ha mais alguma coisa sobre a qual voc e esta mentindo para
mim? Bob esta realmente desapar ecido?

—Nao faça isso. Voce sabe que eu amo Bob.

—Eu pensei que voce me amav a.

A ideia de que Amelia teve algo a ver com o desaparecimento de

Bob e impensavel, mas depois de seu comportamento maluco

recentemente, nao sei o que pensar .

— Tudo que eu queria era um bom im de semana fora. So no s dois, pela


primeira vez. Nao eu, voce e seu maldito trabalho. A escrita, os livros, os
roteiros... isso e tudo com o que voce parece se importar hoje em dia. E por
isso que tirei seu telefone do carro, porque voc e passa tantas horas olhando
para ele o tempo todo que me faz sentir invisıv el.

Ela começa a chorar – sempre seu cartao para sair da prisao – e nao consigo
icar com raiva dela. Nao e como se eu tivesse sido honest o sobre tudo.

— Voce tem sinal no seu telefone, talvez possamos ligar par a alguem? —
Ela pergunta. Estou em uma rede diferente da dela, entao e uma pergunta
sensata.

—Nao. Eu ja veri iquei.

Sua linguagem corporal sugere que ela esta aliviada, mas isso na o faz
sentido. Devo estar lendo errado. Odeio quem nos tornamos, mas nao tenho
culpa por tudo isso. A con iança nao pode ser emprestada; se voce tirar, nao
podera devolve -la.

—Ha algo que preciso lhe contar .

Digo as palavras tao baixinho que ico surpreso que ela as ouça. Amelia se
afasta de mim. —O que ?

—Ontem a noite... nao desci para pegar um copo de agua. Eu vi... algo aqui
embaixo, antes de irmos para a cama. Eu nao queria t e assustar, entao
esperei ate voce dormir e depois desci para t entar entender a situaçao. Voce
ja estava tao chateada depois do incidente da cripta. Eu nao queria piorar as
coisas...

—Voce pode ir direto ao pont o?

—Eu faria isso se voce me deix asse.

—O que voce encontr ou?

— Isso — eu digo, abrindo uma das gavetas da cozinha. Est a repleto de


artigos de jornais antigos sobre October O'Brien. — Ela e a atriz que...

— Eu sei quem ela e, Adam. Nao e algo que eu provavelment e esqueça. —


Amelia retruca, puxando os recortes de impr ensa cuidadosamente cortados,
um por um, e colocando-os sobre a mesa da cozinha. —Eu nao entendo. Por
que isso estaria aqui ?

—E encontrei isso na cripta agora ha pouco. Pensei em esc onder isso de


voce tambem, sei o quanto este im de semana signi icava par a voce, mas
tambemsei que voce nao gosta de segr edos.

Mostro-lhe o pan let o.

—O que e ?

—Acho que voce deveria ler por si mesma. Nao acho que sejamos realmente
bem-vindos aqui.
— Mas entao por que oferecer um im de semana gratis como premio do
sorteio? Eles nos convidar am.

—Quem f ez?

Amelia nao responde por que nao sabe.

Ela pega o pedaço fragil de papel branco coberto de palavr as digitadas e


permanece na primeira pagina como se estivesse com medo de abri-lo.
Observo em silencio enquanto ela le .

A História da Capela Blackwate r

Uma capela existe neste local, proximo ao Blackwater Loch, pelo menos
desde meados d o seculo IX. Quando o atual proprietario adquiriu a
propriedade e terrenos envolventes, esta ja s e

encontrava abandonada ha varios anos. Com muito amor e muito trabalho,


decidira m

transformar este predio abandonado emuma linda casa .

As caracterısticas originais incluem varias pedras esculpidas, datadas entre


820 e 840, e e uma das capelas escocesas mais antigas ja registradas.
Sabemos que a capela nao temsido usad a para o seu proposito original
desde que o ultimo padre, Padre Douglas Dalton, partiu em1948 . Nao ha
relatos sobreviventes de sua estadia aqui, apenas rumores locais (nao
comprovados) d e que ele caiu para a morte da torre do sino .

Segundo outros registos, a congregaçao da capela reduziu-se a quase nada a


medida que a populaçao local envelheceu, razao pela qual foi deixada ao
abandono. Nao se sabia muito sobr e a verdadeira historia da capela, ate que
começaramos trabalhos de construçao para converter o que entao era
umdestroço emruınas numespaço habitavel .

Escavaçoes na cripta, para criar uma base mais solida, revelaram que a
capela tinha sid o usada como prisao de bruxas no seculo XVI. Aneis de
ferro foramencontrados nas paredes d a cripta, onde mulheres e crianças
condenadas por bruxaria foramacorrentadas antes de sere m queimadas na
fogueira. Os ossos de mais de cemsupostas bruxas foramencontrados
enterrado s no chao, junto com seus descendentes. Os testes revelaram que
um esqueleto era de um a menina de cinco anos .

Uma coleçao de anedotas locais e lendas urbanas compartilhamhistorias


semelhantes sobr e a Capela Blackwater. A maioria inclui historias de iguras
fantasmagoricas que podemser vista s lutuando sobre o lago a noite. Existem
varios relatos de mulheres vestidas de bruxas, co m rostos queimados e
roupas chamuscadas. Ha rumores de que elas andampela capela depois d o
por do sol, espiando pelos vitrais, embusca de seus ilhos assassinados.
Houve varios relatos d e tais avistamentos na imprensa local ao longo dos
anos, antes que as pessoas icassem ta o assustadas que se afastassem .

Quase todos os construtores envolvidos na reforma da propriedade


disseramque sentira m um frio inexplicavel na cripta, e alguns a irmam que
ouviram seus proprios nomes send o sussurrados quando estavam la. Mas e
importante notar que nem todo mundo que visita a Capela Blackwater
testemunha atividades paranormais ou apariçoes fantasmagoricas .

Esperamos que aproveite sua estadia .


— Precisamos encontrar Bob e sair daqui — digo assim que termino de ler .

Adam guarda o pan leto e os recortes de jornais sobre Oct ober O'Brien
numa gaveta da cozinha e fecha-a com irmeza, como se faze - los
desaparecer pudesse ajudar. Ainda nao tenho certeza de qual e a ligaçao
entre October e este lugar, mas ele nao consegue me olhar nos olhos.

—Eu nao queria assustar voce ...

—Eu nao estou assustada. Estou com raiva —interrompo. —E u nao


acredito em fantasmas. Alguem esta tentando nos assustar. Ainda nao sei
quem ou por que ...

—Nao acho que devamos tirar conclusoes pr ecipitadas.

—Concordo. Devıamos encontrar Bob, fazer as malas e entrar no carr o.

Estamos vestidos menos de cinco minutos depois. Depois de procurar


novamente pelo cachorro em toda a capela, nao ha mais lug ar para procurar,
exceto for a.

Agora que a neve parou de cair, e como entrar em uma pintura. O ceu mudou
de preto para cinza e depois para azul claro desde que acordei, e posso ver
muito mais do que quando chegamos no escuro na noite passada. Existem
montanhas cobertas de neve e lorestas densas ao longe. Um punhado de
nuvens brancas re lete-se na superfı cie imovel e vıtrea do vasto lago, e a
antiga capela branca parece brilhar ao sol da manha. Entao noto a torre do
sino e me lembro da noite passada. A parte da parede que desabou e
impossıvel de perder. Nao e a toa que a placa na porta dizia PERIGO .

—A dam…

—O que ?

—A parede caı da.

—E daı ?

— E se Bob de alguma forma subisse ate a torre do sino e na parede dani


icada… e caı sse?

—Entao ele estaria quebrado na nev e.

Nao gostei da maneira como ele respondeu a pergunta, mas sei que Adam
esta certo. Começamos a procurar la fora em silencio. Este e sem duvida um
dos recantos mais bonitos e intocados do mundo, mas mal posso esperar para
partir .

Nao trouxe as melhores roupas ou sapatos para este tempo. A neve esta tao
alta que nao temos escolha a nao ser atravessa-la com nossos tenis. Minhas
meias e pes icam molhados em segundos, e a metade inferior da minha calça
jeans esta encharcada e pesada com agua gelada. Estou tao preocupada com
o cachorro que mal per cebo. Vendo o local a luz do dia, podemos agora
apreciar verdadeiramente o isolamento e a escala do vasto vale em que nos
encontramos. Na o encontramos o que procuramos, mas logo descobrimos o
que aconteceu com todas as banheiras desaparecidas na propriedade. Tre s
banheiras com pes em forma de garra estao escondidas na parte de tra s e
foram preenchidas com plantas – urze, pelo que parece, em va rios tons de
rosa e rox o.

Elas nao sao as unicas descobertas inesper adas.


Nos tropeçamos em um pequeno cemiterio – como suponho que seria de
esperar atras de uma igreja antiga – com uma coleçao de lapides de
aparencia velha quase completamente escondidas pela nev e. Ha tambem
uma serie de esculturas de madeira escura espalhadas do lado de fora da
capela, pelo menos duas ou tres em todas as direço es

que olho. Coelhos esculpidos a mao que parecem saltar do cha o

congelado, uma enorme tartaruga e gigantescas corujas de madeir a,


empoleiradas nos tocos das arvores com as quais foram moldados. Todos
eles temolhos enormes, esculpidos a mao, que parecemolhar em nossa
direçao, como se estivessem tao frios e assustados quanto no s. Ate as
arvores temrostos esculpidos, por isso e impossıvel nao se sentir observ ado.

Chamo o nome de Bob repetidamente, mas depois de vint e minutos


andando em cırculos, nao sei o que fazer. Quem nao gosta de cachorro nao
entenderia, mas e tao angustiante quanto perder um ilho.

—Voce acha que alguemo levou? —Pergunto, quando parece que esgotamos
todas as outras ideias.

—Por que alguemfaria isso? —Adam diz.

—Por que alguemfaz alguma coisa?

—Quem entao? Estamos no meio do nada.

—E aquela casinha de palha pela qual passamos na pista? —Parecia v azia.

—Nao deverıamos veri icar?

Ele balança a cabeça. — Nao podemos simplesmente acusar alguem de...

— Nao, mas poderıamos pedir a ajuda deles? Eles estao muit o mais perto da
estrada principal do que nos, entao ainda podem t er energia... ou pelo menos
um telefone que possamos usar. Nao e ta o longe para caminhar. Vale a pena
tentar, nao e? Se Bob c onseguisse escapar de alguma forma, eles poderiam
te-lo vist o?

Adam nunca quis realmente ter um cachorrinho. As memorias de infancia


que ainda assombram seus sonhos o desencorajaram – compreensivelmente
– mas isso mudou quando conheceu Bob. Meu marido as vezes esconde isso
bem, mas sei que ele ama aquele cachorr o tanto quanto eu.

—Ok, vamos —diz Adam. Ele pega minha mao e eu deix o.

Algumas partes do lago estao congeladas e novamente meus pensamentos se


voltam para Bob. Ele odeia chuva, granizo, neve ou qualquer coisa que caia
do ceu, mas ama a agua – sempre pulando nos rios ou correndo no mar. Mas
certamente nosso velho e bobo cachorr o saberia icar longe de um lago
congelado. Tento nao pensar nisso enquanto caminhamos em direçao a
cabana ao longe. Exceto pelo som de nossos passos compactando a neve
fresca, o ar frio e silencioso. O

silencio pode ser assustador quando voce nao esta acostumado,

morando em Londres e trabalhando em Battersea, eu de initivament e nao


estou. As vezes ouço cachorros latindo durante o sono. Mas aqui esta tao
quieto. Anormalmente assim. Nao ha nem passaros cantando. Agora que
penso nisso, nao me lembro de ter visto nenhum.

Nao parecia tao longe quando partimos, mas levamos mais de quinze
minutos para chegar a cabana. E uma coisa minuscula, com paredes caiadas
como a capela e telhado de palha. Quase como uma casa de Hobbit. E tao
pequena e remota que nao consigo imaginar por que alguem iria querer
morar nela, mas ha um carro estacionado do lado de fora – quase
completamente escondido da vista – o que me d a esperança de que alguem
more. E um veıculo grande, talvez um v elho Land Rover. E difıcil dizer
porque esta meio enterrado pela neve. Seja o que for, tenho certeza de que
aguentara melhor do que meu carro nest e clima.

Limpo a garganta antes de bater na porta vermelha brilhant e. Estou nervosa


por algum motivo e nem tenho certeza do que vou dizer se alguemabrir .
Eu nao precisava ter me preocupado; ninguemf az.

E estranho porque eu poderia jurar que ouvi vozes enquant o subıamos o


caminho – talvez um radio, ou alguem conversando com uma criança em
voz baixa. Olho para Adam, que encolhe os ombr os, depois bato
novamente. Um pouco mais forte desta vez. Ainda nao h a resposta, nenhum
sinal ou som de vida.

—Olhe isso —diz Adam, olhando para o t elhado.

Presumo que ele esteja se referindo a palha, mas quando olho para cima,
vejo a chamine fumegante. Alguemdeve estar la dentr o.

—Talvez eles nao possam nos ouvir —diz ele. —Voce ica aqui e

eu darei uma olhada rapida nos fundos.

Ele desaparece antes que eu possa responder e ica fora por tant o tempo que
começo a me preocupar .

— Qualquer coisa? — Eu pergunto, quando ele inalment e retorna. Pode ser


apenas o frio ou minha imaginaçao, mas ele par ece mais palido do que ant
es.

—Sim e nao —diz ele.

—O que isso signi ica? So precisamos encontrar Bob.

— Esta uma bagunça nos fundos, completamente coberto de

vegetaçao e ha ate um banheiro externo. Desta vez nao ha banheir a externa,


pelo menos, mas acho que quem mora aqui deve ser velho. Na o ha outra
porta, apenas algumas janelas sujas. Eu vi uma mulher l a dentro, sentada
perto de uma fogueir a.

—O timo...
— Possivelmente nao — diz ele, interrompendo meus pensamentos positivos
com mais pensamentos negativos. — Bati na janela para chamar a atençao
dela e acho que a assust ei.

— Bem, isso e compreensıvel... duvido que ela receba muit os visitantes ate
aqui. Podemos apenas pedir desculpas. Tenho certeza que ela vai querer
ajudar assim que e xplicarmos.

—Eu nao acho. Havia velas por toda part e...

—Bem, houve um corte de energia e provavelmente esta bastant e escuro la


dentr o.

— Nao, quero dizer em todos os lugares. Centenas delas. Ela parecia uma
bruxa lançando um f eitiço.

— Nao seja idiota. Esse pan leto idiota colocou ideias bobas na sua cabeça...

—Isso nao foi tudo. Ela tinha um animal no colo.

Imagino o pobre Bob e me sinto mal. —Que tipo de animal?

—Um coelho branco, eu acho... —O alıvio inunda meu medo. P or um


momento iquei com medo do que Adam poderia dizer. —Nao tiv e muito
tempo para absorver tudo antes que ela me visse.

—E o que aconteceu quando ela fez isso?

—Ela me encarou por um longo tempo, depois foi ate a janela, ta o perto
quanto eu estou de voce agora. Ainda carregando o gordo coelho branco, se
e que era isso. Entao ela fechou as cortinas.
Robin nao puxou apenas um par de cortinas; ela fechou todas elas. Ela
tambem apagou todas as velas – eram apenas um punhado,

nao centenas, mas os homens tem predisposiçao ao exagero – e depois ica


sentada no escuro, esperando que seu coraçao pare de bater ta o rapido.
Nunca lhe ocorreu que alguem seria rude o su iciente par a invadir sua
propriedade ou andar pelos fundos sem ser con vidado, espiando pelo vidro
como se ela fosse um animal em um zoologico. As cortinas nao sao
realmente cortinas... sao lençois de segunda ma o pregados acima das
janelas. Ela percebe o tom amarelo da fumaça do cachimbo no tecido puıdo.
Costumava ser branco. Mas nao importa o que algo costumava ser, desde
que funcione. E as coisas nao pr ecisam ser bonitas para servir a um
proposito. Robin pode nao ser mais bonita, mas ela tem todo o direito de
estar aqui.

Nao como eles.

Robin costumava icar sentada no escuro, assim, quando criança, quando


estava assustada. Foi uma ocorrencia muito regular. Ela faz o que fez para
tentar se acalmar: cruza as pernas, fecha os olhos e depois se concentra na
respiraçao. Respiraçoes lentas e profundas. Dentro e
fora. Dentro e fora. Pelo menos foi so ele quem a viu, isso e motivo de
alegria.

Parece obvio agora que ela pensa sobre isso – e claro que os visitantes
viriam aqui em busca de ajuda – ela so esta irritada por que eles conseguiram
pega-la desprev enida.

Robin se pergunta o que eles devem estar pensando agor a.

Esta nao e uma situaçao normal para nenhum deles, longe disso, e ela espera
que o estresse e o medo estejam começando a cobrar seu preço. Os casais
sempre pensam que conhecem seus parceiros melhor

do que ninguem – especialmente quando ja tem alguns anos de

experiencia – mas isso nao signi ica que isso seja verdade. Robin sabe coisas
sobre os dois que ela tem certeza de que eles nao sabem um do outr o.

Ela o viu olhando para o coelho em seu colo, com uma mistura de

horror e desgosto no rosto. Mas o coelho Oscar e seu u nico

companheiro atualmente. Como ela, ele e uma criatura de habitos e sempre


tende a pular na poltrona depois do cafe da manha com gr ama, vegetais
frescos ou – quando chega a neve – potes de comida para beb e em lata. Pelo
menos ele e real, ao contrario dos personagens que A dam Wright inventa
dentro de sua cabeça e com os quais passa todo o tempo. O Sr. Wright as
vezes esta errado. Robin nao sera julgada por essas pessoas.

Ela rasteja em direçao a frente da casa de quatro, evitando as janelas. Ela


precisa saber se os visitantes ja partiram... ha tanta coisa para fazer e tao
pouco tempo. Mas eles nao o izeram. Perdidos. Enta o ela desliza para baixo
e se senta com a orelha encostada na caixa de correio lacrada, ainda
segurando o coelho, acariciando seu pelo. E surreal ouvi-los falando dela do
outro lado da porta. Eles podem na o saber quem ela e, mas Robin sabe
quem eles sao. A inal, ela os con vidou para vir aqui, mesmo que eles ainda
nao tenham per cebido.

Eles irao em brev e.

—Devıamos tentar bater de novo — digo.

— Nao acho que seja uma boa ideia — responde Adam. — Ela parecia uma
maluca.

— Shhh! Ela provavelmente pode ouvir voce, este lugar nao t em vidros
duplos. Como voce sabe que era uma mulher?

Ele da de ombros. —Cabelo longo?

As vezes, a incapacidade de Adam de reconhecer caracterı sticas faciais e


mais irritante do que outr as.

—Se for uma mulher —digo. —Entao talvez eu deva tentar f alar com ela.
Nao vejo nenhum outra casa por perto, ela pode ser a u nica que pode nos
ajudar .

—E se ela nao quiser nos ajudar? —Adam sussurr a.

Ja estou congelando, mas sinto mais frio do que antes quando ele diz isso.
Penso nos recortes de jornal de October O'Brien que ele encontrou en iados
em uma das gavetas da cozinha da capela e me sinto mal. Ja faz muito
tempo, mas Adam trabalhou com a atriz antes do que aconteceu, aconteceu,
e as vezes ainda me pergunt o...

—Voce acha que ela pode ser quem voce viu pela janela ontem a noite? —
Ele sussurr a.

Dou de ombros e isso se transforma em um arrepio. Um pouco aliviada


porque pelo menos ele acredita em mim agora. — Nao sei. Voce ?

— Como eu iria saber? Eu nao vi o que voce viu, e nos dois sabemos que eu
nao seria capaz de reconhece-los novamente, mesmo que o izesse.

— Bem, a pessoa que voce viu agora era gorda ou magra? V elho ou jov
em?

—Estatura mediana, eu acho, ela tinha longos cabelos grisalhos. —Entao, v


elha?

—Talv ez.

—Eu me pergunto se ela e a gov ernanta?

—Se ela for, ela e ruim.

—Alguemescreveu essas notas para nos encontrarmos —lembr o a ele.

— As governantas nao limpam as coisas? Pelo que vi pela j anela, ela nao
parece saber usar um espanador. Ela pode ter uma vassour a... para voar a
noit e...

—Este nao e o momento para fazer piadas.

—Quem disse que estou brincando? Voce nao viu o que eu vi com todas
aquelas velas e o coelho branco no colo dela como se ela estiv esse

lançando um feitiço. Ja temos problemas su icientes agora sem


incomodar a bruxa local.

As vezes, ter uma imaginaçao hiperativa e uma maldiçao. P ego meu celular
e o seguro para ver que ainda nao tenho sinal. A dam observa e depois faz o
mesmo com o dele.

— Qualquer coisa? — Eu pergunto, olhando por cima do ombr o. Mas ele


balança a cabeça e coloca o telefone de volta no bolso antes que eu veja a t
ela.

— Nem mesmo uma barra. Por que nao subimos ate o t opo

daquela colina? Acho que consigo ver uma trilha —diz ele, apontando para o
que me parece ser uma pequena montanha. —Um de nos pode conseguir um
sinal la em cima, e se nao conseguir, pelo menos ter emos uma visao de todo
o vale. Se houver outras casas, ou pessoas, ou mesmo uma estrada
movimentada onde possamos sinalizar para algue m, poderemos ver .

Nao e uma ideia completamente maluca.

—Ok. Isso soa como um bom plano. Ainda vou escrever uma nota rapida, so
para garantir .

Procuro uma caneta na bolsa e encontro um envelope velho par a rabiscar .

Desculpe incomodá-lo, não queríamos nos intrometer. Est amos hospedados


na Capela Blackwater. Não há telefone na propriedade, nem energia devido à
tempestade, nem água graças aos canos congelados, e não há sinal de celular.
Se você tiver um telefone que possamos emprestar, icaremos muito gratos e
prometeremos reembolsá-lo pe la ligação. Perdemos nosso cachorro. Se você
o vir, o nome dele é Bob e estamos oferecendo uma recompensa generosa
por seu retorno segur o.

Muito obrig ada,

Ame lia
Mostro o bilhete para A dam.

—Por que voce adicionou aquela parte sobre a r ecompensa?

—Para o caso de ela ser uma bruxa e querer transformar Bob em um coelho
tambem—sussurro, antes de tentar en iar o bilhete na caix a de correio.
Parece que esta lacrada, entao deslizo o envelope por baix o

da porta. Ouço um barulho e dou um passo rapido para tras. —V enha, v


amos.

—Qual e a pressa? —Adam per gunta.

Observo enquanto ele sauda um melro, para o caso de ser uma pega. E um
de seus muitos habitos supersticiosos que muitas vezes me fazem ama-lo e
odia-lo ao mesmo tempo. A ideia de que deixar de saudar uma pega resultara
em azar esperando por voce na pro xima esquina e um mito em que minha
mente logica nunca acreditou. Mas ele acredita. Porque a mae dele fez.
Dadas as nossas circunstancias atuais, talvez eu deva começar a saudar
tambe m.

— Eu ouvi algo — eu sussurro, quando estamos um pouco mais longe. —


Acho que ela estava do outro lado da porta o tempo todo que icamos
conversando. O que signi ica que ela ouviu cada palavr a.
Robin ouviu cada palavr a.

Ela le o bilhete que a mulher empurrou por baixo da porta, depois o enrola
ate formar uma bola antes de joga-lo no f ogo.

Robin nao e uma bruxa – nao que ela se importe com o que eles pensam –
mas francamente foi chamada de muito pior. E daı se ela na o

mantiver a casa impecavelmente limpa? A casa e dela e como ela

escolhe viver e problema dela. Algumas pessoas pensam que o dinheir o e a


resposta para todos os problemas da vida, mas estao erradas, a s

vezes o dinheiro e a causa deles. Algumas pessoas pensam que o

dinheiro pode comprar amor, ou felicidade, ou ate mesmo outr as

pessoas. Mas Robin nao sera comprada. Tudo o que ela tem agora e dela. Ela
ganhou, ou encontrou, ou fez tudo sozinha. Ela nao pr ecisa nem quer o
dinheiro, as coisas ou as opiniões de ninguem. Robin pode cuidar de Robin.
Alem disso, esta casa pode nao parecer grande coisa, mas era um lugar para
onde ela costumava fugir quando criança. Assim como sua mae antes dela.
As vezes, a casa e mais uma memoria do que um lugar .

Os comentarios sobre sua aparencia pessoal doeram um pouco, mais do que


deveriam. Mas hoje em dia os xingamentos nao doem mais

do que urtigas, e a irritaçao inicial logo desaparece. Alem disso, ser


considerada uma mulher idosa a diverte em alguns aspectos. So por que o
cabelo dela icou grisalho, nao signi ica que Robin seja velha. Ela diz a

si mesma que ele nao sabe do que esta falando – o homem na o

consegue nem reconhecer seu proprio re lexo. Mas embora a v aidade nunca
tenha sido uma de suas qualidades, isso nao signi ica que ela esteja imune a
insult os.

Ela arruma um pouco a si mesma e ao lugar – porque quer, na o por causa do


que ele disse – e depois puxa cuidadosamente a ponta da cortina de lençol,
para veri icar se os visitantes ainda nao esta o espreitando do lado de fora.
Ela ica satisfeita ao ver que eles ja estao na metade da colina. Fora do
caminho e ao alcance da v oz.

Agora que ela tem certeza de que eles nao podem ver ou ou vir mais nada
que nao deveriam, Robin se senta na velha cadeira de cour o e acende seu
cachimbo. Ela so precisa de uma coisinha para se acalmar e acalmar os
nervos, e esta e a ultima chance que ela tera de fumar. Os unicos visitantes
com os quais ela esta acostumada atualmente sa o Patrick, o carteiro – que
sabe que nao deve bater ou dizer ola – e Ew an, o fazendeiro local que
pastoreia suas ovelhas nas terras ao redor do Lago Blackwater. Ele as vezes
aparece com leite ou ovos para agr adecer – ela deixa os animais se
alimentarem de graça e entende que a agricultura se tornou um negocio
difıcil. Ele tambemconta a ela tr echos de fofocas sobre varios personagens
da cidade – nao que Robin queir a saber – mas a maioria das pessoas ica
longe.

Porque todos os moradores locais conhecem as historias sobre a Capela


Blackwater .
Robin olha pela janela para ver como estao os visitantes uma ultima vez.
Eles estao perto do topo da colina agora, entao e seguro sair . Ela veste o
casaco e Oscar olha para ela. Alguns anos atras, Robin t eria pensado que um
coelho domestico era uma ideia ridıcula, mas acont ece que eles sao
companheiros surpreendentemente bons. Robin en ia uma coleira de couro
vermelho no bolso e segue sozinha em direçao a capela. Ela sabe o que
aconteceu com o cachorro dos visitantes por que ela o levou. Mas Robin nao
se sente nem um pouco culpada por isso,

embora ela mesma ja tivesse um cachorro, e sabe o quanto eles dev em estar
chat eados.

Pessoas mas merecem as coisas ruins que acontecem com elas.

FERR O

Palavra do ano :

Encantado adjetivo. Sentir-se feliz ou muit o satisfeito .

28 de fevereiro de 2014 – nosso sexto aniversári o Prezado Adam ,

Este foi um bom ano para nós dois, não foi? Voc ê estava feliz, o que me
deixou feliz, como se foss e

contagioso. Henry Winter pediu que você adapta sse

outro de seus livros para o cinema – um mistério d e assassinato com uma


pitada de terror desta vez ,

chamado The Black House – e as coisas parece m

estar caminhando na direção certa também com seu s próprios roteiros, com
RockPaperScissorsagora e m pré-produção !

Devemos agradecer a October O'Brien por isso .


Ter uma atriz de primeira linha a bordo não apena s ajudou a abrir portas
para seus próprios projeto s

em Hollywood, mas também atraiu a atenção de u m grande produtor,


alguém em quem você confia. Você s

três passaram muito tempo juntos este ano, e voc ê desapareceu para Los
Angeles com eles mais d e uma vez, não que eu me importe. Além disso ,

graças a October, acabamos de celebrar um do s nossos melhores


aniversários de sempre .

Eu disse a ela que nunca estivemos fora no no sso aniversário porque você
está sempre muito ocupad o

trabalhando – é verdade – e foi então que el a

sugeriu que celebrássemos nosso sexto aniversário e m grande estilo em sua


villa francesa. Foi muito gentil , especialmente quando ela passou por
momentos tã o

horríveis ultimamente. A imprensa descobriu um a

multa por excesso de velocidade, uma entre muita s. O rosto bonito de


October – e o carro caríssimo – apareceu nos jornais pelos motivos errados.
Octobe r

adora dirigir carros velozes, mas agora ela tem qu e ir a tribunal e por causa
de todas as infraçõe s

anteriores, parece que ela pode perder sua carteir a de motorista .

A travessia do Eurotúnel foi muito mais rápid a

do que eu imaginava. Entramos no trem e pouco mai s de trinta minutos


depois estávamos em Calais, com o
num passe de mágica. Bob usou seu passaporte d e animal de estimação pela
primeira vez e foi muit o

fácil viajar com um cachorro. Vi uma mulhe r

atravessando o canal com um coelho no banco d o

passageiro do carro. Ele usava um pequeno arnê s vermelho e andava na


coleira, eu nunca tinha vist o nada igual !

Passamos por Paris – eu queria ver Notre Dam e – depois do almoço, num
pequeno café às margen s

do rio Sena, passeamos pelos – Bouquinistes d e

Paris – e os livreiros de Paris não decepcionaram . Cada um tinha sua


própria exposição de livros d e segunda mão – centenas deles – sob um mar
de

cabanas com telhados verdes ao longo do caminho a o longo do rio.


Exatamente como seus antecessore s

vinham fazendo há centenas de ano s.

Você estava em seu elemento .

— Você sabia que essas livrarias fora m

declaradas Patrimônio Mundial da UNESCO em 1991 ? — Você disse,


parando para literalmente cheirar o s

livros. É algo que você sempre faz, embora eu tenh a achado um pouco
peculiar, agora acho cativante .

Adoro a maneira como você pega um livro nas mão s, virando as páginas
com cuidado, como se o pape l
fosse feito de ouro, depois cheira-os, como se pudesse respirar a história .

— Eu não sabia disso — respondi, já tend o

ouvido você contar essa história várias vezes antes .

Isso é uma coisa engraçada sobre o casament o que ninguém menciona. As


pessoas pensam qu e

quando um casal fica sem histórias para contar u m ao outro, o tempo deles
acaba. Eu poderia ouvir sua s histórias o dia todo, mesmo as que já ouvi,
porqu e

cada vez que você conta uma história é um pouc o diferente. Ninguém sabe
tudo sobre outra pessoa , não importa há quanto tempo estão juntos, mas se
você sentir que sabe demais, algo está errado .

— Dizem que o rio Sena é o único rio do mund o que corre entre duas
estantes de livros — voc ê

disse, e segurou minha mão .

— Gosto disso — respondi, porque gostei. E u ainda gosto .

— Eu gosto de você — você respondeu, então m e beijou .

Faz anos que não nos beijamos em público assim . No início, fiquei
constrangida – não tinha certeza se conseguia me lembrar como – mas
depois cedi à

ideia de sermos nós mesmos novamente. As pessoa s que éramos. Viajamos


no tempo até o momento em qu e eu era a garota com quem você queria se
casar e

você era o homem que eu esperava que pude sse convidar .


October nos emprestou sua casa francesa e m Champagne enquanto ela
filmava outro filme n a

América. Ela tem quatro casas diferentes espalhada s pelo mundo. Talvez
seja por isso que ela é tão bo a

em mudar o sotaque e a aparência. A casa dela n a França fica a vinte


minutos a pé da Moët &

Chandon, na Avenue de Champagne – que tenh o

certeza de ser o melhor endereço que já ouvi – e posso entender por que ela
gosta mais de mora r aqui do que em Londres ou Dublin. Sinto qu e

estamos na Disneylândia para os amantes do vinho . A avenida principal é


um paraíso de paralelepípedo s para quem gosta de uma taça de espumante.
Castelo s elegantes alinham-se nas ruas de ambos os lados ,

cada um de propriedade dos produtores de vinh o

mais antigos e conhecidos do mundo. A cidade em si está repleta de


restaurantes premiados e pequeno s

bares fofos, todos servindo champanhe como se fosse limonada .

O refúgio francês da sua atriz favorita tem a

localização perfeita: perto o suficiente para caminha r até o centro da cidade,


mas longe o suficiente par a nos sentirmos no campo, com vistas
deslumbrante s

dos vinhedos e do vale abaixo. O edifício já foi um a pequena e abandonada


antiga vinícola independente .

Agora é uma casa luxuosa, toda com vigas d e

madeira e grandes janelas de vidro. Moderna, ma s com características


originais suficientes para que se sinta em casa. Nada mal para uma mulher
co m

menos de trinta anos. Ela parece ter pegado o víru s da reforma e já está de
olho em outro imóve l

abandonado que quer transformar, segundo você. E m algum lugar um pouco


mais remoto .

Chegamos tarde, então depois de um jantar d e camembert cozido, geleia e


pão francês fresco ,

acompanhado de uma garrafa de champanhe – be m claro – foi direto para a


cama .

— Feliz aniversário — você disse na manh ã seguinte, me beijando para me


acordar .

A princípio eu não tinha certeza de onde estava , mas depois relaxei quando
vi a vista deslumbrant e

do quarto de hóspedes: nada além de céu azul, sol e vinhedos. Você sorriu
quando me deu meu presente e pareceu bastante satisfeito consigo mesmo.
Sinto muit o se pareci um pouco desapontada quando o abri. E u

ainda estava meio adormecida e não esperava qu e você me desse um


marcador. Não me interprete m mal, no que diz respeito aos marcadores, é
muit o

bonito: feito de ferro para representar o nosso sext o ano e gravado :

FERRO QUE ESTÁ FELIZ POR TER CASAD O COM VOCÊ .

Você parecia achar isso hilário .

— Estou muito encantado por você adorar ler tant o quanto eu hoje em dia
— você disse. — É bo m
passar uma noite com alguns livros e uma garraf a de alguma coisa boa em
frente ao fogo, não é ?

— Ninguém com menos de setenta anos usa mai s a palavra encantado —


respondi .

É verdade: leio tanto quanto você hoje em dia. Qu e escolha eu tenho? Ou é


lido junto ou sozinho .

Dei-lhe o seu presente: uma chave de ferr o vintage muito elaborada. Você
parecia tã o

impressionado quanto eu provavelmente alguns minuto s antes, e decidi que


talvez precisássemos melhora r

nossas escolhas de compra de presente s.

— O que isso abre? — Você perguntou .

— Um segredo — eu disse, enfiei a mão debaix o dos lençóis branco s.

Acho que você vai se lembrar do que fizemo s

então, duas vezes, no quarto de October O'Brien. Fo i o melhor sexo que


tivemos em muito tempo. Havi a

várias fotos da nossa adorável anfitriã pendurada s nas paredes: October


ganhando um Bafta, o u

posando com membros da família real para o

trabalho de caridade que ela faz, ou sorrindo co m outras jovens e lindas


celebridades de Hollywoo d

que eu provavelmente deveria conhecer os nomes, ma s não faço. Eu tive


que me virar a certa altura ,
preocupada que ela estivesse nos observando .

Eu me odeio por pensar isso, mas espero qu e

tenha sido eu que você estava imaginando na cam a dela .

Fiquei de olho no lugar enquanto você tomav a

banho. Quem não gostaria? Havia lemas inspiradore s espalhados, incluindo


uma impressão emoldurada qu e dizia:
VOCÊCONSEGUEOQUETRABALHA ,

NÃOOQUEDESEJAe – meu favorito – SEJ A


APESSOAQUESEUCÃOPENSAQUEVOCÊÉ .

Eu não sabia que ela tinha um. Havia també m

alguma correspondência fechada no capacho, e doi s

dos envelopes que peguei estavam endereçados a u m certo R. O'Brien .

— Eu não sabia que October era casada — e u disse, colocando o envelope


na penteadeira e dand o uma olhada rápida em suas gaveta s.

— Ela não é — você respondeu do banheiro . — Então quem é R. O’Brien ?

— O quê? — Você perguntou, gritando acima d o som do chuveiro .

— Essas cartas são todas endereçadas a algué m chamado R. O'Brien .

— October é apenas o nome artístico dela. I sso

ajuda a manter a vida privada dela privada — voc ê disse. — Ainda bem que
a imprensa às vezes va i

atrás dela. Aquela história da multa por excesso d e velocidade e todas as


manchetes que ela gerou, voc ê

pensaria que ela matou alguém. — Então voc ê

imediatamente mudou de assunto e fiquei feliz ,

porque queria que esse tempo fora fosse só sobr e nós. Somente nó s.

Eu te dei essa chave de ferro porque quero t e contar a verdade sobre tudo.
Tudo isso. Estamo s

muito felizes no momento e não quero mais que haj a segredos entre nós.
Mas quando você a desembrulho u

e segurou a chave de tudo em suas mãos, alg o

parecia errado. Por que arruinar o nosso presente o u comprometer o nosso


futuro com o meu passado ?

Melhor nos deixar viver mais um pouco essa nos sa versão feliz .

Todo meu amor ,

Sua espo sa

xx
Eu me cuido melhor do que minha esposa, ela passa muito t empo cuidando
dos outros. Quando chegamos ao topo da colina, ela esta com o rosto
vermelho e um pouco sem folego. Eu poderia ter facilitado as coisas, talvez
ter ido um pouco mais devagar, mas queria levar nos dois para o mais longe
possıvel daquele chale o mais rapido possıv el.

—Nao consigo ver nada —diz ela.

—Isso porque nao ha nada para ver .

A rigor, nenhuma dessas coisas e ver dade.

Daqui de cima ha uma visao completa de trezentos e ses senta graus do vale
– exatamente como previ que haveria – com apenas

montanhas nevadas e areas selvagens ate onde a vista alcança. E

impressionante, mas a vista de outra casa, ou de um posto de g asolina, ou de


uma cabine telefonica, poderia ter sido preferıvel, dadas as circunstancias.
Uma paisagem linda, mas arida, era exatamente o que eu temia: nenhum
lugar para correr. Ou se esconder. Estamos completamente isolados.
Eu vi algo, no entant o.

De volta a casa de campo.

Isso tem me incomodado desde enta o.

Nao reconheci a mulher – nunca reconheci ninguem, mas tive uma estranha
sensaçao de deja vu. Tento guarda-la em um dos cantos mais escuros da
minha mente – fora da vista –, em vez disso, olho para minha esposa. Ela
esta de costas para mim, ocupada apreciando a vista do vale. Posso dizer que
ela esta tentando recuperar o folego e org anizar seus pensamentos, ambos
parecem ter escapado dela. Eu gostaria de poder ver minha esposa como as
outras pessoas veem. Reconheço o formato do corpo de Amelia, o
comprimento e o estilo do seu cabelo. Conheço o cheiro do seu shampoo, do
seu creme hidratante e do perfume que dou a ela nos aniversarios ou no
Natal. Conheço sua v oz, suas peculiaridades e maneirismos.

Mas quando olho para o rosto dela, posso estar olhando par a qualquer
pessoa.

Li um thriller sobre uma mulher com prosopagnosia no ano passado. Fiquei


genuinamente entusiasmado no inıcio... nao se escrev eu muito sobre a
cegueira facial. Achei que poderia ser uma boa pr emissa e dar um bom
drama de TV, alem de ajudar a aumentar a conscientizaçao sobre a doença,
mas infelizmente nao. A escrita foi ta o decepcionante e medıocre quanto o
enredo, e recusei o trabalho. P asso tanto tempo reescrevendo as historias de
outras pessoas que gostaria de ser melhor reescrevendo as minhas.

As vezes penso que deveria ter sido um autor. As palavras de um autor sao
tratadas como ouro, sao intocaveis e vivem felizes par a sempre dentro de
seus livros – mesmo os ruins. As palavras de um roteirista sao, em
comparaçao, jujubas; se um executivo nao gosta delas, eles as mastigam e
cospem fora. Junto com quem as escrev eu. Minha propria experiencia na
vida real teria sido um thriller melhor do que aquele. Imagine nao ser capaz
de reconhecer sua esposa, ou seu melhor amigo, ou a pessoa responsavel
pelo assassinato de sua ma e bem na sua frente quando criança.
Minha mae foi quem me ensinou a ler e a me apaixonar pelas historias.
Devorarıamos juntos os romances da biblioteca do apartamento municipal
onde cresci, e ela disse que os livros me levariam a qualquer lugar se eu
deixasse. Mentiras gentis sao primas das mentiras brancas. Ela tambem disse
que meus olhos icav am quadrados por causa de toda a TV que eu insistia
em assistir, mas quando nosso velha TV quebrou, minha mae vendeu todas
as suas joias – exceto seu amado anel de sa ira – na loja de penhores para me
comprar outra. Ela sabia que os personagens que eu amava em livr os, ilmes
e programas de TV preenchiam as lacunas deixadas pela famı lia ausente e
pelos amigos inexistentes quando eu era criança.

Ve-la morrer sempre sera a pior coisa que ja aconteceu comigo.

— O que e que devemos fazer agora? — Amelia perg unta,

interrompendo meus pensament os.

Foi uma subida longa e ıngreme ate ao topo desta colina, ambos estamos mal
vestidos para a caminhada e para o clima, parece que f oi tudo em vao.
Nenhum de nos tem sinal em nossos telefones, mesmo aqui. Nao ha sinal de
Bob ou qualquer forma de pedir ajuda. Posso ver a capela ao longe, e ela
parece muito menor do que antes. Menos ameaçadora. O ceu, por outro lado,
escureceu desde que saımos. As nuvens parecem determinadas a bloquear o
sol e Amelia est a tremendo. Estava tudo bem quando estavamos em
movimento, mas tambem sinto frio desde que paramos e sei que nao
devemos icar parados por muito t empo.

Ao chegar ao topo de uma colina, muitas vezes voce pode olhar para tras e
ver todo o caminho que percorreu para fazer a jornada. Mas enquanto voce
esta no caminho, as vezes e impossıvel ver para onde esta indo ou onde
esteve. Parece uma metafora para a vida, eu icaria tentado a escrever o
pensamento se nao estivesse com tanto frio. Dou uma ultima olhada ao
redor, mas alem da capela e da cabana, nao h a realmente nada para ver,
exceto uma paisagem coberta de neve por quilometros em todas as direço es.

—Acho que realmente estamos no meio do nada — digo.


— Estou congelando — ela responde com os dentes batendo. — Pobre Bob.

Tiro minha jaqueta e a enrolo. — Venha, vamos. Acenderemos o fogo


quando voltarmos, nos aqueceremos e bolaremos outro plano. Sera mais
facil descer .

Estou errado sobre isso.

O chao parece ainda mais escorregadio agora do que na su bida, uma


combinaçao de neve e gelo torna o nosso progresso lento. O ce u lamacento
ica com um tom mais escuro de cinza, embora nos dois façamos um bom
trabalho ingindo nao notar as primeiras gotas de granizo, segundos depois e
impossıvel ignora-las. Nossas roupas na o foram projetadas para resistir ao
inverno extremo, e nos tambemnao. O vento sopra granizo sobre nos de
todas as direçoes, em poucos minut os estamos ambos encharcados. Ate eu
estou tremendo agor a.

Justamente quando penso que as coisas nao podem piorar – em termos de


clima – o gelo se transforma em granizo, caindo do ceu como balas. Prevejo
que ambos estaremos cobertos de hematomas quando voltarmos. Se
voltarmos. Sempre que me atrevo a olhar para cima, arriscando icar com o
rosto cheio de minusculas bolinhas de gelo, percebo que nao parecemos estar
descendo a colina. A capela ainda parece pequena e muito distant e.

O bombardeio de cima diminui e o granizo se transforma em nev e.

—Vamos tentar progredir um pouco mais enquanto podemos — digo,


estendendo a mao para ajudar Amelia a descer de uma parte a outra do
caminho rochoso. Mas ela nao pega minha ma o.

—Posso ver alguem—diz ela, olhando para longe.

Protejo os olhos, examino o vale abaixo, mas nao vejo nada. — Onde?

— Indo para a capela — sussurra Amelia, como se pude ssem ouvi-la do que
ainda deve estar a mais de um quilometro de dista ncia.
Com certeza, vejo a forma de uma pessoa subindo os degraus da capela.

Procuro a chave gigante com a qual tranquei as velhas portas de madeira


antes de sairmos e começo a relaxar quando a encontro no bolso. Mas minha
breve sensação de conforto evapora quando observo a igura sombria abrir as
portas e desaparecer lá dentro. Tenho certeza de que devo ter imaginado isso
– embora seja difı ́cil ter certeza de alguma coisa desta distância, mas parecia
que estava usando um quimono vermelho. Igualzinho ao que minha mãe
costumava usar quando convidava... amigos para icar. Tento Control-Alt-
Delete o pensamento, como sempre, mas as chaves em minha mente icam
presas. Posso ter imaginado o que estava vestindo, mas alguém acabou de
entrar na capela. Mesmo que eu descesse a colina correndo e conseguisse
não escorregar no gelo ou cair na neve, acho que levaria pelo menos vinte
minutos para voltar lá e confrontar quem acabou de entrar.

— Diga-me como acabamos icando neste lugar de novo — eu digo, com


uma voz trêmula que soa como uma imitação pobre da minha.

—Eu já te disse. Ganhei o im de semana fora no sorteio de Natal dos


funcioná rios.

—E você descobriu quando recebeu um e-mail?

— Sim.

—E o e-mail era de…?

—A governanta. Eu já te disse.

— Alguém mais que você conhece no trabalho ganhou algo semelhante?

— Nina ganhou uma caixa de chocolates Quality Street, mas comprou vinte
rifas, então com certeza ganharia alguma coisa.

— Quantos bilhetes de rifa você comprou? — Eu pergunto, j á temendo a


resposta.
—Apenas um.

Robin nao leva muito tempo para caminhar do chale ate a capela. Oscar
parecia muito triste quando ela o deixou para tras, suas

grandes orelhas brancas e caıdas pareciam cair ainda mais do que o normal.
Robin precisava desesperadamente de algum conforto e companhia quando
chegou a Blackwater, e Oscar parecia um bom nome para o companheiro
que encontrou. Robin sempre gostou muit o daquelas solidas estatuas de
bronze que a industria cinematogra ica distribuıa uma vez por ano. Seu unico
Oscar pode ser um coelho, mas ela o ama.

Ela avistou os visitantes no mirante no topo do morro ao longe e sabia que


tinha pelo menos meia hora para fazer tudo o que precisav a. Eles nao
conseguiriam voltar a tempo de dete-la, mesmo que tentassem. Ao contrario
deles, ela tem equipamentos adequados para o inverno. Mesmo que as botas
emprestadas sejam muito grandes, elas ainda sao melhores do que os tenis da
moda para caminhadas em colinas e campos cobertos de nev e.

Ela para do lado de fora da capela brevemente antes de entrar , parando um


momento para olhar para os vitrais e para o pequeno campanario branco
situado no topo do edifıcio. Com o lago e as

montanhas ao fundo, e como olhar uma pintura. Ela percebe que est a aqui
ha muito tempo em mais de um aspecto; uma pessoa pode se tornar imune a
beleza quando exposta a ela com muita freque ncia. Quando Robin entra, o
vento tambementra, soprando no ar uma nuv em de partıculas de poeira
disfarçadas de neve. Ela se diverte com o fato de os visitantes pensarem que
ela e a governanta. Nao e por isso que ela tem uma chav e.

Robin tira as botas na sala de bagagens – o lugar pode estar imundo, mas nao
ha necessidade de piorar as coisas – e depois vai ate a cozinha. Suas meias
tem mais buracos do que um par de meia arrasta o, mas nao desperdice, nao
queira. A capela esta ainda mais fria que o normal e ja cheira diferente de
antes de eles chegarem. Vestıgios do cachorro, junto com o perfume
avassalador da mulher, agora permeiam o ar viciado.

Ela corre para a sala que mais parece uma biblioteca, depois tira a luva da
mao direita e passa os dedos pelas lombadas dos livros que se alinham nas
estantes. Ela faz isso toda vez que vem aqui, da mesma forma que algumas
pessoas nao resistem a tocar nas pontas do trigo no campo. Ela percebe um
leve cheiro de fumaça e ve que os visitant es queimaram todas as toras que
ela deixou para eles na noite anterior . Nao que isso importe agora. Pelo
menos, nao para ela. Isso pode ser importante para eles mais tar de.

Quando ela se agarra ao corrimao da escada em espiral, um milhao de


lembranças indesejadas inundam sua mente, afogando sua coragem e
turvando sua concentraça o.

Seu foco determina seu futur o.

Robin gosta bastante de lemas inspiradores como esses. Ela repete as


palavras para si mesma ate que seus pensamentos iquem irmes novamente,
entao sobe as escadas barulhentas, ignorando os rostos que faltam entre as
fotos emolduradas na par ede.

A cama onde os visitantes dormiram na noite passada nao f oi feita. Ainda


parece estranho deixa-los dormir aqui. Mas nao demor a muito para que
Robin ajeite os lençois, endireite o edredom e ajeite os

travesseiros. E o mınimo que ela pode fazer: se os visitantes ainda estiverem


aqui esta noite – e estarao – eles precisarao descansar. Aı ela olha dentro das
malas e estuda as coisas, porque pode e porque quer .

Ela começa no banheiro. Robin encontra o shampoo da mulher , cheira-o


antes de jogar o conteudo na pia. Ver as escovas de dente r osa e azul lado a
lado provoca outra onda de irritaçao, entao ela pega as duas e as usa para
limpar o vaso sanitario. Ela esfrega com tanta for ça que as cerdas parecem
achatadas. Entao ela coloca tudo de volta como encontr ou.

Os potes de creme facial deixados no parapeito da janela par ecem caros,


entao Robin aplica um pouco nas proprias bochechas. Ja faz um tempo que
sua rotina de cuidados com a pele consistia em algo alem de uma lanela
molhada uma vez por dia, e o hidratante e tao gostoso que ela decide mante-
lo, guardando o pote no bolso. Ela volta para o quart o e da uma ultima
olhada ao redor, percebendo que a gaveta de uma das mesas de cabeceira
esta ligeiramente aberta. Ela olha mais de pert o, esperando que algo tenha
sido deixado la dentr o.

A forma como algumas pessoas con iam cegamente nos outr os sempre
deixou Robin perplexa. Pelo menos um dos visitant es acreditava que vinha
passar um im de semana fora e que a Capela Blackwater era algum tipo de
aluguel para temporada. Nao e e nunca sera. Pelo menos nao enquanto ela
estiver viv a.

Quando Robin pensa nas propriedades em que as pessoas pag am grandes


quantias de dinheiro para icar: hoteis, Airbnbs, casas de campo caras a beira-
mar, ela nao consegue deixar de pensar em t odas as outras centenas de
estranhos que dormiram nos mesmos lenço is, bebados desde o inıcio.
mesmos copos, ou coco no mesmo banheir o antes. Todas aquelas pessoas,
usando os mesmos codigos de acesso todos os dias de mudança – maos
diferentes colocando as mesmas chaves em bolsos diferentes uma vez por
semana. As fechadur as raramente sao trocadas, mesmo quando as chaves
dos imoveis alug ados sao perdidas, entao quem sabe quantas pessoas podem
realmente t er

uma copia. Qualquer pessoa que ja tenha icado la pode voltar a

qualquer momento e entrar .

Ela encontra uma carteira na gaveta. Parece estranho que o homem a tenha
deixado para tras, mas os donos de animais agem de forma estranha quando
preocupados com seus animais de estimaça o. Robin pode entender isso. Ela
tira os cartoes de credito da carteira, um por um, esfregando o polegar no
nome em relevo. Entao ela encontr a um formato de papel amassado entre as
dobras de couro. Ela o segur a contra a luz e ve que e um grou de origami.
Esta um pouco queimado nas bordas, mas Robin sabe que os grous
supostamente trazem boa sorte, e o fato de ele carrega-lo na carteira faz com
que ela o odeie um pouco menos. Ela coloca todo o resto como o encontr ou.

Ha um inalador na gaveta do outro lado da cama. Robin coloca na boca e da


uma tragada, mas nao e tao satisfatorio quanto seu cachimbo. Ela expele o
resto do conteudo no ar e leva consigo o inalador v azio, junto com os
comprimidos para dormir prescritos que encontr ou. Depois de uma rapida
viagem ate a torre para tocar o sino da capela, Robin volta para dentro para
terminar o que começou.

Adam começa a descer a colina correndo em direçao a capela, mas nao


consigo acompanha -lo.
Ele tem estado um pouco preocupado com sua propria saude e preparo fısico
recentemente e começou a tomar vitaminas e suplementos, o que e novidade.
Sua obsessao por correr pelo menos duas vezes por semana inalmente esta
dando resultado, e eu digo a ele para nao esperar; quanto mais cedo um de
nos voltar, melhor. Continuo tendo que parar para recuperar o folego.
Esqueci de trazer meu inalador – deixando-o tolamente ao lado da cama, em
panico par a encontrar Bob –, mas sei que icarei bem, desde que tome meu
tempo e tente manter a calma.

Parece mais facil na minha cabeça do que na r ealidade.

Se nos dois nao tivessemos visto alguem entrando na capela, eu poderia ter
pensado que estava imaginando. Mas foi real. Talvez seja a governanta
misteriosa? Vindo veri icar se estamos bem depois da tempestade? Digo a
mim mesma que quem quer que seja podera nos ajudar. E quero. Porque
nenhuma das outras possibilidades de audiça o dentro da minha mente e boa.
Quando chego a trilha coberta de neve no sope da colina, ico aliviada por
estar novamente em uma superfı cie

plana. A vantagem de Adam aumentou. Ele nao esta longe da capela agora,
entao corro o mais rapido que posso, tentando alcança -lo.

Paro quando o sino da torre começa a tocar .

A neve bate em meu rosto. Nao vi Adam entrar, mas ele deve t er visto,
porque quando olho para cima, protegendo meus olhos da nevasca
implacavel, ele desapareceu. Ele tocou o sino? Lembr o-me antes, quando
Adam disse que as portas principais eram a u nica entrada e saıda da capela.
Nao vi ninguemsair, o que signi ica que quem

quer que vimos entrar ainda esta la. Qualquer coisa pode estar

acontecendo. A ultima tempestade de neve parece ter deixado o mundo preto


e branco. Mal consigo ver minha propria mao quando a seguro na frente do
rosto. Tento correr mais rapido, mas continuo correndo e meu peito começa
a doer. Meu coraçao esta batendo muito rapido e minha respiraçao esta
muito super icial. Minha ansiedade piora sabendo que mesmo em uma
emergencia medica nao temos como pedir ajuda.

Quando inalmente chego as enormes portas da capela, na o preciso me


preocupar em bater – elas estao abertas e o chao da sala de

bagagens esta coberto de neve. Vejo um par de botas Wellingt on

grandes e desconhecidas ao lado do antigo banco da igreja e per cebo que


alguem desenhou varios rostos sorridentes na poeira da superfı cie de
madeira. Eu me pergunto se isso signi ica alguma coisa e levanto a tampa,
mas esta vazia. Quando olho para cima, vejo meu re lexo na parede de
pequenos espelhos. Eu pareço destruı da.

—Adam? —Eu chamo, mas me deparo com um silencio estr anho. A


cozinha esta vazia, assim como a sala cheia de livros. Subo

correndo a escada em espiral de madeira ate o primeiro andar ,

ofegando e agarrando o corrimao como uma bengala. Ignoro a placa de


PERIGO, MANTENHA-SE FORA na porta mais distante e subo os degraus
da torre do sino. Mas nao ha ninguem la e o quarto tambe m esta vazio. Nao
faz sentido. A dor no meu peito nao esta melhor ando, entao abro a gaveta ao
lado da cama. Meu inalador desapareceu. T enho certeza de que foi onde
deixei, e agora o panico começa a tomar conta de mim.

Preciso encontrar Adam. De volta ao patamar, tento abrir as outras portas,


mas ainda estao todas trancadas. Ele nao esta aqui, j a procurei em todos os
comodos. Entao me lembro da cripta.

—Adam! —Eu grito novament e.

Sile ncio.

Corro tao rapido que quase caio da escada que r ange.

— Eu estou aqui! — Ele chama quando chego a sala, mas na o consigo ve -


lo.

—Onde voce esta? —Eu grito de v olta.

—Atras da estante na parede do fundo.

Ouço suas palavras, mas nao consigo entende -las.

Sigo o som de sua voz, olhando para as estantes repletas de livr os do chao
ao teto. Nao entendo ate ver um raio de luz revelando uma porta secreta,
coberta por lombadas de livros antigos. Hesito antes de abri-lo, mais uma
vez sentindo como se tivesse caıdo na toca do coelho ou icado presa em um
dos livros sombrios e perturbadores que meu marido adora adaptar .

A porta ina se abre e revela outro comodo. E um escritorio, mas diferente de


tudo que ja vi antes. O espaço longo, estreito e escuro t em

apenas um vitral para iluminar. Ha uma mesa antiga em uma das

extremidades e meu marido esta sentado nela.

—Quem quer que estivesse aqui se foi —diz Adam sem erguer os olhos. —
Eu procurei em todo o lugar. A unica coisa que notei de diferente foi que a
porta desta sala estava aberta.

—Eu nao ent endo...

—Acho que estou começando. Eu reconheço esta sala.

Ele nao parece notar que mal consigo respirar. Nao exist em suplementos
para pessoas que sofrem de de icit de simpatia, e meu marido sempre se
distraiu facilmente com seus proprios pensament os e sentimentos. —Voce r
econhece?

—Sim, eu ja vi isso antes. A princıpio nao consegui pensar onde e entao


percebi isso —diz ele, batendo na mesa de madeira brilhante. — Vi uma foto
desse escritorio em uma revista, ainda que a alguns anos. E
lembro sobre quem era o artigo. Voce diz que ganhou um im de

semana fora por acaso, numa rifa, mas isso nao pode ser verdade. E tudo
muita coincidencia. Eu sei a quem esta propriedade pert ence agor a.

COBR E

Palavra do ano :

Desorientado adjetivo. Sentindo-se confuso e desconcertado .

28 de fevereiro de 2015 – nosso sétim o

aniversári o

Prezado Adam ,

Foi um ano difícil .

October O'Brien foi encontrada morta num hotel d e Londres há alguns


meses e você foi uma da s

últimas pessoas a vê-la viva. Suspeita de suicídi o segundo os jornais. Não


houve nenhum bilhete, ma s garrafas vazias de álcool e comprimidos fora m

encontrados ao lado de sua cama. Foi obviament e devastador. E


surpreendente; a mulher sempr e

pareceu tão feliz e positiva, pelo menos externamente . Quase trinta anos e
tanto para viver. Vocês dois se

tornaram bastante próximos – eu também gostav a

dela – mas isso também significa que as filmagen s de


RockPaperScissorsforam canceladas. Você nã o
pode fazer uma série de TV sem a estrela d o programa .

O funeral foi horrível. Você poderia dizer qu e

muitas pessoas estavam apenas representando o qu e achavam que o luto


deveria ser. Canalhas de dua s

caras. Parece que amigos genuínos são ainda mai s difíceis de conseguir
quando você é famoso. Fique i surpresa ao descobrir que o nome verdadeiro
de

October era Rainbow O'Brien. Seus pais eram hippie s e ninguém na


cerimônia usava preto .

— Graças a Deus ela usou um nome artístico — você sussurrou .

Assenti, mas não tinha certeza se concordava. El a era um pouco como um


arco-íris: linda, cativante ,

colorida e desapareceu de nossas vidas quase assi m que apareceu nelas. Eu


costumava pensar que u m

nome era apenas um nome. Agora não tenho tant a certeza. Eu também me
tornei bastante amiga d e

October – bebidas ocasionais, passeios com cães e visitas a galerias de arte –


e também sinto falt a dela. Parece que algo, não apenas alguém, est á

faltando em nossas vidas, agora que ela não est á mais nela s.

Uma viagem à New York parecia uma ótim a maneira de passar nosso
sétimo aniversário e

distrair tudo, até que percebi que coincidia com a

estreia do último filme de Henry Winter, The Blac k House. Você estava tão
ansioso para agradar ,
lisonjeado quando ele disse ao agente e ao estúdi o que só compareceria se
você o fizesse. Você penso u

que era porque ele estava satisfeito com a adaptaçã o e queria que você
recebesse o crédito que merecia po r escrever o roteiro. Mas não era por isso
que el e

queria você lá. Ou por que ele sugeriu que voc ê convidasse sua esposa .

Você tem estado mal-humorado e um pouco distant e recentemente, eu não


queria começar outra briga, ma s brincar de groselha8 para dois escritores
enquant o

eles se deliciavam com o calor temporário do so l

inconstante de Hollywood não me atraiu muito. Ne m andar pelo tapete


vermelho do antigo cinema e m

Manhattan onde a estreia foi realizada. O Ziegfel d era o meu tipo de lugar:
um cinema antigo decorad o em vermelho e dourado, com um mar de
assento s

macios de veludo vermelho. Mas ser fotografada n o caminho me fez sentir


uma fraude. Detesto que m e tirem fotografias mesmo nas melhores alturas,
em

comparação com todas as lindas criaturas presente s – com as suas cinturas


finas e cabelos grande s,

temi que pudesse ser uma desilusão para vocês. É difícil brilhar rodeada de
estrelas. A ideia de se r normal parece deixar você tão infeliz, mas é tud o

que eu sempre quis que fôssemo s.

O acordo era que passaríamos um tempo a só s


depois da estreia, mas então Henry queria que voc ê o acompanhasse em
mais alguns eventos no di a

seguinte. Eu entendo por que você não pôde dize r

não. Eu só queria que você não quisesse dizer sim . Entendo que você
sempre foi um grande fã dele e

entendo o quanto você está grato por ele ter permitid o que você adaptasse
seu trabalho. Eu sei o que i sso significa para sua carreira, mas já não paguei
o preço por isso? Vaguear sozinha por uma cidad e

enquanto você segura a mão de um autor em vez d a minha não é minha


ideia de feliz aniversário .

Você não é você mesmo há um tempo. Eu sei qu e você está de luto por
October, entendo que ela er a

mais do que apenas uma colega, e o sonho de ve r seu próprio trabalho na


tela parando, novamente ,

também deve ser perturbador. Mas ainda parece qu e há algo mais


acontecendo. Algo que você não está m e contando. Tem moradores na nossa
vida, aqueles qu e ficam anos, e tem os turistas que estão só d e

passagem. Às vezes pode ser difícil perceber a

diferença. Não podemos, não devemos conseguimos e

não devemos tentar segurar todos que encontramos, e conheci muitos turistas
na minha vida, pessoas qu e

eu deveria ter mantido a uma distância segura. S e

você não deixar ninguém chegar muito perto, eles nã o poderão te machucar
.
Passei o dia sozinha, visitando partes de Nov a York que nunca tinha visto
antes, enquanto voc ê

seguia Henry Winter pela cidade. O autor idoso pod e parecer encantador
para você, nas raras ocasiões e m

que você esteve na companhia dele, mas na vida rea l o homem vive como
um eremita, bebe como um peix e

e é impossível de agradar. Não posso te dizer isso , porque não deveria saber.
Eu li todos os seus livro s também, assim como você. Seu mais recente foi, n
a melhor das hipóteses, medíocre, mas você ainda ag e como se o homem
fosse a reencarnação d e

Shakespeare .

Tentei não pensar nisso quando visitei a Estátu a da Liberdade. A balsa para
a ilha estava lotada , mas eu ainda me sentia sozinha. Dentro d o

monumento, juntei-me a um grupo de estranhos par a um passeio. Havia


famílias, casais, amigos, e a o subirmos a escada, percebi que todos pareciam
te r alguém com quem compartilhar a experiência. Excet o eu. Um amigo do
trabalho mandou uma mensage m

perguntando como estava indo a viagem. Não o

conheço há muito tempo e parecia um pouco familia r demais, então não


respondi .

Existem trezentos e cinquenta e quatro degraus at é a coroa da Estátua da


Liberdade. Conte i

silenciosamente as razões pelas quais aind a

estávamos juntos enquanto os subia. Ainda h á

muitas coisas boas em nosso casamento, mas u m


número crescente de coisas ruins me faz sentir com o se estivéssemos
começando a nos desfazer. E ssa

distância entre nós, os espaços vazios em nosso s

corações e palavras; isso me assusta. Muitos casai s que conhecemos estão


se atrapalhando, mas a maiori a deles tem a cola de uma jovem família para
mantê -

los unidos. Nós só temos nós. Fiz algo que nunc a faço no topo… tirei uma
selfie .

Fui para Coney Island depois disso. Acho qu e deve ser mais movimentado
no verão, mas goste i

bastante de passear pelas arcadas fechadas. At é

encontrei um presente de última hora para você – o tema cobre deste ano
representou um certo desafio . Tivemos tantos altos e baixos ao longo do no
sso

relacionamento, mas suponho que o sétimo ano sej a difícil. Já ouvi falar da
coceira dos sete anos e tenho certeza de que você também deve ter ouvido .
Aconteça o que acontecer, sei que não serei a

primeira a arranhá-lo .

Quando meus pés doeram de tanto caminhar, volte i para o apropriadamente


chamado Library Hotel. É

um refúgio boutique pequeno, mas perfeitament e

formado, cheio de livros e personalidade. Cada anda r tem uma matéria e o


nosso era matemática. O terro r poderia ter sido mais apropriado; dada a
form a
como esta noite acabou .

Eu tinha reservado uma mesa para jantarmos – sabia que você esqueceria de
lembrar – em um a

churrascaria próxima chamada Benjamin ,

recomendada pelo concierge. A decoração e a

atmosfera me fizeram pensar em OIluminadoe O PoderosoChefão– o que


mais uma vez parec e

bastante adequado em retrospectiva – mas o serviço e os bifes eram


perfeitos. Assim como o vinho .

Bebemos duas garrafas de vinho tinto enquanto e u

ouvia você me contar sobre seu dia com Henry. Voc ê não perguntou sobre o
meu, nem notou o vestido nov o que comprei na Bloomingdale's. Me elogiar
é alg o

que você só faz por acidente hoje em dia .

Esqueci de acenar esta noite quando você entrou n o restaurante, mas de


alguma forma você ainda sabi a

que era eu. Dado que todos os rostos parece m

iguais para você e eu estava usando algo que voc ê nunca tinha visto, sua
confiança ao se sentar à

nossa mesa era estranha e surpreendente. Fique i

igualmente perplexa com a quantidade de atenção qu e você prestou à


garçonete, me perguntando como voc ê

reconhecia a beleza de seus traços de vinte e pouco s anos se não conseguia


ver seu rosto .

Acho que sabia que iríamos discutir antes mesm o de você dizer o que disse.
Às vezes, as brigas sã o como tempestades e você pode vê-las chegando .

— Sinto muito por fazer isso, mas Henry que r que eu vá com ele para Los
Angeles. Dado todo o burburinho em torno deste filme, o estúdio que r

adaptar outro de seus livros, ele diz que só aceitar á a ideia se eu for
encontrá-los e concordar e m

escrever o roteiro .

— E quanto à RockPaperScissors?Você não va i

desistir disso, não é? É terrível em relação a October , mas há outras atrizes.


Trabalhar nos romances d e

Henry deveria ser apenas um trampolim para.. .

— Não acho que escrever o roteiro de um film e de sucesso de um livro best-


seller, escrito por u m

dos autores mais bem-sucedidos de todos os tempo s, seja um trampolim .

— Mas o objetivo disso era ajudá-lo a faze r seus próprios programas de TV


e filmes – não o s

dele – para fazer o que você realmente queria .

— É isso que eu quero. Sinto muito se minha s

escolhas profissionais não são boas o suficiente par a você .

Nós dois sabíamos que não era isso que e u

queria dizer, e pude ver que você não estava ne m um pouco arrependido .
— E o que eu quero? Foi ideia sua passarmo s

alguns dias juntos em Nova York e até agora mal t e vi.. .

— Porque eu não poderia deixar você para trá s. Eu nunca teria ouvido o fim
disso .

Pela primeira vez, parece que sou eu quem nã o consegue reconhecer meu
cônjuge. — O quê ?

— Você não parece ter amigos ou mesmo uma vid a própria atualmente .

— Tenho amigos — digo, lutando para pensar n o nome de alguém que


possa ajudar a sustentar minh a afirmação .

É difícil quando todas as pessoas da minh a idade que eu conhecia parecem


ter filhos agora .

Todos eles desapareceram dentro de suas novas e felizes famílias, e os


convites secaram. Isso m e

lembrou um pouco da escola... sendo rejeitada pela s

crianças legais porque eu não tinha o último acessóri o indispensável. Mudei


de escola mais de uma ve z

enquanto crescia. Eu sempre fui a garota nova e tod o mundo já se conhecia


há anos. Eu não me encaixav a

– nunca me encaixo –, mas as adolescentes pode m ser cruéis. Tentei fazer


amigos e consegui por u m tempo, mas sempre estive no sistema solar extern
o daqueles relacionamentos de infância. Como u m

planeta menor e mais silencioso, orbitand o

distantemente os mais brilhantes, mais bonitos e populare s.


Ainda tentei manter contato – participando d e

festas de aniversário ocasionais, ou despedidas d e solteira obrigatórias ou


casamentos de alguém co m

quem não falava há anos – mas à medida que todo s crescemos e nos
distanciamos, acho que fiquei mai s

distante. Meus relacionamentos de infância deram o tom para aqueles que


formei quando adulta. Fo i

mais autopreservação do que qualquer outra coisa d a minha parte. Jamais


esquecerei a mulher que fingi u amamentar os filhos até os quatro anos de
idade .

Sempre inventando desculpas para evitar me ver.. .

como se minha infertilidade pudesse ser contagiosa . Hoje em dia me


preocupo mais em gostar de mi m mesma do que em ser querida pelos
outros, e nã o perco mais meu tempo com amigos falso s.

Você pegou minha mão, mas eu a puxei, então voc ê pegou seu vinho .

— Sinto muito — você disse, mas eu sabia qu e não, na verdade não. — Eu


não quis dizer isso — você acrescentou, mas era apenas mais uma mentira .
Você fez. — Henry é um escritor sensível. El e

realmente se preocupa com seu trabalho e em que m ele confiará. Ele teve
um ano difícil.. .

— Já tive vários. Quanto a mim? Você est á agindo como se ele fosse seu
melhor amigo d e repente. Você mal conhece o homem .

— Eu o conheço muito bem; conversamos o temp o todo .

Já faz um tempo que não me sinto tã o


desconcertada. Quase engasguei com meu bife. — O quê ?

— Henry e eu conversamos com bastant e

regularidade. No telefone .

— Desde quando? Você nunca mencionou isso .

— Eu não sabia que precisava contar a você sobr e todas as pessoas com
quem falo ou obter su a

permissão .

Nós nos encaramos por um momento .

— Feliz aniversário — eu disse, colocando u m pequeno embrulho de papel


sobre a mesa .

Você fez uma careta que me fez pensar que tinh a esquecido de me dar um
presente, mas depois m e

surpreendeu tirando algo do seu bolso .

Você insistiu que eu abrisse o seu primeiro, entã o eu abri. Era uma pequena
moldura suspensa d e

cobre e vidro. Dentro havia sete moedas de cobre d e um centavo. Todos


tinham datas diferentes, uma d e cada um dos sete anos em que estamos
casado s.

Deve ter levado muito tempo e reflexão par a

encontrar todas ela s.

Você limpou a garganta e pareceu um pouc o envergonhado. — Feliz


Aniversário .
Eu agradeci e queria ser grata, mas algo aind a parecia quebrado entre nós.
Parecia que eu tinh a

passado a noite com alguém que parecia e falav a como meu marido, mas
não era. Você abriu me u

presente comprado às pressas e eu corei de vergonh a depois de todo o


esforço que você fez .

— Onde você conseguiu isso? — Você perguntou , segurando a moeda


americana contra a luz da s

velas. Tinha um rosto sorridente esculpido, ao lad o da palavra “liberdade” .

— Coney Island esta tarde — respondi. — M e deparei com uma máquina


de fliperama que dizi a Lucky Pennies. O grou de papel que lhe dei parec e
um pouco desgastado, então pensei em lhe dar alg o novo para dar sorte,
para guardar na carteira .

— Vou valorizar os dois — você respondeu , guardando a moeda com seu


grou .

Você logo voltou a falar sobre Henry Winter. Se u assunto favorito.


Enquanto ouvia pela metade, nã o

conseguia parar de pensar na morte prematura d e

October O'Brien, ou em como você parece se importa r mais com a escrita


de Henry hoje em dia do qu e

com a sua própria. Existem muitas histórias d e

terror em Hollywood, e não me refiro às que sã o

transformadas em filmes. Eu ouvi todas elas. Talve z eu devesse ficar grata


por você ser um roteirista qu e ainda está conseguindo trabalho; nem sempre
é o ca so e a concorrência é acirrada. Alguns escritores sã o

como maçãs e logo apodrecem se não forem colhido s. Você derramou o


resto do vinho em sua taça e

bebeu .

— Você não se preocuparia tanto com minh a

carreira se se importasse mais com a sua — voc ê disse com palavras


arrastadas, e não pela primeir a vez. Eu queria quebrar a garrafa na sua
cabeça .

Adoro meu trabalho na Battersea Dogs Home. I sso me faz sentir melhor
comigo mesma. Talvez porque – assim como os animais dos quais passo
meu temp o

cuidando – eu também tenha me sentid o

frequentemente abandonada pelo mundo. Raramente é culpa deles não serem


amados e indesejados, assi m como nunca foi minha .

— Tenho certeza de que poderia escrever algo tã o bom quanto você, ou


Henry Winter, aliás.. .

— Sim, todo mundo pensa que pode escrever at é se sentar e tentar fazê-lo
— você interrompeu co m seu sorriso mais condescendente .

— Eu me importo mais com o mundo real do qu e com fantasias — eu disse


.

— Entregar-me às minhas fantasias pagou pel a nossa casa .

Você pegou sua taça novamente antes de percebe r que estava vazia .

— Conte-me sobre seu pai — eu disse, se m


realmente pensar. Você colocou a taça na mesa co m muita força, estou
surpresa que ela não tenh a

quebrado .

— Por que você está trazendo isso à tona? —

Você perguntou sem fazer contato visual. — Você sab e que ele foi embora
quando eu era criança. Não crei o que Henry Winter seja secretamente meu
pai h á

muito perdido, se era para lá que você estava indo.. . — Não é ?

Suas bochechas ficaram vermelhas. Você se

inclinou antes de responder e baixou a voz, como se estivesse preocupado


com quem poderia ouvir .

— O cara é meu herói. Ele é um escritor incríve l e sou muito grato por tudo
que ele fez por mim ,

portanto, por nós. Isso não é a mesma coisa qu e imaginá-lo como uma
espécie de pai substituto .

— Não é ?

— Não sei o que você está tentando dizer.. . — Não estou tentando dizer
nada, estou lh e

dizendo que acho que você desenvolveu algum tipo d e ligação emocional
com o homem... é como um a

obsessão. Você abandonou todos os seus projetos par a trabalhar dia e noite
nos dele. Henry Winter inicio u sua carreira quando você estava sem sorte,
entã o

sim, você lhe deve alguma gratidão, mas a maneir a como agora você busca
constantemente a aprovaçã o

dele sempre que escreve algo novo é... na melhor da s hipóteses, carente e na
pior, narcisista .

— Uau — você disse, recostando-se como se e u tivesse tentado bater em


você fisicamente .

— Você já deveria acreditar em si mesmo o

suficiente para saber que seu trabalho é bom, se m precisar que ele diga isso
.

— Eu não sei do que você está falando. Henr y nunca disse que gosta do
meu trabalho.. .

— Exatamente! Mas é tão óbvio – para ele e

para todos os outros – o quão desesperado você est á para que ele o apoie de
alguma forma. Você preci sa parar de esperar secretamente que ele o faça. El
e

raramente diz algo gentil sobre o trabalho de outr o escritor – ele raramente
tem uma palavra gentil a

dizer sobre alguma coisa ou alguém – apenas aceit a o relacionamento como


ele é. Ele é um autor, você é um roteirista que adaptou alguns de seus livros.
O fim .

— Acho que tenho idade suficiente para faze r minhas próprias escolhas e
escolher meus próprio s amigos, obrigado .

— Henry Winter não é seu amigo .

Quando saímos, não quebrei o silênci o

desconfortável para avisar que vi Henry sentado a algumas mesas de


distância de nós no restaurante . Era difícil não notá-lo, vestindo uma de sua
s

jaquetas de tweed, sua marca registrada, e um a

gravata-borboleta de seda. Seu cabelo branco estav a ralo e ele parecia um


velhinho inofensivo, mas o s

penetrantes olhos azuis ainda eram os mesmos d e sempre. Ele esteve nos
observando o tempo todo qu e estivemos lá .

Você continuou falando sobre ele durante todo o caminho até o Library
Hotel, e minhas palavra s sobre o assunto foram esquecidas assim que a s
pronunciei. Pela expressão alegre em seu rosto ,

qualquer um pensaria que você passou o dia com o Papai Noel, em vez de
um Ebenezer Scrooge e m

forma de livro .

Quando voltamos para nossa suíte temática d e

matemática, as coisas não estavam dando certo par a mim. Comi os dois
chocolates em nossos travesseiro s enquanto você estava no banho – embora
eu odei e

chocolate amargo – acho que queria machucar você d e alguma forma, por
mais infantil que isso pareça .

Meu telefone tocou e por um momento pensei qu e poderia ser você, me


mandando uma mensagem d o banheiro do hotel – ninguém mais me mand a

mensagens tarde da noite. Ou durante o dia. Ma s

não era você, era meu novo amigo do trabalho dizend o que sentia minha
falta. A ideia de alguém senti r
minha falta fez meus olhos se encherem d e

lágrimas. Enviei-lhe uma selfie minha no topo d a

Estátua da Liberdade e ele respondeu imediatament e com um sinal de


positivo. E um beijo .

Você está dormindo agora, mas estou acordad a como sempre, escrevendo
uma carta que nunc a

deixarei você ler. Desta vez em papel timbrado d o

hotel. Uma onda de ressentimento de sete anos pod e ser mais precisa do que
uma coceira. Não posso se r honesta com você, mas preciso ser honesta
comig o

mesma .

Eu odeio não gostar de você agora, mas ainda t e amo .

Sua esposa ,

xx
Robin ica onde esta ate que os dois visitantes estejam no

escritorio secreto. Entao ela destranca a porta do quarto onde est a


escondida, desce a escada – evitando os degraus que ela sabe que va o ranger
– e sai da capela. Ela encontra seu companheiro silencioso exatamente onde
o deixou. Ele nao parece impressionado por ter sido abandonado no frio.
Robin faz o que precisa fazer la fora o mais ra pida e silenciosamente
possıvel e depois esper a.

Ela e boa em esperar. A pratica pode tornar uma pessoa boa em qualquer
coisa, e pelo menos ela nao esta sozinha desta vez. A nev e parou de cair,
mas ainda esta frio. Robin preferiria voltar para casa, mas nao adianta
apressar algo tao importante. Ela teve o cuidado de seguir as pegadas
anteriores dos visitantes, mas tentar passar desper cebida nem sempre e facil.
Esse e o problema de seguir os passos de outr a pessoa; se voce deixar uma
marca maior do que a deles, eles tendem a icar chateados. Robin aprendeu
da maneira mais difıcil que e sempr e melhor nao ter pressa, e tarde e melhor
do que nunca. As vezes, o madrugador come muitas minhocas e morr e.

Os vitrais sao lindos, mas deixam entrar o frio e sair o som, por isso ela esta
ouvindo do lado de fora do escritorio. Ela destrancou a
porta secreta e a deixou aberta deliberadamente, para que os visitant es
pudessem encontra-la por si proprios. Depois que a icha cair, as coisas nao
deverao demorar muito mais.

Ouvi-los no lugar onde ela morava, rir e sonhar e uma experie ncia tao
estranha e surreal. Um pouco como uma intoxicaçao alimentar. Ela

se sente doente e com febre, mas ja sabe que se sentira melhor

novamente quando tirar o que quer que esteja podre de seu org anismo. Ela
quer que os visitantes saiam da capela, mas ainda nao. Ainda h a muito a
dizer e fazer antes que este capıtulo desagradavel de suas vidas chegue ao
im.

—Vai icar tudo bem, voce vai ver —diz ela ao companheiro, mas ele nao
responde. Ele apenas olha para ela, parecendo tao triste e frio quanto ela esta
começando a sentir .

Sempre que sua vida tomou um rumo errado no passado, R obin tentou
identi icar o momento exato em que se perdeu. Sempre ha um.

Se voce estiver preparado para abrir os olhos e olhar para tras o

su iciente, normalmente podera ver o instante em que fez uma escolha


errada, disse algo que nao deveria ou fez algo de que se arr ependeu. Uma
ma decisao muitas vezes leva a outra e entao, antes que voc e perceba, nao
ha como voltar para onde voce estav a.

Mas todo mundo comete err os.

As vezes, as pessoas que parecem mais inocentes acabam sendo culpadas de


coisas horrıveis. As vezes, as pessoas que fazem coisas ruins sao apenas
pessoas mas. Mas sempre ha uma razao pela qual uma pessoa se comporta
dessa maneira. A mulher da loja local era um bom exemplo de alguem com
um passado muito mais sombrio do que voc e esperaria. Patty, a lojista
hostil, com rosto vermelho, olhos r edondos, mau halito e habito de enganar
estranhos, tinha uma lista de infraço es mais longa do que a Bıblia que
guardava atras do balcao. Desde agressao agravada ate dirigir acima do
limite. Todos na cidade sabiam, mas tinham que conseguir suprimentos em
algum lugar. P oucas pessoas sao genuinamente capazes de perdoar e
ninguem realment e esquece. As vezes voce simplesmente sabe que uma
pessoa e uma m a

notıcia assim que a conhece, porque ela e podre, por dentro e por fora, e o
instinto lhe diz para icar longe.

As vidas continuam independentemente de as pessoas a quem pertencem.


Robin queria seguir em frente, ela se esforçou tanto par a deixar seus
proprios erros para tras e nao ser consumida por arrependimentos. Mas
nossos segredos temo habito de nos encontrar, e tudo de que ela tentou fugir
a alcançou eventualmente. Cobrindo o seu presente com a poeira do seu
passado.

Seu companheiro começa a icar inquiet o.

—Shh —ela sussurra. —Espere um pouco mais.

Ele ainda parece impressionado, mas faz o que ela diz, como sempr e.

O tempo congela quando Adam diz que sabe a quem pertence a capela.
Olho ao redor do escritorio secreto, pensando que se poderia revelar a
resposta antes dele, mas tudo que consigo ver sao mais livr os empoeirados,
uma escrivaninha velha e meu marido. Suas belas feiço es se transformaram
em uma carranca decepcionada e uma carranca f eia. Ele parece mais irritado
do que com medo. Como se tudo isso fosse de alguma forma minha culpa.

Acho que quando voce se sente abandonado pelos proprios pais, e


impossıvel nao passar o resto da vida suspeitando que as pessoas conspiram
para te deixar. E algo que sempre me deixa ansiosa com todos, ate mesmo
com Adam, apesar de ha quanto tempo estamos juntos. Sempre que me
aproximo de alguem – parceiros, amigos, colegas – chega inevitavelmente
um ponto em que tenho de me afastar . Eu reconstruo barreiras, mais altas do
que antes, para me sentir segur a. O medo constante do abandono torna
impossıvel con iar em algue m, ate mesmo no meu marido.

Consegui acalmar minha respiraçao quando o encontrei aqui, mas essa nova
ansiedade esta pressionando meu peit o.

— Os escritores sao uma especie peculiar de ser humano — diz Adam, ainda
olhando para a escrivaninha antiga como se estiv esse falando com ela, e nao
comigo. Esta tao frio nesta sala que posso ver sua respiraçao. — Ha pessoas
com quem trabalhei ao longo dos anos – pessoas em quem con iei – que
acabaram por ser nada mais do que…

A luz dos vitrais lança fragmentos de cor no piso de parquet, e ele parece
distraıdo demais com eles para terminar seu pensamento. Tent o pensar em
alguem com quem ele brigou desde que o conheço, mas na o sao muitos. Ele
tem o mesmo agente desde o inıcio. Todo mundo ama Adam, mesmo as
pessoas que nao amam.

— Voce se lembra do ilme Gremlins? — Ele pergunta. Fico f eliz que ele
nao espere uma resposta porque nao sei o que dizer ou v er como isso e
relevante. —Havia tres regras: nao molha-los, nao os e xpor a luzes fortes e
nao alimenta-los depois da meia-noite. Caso contra rio, coisas ruins
acontecem. Autores sao como Gremlins. Todos eles começam como Gizmo
– essas criaturas individuais e interessantes que sao divertidas de se ter por
perto – mas se voce quebrar as regras: se eles nao gostarem da adaptaçao do
livro ou acharem que voce mudou muito a historia original, os autores se
transformam em monstr os maiores do que aqueles sobre os quais escrev em.

— Do que voce esta falando, Adam? Quem e o dono desta

pr opriedade?

—Henry Winter .

Eu congelo. Sempre tive medo de Henry, e nao apenas por causa dos livros
sombrios e distorcidos que ele escreve. O que mais me assustou na primeira
vez que o vi foram seus olhos. Eles sao muit o azuis e muito penetrantes,
quase como se ele pudesse olhar dentro de uma pessoa, nao apenas para ela.
Ver coisas que ele nao deveria ser capaz de ver. Saber coisas que ele nao
deveria saber. Minha respiraça o começa a icar um pouco fora de controle
novament e.

—Voce esta bem? Onde esta o seu inalador? —Adam per gunta. —Estou
bem —insisto, agarrando as costas da cadeir a.
— O Daily Mail queria fazer uma reportagem sobre onde Henry escreveu
seus livros quando o ultimo ilme foi lançado. Ele nao permitia que
mandassem um jornalista ou, Deus me livre, um fotografo – ele sempre
odiou isso. Eu o conhecia ha anos, mas ele nem me dizia onde morava
quando nao estava em Londres – sempre pr eocupado obsessivamente com a
privacidade por motivos que nunca consegui entender completamente. So vi
uma foto dele em seu escritorio – que o jornal disse ter sido “fornecido pelo
autor”. E isso. A sala onde ele escreve. Lembro-me da foto dele sentado
nesta mesa — diz A dam, tocando a mesa de madeira escura. E uma coisa
velha e peculiar sobr e rodas, com muitas gavetas pequenas. —Pertenceu a
Agatha Christie, e Henry pagou uma pequena fortuna por ela em algum
leilao de caridade anos atras. Ele se tornou bastante supersticioso sobre isso;
uma vez me disse que achava que nao conseguiria escrever outro terror em
nenhum outro lugar .

—Tem cert eza?

—Sim. Olhe para as prateleiras desta sala.

Viro-me e faço o que ele diz, mas as estantes que icam na par ede dos fundos
do escritorio parecem exatamente iguais as da sala. Enta o noto as lombadas
dos livros e vejo que todos foram escritos por Henry Winter. Deve haver
centenas deles, incluindo traduçoes e ediço es especiais. E uma parede
gigante e exatamente o que eu esperaria de um homem como ele.

—Entao, o que e isso? Uma pegadinha? Uma piada de mau gost o? — Eu


pergunto. — Por que Henry enviaria um e-mail de uma conta falsa, me
dizendo que ganhei um im de semana em seu e sconderijo secreto na
Escocia? Por que esta tudo coberto de poeira? Onde ele esta ? E onde esta
Bob?

— Tem certeza de que esta bem? — Adam pergunta. — Sua respiraçao par
ece...

—Estou bem.

Ele não parece convencido, mas continua mesmo assim. — Acho que ele
pode estar chateado comigo. Desde que eu disse que não queria mais adaptar
os livros dele...

Eu olho para ele, surpresa. —Você fez o quê? Eu não entendo.

— Acabei de decidir que talvez fosse hora de me concentrar no meu próprio


trabalho.

—Você não me contou...

— Eu não poderia suportar o inevitável, eu te avisei. Ele nã o recebeu bem a


notı ́cia. Era como uma criança mimada fazendo birra. Durante toda a minha
vida, coloquei Henry Winter num pedestal muito alto. Eu olhei para ele
mesmo quando ele não olhou para mim. Mas então eu o vi como ele era pela
primeira vez: um velho egoı ́ sta, rancoroso e solitá rio.

Eu absorvo suas palavras, processando o que elas signi icam para ele e para
nó s.

—Quando foi isso?

— Um tempo atrás. Tentei manter as coisas amigáveis, mas ele ignorou


minhas ligações e não falo com ele há... muito tempo. Seus livros eram tudo
o que ele tinha. Mas se há uma coisa que aprendi tanto na vida quanto na
icção, é que ninguém é apenas um herói ou apenas um vilão. Todos nós
temos a capacidade de sermos ambos.

Adam me encara quando diz a última frase. Estou prestes a perguntar por
que quando vejo meu inalador na mesa atrás dele.

—Por que você tem isso? —Eu pergunto.

—Seu inalador? —Ele diz. —Eu nem percebi que estava lá .

Eu ico olhando para ele por um longo tempo. Normalmente posso dizer
quando ele está mentindo e não acho que esteja.
Pego o inalador e coloco-o no bolso. —Acho que estamos ambos exaustos e
agora que sabemos a quem pertence este lugar, só quero encontrar Bob e sair
daqui.

Assim que digo o nome dele, ouço um cachorro latindo la for a.

Corremos para a nev e.

Eu nao sei o que esperar. Henry Winter parado do lado de fora da capela?
Seguindo o exemplo de Bob e rindo loucamente como um vila o de
comedia? Talvez ele inalmente tenha perdido as bolas de gude restantes? O
homem escreve icçao sombria e distorcida, mas ainda tenho di iculdade em
acreditar que ele seria capaz de algo assim na vida r eal.

O som de um cachorro latindo para assim que saı mos.

—Bob! —Amelia chama.

E inutil – o pobrezinho e praticamente surdo na melhor das

hipoteses – mas começo a gritar o nome dele tambe m.


O vale agora esta estranhamente silencioso.

—Talvez nao tenha sido Bob? —Eu digo.

— Foi ele, eu sei — ela insiste. — Havia um par de botas Wellington


masculinas perto da porta quando voltei, agora elas

sumiram. Quem quer que estivesse aqui antes saiu e trouxe Bob com ele.

Ela corre mais longe na neve e nao tenho escolha a nao ser segui- la.

As ovelhas estao de volta. Elas olham em nossa direçao, mas na o sao tao
assustadoras quanto no escuro da noite passada. Nos dois paramos quando
vemos as costas de uma pessoa vestindo uma jaqueta de tweed, calças
escuras e o que parece ser um chapeu panama... no meio do inverno... na
neve gelada ate os joelhos. Amelia olha em minha direçao. Nao consigo ler a
expressao em seu rosto, mas se for algo parecido com o que estou sentindo,
imagino que seja de terror .

Lembro a mim mesmo que conheci esse homem tao bem quant o voce
conhece alguem com quem trabalha e que so conheceu algumas vezes.
Limpo a garganta e dou um passo mais pert o.

—Henry? —Eu digo gentilment e.

Por alguma razao, lembro-me dos chifres na parede da sala de bagagens.


Ocorre-me que os autores de misterios e thrillers de assassinato
provavelmente conhecem muitas maneiras de matar uma pessoa sem ser
pego, eu nao quero especialmente ter meus rest os mortais pendurados na
parede. Ele nao se move. Digo a mim mesmo que ele provavelmente e um
pouco surdo, como o cachorro, e continuo

at e

icarmos cara a car a.


Exceto que ele nao tem rost o.

O que pareço estar olhando e uma especie de espantalho, mas

com cabeça de boneco de neve. Ele tem rolhas de vinho no lugar dos olhos,
uma cenoura no lugar do nariz, um cachimbo saindo do espaço onde deveria
estar sua boca e uma das gravatas-borboleta azuis de seda de Henry Winter
amarrada no pescoço. E um tom mais escuro do que deveria, saturada de
neve derretida. A bengala de Henry, aquela com cabo de cabeça de coelho
prateado, esta apoiada nela, como se quisesse se apoiar .

Amelia vem icar ao meu lado. —O que...

—Eu nao sei mais.

—Isso nao estava aqui antes, estav a?

— Nao. Acho que terıamos notado. Eu realmente nao entendo o que esta
acont ecendo.

Ficamos lado a lado em silencio, olhando para o boneco de nev e espantalho


enquanto sua cabeça derrete lentamente. Um de seus olhos de cortiça ja
escorregou ate a metade do rosto. Alemda estranha arvor e de aparencia
morta e das esculturas de madeira de apare ncia assustadora, estamos no
meio de uma vasta area aberta. Quem fez isso deve estar por perto. E se Bob
estiver perto o su iciente para ser ou vido latindo, deveremos ser capazes de
localiza-lo, mas tudo que consigo v er e um espaço em branco vazio. Graças
as ovelhas, a neve foi mexida em quase todos os lugares fora da capela. Se
houvesse pegadas a seguir, na o ha agor a.

— Temos que encontrar Bob. Ele esta aqui em algum lugar, no s dois o
ouvimos, e so temos que continuar procurando —diz Amelia, eu a sigo.

Existe um pequeno cemiterio nos fundos da capela. As la pides antigas sao


pouco visıveis graças a neve, mas uma se destaca quando me aproximo. A
razao pela qual me chama a atençao e porque alguem a limpou, de modo que
o granito cinza escuro se destaca de todo o rest o coberto de branco. E, ao
contrario de todas as outras lapides, esta parece relativamente nov a.

Isso nao e tudo.

Ha uma coleira de couro vermelha em cima dela.

Amelia a pega e vejo o nome de Bob na etiqueta, como se eu tivesse alguma


duvida de que aquilo pertencia a ele.

— Eu nao entendo. Por que tirar a coleira do cachorro e deixa -la aqui? —
Ela diz.

Mas eu nao respondo. Estou muito ocupado olhando para a la pide. HENRY
WINTER

PAI DE UM, AUTOR DE MUIT OS. 1937–2018

— Eu nao entendo. Se Henry morreu ha dois anos, na o

saberıamos disso? —Eu pergunt o.

Adam nao responde. Ficamos lado a lado em silencio, olhando para a lapide
de granito, como se isso pudesse fazer desaparecer as palavras nela
gravadas. Nao importa quantas vezes eu reorganize as peças desse quebra-
cabeça dentro da minha cabeça, elas simplesment e nao se encaixam. Posso
ver a confusao, o medo e a tristeza no rosto do meu marido. Eu sei que ele
pensou que tudo o que temos foi r esultado de Henry Winter ter lhe dado sua
grande chance e con iado a ele seus livros. Uma briga boba nao mudou isso.
O homem morrer quando eles nem sequer se falavam vai atingi-lo
duramente. Mas Adam dev e perceber que temos problemas maiores agora:
se Henry nao nos enganou para virmos aqui, quem o f ez?

—Devıamos voltar para dentro —diz A dam.

Ele ainda esta olhando para a lapide, como se nao pu desse

acreditar no que estava v endo. —E Bob? —Eu pergunt o.

— Bob nao tirou a propria coleira e a deixou aqui para que a


encontrassemos. Alguem fez isso. Nao sei o que esta acontecendo, mas nao
estamos segur os.

Suas palavras soam tao melodramaticas, mas eu concor do.

Assim que voltamos para dentro da capela, Adam tranca as portas e empurra
o grande banco de madeira da igreja na frente deles.

—Quem quer que vimos entrando antes devia ter uma chave. Isso vai
impedi-los de voltar sem que nos ouçam —diz ele, indo em direça o a
cozinha. —Voce pode me mostrar o e-mail que recebeu sobre g anhar um im
de semana neste lugar novament e?

Procuro meu telefone dentro do bolso, mas em vez disso encontr o meu
inalador. Agora que minha respiraçao voltou ao normal, na o preciso disso,
mas me sinto melhor sabendo que esta por pert o.

Encontro o e-mail no meu celular e entrego-o a A dam.

[email protected], esse e o endereço de e-mail que eles


usaram? —Ele per gunta.

—Sim. Parecia um verdadeiro aluguel por tempor ada.


— Henry tinha uma queda pelo numero tres e pela cor pr eta. Muitos de seus
livros foram ambientados em Blackdown ou Blacksand… Acho que pode ter
havido uma Blackwater tambe m…

—Voce nunca mencionou isso ant es.

— Eu nao percebi que havia uma conexao ate agora. Mas H enry nao pode
ter enviado este e-mail – ele nao lida com e-mails, nem com internet, nem
tem celular. Ele acha que eles causam cancer. Pensament o.

Por um momento, acho que Adam pode chorar .

Coloquei minha mao em seu ombro: — Sinto muito, eu sei o quanto voce ...

—Estou bem. Ele nem tinha entrado em contato desde...

Adam para e olha para o nada.

—O que e? —Eu pergunt o.

— Eu nao tinha notıcias dele ou sobre ele desde setembr o passado, quando
seu ultimo agente me enviou uma copia de seu u ltimo livro. Felizmente,
este agente aprova adaptaçoes para a tela, nao como o primeiro de Henry.
Ele e um cara legal, ate brincamos sobre como Henry tambem nao estava
falando com ele, mas o autor ainda ha via enviado seu manuscrito, tres dias
antes do prazo, embrulhado em papel pardo e amarrado com barbante como
de costume.

—Enta o?

— A lapide la fora diz que ele morreu ha dois anos. Pe ssoas mortas nao
podem escrever livros ou envia-los aos seus agent es.

Demoro alguns segundos para processar esta ultima informaça o. —Voce


esta dizendo que acha que ele nao esta realmente mort o?
—Nao sei mais o que pensar .

— Ele tinha famılia? Certamente alguem saberia se ele fale cesse. Um dos
meus antigos pais adotivos morreu no ano passado, lembr a? Charlie, o cara
que trabalhou no supermercado a vida toda e sempr e trazia para casa
comida de graça que estava prestes a estragar. Eu na o falava com ele ha
mais de uma decada, mas ainda soube quando ele morreu. Henry Winter e
um autor mundialmente famoso, terıamos lido sobre sua morte nos jornais
ou...

Adam balança a cabeça. —Nao havia ninguem. Ele era um er emita confesso
e gostava de viver sua vida dessa maneira... na maior parte do tempo.
Sempre que bebia uısque demais, Henry icava com la grimas nos olhos por
nao ter ilhos – ninguem para cuidar de seus livr os

quando ele estivesse fora. Era so com isso que ele realmente se

importava: os livros. O homem era estoico como uma arvore em t odos os


outros moment os.

— Bem, alguem deve te-lo ajudado. Henry nao era ne nhum frangote se
nasceu em 1937 — digo.

Os olhos de Adam se estreitam. — Esse e um detalhe estr anho para lembrar


.

— Na verdade. Estava escrito na lapide e Amelia Ear hart desapareceu em


1937. Recebi o nome dela. Voce nao se lembra de por que foi chamada
assim? Acho que os nomes sao important es.

Adam me encara como se meu QI tivesse caıdo para um nıv el


perigosamente baixo. — Henry Winter nao teve ilhos; ele nao tinha famılia
alguma. Acho que a unica pessoa que lhe restou na vida, alem de seu agente,
fui eu, e nem estavamos nos falando quando ele morr eu…

Sua voz treme e ele desvia o olhar .


— A lapide la fora dizia “Pai de um ilho”. Alguem mandou f azer isso e
alguemo enterrou. Ele nao poderia ter feito isso sozinho.

A maneira como Adam olha para mim me assusta um pouco. E difıcil nao
dizer a coisa errada quando nada parece certo. As v ezes penso que a sua
incapacidade de reconhecer os rostos das outr as pessoas pode tornar mais
difıcil para ele controlar as expressoes por si proprio. A expressao
desgastada desapareceu e e quase como se ele estivesse... sorrindo. Ela
desaparece tao rapidamente quanto apar eceu.

— Devıamos sair daqui enquanto ainda esta claro — diz ele, adotando uma
expressao seria mais uma vez para combinar com seu t om.

—E Bob?

— Encontraremos uma delegacia de polıcia, explicaremos a situaçao e


pediremos ajuda.

—O carro esta coberto de neve. As estradas parecem perigosas... — Tenho


certeza de que podemos desenterra-lo. Eu me sentiria

mais seguro la fora do que se icasse aqui por mais uma noite, nao e ?

Ele abre a porta da despensa onde vimos a parede de ferr amentas quando
chegamos. O freezer de tamanho industrial emite uma trilha sonora
misteriosa e evito olhar para o alçapao da cripta. Pre ir o esquecer o que
aconteceu la embaix o.

—Voce vai abrir nossa saıda? —Pergunto quando Adam tira um machado da
par ede.

—Não, só acho que ter algo para autodefesa pode não ser uma m á ideia —
ele responde, tirando uma pá de um gancho enferrujado com a outra mã o.

O Morris Minor está coberto de tanta neve que combina com a paisagem.
Sinto-me como uma peça sobressalente quando Adam começa a retirá-la das
rodas do carro. Está muito frio, mas ele ainda está suando por causa do
esforço. Até que ele para e olha para a roda dianteira como se ela o tivesse
ofendido. Ele larga a pá e se curva atrá s do lado dianteiro esquerdo do carro,
de modo que não consigo mais ver o que ele está fazendo.

—Eu não acredito —diz ele, parecendo sem fô lego.

—O quê ?

—Parece que temos um pneu furado.

Eu me apresso. —Está tudo bem, nessas estradas neste carro é de se esperar.


Tenho um kit de conserto no porta-malas, desde que consigamos encontrar o
buraco e ele seja pequeno o su iciente para que eu possa...

Paro de falar quando vejo por mim mesma. Não será problema encontrar o
buraco porque é do tamanho de um punho. Há um corte em forma de sorriso
na borracha: o pneu foi claramente cortado. Eu j á estava com tanto frio que
mal conseguia sentir as mãos ou os pés, mas o frio que sinto agora se espalha
por todo o meu corpo.

—Talvez tenhamos passado por cima de um vidro? —Ele diz.

Eu não respondo. O conhecimento de Adam sobre carros é muito limitado


porque nunca possuiu um. Eu costumava achar isso cativante, agora nem
tanto. Ele começa a desenterrar a roda traseira e então para abruptamente. De
novo.

— Você já teve dois pneus furados ao mesmo tempo? — Ele pergunta.

Parece que a roda traseira tambémfoi cortada. E o mesmo com os outros


dois.

Alguemrealmente nao quer que partamos.


Robin entra novamente na cabana e tranca a porta. Ela pega uma pequena
toalha vermelha de um gancho na parede e depois limpa a neve das patas,
pernas e barriga do cachorro, antes de cuidar de si mesma. Ele abana o rabo
enquanto ela o seca e depois lambe o rost o dela. Robin sorri, ela gosta de
todos os animais, principalmente de cachorros como este. Ate Oscar, o
coelho, gostou do novo ho spede.

A esta altura, os visitantes ja saberao que a capela pertencia a Henry e que


ele ja faleceu. Robin gostaria de ter visto seus rost os quando encontraram a
lapide, mas ela e Bob ja haviam partido ha muit o tempo. Ele e um cachorro
muito amigavel e afetuoso – mesmo que latir para o vento de vez em quando
– do tipo que con ia em t odos.

Esta frio, mesmo dentro da cabana. Robin acende o fogo e se senta no tapete
proximo, tentando aquecer os ossos. Ela sente falta do cachimbo, mas agora
ele acabou, entao ela abre um pacote de Jammie Dodgers. O cachorro deita-
se ao lado dela, apoiando o queixo nas pernas dela, olhando para ela
enquanto ela come, esperando que ela deixe cair alguma coisa. Robin gosta
de mordiscar cada biscoit o,

mordendo pedacinhos das bordas externas ate sobrar apenas o centr o da


geleia... fazendo com que o prazer que isso lhe proporciona dure o maximo
possıv el.

Apesar de estar tao perto das chamas, ela ainda mal consegue sentir as maos.
Seus dedos eram um arco-ıris vermelho e depois azul depois de usa-los para
limpar toda aquela neve da lapide de Henry. Mas os visitantes nunca a teriam
encontrado se ela nao o tivesse feito, e ela precisa de coisas para se manter
no caminho certo. Ha uma razao pela qual ela os convidou para vir aqui
neste im de semana, e nao por qualquer outr a.

Robin se lembra de quando Henry morr eu.

—Eu preciso que voce v enha.

Foi o que ele disse quando ligou. Nao “ola” ou “como vai voce ?” Apenas
cinco pequenas palavras. Eu preciso que você venha. Ele na o precisou dizer
onde, embora eles nao se falassem ha muito tempo. Ele tambemnao
precisava dizer o porque, mas disse.

— Estou doente — foram as duas palavrinhas extras prof eridas quando ela
nao respondeu. Isso acabou sendo um euf emismo.

Ela sabia que Henry ja havia vendido seu apartamento em

Londres e estava morando em seu refugio escoces em tempo integr al. Ele
sempre foi um eremita que preferia sua propria companhia. O que ela nao
esperava era que seria ela quem ele ligaria em sua hora de necessidade. Mas
nao ter mais ninguem era uma das poucas coisas que tinham em comum. Os
escritores sao capazes de criar os mundos mais elaborados e populares, as
vezes deixando para si mundos bastant e pequenos. Alguns cavalos precisam
de antolhos para fazer o que f azem de melhor e vencer a corrida. Eles
precisam se sentir sozinhos e sem distraçoes. Alguns autores sao iguais; e
uma pro issao solita ria.

O silêncio não pode ser citado erroneamente. Era um dos lemas de Robin.
Mas quando ela ainda nao falou, a linha telefonica estalou e Henry falou
mais uma vez antes de desligar .
—Estou morrendo. Venha ou nao venha. So nao conte a ningue m.

Ela ainda pode ouvir o tom de discagem se fechar os olhos.

Ele explicou mais tarde que estava sem troco para o telef one publico do
hospital. Insistiu que nao havia sido deliberadament e dramatico ou rude.
Robin nao acreditou nele. Ela nunca fez isso. Mas ela entrou no carro
mesmo assim, porque a vida pode ser tao imprevisıv el quanto a mort e.

Ela nao reconheceu o homem sentado na beira da cama do hospital. Sua


ultima foto o icial de autor havia sido tirada pelo menos dez anos antes e
Henry nao envelheceu bem. A jaqueta de tweed, sua marca registrada,
parecia grande demais, como se pertencesse a outr a pessoa, nao havia
gravata-borboleta de seda e tudo o que restava do cabelo branco eram
algumas mechas inas, penteadas sobre a cabeça rosada e careca. Parecia
estranho que o rosto dele nao fosse mais familiar para ela, mas as pessoas
perdem o contato o tempo todo. A distancia nao era um fator decisivo nessas
questoes. Mesmo os vizinhos que vivem lado a lado nem sempre sabem os
nomes uns dos outr os.

Nao houve saudaçao. Sem abraço. Nem, obrig ada.

—Quero ir para casa —foi tudo o que ele disse.

Robin observou Henry assinar os formularios de liberaçao usando uma


caneta-tinteiro que trazia no bolso interno da jaqueta. Seus dedos tremulos
agarraram a caneta com tanta força que os ossos de sua ma o pareciam
prestes a romper sua pele ina como papel. Ela esperou sem dizer uma
palavra enquanto ele rubricava varias declaraço es reconhecendo que estava
deixando o hospital contra orientaça o me dica.

O hospital icava a mais de uma hora de distancia de Blackwater, e eles


icaram sentados em silencio durante toda a viagem pelas estr adas

sinuosas das Terras Altas. Uma vez de volta a capela que ele
transformara em casa, Henry mancou ate o salao que transformara em
biblioteca, acenando para que ela o seguisse. Entao ele abriu a porta secreta
na parede de tras dos livros. Robin nao icou impressionada – ela ja tinha
visto isso antes – mas foi a primeira vez que ele a con vidou para entrar em
seu escrito rio.

Ela olhou para os coelhos brancos que pareciam cobrir todas as superfıcies.
O papel de parede era coberto com um padrao brilhant e deles, as persianas
romanas eram costuradas com uma variedade de saltos, havia grandes
orelhas e rabos de cavalo costurados nas almofadas dos assentos da janela,
havia ate um coelho em um dos vitr ais.

Entao ela notou a gaiola no canto da sala. Grande o su iciente par a


acomodar uma criança pequena. Isso era algo que ela nunca tinha vist o
antes e nao estava v azia.

— Voce tem um coelho como animal de estimaçao? — R obin perguntou,


olhando para a criatur a.

— Mais como um companheiro, na verdade. Gosto bastante de coelhos br


ancos.

— Eu notei — ela respondeu, examinando a sala novamente. — Isso tem um


nome?

Ele sorriu. —Ela tem. Eu a chamei de R obin.

Robin nao sabia o que pensar disso. —Por que?

Seu sorriso desapareceu. —Ela me lembrou de voce .

Henry foi ate a cadeira de sua mesa e sent ou-se.

— Nao sei quanto tempo temos, entao e melhor nao desperdiça - lo. Eu
gostaria de lhe mostrar onde meu testamento esta guardado. Est a tudo
arranjado, so preciso que alguem aperte o botao, por assim dizer , quando
chegar a hora. Existem planos escritos para o que eu gostaria que
acontecesse comigo. Quero ser cremado, mas tudo que voce pr ecisa saber
esta na pasta. Estou na metade do meu ultimo terror, nao poder ei termina-lo
agora. Meu agente cuidara de quase tudo em formato de livro quando chegar
a hora. Mas pode haver algumas decisoes sobr e meu patrimonio literario
que eu preferiria... —Ele olhou para ela, seus grandes olhos azuis
suplicantes, como se esperassem que R obin dissesse alguma coisa. Quando
ela nao o fez, ele pareceu ceder, peg ando gentilmente seus pensamentos
cansados quase de onde os ha via deixado. —Voce deve fazer o que achar
certo. Isso e tudo que qualquer

um de nos pode fazer no inal. Eu prometo que tentei. Ha alguns outr os


endereços de e-mail que voce provavelmente deveria ter – pessoas que
precisam saber que estou morto antes de lerem isso nos jornais – por que nao
os rabisco agora enquanto me lembr o?

Robin observou enquanto ele tirava um laptop da gaveta da escrivaninha. O


rosto de Henry se esticou em algo parecido com um sorriso quando ele viu a
expressao dela, as linhas e vincos abundant es em sua pele duplicando em
numer o.

—Eu sei eu sei. Todo mundo pensa que nao entendo como usar a tecnologia
moderna, mas estou velho, nao senil. Gosto bastante que pensem que sou tao
velho que escrevo os livros com uma pena e um pote de tinta, mas este
pequeno laptop me poupa muito tempo. E muit o mais facil editar para
começar. Eu uso a maquina de escrever par a enviar a versao inal ao meu
agente – para manter a ilusao da pessoa que eles pensam que eu sou – mas
uso um computador para todos os outros rascunhos. Porem, eu estabeleço
um limite para os telef ones celulares – essas coisas causam cancer, marque
minhas palavr as.

Ele digitou a senha no laptop usando apenas o dedo indicador, e bem


devagar, entao ela viu o que era sem realmente querer: R obin. Saber que ele
usava o nome dela para suas senhas e tambem para seu animal de estimaçao
a fez sentir uma sensaçao avassaladora de perplexidade e culpa. Ela nao
sabia o que dizer, entao – mais uma vez – nao disse nada. Ele abriu sua conta
de e-mail usando a mesma senha e isso a fez querer chorar. Ela o conhecia
bem o su iciente para saber que ele queria viver – e escrever – para sempre.
Mas nem todo o dinheiro do mundo pode comprar mais t empo.

— Provavelmente coisas e bobagens, normalmente sao — disse Henry,


voltando sua atençao para alguma postagem fechada sobre a mesa. Ele
pegou um abridor de cartas de prata, que parecia pesado em sua mao fragil, e
cortou entre as dobras do envelope superior. Seus dedos tremeram um pouco
quando ele retirou o que havia dentro: uma carta de seu agente. Robin leu
por cima do ombro e viu como o v elho sorriu quando soube que seu ultimo
livro era um best-seller do New York Time s.

— Isso nao e alguma coisa? — Ele disse, parecendo muito mais com o que
era antes, aquele de quem ela se lembrava. —Eu nao sabia

quando o estava escrevendo, mas esse sera o ultimo livro que

publicarei. Signi ica muito para mim que meus leitores tenham gostado.

— Bem, as opinioes deles sempre foram mais importantes — disse Robin, e


seu rosto se contraiu. — Quero dizer, parabens — acrescentou ela, porque o
que mais ela poderia dizer a um homem moribundo? Ela olhou para o laptop
novamente. — Seu agente ainda escreve cartas para voce e as envia pelo corr
eio?

— Sim.

—Ele nao sabe que voce tem e-mail?

Henry sorriu. —Ha muitas coisas que meu agente nao sabe sobr e mim.

Uma conversa silenciosa ocorreu entre eles, um raro momento de


compreensao. Entao eles se reiniciaram e tudo desapar eceu.

—Ha um pouco de champanhe na cripta —disse ele. —Va buscar uma


garrafa para nos, sim? Tome uma bebida comigo para comemor ar meu
ultimo best-seller? Entao prometo que contarei tudo o mais que voce precisa
saber. Tranquei o alçapao, ate eu ico com calafrios a s v ezes.
— Mas todas aquelas historias sobre corpos sendo encontr ados na cripta, e
bruxas, e fantasmas... voce inventou tudo isso para mant er as pessoas longe
daqui.

Ele sorriu. — Sim, tudo apenas uma invençao da m inha imaginaçao sombria
e distorcida. Mas funcionou, nao foi! A unica coisa que os construtores
encontraram na cripta quando restauramos o local foi umidade. Gosto de
paz, tranquilidade e privacidade. Nao quero que as pessoas me incomodem,
mas as vezes me assusto. Passei tantos anos dentro dessas historias, que o
mundo que inventei me pareceu mais real do que aquele em que vivi. —
Seus olhos azuis lacrimejaram e Robin percebeu que sua mente havia
vagado em algum lugar distant e.

Mas entao ele piscou e voltou. — A chave do cadeado do alçapao est a em


uma das gavetas da cozinha... esqueci qual.

Robin hesitou, mas depois fez o que ele pediu. A primeira coisa que viu ao
entrar na despensa foi o freezer gigante, depois notou t odas as ferramentas
alinhadas na parede, incluindo todos os cinzeis de marcenaria e ferramentas
de alvenaria arrumadas de acordo com o tamanho. O machado a assustou
tanto quanto sempre. Durante anos, Henry gostou de esculpir coisas em
madeira e pedra, ele disse que er a um pouco como esculpir icçao da vida
real. Exigia apenas pacie ncia, imaginaçao e mao irme. Todo verao, ele
derrubava com aquele machado uma velha arvore que bloqueava sua visao
do lago e depois esculpia cuidadosamente uma escultura de animal no toco
restant e. Corujas e coelhos eram seus favoritos. Todos com olhos
assustadores e enormes, um pouco parecidos com os dele.

O alçapao estava realmente trancado e ela levou uma et ernidade para


encontrar a chave. O cheiro de umidade enquanto ela descia os degraus de
pedra a lembrava de tantas coisas que ela preferiria t er esquecido. Mas nao
havia fantasmas na cripta – pelo menos na o daquela variedade e nao
naquele dia – apenas alcool. Quando voltou ao escritorio segurando uma
garrafa de champanhe empoeirada, icou surpresa ao encontrar Henry ainda
olhando para o fragil recorte da lista dos mais vendidos do New York Times.
Seu agente havia cir culado seu livro em vermelho. Era o numero um.
Robin serviu dois copos e estendeu um para o velho pegar, mas ele nao o
fez. Quando ela olhou um pouco mais de perto, ela per cebeu que ele nao
estava se movendo e seus olhos azuis nao piscavam h a algum tempo. Ela
sentiu o pulso, mas nao havia nenhum. Sobre a mesa, ela notou alguns itens
que nao estavam ali antes: um frasco vazio de comprimidos, uma lista de
instruçoes e um testamento. Ela bebeu a taça de champanhe que estava em
sua mao. Nao para comemorar, mas porque ela precisava de alcool. Pelo
menos ele morreu f eliz.

Robin enterrou Henry naquela noite, com medo de que algue m pudesse ver
se ela esperasse o sol nascer. Ela envolveu o corpo dele em um lençol velho
junto com alguns de seus livros favoritos e depois o

arrastou para fora da capela. Em seu testamento, ele pediu para ser cremado,
mas ter um cemiterio do lado de fora e uma pa provou ser muito
conveniente. Embora seja um trabalho arduo. Havia outr as instruçoes que
Robin decidiu ignorar tambem. Como contar a algue m que Henry havia
morrido. Na manha seguinte, ela encomendou on-line uma lapide muito
bonita usando os dados da conta bancaria de Henry , quando chegou, ela
mesma a gravou usando as ferramentas de Henry . Ele tinha uma quantidade
impressionante de dinheiro – mais do que ela imaginava – mas Robin nunca
gastou um centavo consigo mesma. Apesar de icar claro em seu testamento
que o autor havia deixado par a ela uma quantia consideravel. A unica vez
que ela usou o cartao do banco novamente foi para comprar adereços para os
visitantes, por que isso era para eles, nao para ela. Dois dias depois da morte
de Henry, ela demitiu sua faxineira, sabendo que ninguem mais vinha visitar
o recluso. Ate o Blackwater Inn havia fechado anos antes, graças a Henry .
Ele estaria tao sozinho na morte quanto escolheu estar na vida.

Quando Robin encontrou o trabalho de Henry em andamento em seu laptop,


ela o leu mais por curiosidade do que por qualquer outr a coisa. Era outro
terror tipicamente sombrio e sinuoso de Henry Winter . Ela nao percebeu
que estava prendendo a respiraçao durante uma cena particularmente
assustadora, ate que o coelho fez um som inesper ado em sua gaiola e a fez
pular. Robin nao gostou que seu homonimo f osse preso. Ela carregou o
enorme coelho branco para fora da capela, como ele nao fugiu, fechou as
portas atras dele, esperando nunca mais ve -lo novamente. Mas nao se
mexeu. Quando ela o levou para mais longe, mais perto da grama alta e do
lago, ele simplesmente voltou, parado do lado de fora daquelas enormes
portas goticas, como se esperasse par a ser deixado entrar. Ela nao entendia
naquela epoca, mas nem t odo mundo quer ser libertado.

BRONZ E

Palavra do ano :

Atelofobia substantivo. O medo de não fazer alg o certo ou o medo de não


ser bom o suficiente. Um a

extrema ansiedade de fracasso em alcançar a

perfeição .

29 de fevereiro de 2016 – nosso oitavo aniversári o Prezado Adam ,

Não comemoramos nosso aniversário este ano . Tenho passado muito tempo
com um amigo d o

trabalho e você tem, bem, passado tempo com se u trabalho. Você teve
dificuldades com a últim a

adaptação dos livros de Henry Winter. Pessoalmente , acho que porque você
estava se esforçando demai s

para agradar o autor, em vez de ser fiel a si

mesmo. Mas como você disse quando me ofereci par a tentar ajudar algumas
semanas atrás, o que eu sei ?

Eu sei que as mentiras que contamos a nó s

mesmos são sempre as mais perigosas. E sei qu e

às vezes os pensamentos que escondemos na s


margens da nossa mente são os mais honesto s,

porque são só nossos e pensamos que ninguém mai s os verá. Enquanto você
pensa em Henry Winter e

seus livros, eu penso em deixá-lo .

Meu amigo no trabalho é gentil, atencioso e

genuinamente interessado em mim. Ele nunca me fa z sentir estúpida,


insignificante ou dado como certa. A cegueira facial não é a única maneira
de você m e

fazer sentir invisível. Você me faz sentir como se não fosse boa o suficiente
todos os dias. É um a coisa terrível de confessar, mas às vezes m e

pergunto se a única razão pela qual fico é po r causa de Bob. E esta casa .

Adoro esta grande e bela relíquia vitoriana , escondida num canto de


Londres que o temp o

esqueceu. Meu sangue, suor e lágrimas literalment e penetraram em cada


centímetro do lugar enquanto e u a restaurava. Com pouca e quase nenhuma
ajud a

sua. Quando éramos mais jovens, não ousav a

imaginar que um dia poderíamos dividir uma ca sa como esta. Você


provavelmente fez; seus sonho s

sempre foram maiores que os meus. Mas os seu s

pesadelos também o são. Você e eu tivemos o tipo d e infância que é melhor


esquecer, mas as sementes d a ambição crescem melhor em solo raso .

Como você ousa convidá-lo aqui sem nem m e perguntar primeiro ?


Eu tive um dia tão difícil no trabalho – e, se m

ofensa, mas meu trabalho é de verdade, eu não fic o sentada inventando


merda e escrevendo o dia todo – tudo que eu queria era voltar para casa,
toma r

banho e abrir uma garrafa de vinho. Eu podia ouvi r vozes dentro de casa
antes mesmo de colocar a chav e na porta. Sua e uma outra. E cheirava como
se alg o

estivesse queimando. Encontrei você na sala, bebend o uísque com Henry


Winter, enquanto ele fumav a

cachimbo em nossa casa para não fumantes. A princípio pensei que estava
imaginando, mas a jaqueta de tweed e a gravata-borboleta de sed a

pareciam autênticas o suficiente para serem reai s.

— Olá, querida. Temos uma visita — você disse , como se eu não pudesse
ver isso por mim mesma .

Qualquer outra pessoa teria reconhecido a

expressão de horror no meu rosto, ele reconheceu , mas você não reconheceu
porque não pode. Aind a assim, eu teria pensado que você poderia te r

percebido meu extremo desconforto de outra maneira . Às vezes você


demonstra a inteligência emocional d e um sapo com danos cerebrai s.

Vocês dois me encararam, esperando que e u

falasse, mas o que eu poderia dizer? Um de você s

não tinha a menor ideia da situação, enquanto o outr o parecia muito feliz
com isso .
— Olha, este é o novo livro de Henry — voc ê disse, segurando um livro de
capa dura vermelh a brilhante e parecendo muito satisfeito, como se voc ê
mesmo o tivesse escrito e quisesse uma estrel a

dourada .

Henry deu de ombros com falsa modéstia. — Provavelmente não é sua


preferência .

— Não, realmente não. Já vejo horror suficient e no mundo real — respondi.


Talvez você não consig a ler as expressões do meu rosto, mas sou fluent e

nas suas, e se olhares pudessem matar eu estari a no necrotério. Poderíamos


ter cortado a tensão co m

uma colher de chá, então não foi surpresa qu e Henry percebesse .

— Sinto muito por me intrometer. Vendi me u

apartamento em Londres no ano passado e me retire i em tempo integral para


meu refúgio na Escócia –

você e Adam devem vir me visitar – tenho um a

reunião com meu editor na cidade amanhã, mas houv e um problema de


última hora com minha reserva d e

hotel, e seu marido insistiu para que eu fica sse

aqui... — eu não disse uma palavra, — mas nã o quero me intrometer. Eu


sempre poderia.. .

— Você é mais que bem-vindo aqui. Não é ,

querida? — Você interrompeu, olhando para mim . — Claro — eu disse. —


Na verdade, esto u
apenas me trocando e saindo para ver uma amiga . Espero que você tenha
uma ótima noite .

Eu me senti como um convidado indesejado e m minha própria casa .

Praticamente subi as escadas correndo e fiz um a mala. Passei o fim de


semana inteiro com minh a

amiga do trabalho. Fomos a uma galeria de art e

num dia e ao teatro no outro. Eu me senti viva, feli z e livre. Gosto mais da
companhia dela do que d a

sua atualmente. Ela tende a gostar mais de animai s do que de pessoas, por
isso começou a trabalha r

como voluntária na Battersea Dogs Home. Ela m e

escuta, ri das minhas piadas e não faz com que e u me sinta a segunda
melhor o tempo todo. Ela ador a

refeições de microondas e comida enlatada no almoç o – nunca a vi comer


salada ou qualquer coisa verd e

–, mas ninguém é perfeito e há muitas coisas piore s na vida para se viciar .

Quando voltei para casa no final do fim d e

semana, fiquei aliviada porque Henry havia partido . Fiquei triste por você
não parecer realmente se

importar onde eu estive ou com quem eu estava. Voc ê sabia que era uma
amiga do trabalho, mas ne m

perguntou qual era o nome dela. Em vez disso, voc ê apenas olhou para mim
com uma expressão peculia r no rosto .
— O que está errado? — Eu perguntei ,

preocupando-me com Bob, que claramente sentiu mai s a minha falta do que
você .

— Não há nada de errado — você disse naquel e tom mal-humorado de


homem que significava qu e

algo estava. — Você mudou seu cabelo .

— Só um corte .

Você reconhece meu cabelo mais do que meu rosto , e sempre parece
incomodar um pouco quando eu o mudo. Honestamente, é apenas alguns
centímetro s mais curto e com alguns destaques a mais do qu e antes, mas é
bom se sentir notada. Tive vontade d e

me mimar um pouco, como se merecesse um presente , mas percebi pelo seu


rosto que havia outra coisa e m sua mente .

— Você quer me contar o que está incomodand o você agora ou depois do


jantar? — Perguntei .

— Nada está me incomodando. — Você fe z

beicinho como uma criança mimada. — Terminei me u roteiro hoje... e


gostaria de saber se você gostaria d e tomar uma bebida no pub para
comemorar? — E u

estava prestes a protestar educadamente que estav a

cansada, mas você antecipou minha recusa com mai s palavras suas. —
Além disso, gostaria de saber se você poderia lê-lo antes de enviá-lo ao meu
agente ?

E lá estava, não apenas na sua voz, mas no s seus olho s.


Você ainda precisava de mim .

Apesar de todos os colegas e amigos em form a de escritor em sua vida, em


Londres e Lo s

Angeles, você ainda se importava com o que e u

pensava do seu trabalho. Assim como quando no s conhecemo s.

— Eu não pensei que ainda fosse seu primeir o

leitor? — Eu disse, minha vez de parecer petulante . — Claro. Sua opinião


sempre foi mais importante .

Para quem você acha que estou escrevend o

secretamente todas essas história s?

Eu tentei muito não chorar. — Eu ?

— Quase sempre .

Isso me fez sorrir. — Vou pensar sobre isso . — Talvez um jogo de pedra,
papel e tesour a

ajudasse a tomar a decisão ?

— Talvez devêssemos jogar por outra coisa? — Eu disse, forçando-me a


olhar nos seus olho s.

— Como o quê ?

— Tipo... se ainda deveríamos ou não fica r junto s?

Isso chamou sua atenção – ainda mais do que o cabelo – e nenhum de nós
estava sorrindo naquel e
momento. Não sei o que esperava que você dissesse , mas não foi.. .

— Ok. Vamos fazê-lo. Um jogo de pedra, papel e tesoura decidirá o futuro


do nosso casamento. Se e u perder, acabou .

Eu não tinha mais certeza de quem estav a

pagando de quem era o blefe ou se era isso mesmo . Você sempre me deixou
vencer sempre que jogávamo s. Minha tesoura cortaria seu papel. Todo. Vez.
Nã o

sei o que me fez querer que as coisas fosse m diferentes, mas minha mão
adquiriu um nov o

formato. Para minha surpresa, a sua também .

Na primeira tentativa, nós dois formamos um a pedra e deu um empate .

Mas se eu não tivesse mudado minha escolha.. . você teria vencido .

Na segunda tentativa, nós dois escolhemos papel . Com as apostas


consideravelmente mais altas d o

que o normal, a terceira rodada do jogo infanti l pareceu ridiculamente tensa


.

Jogamos novamente. Eu escolhi torcer, mas voc ê decidiu ficar. Seus dedos
em forma de pape l

envolveram meu punho em forma de pedra e voc ê venceu .

— Acho que isso significa que ficaremos junto s — eu disse .

Você segurou minhas duas mãos e me puxou par a mais perto .

— Isso significa que às vezes a vida muda a s pessoas, até mesmo nós.
Ambos somos versõe s
diferentes de nós mesmos em comparação com que m éramos quando nos
conhecemos. Quase irreconhecíve l

em alguns aspectos. Mas eu amo todas as versõe s de você. E não importa o


quanto mudemos, o qu e

sinto por você nunca mudará — você disse, e u

queria acreditar em você. Chegamos tão longe, você e eu, e fizemos isso
juntos. É por isso que não po sso nos deixar desmoronar .

Não fomos ao pub e não fizemos muito par a

comemorar nosso aniversário este ano. Em vez disso , fiquei acordada até
tarde para ler seu trabalho. Er a bom. Talvez o seu melhor. Sentir-se
necessária não é o mesmo que sentir-se amada, mas é próximo o

suficiente para me lembrar de quem éramos. Quer o encontrar essa versão de


nós novamente e avisá-lo s para não deixarem a vida mudar muito quem ele
s são .

Deixei minhas anotações sobre o manuscrito, junt o com meu presente de


aniversário para você, na me sa da cozinha, antes de sair cedo para o
trabalho n o

dia seguinte. Era uma pequena estátua de bronze d e

um coelho saltando no ar. Você pensou que tinha alg o a ver com
AsAventurasdeAlicenoPaísda s

Maravilhas– sabendo que esse era um dos meu s livros favoritos quando
criança – mas você estav a

errado. Comprei porque me lembrou um provérbi o russo que um velho me


ensinou uma vez. Aind a gosto bastante disso :
Se você perseguir dois coelhos, não pegará nenhu m dele s.

Você me deu uma bússola de bronze alguns dia s depois, com a seguinte
inscrição :

PARA QUE VOCÊ SEMPRE POSSA ENCONTRA R O CAMiNHO DE


VOLTA PARA MiM .

Eu não tinha percebido que você pensava que e u estava perdida .

Sua esposa ,

xx

Adam abandona o carro com os pneus furados e v olta furiosamente para


dentro da capela. Eu o sigo pela sala de bag agens, pela cozinha, depois pela
sala, ate que ambos estamos no meio do escritorio secreto de Henry Winter.
Adam olha ao redor da sala. Na o tenho certeza do que ele esta procurando
ou espera encontrar. E u preferia quando pensava que ıamos embor a.

Coelhos brancos sao de initivamente um tema aqui… eles saltam por todo o
papel de parede, nas persianas, nas almofadas. As escolhas de design de
interiores sao inesperadas para um homem de oit enta anos que gostava de
escrever livros sombrios e perturbadores. Mas como Adam sempre diz, os
melhores escritores tendem a nao ter nada e tudo em comum com seus
personagens.

Adam me encara com uma expressao estranha no rost o.

— Se voce sabe alguma coisa sobre o que realmente est a

acontecendo aqui, entao agora seria um bom momento para me contar — diz
ele, em um tom que normalmente reserva para ligaçoes na o solicitadas.

— Nao comece a tentar me culpar. Este lugar pertence ao aut or cujos livros
voce passou os ultimos dez anos de sua vida adaptando. E u

nunca gostei dele. Ou seus livros. E tudo o que vi neste im de semana sugere
que você é a razao de estarmos presos aqui.

Adam olha novamente para a escrivaninha antiga, aquela que pertenceu a


Agatha Christie. E feito de madeira escura e bem pequena, mas tem dez
gavetas minusculas embutidas, que so noto quando ele começa a retira-las.
Cada uma parece uma caixa de madeira em miniatura, quando ele coloca a
primeira na palma da mao, cai uma pequena estatua de bronze de um coelho.

—Ja vi isso antes —ele murmura, ja indo para a proxima gav eta. Dentro
dela, ele encontra um passaro de papel de origami, igual

ao que sempre carrega na carteira. Observo em silencio enquanto a cor


parece sumir de seu rost o.

Nao gosto de ver meu marido assim. Todas as outras pe ssoas veem uma
versao diferente do homem que conheço. Eles nao te m conhecimento de seu
humor, ou de suas inseguranças, ou de seus pesadelos regulares sobre uma
mulher de quimono vermelho sendo atropelada por um carro. Ele nao apenas
acorda sem folego e cobert o de suor quando sonha com ela, as vezes ele
grita. Adam passou a vida inteira fugindo das coisas que mais o assustavam,
embora o menino agora pareça um homem, ele nao mudou tant o.

Nao aos meus olhos.


Ele abre outra gaveta e segura uma chave de ferro que par ece antig a.

A proxima esta cheia de moedas de cobre. Deve haver mais de cem delas,
cada uma com buracos no lugar dos olhos e um rost o sorridente esculpido.

CERÂMIC A

Palavra do ano :

Monachopsis substantivo. A sensação sutil, ma s persistente, de estar fora do


lugar. Incapaz d e

reconhecer o habitat pretendido, nunca se sentind o como se estivesse em


casa .

28 de fevereiro de 2017 – nosso nono aniversári o Prezado Adam ,

Nossa casa não parece mais nossa casa, ma s

pelo menos você não esqueceu nosso aniversário est e ano. Isso é alguma
coisa, suponho. Você estev e

ocupado escrevendo novamente e eu me ocupei fazend o outras coisas com


outras pessoa s.

Optamos por uma noite tranquila – como fazemo s na maioria das noites –
mas com uma garrafa d e

champanhe e comida para viagem para comemora r nossos nove anos de


casamento. Nós doi s

concordamos que comer na sala enquanto assistimos a um filme era a melhor


opção – ficar sentado e m

silêncio apenas destaca nossa luta para conversa r

atualmente. Você me deu um voucher impre sso


comprado em um site de última hora para uma aul a de cerâmica. Eu te dei
uma caneca que dizia V Á LÁ,ESTOUESCREVER.Pensei em sugerir qu e

víssemos um conselheiro matrimonial, mas até agor a nunca pareceu o


momento certo. Nós dois estamo s

agindo com tanto cuidado que paramo s.

Senti um misto de alívio e excitação quando a campainha tocou e nos salvou


de nós mesmos. Voc ê

deu um pulo para atender e passou tanto tempo n o corredor que presumi que
fosse alguém que voc ê

conhecia. Mas era minha amiga do trabalho. El a

estava chorando. Tive uma ligeira oscilação quando v i vocês dois juntos.
Tento não falar sobre nós com ela , mas ela sempre pergunta, então é difícil
não fala r

sem parecer rude. Acho que só queria mantê-la par a mim, uma amiga minha
que não tinha nada a ve r

com você, por mais bobo que isso possa parecer . — O que está errado? —
Eu perguntei, vend o

vocês dois parados ali na porta, você de chinelos, el a de salto alto com
lágrimas escorrendo pelo rosto .

Ela começou como voluntária na Battersea Dog s Home no ano passado. Se


realmente tivéssemos qu e pagar a todos que trabalham para a instituição d e

caridade, logo estaríamos à falência. Os voluntário s

ajudam os funcionários em quase tudo: cuidar do s animais, lavá-los, passear


com eles, alimentá-lo s.
Eles limpam canis, ajudam a conscientizar e

arrecadar fundos em eventos, e alguns até m e

ajudam no escritório. Foi assim que nos conhecemo s. Em troca, ajudei-a


conseguir um emprego remunerad o de tempo integral no início deste ano,
então agora no s vemos quase todos os dia s.

Meus colegas não foram afetuosos com ela com o eu. Eles faziam piadas de
que poderíamos se r

gêmeas se o meu cabelo não fosse loiro e liso, e o

dela, uma mecha de cachos castanhos. Mas acho qu e a maioria dos


comentários mal-intencionados foram d e olhos verdes. A fofoca quase
sempre é filha d o

ciúme. Ela é tímida e socialmente desajeitada, o qu e deixa as pessoas


desconfiadas. Ela também é u m

pouco quieta demais e sempre fala como se

duvidasse de tudo o que sai de sua boca ,

experimentando as palavras para ver o tamanho ,

como se estivesse preocupada que elas não cabessem . Mas não esta noite .

— Sinto muito por aparecer assim, sem se r

convidada — disse ela, enxugando o rosto manchad o de lágrimas com as


costas da mão. Ela usava u m

casaco enorme e fofo com capuz, que não combinav a em nada com os salto
s.
— O que aconteceu? Você está bem? — E u

perguntei e ela começou a soluçar. — Entre.. .

— Não, eu realmente não posso. Adam di sse que é seu aniversário.. .

Seu nome em seus lábios soou estranho aos meu s ouvido s.

— Oh, não se preocupe com isso. Estamo s

casados há quase uma década; nós nem fazemo s mais sexo .

O olhar que você me deu então foi impagável . Eu me pergunto o que meu
próprio rosto fe z

quando ela aceitou o convite, entrou e baixou o capu z para revelar uma
cabeça loira. Os cacho s

camundongos sumiram, em vez disso ele foi pentead o exatamente como o


meu e tingido exatamente n o

mesmo tom .

— Oh... — ela disse, observando minha reaçã o enquanto tirava o casaco. —


Eu fiz meu cabelo .

— Então, entendo — eu disse, observando o rest o da reforma. Seu uniforme


de trabalho, um moleto m Battersea, jeans velhos e tênis – que er a

praticamente tudo o que eu já a vi usar – fo i substituído por um vestido


vermelho justo. El a parecia diferente, mas familiar: ela se pareci a

comigo. Ela até parecia um pouco comigo. O sotaqu e do East End com o
qual eu estava acostumad a

desapareceu, mas muitas pessoas soam diferente s quando estão nervosas. E


ela parecia super nervos a perto de você .
— Eu queria estar bonita porque tinha u m

encontro… mas foi ruim. Ele disse que queria m e

buscar e eu pensei que ele estava sendo antiquado e gentil, mas agora ele
sabe onde moro. Ele m e

ameaçou e ficou muito agressivo quando não o

convidei e... sinto muito, não conheço mais ningué m em Londres, exceto
você e.. .

— Está tudo bem, você está segura agora. Um a

taça de champanhe ajudaria? — Você sugeriu, e el a sorriu com dentes que


pareciam mais brancos do qu e ante s.

Você é sempre um marido melhor quando temo s audiência .

Senti muita pena dela enquanto nós três estávamo s sentados na sala,
bebendo nosso champanhe d e

aniversário e ouvindo suas histórias de terro r

aparentemente intermináveis sobre a vida de solteira . Eu não poderia


imaginar estar sozinha na no ssa

idade. O mundo mudou tanto – namoro online ,

encontros online, aplicativos de namoro – tudo parec e horrível. Eu nunca


tinha visto isso antes – talve z

porque ela fez um ótimo trabalho escondendo-o so b as camisetas largas e os


jeans velhos qu e

normalmente usava – mas minha amiga fica muit o


bonita quando se esforça. Se a vida de solteira é tã o difícil para ela, imagine
como seria para nós, mero s mortais. Eu me sentia velha demais para esse tip
o

de besteira. Eu observei você, observando ela e send o tão gentil e atencioso.


Ela sorria constantement e

enquanto você conversava educadamente, como se houvesse uma cota de


sorrisos que ela precisav a

cumprir antes do final da noite. Fiquei feliz qu e

vocês dois pareciam se dar bem. Ao abrirmos outr a garrafa e sentarmos e


ouvi-la falar sobre encontro s

terríveis com homens terríveis, percebi a quão sortud a eu era por ter um dos
bon s.

— Bem, foi bom finalmente conhecer sua espo sa

do trabalho — você sussurrou, enquanto subíamos n a cama. Ela estava


dormindo em nosso quarto d e

hóspedes, dada a quantidade de álcool que consumiu , provavelmente não


havia necessidade de abaixar a

voz .

— Não sei por que nunca a convidei ante s.

Agora que penso nisso, não tenho certeza de com o

ela sabia onde me encontrar – acho que nunca lhe de i nosso endereço – mas
estou feliz que ela tenha feit o

isso .
— Ela não é exatamente o que eu imaginei pel a maneira como você a
descreveu. Ela parece... legal .

— Você disse isso como se fosse um insulto. Voc ê a achou atraente ?

Você riu. — Não .

— Realmente? Mesmo com o cabelo, os salto s altos e a maquiagem.. .

— Realmente não. Além disso, não consigo ve r tudo isso, lembra? Eu só


vejo o que está dentro . — E o que você viu? Dentro ?

— Uma atriz. Já conheci o suficiente delas par a saber .

Eu ri. — Isso é loucura... ela é uma ratinh a quieta na maior parte do tempo .

— Nem todas as atrizes estão no palco .

Algumas andam entre nós, disfarçadas de pessoa s

normais. — Nós dois rimos e você me abraçou mai s perto. Há algo de


mágico em estar em uma cam a

quente quando está frio lá fora. Compartilhar o calo r corporal com alguém
que você ama. Ou costumava .

Mas só porque ainda dividimos a cama não signific a que ainda


compartilhamos as mesmas opiniõe s.

— O que você vê dentro de mim? — Perguntei . — O mesmo de sempre,


minha linda esposa .

Você olhou para mim então e eu me senti vista . — O quê aconteceu


conosco? — Eu perguntei ,

esperando que você desviasse o olhar ou mudasse d e assunto, mas você não
o fez .

— Eu não sou quem era há dez anos, e voc ê

também não, e está tudo bem. A única pergunta qu e precisamos nos fazer é:
amamos quem somos agora ? Ouvir sua amiga esta noite me fez sentir
solitário e sortudo ao mesmo tempo. O sucesso de u m

relacionamento não pode ser medido apenas pel a

longevidade. Adoro que celebremos esses marcos a cada aniversário, e até


sorrio com as notícias sobr e

casais que estão juntos há setenta anos, mas també m

acho que é possível ter um caso de uma noite qu e pode ser mais profundo
do que alguns casamento s. Não se trata de quanto tempo dura u m

relacionamento, mas do que ele ensina um sobre o outro e sobre você mesmo
.

— O que você está dizendo ?

Você sorriu. — Pedra. Papel. Tesoura .

— O quê ?

— Você me ouviu, pedra, papel e tesoura. Se voc ê vencer, ficaremos juntos


para sempre .

Deve ter passado um ano desde a última vez qu e jogámos esse jogo. Mas
você me deixou vencer com o sempre fazia, minha tesoura cortando seu
papel .

Parece bobagem, mas senti como se fosse um sina l de que talvez também
fôssemos mais parecidos co m quem éramo s.
— O que teria acontecido se eu tivesse perdido ? — Perguntei .

— De qualquer maneira, ficaríamos juntos par a sempre, porque eu amo


você, Sra. Wright — voc ê

respondeu, passando o braço em volta da minh a

cintura. Se fosse o álcool falando, eu não m e

importava. Você passa o dia todo trabalhando co m palavras, mas essas eram
as únicas três que e u precisava ouvir .

— Eu te amo mais — eu disse, e fizemos amo r pela primeira vez em muito


tempo .

Eu sou uma garota que gosta de estar na mesm a página quando se trata de
relacionamentos, é um a

maneira perigosa de ser. Uma queda feia, ou u m

deslize infeliz, e tudo o que me importa pode racha r e quebrar. Eu encontrei


minha pessoa quando encontre i você, e nunca mais precisei ou quis outra
pesso a

desde então. Certo ou errado, eu coloquei toda a minha parte emocional em


nós. Adotei sua s

esperanças e sonhos e os amei como se fosse m

meus. Eu me importava tanto com você que não tinh a mais nada para dar a
ninguém, nem a mim mesma . Eu estava satisfeita com um círculo social
grande o suficiente para dois. Você sempre foi o suficient e

para mim, mas nunca senti que era o suficient e

para você. Talvez isso possa mudar. Talvez se e u tentar te amar um pouco
menos, a balança po ssa
pender a meu favor e você possa me amar um pouc o mai s?

Preocupo-me muito com minha amiga de trabalho , mas não quero acabar
como ela. Vê-la aqui em nos sa casa – tão solitária, triste e quebrada – foi u
m

alerta. Engraçado como o infortúnio de outra pesso a pode fazer você


perceber o que tem. Precisamo s

parar de considerar uns aos outros como garantido s. Essa é outra coisa que
ninguém lhe conta sobr e

casamento; às vezes é bom, às vezes é ruim, nã o

significa que acabou. Talvez isso seja tão bom ou tã o ruim quanto possível?
Então, embora nossa ca sa

tenha deixado de parecer um lar, vou tentar conserta r isso e vou tentar nos
consertar. Mesmo que i sso

signifique aconselhamento, ou compromissos, ou talve z algum tempo longe,


só você e eu... e Bob. Talve z

todos os casamentos tenham segredos, e talvez a única maneira de continuar


casado seja guardá-los .

Sua esposa ,

xx
—O que isto signi ica? —Pergunto, segurando a pequena gav eta cheia de
moedas em uma mao e uma caneca quebrada VA EMBORA, ESTOU
ESCREVENDO na outra. Posso sofrer de cegueira facial e de algum
problema neurologico estranho, mas nao ha nada de errado com minha
memoria (na maior parte do tempo). A mesa esta cheia de presentes de
aniversario que minha esposa me deu ao longo dos anos. —Voce esta
envolvida em tudo isso?

—O que? Nao! —Amelia diz.

Eu ico olhando para ela, procurando a verdade, mas nao consigo nem ver seu
rosto. Suas feiçoes estao girando como uma pintura de V an Gogh e sinto
tontura so de olhar em sua direçao. As vezes consigo reconhecer as pessoas
pelo formato ou pela cor do cabelo, ou por um par de oculos caracterıstico.
As vezes nao sei se os conheço.

— Entao como voce explica isso? — Eu digo, voltando-me para a mesa. —


Voce organizou esta pequena viagem a Escocia, voce nos trouxe ate aqui...

— Nao consigo explicar nada do que aconteceu neste im de semana.


—Nao pode ou nao quer? Voce ja sabia que Henry Winter estav a mort o?

— Acho que voce precisa se acalmar. Eu nao sabia de nada. E u ainda nao
sei. Exceto aquilo…

—O que? —Eu pergunto a ela.

— Voce disse que Henry entregou um novo livro em setembr o, mas agora
sabemos que ele morreu no ano anterior .

—Enta o?

— Entao, e se outra pessoa escreveu? — Ela grita a pergunta e percebo que


tambemestive gritando.

E uma sugestao ridıcula. Desde entao, o livro foi publicado em todo o


mundo. Sera que ela acha mesmo que ninguem – incluindo seu agente, seus
editores e seu exercito de fas – teria notado se outr a pessoa tivesse escrito
um livro de Henry Winter? Mas aı eu faço as contas e ela tem razao, nao bat
e.

—Isso nao e possıvel —respondo. A resposta na minha cabeça e menos


decisiva, mas nao a compartilho com minha esposa.

Os escritores sao uma especie estranha e imprevisıvel. Ser um exige


paciencia, determinaçao, automotivaçao su iciente para tr abalhar sozinho no
escuro e autocon iança para continuar quando as sombr as tentam consumi-
los. E elas tentam... eu deveria saber. A outra coisa que todos os escritores
tem em comum e que, na melhor das hipoteses, sa o excentricos, na pior,
loucos. Henry ingiria sua propria morte por algum motiv o?

—Nos dois vimos alguementrar na capela mais cedo. Lembr a-se? E quem
devemos culpar por tudo isso. Nao um ao outro —diz Amelia.

—E a mulher na cabana?

—A bruxa com as velas e o coelho branco? Voce disse que ela er a v elha…
— Eu disse que ela tinha cabelos grisalhos. Nao vimos mais ninguemdesde
que cheg amos.

— Entao, vamos voltar. Bater na porta dela novamente. Na pior das


hipoteses, ela lança um feitiço e nos transforma em coelhos br ancos tambem
—responde Amelia, parecendo mais calma do que dev eria.

Talvez porque ela já saiba o que está acontecendo aqui e tudo isso seja uma
encenaç ão.

Sempre me sentirei culpado por trair minha esposa, mas Santa Amelia
tambem dormiu com alguem que nao deveria. E como se ela
convenientemente esquecesse essa parte da historia. Mas nao posso.
“Chame-me de Pamela” disse a conselheira, que precisavamos seguir em
frente, aprender a deixar isso para tras, mas ainda estou chocado com a
facilidade com que minha esposa ment e.

Eu gostaria de poder ver o rosto dela agora, do jeito que outr as pessoas
podem. Eu me pergunto se ela parece assustada? Ou ela par ece tao
composta quanto parece? E se for assim, visto que parecemos estar presos e
possivelmente em perigo, por que ela nao esta tao assustada quanto eu? Ela
parece ter esquecido completamente de seu amado cachorro. Ela esta
mentindo sobre alguma coisa e nao sei o que me assusta. Um casamento
mal-assombrado e tao assustador quanto uma casa mal-assombr ada.

—Venha comigo —eu digo, pegando a mao dela... ela esta sempr e
reclamando que eu nao a seguro com frequencia su icient e.

Seu rosto e voz podem nao denuncia-la, mas Amelia nao con segue

controlar a respiraçao. Se ela esta genuinamente estressada ou

assustada, e sempre a primeira coisa a desaparecer .

Chegamos a velha escada em espiral de madeira que leva ao


primeiro andar, e aponto para a galeria de fotos em preto e branco na parede.
Isso esta me incomodando desde que chegamos aqui.

— Quem sao as pessoas nessas fotos, voce reconhece algum de seus rostos?
—Eu pergunt o.

Posso dizer que os retratos ao pe da escada sao de pe ssoas

vestidas com roupas vitorianas. Os mais proximos do topo par ecem mais
recentes. Posso ver que alguns dos sujeitos sao adultos, outros sa o crianças,
mas – como sempre – nao consigo ver nenhum dos seus rost os.

Amelia balança a cabeça, entao começo a puxa-la escada acima. —Que tal
agora? Alguemaqui parece f amiliar?

— Voce esta me assustando, Adam — ela diz, e posso ouvir pela sua
respiraçao que ela esta dizendo a verdade. Estou prestes a me desculpar
quando ela fala novament e.

—Espera aı, acho que essa foto e do Henry adolescente… e a que esta
abaixo tambem se parece um pouco com ele, so que mais jov em, com um
homem e uma mulher. Pais, talv ez.

—Algum tipo de arvore genealogica, talvez? Continue —eu digo, nao a


deixando ir .

—Tenho quase certeza de que a maioria dessas fotos e de Henry . Nao


percebi ate agora, mas nao sabia o que procurar. Ele e muito mais jovem do
que o rosto que vejo nas capas dos livros e nos jornais – t odos tao
desatualizados.

Agora eu solto a mao dela.

Eu mesmo ico olhando as fotos, tentando ver o que ela ve, mas e inu til.

—Alguemmais parece familiar? —Pergunto, quando Amelia par a


abruptamente no topo da escada. Percebo que ela gira o anel de noivado de
sa ira varias vezes no dedo.

—Tem algumas fotos de uma garotinha tambem…esper e. —O que ?

— Essas fotos nao estavam aqui antes. Voce se lembra? Ha via apenas tres
formas retangulares desbotadas com pregos enf errujados saindo da parede.
Alguem os colocou de volta. — Estou prestes a perguntar se foi ela, mas
mordo a lıngua. —Acho que esta foto e de...

Vejo algo por cima do ombro dela antes que ela termine a fr ase.

—Uma das outras portas esta aberta —interrompo, correndo em direçao a


ela.

Todas as portas do patamar estavam trancadas ontem a noit e, exceto a que


dava para o quarto onde dormıamos e a que dava para a torre do sino. Mas
agora outra porta esta aberta e me vejo dentro de um quarto de criança.

Tudo esta coberto de poeira como o resto da capela, mas est e quarto
tambem esta cheio de teias de aranha. Cheira a mofo, como se nao tivesse ao
ar ha meses. Talvez mais. A coisa mais assustadora que me chama a atençao
e a grande casa de bonecas no meio do quart o. Parece antiga. Tambemse
parece muito com a nossa casa em Londres – uma casa vitoriana de fachada
dupla. Nao consigo evitar de abrir as portas empoeiradas, quando vejo que
os comodos internos esta o decorados de maneira semelhante a nossa casa,
começo a me sentir mal. As mesmas duas bonecas esculpidas em madeira
estao em t odos os quartos, mas nao sao replicas em miniatura de Amelia e
de mim. Um e um velho do tamanho de uma boneca, vestindo jaqueta de
tweed e gravata borboleta, o outro e uma boneca menina, vestida de v
ermelho. Em todas as cenas de faz de conta eles estao de maos dadas, e o v
elho esta sempre fumando cachimbo. Quando olho mais de perto, vejo que
os cachimbos sao na verdade copos e talos de bolota.

—Voce viu isso? —Amelia per gunta.

Ela esta segurando uma velha caixa de surpresas. Eu tive uma exatamente
igual quando criança e isso me aterrorizou. A princıpio na o entendo o signi
icado, ate ver que o nome Jack foi riscado, de modo que agora esta escrito
Adam-na-caix a.

Minha mae me ensinou o nome frances para essas coisas quando eu era
pequeno: diable en boîte, literalmente “caixa do diabo.” T antas coisas
inesperadas me lembram dela. E sempre que o fazem, revivo a noite em que
ela morreu: a chuva, o som terrıvel dos freios do carro, o quimono vermelho
dela voando no ar. O cachorro era meu. Implorei a ela que me deixasse icar
com um, mas nao cuidei dele. Se eu, aos tr eze anos, tivesse levado o
cachorro para passear, como prometi, ela na o teria morrido andando pela
calçada naquela noit e.

Meus dedos, aparentemente independentes da minha ment e, encontram a


manivela da Adam-na-caixa e a giram. Devagar. A melodia nostalgica toca e
a voz da minha mae canta dentro da minha cabeça.

Minha mãe me ensinou a costur ar;

E como en iar a linha na agulha; Cada vez que meu dedo escorreg a; Pop!
Vai à doninha.

Jack sai da caixa e eu pulo, mesmo sabendo o que estava por vir . Com seu
cabelo ruivo selvagem, rosto pintado e roupa azul manchada, parece
assustador, ainda mais do que aquele de que me lembro quando criança,
porque faltam-lhe os olhos.

Acho que entendi a mensagem nao tao sutil, mas o que mais não estou v
endo?

Ao me virar para observar o resto do quarto, noto que o papel de parede, as


cortinas, os travesseiros e o edredom estao todos cobert os de imagens
desbotadas da mesma coisa: robins9. Entao vejo o quadr o- negro infantil
empoeirado e independente no canto do quarto. As palavras de giz
desapareceram e foram claramente escritas anos atra s, mas ainda consigo
decifra -las:

Não devo contar hist órias. Não devo contar hist órias. Não devo contar hist
órias.

ESTANH O

Palavra do ano :

Metanoia substantivo. Uma mudanç a

transformadora de coração. A jornada de mudar a mente, a si mesmo ou o


modo de vida .

28 de fevereiro de 2018 – nosso décim o

aniversári o

Prezado Adam ,

Não é realmente o nosso décimo aniversário. Esto u escrevendo esta carta


um pouco tarde por causa d o

que aconteceu .

Achei que as coisas estavam muito boas entre nó s este ano. Achei que
estávamos felizes. Eu estava, e pensei que você também estava. Olhando de
fora ,

nosso casamento era definitivamente bastante sólido . Mas eu era cega,


estúpida, uma tola crédula ,

errada. Nada parece real agora que sei a verdade .

Sinto-me como se estivesse presa dentro de um glob o de neve, mais uma


sacudida e desaparecere i

completamente .
Durante muito tempo, parecia que alguém estav a nos observando. Não
consigo explicar o sentiment o

nem colocá-lo em palavras, mas acho que todo s

sabemos quando estamos sendo observados. Seja n o trabalho, passeando


com o cachorro ou apenas n o

metrô. Você pode sentir quando os olhos de outr a

pessoa estão olhando em sua direção por mais temp o do que deveriam. Você
sempre sabe. É instinto .

Normalmente, quando chego em casa do trabalho , você ainda está no seu


escritório. Mas na noit e

anterior ao nosso décimo aniversário, encontrei voc ê

sentado na sala, no escuro, assistindo a um episódi o antigo do


TheGrahamNortonShowno BBC iPlayer . Henry Winter é conhecido por
nunca dar entrevista s, mas para comemorar a publicação de se u

quinquagésimo terror em cinquenta anos, ele concordo u em dar uma no ano


passado. Assistimos juntos n a

época. Graham Norton estava engraçado e charmos o como sempre, mas


lembro-me de me sentir ma l

quando ele apresentou Henry. Um velho que ma l

reconheci subiu no palco antes de se sentar no sof á vermelho. A bengala,


com cabo prateado em form a

de cabeça de coelho, era uma novidade em seu palet ó de tweed e uniforme


de gravata-borboleta. Assi m

como o sorriso em seu rosto. Parecia que doía .


Eu gostaria que nunca tivéssemos visto a

entrevista, mas vimos, e ontem à noite vi voc ê

assistindo repetidas vezes. A parte em que Henr y Winter mencionou você.


Fiquei em silêncio no corredo r de nossa casa e observei enquanto você
rebobinava e tocava sete veze s.

Graham inclinou-se para frente. — Agora, diga - me, só entre nós... — o


público riu, — o que voc ê

realmente acha das adaptações de seus livros para a TV e o cinema ?

O sorriso falso desapareceu do rosto fortement e enrugado de Henry .

— Não tenho televisão, sempre preferi ler . — Mas você deve tê-los visto?
— Graha m

persistiu, tomando um gole de vinho branco .

— Eu os vi. Não posso dizer que gosto muit o deles. Mas fui persuadido a
deixar o roteirist a

tentar – sua carreira não estava indo a luga r

nenhum antes de eu dizer sim – e mesmo que e u não goste do que ele fez
com os livros, muita s

outras pessoas gostam. Então …

Graham riu. — Caramba, vamos torcer para qu e ele não esteja assistindo !

Mas você estava assistindo. Eu também. Ach o que você não falou com
Henry nem escreveu nad a novo desde então .

Você culpou seu agente pelo que Henry disse, e


eu me senti péssima... gosto do seu agente, ele é u m dos mocinhos no que às
vezes pode ser um ma u

negócio, mas ainda assim não consegui lhe contar a verdade. Achei que as
coisas entre nós finalment e

estavam de volta aos trilhos, dizer a você que fui e u a razão pela qual Henry
deixou você adaptar o s

livros dele não parecia uma ideia muito brilhante .

Não sei o que fez você ficar sentado no escuro e assistir a um clipe antigo de
Henry colocando voc ê

no chão. Não sei por que você ainda se importa co m o que ele pensa. Notei
então a garrafa de uísqu e

pela metade – a marca favorita de Henry – ao lad o do seu prêmio Bafta. É


difícil quando o ponto alt o

da carreira de alguém vem logo no início. Às veze s é melhor começar aos


poucos... dar espaço par a

crescer .

Voltei para o corredor, bati a porta da frente e subi correndo as escadas. —


Só vou tomar u m

banho rápido — gritei, para que você pensasse qu e não te vi. Quando desci,
a TV estava desligada, o uísque havia acabado e o Bafta estava de volta n a
prateleira. Eu me perguntei há quanto tempo voc ê

estava fingindo estar bem, quando na verdade estav a se sentindo quebrado.


Representando todas as noite s quando chegava em casa. Seu trabalho
significa qu e você passa muito tempo sozinho. Um pouco demai s
às vezes, talvez. Eu queria consertar você, mas nã o sabia como .

No dia seguinte – nosso aniversário – decidi sai r mais cedo do trabalho. Eu


estava determinada a

animá-lo e surpreendê-lo. Algo parecia errad o

enquanto eu caminhava pelo caminho do jardim. A árvore de magnólia que


você plantou no meio d o

gramado no nosso quinto aniversário parecia qu e

estava morrendo. Optei por ignorar o que poderia te r sido um sinal e deixei
Bob e eu entrarmos em casa . Tudo estava quieto e silencioso, como sempre
acontec e quando você está no escritório, o que quase sempr e

acontece. Havia uma lata de feijão cozido na me sa da cozinha... pensei que


fosse algum tipo d e

brincadeira, sabendo que a lata era o present e

tradicional durante dez anos de casamento. Sorri e subi direto para o nosso
quarto. Planejei passar u m

pouco de tempo me cuidando, em vez de cãe s

abandonados, para variar, antes de surpreender você . Mas você me


surpreendeu em vez disso .

Você ainda estava na cama .

Com minha amiga do trabalho .

Ela ligou dizendo que estava doente naquel a manhã. Agora eu sabia por quê
.

Tudo parou quando entrei no quarto. Não m e


refiro apenas a você, ou a ela, ou ao que você estav a fazendo. E não quero
dizer apenas que parei d e

respirar – embora parecesse que parei – foi como se o próprio tempo tivesse
parado perfeitamente ,

esperando que os pedaços da minha vida quebrad a caíssem e ver onde eles
iriam parar .

Eu apenas fiquei ali, olhando, incapaz d e

processar o que estava vendo .

Ela sorriu. Sempre me lembrarei disso. Então m e lembro de você olhando


entre nós duas. Sua espos a na porta e sua amante na nossa cama .

— Achei que fosse você — você disse, enroland o o lençol em volta de si.
Quando eu não respondi, voc ê disse de novo. Como se as palavras
pudessem soa r

menos como mentiras se você as dissesse um a segunda vez. — Pensei que


era você .

Só de pensar em mentir pode fazer você corar e suas bochechas ficarem


vermelha s.

Não estou orgulhosa do que fiz a seguir. E u

gostaria de ter dito algo inteligente, mas nunca fu i boa em saber o que dizer
até muito depois de u m

acontecimento, e mesmo agora não consigo encontrar a s palavras certas


para o que vi naquela tarde. Entã o

não disse nada, mas fui até o galpão do jardim ,


peguei uma pá e desenterrei aquela maldita magnóli a do meu outrora
perfeito gramado. Ela saiu e voc ê

apenas assistiu com horror. A árvore já estav a maior do que eu, mas
arrastei-a pela porta d a

frente e subi as escadas, arranhando as paredes e deixando um rastro de terra


e galhos quebrado s

atrás de mim. Depois a joguei na cama onde voc ê dormiu com ela, antes de
enfiá-la debaixo do s

lençóis, como um bebê .

— Eu farei o que você quiser para conserta r

isso. Aconselhamento? Um feriado? Poderíamos i r

para a Escócia, como fizemos na nossa lua de mel ?

Qualquer coisa? — Você disse, enquanto eu arrumav a uma mala. Mas não
acho que nada possa no s

consertar agora. Você quer ?

Sua espo sa
Adam ainda nao juntou as peças do quebr a-cabeça.

Ele olha para o quarto da menina onde tudo esta coberto de tordos,
parecendo uma criança perdida. Ate eu pegar sua mao e leva -lo de volta ao
patamar. Paramos no topo da escada em espiral e apont o para a ultima foto
emoldurada na par ede.

—Quem e esse? —Ele pergunta, embora eu tenha quase cert eza de que ele
ja deve saber. Ter cegueira facial nao pode impedir algue m de ver a ver
dade.

O relogio de pendulo do quarto começa a tocar e nos dois pulamos... Achei


que tinha par ado.

—E voce —eu digo. Estudamos entao a imagem: o terno caro que ele usou
no casamento, os confetes nos ombros, o vestido de noiva, as alianças, os
sorrisos felizes… e outra pessoa na foto. — Henry esta em segundo plano.
Nos dois sabemos que ele nao foi convidado, mas o fat o de ele estar la –
parado na rua em frente ao cartorio, pelo que parece – junto com a visao
desta foto em sua parede de retratos de famı lia, sugere que ele pensava em
voce como muito mais do que apenas um roteirista que adaptou seus livr os.

Adam ainda nao ent ende.

Isto nao vai ser facil. Mas meu marido precisa saber a ver dade agora, e
precisa ser eu quem lhe cont e.

—A mulher na foto do casamento nao sou eu.

— O que voce quer dizer? — Pergunto, olhando para a foto de uma noiva e
de um noivo cujos rostos nao consigo ver .

—E uma foto do seu primeiro casamento. Quando voce se casou com R


obin.

Ficamos em silencio no topo da escada. Parece que icamos assim por muito
tempo, enquanto tento processar o que Amelia disse.

—Eu nao ent endo...

— Acho que sim — diz ela. — Acho que embora voce tenha sido casado
com Robin por dez anos, ela nunca lhe contou que era ilha de Henry Winter.
Acho que ela cresceu aqui e o quarto daquela menina er a dela.

Fico olhando para minha segunda esposa por um longo t empo, tentando ver
em seu rosto se isso e algum tipo de brincadeira. Mas os redemoinhos de
Van Gogh estao de volta e eu agarro o corrimao par a me equilibrar .

—Isso e uma loucura. Isso nao pode ser ver dade!

Amelia balança a cabeça. —Eu sei que voce nao consegue ver, mas essas
tres fotos na parede – as que estavam desaparecidas ontem – sa o todas da
sua ex-mulher. Este e voce e Robin se casando, com uma bomba fotogra ica
de Henry. —Ela aponta para a proxima foto. — Esta e Robin quando ela era
mais jovem, adolescente, eu acho, em um bar co a remo pescando no Lago
Blackwater. E esta... — ela aponta para o quadro inal, —e uma garotinha,
que se parece com Robin, sentada no colo de Henry lendo um livro,
enquanto ele fuma cachimbo.

Minha mente esta correndo para frente e para tras no tempo e f alo meus
pensamentos em voz alta.

—Isso nao pode ser real. Henry nao teve ilhos...

—A lapide no cemiterio diz diferent e.

— Robin nunca quis falar sobre sua famılia, especialmente sobr e seu pai.
Ela disse que eles estavam separ ados...

—Nao duvido, mas acho que ha uma razao pela qual ela nunca lhe contou
quem ele er a.

Estudo novamente os rostos nas fotos, mas mesmo agora que sei o que
procurar, todos parecem iguais.

—Eu sei que voce nao pode ver por si mesmo, entao voce vai t er que con iar
em mim — diz Amelia. Depois de me seduzir, o marido de sua melhor
amiga, con iar nela e algo em que nunca fui muito bom. — Estou lhe
dizendo que essas fotos sao todas da sua ex-mulher. As dela quando menina
parecem iguais as de Henry quando menino. A

semelhança e estranha. Eles poderiam ser gemeos separados por


quarenta anos, ou talvez fosse hora de aceitar que Robin e ilha de

Henry .

Suas palavras parecem uma serie de tapas, beliscoes e socos. Na o consigo


entender isso, mas estou começando a acreditar no que Amelia esta dizendo.

—Nao entendo por que nenhum deles teria me contado algo ta o grande
como isso — digo, odiando o som patetico da minha pro pria voz. Talvez eu
nao consiga ver a beleza por fora, mas Robin era a pessoa

mais linda por dentro. Eu podia sentir isso sempre que ela estava na mesma
sala. Todos os outros tambem souberam disso assim que a conheceram – ela
era tao boa, genuına e honesta. Nao consigo imagina - la mentindo para mim
sobre nada, muito menos sobre algo tao gr ande como isso.

—Talvez houvesse uma boa razao pela qual nenhum deles q ueria que voce
soubesse? Quem voce conheceu primeiro? Como surgiu a ideia de voce
adaptar os livros de Henry Winter? —Amelia per gunta.

Lembro-me daquele dia feliz, quando Robin e eu dividıamos um


apartamento de porao de baixa qualidade em Notting Hill. Tı nhamos tao
pouco naquela epoca, mas muito mais do que tenho agora. Er amos almas
gemeas que sobreviveram a infancias difıceis e estav amos sozinhos no
mundo ate nos encontrarmos. Robin sempre acreditou em mim e no meu
trabalho, nao importa o que acontecesse. Ela acredit ou em mim quando
ninguem mais acreditou e sempre esteve la sempr e que eu precisei dela.
Sempre. Sem nunca querer nada em troca. Sint o Amelia olhando para mim,
esperando uma r esposta.

— Meu agente ligou aleatoriamente quando eu estav a desempregado,


dizendo que Henry Winter havia me convidado par a encontra-lo em seu
apartamento em Londres — digo, uma de minhas lembranças mais felizes
apagada assim que o f aço.

—Isso e normal?
Eu nao respondo a princıpio. Nos dois sabemos que nao e. — Bem, o agente
dele morreu de repent e...

—Do que ?

— Nao me lembro... so que foi um choque. Seu agente era bem jov em.

— Engraçado como as pessoas que se interpuseram entre voce e Robin


parecem morrer ou desaparecer .

—O que isso signi ica?

—Ela nao tinha exatamente muitos amigos.

Ela nao precisava deles. Ela me tinha, com ou sem razao, eu er a tudo o que
ela queria. Mas eu tomei isso como cert o.

—Ela nao tinha problemas em fazer amigos —digo, ciente de que agora
estou defendendo minha ex-mulher. — Todo mundo gostava de Robin. Ela
raramente gostava deles tambem. Ela se tornou bastant e amiga de October
O'Brien quando trabalhavamos junt os.

— October morreu. Ha uma gaveta cheia de recortes de jornais sobre ela na


cozinha.

— Voce nao pode pensar seriamente que... foi suicídio. R obin

tambem era sua amiga. Ela conseguiu um emprego para voce em

Battersea quando voce era voluntaria, foi gentil com voce, con iou em voce
...

— Isso nao e sobre mim. Sera que aquele encontro inesper ado com um
autor de best-sellers internacional aconteceu porque voc e estava morando
com a ilha dele? —Amelia diz, como se falasse em v oz alta sobre meus
medos particulares. — Acho que durante esses dez anos em que voce foi
casado com Robin, voce foi genro de Henry Winter. Voce simplesmente nao
sabia disso.

—Bob —eu sussurr o.

—E ele?

—Ele era o cachorro de Robin. Ela o adotou em Battersea, amou-o como se


fosse uma criança. Se ela o tiver, pelo menos sabemos que ele esta segur o.

— Voce realmente acha que ela esta por tras de tudo isso? — Amelia per
gunta.

— Quem mais pode ser? A questao mais importante nest e momento e: por
que estamos aqui e por que agora? Se ela quisesse vingança, seria preciso
esperar muito tempo. Entao o que ela quer? P or que nos enganar para
virmos para a Esco cia?

—Nao sei, ela e sua ex -esposa.

—Ela e sua ex-amiga. Voce me disse que quando ganhou um im de semana


aqui, o e-mail dizia que so poderıamos vir neste im de semana. Isso esta
certo? —Eu pergunt o.

Ela da de ombros. —Sim. Mas por que? O que ha de tao especial neste im de
semana?

—Nao sei. Qual e a data?

Amelia veri ica seu telefone. — Sabado,… vinte e nove de fevereiro. E um


ano bissexto, eu nem tinha percebido. Isso signi ica alguma coisa?

—Sim —eu digo. —E nosso aniversario de casament o. Ela parece confusa.


—Nos nos casamos em setembr o... —Nao e nosso. E a data em que me
casei com R obin.
Robin se lembra de ter saıdo de casa em Londres, no dia em que encontrou
Adam e Amelia na cama juntos. Ela se lembra da arvore de magnolia e de
tirar o anel de noivado de sa ira que pertencera a mae de Adam, junto com
sua aliança de casamento, e deixa-los na mesa da cozinha. O resto e, na
melhor das hipoteses, um borrao. Ela pegou sua bolsa, algumas de suas
coisas favoritas, entrou no carro e dirigiu. Ela nao sabia o que iria fazer, nem
para onde iria, so precisava ir par a muito, muito longe deles, o mais rapido
possıvel. Seu maior erro f oi deixar Bob para tras. As unicas pessoas que nao
se arrependem sao os mentir osos.

Foi entao que Henry ligou. Para dizer a ela que ele estav a morrendo e pedir
que ela voltasse para casa.

Robin nao falava com o pai ha anos, mas uma serie de estr elas cadentes
pareciam se alinhar naquela tarde, para guia-la de volta a casa de onde ela
fugiu quando criança. Verdade seja dita, ela nao tinha outr o lugar para ir .

Robin ainda se lembra de quando Amelia começou a trab alhar como


voluntaria na Battersea Dogs Home, e de como ela teve pena da criatura
tımida e solitaria, da mesma forma que teve pena de todos os
animais abandonados que chegaram la. Ela ajudou Amelia a conseguir um
emprego e uma vida, tornou-se sua amiga e em troca a mulher roubou-lhe o
marido. Ela parece tao diferente agora, com seus cabelos loiros, roupas
elegantes e o ex-marido de Robin de braço dado. Mas, por mais terrıvel que
seja ser traıda por uma amiga, foi Adam quem R obin culpou a princıpio.
Para tudo.

Nao mais.

Agora ela culpa os dois, e e disso que se trata este im de semana e por que
ela os enganou para virem aqui.

Robin passou por luto apenas tres vezes em sua vida:

Quando ela parou de tentar ter um ilho.

Quando seu marido a tr aiu.

E quando a mae dela se afogou em uma banheira com pe s.

O mundo inteiro pensou que foi um acidente, mas não foi. R obin sempre
acreditou que Henry foi o responsavel pela morte de sua ma e. Foi por isso
que ele realmente mandou Robin para o internato, e por que ela fugiu assim
que teve idade su iciente para partir para sempr e. Ele removeu quase todos
os vestıgios de sua mae da capela escocesa que ela amorosamente converteu
em lar. As banheiras foram as primeiras a desaparecer. Sua mae adorava
cozinhar, entao Henry

esvaziou quase todos os armarios e gavetas da cozinha ate que

restassem apenas dois de tudo; dois pratos, dois talheres, duas xıcar as.
Nenhuma panela, forma ou frigideira foi deixada para tras. O cheiro da
comida o lembrava da esposa morta, entao a velha gov ernanta preparava
grandes porçoes de refeiçoes em casa e depois enchia o freezer da capela
com elas para que ambos nao morressem de f ome. Robin guardou o que
pode dos pertences da mae, incluindo dois par es de tesouras de bordar
douradas e prateadas em forma de cegonha – sua mae adorava costurar e
tambem cozinhar – e os escondeu debaixo da cama. Ela nunca acreditou que
a morte de sua mae fosse acidental. Pessoas que leem e escrevem romances
policiais e thrillers sabem que

ha um numero in inito de maneiras de escapar impune de um

assassinato. Robin suspeita que isso acontece o tempo t odo.

Sempre foi como se seus pais estivessem desempenhando um papel em uma


peça para a qual prefeririam nao ter participado. Sera o desinteresse uma
forma de negligencia? Robin pensa assim. Mas as coisas icaram muito piores
depois que sua mae morreu. Seu mundo tornou-se muito pequeno e muito
solitario muito rapidamente. Henry pensou que gastar dinheiro no problema
resolveria o problema, como sempre fez, e foi por isso que ela nunca quis
um centavo dele quando adulta. Ela preferia dormir em uma cabana gelada,
com banheir o externo, do que passar mais uma noite sob o teto dele. Seu
dinheiro er a dinheiro de sangue em mais de um aspect o.

Henry comprou a casa de boneca mais chique que Robin ja tinha visto
quando sua mae morreu. Cada comodo tinha as mesmas duas pequenas
iguras dentro dela. Uma parecia Henry, a outra era uma Robin em miniatura.
Uma famılia de brinquedos feliz para substituir a verdadeira quebrada. Ele
mesmo esculpiu as bonecas com seus cinze is de madeira, assim como as
estatuas do lado de fora da capela, e t odos os passaros em forma de robins
que ele havia cortado ao longo dos anos, enquanto fumava seu cachimbo ou
bebia um copo de uı sque.

Ninguem mais sabia o que realmente aconteceu com a mae de

Robin. Ninguem suspeitou de nada. Henry ate escreveu sobre um

homem que matou sua esposa na banheira alguns anos depois, em seu
romance policial chamado Drowning Your Sorrows. Isso fez R obin
questionar se todas as suas historias poderiam ser baseadas em fatos e nao
em icçao, e esse pensamento a aterrorizou. O livro era um gr ande best-
seller, todos no internato falavam dele, ate os professor es.
Isso inspirou Robin a escrever sua propria historia. Seu prof essor de ingles
icou tao impressionado que, sem que Robin soubesse, ele enviou uma copia
para Henry no inal do semestre, dizendo que o dom de contar historias
claramente era de famılia. Era sobre um r omancista que cometia crimes na
vida real e depois escrevia sobre eles em seus livros, sempre escapando
impune de assassinat os.

Quando Robin voltou para casa naquele Natal, Henry mal f alou com ela.
Ele icou trancado em seu escritorio secreto com seus amados livros. Como
sempre. Uma tarde ela encontrou suas bonecas lutuando na pia do banheiro.
Parecia que elas estavam se afogando, assim como sua mae havia feito na
banheira com pes. Quando ela acordou na manh a de Natal, nao havia
presentes na meia pendurada na ponta da cama. A unica coisa que mudou
durante a noite foi que o cabelo de Robin f oi cortado. Havia duas longas
tranças louras sobre o travesseiro onde ela dormira, e a linda tesoura de
cegonha da mae estava na mesinha de cabeceir a.

Henry Winter nao escreveu apenas sobre monstros. Ele era um. Ele a fez
escrever versos como puniçao por escrever aquela

historia na escola:

Eu não devo contar hist órias Não devo contar hist órias. Não devo contar
hist órias.

Entao Robin nunca mais escreveu uma palavra de icça o.

Ate Henry morrer .

Depois de enterra-lo no cemiterio atras da capela, Robin voltou ao escritorio


secreto onde ela nunca teve permissao de entrar quando criança e sentou-se
naquela mesa antiga. Ela pegou o laptop do pai morto. Lembrar a senha foi
facil: era o nome dela. Ela encontrou o trabalho incompleto de Henry em
andamento e começou a ler. A ideia parecia maluca em sua cabeça a
princıpio. Que outra palavra e xistia para descrever uma mulher que
trabalhava com caes tentando t erminar um livro de um autor de best-seller
int ernacional?
Mas foi isso que ela f ez.

Robin apagou a maior parte do que Henry havia escrito – ela na o achou
muito bom – e depois substituiu por suas proprias palavras. Ela escreveu tres
rascunhos em tres meses, quando o livro foi concluıdo e ela o editou da
melhor maneira possıvel, sentiu como se a transiçao da

historia de seu pai para a dela fosse perfeita. Depois ela digitou o livr o
inteiro de novo... na maquina de escrever de Henry, exatamente como ele
teria feito. O verdadeiro teste seria envia-lo ao seu agente: se
alguemconseguisse perceber a diferença, seria ele.

Robin ja sabia que Henry sempre embrulhava seus manuscrit os em papel


pardo e os amarrava com barbante – ela ja o vira fazer isso muitas vezes
quando criança – entao ela fez o mesmo e depois levou o pacote ate o corr
eio.

Robin mal tinha saıdo da Blackwater desde que chegou, tre s meses antes.
Parecia-lhe estranho que o mundo fora das grandes portas de madeira da
capela fosse o mesmo em que vivera antes, quando a vida de Robin mudara
de forma irreconhecıvel. Nao havia motivo par a partir ate entao, aquela era
sua primeira viagem a Hollowgrove – a cidade mais proxima de Blackwater
Loch – em mais de vinte anos. Mas enquanto Robin dirigia seu velho Land
Rover, com o manuscrito ao seu lado no banco do passageiro, ela ainda
estava com medo de que algue m pudesse reconhece-la. Eles nao izeram
isso. Mas Patty, na loja da esquina, reconheceu o pacote de papel par do.

— Esse e um novo livro do Sr. Winter? — Ela pergunt ou,

mascando chiclete entre as palavras, como se fosse uma adolescente, e nao


uma mulher de quase cinquenta anos. Robin sentiu suas bochechas icarem
vermelhas e nao conseguiu responder. —Esta tudo bem se f or um segredo,
posso mante-lo —mentiu Patty. —E assim que ele sempr e os publica...
amarrados com barbante e tudo o mais.

Robin congelou, ainda incapaz de falar. Os olhos de Patty se estreitar am.


— Voce e a nova governanta? Ouvi dizer que ele dispensou a u ltima…

—Sim —disse Robin, sem pensar muit o.

Patty bateu na lateral do nariz com o dedo indicador. —Ent endo, querida.
Provavelmente lhe disse para nao contar nada a ninguem, na o foi? Como se
alguem por aqui se importasse se ele escreveu um nov o

livro. A unica autora que amarei sera Marian Keyes, agora ha uma mulher
que sabe escrever. Pareço ter tempo para ler as palavras de um louco? Isso e
o que Henry Winter e, se voce me perguntar: todos os

livros perturbadores que ele escreveu. Voce tem minhas mais

profundas condolencias trabalhando para um velho avarento como esse. Nao


se preocupe com nada, Patty ira postar e guardar todos os seus segr edos.

Se ao menos Patty soubesse quao grandes eram os segredos de R obin.

Depois disso, a espera foi a parte mais difı cil.

Robin inalmente entendeu como e desesperador para os

escritores enviar seus trabalhos para o mundo. Nos dias seguintes a


publicaçao do manuscrito, ela manteve as cortinas fechadas, comeu refeiçoes
congeladas quando estava com fome, dormiu quando estav a cansada demais
– ou bebada – para icar acordada e per deu completamente a noçao de que
dia era hoje. Quando o telefone t ocou, ela sabia que nao poderia atender.
Qualquer pessoa que lig asse esperaria ouvir a voz de Henry, inclusive seu
agente, entao ela esper ou mais um pouco.

Quando chegou uma carta do agente de Henry no dia seguint e, Robin levou
algumas horas e mais uma garrafa de vinho para t er coragem de abri-la.

Quando ela inalmente o fez, ela chor ou.


Terminei o manuscrito de madrugada. É o seu melhor até agor a! Será
enviado aos editores hoj e.

Foram lagrimas de alegria, alıvio e trist eza.

Ela queria contar para alguem, mas Oscar, o coelho, nao era muit o bom em
conversar. Ela o renomeou no primeiro dia em que se conheceram, porque
Oscar era um menino coelho, nao uma menina, sem o conhecimento de
Henry. E Robin era o nome dela. Foi a u nica coisa boa que seu pai lhe deu.
Ela estava muito orgulhosa daquele livr o, mas a verdade, dita ou nao, ainda
era impossıvel de ignorar. O melhor

livro de Henry ate entao era realmente dela, mas ainda seria o nome dele na
capa.

Robin tentou colocar a carta do agente de Henry em uma das gavetas da


escrivaninha – ela nao queria mais olhar para ela –, mas as gavetas estavam
cheias demais. Ela puxou as primeiras paginas do que parecia ser um
manuscrito antigo e icou surpresa ao encontrar o nome do ex-marido
impresso na capa:

ROCK PAPER SCISSOR S

Por Adam W right

Anexada a ela estava uma carta de Adam, datada de varios anos atra s:

Eu sei o quanto você está muito ocupado, mas sempre me pergunt ei se esse
roteiro poderia funcionar como um livro. Acho que essa pode ser minha
melhor chance de conseguir. Ficarei muito grato pela sua opinião. Espero
que você tenha gostado da última adaptação, seu agente disse que sim e disse
que passaria esta carta para mim. Foi uma honra ajudar a dar vida aos seus
personagens na tela. Qualquer conselho que você possa me dar sobre o meu
será recebido com gratidão. Sempre foi meu sonho e gosto de pensar que
alguns sonhos se tornam r ealidade.

Ela icou muito triste por Adam ter con iado a seu pai seu tr abalho mais
querido. Ela sabia que Henry provavelmente nem se deu ao trabalho de le -
lo.

Uma das poucas coisas que Robin levou antes de fugir de sua casa em
Londres foi a caixa de cartas de aniversario que ela escre via secretamente
para Adam todos os anos. Ela ainda sentia falta dele – e de Bob – todos os
dias. Ela releu aquelas cartas naquela noite, junt o com o roteiro de Adam, e
uma nova ideia se formou em sua cabeça. A ideia parecia muito maluca no
inıcio, mas ela percebeu que havia uma maneira de reescrever a historia de
sua propria vida e proporcionar a si mesma um inal mais feliz do que o que a
vida havia escolhido at e enta o.

AÇ O

Palavra do ano :

Despreocupado adjetivo. Livre de preocupação , culpa ou ansiedade;


despreocupado .

28 de fevereiro de 2019 – qual seria o no sso décimo primeiro aniversári o

Prezado Adam ,

Claro que não é o nosso décimo primeir o

aniversário, porque não duramos tanto. Agora mor o em uma casa de palha
na Escócia e você está e m

nossa casa em Londres. Com ela. Mas eu aind a

queria escrever uma carta para você. Guardarei est a para mim, junto com
todas as outras cartas secreta s de aniversário que escrevi ao longo dos anos.
Eu se i que pode parecer loucura, especialmente agora qu e

estamos divorciados, mas sentei-me perto do lago e li-as recentemente.


Todas elas. Meu Deus, tivemo s altos e baixos, mas houve mais momentos
bons d o
que ruins. Mais lembranças boas do que tristes. E eu sinto sua falta .

Em primeiro lugar, queria pedir desculpas pela s mentiras. Todas elas. Cresci
cercada por livros e

ficção... é difícil não crescer quando seu pai é u m autor mundialmente


famoso. Minha mãe também er a escritora, mas também nunca contei sobre
ela. Nã o

espero que você entenda, mas não poderia falar sobr e eles com você .

Quando nos conhecemos, eu acreditei em você e n a sua escrita, mas estava


impaciente e queria que seu s sonhos se tornassem realidade rápido demais
par a

que pudéssemos nos concentrar nos nossos. Há ano s que não falava com
Henry, liguei para ele e ped i

que deixasse você adaptar um de seus livros. Fo i

concebido para ser apenas uma adaptação. Achei qu e isso levaria ao sucesso
com seus próprios roteiro s,

mas, ao tentar ajudar sua carreira, às vezes m e

preocupo por ter matado seus sonhos. Henry uso u você como uma forma de
tentar se aproximar d e

mim. Ele não estava nem um pouco interessado e m mim quando eu era
criança. Mas acho que su a

própria mortalidade o fez perceber que eu poderi a ser útil como adulta –
alguém para cuidar de seu s preciosos livros quando ele se fosse. Meu pai se

importava com cada um de seus livros muito mai s do que jamais se


importou comigo .
Esses últimos dois anos me ensinaram muit o sobre mim mesma. Agora que
deixei “tudo” par a

trás, percebi o quão pouco eu tinha. É muito fáci l

ficar cego pelas luzes artificiais da cidade, mesm o que elas nunca possam
brilhar tanto quanto a s

estrelas em um céu sem nuvens, ou a neve branc a

em uma montanha, ou os raios de sol dançando e m um lago. As pessoas


confundem o que querem co m o que precisam, mas agora percebi como essa
s

coisas são diferentes. E como às vezes as coisas e pessoas que pensamos que
precisamos são aquela s das quais deveríamos ficar longe. Meu cabelo est á
mais grisalho do que loiro ultimamente – não vou a o cabeleireiro desde que
saí de Londres, e ele cresce u muito. Eu uso em tranças para evitar muito s

emaranhados e nós. Sinto falta de nossa casa, d e nós e de Bob, mas acho
que as Terras Altas d a Escócia combinam comigo. E percebi que tenho mai
s em comum com meu pai do que costumava admitir , até mesmo para mim
mesma .

Henry gostava tanto da sua privacidade qu e

comprou tudo neste vale, juntamente com a antig a igreja e a casa de campo,
antes de eu nascer. O laird escocês de quem Henry comprou o terren o

tinha muitas dívidas de jogo, por acaso, era fã do s livros de Henry, então o
vendeu por uma quanti a

ridiculamente pequena. Henry até comprou o pu b

mais próximo alguns anos depois, para poder fechá - lo. Ele só queria paz e
sossego e ficar sozinho .
Completamente sozinho .

Os habitantes locais não ficaram impressionado s

com o fato de um estranho possuir grande parte d o vale. Houve petições


para impedir que Henr y

convertesse a igreja – embora ninguém a tive sse

usado durante meio século – mas ele o fez mesm o assim. Ele era um homem
que sempre fazia o qu e queria e conseguia o que queria. Quando a

interferência local continuou, ele inventou histórias d e fantasmas sobre a


Capela Blackwater, para qu e

qualquer um que ainda não soubesse que deveri a

ficar longe o fizesse. Por que ele queria viver um a vida tão solitária,
escondido do mundo em auto -

isolamento, costumava me deixar perplexa. Não h á

lojas, nem bibliotecas, nem teatros, nem pessoas nu m raio de quilômetros,


não há nada aqui, exceto a s

montanhas, o céu e um lago cheio de salmões. O homem nem comia peixe.


Mas agora, acho qu e

finalmente entendi .

Não tenho quase nada, mas quase tudo qu e preciso. O amor do meu pai pelo
bom vinh o

significava que a cripta estava abarrotada dele, e a sua antiga governanta


deixava no congelador u m
abastecimento aparentemente interminável de refeiçõe s caseiras e rotuladas
à mão. A biblioteca pessoal d e Henry está repleta de todos os meus livro s

favoritos, e as vistas em constante mudança daqu i

me deixam sem fôlego todos os dias. Mas pode se r difícil aproveitar as


coisas boas da vida quando voc ê não tem alguém com quem compartilhá-
las. Sint o

falta das nossas palavras do dia e das palavras d o ano. Não como muito bem
– hoje em dia gosto u m

pouco demais de comida enlatada, mas me sint o melhor do que nunca em


Londres. Talvez seja o

sabor do ar fresco nos meus pulmões ou as longa s caminhadas que faço


explorando o vale. Ou talve z

seja apenas me sentir livre para ser eu .

Pode ser difícil sair da sombra dos pais quand o você herda os sonhos deles.
Muitas vezes escrev i

histórias quando criança, mas o lugar de Henr y sempre foi grande demais
para ser preenchido .

Além disso, ele me disse desde cedo que achav a que eu não conseguiria
escrever. Nunca pensei qu e seria capaz de escrever um livro inteiro, mas o s
sonhos só podem se tornar realidade se ousarmo s sonhá-los. Minha
autoconfiança me divorciou muit o

antes de você, mas a vida me ensinou a ser corajo sa

e a sempre tentar de novo. Se você nunca desiste d e algo, você nunca


poderá falhar .

Sempre que comparava as palavras do meu pa i com as minhas, as dele


pareciam mais pesada s,

mais fortes, mais permanentes do que o s

pensamentos dentro da minha cabeça, que sempr e pareciam ir e vir como a


maré. Lavando minh a

confiança. Mas os castelos feitos de areia nunc a permanecem altos para


sempre. Estou livre de se u

julgamento agora e percebi que a única pessoa qu e

me forçou a viver em sua sombra fui eu. Eu poderi a ter saído quando
quisesse se não tivesse tanto med o

de ser vista .

Às vezes sento-me em frente ao lago quando o sol está começando a se pôr e


finjo que você e Bo b

estão aqui, sentados ao meu lado. Gosto de fumar o cachimbo de Henry à


noite e observar o salmã o

saltando na água, antes que a lua nasça no cé u

para substituir o sol. Então ouço o som dos sapo s

cantando e observo os morcegos voando e voando alt o no céu, até ficar tão
frio e escuro que tenho qu e

voltar para a cabana. Não gosto de dormir na capel a – muitas lembranças


infelizes assombram os quarto s – mas me apaixonei por Blackwater Loch.
Nest e

lugar nunca me senti em casa até que eu o deixei . Eu gostaria de poder


compartilhar isso com você ,
junto com todos os segredos que fui forçada a

guardar. Você prometeu me amar para sempre, ma s me pergunto se você


ainda pensa em mim ou sent e minha falta ?

É difícil imaginar Amelia na nossa antiga ca sa em Londres, dormindo na


minha cama com me u

marido, passeando com o cachorro, cozinhando n a minha cozinha,


trabalhando no meu escritório e m Battersea, no emprego que a ajudei a
conseguir .

Ainda não consigo acreditar que você deu a ela me u anel de noivado. Ou
que ela gostaria de usar alg o

que já foi da sua mãe e depois meu. Mas rouba r coisas que pertencem a
outras pessoas parece se r

um hábito dela. Ela é o tipo de mulher que esper a algo em troca de nada e
pensa que o mundo te m

uma dívida com ela. Ela estava sempre lendo revista s na hora do almoço –
nunca livros – e gostava d e

participar de todos os concursos dentro delas, ou n o

rádio, ou na TV diurna, na esperança de ganhar alg o de graça. Foi assim que


eu soube que ela nunc a

recusaria um fim de semana grátis fora. Foi qua se fácil demais fazer você
vir aqui .

Tenho certeza de que não sou a primeira ex -

mulher a querer vingança. Às vezes eu imaginav a

matar vocês dois, tentando não pensar nisso. Minh a variedade pessoal de
fúria sempre fo i

surpreendentemente calma. Em vez disso, leio e

escrevo. É um mecanismo de enfrentamento da solidã o que desenvolvi


quando era criança, quando meu pa i

estava sempre ocupado demais trabalhando para m e

notar. Parece bobagem agora, mas nunca percebi ante s como vocês dois são
parecidos. Parece que passei a

vida inteira me escondendo em histórias: lendo as d e

outras pessoas quando era criança e agora escrevend o as minha s.

Há um segredo que quero compartilhar. Escrev i um livro e agora estou


escrevendo outro. Os sonho s são como vestidos na vitrine de uma loja; eles
sã o bonitos, mas às vezes não cabem quando você o s

experimenta. Alguns são muito pequenos, outros sã o muito grandes.


Felizmente, minha mãe me ensinou a costurar, e os sonhos podem ser
ajustados par a

caber, assim como os vestido s.

Acho que meu novo livro é bom e você está nele . RockPaperScissorstem
tudo a ver com escolha s.

Eu fiz a minha, chegará o momento em que voc ê

precisará fazer a sua. A única coisa boa de perde r tudo é a liberdade que
advém de não ter mais nad a a perder .

Sua (ex) esposa .


As pessoas tendem a pensar que a segunda esposa e uma vadia e a primeira
uma vıtima, mas isso nem sempre e ver dade.

Eu sei como parece. Mas dez anos e muito tempo para se casado, e o deles ja
havia chegado ao im. Eu nao achava que fosse possıvel ser gentil demais – a
gentileza deve ser uma coisa boa –, mas Robin era o tipo de pessoa que
convidava as pessoas a pisarem nela: seus coleg as, seu marido, eu. Na
cabeça dela, ela fez amizade comigo por pena quando comecei a trabalhar
como voluntaria no Battersea Dogs Home. Mas a verdade e que ela
precisava de uma amiga mais do que eu. Nunca conheci uma mulher mais
solita ria.

E claro que iquei grata quando ela me ajudou a conseguir um emprego de


tempo integral, claro, me senti culpada por dormir com o marido dela. Mas
nao foi um caso sordido. O relacionamento deles acabou muito antes de eu
entrar em cena, Adam e eu estamos casados agora. Em vez de todos nos
sermos infelizes. E ela estava infeliz – reclamando constantemente do
marido, o grande roteirista de Hollywood, enquanto alguns de nos estavamos
presos namorando os rejeitados da vida.

Desde a primeira vez que conheci meu marido, ele era como uma

coceira que eu nao resisti a coçar. Fiquei muito tempo a mar gem,

observando, esperando, tentando fazer a coisa certa. Mudei meu cabelo,


minhas roupas, ate meu jeito de falar, tudo por ele. Tentei ser quem ele
precisava que eu fosse. Nao por mim, mas porque pensei que poderia
conserta-lo e sabia que poderia faze-lo mais feliz do que era com ela. Ela
nao sabia a sorte que tinha, e dois em cada tres inais felizes sa o melhores do
que nenhum.

Robin nao resistiu exatamente. Na verdade, o divorcio f oi


surpreendentemente amigavel, visto que eles estavam casados ha uma de
cada.

Ela se foi. Ele icou. Eu me mudei.

Foi o melhor para todos e estavamos felizes... Adam e eu. Ainda estamos.
Talvez nao tao felizes quanto estavamos, mas posso consertar isso. Este im
de semana deveria ter ajudado, mas agora percebo que f oi um grande erro.
Nao importa. Tenho certeza de que lidar com sua e x maluca so vai
aproximar Adam e eu novamente. E ela e louca. Se ant es eu tinha alguma
duvida, agora tenho cert eza.

Digo isso a mim mesma enquanto estamos no topo da es cada, olhando para
a foto do dia do casamento deles na parede. Ambos esta o sorrindo para a
camera. Como sempre, me pergunto o que meu marido ve. Ele ve o rosto de
alguem de quem sente falta? Ou e apenas um borrao que ele nao consegue
reconhecer? Ele acha que ela e linda? Ele olha para a foto e acha que eles
icam bem juntos? Ele gostaria que eles ainda e xistissem?

Eles tambemdevem ter icado felizes no começo, assim como no s.


Transformar amor em odio e um truque muito mais facil do que

transformar agua em vinho.

Nao parecia importar que Adam e eu tivessemos muito pouco em comum


quando me mudei para a casa que eles dividiam. Ele na o parecia se importar
com o fato de eu nao gostar tanto de livros e ilmes quanto ele, e o sexo foi
otimo nos primeiros meses. Cuidei melhor de

mim e do meu corpo do que Robin jamais fez... fui a academia e me esforcei
mais com minha aparencia quando tive alguem para icar bonita. Fizemos
isso em todos os comodos da casa que sua ex -mulher havia reformado com
tanto carinho – sempre ideia minha – um exorcismo dos fantasmas do
casamento deles. E, ao contrario de tant os casais, Adam e eu parecıamos
nunca parar de conversar. O mundo dele me fascinou – as viagens a Los
Angeles e as celebridades que ele conheceu nas leituras, tudo parecia tao...
emocionante. Adam gostava de falar sobre si mesmo e sobre seu trabalho
tanto quanto eu gostava de ouvir, entao foi uma boa combinaçao. Nos nos
casamos assim que o divorcio foi inalizado. Foi um evento pequeno e muito
particular. Na o me importei que estivessemos so nos dois no cartorio
naquele dia, na o achei que precisassemos de mais ninguem. Eu ainda nao
sei.

Se Robin realmente esta por tras de tudo isso e esta planejando algum tipo de
vingança, entao estou consideravelmente menos assustada do que antes. Eu
sou mais esperta que ela. Muito mais fort e tambem, tanto mental quanto
isicamente. Se esta for a sua maneira de tentar reconquistar o marido, nao
funcionara. Ninguem quer icar com uma mulher louca, e acho que e seguro
presumir que foi isso que ela se t ornou.

—Devıamos simplesmente ir embora —eu digo.

—Ela cortou os pneus.

—Podemos caminhar ate a proxima cidade ou pegaremos car ona se


encontrarmos um carr o.

—Tudo bem —responde Adam, sem muita convicçao. E como se ele tivesse
entrado em choque.

—Vamos, me ajude a pegar nossas coisas.

Volto para o patamar, mas abro a porta errada por eng ano... estavam todas
trancadas quando chegamos ontem a noite, a torre do sino, o quarto da
criança – e agora vejo o que deve ser o quart o principal – o quarto de Henry.
Ha uma cama grande no meio, como voc e poderia esperar, mas o que eu nao
teria previsto e nunca vi em um
quarto antes, sao todas as vitrines de vidro que cobrem cada uma das paredes
do chao ao teto. Ao contrario de outras partes da casa, essas estantes nao
estao cheias de livros. Em vez disso, eles esta o abarrotados de pequenos
passaros esculpidos em madeira. Quando dou um passo mais perto, percebo
que sao todos tordos. Deve hav er literalmente centenas deles, todos iguais,
mas diferent es.

— Este lugar ica cada vez mais estranho. Vamos — eu digo novament e.

Adam me segue ate o patamar e depois ate o quarto onde

dormimos ontem a noite. Eu gostaria que ele nao tivesse feito isso. A
presença de Robin tambem e claramente visıvel aqui. Ha um quimono de
seda vermelha cuidadosamente arrumado em cima dos lenço is brancos da
cama.

—O que isso quer dizer? —Digo, mas e uma pergunta estu pida,

para a qual ambos ja sabemos a resposta. A mulher do quimono

vermelho e o motivo de Adam ter pesadelos recorrentes, causados pela


lembrança do que aconteceu com sua mae. Era isso que ela usav a quando
passeou com o cachorro dele tarde da noite e foi morta por um motorista que
atropelou e fugiu.

—Por que Robin faria isso? —Ele sussurr a.

—Eu nao sei e nao me importo. Precisamos sair agor a.

—Como? —Ele pergunta novament e.

—Eu ja te disse, podemos caminhar se for pr eciso...

Ele desvia o olhar e eu sigo seu olhar. Tres palavras foram es critas no
espelho acima da penteadeira, com batom v ermelho:
ROCK PAPER SCISSOR S.

SED A

Palavra do ano :

Redamancia substantivo. O ato de amar quem t e ama; um amor retribuído


por completo .

29 de fevereiro de 2020 – qual seria o no sso décimo segundo aniversári o

Prezado Adam ,

Tenho escrito cartas para você no nosso aniversári o desde que nos casamos,
mas esta é a primeira qu e

vou deixar você ler, e sugiro fortemente que você lei a sozinho antes de
compartilhar qualquer conteúdo. A ideia de finalmente ser completamente
honesta é boa . A primeira coisa que quero que você saiba é qu e

nunca deixei de te amar, mesmo quando não gostav a de você, mesmo


quando te odiava tanto que deseje i

que você estivesse morto. E confesso que fiz i sso por um tempo. Você me
machucou muito .

Faz exatamente doze anos que nos casamos, e m um ano bissexto, em 2008.
Você já deve saber qu e

Henry Winter era meu pai. Há tantas razões, boa s,

pelas quais eu nunca te contei. Ele esteve present e

tantas vezes em nosso casamento, sempre à espreita , mesmo no dia do nosso


casamento. Você simplesment e nunca reconheceu o rosto dele, da mesma
forma qu e nem sempre reconheceu o meu. Mas eu menti par a
você apenas para protegê-lo. Meu pai não escreve u apenas livros sombrios e
perturbadores, ele era u m homem sombrio e perigoso na vida real .

Tive um relacionamento complicado com meu pai , principalmente depois


que minha mãe morreu e el e

me mandou para um internato. Eu sabia que você er a um grande fã dos


livros dele, mas nunca quis qu e

o que você e eu tínhamos juntos fosse contaminad o

por ele: queria que você me amasse pelo que era. E u nunca quis que ele
tivesse qualquer controle sobr e

mim, ou você, ou nós. Mas eu pedi a ele qu e

deixasse você escrever o roteiro de um de seus livro s anos atrás. Tendo


pedido sua ajuda, mesmo qu e

apenas uma vez, isso me fez sentir em dívida co m aquele monstro de uma
forma que eu nunca, jamai s quis estar. Não espero que você entenda, mas,
po r favor, saiba o quanto eu amei você por fazer isso .

A retrospectiva tende a ser mais cruel do que gentil . Olhando para trás
agora, talvez se você soube sse

quem eu realmente sou, ainda estaríamos casados e

comemorando nosso décimo segundo aniversário. Ma s há tantas coisas que


eu nunca poderia te contar .

Em público, Henry Winter era um brilhant e

escritor de terror, mas na vida real era uma coleçã o de frases inacabadas.
Ele intimidou minha mãe at é

ela não aguentar mais. Quando ela morreu, ele m e


intimidou. Quando criança, ele muitas vezes me fazi a sentir como se eu não
estivesse realmente ali. Com o

se eu fosse invisível. Os caracteres em sua cabeç a sempre eram altos demais


para ele ouvir qualque r outra pessoa. Sua falta de crença em mim quand o

criança levou a uma falta de crença em mim mesm a por toda a vida. Sua
falta de interesse me fe z

sentir como se não fosse útil para ninguém. Su a

falta de amor fez com que eu nunca fosse fluent e em afeto, exceto com
você. Às vezes penso que el e teria me mantido em uma gaiola se pudesse,
com o

seu coelho. E como minha mãe. A Capela Blackwate r era a jaula dela e eu
nunca quis que fosse minha .

Os livros de Henry eram seus filhos, eu nã o

passava de uma distração indesejada. Ele me chamo u de “o infeliz acidente”


em mais de uma ocasião –

normalmente quando bebia muito vinho – e at é

escreveu isso em um cartão de aniversário uma vez . Para o infeliz acidente ,

Feliz 10º aniversário !

Henr y

O cartão chegou duas semanas depois do me u

aniversário e eu tinha apenas nove anos naquele ano . Ele nunca se chamou
de pai, então eu também não .
Nada do que fiz quando criança foi bom o

suficiente. Somos o eco dos nossos pais e às veze s eles não gostam do que
ouvem. Percebi que a únic a maneira de ter vida própria era afastar meu pa i

dela. Mas Henry não era apenas excepcionalment e

reservado e um pouco peculiar, ele também era muit o possessivo. De mim.


Eu senti como se estive sse

sendo observada durante toda a minha vida, porqu e estava. Saí de casa aos
dezoito anos, mudei me u

sobrenome para o nome de solteira de minha mãe e só voltei no dia em que


ele ligou para dizer qu e

estava morrendo .

Tudo o que fiz desde então por você e por nó s. Escrevi um livro, na verdade
dois, ambos e m

nome de Henry. Ninguém mais sabe que ele est á morto ou precisa saber.
Aqui está a proposta d o último livro :

RockPaperScissorsé a história de um casal qu e está casado há dez anos.


Todos os anos troca m

presentes tradicionais – papel, cobre, estanho – e

todos os anos a esposa escreve uma carta ao marid o que nunca o deixa ler.
Um registro secreto de se u

casamento, com segredos e tudo. No décim o

aniversário, o relacionamento deles está em apuro s. Às vezes, um fim de


semana fora pode se r
exatamente o que um casal precisa para colocá-los d e volta nos trilhos, mas
as coisas não são o que ou o que parecem .

Soa familiar ?

É uma combinação do seu roteiro e das carta s secretas que tenho escrito
para você todos os ano s desde que nos conhecemos. Mudei alguns nomes, é
claro, misturei ficção com fatos, mas acho que voc ê vai gostar do resultado.
Eu gosto. Quando Henr y

enviar o filme para seu agente, ele incluirá um a

carta dizendo que deseja que você comece a trabalha r no roteiro


imediatamente. Você finalmente terá su a

própria história na tela, como sempre sonhamo s. Mas só se você terminar


com Amelia .

Meu plano não é tão louco quanto pode parecer . Pode ser bom para você e
para nós. Sinto falta d e

nós todos os dias e me pergunto se você també m sente? Você se lembra


daquele minúsculo estúdio n o porão em que morávamos? Na época em que
aind a estávamos aprendendo se poderíamos viver um co m ou sem o outro.
Alguns casais não consegue m

perceber a diferença. Essa é a versão sua de qu e

mais sinto falta. E a versão de nós para a qual e u gostaria que pudéssemos
encontrar o caminho d e

volta. Achávamos que tínhamos tão pouco, ma s

tínhamos tudo, éramos muito jovens e burros par a saber disso .

Às vezes superamos os sonhos que tínhamo s


quando éramos mais jovens, ficamos felizes quand o eles se revelam
pequenos demais, tristes quando se revelam grandes demais. Às vezes, nós o
s

encontramos novamente, percebemos que eles se encaixavam perfeitamente


o tempo todo e no s

arrependemos de guardá-los. Acho que esta é a

nossa chance de começar de novo e viver a vida qu e sempre sonhamo s.

Há outras coisas que você não sabia sobr e

Henry, além de ele ser meu pai. Ele contratou u m investigador particular
durante anos para ficar d e

olho em mim, em você e em nó s.

Um investigador particular que sabia que voc ê estava tendo um caso antes
de mim .

Que sabia coisas que eu não sabia e que voc ê ainda não sabe .

O investigador particular é um homem chamad o

Samuel Smith. Ele ainda acha que meu pai está viv o – assim como o resto
do mundo, mas, tirando aquel a grande falta, ele parece muito bom no que
faz .

Minucioso. Ele enviou relatórios semanais sobre nó s ao meu pai durante


anos – sem que eu soubesse –

e eram ao mesmo tempo fascinantes e tristes de ler . Ele não apenas nos
seguiu, ele seguiu qualque r

pessoa de quem nos aproximamos. Incluindo Octobe r O'Brien. E Amelia.


Ele até mandou fotos da noss a
casa para meu pai, antes e depois de eu sair (nã o gostei do que você fez com
o lugar). Samuel Smith , o investigador particular, sabia mais sobre nós d o

que nós um sobre o outro. Pensei muito se deveria o u não compartilhar essa
informação com você. Não m e

traz felicidade causar dor a você, mas como di sse no começo, eu te amo.
Sempre amei, sempre amarei . Sempre sempre, nem quase sempre, com o

costumávamos dizer. É por isso que tenho que lh e contar a verdade. Tudo
isso .

Não foi por acaso que Amelia começou a

trabalhar em Battersea, fez amizade comigo e

sempre fazia perguntas sobre você. Você sempre fe z parte do plano dela.
Seus caminhos se cruzara m

quase trinta anos antes, mas você não consegui u

reconhecer o rosto dela. Samuel Smith descobriu mai s do que esperava


quando você me traiu. É um a

pergunta que ninguém quer fazer ou responder, ma s até que ponto você
realmente conhece sua esposa ?

Amelia Jones – como era chamada antes de você s se casarem – tem mentido
para você desde o

momento em que se conheceram. Ela mentiu para mi m também. Amelia


tem antecedentes criminais e entra e sai da prisão desde a adolescência. Ela
viveu e m

uma série de lares adotivos enquanto crescia e qua se sempre estava com
problemas. A certa altura, el a
morava no mesmo conjunto habitacional que você. El a até frequentou a
mesma escola por alguns mese s,

quando vocês dois tinham treze anos. Foi quando el a passou de furto em
lojas para passeio. Amelia er a suspeita de roubar sete carros, antes de ser
pre sa sob suspeita de causar morte por direção perigosa . A polícia a
interrogou sobre um atropelamento, ma s

ela era menor de idade e sua mãe adotiva apresento u um álibi – algo que a
mulher mais tarde confesso u

ser mentira – e os policiais não conseguira m

convencer .

O carro em que a apanharam foi o carro qu e matou a sua mãe .

A única testemunha “você” não poderia identificá - la em uma fila policial,


porque não consegui a

reconhecer o rosto de quem estava dirigindo. Mas el a conhecia você .

Amelia Jones mudou-se para um novo la r

adotivo, longe. Ela virou uma nova página e começo u

de novo. Talvez ela sentisse remorso genuíno pelo qu e havia feito? Talvez
ela se sentisse culpada po r

escapar impune? Talvez seja por isso que ela t e seguiu durante anos, e
elaborou um plano para se aproximar de você, através de mim? Talvez d e

alguma forma distorcida ela estivesse tentand o

compensar o que fez. Você terá que perguntar a ela . Eu sei que menti para
você sobre meu pai, ma s
pelo menos minhas mentiras foram para proteger voc ê e a nós. Nada do que
você pensa que sabe sobr e

Amelia é verdade. Sua esposa foi a culpada pel a morte de sua mãe quando
você era criança, e ach o que é justo que você saiba disso antes de toma r

uma decisão. Não acredite em mim? Talvez tent e

dizer a Amelia que você sabe a verdade, mas tom e cuidado, ela não é a
mulher que você pensa que é .

Eu sei que isso será difícil de aceitar, muit o

menos de acreditar, mas no fundo, você não senti u sempre que algo não
estava certo com Amelia? A primeira vez que você a conheceu, quando ela
chego u em nossa casa sem ser convidada, alegando ter tid o um encontro
ruim, você a descreveu como uma atriz . Acontece que suas primeiras
impressões estava m

certas. Encontrei o caderno ao lado da cama onde el a anota cada detalhe dos
seus pesadelos. Você já se perguntou por que ela faz isso? Tenho certeza d e
que ela disse que era para tentar ajudá-lo a se lembrar do rosto de quem
matou sua mãe, ma s

talvez fosse para garantir que você nunca o fizesse ? Não é de admirar que
ela precise de comprimido s

para ajudá-la a dormir à noite, a culpa que ela dev e sentir manteria qualquer
um acordado .

Sabendo o que você sabe agora – e tenho todos o s e-mails e documentos do


investigador particular par a provar isso – você ainda a ama? Você pode
realment e confiar nela novamente? O que acontece a segui r

depende de você. É uma escolha simples, com o quando brincávamos de


pedra, papel e tesoura .
Opção um – PEDRA: Você tenta sair com a mulher que matou sua mãe .

Opção dois - PAPEL: Você sai de lá sozinho e vem me encontrar com Bob
na cabana. Estamo s

esperando por você e não quero nada mais do qu e estarmos todos juntos
novamente. Voltarei par a

Londres, poderemos publicar RockPaperScissor s

como um livro usando o nome de Henry – ningué m mais precisa saber – e


então prometo que voc ê

finalmente conseguirá fazer seu próprio roteiro. Voc ê não precisará mais
adaptar o trabalho de ninguém e poderá passar o resto da vida escrevendo
sua s

próprias história s.

Opção três – TESOURA: Você não quer saber a opção trê s.

A escolha é sua. Eu sei que o que estou pedind o para você decidir parece
difícil. Mas é realmente tã o fácil quanto uma pedra, papel e tesoura, se você
se lembrar de como jogar .

Sua Robi n

xx
Estamos no quarto que foi feito para se parecer com o que dividimos em
casa, aquele que redecorei quando Robin se mudou. S o que agora as coisas
estao ainda mais estranhas do que eram antes. Na o era assim que eu
esperava que este im de semana fosse. Eu ja tinha decidido terminar o
casamento se a viagem nao corresse bem... f alei com um advogado e um
consultor inanceiro, que sugeriram que uma apolice de seguro de vida
poderia ajudar-me a conseguir o que mer ecia num acordo de divorcio. Eu
queria dar uma ultima chance as coisas, mas estou começando a desejar ter
acabado de sair. Ja encontrei um

apartamento para morar... e lindo, com vista para o Tamisa, mas

esperava que nao chegasse a esse ponto. Eu esperava que este im de semana
pudesse nos consertar. O corretor de imoveis esta guardando o apartamento
para mim ate a semana que vem, diz que posso me mudar imediatamente se
quiser, entao sempre soube que apenas um de no s poderia voltar para a casa
que sempre foi a casa deles.

Toda a minha vida miseravel continua girando em minha ment e


recentemente, e nao consigo encontrar o botao para desligar. Fico acordada a
noite – apesar dos comprimidos – desejando apagar t odas as memorias que
gostaria de nunca ter feito. Todos os erros. Todas as curvas erradas. Todos os
becos sem saıda. Nao estou dando desculpas, mas nao tive uma infancia
facil. Sei que nao sou a unica, mas aqueles
anos solitarios moldaram quem sou hoje. Pequenos violinos sempr e soam
mais altos para quem os toca. Ser passada de uma famılia adotiv a para
outra, como se fosse um bem indesejado, me ensinou a nunca icar muito
confortavel e a nunca con iar em ninguem. Incluindo a mim. Cada novo lar
signi icava uma nova famılia, uma nova escola, novos amigos, entao eu
tentava ser uma nova versao de mim mesma. Mas nenhuma delas se
encaixou perfeitament e.

Sempre fui assombrada pela morte dos meus pais porque a culpa foi minha.
Se minha mae nao estivesse gravida de mim, ela nao estaria no carro e meu
pai nao a estaria levando para o hospital quando um caminhao bateu neles.
Se Adam nao tivesse me conhecido, sua vida tambem teria sido muito
diferente. Temos muito em comum, mas nos sentimos mais distantes do que
nunca. Observei Adam por anos. Seu sucesso – e a internet – tornaram isso
facil. Tentei ser uma boa esposa para ele, mas ele ainda parece me ver como
a pessoa ruim e ela como a sortuda. Eu tentei faze-lo feliz. Ha muito tempo
que venho t entando reparar coisas que aconteceram no passado. Tornei-me
tantas verso es diferentes de mim mesma tentando agradar outras pessoas,
que nao sei mais quem sou. Preciso me concentrar no futuro agora. Meu. A
expiaça o

e como aquele pote de ouro no inal do arco-ıris que ningue m

realmente encontr a.

— Por que Robin escreveria “pedra, papel e tesoura” com bat om vermelho
no espelho? —Eu pergunto, me perguntando se a ex de A dam tem um
historico de problemas de saude mental dos quais eu nao t enho
conhecimento. Observo enquanto ele começa a andar pelo quart o,
parecendo um pouco perturbado. — Por que ela nos enganaria par a virmos
para a Escocia? Por que ela manteria a identidade do pai em segredo por dez
anos e depois nao contaria a ninguem quando ele morresse? E por que ela
roubaria nosso cachorr o...

Adam interrompe minhas perguntas. — Tecnicamente, Bob era o cachorro


dela...
—Exatamente: era o cachorro dela, mas depois ela simplesment e foi
embora. Desapareceu sem dizer uma palavra. Voce nunca mais ou viu

falar dela depois do incidente com a magnolia, exceto atraves do advog


ado...

— Bem, imagino que voltar para casa mais cedo no nosso aniversario e
encontrar o marido na cama com a melhor amig a provavelmente foi muito
perturbador .

—Seu casamento acabou muito antes de eu aparecer .

—Eu nunca quis machuca -la...

— Pelo que parece, acho que o navio partiu. Voce pode quer er icar por aqui
relembrando sua adoravel primeira esposa, mas quem quer que Robin tenha
sido, parece bastante claro para mim que ela agora e uma psicopata em
tempo integral. Acho que podemos pr esumir com segurança que foi o rosto
dela que vi olhando pela janela ontem a noite. Ela devia estar por tras de
todas as coisas estranhas que aconteceram desde que chegamos, tentando
nos assustar. Ela provavelmente desligou deliberadamente o gerador
tambem, t entando nos congelar ate a mort e...

—Eu desliguei o gerador —diz A dam.

Suas palavras nao fazem sentido a princıpio, como se ele estiv esse falando
em lı nguas.

—O que ?

Ele da de ombros. — Eu so queria voltar para Londres o mais rapido


possıvel. Achei que se a energia acabasse completamente, voc e concordaria
em ir para casa.

A revelaçao me deixa um pouco confusa, mas lembro a mim mesma que


Robin e o inimigo, nao Adam. Nao vou deixa-la vencer .
Aconteça o que acontecer quando voltarmos para Londres, e mais

importante do que nunca que Adam e eu permaneçamos no mesmo time por


enquanto. Somos nos contra ela.

— Voce percebe que Robin provavelmente e quem voce viu na casa de palha
na mesma rua? Aposto que ela ainda esta la agora, e acho

que e hora de conversarmos com ela. Voce pode estar com medo da sua ex-
mulher, mas eu na o.

—Estou com medo —diz ele, e isso e a menor atraçao que ja senti por meu
marido. Uma pequena parte de mim acha que eu dev eria deixa-los
sozinhos... eles se mer ecem.

—E Robin, lembra? Sua doce primeira esposa que nao conseguia matar uma
ar anha?

— Mas se ela tem vivido aqui sozinha nos ultimos dois anos… as pessoas
podem mudar .

—Pessoas. Nunca. Mudam.

Nos dois experimentamos um congelamento quando ouvimos tre s estrondos


no andar de baixo, tao altos que parece que toda a capela, e nos, tr ememos.

—O que e que foi isso? —Eu sussurr o.

Antes que ele possa responder, isso acontece novamente, o som de batidas
tao alto que e como se houvesse um gigante tentando entr ar naquelas
grandes portas goticas da igreja. A expressao de medo no rosto de Adam
transforma a minha em raiva. Eu nao tenho medo de la.

Saio do quarto, desço as escadas correndo e atravesso a sala da biblioteca,


derrubando alguns livros na pressa. A adrenalina est a bombeando atraves de
mim, apesar de todos os aconteciment os estranhos das ultimas vinte e
quatro horas, quando me lembro com quem estou lidando, tenho certeza de
que deve haver uma explicaça o racional para tudo isso. Sem fantasmas, sem
bruxas, apenas uma ex - mulher maluca. Vou fazer com que ela se arrependa
de ter feito isso conosco.

Chego a sala de bagagens e vejo que o banco da igreja ainda est a


bloqueando a porta. Tento tira-lo do caminho, mas ele nao se mov e. Adam
aparece atras de mim, parecendo menos com o homem com quem me casei e
mais com o homem com quem planejei abandonar .

—Ajude-me —eu digo.

—Tem certeza de que e uma boa ideia?

—Voce tem uma melhor?

Ao tirarmos os moveis pesados do caminho, lembro-me de como

meu marido pode ser infantil. A maneira como ele volta a versa o

infantil de si mesmo sempre que a vida ica muito barulhenta costumava ser
cativante. Isso me fez querer protege-lo. Minhas impressoes digitais estao
em todo o seu sofrimento, eu queria limpa -lo e começar de novo. Agora, eu
so queria que ele fosse homem.

As portas da capela balançam quando alguem do outro lado bat e lentamente


tres vezes, de novo. O som ecoa ao nosso redor e nos dois damos um passo
para tras. A parede de pequenos espelhos chama minha atençao e vejo
multiplas versoes em miniatura do rosto do meu marido re letidas neles.
Quase parece que ele esta... sorrindo. Quando veri ico a versao real, ao meu
lado, o sorriso foi substituıdo por um olhar de puro terror .

Estou enlouquecendo.

Hesito antes de tentar a maçaneta da porta e sinto uma peq uena sensaçao de
alıvio quando ela esta tr ancada.

— Onde esta a chave? — Eu pergunto, estendendo minha ma o. Tenho


certeza de que nos dois notamos que ele esta tr emendo.

Adam tira do bolso a chave de ferro de aparencia antiga e a entrega para


mim, com medo demais de abrir a porta sozinho. Tent o encaixa-la na
fechadura, mas ela nao entra. Algo esta bloqueando-a do outro lado. Tento
de novo, mas ela nao cede, bato com o punho na porta de madeira, frustrada.
Nenhum dos vitrais da propriedade se abre e esta e a unica forma de entrar
ou sair .

Entao vejo uma sombra se mover por baixo da porta.

—Ela esta la fora. Aquela vadia maluca nos tr ancou.

Bato na porta quando ela nao responde, entao perco a paciencia e a chamo
de todos os nomes pelos quais ela merece ser chamada.

Robin nao diz uma palavra, mas sei que ela ainda esta la. Sua sombra nao se
mov e.

Entao um envelope com o nome de Adam desliza por baixo da porta.


Pego o envelope e Amelia tenta arranca-lo das minhas ma os.

— Esta endereçado a mim — digo, mantendo-o fora de alcance. Depois


entro na cozinha, deslizo para um dos velhos bancos da igreja ao lado da
mesa de madeira e abro a carta. Existem varias paginas escritas por Robin.
Posso nao ser capaz de reconhecer rostos, mas r econheceria a caligra ia dela
em qualquer lugar. Amelia senta-se em frente. Tent o manter meu rosto
neutro enquanto leio, mas as palavras nao f acilitam isso.

Quão bem você realmente conhece sua e sposa?

Levanto a carta mais alta, para que ela nao possa ve -la.

Não foi por acaso que Amelia começou a trabalhar em Batt ersea… Quando
chego a segunda pagina, meus dedos começam a tremer . Seus caminhos se
cruzaram quase trinta anos antes, mas você não

conseguiu reconhecer o rosto de la.

— O que diz? — Amelia pergunta, pegando minha mao sobre a mesa.


Eu recuo. Nao r espondo.

A polícia a interrogou sobre um atropelament o...

Sinto-me doent e.

O carro em que a apanharam foi o carro que matou a sua mãe.

E difıcil nao reagir quando voce le algo assim sobre a mulher com quem
voce e casado. Amelia parece sentir que algo esta muito err ado.

— O que e? O que ela escreveu? — Ela pergunta, inclinando-se mais pert o.

—Algumas coisas sao difıceis de ler —respondo. Nao e mentir a. Quando


chego ao im, dobro a carta e coloco no bolso. Entao me

levanto e vou ate um dos vitrais. Nao consigo olhar para o rosto de Amelia
agora. Estou com medo do que posso ver .

Eu sabia que esse caso era um erro desde o inıcio, mas as v ezes pequenos
erros levam a erros maiores. Robin nao era apenas minha esposa, ela era o
amor da minha vida e minha melhor amiga. Eu na o apenas quebrei o
coraçao dela quando a traı, eu quebrei o meu pro prio. Os erros de
julgamento se alinharam como dominos depois disso, cada um derrubando o
seguinte. Quando as pessoas falam em se apaixonar , acho que tem razao, e
como cair e as vezes quando caımos podemos nos machucar muito. Nunca
foi realmente amor com Amelia. Foi um simples caso de luxuria nas roupas
do amor. Ate que tornei as coisas ainda piores do que ja estavam, ao me
casar com uma mulher com quem nao tinha nada em comum.

Talvez tenha sido uma crise de meia idade? Lembro-me de me sentir tao
deprimido com meu trabalho. Minha carreira estav a estagnada, eu nao
conseguia escrever e me sentia... vazio. Minha esposa parecia tao
decepcionada comigo quanto eu comigo mesmo. Mas essa linda nova
estranha agiu como se o sol brilhasse na minha bunda de meia-idade, e eu
caı nessa. Ela veio ate mim e eu iquei muito lisonjeado
e patetico para dizer nao. Meu ego teve um caso e minha mente estav a
confusa demais para saber que nunca deveria ter sido nada mais do que isso.
Isso nunca deveria ter acont ecido.

Foi Amelia quem quis se mudar assim que Robin se mudou.

Ela encontrou o anel de noivado que Robin havia deixado par a tras e deu
inumeras dicas sobre o quanto ela queria usa-lo, mesmo que nunca fosse
perfeito para seu dedo. Sempre muito apertado. Ela me intimidou para que
assinasse os papeis do divorcio assim que eles chegaram e reservou o
cartorio – o mesmo onde Robin e eu nos casamos – para um casamento
rapido, sem sequer me avisar primeir o. A mulher fez chantagem emocional
como um carteiro zeloso. Um segundo casamento foi o resgate que eu nunca
deveria ter pago.

Algo parecia errado desde o inıcio, mas pensei que estava faz endo o que era
melhor para todos os envolvidos: cortar os velhos ios solt os que podem
causar o desmoronamento de um novo relacionamento. E u era muito
estupido ou vaidoso para prestar atençao aos alarmes que soavam dentro da
minha cabeça. Aqueles que todos ouvimos quando estamos prestes a
cometer um erro, mas as vezes ingimos que na o.

Nunca deixei de amar Robin e nunca deixei de sentir falta dela. Na

verdade, eu ja tinha conversado com meu advogado sobre minhas

opçoes caso quisesse deixar Amelia. Mas esta carta. A ideia de que ela
estava no carro que matou minha mae e depois passou todos esses anos nos
espionando, tentando se aproximar de mim... isso nao pode ser r eal.
Certamente Amelia nao e capaz disso?

— Voce ja teve problemas com a polıcia? — Pergunto, ainda

olhando pela janela.

—O que havia naquela carta, A dam?


— Voce morava no mesmo condomınio que eu quando er a

adolescente? Fomos para a mesma escola?

Ela nao responde e eu me sinto mal.

A lembrança daquela noite volta para me assombrar, como j a aconteceu


tantas vezes antes. Lembro-me da chuva, quase como se

fosse um personagem da historia. Como se tivesse desempenhado um papel,


o que suponho que tenha desempenhado. Como resultado, o som de balas
aquosas atingindo o asfalto esta gravado em minha mente. A estrada pela
qual minha mae caminhava parecia um rio negro e sinuoso, re letindo o ceu
noturno e o brilho sinistro das luzes da rua, como estrelas urbanas feitas pelo
homem. Tudo aconteceu muit o rapido e acabou tao cedo. O guincho
horrıvel dos pneus, o grito da minha mae, o baque terrıvel do corpo dela
batendo no para-brisa e o som do carro passando por cima do cachorro. O
barulho do acidente f oi a coisa mais alta que eu ja ouvi. Durou apenas
alguns segundos, mas parecia repetir-se. Depois houve apenas um silencio
terrıvel. Foi como se o horror que vi tivesse reduzido o volume da minha
vida a zer o.

Ainda nao consigo olhar para Amelia. Minha mente esta muit o ocupada
preenchendo os espaços em branco que suas palavras na o pr eenchem.

—Voce costumava roubar carros? —Pergunto a ela, com uma v oz que nao
parece a minha.

Amelia nao responde, mas sua respiraçao esta icando mais alta

atras de mim. Eu ouço ela respirar fundo enquanto ela se levanta e começa a
se aproximar. Eu gostaria que ela nao izesse isso, mas me viro para encara -
la.

—Voce foi presa por morte por direçao perigosa quando nos dois tınhamos
treze anos?
— Acho que voce precisa se acalmar — ela resmunga, girando o anel da
minha mae no dedo. Um tique nervoso. Uma dica. Olho para a sa ira,
brilhando na penumbra, como se quisesse me provocar. Uma pequena mas
bela rocha azul. Esse anel nunca deveria estar na mao de Amelia.

—Voce foi dar um passeio na chuva uma noite? —Eu pergunt o. —Nos dois
precisamos icar calmos e... conversar .

Ela começa a soluçar e ofegar ao mesmo tempo, mas ainda na o consigo


olha-la nos olhos. Eu apenas ico olhando para o anel no dedo

dela.

—O carro subiu na calçada?

—Adam... por favor ...

— Sera que ele bateu em uma mulher vestindo um quimono

vermelho enquanto passeava com o cachorro? Voce a deixou par a

morrer e foi embor a?

—Adam, eu...

—Voce achou que escaparia impune para sempr e?

Eu olho para cima e olho para o rosto de Amelia. Pela primeir a vez, parece
familiar para mim. Ela tira o inalador do bolso e começa a entrar em panico
ao perceber que esta v azio.

—Ajude-me —ela sussurr a.

— Voce era a pessoa que estava no carro na noite em que m inha mae foi
morta? — Eu pergunto, lutando contra as lagrimas em meus olhos.

—Eu te amo.
— Foi voce? — Amelia balança a cabeça e começa a chor ar tambem. —
Como voce pode esconder algo assim de mim? Por que voc e nao me contou
quem voce era? Isso e... doentio. Você é doente. Nao h a outra palavra para
isso. Tudo sobre voce, nos, e... mentir a.

Ela nao consegue respirar. Eu ico olhando para ela, sem saber mais o que
fazer, ou dizer, ou como reagir. Parece um dos meus pesadelos: nao pode ser
real. Apesar de tudo, meu instinto e ajuda -la. Mas entao ela fala de novo, e
eu so quero fazer uma coisa: calar a boca. Dela. A cima.

—Eu... nao sou a unica que... mentiu. —Nao sei o que meu rost o faz quando
Amelia diz isso, mas ela da um passo para tras. — Desculpe. Eu sempre...
quis fazer voce... feliz —ela sussurra, com falta de ar .

—Bem, voce nao fez isso. Eu nunca fui realmente feliz com voce .

Entao vejo claramente o rosto de Amelia pela primeira vez. E assim que faço
isso, tudo muda, escurece e se transforma em algo feio e desconhecido. Seus
olhos icam subitamente arregalados e selv agens enquanto eles percorrem a
cozinha. Tudo acontece tao rapido. Muit o rapido. Sua mao deixa cair o
inalador, em vez disso, alcança o bloco da faca. Ela esta vindo para mim
com uma lamina brilhante. Mas enta o outro rosto aparece atras da minha
esposa, e vejo outro brilho de metal, desta vez e uma tesoura extremamente a
iada.

TESOUR A

Palavra do ano :

Desgraça alheia substantivo. Prazer, alegria o u auto-satisfação derivado do


infortúnio de outr a

pessoa .

16 de setembro de 202 0
Prezado Adam ,

Não é nosso aniversário de casamento, mas já se passaram seis meses desde


que voltei para casa e não resisti em escrever uma carta para você .

Conseguimos deixar o passado para trás e voltamo s a ser uma família: você,
eu, Bob e Oscar, o coelh o da casa. Às vezes, quando você liberta algo, el e

volta. Ninguém sabe o que aconteceu na Escócia e ninguém precisa saber .

No início foi difícil para nós dois, ao retornar a Londres, encontrar tantos
vestígios dela em no ssa

casa. Mas não foi nada que alguns sacos de lixo, a

caçamba de lixo local e uma demão de tinta nã o pudessem resolver.


Voltamos às configurações d e fábrica e tudo voltou a ser como antes. Quase
.

Trabalhar na Battersea Dogs Home parecia fora d e questão – muitos


lembretes de todas as coisas qu e

eu preferiria esquecer – mas tudo bem, agora tenh o um novo emprego: sou
escritora em tempo integral .

Não que alguém saiba, exceto você .

Foram seis meses agitados. RockPaperScissor s será publicado no próximo


ano. Pode não ser me u

nome na capa, mas é meu livro, e é difícil não fica r ansiosa com a
possibilidade de as pessoas o lerem . Grande parte de nossas vidas reais foi
dedicada a este livro. Os direitos de exibição já foram vendido s

– para uma empresa com a qual você sempre sonho u em trabalhar – e há


uma cláusula inequívoca n o
contrato afirmando que você será o único roteirist a

deste projeto. O próprio Henry assinou o acordo, o u pelo menos eu o fiz. Às


vezes acho que é o med o

de cair que faz as pessoas tropeçarem. Nã o

nascemos com medo. Quando somos jovens, nã o hesitamos em correr,


escalar ou pular, não no s

preocupamos em nos machucar ou nos preocuparmo s com o fracasso. A


rejeição e a vida real no s

ensinam a ter medo, mas se você quer muito algum a coisa, você tem que dar
o salto .

Quando a caixa de cópias antecipadas do auto r chegou hoje, chorei.


Lágrimas de alegria ,

principalmente. Abri-a usando uma tesoura d e

cegonha vintage que trouxe da Escócia. Eu as tinh a

desde criança, minha mãe comprou dois pares – u m para mim e outro para
ela. Elas eram quase tud o

que eu tinha para me lembrar dela, e elas parecia m novas depois de


colocadas na máquina de lava r

louça, tornando a experiência ainda mais especia l

para mim. Guardei um par e deixei deliberadament e o outro conjunto para


trás na Capela Blackwater ,

porque é hora de seguir em frente e é melhor deixa r algumas coisas no


passado. Aquelas tesoura s
marcaram o fim de um capítulo feminin o

desagradável em nossas vidas e hoje ajudaram a revelar nosso novo futuro,


ao abrir uma caixa d e livros. O livro já foi vendido em todo o mundo –

vinte traduções até agora. Não me importa quem é o nome que está na capa,
sabemos que é a no ssa

história e isso é tudo que importa para mim .

Ninguém precisa saber que Henry Winter er a meu pai .

Ou que ele está morto .

Ou o que aconteceu com sua segunda esposa .

Ainda me chateia que ela tenha sido sua esposa . Fiquei muito feliz quando
você tirou sua aliança d e

casamento enquanto ainda estávamos na Escócia e a jogou no lago, como se


quisesse deixar o passad o

para trás também. Tentei remover o anel de noivad o

de safira da sua mãe da mão sem vida da Ameli a antes de partirmos. Não
porque eu o quisesse d e

volta, mas porque ela nunca mereceu usá-lo. Nã o

saía do dedo dela, não importa o quanto eu tenta sse torcer ou puxar aquela
maldita coisa, e isso m e

incomodava mais do que deveria. Algumas pessoa s são tão teimosas na


morte quanto na vida .

Não estou dizendo que tudo é perfeito, não exist e isso. O casamento às
vezes é um trabalho árduo .
Também pode ser doloroso e triste, mas vale a pen a lutar por qualquer
relacionamento que valha a pen a

ter. As pessoas se esqueceram de como ver a belez a na imperfeição. Eu


aprecio o que temos agora, apesa r de estar ensanguentado e um pouco
rasgado na s

bordas. Pelo menos o que temos é real .

Ainda temos segredos, mas não um do outro . Sempre acho que é melhor
olhar para frente ,

nunca para trás. Mas se não tivéssemos no s

divorciado, o ano que vem seria nosso décimo terceir o aniversário. O


presente tradicional é feito de renda, e

já sei o que vou te dar. Embora seja eu quem usar á um vestido de noiva
novo, será para você. Tudo o

que faço sempre foi .

Sua Robi n

xx
Os livros podem ser espelhos para quem os seguram e nem sempre as
pessoas gostam do que v eem.

Os ultimos seis meses foram bons e sinto como se minha vida

estivesse de volta aos trilhos. Robin esta em casa novamente e

redecorou cada centımetro de nossa casa; e quase como se Amelia nunca


tivesse estado aqui. Estou tao feliz que Robin esta de volta, assim como Bob,
acho que nos dois precisavamos dela muito mais do que eu imaginava.
Talvez eu nao consiga ver como ela e por fora, mas minha esposa e uma
pessoa linda por dentro. Onde e importante. Nada que ela possa fazer
mudara a pessoa que vejo quando olho para ela. Rock Pa per

Scissors esta inalmente sendo feito, mesmo que os tıtulos de abertur a

digam – baseado no livro de Henry Winter –, posso viver com isso. Lidar
com autores difıceis e muito mais facil quando eles estao mort os. Acontece
que minha esposa e tao boa em escrever historias de terr or emocionantes
quanto seu pai. Talvez nao seja surpreendente. As casas mal-assombradas
mais assustadoras sao sempre aquelas em que voce e o f antasma.
Acho que chega um ponto na vida de todo mundo em que voce s o precisa
fazer o que quer. Perseguir o sonho torna-se involuntario, e preciso, porque
todos sabemos que o tempo nao e in inito. E eu v enho perseguindo isso ha
tanto tempo, eu nao merecia alcançar meus sonhos eventualmente? Gosto de
pensar assim. Tenho o melhor emprego do mundo, mas escrever e uma
maneira difıcil de ganhar a vida com facilidade. Se eu achasse que poderia
ser feliz fazendo qualquer outr a coisa, com certeza faria isso.

Apesar de tudo, estou dormindo melhor do que nunca. Meus pesadelos


pararam completamente desde que voltamos da Esco cia, quase como se eu
tivesse deixado para tras a dor do meu passado. Talvez porque inalmente
tenha uma sensaçao de encerramento sobre o que aconteceu quando eu era
menino.

Ainda penso na minha mae e na maneira como ela morreu t odos os dias. E
embora os pesadelos tenham parado, a culpa nunca desapareceu. A culpa foi
minha e nada vai mudar isso. Se eu mesmo tivesse levado o cachorro para
passear – como minha mae me pediu – ela nao estaria na rua naquela noite e
o carro nao a teria atr opelado. Mas eu, aos treze anos, iquei com raiva
porque ele viu minha ma e arrumar o cabelo, borrifar perfume, pintar o rosto
e se embrulhar no quimono vermelho como um presente gratis. Ela so o
usava quando um homem vinha passar a noite na nossa casa. Ela disse que
eles er am amigos, mas o apartamento tinha paredes inas como papel e nenh
um dos meus amigos fazia barulho assim.

Homens diferentes icavam muito. Eu. Nao. Gostava. Disso. Enta o, quando o
amigo daquela noite bateu na porta – outro rosto que eu na o reconheci, mas
tinha certeza de nunca ter visto antes –, saı furioso. E u, aos treze anos,
conheci uma garota no parque naquela noite, atras do predio onde eu
morava. Sentamos nos balanços quebrados e compartilhamos uma garrafa
grande de cidra quente. Foi a primeira v ez que bebi alcool, a primeira vez
que fumei um cigarro e a primeira v ez que beijei uma garota. Eu nao estava
com pressa de voltar para casa. Isso me fez pensar em quantas primeiras
vezes uma pessoa pode t er antes que a vida lhe ofereça apenas segundos.

A garota tinha gosto de fumaça e chiclete, ela disse que eu poderia fazer
mais do que apenas beija-la se encontrassemos um lugar par a fazer isso. Ela
me ensinou como roubar um carro – ela claramente j a havia feito isso antes
– e depois me ensinou como dirigir atras de um armazem abandonado. Ela
me ensinou a fazer outras coisas pela primeira vez tambem no banco de tras,
fazıamos nossos pro prios barulhos e eu, adolescente, pensava que ela estava
apaix onada.

Foi por isso que iz o que ela disse quando me disse para dar uma volta pela
propriedade. Lembro-me do som de sua risada e da chuv a batendo no para-
brisa tornando quase impossıvel ver. — Mais ra pido —ela disse, ligando o
radio do carro. —Mais rapido! —Ela colocou a mao na minha virilha e eu
olhei para baixo. Virei a curva rapido demais e começamos a girar. Quando
olhei para cima, vi minha ma e.

E ela me viu.

Tudo aconteceu tao rapido: o barulho dos freios freando, o carr o subindo na
calçada, o quimono vermelho da minha mae voando no ar, o barulho quando
o corpo dela bateu no para-brisa e o baque das r odas rolando sobre o
cachorro. Depois o sile ncio.

Eu nao consegui me mover no inı cio.

Mas entao a garota estava gritando comigo.

Como nao respondi, ela me empurrou para fora do carro, sent ou- se no
banco do motorista e foi embora. Alguns vizinhos saıram pouco depois e me
encontraram debruçado sobre minha mae, chorando e coberto de sangue.
Todos presumiram que eu estava passeando com o cachorro com ela quando
isso acont eceu.

Eu nem sabia o nome da garota. E eu nunca fui capaz de reconhecer rostos.


Quando a polıcia me pediu para identi icar algumas fotos de uma
adolescente suspeita de dirigir o carro roubado, eu realmente nao pude evitar
.

Achei que nunca mais a veria, entao foi um choque descobrir que eramos
casados.

Eu me sinto mal pelo que aconteceu com Amelia?

Na o.

Infelizmente, pessoas morrem todos os dias, mesmo as boas. E ela nao era
uma delas. Nenhum de nos sabe quando vamos fazer o check - out, a vida
nao e esse tipo de hotel. Eu estou feliz agora. Mais feliz do que pensei que
poderia ser novamente. Eu so quero deixar tudo par a tras e agora inalmente
posso. As vezes, uma mentira e a verdade mais gentil que voce pode contar a
uma pessoa, inclusive a voce mesmo.

Samuel Smith nao e um homem f eliz.

Quando menino, ele era obcecado por livros de terror e policiais. Ele
devorava livros de Stephen King e Agatha Christie e sonhava um dia ser
detetive. Tornar-se um investigador particular foi o mais pro ximo que ele
chegou. Quando Sam comemorou seu quadragesimo aniversa rio sozinho,
bebendo cerveja quente e comendo pizza fria em seu apartamento em
Londres, ele fez uma con issao para si mesmo: isso nao era viver o sonho.
Mas no dia seguinte – quando Sam estava se sentindo um p ouco pior – um
homem idoso telefonou. Ele pediu a ajuda pro issional de Sam para icar de
olho em sua ilha distante. A princıpio, o velho relut ou em lhe dizer seu
nome, mas ser detetive particular era um trabalho que exigia fatos, entao
Sam teve que insistir. Eventualmente, quem ligou confessou que era Henry
Winter, e a decepcionante carreira de Sam de repente se tornou muito mais
interessant e.

Ele pensou que devia ser uma piada, talvez uma comemoraça o atrasada do
aniversario de um amigo, mas depois lembrou que na o tinha nenhum. Ler
livros era a forma como Sam passava a maior part e das noites. Seus
favoritos eram os mais assustadores, e Henry Wint er

era o rei do horror aos olhos de Sam. Ele lia as historias do autor desde a
adolescencia. Depois de veri icar alguns fatos e ter certeza de que er a o
verdadeiro Henry Winter quem estava pedindo sua ajuda, Sam icaria feliz
em fazer o trabalho de gr aça.

Mas um homem tem que comer .

Nao era como se o autor idoso estivesse com falta de um ou dois centavos:
muito pelo contrario. Mas Sam ainda começou a se sentir mal com o quanto
estava cobrando dele. Seguir a ilha de Henry e icar de olho no marido era
dinheiro fa cil.

Sam gosta de pensar que ele e Henry se tornaram amigos ao longo dos anos
que se seguiram, e de certa forma isso aconteceu. Sam at e conseguiu
convencer o velho a comprar um laptop, para que pudessem enviar e-mails
de vez em quando. Ele acompanhava Robin ou o marido dela duas vezes por
semana, mais ou menos – quando eles passeav am com o cachorro, ou a
caminho do trabalho, ou as vezes ele simplesmente icava sentado do lado de
fora da casa deles em Hampstead Village – so para acompanhar as coisas.
Depois ele enviav a um relatorio mensal para Henry. Mas suas trocas nao
eram t odas relacionadas ao trabalho. Eles frequentemente conversavam sobr
e livros ou polıtica, em vez de Robin e Adam. Sam tinha muito orgulho do
fato de Henry con iar nele e acreditar nele, embora nunca tivessem se
conhecido.

Eles se falavam pelo menos uma vez por mes, entao, quando ele nao teve
notıcias de Henry por um tempo, Sam começou a icar um pouco preocupado.
Primeiro, os telefonemas pararam e nunca for am atendidos ou retornados,
mas naquela epoca Henry ainda respondia e- mails ocasionalmente. De
repente, ele icou surpreendentement e ansioso para ver fotos do cachorro e
queria saber todos os detalhes quando a casa de sua ilha fosse redecorada
depois que ela se mudasse. A camera de lente longa de Sam foi muito util
nessas ocasioes. Mas o autor nunca usou o mesmo tom amigavel de antes, e
entao toda a comunicaçao chegou a um im abrupto, juntamente com seus
pagamentos regular es.

Sam estava de olho na ilha de Henry ha mais de dez anos e icou triste
quando seu relacionamento com o autor t erminou repentinamente e sem
explicaçao. Ele bebeu mais cerveja, comeu mais pizza e so comprou o
ultimo livro de Henry Winter no dia seguinte ao seu lançamento, em
protesto. Sam era uma parte silenciosa da famı lia desde que Robin se casou
com Adam. Ele estava la quando o marido dela começou a ter um caso e
tambem se sentiu um pouco deprimido quando se divorciaram. Cavar na
sujeira do casamento deles foi um trabalho facil, mas essa nao foi a unica
razao pela qual ele fez isso por tanto tempo. Eles eram um casal interessante
para acompanhar: ele com sua escrita, ela com um pai famoso e um passado
secreto. Sam at e se apegou bastante ao cachorro deles, pois observava Bob
desde que ele era ilhotinho. Entao ele icou genuinamente triste quando as
coisas deram errado para o Sr. e a Sra. Wright .

Quando a ilha voltou a morar com o ex-marido, ha alguns m eses, depois de


desaparecer da face do planeta por alguns anos, Sam decidiu dirigir ate a
Escocia e contar pessoalmente a Henry. O autor sempre f oi cuidadosamente
reservado e se recusou a compartilhar seu ender eço residencial, mas e claro
que Sam sabia onde ele morava. Ele pode na o ter se saıdo bem como
detetive, mas ainda sabia como descobrir muitas coisas sobre a maioria das
pessoas.

Entrevistas em jornais com Henry Winter eram raras, mas Sam guardava
uma de alguns anos atras. Era sobre onde o autor gostava de escrever e
mostrava uma foto de Henry em seu escritorio, sentado a uma escrivaninha
antiga que pertenceu a Agatha Christie. Nao demor ou muito para Sam
descobrir de qual casa de leiloes veio a mesa. Ou subornar um entregador
para que lhe de o endereço para onde f oi en viado.

O refugio escoces de Henry era ainda mais difıcil de encontrar do que Sam
poderia imaginar. A viagem de Londres foi dolorosament e longa e lenta,
sem instruçoes, o codigo postal que lhe foi f ornecido revelou-se quase
inutil. Depois de dirigir em cırculos em busca da misteriosa – possivelmente
inexistente – Capela Blackwater, e passar por interminaveis montanhas e
lagos que começavam a parecer iguais,

Sam voltou sozinho para Hollowgrove, a unica cidade que vira em quilometr
os.

Havia apenas uma loja, estava escurecendo, Sam avistou a mulher colocando
uma placa de FECHADO na vitrine assim que o viu saindo do carro. Ele
bateu de qualquer maneira, e ela fez uma careta ainda mais desagradavel do
que a que ela estava fazendo ant es.

A mulher abriu a porta e Sam notou seu cracha: PATTY .

Ela tinha um rosto de carpa e era tao vermelho quanto seu avental. Seus
olhos redondos brilharam e ela gritou a palavra “o que ” para ele com cuspe
venenoso. Ela era claramente uma mulher boa em fazer as pessoas se
sentirem mal. Sam resistiu ao impulso de ofer ecer

condolencias a irma de Patty, que ele tinha certeza de ter sido

assassinada por uma garota chamada Dorothy, perto de uma estrada de


tijolos amarelos. Mas a nıtida falta de gentileza de Patty acabou sendo muito
u til.

—Ninguem ve Henry Winter ha alguns anos, e eu digo que e bom se livrar


dele. Ele demitiu sua antiga governanta sem aviso previo – ela era minha
amiga. A nova governanta costumava aparecer de vez em quando para
comprar mantimentos – uma mulher estranha que adorava feijao cozido e
comida para bebe – mas ate ela deixou de vir a cidade ha alguns meses. Nao
sei se devo lhe dizer como chegar a Capela Blackwater. Nao quero que voce
volte aqui e me culpe se algo ruim

acontecer. Esse lugar nao e apenas assombrado, e amaldiçoado.

Pergunte a qualquer um.

Sam comprou uma garrafa de uısque caro demais – ele nao q ueria encontrar
o amigo de maos vazias – e o velho corvo lhe deu instruço es de qualquer
maneira. Quando Sam lhe deu uma nota de dez libras par a agradecer, ela
desenhou um mapa para ele.

Sam se sentiu como um personagem de um de seus rom ances policiais


favoritos quando voltou a estrada. Os telefonemas de Henry terminaram
cerca de dois anos antes – ao mesmo tempo em que a mulher da loja disse
que o autor parou de ir a cidade. Sam nao sabia nada sobre governanta,
antiga ou nova, Henry nunca as mencionava. A

unica pessoa sobre quem Henry realmente queria falar era sua ilha, Robin. O
distanciamento deles ainda incomodava Sam, por que claramente deixava o
velho autor muito trist e.

Robin era uma criança difıcil. Sua mae – uma romancista que Henry
conheceu em um festival literario naquela epoca – morr eu quando a menina
tinha apenas oito anos. Ela se afogou na banheir a. Robin tinha dois autores
como pais, entao provavelmente nao dev eria ser uma surpresa que ela
lutasse para separar o fato da icçao. Henry disse que ela estava sempre
inventando historias, e isso a colocava em apuros tanto no internato quanto
em casa. Ela foi suspensa uma v ez, por contar as meninas em seu dormitorio
historias sobre bruxas que sussurravam tres vezes os nomes de suas vıtimas
antes de mata -las. Tudo era apenas resultado de uma imaginaçao hiperativa
– que para ser justo, ela herdou – mas quando Henry tentou disciplina-la,
Robin cort ou o proprio cabelo uma noite com uma tesoura, deixando duas
long as tranças louras para ele encontrar em seu travesseir o.

Henry culpou a dor e a si mesmo, mas nada do que fez para t entar ajudar a
criança funcionou. Ela fugiu da Capela Blackwater muitas vezes para que ele
pudesse contar, quando tinha dezoito anos, fugiu para sempre. Durante anos,
Henry nao sabia onde ela estava, ate que Robin entrou em contato pedindo-
lhe que ajudasse seu marido. Henry gostou de Adam desde o inıcio. Ele
sempre parecia estar sorrindo quando falava sobre o homem com quem
Robin se casou. Ele na o gostou das adaptaçoes de seus livros para as telas,
mas o fato de continuar concordando com elas era uma prova do quanto ele
gostav a de Adam. Era obvio que ele passou a pensar no genro secreto como
o ilho que nunca teve. Ele achava que Adam tinha sido uma boa in luencia
na vida de sua ilha, enquanto ela estivesse feliz, ele icaria feliz em icar de
fora disso. Isso era tudo o que ele queria saber quando pediu a Sam que os
seguisse.

Ela estava fe liz?

Robin sempre gostou de escrever cartas quando criança, alem de inventar


coisas que a colocavam em apuros. Ela escreveu uma u ltima carta a Henry
antes de fugir para Londres. Foi um agradecimento e

tambem um adeus. Ela disse que a unica coisa que ele lhe deu e que ela
realmente amou foi seu nome. A mae dela insistiu que a batizassem de
Alexandra, mas Henry nunca gostou disso, entao sempre usava o nome do
meio da criança, aquele que ele havia escolhido: Robin. Ele disse que ela
gostou muito porque a fazia se sentir como um passaro, os passar os sempre
podem voar para longe. Quando Robin voou, ela nunca mais volt ou.

Sam icou de olho nas estradas sinuosas das Terras Altas – que eram bastante
difıceis de navegar mesmo antes de escurecer. Ele tambem icava olhando
para o mapa desenhado a mao que a mulher da loja lhe dera, tentando
entende-lo. Ele notou que Patty tambem ha via anotado seu numero de
telefone. Sam estremeceu. Apesar de estar muito tempo perdido no deserto
quando se tratava de mulheres, ele preferia morrer de sede a beber daquele
poço. Quando ele saiu da estrada principal, viu que havia uma placa para
Blackwater Loch o tempo todo. Ele ja havia passado por la varias vezes
porque, pelo que parecia, a placa estava cortada. Possivelmente com um
machado. Est e era claramente um lugar que alguem nao queria que as
pessoas encontr assem.
Ele dirigiu por uma pequena trilha, evitou por pouco atr opelar algumas
ovelhas e passou por uma pequena cabana de palha a dir eita. Parecia
abandonada. Sam estava prestes a desistir, decidiu talvez t entar encontrar
um hotel para passar a noite, mas entao seus faro is iluminaram a forma de
uma velha capela branca ao longe.

O medidor de combustıvel de Sam estava baixo, mas suas esperanças eram


grandes quando ele estacionou seu BMW de segunda mao do lado de fora.
Seu otimismo nao durou muito. A capela estava em total escuridao. Ele ja
sabia que nao havia ninguemem casa: as gr andes e velhas portas de madeira
nao estavam apenas fechadas, elas for am acorrentadas com um cadeado.
Henry claramente nao estava la, e pelas grossas teias de aranha que cobriam
as portas, parecia que ele na o estava la ha algum t empo.

Chateado com a ideia de uma viagem desperdiçada e ainda na o pronto para


desistir, Sam pegou sua lanterna no porta-malas do carro e

foi dar uma volta pela capela. Ele esperava encontrar outra maneira de
entrar, mas, apesar dos interminaveis vitrais, nao havia outras portas. Ele
tropeçou em varias estatuas de madeira no escuro. Os coelhos e corujas de
aparencia misteriosa esculpidos em tocos de arvores antig as estavam tao
bem escondidos pelas sombras que Sam entrou direto no primeiro e
automaticamente se desculpou antes de dar um passo par a tras. Seus olhos
macabros e arrancados o izeram estremecer. Mas entao ele sentiu uma
estranha onda de alıvio – Henry havia conv ersado com ele sobre o quanto
ele adorava esculpir madeira, ele achava isso calmante depois de um longo
dia conspirando para matar pessoas – e Sam sabia que pelo menos estava no
lugar cert o.

Depois encontrou o cemiterio nos fundos da capela.

As lapides de granito misturaram-se inicialmente com o resto do cenario


escuro como breu, mas quando Sam se aproximou, a luz da lanterna revelou
que a maioria era muito velha. Tanto que elas estav am inclinadas em
angulos, caindo aos pedaços ou cobertas de musgo. Mas nem todas eram
antigas ou impossıveis de ler. A mais nova, que se destacava dos vizinhos
em ruınas a distancia e nao devia ter mais de um ou dois anos, chamou sua
atençao. Ele seguiu naquela direçao, mas tropeçou em um inesperado monte
de terra e deixou cair a lant erna. Sam era muito difıcil de assustar – ele tinha
lido todos os livros de Henry Winter duas vezes – mas ate ele teve uma dose
de calafrios enquanto rastejava sobre as maos e os joelhos, em um cemiterio,
tar de da noite, tentando recuperar seu lanterna. O monte de terra sugeria que
alguem havia sido recentemente enterrado ali, e a grama ainda na o tivera
tempo su iciente para crescer no solo irregular. Nao ha via nenhuma lapide,
nenhum nome, aquilo lhe lembrava o tumulo de um indigente. Mas entao ele
notou algo saindo do chao... um inalador v elho.

Sam sentiu-se desconfortavel de repente, o aviso da lojista sobre a capela


estar amaldiçoada voltou a assombrar seus pensamentos. Enta o ele ouviu
alguemsussurrar seu nome tres vezes nas sombras logo atra s dele.

Samuel. Samuel. Samue l.

Mas quando ele se virou, não havia ninguémlá .

Deve ter sido apenas o vento. O medo e a imaginação podem levar as


pessoas mais brilhantes por caminhos sombrios. Não admira que uma
criança que crescesse aqui imaginasse tantas histórias horrı ́veis e distorcidas
que confundiam fatos e icção, pensou ele, lembrando-se de todas as histórias
que Henry disse que Robin tinha inventado. Ele iria perguntar ao velho sobre
isso novamente assim que o localizasse. Ele avistou uma pequena delegacia
de polı ́cia em Hollowgrove e fez uma nota mental para parar ali no caminho
de volta, esperando que pudessem saber onde seu amigo estava morando
agora. Alguém deve saber. Autores mundialmente famosos não desaparecem
simplesmente. Além disso, Henry tinha um novo livro chamado Rock Paper
Scissors que seria lançado no ano que vem. Sam sabia porque já havia
encomendado.

Ele levantou a si mesmo e a lanterna do chão lamacento e caminhou até a


lápide de aparência mais recente do cemitério. Ele teve que ler o que estava
gravado várias vezes antes que seu cé rebro pudesse começar a processar as
palavras.
HENRY WINTER

PAI ASSASSINO DE UM, AUTOR DE MUITOS.

A princı ́pio ele não acreditou que Henry estivesse morto.

Havia uma caixinha de vidro sobre o túmulo, do tipo que algué m guardaria
bugigangas dentro. Sam apontou a lanterna para ela e hesitou antes de se
abaixar para olhar mais de perto. Quando o fez, viu que a caixa continha três
itens. Um anel de sa ira, um grou de papel e uma pequena tesoura vintage
projetada para parecer uma cegonha. Foi o anel que chamou sua atenção, não
apenas por causa da pedra azul brilhante, mas porque ainda estava preso ao
que parecia ser um dedo humano. O vento aumentou e Sam pensou ter
ouvido alguém sussurrar seu nome novamente, três vezes. Ele não acreditava
em fantasmas, mas correu para o carro o mais rápido que pôde e não olhou
para trá s.

[←1 ]

Pedra Papel Tesour a.

[←2 ]

Expressão usada para algo que permite evitar um resultado desagradável de


suas ações. Ex: uma punição ou dev er

[←3 ]

Romance de Charles Dickens que relata as aventuras de um rapaz órf ão.

[←4 ]
Sapo no buraco é um prato tradicional inglês que consiste em salsichas em
massa de pudim Yorkhir e.

[←5 ]

Em toda a Ásia, o crane é um símbolo de felicidade e juventude eterna. No


Japão, é uma das criaturas mís cas ou sagr adas.

[←6 ]

Desengripante protege as dobradiças e facilita a re rada de parafusos,


revigora plás co e áreas cr omadas.

[←7 ]

Final de terror de grande sucesso na década de 80.

[←8 ]

Estar presente em algum lugar com outras duas pessoas que estão querendo
ficar so zinhas.

[←9 ]

Ave Tordo ou popularmente chamado de “pintarroxos” .

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