O Colecionador de Almas 3 - Cora Felix - 241121 - 185004

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Copyright © Editora Cabana Vermelha, 2024

Copyright © Cora Félix, 2024

Todos os direitos reservados. É proibido o armazenamento, cópia e/ou


reprodução de qualquer parte dessa obra ― física ou eletrônica ―,
sem a prévia autorização do autor.
Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas,
fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.

Diretora Editorial: Elaine Cardoso


Preparação de texto: Elaine Cardoso
Revisão: Danilo Barbosa
Leitura final: Vivian Drecco
Capa: Mirella Santana
Mapa: Mariana Félix
Diagramação: Editorial Félix

2024
1ª Edição
O COLECIONADOR DE ALMAS
© Todos os direitos reservados a Cora Félix
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
EPÍLOGO
LEIA OUTRAS HISTÓRIAS DE ATMAN!
GOSTA DE MONSTER ROMANCE?
SOBRE A AUTORA
TRILOGIA ATMAN

Arsene Lefevre (conto)


A Menina dos Fios de Ouro (conto)
O Domador de Bruxas . Livro 1
Filha da Lua . Spin-off
O Devorador de Luz . Livro 2
A Rainha (conto)
O Colecionador de Almas . Livro 3
ATENÇÃO

Esse livro contém cenas que podem gerar gatilhos como violência,
sexo explícito, tortura física e psicológica.
“Estarei bebendo o vinho, comendo a carne e conhecendo o calor da mulher
quando de você não restarem nem os ossos."
A Hora das Bruxas
Anne Rice
Para vocês, que amaram cada parte do mundo Atman como eu amei.
Venha, criança, olhe para mim.
De um sítio a outro, será que é o fim?
Carrega nos ombros o peso da liberdade
Apesar de estar presa, já não sente saudade.
Ao sair para cumprir seu mandato, se mistura à realeza
Com seu poder e paixão, perderá a pureza
De encontro à escuridão, o dourado irá entremear
Para dentro da escuridão, o amor semear
Com isso, a fenda estará aberta
E o futuro do mundo fará parte da oferta
Mas, cuidado, criança, o mal é atento
Por você e sua alma, ele estará sempre sedento
O filho do submundo será um pecado
E enquanto não te tocar, não estará sossegado
Mas o mau, criança, poderá ser domado
Pela força de um ser apaixonado
Então, fique atenta ao mundo das almas
Pois o futuro, criança, estará nas suas palmas
PRÓLOGO

Querida mãe,

Rezo aos deuses que essa carta chegue até você. Sei que a névoa
chegou à Fhár, mas creio que a escuridão não tenha sido misericordiosa
com minha terra.
O Sul está mergulhado em neblina, fome e desespero. As pessoas
estão tentando ser assistidas, mas cada vez mais as vilas são tomadas pelas
criaturas. Os habitantes chegam aos montes, famintos e em luto pelos
amados perdidos, na vila principal de Dhárg. O castelo não comporta mais
pessoas e tentamos distribuir toda a nobreza nos pequenos casarões e
castelos menores.
Nossos soldados merecem medalhas e louros, mas não há um dia que
se passe sem termos baixas. Heth faz o possível para ajudar o próprio
povo, mas as criaturas tomaram as estradas e precisamos de cada vez mais
homens para dispersá-las.
Em meio a tudo isso, sinto que sou egoísta.
Minha preocupação materna me diz que às vezes Adhara passa dos
limites. Ela ainda insiste em acompanhar as comitivas de ajuda. Sinto
orgulho mas, ao mesmo tempo temo pela minha filha, que nasceu pura de
coração e, por isso, parece ser perseguida por essa escuridão que se
alastra pelos reinos.
Nos ajude, mãe. Peço não só como a rainha de Dhárg mas,
principalmente, como filha e esposa, desesperada ao ver o marido perder
as terras de nosso povo, banhadas em sangue.

Carinhosamente,

Liuva
CAPÍTULO 1

A neve em abundância abafou o som das botas batendo no chão


ressequido quando Adhara desceu do cavalo. Os olhos verdes observaram
com cuidado o lugar onde a comitiva parou. Não havia nada de novo para
observar ali, o cenário era o mesmo desde que começaram a viajar para o
leste das montanhas de Dhárg.
Ela soltou as rédeas do cavalo e acariciou o focinho do garanhão de
pelos claros. O animal bufou em expectativa, as narinas deixando sair o
vapor. Sabia que teriam por ali um pouco de feno e água, apesar dos
moradores daquela pequena vila não terem quase nada a oferecer. Adhara
não era cruel a ponto de esperar que o cavalo fosse alimentado na frente dos
sulistas sem ao menos entregar algo em troca, nem que fosse apenas
esperança.
O cavalo foi puxado por um cavaleiro vestido de couro reforçado,
com algumas placas utilizadas como armadura no peitoral e cintura –
mesmo que aquilo fosse inútil para o que enfrentavam. Os olhos por trás do
elmo observaram a garota em expectativa, sendo claramente ignorados.
Adhara estava acostumada àquele tipo de vigilância. Sentia a tensão
no ar todas as vezes que resolvia viajar com a comitiva enviada pelo pai. As
brigas com a mãe começaram a ser uma constante desde então, até Liuva
entender que ela nunca abriria mão de testemunhar com os próprios olhos a
situação de seu povo depois do Declínio.
O pai enfim cedeu, depois de um tempo, cansado de tentar conter o
espírito da princesa. Mas havia uma condição para que Adhara estivesse ali:
viajaria como uma plebeia, mesmo com vários olhos a vigiando, além de ter
várias espadas prontas para serem desembainhadas a fim de protegê-la ao
menor sinal de perigo.
Foi com esse anonimato que ela entrou em diversas vilas para
verificar o que estava acontecendo, assim como fazia naquele momento.
— Não se afaste muito da comitiva principal, Adhara. — Um
cavaleiro lhe disse de forma discreta. — Ainda não sabemos se as criaturas
estão por perto.
Aquele era Gaut, o braço-direito do pai e agora o cão de guarda mais
raivoso que Adhara podia ter ao lado. Apesar da idade, ele tinha um olhar
afiado como nenhum cavaleiro presente ali, capaz de farejar emboscadas de
longe. Seus olhos cinzentos estavam sobre a princesa o tempo todo, mas
aquilo nunca a refreava de caminhar pelas vilas, disposta a ajudar o povo.
Ela assentiu e seguiu adiante, adentrando naquele lugar. O que viu
não a deixou surpresa, mesmo que seu coração despedaçasse todas as vezes
ao se deparar com a realidade. Olhos famintos a fitavam com certa
expectativa, enquanto Adhara fazia um gesto para que os homens
descarregassem grãos e provisões para o inverno. Não havia muita carne, já
que as criaturas haviam acabado com quase todos os animais que andavam
pelas florestas, mas as frutas ainda estavam boas e os grãos eram os das
melhores safras. Com um pouco de água e sal, poderiam passar o inverno
sem sentir tanta fome.
Braços raquíticos foram estendidos enquanto mãos ossudas e afoitas
pegaram o alimento oferecido. Pessoas se aproximavam com timidez, mas o
olhar de gratidão nublava a fome por algum tempo ao aceitar o alimento
ofertado. Os cavaleiros davam instruções e diziam que aquilo era parte do
que o rei Heth poderia dar, mas Adhara não estava interessada naquele
discurso político.
Seus passos a levaram para o centro da vila, fazendo-a encontrar um
grupo de mulheres que pareciam conversar sobre o ocorrido semanas atrás.
Adhara se aproximou daquele grupo e, mesmo que as mulheres a
percebessem como uma intrusa, não se intimidaram em continuar o relato.
— Não são cachorros e nem lobos, parecem monstros quando querem
comer… — Uma idosa com uma touca vermelha puída relatou. — O que
podemos fazer para barrá-los? — Os olhos perderam o brilho enquanto
observavam Adhara, como se ela pudesse lhes dar uma resposta.
Resposta que a princesa sentia-se incapaz de dar.
Ela se aproximou da senhora e tomou as mãos geladas entre as suas.
A idosa estremeceu diante do contato, como se não sentisse um gesto de
ternura tão espontâneo há anos. Mesmo parecendo grata, apertou a mão da
princesa em desespero.
— Deixaremos armas para detê-los. Os homens do rei estão
levantando barricadas e muros para que as criaturas não avancem muito.
Além disso, temos postos de acolhimento por todo o reino.
Era pouco, mas era o que seu pai conseguia oferecer naquele
momento. As criaturas se alastravam e pequenas vilas como aquela foram
as primeiras a cair.
— Eles não fazem distinção de animais e humanos. Comem tudo o
que está vivo e nunca parecem se saciar. Que tipo de bestas são essas? —
Uma das mulheres perguntou, o rosto cheio de dor. — Estou cansada…
Adhara ouviu relatos como aquele em todas as vilas que visitava.
Apesar da carnificina e do derramamento de sangue, o que mais a
incomodava era a quantidade de doenças que aqueles ataques injustos
pareciam deixar por onde passavam. E junto aos males do corpo vinham os
transtornos da mente. Havia uma espécie de tristeza e desalento que parecia
entremear cada sulista, alimentando-se da esperança.
A princesa não pensou duas vezes em abraçar aquela mulher. Naquele
momento, sentiu o vento parar de sibilar e os flocos caírem de forma mais
tímida, os burburinhos das pessoas ao redor cessando aos poucos. Sabia que
as respirações estavam mais superficiais, como se custassem acreditar no
que viam, um gesto tão humano.
Todos os olhos estavam sobre ela, as mentes ecoando a mesma
pergunta: quem era aquela garota tão terna, que entrava nos vilarejos como
se não tivesse medo do futuro, plantando no povo uma semente de alento e
esperança?
A mulher ficou estática por um tempo, mas depois relaxou nos braços
de Adhara. A princesa sentiu as lágrimas da sulista molharem de leve o seu
gibão. Apertou os braços em volta da mulher e passou com carinho os
dedos nos cabelos ressequidos.
— Tenha fé, tudo vai passar…
Adhara não sabia se aquilo era verdade, mas como princesa e futura
rainha do Sul, faria de tudo para que aquilo se realizasse. A mulher pareceu
acreditar nela. Afastou-se brevemente da garota e a olhou. Havia gratidão
nos olhos e um sorriso tímido lhe percorreu os lábios antes de se afastar
para pegar sua parte da provisão.
A princesa permaneceu onde estava, observando o grupo de mulheres
cochicharem sobre o que havia acontecido. Os demais já haviam se afastado
para guardar o alimento ofertado. Adhara pulou quando sentiu uma mão
pesada sobre seu ombro.
Gaut a olhava com calma.
— Está na hora de ir, princesa. As provisões já foram entregues e um
mapa dos postos de acolhimento também — falou com discrição.
O pai foi categórico naquele pedido. Não quero que ninguém saiba
que a princesa do Sul anda como uma plebeia, ajudando a Comitiva Real.
Apesar de Heth ter um visível orgulho da filha, o medo era verdadeiro
quando se tratava de sua segurança.
Gaut sentiu a relutância de Adhara e apertou o ombro da princesa
com delicadeza.
— Você não pode salvar e acolher todos…
Aquilo levou lágrimas aos olhos da jovem. Era injusto demais…
Adhara se virou, questionando se um dia os reveria quando tudo acabasse.
O garanhão de pelos claros já a esperava. Ela enfiou o pé no estribo,
tomando impulso para montar no animal com agilidade e rapidez. Antes de
incitar o animal a andar, correu os olhos uma última vez pela vila. Por um
momento fitou a mulher que havia abraçado e assentiu, para finalmente se
retirar.
O coração doía sempre que visitavam alguma vila. Tentava buscar
respostas, mas nunca as achava, apenas a fome e o desespero do seu povo.
Os primeiros locais a caírem foram os pertencentes à Faixa Vermelha, como
o perímetro perto da floresta mais ao sul foi apelidado. Ali, o cheiro de
podre emanava do que restou, em meio às árvores mortas e um betume
estranho que tomou conta do solo.
Já não existia vida humana naquele lugar. A terra havia secado e, com
isso, as plantações se perderam, tornando impossível a colheita. Alguns
diziam que nem mesmo os corvos permaneceram para comer os cadáveres
que haviam ficado para trás quando as criaturas atacaram.
Elas haviam devorado tudo.
Lymena subiu as escadas que a levariam até a entrada principal da
Fortaleza. Estava quieta naquela noite. Imersa em pensamentos,
perguntava-se quantas vezes havia feito aquele caminho, desde a ruptura
dos véus, para entrar no castelo e conversar com os Nobilitatis. Havia vindo
o suficiente para uma Coroa Vermelha, mas não o bastante para o mundo
corpóreo. Precisava admitir para si mesma: fazia quase um ano desde que
tinha ido a uma reunião como aquela, fato que a incomodava.
Alcançou o último degrau, os olhos castanhos observando o grande
castelo à sua frente. Sentiu um par de olhos conhecido a observando. Era
Arsene, que sempre ficava tenso quando Lymena visitava a Fortaleza.
Aquele sentimento parecia quase palpável naquela noite.
— Você está bem? — A voz aveludada do ruivo a deixou calma no
mesmo momento. Arsene se aproximou, tocando com delicadeza a mão da
bruxa.
— Sim, apenas pensando… — Ela apertou a mão do companheiro. —
Sempre que entro aqui, eu saio com uma carga maior do que talvez possa
suportar.
Arsene nada respondeu, mas Lymena sabia que aquela era a maneira
do vampiro apoiá-la. A bruxa não estava com muitas palavras a dispor nos
últimos dias, e o silêncio às vezes era por ambos apreciado.
Depois da ruptura da fenda, as filhas de Atman se recolheram às
Florestas Brancas, como uma maneira de se defender do mal que se
alastrava pelo mundo corpóreo, mesmo que este estivesse se condensado no
Sul.
O Norte ainda estava livre dos demônios – parte disso graças ao poder
de Lymena, que se estendia além das fronteiras das Florestas Brancas, mas
também à presença do Sombrio e o modo como comandava suas criaturas.
Apesar de não estar mais no submundo, Merik ainda detinha todo o poder
do trono de obsidiana, deixando claro que não toleraria sangue em
abundância no Norte.
Lymena estava só naquela noite, já que Nyana havia ficado na vila
das oráculos com Srala e Videric estava em ronda. De qualquer forma, as
ancestrais estavam inquietas e por isso ela queria tentar uma comunicação.
Krida estava junto às outras anciãs, que se resguardavam nas florestas, mas
ainda estudando sobre a escuridão que cobria o Sul. Portanto, cabia a ela a
missão de articular o próximo passo.
Entrou no castelo e assim que colocou os pés nos corredores, a
energia do submundo brigou com a de Atman. Rumou então para a sala
onde Domenico recebia os Nobilitatis. Parte do peso nos ombros dela foi
aliviado quando viu Alys sentada no sofá. A garota sorriu e se levantou,
rumando em direção à bruxa. Os braços estavam saudosos quando se
abraçaram e Lymena sentiu ali um pouco de esperança. Era bom ver um
rosto amigo depois de tantas luas recolhida.
— Lymena… — A voz da jovem era doce. — Sinto tanta saudade de
vocês.
A bruxa apertou-a um pouco mais antes de soltá-la, os olhos
castanhos correndo pelo local. Domenico estava próximo à lareira e rumou
na direção da bruxa, colocando a mão no peito e fazendo uma pequena
mesura. Lymena aceitou a saudação, recordando-se de como ele praticava
aquilo com Gwendolyn sempre que se encontravam, um sinal de respeito
dos vampiros para com as bruxas. Fazia tantos anos…
— Lymena, é sempre um prazer ver Atman dentro desses muros. —
A voz de Domenico era cadenciada, uma característica comum dos
vampiros, mas mais acentuada em um sangue-puro. — Espero não segurá-
la por muito tempo.
— Sabe que sempre estarei aqui quando necessário, Domenico.
Um grunhido irônico cortou a conversa e Lymena olhou para o canto
do sofá, onde Merik estava sentado. O Sombrio permanecia calmo e
taciturno, rodando o anel dos Nobilitatis no dedo, os olhos escuros
denotando enfado. Lymena sabia que, ao contrário do que parecia, ele
permanecia atento, como apenas um Alto demônio poderia estar.
— É bom ver você, Merik — cumprimentou-o de forma diplomática.
— Está fazendo um bom trabalho em conter os demônios.
Lymena não esperou que ele respondesse antes de escolher um sofá
vago e sentar-se com as costas retas. Arsene se acomodou ao lado dela,
passando o braço pelo encosto do sofá de uma forma protetora. Alys tomou
o lugar ao lado de Merik, mas parecia tensa em como aquela reunião
começaria.
Lymena nunca disse em voz alta sua opinião sobre a ruptura da fenda,
já que Srala pediu discrição quanto a isso. O que Merik fez foi um ato de
amor, ela havia dito, e apenas com carinho poderemos anular a ruptura dos
véus. Ela precisava concordar, o amor de Merik para com Alys foi maior do
que qualquer energia do submundo, trazendo com isso inúmeras
consequências.
Um monstro foi libertado de Atman. Criatura essa que estava
desaparecida.
Lymena lembrou-se do motivo de estar ali.
— Espero que tenham notícias sobre o paradeiro de Zephyr — ela
começou a reunião e escutou Domenico respirar fundo.
— Achei que a chamando aqui você poderia nos dar uma luz. As
ancestrais falaram algo?
A expressão de Lymena era séria e Arsene se remexeu no sofá,
sentindo o poder latente da Coroa Vermelha naquele momento.
— Sabe que as ancestrais orientam apenas o necessário. — Ela
ignorou o som de escárnio que Merik fez, bem como o olhar de Alys cheio
de fúria em resposta. — Nyana está em contato com as bruxas de Atman,
mas Zephyr é um ponto escuro.
— De que adianta essa comunicação com suas bruxas se elas retêm as
informações necessárias? — A voz de Merik era impaciente.
— Devo lembrar que não foi culpa das minhas bruxas a fuga de
Zephyr? — Lymena respondeu em um tom calmo. — Pare de ficar achando
defeitos no curso natural de Atman, choramingando como uma criança,
Sombrio. Temos inúmeros problemas e pouco tempo para resolvê-los.
As chamas das velas tremeluziram e a tensão da sala ficou evidente.
A energia de Merik aumentava à medida que o submundo tomava o Sul.
Lymena sentia aquela energia, mas nem por isso se curvava a ela. Era
preciso muito mais para que a Coroa Vermelha sentisse medo.
— Sabe que não foi nossa culpa, Lymena. — A voz de Alys era um
bálsamo naquele lugar.
A expressão dela se desanuviou e a energia do Sombrio recuou. Alys
era um ponto de luz em meio ao coração ruim de Merik e a bruxa sabia que
apenas a garota era capaz de conter a maldade daquele homem. Respirou
fundo e sentiu os dedos de Arsene a acariciando.
— Isso é perda de tempo… se ficarmos aqui nos atacando,
deixaremos o perigo maior fazer o que quiser com o mundo corpóreo. —
Lymena tocou os dedos do companheiro e olhou para Merik. — Achei que
Zephyr o procuraria.
Merik gesticulou em negativa, passando os dedos nos lábios. Os olhos
escuros fitavam as chamas da lareira e ele parecia imerso em pensamentos,
mas Lymena sabia aguardar. Depois de um tempo, o Sombrio decidiu falar.
— Confesso que esperei a visita dele, mas Zephyr ainda é uma
incógnita para mim. Meu jardim morreu quando Alys entrou na minha vida,
isso já não o apetece mais… — Mesmo depois de anos, Merik tinha
dificuldade em falar em voz alta sobre seus sentimentos pela caminhante.
— De qualquer forma, sabemos o que ele quer no mundo corpóreo.
Era aquilo que Lymena temia. A possibilidade era grande, mas a
bruxa tentava não pensar muito nisso, porque se Zephyr fosse bem-sucedido
em suas explorações pelo mundo corpóreo, muito do que tinham ali
mudaria.
— A princesa. — Domenico disse de forma discreta, como um
pensamento que lhe escapou pelos lábios.
— A alma da princesa. — Merik corrigiu.
Lymena sabia que o Sombrio dizia a verdade. Se Zephyr o tivesse
procurado, já teria notificado os Nobilitatis. Seria um problema a menos
para lidar. O outro, Lymena deixaria para Merik.
— E Igrik? — Arsene tinha outros planos. — Ainda não sabemos se
está no submundo ou no mundo corpóreo. — Merik olhava para o vampiro
com atenção. Lymena percebeu o humor do Sombrio piorar.
— No mundo corpóreo. — Aquela informação, dita com tanta
certeza, pegou todos de surpresa. — Consigo sentir o cheiro daquele
maldito… Em breve irei mandá-lo de volta para o submundo.
— Igrik só desistirá do trono se você enfiar uma adaga de Jyot no
coração dele, Merik. — Domenico o interrompeu, olhando para Alys. —
Sabe disso, certo?
Lymena ficou tensa. A adaga de Jyot estava com Merik, mas Srala
alertou sobre o uso dela e não sabia se o Sombrio tinha escutado. Talvez a
lâmina estivesse na posse de Alys, mas a bruxa nunca questionaria.
Merik se levantou, as mãos pálidas ajeitando o sobretudo de veludo
escuro, os olhos conversando em silêncio com os da garota. Alys fez o
mesmo.
— Sei disso, Domenico. E é o que pretendo fazer. — Depois, olhou
para Lymena. — Já que as bruxas de Atman estão caladas, aguardemos.
Zephyr deve tomar alguma decisão imprudente em breve.
— Acho difícil. Para ser tão discreto, ele não deve estar nutrindo o
próprio poder… Isso nos mostra como possui pensamentos afiados. —
Domenico pensou em voz alta.
— Não nutrindo o próprio poder? — Alys parecia confusa.
Merik tocou a cintura delicada da garota e a guiou até a porta.
— Zephyr é um Elemental caído. Saberíamos onde ele está se por
acaso libertasse seu poder. — Os olhos de Merik observaram com carinho e
atenção a garota. — Sentiríamos ele em qualquer parte do mundo corpóreo.
CAPÍTULO 2

Os olhos escuros observaram cada casebre feito de palha quebradiça.


O barro que as mantinha firmes parecia ter visto dias melhores e as
plantações estavam ressequidas, como se há tempos não vissem água.
Os aldeões o cercavam, curiosos. Nos seus rostos, traços de dor e
sofrimento, mas, mesmo assim, havia ali mais vida do que nas outras vilas
que Zephyr tinha visitado durante as últimas luas.
Ele sabia que a princesa havia passado por ali. Podia sentir a energia
dela, pulsante e clara, como uma isca a atraí-lo. Seu corpo respondia àquele
chamado como apenas um colecionador poderia sentir diante de uma alma
pura. A boca passou a salivar e cada músculo se aqueceu, algo bem-vindo
depois de viajar debaixo de neve e frio durante dias.
— Acha que devemos deixá-los? — A voz do primeiro em comando
tirou Zephyr do pensamento divagante. Olhou para o homem, que
aguardava suas ordens.
— A comitiva real já passou por aqui — gesticulou para um casebre
maior, que parecia abrigar os grãos. — Estão abastecidos.
O homem assentiu e apenas levantou a voz para que o povo lhe
ouvisse.
— Se precisarem de proteção, vão mais para o Leste e procurem pelo
senhor daquelas terras. — Os aldeões então aproximaram-se aos poucos,
acreditando que o pequeno grupo de homens não ofereceria perigo. — Lá a
carnificina ainda não chegou.
— E como saberemos se esse senhor poderá garantir nossa
segurança? — um dos aldeões questionou, desconfiado da oferta.
— Porque eu posso. — A voz de Zephyr era dois tons mais baixa que
a dos outros, mas havia nela um perigo velado, que muitos sentiam ao
escutá-lo. O silêncio que veio em seguida perdurou por um momento,
enquanto ele sentia-se observado. — As criaturas não chegaram às minhas
terras e, caso aconteça, serão exterminadas.
Nem esperou por respostas. Cutucou as costelas do cavalo de pelos
escuros e puxou com leveza as rédeas para que o animal andasse, deixando
assim o restante da pequena comitiva para trás. Não pretendia perder mais
tempo com humanos ingratos, mesmo que precisasse deles para manter a
aparência escolhida quando pisou no mundo corpóreo.
Há dez anos naquelas terras, Zephyr ainda se surpreendia ao lembrar
de como foi fácil enfiar-se na cultura sulista e tomar a identidade de um
nobre que havia assumido as terras de uma família há muito esquecida pela
corte. Permaneceu preso em Atman por séculos, mas havia algo familiar
naquele padrão que o deixava à vontade: a tolice humana.
Com um pouco de lábia e bastante ouro nas mãos, as pessoas
acreditavam em tudo. Tanto que foi pouco questionado sobre sua origem, e
menos ainda sobre o que pretendia fazer naquelas terras. Bastou mostrar o
poder e a riqueza que possuía.
Nesta década de reclusão, Zephyr acabou por construir um império,
mas nunca deixou de observar seu real objetivo no mundo corpóreo: a
princesa Adhara.
Mesmo longe de onde vivia como humano, as histórias sobre ela
chegavam aos seus ouvidos. Sempre doce e carinhosa, conquistava atenção
e admiração por onde passava. Depois que o Sul foi coberto pela escuridão
e os demônios tomaram cada canto do mapa, dizimando vilas pequenas e
comendo cada pedaço de carne conseguido, o rei Heth a privou de visitar os
vilarejos… mas isso foi até a menina crescer.
Com o tempo, a proibição diminuiu e a princesa começou a se enfiar
nas comitivas de ajuda, para ver como o povo estava lidando com tudo
aquilo. Aqueles que sabiam a sua real identidade eram mínimos, e Zephyr
era um deles. Nem mesmo seus homens mais confiáveis sabiam que a
plebeia discreta e amorosa, viajando sempre junto aos homens do rei, era a
herdeira do Sul.
Tinha de ser cauteloso com as informações. Nas mãos certas, ainda
eram a arma mais poderosa. Afinal, havia espiões por toda a região. Olhos
até mesmo em Fhár.
Alguns voltados para ajudá-lo, outros para persegui-lo.
Mas o caído não queria lidar com a parte sobrenatural do mundo
corpóreo. Pelo menos por ora.
Liuva observava a neve cair lá fora, o cabelo loiro ondulado brilhando
como um ponto de luz em meio à escuridão da sala de descanso. Entre
aquelas paredes a rainha passava boa parte do tempo depois do desjejum,
para refletir com calma, sem interrupções. As linhas de expressão no rosto
dela eram mínimas, mas quem a observasse com atenção, veria
preocupação e cansaço a marcarem o semblante sempre sereno.
Há muito desejava sair do Sul.
Liuva considerava aquela região seu lar desde que havia se casado
com Heth. Tinha criado sua filha naquelas terras e tido muitos momentos
felizes, mas a escuridão que tinha se alastrado pelo Sul havia deixado seu
coração dolorido. Por isso, desejava cada dia mais rever as terras de Fhár,
sentir o vento com o aroma das flores, o sol lhe aquecendo a pele enquanto
caminhava pelos jardins do castelo dos pais…
Mas parte dela sabia que aquilo era quase impossível. Não por falta
de convite, já que a carta que estava em suas mãos, enviada pela mãe,
Emelia, mostrava essa possibilidade. O fato era que Liuva sabia a verdade:
o Norte não era mais como o de suas lembranças.
A mãe havia escrito que a tristeza e a escuridão que perduravam no
Sul estavam afetando o outro lado do mapa, mesmo que em intensidade
menor. As criaturas ainda não haviam se alastrado, mas as enfermidades e
doenças da mente estavam cada dia mais comuns nos pequenos vilarejos.
— Ela está pedindo outra vez que a gente envie Adhara para lá. — Os
olhos da rainha pararam de observar a neve e focaram no marido, que
estava sentado por perto, bebericando uma taça de vinho e contemplando as
chamas da lareira, entre um sinete e outro. — Acha que é possível? Sabe
que Fhár parece mais seguro…
— Gostaria muito. — Heth colocou o cálice na mesa e observou o
último pergaminho que aguardava o selo real. — Mas sabe que nossa filha
nunca abandonaria o povo para buscar a própria proteção.
Liuva assentiu. Sabia que o marido estava certo. A presença da filha
nas comitivas era um segredo, mas surgiam cada vez mais conversas sobre
a plebeia que andava entre os soldados, uma garota carinhosa que possuía
uma bondade nunca vista.
— Sabe que não posso abrir mão de mais soldados. — A voz de Heth
agora estava mais próxima e Liuva sentiu os braços do marido a
circundando. Os lábios dele estavam frios, mas afetuosos quando pousaram
na testa dela. — As estradas estão perigosas e uma comitiva de porte grande
chamaria a atenção, gerando desconfiança. Todos saberiam que alguém da
nobreza ou da alta hierarquia estaria entre eles.
Liuva se acomodou naquele abraço, sentindo-se calma. A força que
Heth lhe passava era incomum, fazendo-a sentir-se grata por ter um
companheiro assim ao lado. Respirou fundo e sentindo o cheiro dele,
fechou os olhos.
— O que vamos fazer, Heth? — A dúvida surgiu num sussurro, como
se temesse a resposta.
Os lábios dele agora pousaram no topo da sua cabeça. Logo em
seguida, inspirou profundamente, como se inalasse o perfume vindo dos
fios dourados da esposa.
— Vamos aguardar, Liuva… peço apenas que tenha um pouco de
paciência. Por mim.
A rainha levantou o rosto e beijou o pescoço do marido.
— Por você eu faço tudo.

Zephyr observava o grande mapa aberto em cima da mesa de madeira


escura. Havia o estudado por longos anos, tanto que poderia até mesmo
desenhá-lo se fosse preciso. As florestas, as vastas passagens e pequenas
estradas, seguidos de vilarejos e vilas maiores, castelos e casarões.
Se fechasse os olhos, conseguiria até mesmo vislumbrar onde ficava a
Fortaleza de Domenico e os domínios das filhas de Atman, pontos que
decorou, mas evitou sinalizar para não criar dúvidas sobre quem o
analisasse. Os humanos não precisavam saber os motivos do real interesse
de Zephyr.
Além do mapa, decorou tudo que conseguiu sobre as casas reais,
mesmo que naquele momento os humanos estivessem mais focados nas
criaturas e em sua matança. Ele desceu para o mundo corpóreo com o
intuito de tomar terras e, para isso, precisava saber quais eram os lugares
mais suscetíveis aos burburinhos.
Isto lhe revelou, por exemplo, que Dagomer, o monarca nortista, era
um tolo acomodado. Já o rei sulista, Heth, era conhecido por sua estratégia
e inteligência afiada. Após o golpe de ser traído pelo seu conselheiro,
tornou-se ainda mais desconfiado. Portanto, seria um homem difícil de
manipular, mas não impossível, já que todos os humanos eram propensos
àquilo, a acreditarem no que queriam, no desejado.
O rei Heth, assim como os demais, estava desesperado por um fio de
esperança. E aquela seria a sua fraqueza.
Com tranquilidade, Zephyr pegou o pergaminho e molhou a pena no
nanquim escuro. As palavras saíram fluidas, como apenas um herdeiro
conseguiria fazê-lo. Ser cortês era algo que teria de fingir por um tempo,
caso quisesse se aproximar de Heth. Para isso, usaria das palavras naquele
pergaminho para esconder o seu real desejo.
Um sorriso de lado percorreu o seu rosto. Se Heth precisava de algo
para acreditar, era o que teria.
CAPÍTULO 3

Tudo ali era branco. Desde a neve amassada pelos cascos da égua até
as copas das árvores em meio ao céu nublado.
Adhara sentia o ar gelado bater em seu rosto conforme o animal
percorria velozmente àqueles campos que um dia foram mais verdes,
mesmo com a neve predominando sobre as paisagens do Sul. O frio era de
gelar os ossos, mas aquilo nunca a incomodou antes. A baixa temperatura
era parte de estar em casa, onde considerava seu lar… mas atualmente…
Era praticamente insuportável.
Engoliu em seco, sentindo a garganta arranhando. Já estava correndo
há um bom tempo…
E a criatura não desistia.
Olhou para trás, vislumbrando os cabelos castanhos como apenas um
ponto escuro em meio a tanto branco, parecendo chamar a atenção mais do
que devia. Adhara fincou os calcanhares nas costelas de Nyra e fechou os
olhos quando o animal relinchou. Não gostava de exigir tanto da égua, mas
com tamanha quantidade de neve até mesmo os cavalos sulistas, resistentes
ao clima, cansavam-se mais rápido.
Adhara inclinou-se em direção às orelhas de Nyra.
— Prometo que depois dessa empreitada, você descansará até o
inverno passar…
O animal relinchou de novo e a princesa conteve um sorriso. A égua
parecia saber que nunca teria descanso e, mesmo assim, gostava daquela
possibilidade. A princesa e ela entendiam-se em meio aos mais simples
gestos. Afinal, quando cavalgavam, eram uma só.
Adhara puxou a flecha da aljava e virou parcialmente o corpo para
trás. Não tinha tempo para mirar e nem precisava. O olhar acostumado ao
arco seguiu a mancha escura na neve com precisão antes que soltasse a
corda.
A flecha voou e acertou o alvo, sangue escuro manchando a neve. A
criatura mostrou os dentes em revolta e caiu, mas a princesa sabia que teria
de terminar com aquilo. Por isso, cutucou o pescoço da égua, que entendeu
o toque e desacelerou até parar em meio à vastidão branca.
Os olhos verdes de Adhara correram pela neve até alcançar a criatura
caída. A égua fez o caminho de volta, aproximando-se com cuidado, até
chegar perto o suficiente para a princesa descer da sela e verificar.
O monstro estava morto. O sangue fétido e escuro manchava a neve, a
pele esticada e sem pelos já não se movimentava. Só então ela respirou
fundo, o cansaço e um desânimo estranho a tomando.
Ao dar as costas, escutou um rosnado. Virou-se com rapidez para
olhar a criatura que havia derrubado, mas o som não vinha dela, mas sim de
um outro vulto que parecia observá-la, afoito pela carne ofertada.
Adhara engoliu em seco. Odiava aqueles seres bestiais. Não possuíam
olhos, mas pareciam fitá-la com fome interminável, sempre que a princesa
se deparava com elas. Logo veio outro rosnado.
Correu os olhos verdes pela neve, encontrando novos pontos escuros.
— Merda…
Adhara deixou o arco cair e pegou as adagas presas às coxas. Não
sabia se seria prudente tentar fugir. Nyra estava cansada, parecia inquieta e
estressada por causa da presença daqueles monstros. Sacrificá-la ainda mais
estava longe de ser uma opção.
Um grito rasgou o ar. Dois. Adhara se conteve para não jogar as
adagas na neve e tampar os ouvidos. O barulho vindo daquelas bestas lhe
dava arrepios e ânsia de vômito, mas nunca soaram daquela maneira.
Pareciam desesperados… e com medo.
Curvaram-se em outra direção, farejando o ar. Mais daqueles sons
ecoaram de suas bocas. A princesa notou que, por um momento, as criaturas
pareciam relutantes. Depois de um tempo, viraram-se para leste e correram
na direção oposta de onde as vilas ficavam, enfiando-se em meio as árvores
densas das florestas e deixando-a só. Ela ficou quieta, o som da sua
respiração e de Nyra se mesclando aos gritos distantes dos monstros, que
diminuíram até restar o silêncio.
— O que foi isso?!
A égua olhou para um ponto distante e Adhara a acompanhou,
tentando encontrar o que lhe chamou a atenção. Depois de um tempo, um
manto escuro cortou a neblina. A garota precisou semicerrar os olhos para
enxergar melhor quem vinha, o corpo em alerta. Desde que as criaturas
tomaram a região, Dhárg vinha sendo invadida por ladrões. Como estava
longe do perímetro de segurança delimitado pelo pai, precisava ter o dobro
de atenção.
Era um homem. Mesmo que estivesse coberto por um manto escuro,
ela percebeu que andava com uma calma que há muito Adhara não via em
viajantes por aqueles lados. Possuía a postura ereta e uma confiança
incomum para alguém que estava cercado por neve e frio. Ao se aproximar
mais, a princesa percebeu que era mais jovem do que havia suposto. Tinha
o semblante sério e a pele pálida, os lábios e os olhos eram delineados,
como opostos à claridade de onde se encontravam, atentos ao menor
movimento.
Ela sentiu o coração martelar dentro do peito e a pele se arrepiar.
Corra, a mente parecia lhe dizer. Mas não conseguia se mover. Enquanto
isso, o coração agia de forma contrária, acelerando à medida que se
aproximava.
Desde criança, Adhara sentia as pessoas. Não que isso fosse
relevante, mas parecia captar a energia daqueles com quem convivia e,
mesmo que esta fosse densa, acabava por misturar-se a ela, buscando assim
encontrar a bondade em cada parte. Mas a daquele homem era diferente de
tudo o que já havia sentido. Adhara estava com dificuldade em descobrir se
gostava ou queria fugir dela.
O desconhecido parou diante da princesa e esboçou um sorriso de
lado que o deixou ainda mais jovem, com uma covinha aparecendo. Possuía
uma beleza parecida com a dos príncipes dos reinos que ela havia visitado,
na época em que podia viajar e comparecer aos bailes, antes do Declínio.
Mas, ao mesmo tempo, havia algo diferente ali, que o fazia ser único.
Adhara continuou o observando, tentando definir aquilo… Sim, eram
os olhos, que denotavam perigo, mesmo quando o rosto expressava
tranquilidade.
— Está perdida? — A voz aveludada a arrepiou.
Mesmo soterrada pela neve, a princesa conhecia todas as florestas do
Sul como a palma da mão. Nunca precisou de um mapa para achar uma
estrada ou campo. Sabia que estava longe de casa – talvez por isso ele não
tenha a reconhecido, o que podia ser uma vantagem.
— O rei não irá gostar de saber que a herdeira do trono de Dhárg está
andando pelas florestas em tempos como esse.
Ele a conhecia.
— Estava caminhando — respondeu sem pensar. Não precisava dar
satisfação a qualquer um, muito menos a um estranho, tão longe do castelo
principal.
O homem arqueou as sobrancelhas e olhou para a criatura morta ao
lado dela, como se aquela cena reforçasse o perigo que corria. Adhara então
fez uma careta e foi em direção ao corpo, ignorando a presença do rapaz.
Correu os olhos pelo monstro uma última vez antes de pegar a flecha e
puxá-la do cadáver. Enfiou-a na neve para retirar qualquer vestígio de
sangue e depois guardou-a na aljava. Respirou fundo e franziu o nariz.
— Estão por toda parte… — Tentou explicar o que fazia. — Se você
é do Sul, sabe muito bem disso. — Jogou a frase no ar para ver se
respondia, dando-lhe alguma pista de sua origem, mas ele permaneceu
calado. — Apesar de nunca ter visto essas criaturas fugindo de alguém.
O sorriso do rapaz aumentou, mandando uma nova onda de arrepios
ao corpo dela, como uma advertência. Afaste-se. Adhara ignorou aquilo,
ainda sem conseguiu sair do lugar, nem mesmo quando ele se aproximou.
— Irei levá-la ao castelo principal. — Foi enfático na mensagem, sem
espaço para recusa.
Ela não conseguiu detectar sequer um sotaque característico nas
palavras dele, ainda intrigada com aquela situação.
— Não será necessário, consigo chegar sozinha.
— Está anoitecendo. — Ele olhou para cima e Adhara observou o
brilho de uma fina corrente sair de dentro do manto. — Em breve esse
campo estará infestado de criaturas.
A princesa não queria admitir, mas o desconhecido tinha razão.
Adhara não queria nem pensar no que seria dela caso as criaturas tivessem
ficado. Nunca daria conta de tantas, além de Nyra estar cansada, incapaz de
correr pelos campos à procura de abrigo.
Ao mesmo tempo, sabia que seria imprudente aceitar a escolta de uma
pessoa desconhecida. Sua mãe a mataria se soubesse daquilo, pisando em
seguida no seu corpo já morto caso soubesse de suas andanças pelas
florestas. Com relutância, ela assentiu.
— Aceito, se me deixar ir sozinha antes de chegar à vila principal.
O homem sorriu e Adhara sentiu o rosto esquentar quando os olhos
dele pareciam percorrerem-na. Ele sabia o motivo do pedido. Uma princesa
chegando no castelo com um homem desconhecido poderia gerar inúmeras
conversas descabidas, inclusive algumas que chegariam facilmente aos
ouvidos da mãe. Caso a rainha descobrisse, as criaturas poderiam ser o
menor dos seus problemas.
— Como quiser, princesa. — Ele fez uma pequena mesura. — Venha,
meu cavalo não está longe.
Adhara então chamou Nyra, que nem precisou de muito incentivo
para começar a seguir sua dona.
Depois de um tempo, a princesa deparou-se com um garanhão de
pelos escuros, parado próximo a uma árvore. Possuía a postura que apenas
um animal bem cuidado e descansado teria. Ela se conteve para não se
aproximar e avaliá-lo melhor. Amava cavalos e sempre que via um com
aquele porte, analisava-o com fascínio.
O desconhecido fez um som com a boca e o cavalo começou a segui-
los. Adhara observou Nyra, avaliando se a égua ficaria confortável com
uma companhia, mas pelo visto ela nem pareceu se incomodar com aquilo.
Provavelmente aguardava pelo descanso merecido após horas de cavalgada.
À medida que andavam, o sol descia no horizonte e a neve ficava
menos densa. O silêncio entre eles parecia sufocá-la, por isso Adhara
resolveu iniciar uma conversa.
— Você é sulista?
— Venho de um reino distante… mas considero o Sul um dos
melhores lugares para morar.
— Gosta daqui? — Adhara achou aquilo peculiar, já que há muito o
Sul não era visto com bons olhos. Havia piorado ainda mais depois do
Declínio. — Por quê?
Ele soltou o ar pela boca, uma nuvem de vapor saindo pelos lábios
carnudos.
— Me sinto em paz quando estou aqui. A neve me acalma, gosto do
frio… E dos desafios por aqui proporcionados. — Os olhos escuros a
fitaram com atenção. — Devo dizer que eles me atiçam.
A garganta dela ficou seca diante do comentário, mas forçou-se a
engoliu em seco para tirar aquela sensação.
— Bom, o que mais há no Sul agora são desafios, principalmente com
essas criaturas correndo por aí. — Ela estremeceu ao lembrar-se de como o
reino de seu pai já havia sido melhor.
— Sim, mas acredito que esteja se saindo muito bem. — Ela o
encarou, confusa por um momento. — Você é boa no arco.
Adhara então se perguntou há quanto tempo aquele homem a
observava, apesar de não ter coragem de questioná-lo em voz alta.
— Foi meu pai quem me ensinou. Desde pequena, gosto de atirar
flechas… — Aquilo soou mais como uma confissão do que resposta.
Ansiava pela volta daqueles tempos, quando seu pai possuía um
coração mais despreocupado e passava mais noites junto dela. Quando
desfrutavam de jantares em família, mesmo sem a necessidade de assuntos
significativos. Quando a mãe exibia um sorriso mais frequente, organizava
bailes e festejos para celebrar os marcos de anos da corte.
— Se me permite dizer, creio que está sendo imprudente em
reaproveitar as flechas. — A voz dele a tirou dos pensamentos nostálgicos.
Ela o fitou, curiosa. — Há veneno no sangue das criaturas.
Adhara abriu a boca para responder, até perceber que nunca sequer
havia levantado aquela hipótese. De qualquer forma, não ficou muito
surpresa em saber daquilo. Perguntou-se como aquele homem tinha aquela
informação, mas achou que a resposta talvez a desagradaria. De qualquer
forma, estavam se aproximando da vila e logo chegaria a hora de se
despedirem.
Adhara subiu o capuz para não ser reconhecida. Assim que o fez,
percebeu o homem sorrir ao seu lado.
— Bom, como prometido, estou deixando-a na vila principal. —
Adhara se virou na sua direção, sem saber como agradecer.
Ficou surpresa quando sentiu o toque repentino dele em sua mão.
Levou-a até os lábios e os encostou ali, num beijo um pouco demorado para
o padrão da corte. Adhara sentiu o lugar tocado ficar quente, mesmo sob a
proteção do couro de sua luva.
— Foi um prazer conhecê-la, princesa Adhara. — Os olhos escuros
pareciam engoli-la. — Espero reencontrá-la um dia.
Ela piscou algumas vezes, mas foi salva por Nyra, que relinchou,
impaciente pela volta para casa. O sorriso dele permaneceu ali, a covinha
aparente ao perceber o embaraço dela.
— Obrigada por me acompanhar…
O estranho fez uma pequena mesura e Adhara se afastou. Sentiu os
olhos sobre ela à medida que se misturava às poucas pessoas que estavam
nas ruas.
Desde o Declínio, os centros comerciais das vilas estavam cada vez
mais vazios. Adhara não sabia se aquilo era bom ou ruim. Por um lado,
seriam menos pessoas a fitando. Por outro, chamaria mais a atenção.
Aproximou-se da pequena estrada que a levaria para o castelo principal e
montou em Nyra outra vez, só então olhando para trás. Mas já não havia
sinal do jovem desconhecido.
Cutucou a égua com os calcanhares e o animal fez uma última corrida
até chegar ao destino. Foi recebida por um cavalariço, que já levou Nyra
para se alimentar e descansar. Adhara agradeceu e em seguida entrou pela
porta velha de madeira que levava até o salão principal, sem fazer alarde.
Acelerou o passo, mas logo se arrependeu assim que se deparou com a mãe,
parada em frente à lareira que ficava próxima às escadas.
Liuva a olhou com atenção, a expressão passando de irritada a
preocupada em pouco tempo. Adhara estava consciente da situação que
suas roupas se encontravam, a sujeira na barra do manto e a provável
palidez devido ao frio da floresta.
— Onde estava? — A mãe parecia disposta a interrogá-la.
— Nos estábulos — mentiu, sem esperar que a mãe acreditasse.
— Adhara… — Liuva suspirou. — Sabe que fico preocupada.
Caminhou até a mãe e lhe beijou o rosto quente.
— Não se preocupe, mãe. Estou em casa. — Liuva a encarou, como
se procurasse por algum machucado, ou respostas verdadeiras nos olhos
verdes tão parecidos com os do marido. — Agora preciso descansar.
Com relutância, Liuva assentiu, afastando-se.
— Não se atrase para o jantar.
A princesa correu agilmente escada acima, quase desabando no chão
assim que se viu sozinha. Nem tinha notado o quanto exausta estava até que
o senso de perigo se dissipou, deixando o corpo entorpecido e o estômago
faminto.
Embora nunca tenha sido cercada pelas criaturas como daquela vez,
havia algo que sempre a inquietava: elas pareciam farejá-la e persegui-la, de
maneira distinta, como se soubessem quem era. Tudo sempre acabava com
Adhara matando algumas delas e se afastando antes que o perigo
aumentasse.
Porém, daquela vez, algo diferente havia ocorrido.
Estremeceu e olhou para aljava, lembrando-se das palavras do
estranho. Se me permite dizer, creio que está sendo imprudente em
reaproveitar as flechas. Há veneno no sangue das criaturas. Adhara não
sabia se aquele homem estava falando a verdade, mas pegou a flecha que
havia retirado do corpo morto e a descartou no fogo da lareira, por
precaução.
A madeira banhada pelo sangue escuro chiou e um cheiro horrível
chegou ao seu nariz. Observou a flecha queimar, levando o fedor e a
maldade daqueles bichos consigo.
Só depois que se lembrou de algo importante: ela não havia sequer
perguntado o nome daquele homem.
CAPÍTULO 4

Merik deveria ser amaldiçoado.


Após a reunião dos Nobilitatis, ele afirmou desconhecer o paradeiro
do homem que Domenico e as filhas de Atman buscavam. No entanto,
naquele exato instante, Zephyr estava sentado na poltrona preferida de
Arsene, encarando-o com intimidade. Esperando uma resposta que o
Sombrio jamais poderia fornecer.
— Sabe que não posso fazer isso. — Merik mais uma vez foi enfático
com suas palavras.
Zephyr respirou fundo e recostou-se na larga poltrona, os olhos
escuros vagueando pelas chamas da lareira, mergulhado nos próprios
pensamentos. Merik continuava o observando, em silêncio.
Aquele era um Elemental caído, eternizado no corpo de um jovem. O
Sombrio nunca havia entendido por que ele tinha escolhido aquele corpo.
Sabia, contudo, que humanos superestimam a beleza, que ela é capaz de
abrir muitas portas no mundo corpóreo. Com isso, Zephyr aproveitou-se
disso para destruir muitas almas antes dos Primeiros Anos.
— Sabe que terei a alma dela, Merik. — O caído voltou a encará-lo.
— Eu sempre consigo o que desejo.
— Temo que será sem minha ajuda, então. Os Nobilitatis querem
saber por onde você anda, enquanto as filhas de Atman aguardam respostas
das ancestrais, afoitas por pistas. — Um sorriso cruel surgiu no rosto de
Zephyr e Merik quase acompanhou o gesto. — Onde você se enfiou no
mundo corpóreo que nem mesmo os Elementais conseguem encontrá-lo?
Zephyr voltou a ficar sério. Passou o dedo indicador pelo lábio
superior, como se concentrasse na busca daquela resposta.
— Não sinto a presença dos meus irmãos há séculos — confessou,
mudando de assunto. — Nem mesmo agora, que caminho livremente…
O Sombrio achou aquilo estranho. Qual seria o motivo para que os
demais Elementais permanecessem mudos e recolhidos, enquanto o irmão
mais letal estava solto no mundo corpóreo, à caça de uma alma única?
Merik estacou, de repente. Demorou a perceber que não estavam mais
sozinhos.
Normalmente, sentia a energia de Alys sempre que ela se
movimentava dentro da mansão, mas daquela vez só a notou quando ouviu
as taças de cristal espatifarem no chão. O Sombrio olhou para a caminhante
com certo receio, ao notar no semblante dela a reação esperada.
— O quê… O que ele está fazendo aqui? — A voz dela era um misto
de surpresa e raiva.
O sorriso torto de Zephyr voltou ao rosto. Levantou-se para
cumprimentá-la, mas Alys foi mais rápida, o corpo pequeno empurrando-o
sem delicadeza.
— Saia daqui! Não é bem-vindo, seu monstro.
O Elemental pareceu se divertir com aquela reação, enquanto Merik
segurava Alys antes que ela tentasse agredi-lo novamente. Sabia que a
garota o reconheceria, já que passou parte da vida mortal em Atman, onde
Zephyr era uma figura conhecida por todas as ancestrais e almas que ali
habitavam. Mesmo que nunca o tivesse visto, sua caminhante parecia ter
aprimorado o dom de sentir a energia das pessoas. No caso do caído, a
crueldade transbordava.
— Não sabia que mantinha um animal de estimação ao seu dispor,
Merik. — Alys esperneou diante do comentário, enquanto o Sombrio
apertou os braços em volta dela.
— Alys, pare com isso! — Merik a prendeu fortemente, até a garota
perceber que seria inútil qualquer tentativa de luta.
Ela foi se acalmando aos poucos, os seios subindo e descendo com
rapidez dentro do corpete. Por um momento, Merik se excitou ao senti-los
entre os braços. Percebeu que teria que despi-la assim que Zephyr saísse por
aquela porta. Olhou para o Elemental, que observava a interação entre os
dois, como se fosse capaz de compreender tudo.
— Interessante… Foi por causa dela que você rompeu os véus dos
mundos, certo? Um amor proibido, um sacrifício…
Merik não fazia ideia de como Zephyr sentiu a barreira entre os
mundos ruir, se podia captar a energia que havia ficado no mundo corpóreo.
Como um Elemental, a percepção dele era mais afiada do que qualquer ser
sobrenatural dali…
— E o que você sabe sobre amor? — Era nítido o desgosto carregado
nas palavras de Alys. — Mande-o embora — pediu para Merik.
— Sim… me mande embora. — O caído provocou-o, como se
testasse a devoção do Sombrio por aquela garota.
— Vá embora. — Ele ordenou sem pensar duas vezes. — Está
deixando Alys nervosa… — Os olhos escureceram e parte do poder do
submundo escapou quando voltou a falar. — E eu não gosto do modo como
fala da minha mulher.
Se Zephyr sentiu-se amedrontado, sequer teve tempo de demonstrar,
já que Merik não esperou qualquer reação daquela criatura antes de
começar a ignorá-lo. No fundo, sabia que nada poderia detê-lo. Na verdade,
perguntava-se por que o Elemental ainda não havia capturado a alma da
princesa do Sul. O que lhe impedia de concretizar o seu desejo?
— Eu terei o que quero, sabe disso. — O visitante olhou uma última
vez para Alys, como se tentasse provocá-la.
— A princesa é inalcançável — o Sombrio retrucou.
Não para ele, completou em pensamento. O poder de Zephyr, mesmo
nublado como estava naquele instante, nunca deixaria de ser uma ameaça.
O Elemental respirou fundo e deu meia volta, as botas esmigalhando parte
dos cacos que Alys havia derrubado. Saiu pela porta da sala, tão
silenciosamente quanto chegou.
Merik esperou o barulho das portas batendo e só então olhou para a
janela. O outro era um ponto escuro em meio a tanta neve, desaparecendo
depois de um tempo.
Assim que a energia mudou, Alys pareceu relaxar. Virou-se então
para Merik. O Sombrio sabia o que vinha a seguir.
— Você precisa reportar isso aos Nobilitatis.
Ele ignorou aquele pedido e saiu da sala. Começou a subir as escadas
e percebeu que Alys o seguia, ignorando os cacos de cristal que haviam
ficado pelo chão.
— Sabe que não me meto nesse tipo de problema — ele logo avisou.
— As filhas de Atman querem saber onde Zephyr está, mas ficam caladas
quanto às ancestrais. Se as bruxas que estão em Atman não conseguem
sequer farejar a energia dele, ficará a cargo de quem fazê-lo?
Merik entrou no quarto e rumou para a janela, o lugar onde gostava
de ficar quando precisava estar a sós com os próprios pensamentos. Sentiu a
presença de Alys ainda ao seu lado, que logo depois o tocou com
delicadeza. O Sombrio fechou os olhos, como se fosse um animal sendo
acariciado.
— Sabe que não pode destinar todo seu poder para me proteger… —
Com aquelas palavras, Alys alcançou o ponto fraco de Merik. Como ela
parecia lê-lo naqueles momentos… — O mundo corpóreo mudou e mesmo
que ainda seja o Sombrio, os Altos se movem para dominar tudo…
Merik sabia que Alys tinha razão. Naquele aspecto, sempre teria. Mas
a necessidade de protegê-la era mais forte que ele. Zephyr era sua última
preocupação, pois sentia a presença de Igrik, farejando a caminhante pelo
mundo corpóreo. A ideia de perdê-la o enlouquecia.
— Contarei o que houve aqui para Domenico… De qualquer forma,
ele não deu maiores informações de onde está. Desconfio que se esconda no
Sul, onde pode se aproximar da princesa Adhara… — Os olhos escuros
encararam os claros da companheira. — Domenico deve repassar as
informações para as bruxas, já que me recuso a dizer algo mais.
Alys respirou fundo e assentiu. Sabia que só conseguiria aquilo dele.
Merik deslizou o dedo pela boca dela e desceu para o pescoço. O
quarto começou a ficar escuro e os lábios de Alys se entreabriram para
soltar um gemido.
— Merik…
— Você não pode me pedir para ajudar as bruxas e sair disso
impune… — Ele a pegou no colo, os olhos nublando-se de desejo. —
Prometo ser bem lento.
Fazia muito tempo que Lymena não visitava o vilarejo das oráculos.
Desde que Nyana despertou o próprio poder e começou a ser treinada por
Srala, ela decidiu se afastar e aguardar pelas informações. Afinal, as
ancestrais faziam contato quando queriam. Não cabia, portanto, à Coroa
Vermelha questionar.
Foi com uma xícara de chá nas mãos, buscando respostas na arte da
tasseomancia, que Lymena recebeu notícias de Atman. Nyana entrou no
pequeno casebre de Srala, o rosto um pouco avermelhado e os cabelos
bagunçados pelo vento. Sua presença ali surpreendeu a bruxa, já que a outra
não passava mais as noites naquele vilarejo, preferindo ficar na pequena
cabana ao lado do companheiro, Videric.
Nyana se aproximou e tocou a mão da bruxa com respeito.
— Minha rainha…
Gesticulou para que a oráculo se sentasse. Ela obedeceu, observando
com cuidado a xícara que Lymena segurava nas mãos.
— Conseguiu algo nas folhas?
Ela negou com um gesto. Era uma das melhores em tasseomancia,
mas nem mesmo seu dom poderia arrancar algo das folhas, caso estas não
quisessem falar. Lembrou-se de quando aquele poder a alertou da
aproximação de Arsene, da Lua de Sangue… Aquilo parecia ter acontecido
há tanto tempo…
— As ancestrais falaram. — Aquela informação, dita por Nyana com
tanta naturalidade, pareceu acordá-la. — Zephyr fez o primeiro contato com
a princesa Adhara.
A esperança de Lymena foi diminuída diante daquela notícia.
Colocou a peça que segurava na mesa de madeira escura, ao lado da
poltrona. Em um gesto raro de cansaço, passou a mão pelo rosto.
— Não sei se fico aliviada por finalmente sabermos onde ele está ou
se me preocupo ao descobrir que temos poucas luas para entender o seu
plano. — Olhou para Srala e Krida, que até então estavam caladas,
bebericando o chá servido anteriormente.
A primeira nunca foi de muitas palavras, mas à medida que Nyana
descobria o próprio poder, ela recuava para dar espaço à nova geração.
Contudo, a sabedoria que Srala tinha ainda era inalcançável para a mais
jovem, que sempre esperava que a mestra desse alguma opinião.
— Os anos das filhas de Atman estão findando… O destino do
mundo corpóreo está nas mãos da humana, da princesa do Sul.
Um silêncio incômodo tomou o pequeno casebre. Krida respirou
fundo, tão imersa em pensamentos que não conseguia opinar em voz alta. Já
Lymena sentiu um aperto no peito, algo que que há muito não acontecia.
— Me recuso a acreditar que nada poderemos fazer para ajudar a
princesa Adhara.
— Seja paciente, Lymena… — Srala alertou. — Agora que tivemos
notícias das ancestrais… Zephyr até então estava recluso.
— Não conseguirei ver o mundo coberto em escuridão sem fazer
nada. — Os olhos da rainha denotavam ansiedade, mas os traços
suavizaram quando sua mão foi coberta pela da anciã.
— Quando Gwendolyn assumiu a Coroa Vermelha, passou por uma
situação semelhante. Devo dizer que antecipar os eventos ainda não
acontecidos seja o pior no momento.
Lymena olhou para Srala e percebeu como naquele instante deveria
parecer a garota de décadas atrás, aquela que nem sonhava em herdar a
Coroa Vermelha. Fitou a oráculo-anciã, mas não viu julgamento em seus
olhos. Sabia que nunca veria.
— O que Gwen fez para aguentar essa inquietação? Meu peito dói e
tenho pesadelos quase todas as noites ao tentar alcançar as respostas.
— Por que não pergunta para ela? — Srala sorriu de forma doce, mas
Lymena percebeu naquela pergunta um desafio.
Precisava admitir: desde que fez a cerimônia para deter todo o poder
da Coroa Vermelha, nunca havia pedido a ajuda de Gwendolyn. Havia visto
a bruxa por pouco tempo, mas desde que o poder de Atman se entranhou
em suas veias, percebeu que temia reencontrá-la. De certa forma, a sua
antecessora era um exemplo de rainha para ela, e temia perder a
credibilidade caso demonstrasse fraqueza e confusão nas suas decisões.
Com relutância, assentiu. O sorriso de Srala lhe deu a certeza de que a
oráculo sabia como aquilo a desafiava.
Adhara corria os olhos pelas páginas, mas a sua atenção estava
centrada na conversa dos pais. Escutava o som da pena riscando o
pergaminho, enquanto o rei escrevia as cartas que seriam enviadas quando o
sol raiasse.
Antes, os emissários eram enviados quando os campos de Dhárg
estavam banhados pela noite, mas nos últimos anos sair pela escuridão era
brincar com a própria vida. Por mais que as criaturas atacassem a todo
momento, era sob a sombra da lua que ficavam mais ousadas.
Havia perto dele uma pequena chama, onde derretia a cera para fazer
o selo real, além de uma taça de vinho. Heth o bebericava de vez em
quando, as rugas na testa mostrando como estava concentrado à medida que
escrevia.
Perto da princesa, a rainha descansava em uma poltrona de veludo, as
pernas para cima e os olhos observando seu marido. Liuva era uma das
mulheres mais lindas do reino, mas a princesa já começara a notar as
primeiras linhas de expressão no rosto dela. Perguntou se elas talvez não
estivessem ali se os últimos anos fossem mais leves.
— Acredito que será necessário pedir a ajuda dos reinos que fazem
fronteira com Fhár. — Os olhos verdes de Heth buscaram os da rainha. —
Sabe se Dagomer estaria disposto a uma negociação?
Liuva ficou em silêncio por algum tempo.
— Meu pai está cada dia mais fechado. Se pudesse, levantaria uma
muralha nas fronteiras do Norte para impedir o mal de chegar àquelas
terras. — Respirou fundo. — Posso tentar sondar com minha mãe essa
possibilidade, mas mandar uma carta é perda de tempo.
Dagomer não fazia mais viagens para o Sul, apesar da filha e neta
estarem daquele lado do mapa. Além disso, proibia Emelia de fazer o
mesmo. Adhara sentia falta dos avós, bem como do Norte, mesmo que
tivesse visitado pouco o reino antes do Declínio.
Na sua memória, era um dos lugares mais belos que conheceu, com
campos verdes onde flores das mais diversas cores nasciam, florestas de
copas altas e vilarejos que mantinham o plantio de grão como forma de
sobreviver. Adhara não percebeu, mas uma brisa entrou pela janela e virou
algumas páginas do livro que ela fingia ler, estava atenta demais à conversa
dos pais e já não disfarçava o interesse.
Ao ouvir a esposa, o rei concordou. Sabia que negociações por cartas
poderiam durar anos, um tempo que ele não tinha.
— Apesar de conseguirmos defender as vilas principais, os pequenos
vilarejos estão sucumbindo cedo. — A preocupação de Heth para com o
povo era evidente. — A não ser…
Ele parou de falar, concentrado por um momento na carta que estava
escrevendo. Liuva franziu o cenho e esperou. Por um segundo, olhou
rapidamente para a filha, que fingiu voltar a ler o livro.
— Ah não ser… — A rainha repetiu a frase, na esperança de que o
marido falasse.
Heth percebeu que havia pensado alto. Sabia então que a esposa lhe
atormentaria enquanto não colocasse o restante da ideia em voz alta.
Dobrou o pergaminho e jogou a cera escura sobre o papel, selando-a em
seguida. Depois, juntou as mãos em cima da mesa.
— Há um nobre que vive mais ao sul do mapa. Ainda não averiguei
suas terras e descendência, mas creio que herdou o castelo de uma linhagem
afastada e sem herdeiros. — Liuva estava atenta àquela informação, ainda
tentando compreender onde aquilo se relacionava ao Declínio. — A vilas
que está comandando permanecem seguras e sem episódios de ataques.
Aquilo sim pareceu chamar a atenção da rainha.
— Não seria o caso de mandarmos um representante para averiguar?
— Confesso que já mandei. — Heth corou um pouco, já que não
gostava de omitir seus feitos à esposa. Adhara conteve um sorriso ao vê-lo
sem graça daquele jeito. — Eu nunca vi nada parecido, nem mesmo no
reinado dos meus antepassados, que sofreram algo semelhante. Não há
registros de uma parte do mapa limpa quando se trata dessa carnificina.
Pelo menos até agora…
Um calafrio tomou o corpo de Adhara. Sabia que os reinos haviam
passado por semelhante escuridão séculos atrás. Leu incontáveis vezes os
livros de registro da família na busca de respostas. Esperava que algo do
passado pudesse trazer luz para o futuro do reino.
Nos documentos, não havia relatos das criaturas de forma clara, mas
as histórias eram sombrias iguais às vividas naquele momento: fome e
desespero, doenças da mente, sangue derramado e corpos sendo devorados.
Contudo, os reinos antigamente não conseguiram descobrir quem devorava
tantos humanos. Pelas pistas encontradas, era algo diferente daquilo que o
pai estava enfrentando. Mas a pergunta a ecoar tinha a mesma busca: afinal
de contas, de onde elas vinham?
— Há avanços nos estudos destes monstros? — Liuva questionou o
marido.
— Os curandeiros não conseguiram boas amostras. Elas se tornam
irracionais quando nos aproximamos, tornando-se quase impossível de os
cercarmos sem riscos.
Diante daquele comentário, a garota fechou o livro com brusquidão
sem mais disfarçar e olhou irritada para o pai.
— Vocês estão me dizendo que há daquelas criaturas aqui, em nosso
castelo?
— Não se preocupe, filha. Elas estão nas masmorras. — Heth
respondeu a princesa com toda a calma, o que só a deixou ainda mais
atônita.
— Eu pedi para acabar com aquele lugar!
Adhara levantou-se do sofá e jogou o livro de qualquer maneira na
mesa. Odiava aquele espaço escavado no fundo do castelo, porque sabia das
histórias vindas de lá. Os inimigos do Sul sendo torturados de forma irreal,
até mesmo mulheres… Adhara não acreditava que violência e sangue eram
as respostas para tudo, algo que contrariava o pensamento arcaico de muitos
nobres que viviam por ali.
Ela tinha apenas quinze anos quando havia descido até lá pela
primeira vez. Não por vontade própria, mas movida pela curiosidade ao
descobrir o corredor desconhecido. Acabou parando naquele lugar
horrendo, com jaulas imundas de fezes e urina, instrumentos pendurados
com sangue seco. O olhar de desespero e fome dos presos a perseguiria para
sempre.
Exigiu que o pai fechasse aquele lugar e tratasse os presos com mais
dignidade, mesmo os que tivessem de ficar cativos o resto da vida. Mas,
pelo visto, sua solicitação havia sido ignorada.
Heth respirou fundo ao ver a reação da filha.
— As masmorras não são mais usadas, Adhara. Mas precisamos de
barras de ferro fortes para conter as criaturas.
— Matem-nas de uma vez! Sabe o quanto é perigoso mantê-las aqui,
pai. Esses monstros podem fugir a qualquer momento. Se isso acontecer,
como vão fazer? Sair disparando flechas pelo castelo?
— Adhara, acalme-se. — Liuva pediu, mas Adhara se recusava a
ceder.
Ela olhou para o livro esquecido na mesa e o pegou, saindo da saleta,
murmurando alguma desculpa. Subiu a enorme escadaria e enfiou-se no
quarto. Assim que se viu só, jogou o volume encadernado na cama e
começou a andar, de um lado para o outro, a fim de deixar que a raiva
passasse.
Começou a entender o motivo dos jantares andarem tensos nas
últimas luas. Entendia a preocupação dos pais, mas também via o
sofrimento do povo… Manter aqueles seres dentro do castelo era
desrespeitar o medo deles, desafiar o destino. Era contrário a tudo aquilo
que o pai fazia para poupar os seus súditos.
Sentou-se na poltrona diante da lareira e observou as chamas. Uma
tristeza estranha tomou-lhe o corpo e Adhara tentou refrear aquele
sentimento. Ainda tinha esperança de que o Declínio recuasse, mas a que
preço? Até quando as pessoas sofreriam? Dhárg se reergueria em meio ao
solo banhado em sangue? Que reino ela herdaria se o mundo fosse
consumido pela escuridão?
CAPÍTULO 5

Videric e Gavin caminhavam juntos pelos corredores da Fortaleza,


sob as primeiras horas da noite. Ocasionalmente trombavam com um ou
outro vampiro que parecia ter acabado de acordar, seja para cuidar de
assuntos no mundo humano ou se alimentar.
Já os dois estavam despertos antes mesmo do sol se esconder no
horizonte, parte devido à tensão que o mundo corpóreo estava imerso
ultimamente, parte pela quantidade excessiva de notícias que recebiam do
Sul toda vez que conversavam com Domenico. A cada lua passada, o curso
do mundo parecia mudar, assim como o destino da raça vampira.
Videric correu os olhos pelas janelas fechadas, fitando o vidro
embaçado e a chuva torrencial que caía lá fora. Pensou em Nyana dentro
das Florestas Brancas e ficou mais aliviado ao saber que a companheira
estava segura, sob o poder da Coroa Vermelha.
Aquela torrente de água era algo sobrenatural. Normalmente caía
durante os verões de Fhár, nunca naquele clima, que estava frio até mesmo
para o reino do norte. A escuridão se aproximava, inclusive os humanos
sentiam aquilo, mesmo desconhecendo a real ameaça a cercá-los.
Entraram na grande sala. Domenico estava ao fundo, no lugar de
sempre. Escrevia em um pergaminho com tranquilidade, mas Videric
conhecia seu mestre o suficiente para saber que o vampiro estava longe de
ficar calmo. Pararam em frente à escrivaninha e aguardaram, já que
Domenico não gostava de ser interrompido enquanto trabalhava. Ao julgar
a quantidade de linhas já inseridas nos pergaminhos, aquela carta era
destinada a algum sangue-puro, dos clãs sulistas.
Domenico depositou a pena no tinteiro, começando a dobrar os
pergaminhos em seguida.
— Acredito que terão a oportunidade de entregar essa carta em mãos
a Velaria. — Antes que seus vampiros pudessem reclamar, ele começou a
derreter a cera. — Não pedirei que façam uma passagem longa pelo Sul,
nem quero que fiquem enfiados em um lugar onde o submundo comande.
Os olhos azuis de Domenico foram para Gavin e em seguida para
Videric, parando um pouco mais nesse último. O comandante engoliu em
seco. Era da sabedoria de todos que não gostava de afastar-se de Nyana,
mesmo com toda a proteção que lhe cercava.
O vampiro desconfiava da energia estabelecida no mundo corpóreo.
Sentia um arrepio na nuca ao pensar na possibilidade de mudança a
qualquer momento. Contudo, como um bom e fiel comandante, apenas
cruzou as mãos atrás do corpo e olhou para seu mestre com atenção.
— O que quer que façamos? — Foi a única frase que verbalizou,
deixando os questionamentos de lado.
— Preciso que fiquem no casarão que Velaria sempre disponibiliza
para o clã Vreirius. — Domenico pingou a cera no pergaminho e apertou-a
com um sinete pesado. — Quero que sondem o castelo principal.
Foi Gavin que teve a primeira reação.
— Aquele lugar virou uma fortaleza depois da quebra da fenda —
lembrou a Domenico. — Heth aumentou exponencialmente a segurança do
castelo. Adhara e Liuva são suas preocupações principais…
— Tenho contatos lá dentro que os ajudará a entrar. — Domenico não
ignorou a preocupação do braço-direito, fitando seu semblante preocupado.
— Meu foco não é a princesa, nem mesmo a rainha.
— E qual seria? — A voz grossa de Videric interrompeu a pergunta
de Gavin.
— Recebi uma carta de Velaria, dizendo que possivelmente o rei Heth
está mantendo demônios aprisionados… para estudo. — A última frase
soou apreensiva.
Um silêncio estranho flutuou entre os três, mas Videric não conseguiu
controlar os próprios pensamentos.
— Se humanos querem estudar os demônios, o mundo sobrenatural se
beneficiaria disso, não? Talvez as criaturas tenham alguma fraqueza
desconhecida a nós…
Domenico largou a carta no tampo da escrivaninha e recostou-se na
poltrona de veludo escuro. Juntou as mãos em frente ao rosto, num gesto
característico de quando queria se dispersar da conversa e entrar nos
próprios pensamentos. Depois de refletir, os expôs em voz alta.
— Se eles conseguissem lidar com a informação de que há algo fora
do controle deles acontecendo, creio que uma intervenção seria
desnecessária. — Ao ver que os vampiros não entenderam o raciocínio,
explicou: — Já imaginaram o que aconteceria se descobrissem que a
criatura que tanto estudam nunca pertenceu ao mundo humano?
Videric tentou achar um lado positivo, mas não o encontrou. Aqueles
seres tendiam a ter reações tolas quando algo saía do controle. Portanto, não
queria que aquilo trouxesse consequências para o mundo sobrenatural.
Olhou para Gavin e logo depois para seu mestre, assentindo.
— Vocês partem dentro de dez dias.

Liuva parou de ler o livro, deixando que um sorriso contido lhe


percorresse o rosto.
— Pare de me olhar assim. — Sentia os olhos de Heth sobre si. Sabia
que o rei estava imerso em pensamentos, mesmo fitando com tanta
intensidade para sua mulher.
A rainha desviou a atenção da história e encarou o marido.
— Em que está pensando?
Heth estava calado. Era em momentos como aquele, após os jantares,
que o rei se permitia receber carinho de Liuva e mostrar suas inseguranças.
Mesmo que ele fizesse de tudo para não demonstrar à rainha a
vulnerabilidade sentida, Liuva conhecia ele o suficiente para percebê-la, sob
as diversas camadas de sentimentos que o rei deixava vir à superfície.
— Recebi uma resposta do nobre que anda intrigando essa corte. —
Liuva lembrou-se da conversa que teve com Heth sobre a terra mais ao sul
que ainda não sucumbiu ao mal. — Liuva, devemos avaliar a possibilidade
de Adhara passar um período por lá.
A rainha ficou sem saber o que responder. O rosto ficou pálido e abriu
a boca para retrucar, mas sumiram-lhe as palavras. Heth a olhava
apreensivo, como se fosse uma criança que havia exposto uma ideia muito
errada.
Nunca foi segredo entre os dois que, mesmo que o castelo principal
fosse uma referência em armamento e segurança, chegaria o dia em que as
muralhas tão bem fortificadas poderiam ceder à força e sede de sangue das
criaturas. O castelo permanecia seguro porque homens o faziam assim, mas
nem mesmo o rei conseguiria mantê-los ali por muito tempo. Os reinos
menores estavam caindo e precisariam de ajuda em breve.
Sendo assim, em algum momento, Adhara não teria a segurança que
desejavam para ela.
— Sabe que não abrirei mão da nossa filha.
Heth respirou fundo. A esposa nunca havia escondido isso dele.
Adhara era seu bem mais precioso e tê-la longe de si era inconcebível.
— O castelo dele é longe do círculo de ataques, Liuva. Sabe que não
poderei conter a horda de monstros por tanto tempo… não sem
descobrirmos uma fraqueza. — Heth expôs aquelas inseguranças em voz
alta pela primeira vez. — A cada lua que passa elas se aproximam mais das
montanhas.
A rainha sabia que Heth estava certo, mas não conseguia imaginar
uma noite tranquila sem saber que Adhara estava em segurança. Para isso,
precisava tê-la por perto e não enfiada no castelo de um nobre que sequer
conhecia. Além da escuridão que o reino do Sul estava mergulhado, assim
que a filha nasceu, Liuva havia prometido a si mesma que nunca lhe
imporia nada. Portanto, aquela escolha nem lhe pertencia.
— Quais são os objetivos desse…
— O nome dele é Zephyr. — Heth repreendeu Liuva.
A rainha deu de ombros, como se fosse novamente uma garota
teimosa.
— Não importa o nome dele… O que deseja é nossa filha. —
Encarou-o com atenção. — Sabe que não a entregarei para qualquer um,
certo?
Heth desistiu de argumentar. Levantou-se da poltrona onde estava
sentado e acomodou-se ao lado da companheira, abraçando-a. Liuva pousou
a cabeça no ombro do rei e respirou fundo. Sabia o que ele estava fazendo:
amolecendo-a. Aquele momento de carinho entre os dois era algo cada vez
mais raro.
— Casamentos políticos geram amor — disse a Liuva, que sorriu,
lembrando-se de quando trocaram os cálices. Apaixonou-se pelo rei assim
que pousou os olhos sobre ele.
O sorriso morreu de repente diante da realidade que parecia cercá-los.
Enviar Adhara para longe ia contra todos os princípios dela, algo que jurou
nunca fazer. Mas Liuva sabia que quando fez a promessa o mundo era
diferente, o sol brilhava mesmo que timidamente nas manhãs do Sul. Neve
era sinônimo de brincadeiras no jardim, bailes repletos de vinho e danças
num salão quente. As noites eram recheadas de conversas engraçadas em
frente à lareira e, no final de cada dia, Heth passava horas acariciando-a, até
Liuva estremecer de prazer. Muito havia mudado, inclusive ela mesma.
— Conversarei com Adhara.

Lymena estava parada em frente ao vidro que protegia a Coroa


Vermelha. Os galhos vermelhos mantinham-se vivos depois de tantos
séculos e, vez ou outra, pequenas flores brancas despontavam deles, apesar
das pétalas logo caírem.
O poder da coroa era forte até mesmo para as pequenas flores de
pésias que ousavam nascer.
A bruxa sentiu a presença de Arsene antes mesmo dele se aproximar.
A energia era tão estranha e única, Atman e o submundo em apenas um ser,
além do aroma… O cheiro de canela a enlouquecia, mesmo depois de tantos
anos. Marcante como o dono.
Ele a tocou com leveza nos ombros. Aquele gesto quase a fez ruir.
Lymena fechou os olhos e respirou fundo antes de declarar.
— Tentarei conversar com Gwendolyn… para buscar a sabedoria
dela.
A mão de Arsene fez uma contida carícia, dando a entender que a
ouvia. O vampiro a conhecia como ninguém mais no mundo corpóreo.
Lymena desconfiava de que nem mesmo em Atman sabiam tanto sobre ela.
O vampiro havia captado sua insegurança e nunca a usaria contra ela.
A impotência das bruxas sobre o que se passava no mundo corpóreo estava
prestes a enlouquecê-la e, por isso, ela estudava todos os dias a
possibilidade de entrar na guerra travada entre o submundo e o mundo
humano.
— Sabe que o Norte não será tomado enquanto Merik deter o poder
desse lado do mapa. — Arsene disse aquilo em voz baixa e Lymena
estremeceu. — As Florestas Brancas estão protegidas tanto pela Coroa
Vermelha quanto pelo Sombrio.
Ela desviou a atenção dos galhos vermelhos e se virou. Arsene
parecia aguardar pela resposta que ela daria.
— Sabe como é ruim isso? — A bruxa sussurrou, como se não
quisesse colocar os pensamentos em voz alta. — Estar à mercê da boa
vontade de um demônio?
— Merik faz tudo isso por amor, Lymena. — Tentou apaziguá-la. —
Mudou muito desde que assumiu seu sentimento por Alys.
Aquela notícia não pareceu surtir efeito algum nela. A rainha bruxa
acariciou as mãos dele, mas logo depois as afastou, indo em direção à
janela. As árvores das Florestas Brancas estavam quietas, como se
pressentissem o perigo que se aproximava. Lymena se perguntou quanto
tempo ainda tinham.
— Passarei a noite na floresta… sozinha.
Ela sentiu o peso daquele pedido, mas soube que o companheiro
entenderia. Precisava ficar só, conversar com Atman e, sobretudo, pedir a
orientação das ancestrais. Não seriam as oráculos que dariam aquilo a ela.
Lymena sabia a quem pedir.
— Estarei na Fortaleza quando voltar — Foi a resposta que Arsene
lhe deu.
Ela abaixou o rosto e fitou as próprias mãos, percebendo depois de
um tempo que tremiam.
— Lymena? — A bruxa o olhou. Arsene estava na porta, a fim de ir
para o castelo dos vampiros. — Não duvide do poder e da força que
carrega. — Com relutância, ela assentiu, sentindo-se grata por ter Arsene
em sua vida. — Eu te amo.
Ele saiu, antes que respondesse, deixando-a finalmente só.
Zephyr desceu do cavalo e fez um sinal afirmativo para o cavalariço.
O animal foi levado para longe, onde teria abrigo e feno fresco. Saiu do
pátio e enquanto subia as escadas com facilidade, retirava as luvas de couro
grosso. Jogou-as de lado assim que a porta do castelo fechou atrás de si.
Não era de cumprimentar muito os serviçais, já que sempre havia sido
calado e taciturno durante a primeira era no mundo corpóreo. Não tinha o
porquê mudar aquilo.
Caminhou até a saleta ao fundo da sala de mapas, um local silencioso
o suficiente para que pudesse pensar. Humanos, na maioria das vezes,
pareciam grandes abelhas, zumbindo quando era desnecessário. Até mesmo
quando estavam calados faziam barulho demais.
Sentou-se no sofá próximo a lareira e passou a mão no rosto. A pele
estava fria, o inverno parecia ter engolido aquela região. Com a fenda
aberta e os demônios caminhando livres pelo mundo corpóreo, aquilo não
mudaria tão cedo.
Mas o submundo nem era importante, por ora. Sua atenção estava
voltada para a princesa.
Desde que desceu de Atman e se enfiou entre as florestas, Zephyr
calou os próprios poderes para não chamar a atenção dos irmãos, que
estavam quietos em Asteria até o presente momento. Não havia sentido a
presença de nenhum deles, nem mesmo um resquício de energia. Mas, ao
contrário da maioria, ele não era tão crédulo naquelas entidades, como as
filhas de Atman. Seus irmãos eram egoístas a ponto de deixar as raças
lidarem com o próprio destino sombrio.
Retirou as botas e colocou os pés para cima do sofá, deixando que as
almofadas de lã e o aroma da madeira queimada o relaxassem. Quando
decidiu tomar aquele castelo, Zephyr não fazia ideia de que seria tão fácil.
Séculos haviam se passado desde que pisou no mundo corpóreo pela
primeira vez, mas a natureza humana continuava obtusa.
Um pouco de poder, manipulação e sangue o fizeram ser o dono
daquelas paragens. As pessoas nem faziam ideia de que estavam sob
influência do seu poder, mesmo que minimamente. Isso fez com que
passasse a ser o senhor deles, e assim permaneceria até que conseguisse
cumprir seus objetivos. Não escolheu aquele castelo por um mero capricho.
Ela estava tão perto agora…
Zephyr se recusava admitir, mas observou através das notícias
humanas o crescimento da princesa. Parte porque queria entender a
dinâmica do Sul, parte porque ela o fascinava. Como uma princesa
conseguia ter a aprovação de tantas pessoas?
No início, pensou que era apenas uma tola fascinação pela garota que
crescia cada dia mais bela. Depois, ao perceber que Adhara tinha visitado
cada maldito vilarejo daquele imenso reino, entendeu a situação. A garota
estava determinada a conhecer as condições de cada um, que pioravam à
medida que os demônios se alimentavam. Ela desejava salvá-los.
O Elemental planejava observá-la mais de perto. Contudo, suas terras
acabaram por chamar a atenção do rei Heth. Aquelas que nunca foram
invadidas pelas criaturas, como os humanos as chamavam. Zephyr levava
um crédito até mesmo simplório com aquilo. Achavam que ele era bom em
defender um perímetro grande de qualquer matança, mas a verdade era que
os demônios sentiam o perigo ali e nem ousavam se aproximar.
Ele achou que, agora que tinha a atenção do rei, era o momento certo
para se movimentar no tabuleiro. Zephyr nunca havia posto os olhos sobre a
princesa Adhara, até se aproximar naquela tarde para salvá-la de um
possível ataque…
Precisava admitir, a garota o surpreendeu. Cavalgava como um
cavaleiro e usava o arco feito um exímio soldado. Mesmo que estivesse
cercada de demônios, o rosto mostrava ferocidade, fazendo Zephyr ignorar
o incômodo dentro da calça quando a viu daquela maneira. Adhara, a
princesa doce e amada pelos sulistas, parecia uma força da natureza quando
matava.
E era igual a Aelua, sua alma.
Zephyr conhecia Atman como nenhum Elemental havia antes, mesmo
que aquele mundo fosse criado pelos seus irmãos. Sabia que as almas
pertencentes a humanos e bruxas nunca carregavam as mesmas
características físicas do seu par no mundo corpóreo, mas com Aelua e
Adhara aquilo era diferente, já que as duas pareciam espelhos uma da outra.
A verdade era que tudo foi ofuscado de sua mente quando se
aproximou da princesa e seu aroma o atingiu. Zephyr sentiu a boca salivar e
imagens vívidas de um sonho que teve durante as últimas luas em Atman
lhe invadiram a mente. Coxas grossas o apertavam enquanto um corpo
esguio, de cintura fina o cavalgava. Lembrava-se dos seios fartos
balançando e o cabelo longo e ondulado raspando entre suas pernas. E o
aroma…
Aquele cheiro havia sumido de sua mente à medida que passava os
anos no mundo corpóreo. O tempo era ingrato ali, mas a presença da garota
fez com que a lembrança reavivasse, deixando-o inquieto. O sonho parecia
quase real e, para o seu desespero, o que aconteceu naquele sonho também
desvanecia: a forma com que a mulher sobre ele o tocava com ternura.
CAPÍTULO 6

Videric nunca foi um apreciador do Sul. Precisou cruzar aquela região


algumas vezes a mando de Domenico e em nenhuma delas sua estadia foi
agradável. Odiava a neve, o frio e a falta de educação dos sulistas. Para ele,
aquele lugar só o ganhava pelo paladar, já que o vinho da região era
incomparável. Infelizmente, daquela vez não estava ali para beber, mas sim
servir ao seu mestre.
Os cavalos pararam e ele notou Gavin respirar fundo. Seus olhos
correram pelo campo aberto enquanto engolia em seco. Não era sempre que
ficava impressionado com algo, mas o que viu ali fez um arrepio
desconfortável lhe percorrer o corpo.
O cheiro de sangue seco pairava no ar, misturando-se ao de morte.
Conseguia ver resquícios de corpos humanos sendo devorados por corvos
famintos, bem como restos de alguns animais na mesma situação. As aves
pareciam ignorar os dois ali, parados, como se a promessa de se saciar de
carne podre fosse preferível a fugir. Uma densa neblina parecia disposta a
ocultar aquele cenário, como se o Sul estivesse envergonhado da escuridão
que o havia devorado.
Videric engoliu em seco.
— Mesmo que as notícias cheguem cada vez mais sombrias ao Norte,
acredito que esse cenário está longe de ser o que Domenico imagina. —
Gavin pontuou com sabedoria. — Ele não vai gostar de testemunhar isso
que estamos vendo.
— Acredito que ele sequer terá a oportunidade de fazê-lo. — Gavin
olhou para o comandante, sem entender o que estava dizendo. — Até que a
raça vampira tome alguma decisão e intervenha, tudo isso poderá
desaparecer.
— Não é apenas a raça vampira que precisa se movimentar. — Os
olhos de Gavin fixaram-se nas árvores que os separavam do castelo de
Heth. — Isso aqui está quase perdido…
— Taran cumpriu seu papel de idiota ao ignorar os avisos de
Domenico. — Videric cuspiu as palavras enquanto incitava o cavalo a
cortar o campo, mesmo que o animal parecesse arredio.
Gavin concordou. Juntos, ficaram observando de perto e em silêncio
o estrago feito pelos demônios menores. O comandante não gostava de
Taran por motivos pessoais, tanto que nem hesitou em matar um dos
oficiais dele para salvar Nyana. Mesmo que Domenico tivesse resolvido
aquela pendência, Videric duvidava da utilidade de todos os membros do
clã Garcas. Eles foram os primeiros a serem atacados, como o mestre dos
vampiros tinha previsto, e o paradeiro de Taran ainda era uma incógnita.
Entraram sem muita dificuldade no vilarejo próximo ao castelo
principal. Videric correu os olhos pelo local, agradecendo a escuridão por
aquele momento. Seu rosto não era dos mais amigáveis, já que havia
decidido expor o olho cego. Apenas puxou o capuz, para que os seus traços
não fossem facilmente vistos. Gavin fez o mesmo, mas isso não evitou o
olhar de desconfiança das poucas pessoas que ainda tinham coragem de
estar fora de casa à noite.
O medo era quase palpável naqueles humanos e Videric não os
julgava. Mesmo que o vilarejo fosse próximo ao castelo e ainda estivesse
sob o domínio de Heth, bastava alguns dias de viagem para que soubessem
como estavam próximos do perigo.
Deixaram os cavalos em um pequeno estábulo, depois de depositarem
muitas moedas nas mãos sujas e ossudas do responsável pelo lugar. O velho
pareceu grato pelo pagamento adiantado e prometeu cuidar bem dos
animais. Só depois que estes foram levados para dentro é que os dois
vampiros começaram a atravessar o vilarejo, a fim de seguirem pela estrada
principal.
Videric soltou um suspiro de desânimo quando viu a montanha
adiante. Gavin pareceu achar divertido a reação do outro.
— Bom, pelo menos viemos de botas.
O comandante o olhou com ódio e Gavin deu dois tapas em seu
ombro largo. A subida que levava à entrada principal do castelo era
íngreme, mas não era por ali que seguiriam. Domenico lhes prometeu um
contato, que os esperaria em uma entrada adjacente, na parte de trás da
construção. O único problema era que para chegar lá teriam de literalmente
escalar a montanha, sem a estrada para ajudá-los.
Como sabiam, o rei Heth era conhecido por ser muito rigoroso com a
segurança dos nobres. Aquilo só piorou depois da quebra da fenda. Então
qualquer passo em falso poderia lhes causar grandes problemas.
— Minhas bolas vão congelar nesse lugar. — Videric resmungou.
— Pare com isso … é apenas um morro.
— Odeio o Sul! — Ele tornou a dizer. Havia perdido a conta de
quantas vezes destilou aquele ódio em voz alta. — Essa terra foi esquecida
pelos Elementais há séculos.
— Esse lugar tem a sua beleza, mas não são todos que conseguem
apreciá-la.
O comandante resmungou algo e Gavin sorriu. Começaram a subir até
conseguirem enxergar os muros altos do castelo. Ao longe, discerniram um
homem, vestindo uma capa surrada, que os esperava debaixo de uma
árvore. Quando se aproximaram o suficiente, Videric deixou Gavin
conduzir a conversa. Sempre fazia aquilo, já que não era o melhor quando
os quesitos eram diplomacia e domínio das palavras.
— Vocês são os homens de Domenico, certo? — o guarda os
analisava, receoso.
— Viemos para ver as criaturas. — Gavin se apressou em dizer.
Estavam muito próximos dos muros e, mesmo com aquela neblina, sabia
que havia outros guardas vigiando o perímetro. — Sabe onde elas estão?
O homem analisou um e depois o outro, demorando mais em Gavin,
achando que ele era o líder. O jeito calado de Videric podia ser mal
interpretado, mas não estava com humor para qualquer comentário. Queria
apenas entrar no castelo, fazer o que precisava e ir embora daquele lugar.
— Estão nas masmorras. — O homem gesticulou para que o
seguissem. Começou a andar em direção à portinhola. — A troca de
guardas é agora, portanto preciso que sejam rápidos.
A madeira da porta estava podre e rangeu quando o homem a abriu.
Por sorte, o som forte do vento barrou o ruído. Videric quase gritou de
alegria quando a ventania foi cortada e não sentiu a frieza da neve cair,
apesar do castelo ainda estar gelado, tal qual o lado de fora.
Seus olhos correram pelos corredores como apenas um vampiro em
seu posto poderia fazer, analisando cada pedra e saída, sendo ela visível ou
não. Todo castelo possuía entradas e saídas escondidas e aquele não era
diferente. Ele conseguia sentir cada mudança no ar, a brisa que cortava uma
passagem invisível aos olhos humanos, mas que não passavam
desapercebidas aos dele. Farejou o ar, mas não encontrou humanos
próximos. O guarda estava falando a verdade.
Chegaram às escadas rapidamente e o homem parou, de repente.
Videric pôde sentir o medo dele.
— Os monstros estão lá embaixo. Os guardas entravam pela porta ao
lado. — Indicou um portão com grades de ferro largas. — Mas agora o rei
Heth não nos autoriza a descer mais… apenas os curandeiros…
Ele parou de falar, deixando no ar algo que atiçou a curiosidade de
Videric. O vampiro abriu a boca para falar, mas foi impedido pela mão de
Gavin em seu ombro. Os olhos dele passaram uma mensagem clara ao
comandante: eu tentarei arrancar mais informações.
— Peço que desça e faça o que precisa… — pediu em voz alta.
O comandante assentiu e desceu as escadas, sem demora. Durante o
trajeto, os olhos buscaram qualquer indício de movimento. A escada em
caracol parecia interminável e as tochas pouco faziam para iluminar o lugar.
Sentiu o cheiro de algo podre antes mesmo de chegar às jaulas. Era o
fedor do submundo, de sangue e carne decomposta… Mas junto vinha um
aroma delicado que o deixou em alerta, fazendo com que parasse. Algo
humano, doce como nunca havia sentido. Respirou fundo e esticou o
pescoço, na tentativa de enxergar quem estava ali.
A garota diante de uma das jaulas olhava para a besta aprisionada,
com um misto de medo e pena. Tinha os cabelos trançados, os olhos
pareciam escuros por causa da presença parca de luz advinda das tochas.
Conseguia também notar as semelhanças com Liuva no rosto dela. Aquela
era Adhara, a princesa do Sul, a que possuía alma pura.
Embora o demônio aparentasse estar ainda mais faminto diante da sua
presença, ela não dava a impressão de perceber o quanto sua proximidade
lhe causava sofrimento. Aquela criatura sentia um misto de raiva pelo fato
de a princesa ser tão inalcançável, junto ao desejo pelo sangue único.
Adhara parecia hipnotizada pela criatura, aproximando-se aos poucos como
se fosse libertá-la.
Aconteceria uma tragédia ali se ele não fizesse nada.
O demônio foi rápido, mas Videric foi mais. A criatura passou o
braço pelas grades, agarrando um pedaço do manto da garota. O corpo de
Adhara bateu na jaula, fazendo-a assustar-se, mas antes que o demônio
pudesse fincar os dentes nela, sentiu a lâmina afiada rasgá-lo de baixo para
cima. As tripas caíram no chão e a criatura guinchou, debatendo-se
enquanto se afastava. Logo em seguida, o corpo tombou e um silêncio
estranho tomou conta da masmorra.
Videric precisava se afastar e sumir daquele lugar, já que não podia
ser visto. Por ninguém, muito menos pela princesa do Sul. Mas aquela
garota era única e a necessidade de protegê-la foi mais forte que o próprio
instinto de preservação.
Sentia uma necessidade primitiva de se virar para olhá-la. A
respiração dela estava acelerada e a garota parecia que ia desmaiar a
qualquer momento. Assim que se virou na sua direção, o comandante
percebeu que os olhos eram verdes como os do pai, observando-o com
curiosidade, deixando que esta sobressaísse ao medo. Demorou-se um
pouco na cicatriz que cortava o rosto dele, sem surpresa ou receio.
— Afaste-se da princesa. — A voz do guarda soou autoritária, mas
Videric o ignorou.
O vampiro se virou para o humano com certa raiva.
— Não me diga o que fazer. — A voz grossa fez a garota engolir em
seco.
— Nem mesmo um homem de Domenico tem o direito de conversar
com ela. Afaste-se da princesa. — O guarda voltou a pedir.
O nome do seu mestre pareceu trazer-lhe de volta à razão, percebendo
assim o que estava fazendo. Apesar de tentar lidar com aquela situação com
racionalidade, ansiava em permanecer ao lado dela, como se a criatura
pudesse levantar novamente e atacá-la a qualquer momento. Desconfiava
até mesmo daquele guarda.
Ele se virou para Adhara, que pareceu entender o seu receio e assentiu
com delicadeza, o rosto ainda pálido. Videric levou um dedo ensanguentado
para os lábios pedindo o silêncio dela sobre tudo o que havia se passado ali
e, sem disfarçar a destreza, virou-se e subiu as escadas.
— Princesa Adhara, não devia estar aqui.
Ele ouviu a voz do guarda dizer com mais amabilidade, mas não ficou
para tentar escutar a conversa. Encontrou Gavin na saída da masmorra. O
outro parecia curioso, mas Videric apenas gesticulou para que saíssem dali.
Os dois não se demoraram mais naquele lugar. Afinal, o grito da
criatura parecia ter sido o suficiente para acordar metade do castelo,
deixando a princesa fora de perigo.
Por ora, foi o que Videric pensou.

Merik rodava o anel dos Nobilitatis entre os dedos enquanto os olhos


escuros fitavam as chamas da lareira. Domenico permanecia sentado na
poltrona em frente, esperando pacientemente o Sombrio decidir se lhe daria
informações relevantes. Merik sabia que muitas vezes era evasivo nas
reuniões, mas aquilo precisava mudar, já que a segurança de Alys estava em
jogo.
O perigo aumentava conforme as luas passavam. Tudo havia piorado
e não tinha previsão de melhora.
— Sinto a energia dos Altos…
Aquilo pareceu pegar Domenico desprevenido. O mestre dos
vampiros inclinou o corpo para frente, como se a informação pudesse ser
perdida caso se afastasse.
— Acha que há a possibilidade de estarem no mundo corpóreo?
— Com tudo o que está em jogo? — Merik devolveu a pergunta,
como se fosse óbvio. — Seriam tolos se não tentassem.
O Sombrio viu a preocupação tomar o rosto de Domenico. Sabia o
motivo. Mesmo nos Primeiros Anos, os Altos nunca haviam subido para o
mundo corpóreo. Preferiam mandar herdeiros ou demônios menores para
fazer o trabalho sujo, comandando a carnificina de longe.
A ideia era banhar o mundo corpóreo com sangue e tomar a mente
dos líderes humanos para que controlassem tudo. Quase conseguiram isso,
se não fosse o acordo que Merik fez com Domenico e Gwendolyn, que na
época carregava a Coroa Vermelha.
A ideia de ter os Altos no mundo corpóreo pareceu conscientizar o
Sombrio de que, se não tomasse decisões mais drásticas, aquilo tudo sairia
do controle.
Nos Primeiros Anos, Merik tinha apenas a preocupação de não voltar
ao submundo, mas agora que era o Sombrio, sabia que não conseguiria
controlar os Altos, as demais criaturas e, ao mesmo tempo, proteger Alys.
— Sinto Zephyr rondando o Sul. Não consigo saber onde —
emendou, na tentativa de impedir Domenico de repetir as mesmas perguntas
sobre o Elemental caído.
— Acredito que esteja próximo da princesa Adhara. Ela é o alvo dele.
— A voz de Alys interrompeu a conversa dos dois, fazendo com que Merik
fechasse os olhos.
Não gostava dela ali. Por ele, a deixaria na vila, onde poderia garantir
sua segurança, mas a garota cismava de acompanhá-lo sempre que ia até a
Fortaleza. Queria entender o que estava acontecendo e sempre se
prontificava a ajudar. Esgotava-se ao repetir para ela que era incapaz de
fazer muito, pois infelizmente a energia em volta do mundo corpóreo estava
além da capacidade de uma caminhante. Com Zephyr livre, a situação se
agravava.
O Sombrio sabia que havia uma adaga no bolso interno do vestido
dela. Podia sentir a lâmina pesada quando a tocava, mas nem mesmo aquilo
o deixava mais tranquilo. Era uma segurança e, ao mesmo tempo, poderia
ser a ruína de Alys se tentasse utilizá-la sem pensar.
— Para um colecionador, uma alma como a de Adhara é algo único.
— Merik respondeu, sentindo o corpo da companheira estremecer ao seu
lado.
— Acredito que Lymena precise saber disso. — Domenico
argumentou.
— Acha que ela já não sabe? — A voz dele soava irritada, sem
conseguir se controlar quando as filhas de Atman eram a pauta da conversa.
— Aquelas bruxas são mais inteligentes do que imagina, além de possuírem
informação privilegiada. — Alys o olhou, irritada, mas foi ignorada. —
Chame as bruxas e tente arrancar algo delas.
Domenico nem discutiu a forma como Merik citava as filhas de
Atman. Sabia que aquilo era um caso perdido. O ódio pelas bruxas estava
enraizado no Sombrio, a energia contrária nunca deixaria que aquilo
mudasse. Serem parte do Nobilitatis nunca foi motivo para que as engolisse.
— Onde estão Gavin e Videric? — O Sombrio indagou.
— Em uma missão, no Sul. — Domenico replicou e, ao ver o olhar
questionador de Merik, acrescentou. — O rei Heth anda mantendo
demônios trancafiados para estudo. Enviei Videric para dar um fim àquilo.
A informação só piorou o humor dele. Alys o olhou com receio, como
se sentisse a energia do companheiro ficar mais densa. O lugar escureceu e
as chamas da lareira pareciam ter dificuldade em continuar altas.
— Me diga que isso é mentira. — A voz era um sibilar.
Alys colocou a mão sobre a perna de Merik, algo que fazia sempre
que o companheiro parecia perder o controle sobre o próprio poder.
— Por que se preocupa com elas? — A pergunta não foi feita para
soar ofensiva, mas Domenico parecia visivelmente curioso.
— Mesmo as criaturas sendo viscerais, como Sombrio eu sou
responsável por elas. — Levantou-se e olhou para Domenico. — Não quero
que sejam estudados. Podem matá-los ou escorraçá-los para o submundo,
mas não os prendam.
Com isso, Merik deu meia volta e deixou a sala de reuniões. Alys
caminhou ao seu lado e o toque da companheira era reconfortante. Não era
segredo para ela que o companheiro nunca gostou da sensação de estar
preso, mesmo que ironicamente fizesse isso com suas vítimas. De todo
modo, saber que o rei maldito estava maltratando demônios fez com que
parte do seu elo com o submundo voltasse. Por isso, assim que se acalmou
fez questão de enterrá-lo novamente.
Ele fitava com satisfação os campos banhados em sangue, o rosto
deformado por um sorriso doentio. Regozijava em ver a raça humana
caindo aos poucos, tolos em tentar sobreviver ao destino que os Altos
escolheram para eles por tantos séculos.
Raça obtusa… não viam que a luta era inútil?
Suas criaturas não faziam distinção de classe. Devoraram nobres e
plebeus, homens, mulheres e crianças – essas últimas tinham o sangue ainda
mais delicioso ao paladar dos demônios.
Igrik respirou fundo para sentir o odor que tanto gostava.
Morte.
Ele sentia a energia dela. A princesa ainda estava no Sul, sob
segurança do rei Heth dentro do castelo principal. As andanças dela
diminuíram e Igrik, infelizmente, não havia conseguido rastreá-la rápido o
suficiente. O último vilarejo que ela visitou ainda colhia a boa energia que a
garota tinha deixado, mesmo sob proteção de uma identidade falsa, mas não
tinha sido vista desde então.
O que o rei estava fazendo depois que Igrik o abandonou sem deixar
vestígios? Sabia que o homem procurava por ele, podia escutar as conversas
nos vilarejos. Mas qual seria o motivo? Saberia que estava ligado à queda
do seu querido reino?
Também sentia o poder da adaga de Jyot. A única arma que seria
capaz de acabar com a vida do Sombrio, para que Igrik tomasse o trono de
obsidiana para si.
Contudo, nada era perfeito. Os Altos estavam inquietos e alguns até
arriscaram a subir as montanhas do submundo. A carne e o sangue
tornaram-se abundantes lá e, como todo demônio, eles queriam uma parcela
para si mesmos. Ainda estudava uma maneira de detê-los.
Sul e Norte. Uma alma pura e uma adaga de Jyot. Duas peças-chaves
naquela guerra. Não sabia qual das duas armas estava melhor protegida,
mas precisava traçar um plano para escolher qual tomaria primeiro.
CAPÍTULO 7

Lymena voltou do interior das Florestas Brancas depois de um longo


tempo afastada da vila principal. Como Coroa Vermelha, não podia ficar
ausente por muito tempo, mas precisava pensar.
Infelizmente, suas andanças foram pouco proveitosas. Ela não colheu
os frutos do isolamento que havia se autoimposto. As leituras das folhas
mostraram um fio mal tecido, informações escassas da situação que ela
buscava, afoita. As ancestrais estavam caladas até mesmo para as oráculos e
Lymena nem era presunçosa a ponto de achar que conversariam com ela,
mesmo com o peso do título que carregava. Nem Gwendolyn o faria.
Lymena recusava a admitir para si mesma, mas procurou a antiga
rainha quando decidiu se isolar um pouco no santuário da floresta, onde as
árvores a abraçaram e a grama foi sua cama. Dormia sempre olhando as
estrelas, acompanhando a mudança da Lua enquanto contava as noites em
silêncio. Mas Gwendolyn nunca a visitou.
Agora, saindo da banheira de cobre e enxugando o corpo com uma
toalha macia, permitia-se divagar entre suas preocupações como rainha e
bruxa. Lymena sabia que servia bem as irmãs e seu poder as protegia de
toda a maldade que estava corroendo o mundo corpóreo, mas sentia-se
inquieta quando nem mesmo a tasseomancia funcionava.
Perguntava-se se não era merecedora de alguma informação ofertada
pelas ancestrais.
Jogou a toalha em um banco ali perto e andou até a janela para
observar a vila através do vidro parcialmente embaçado. O frio estava
chegando aos poucos no Norte, em breve os demônios estariam ansiosos
por mais carne e sangue.
Além do seu poder, Lymena dependia da boa vontade de Merik, que
mantinha as criaturas afastadas. Aquilo estava a adoecendo. Não queria
pedir ajuda a um Alto, muito menos a um Sombrio. Mas estava de mãos
atadas.
Respirou fundo e desistiu de buscar por respostas. Foi para a cama e
cobriu-se com um cobertor de lã. A pele estava gelada, mas foi se
aquecendo à medida que o tempo passava e as chamas da lareira faziam o
seu trabalho.
Um som oco de madeira estalando chamou a atenção dela, que se
sentou na cama rapidamente.
— Arsene? — chamou o companheiro, mesmo sabendo que ele
estava na Fortaleza. Lymena sequer o avisou do retorno, sabendo que o
ruivo buscava informações com Domenico.
Logo um vulto foi visto por ela, os olhos prateados ficando visíveis.
O coração de Lymena bateu de forma descompassada e, pela primeira vez
em muito tempo, sentiu-se como uma criança. Gwendolyn representava a
realeza de forma única, a força que vinha da bruxa era sentida de longe.
Retirou o cobertor do corpo e saiu do leito, correndo na direção da
mulher.
Lymena nunca ansiou tanto por um abraço. Quando o aroma de flores
de Gwendolyn foi percebido em todo o ambiente, sentiu-se protegida.
— Lymena… — A voz da antiga Coroa Vermelha era doce, mas
firme. — Vim aqui a pedido seu, mesmo que as ancestrais pedissem que eu
prorrogasse essa visita.
Lymena não entendeu o que a outra falava. Sentou-se e Gwendolyn
fez o mesmo, os olhos correndo pelo quarto de forma saudosa, como se a
bruxa estivesse revivendo seus séculos ali, como rainha. Lymena apertou as
mãos dela e os olhos prateados voltaram na sua direção.
— Quando carreguei a Coroa Vermelha e enfrentei a escuridão,
precisei tirar forças de toda a confiança que sentia em Atman. As ancestrais
me guiaram, mas a ajuda não veio de forma clara…
Gwendolyn acariciou as mãos de Lymena, como se soubesse o estado
de ansiedade que se encontrava.
— Não entendo…
— Você tem uma força incomum dentro de si, Lymena, mas precisa
achá-la sozinha. É a sina de toda Coroa Vermelha — Gwendolyn confessou.
— Normalmente a encontramos quando toda a escuridão parece nos engolir.
— Estou cansada — confessou aquilo pela primeira vez em voz alta.
Precisava passar segurança e poder para todas as irmãs, mesmo que
em alguns momentos aquilo escapasse por entre os dedos. Portanto,
verbalizar aquela sentença tirou um peso do peito dela, mesmo sendo
injusto para Gwendolyn escutar aquela confissão.
Quando se tornou rainha, a bruxa mais velha precisou tomar uma
decisão que entrelaçou Atman, o mundo corpóreo e o submundo. Merik era
uma mancha no reinado de Gwendolyn, mas ela precisou aprender a
conviver com aquilo e, naquele momento, o caminho que as ancestrais
indicaram séculos atrás fazia sentido.
Lymena aprendeu a conviver com o equilíbrio entre o bem e o mal,
ensinamento passado por Gwendolyn quando herdou a Coroa Vermelha.
Mas Merik, um Sombrio, agora amava uma humana… Mesmo se
redimindo com o mundo corpóreo, isso causou um desequilíbrio entre os
véus. Caberia a ela colher as consequências.
— Como rainha, você precisa ter três focos. Suas irmãs, que estão sob
seus cuidados desde que desceram para o mundo corpóreo; as ancestrais,
que guiam a Coroa Vermelha com sinais e conselhos sábios; e o mundo
corpóreo, que é a sua morada.
— Estou perdendo o controle do último…
— Se ele está banhado em escuridão, precisará aumentar a luz. Esse
não será seu maior desafio nessa provação que está passando.
Um arrepio estranho tomou o corpo de Lymena. Quando achava que
havia dominado a Coroa Vermelha, ela exigia mais. Gwendolyn pareceu ler
a apreensão da antiga pupila e sorriu de forma acolhedora.
— Amamos nossas irmãs, respeitamos as ancestrais e zelamos pelo
mundo corpóreo. Mas quando a responsabilidade do destino nos chama, um
sempre sai sacrificado.
Lymena queria perguntar o que Gwendolyn queria dizer com aquilo,
mas a bruxa começou a ficar translúcida e o toque dela se desvaneceu como
vento. Tentou apertar a mão de Gwendolyn, que pouco tempo atrás estava
morna sobre a sua, mas sentiu um puxão. Quando abriu os olhos, percebeu
que estava deitada na cama, sozinha.
Pela primeira vez desde que assumiu sua atual posição, caiu em
prantos.

Adhara havia perdido a noção do tempo dentro da biblioteca. Os


livros se acumulavam na mesa que havia escolhido para sua leitura,
enquanto a cera das velas se empilhava no castiçal.
Percebeu que precisaria de mais cera se quisesse prolongar a estadia
ali. Por sorte, não havia sido incomodada pelos bibliotecários que faziam as
rondas, já que muitos foram realocados para os estudos das criaturas,
passando a madrugada trabalhando junto dos curandeiros.
Por ser princesa, Adhara foi instruída a estudar todo o contexto
político mundial, portanto não havia reino desconhecido por ela, nem
monarca cuja história ignorasse. Parte disso devia-se ao seu empenho nos
estudos, outra parte ao fascínio pelo passado.
Por isso, ao comparar a ocasião atual, onde os reinos mergulhavam na
escuridão, com a anterior, notava as sutis diferenças. Nos séculos passados,
o mal estava enraizado nos humanos, que tomaram decisões erradas e
colheram com isso consequências sanguinolentas. Reinos e vilas caíram
pelo desejo de poder. Doenças novas surgiram e se espalharam depressa
pelo mapa.
Mas as sombras acabaram por recuar, como se uma força diferente
tivesse aparecido. Mesmo que todos jurassem ter sido um milagre, Adhara
nunca havia acreditado naquilo. Seus antepassados sofreram naquela época
e seu avô, que infelizmente não pôde conhecer, demorou muitos anos para
conseguir recuperar o Sul.
Naquele momento, o mal estava exposto mais uma vez. As bestas
eram inúmeras e tomavam terreno em uma velocidade ímpar, sem fazer
questão de se esconderem.
Relatos de criaturas semelhantes àquelas existiram também nas
épocas passadas. Contudo, todos os livros foram recolhidos pelos
bibliotecários e trancados num armário para estudo. Adhara não poderia
consultá-los sem explicar o motivo do seu interesse, o que era frustrante.
A princesa começou a ficar com os olhos cansados, sentindo uma leve
dor de cabeça, mas precisava continuar. Afinal, nenhum daqueles livros
mencionava o nome que ela tanto procurava: Domenico.
O homem que havia encontrado na masmorra quando havia visitado a
criatura era incomum. Ela pôde sentir a energia dele, densa… diferente.
Algo lhe dizia que de alguma forma aquilo estava entrelaçado com o
passado, quando a escuridão recuou. Era aquela a energia que buscava
ansiosamente nos estudos, por isso pesquisava pelo único nome que tinha
como referência.
Por mais que pesquisasse, ele ainda era uma incógnita. Adhara não
conseguiu achá-lo em nenhum livro que contabilizava as casas e as famílias
da nobreza, nem mesmo nas pequenas terras.
Fechou o livro com certa impaciência e um barulho alto ressoou pelo
silêncio da biblioteca. A poeira subiu e fez cócegas no seu nariz, os olhos
cansados protestando por descanso.
Lembrou-se do modo como aquele homem matou o monstro
aprisionado… como se a pele grossa e a carne fossem feitas de manteiga.
Ele não era alguém comum. Além do mais, sabia como dar fim à criatura.
O mais estranho foi o pedido de discrição pela sua presença ali. Por
que razão? Adhara se questionava como o homem conseguiu acessar o
castelo do pai. Seria através de uma falha de segurança? Algo dentro dela
sugeria que sua presença ali ultrapassava a compreensão, por mais que
tentasse entender a situação.
Percebeu que os estudos não a levariam a lugar algum naquela noite.
Por isso, pegou o candeeiro e apagou as velas com um sopro, saindo da
biblioteca escura logo depois. Andou pelos corredores silenciosos do
castelo, onde muitos já estavam recolhidos e apenas alguns guardas eram
vistos. Todos olhavam curiosos para a princesa, que não costumava estar
acordada e fora do quarto quando a lua estava alta no céu.
Adhara apenas fazia um gesto em cumprimento e os ignorava,
disposta a chegar logo em seus aposentos. Não queria que aquelas andanças
chegassem aos ouvidos dos pais.
Quando abriu a porta do próprio dormitório foi que percebeu a
verdade inquestionável: a mãe estava sempre um passo à frente dela.
A rainha havia se acomodado no sofá, posicionado em frente à lareira.
Seus olhos desviaram das chamas e encontraram a figura da filha assim que
entrou. Apesar de Adhara esperar uma bronca, Liuva apenas sorriu e se
levantou.
— Onde estava? — A pergunta não soou como uma invasão de
privacidade, mas com curiosidade genuína.
— Na biblioteca. — Adhara colocou o candeeiro na mesa, indo até os
braços abertos da mãe. — Estava estudando.
O abraço de Liuva era o melhor do mundo, o único lugar que Adhara
se sentia segura, mesmo sabendo que os muros fortes de pedra do castelo
seriam muito mais poderosos caso as criaturas conseguissem subir as
montanhas cobertas de neve e gelo.
— Sobre…?
— As criaturas. — Adhara contou uma mentira parcial. Não queria
que a mãe soubesse que procurava um nome ou sobre o homem estranho
que havia entrado no castelo. Ela já se preocupava muito com a segurança
de Adhara. — Mas os livros foram levados pelos bibliotecários.
— Seu pai pediu para que os trancassem em um armário perto da ala
inferior, de fácil acesso aos curandeiros. — Adhara fez uma careta ao
mencionar aquilo. — É melhor que estejam em mãos específicas e
preparadas para consultá-los.
— Todo mundo devia ter a chance de procurar algo que acabe com
esses monstros.
Liuva respirou fundo e abaixou os braços, voltando ao sofá. Adhara a
seguiu e se sentou, próxima da mãe, olhando com atenção as suas rugas de
preocupação.
Mesmo que tivesse feito muitos marcos de ano, a beleza de Liuva
sempre foi falada pelos sulistas. A princesa do Norte, que levou calor ao
coração do rei Heth. Adhara sorriu ao observá-la, cheia de afeto.
— Seu pai quer os livros em segurança. Eles podem cair em mãos
erradas. — Ao ver o olhar questionador da filha, Liuva explicou. — Não
podemos confiar em ninguém.
Adhara se lembrou do homem mais uma vez. Provavelmente, ele
havia tido ajuda para chegar na masmorra. O castelo principal era quase
impossível de invadir, tanto pela segurança que o pai sempre prezou, quanto
pela geografia do lugar. As montanhas funcionavam como guardiãs e
escalá-las seria impossível para um homem.
Ela apoiou-se no encosto do sofá com uma postura contrária à que
uma princesa precisava ter. Liuva a olhou com diversão, mas logo o brilho
nos olhos dela sumiu.
— Seu pai anda trocando cartas com um lorde que está chamando a
atenção de toda a corte. — Aquilo fez a curiosidade de Adhara despertar. —
Ele convidou o rei para uma inspeção em suas terras.
— E qual o motivo dessa atenção dada a ele? — Adhara questionou.
— Seria mais um com olhos azuis e corpo esbelto?
Liuva fez uma careta.
— Suas terras são as únicas que ainda não possuem relatos de invasão
por parte das criaturas. — Adhara se empertigou no sofá e olhou para a mãe
com atenção. — Heth quer saber como ele consegue afastá-las.
Seria aquilo uma luz? A princesa sabia que não era qualquer relato
que despertava o interesse do pai. Se ele estava disposto a viajar para
conhecer um novo lorde, o motivo devia ser substancial. Mas Adhara não
era tola em achar que aquela seria uma viagem solitária.
— A senhora está me contando isso por quê?
— Não me leve a mal, Adhara. — Liuva respirou fundo como se não
quisesse ter aquela conversa e estivesse ali por obrigação. — Seu pai quer
que você conheça lorde Zephyr.
— Zephyr? Que tipo de nome é esse? — Adhara franziu o cenho e a
mãe a olhou em repreensão. — Me parece estranho.
— Pelo menos foge do óbvio… Mas não se engane, todos os homens
são iguais. O interesse dele é político.
Adhara sabia o que sua mãe queria dizer com aquilo. Era uma
princesa que ainda não havia sido prometida a alguém. O Declínio
possibilitou alguns anos de vantagem, mesmo que ela preferisse visitas com
pretensões matrimoniais a se deparar com plebeus passando fome.
Além disso, sabia que a maior força para se manter livre não eram os
anos sombrios que o Sul passava, mas a mãe que impedia o pai de ofertar a
mão dela como barganha política. Adhara cresceu com a certeza de que só
se casaria por amor, percebendo então que aquela era uma imposição de
Liuva ao marido, e este nunca havia discordado.
Pelo menos até ali.
— Irei com vocês se eu puder visitar as vilas próximas. Assim saberei
se estão realmente livres das criaturas. — Liuva sorriu, como se soubesse
das segundas intenções da filha. — Além disso, não há melhor maneira de
conhecer um homem do que pela boca das pessoas que ele governa, certo?
— Filha, acha que me engana? — O sorriso da rainha aumentou. —
Sei que sempre colocará o povo sulista em primeiro lugar. Mas suas
excursões precisam diminuir, sabe disso.
— Mas…
— As criaturas estão tomando todos os lugares. — Liuva a cortou. —
Eu não posso perdê-la. — O modo como a rainha falou aquilo fez com que
Adhara desistisse da discussão. — Você é minha vida.

O pranto foi de saudade. De insegurança e fraqueza.


Lymena sentiu um toque delicado sobre o ombro, junto ao cheiro de
canela e especiarias. Aquilo a acalmou, mas nem por isso as lágrimas
deixaram de descer.
— Chame Krida e Srala. — A voz aveludada do companheiro foi
ouvida em meio ao choro. O som de passos se afastando era um mero
detalhe enquanto Lymena sentiu ser puxada para o colo do vampiro.
As mãos dele a acariciaram, os dedos enfiando-se nos cabelos ainda
úmidos. Um beijo suave foi depositado em sua testa e ele respirou fundo, o
aroma de canela ficando mais forte com aquilo.
Diante da presença de Arsene, Lymena percebeu que havia tomado
uma das decisões mais tolas da vida ao se isolar nas florestas e buscar por
respostas sozinha. Estava ligada ao vampiro. Sua ausência ou o silêncio das
anciãs conselheiras não lhe trariam benefícios. Agora, mais do que nunca,
Lymena precisava das pessoas que amava ao lado.
Krida e Srala chegaram um tempo depois. Lymena sentiu o peso do
olhar das duas. Aproximaram-se dela e um toque suave a acalmou. Dedos
envelhecidos e carinhosos a ampará-la. Elas a esperaram com paciência,
deram o tempo necessário para Lymena recuperar-se.
Assim que o fez, a bruxa contou sobre o sonho que havia tido com
Gwendolyn, como buscou ajuda da antiga Coroa Vermelha enquanto estava
sozinha na floresta.
Krida e Srala escutaram todo o sonho com atenção. A primeira com
olhos amorosos, a segunda com a sabedoria de uma oráculo. Arsene
continuava com Lymena nos braços e acariciava os cabelos dela enquanto a
deixava falar.
— Parece que Gwendolyn lhe deu um presente, Lymena. — Krida
opinou. — Não é sempre que uma antiga Coroa Vermelha nos visita para
guiar de forma tão direta.
— As bruxas não podem se enfiar nas Florestas Brancas enquanto a
escuridão engole o mundo corpóreo. — Lymena percebeu que Gwendolyn
havia lhe mostrado o caminho.
— O que quer dizer? — Srala a incitou.
— Quero dizer que, se Adhara tomar a decisão que reescreverá o
destino de todas as raças sobrenaturais, as bruxas estarão ao lado dela para
guiá-la.
CAPÍTULO 8

— Eu a vi, Domenico. — Ao notar que tinha a atenção dele, Videric


explicou. — A princesa… Sei que já havíamos estado em sua presença
antes — encostou-se na parede da sala e dobrou a perna para apoiar a bota.
— Mas agora está diferente… a energia dela é mais intensa, como se ao
alcançar a maturidade o poder de Atman estivesse a tomando de tal forma
que começasse a transbordar.
Domenico escutou com atenção o relato do comandante, sem deixar-
se levar pelas emoções. A frieza adquirida com os anos lhe permitia analisar
melhor qualquer situação. A verdade era que não gostava nem um pouco do
que ouvia.
— E o que sentiu te encorajou a matar um dos demônios diante dela,
se expondo? —Domenico o questionava, impassível.
— Foi imprudente. — Gavin tomou à frente, respondendo assim que
Videric ia abrir a boca, calando o amigo. — E amador.
— Não consegui me controlar. Tinha uma sensação de urgência… —
Videric confessou, ainda sem conseguir definir o que havia sentido. Era
comandante de Domenico há séculos e nunca permitiu que a emoção ficasse
acima da razão. Estava mais curioso do que irritado.
Merik divertia-se assistindo àquela cena. Ele nem questionou o abate
do demônio, já que era melhor do que mantê-lo aprisionado.
— O demônio se soltou quando sentiu a energia da princesa? —
Domenico voltou a questionar Videric.
— Não… Mas avançou nela como se fosse um pedaço delicioso de
carne…
— Eles fazem isso com todos. — Merik interrompeu-o, sarcástico.
— Um que não acharia em nenhum outro humano. — Videric
completou, fitando irritado o Sombrio. — Por que você está aqui?
Merik girou a taça de vinho e bebericou o conteúdo.
— Só queria me certificar de que a criatura teria uma morte digna.
— Pare com isso. — Domenico o alertou. — Vai irritar meus
vampiros.
O Sombrio sorriu de forma cruel, contrastando com o cuidado que
fitou Alys em seguida. A garota até então mantinha-se calada, apenas
observando a cena. Ela conhecia o humor do companheiro o suficiente, já
havia desistido de tentar melhorá-lo.
— Viemos porque recebi uma carta de Emelia sobre o que está se
passando no Sul. — Alys explicou que ainda tinha contato com a rainha
devido ao período que passou na corte nortista, escondendo-se de Merik.
Ao ouvi-la, o Sombrio revirou os olhos. — Ela me disse que há um nobre
chamando a atenção dos sulistas. Chegou há pouco tempo, mas já se
destaca na corte.
— Por qual motivo? — Domenico ficou sem entender tamanho
burburinho. A presença dos lordes era algo comum em qualquer reino.
Também considerava natural a curiosidade sobre os recém-chegados. Os
humanos eram criaturas enxeridas por natureza.
— Pelo fato das terras dele serem as únicas livres das criaturas. —
Merik respondeu por Alys. — Os demônios não se aproximam de lá.
Assim que ouviu aquilo, Domenico entendeu o que ele queria dizer.
Só havia duas pessoas no mundo corpóreo que conseguiriam controlar
aqueles demônios famintos. Uma estava diante dele, tomando do seu vinho
enquanto o fitava com certo ar de tédio no rosto. O outro ainda era uma
incógnita.
— Acha que Zephyr está se passando por nobre para alcançar a
princesa Adhara?
— Tenho certeza disso. Como tem o poder de controlar os demônios,
possui uma moeda de troca muito valiosa para Heth, que a cada lua está
mais desesperado.
Domenico tamborilou com os dedos, a pedra do anel dos Nobilitatis
reluzindo com o movimento. Olhou para seus vampiros. Videric fez um
gesto com a cabeça e Gavin olhou para Domenico em concordância.
— Sabe que terei de reportar isso à Coroa Vermelha assim que as
bruxas chegarem, certo?
— Nada contra isso. — Merik surpreendeu Domenico com aquela
resposta. — Não sei o que aquele bando de bruxas pode fazer com essa
informação. — Terminou o vinho que bebia e se inclinou para frente, a fim
de colocar a taça na mesa enquanto olhava com expectativa para o mestre
dos vampiros. — Além disso, Zephyr pode transformar qualquer uma delas
em pó caso se atrevam a respirar perto dele.
O brilho de esperança que percorreu os olhos de Merik diante daquela
ideia fez Domenico se perguntar o quanto havia sido imprudente em
convidar as filhas de Atman para uma reunião de urgência na Fortaleza.
Lymena, inclusive, já estava no perímetro do castelo. Domenico podia
sentir a energia da bruxa por ali, e ela não estava só.
Se a rainha estava acompanhada das anciãs e das oráculos, aquela
reunião não terminaria tão cedo.
Esperou em silêncio até que elas começassem a entrar na sala,
observando com cuidado as reações de todos os presentes.
Ao ver Nyana, Videric se colocou atrás do sofá que as bruxas
escolheram se sentar. Além dele, apenas Gavin estava em pé, pronto para
servir de apoio caso algo saísse do controle. O modo como Merik a olhava
deixava os nervos do comandante tensos. Era como se o Sombrio esperasse
que, ao abrir a boca, ela desse as respostas para todos os seus problemas.
Além da energia que toda filha de Atman tinha, o poder de
Adivinhação de Nyana ficava mais forte à medida que Srala a treinava. Isso
transformava a bruxa em um farol para qualquer criatura vinda do
submundo. Ainda havia a presença de Krida e Srala, fazendo com que o
poder de Lymena aumentasse.
Os Nobilitatis não pareciam ansiosos para aquele encontro. Domenico
sabia que cada espécie lidava de um modo diferente com a ruptura da fenda,
divergindo assim as opiniões. Porém, foi categórico: as reuniões precisavam
ser mantidas para terem um consenso, mesmo que isso os desagradasse.
O líder dos vampiros lançou um olhar para Videric e Gavin, que
demonstraram concordância com um aceno, prontos para falar. Afinal, o
cenário que tinham presenciado no Sul era perturbador, apesar de já terem
ciência do que estava ocorrendo, por meio das correspondências dos
sangue-puros que dominavam aquela região.
Contudo, ler as descrições era muito diferente de pisar em poças de
sangue, enquanto corvos se alimentavam dos restos da carne putrefata
deixada pelos demônios. Era esse relato vívido que Domenico necessitava
que os vampiros dessem.
— Acredito que temos informações importantes que precisamos
compartilhar. — O mestre dos vampiros olhou para Merik, que permaneceu
em silêncio, como forma de protesto à decisão dele em contar tudo. —
Zephyr procurou Merik algumas luas atrás, pedindo ajuda para ter Adhara.
— E qual foi a decisão do Sombrio? — Lymena perguntou enquanto
olhava para ele.
Domenico aguardou aquilo com real ansiedade. Não via Lymena há
um bom tempo, mas algo em sua energia havia mudado, como se o repouso
nas Florestas Brancas fosse necessário. O poder de Atman estava mais
latente e a bruxa não parecia disposta a segurá-lo, como fazia desde que
assumiu a Coroa Vermelha.
— Merik está proibido de ajudar aquele monstro. — Alys adiantou-
se, fazendo com que este revirasse os olhos.
— Não o faria mesmo se quisesse. Tenho meus problemas para
resolver e devo dizer que são muitos.
O som de um pigarro fez com que todos ficassem em silêncio. Vindo
de Srala, aquilo era incomum. A oráculo-anciã não era de muitas palavras
nas reuniões dos Nobilitatis e, quando falava, todos sabiam que o rumo da
história parecia mudar.
— Acredito que devam escutar o que Nyana tem a dizer. — Ela
sugeriu.
Domenico observou o corpo de Videric ficar tenso. Sabia que a
oráculo não gostava de sair das Florestas Brancas, mas caso seguisse ao
caminho que estava destinada, aquilo seria inevitável. Fazer parte dos
Nobilitatis era algo natural ao assumir o lugar de Srala. O vampiro
remexeu-se inquieto. Domenico o olhou, para ter certeza de que estava sob
controle. Videric fez uma careta ao notar que estava sendo observado pelo
seu mestre.
— A princesa carrega uma alma pura, como todos sabem. — A voz
dela era delicada, mas firme. Nyana havia mudado muito desde que
começou o treinamento. O poder que havia nela era mais controlado e
parecia criar uma ponte direta com Atman. — Contudo, mesmo no mundo
das almas, há ordens que não podem ser quebradas. Por isso, quando
falamos de alguém como ela, até mesmo o princípio de sua vida é mudado.
— Zephyr é um colecionador. — Domenico afirmou. — Acredito que
ele saiba como capturar Adhara. É por isso que está atrás da princesa, certo?
— Sim. Ele até poderá pegá-la, mas não a sua alma. — Nyana
explicou e arrancou do mestre dos vampiros uma expressão de surpresa. —
Para tê-la, ele precisará do consentimento dela.
Diante daquela descoberta, Domenico ficou sem saber o que pensar.
Olhou para os outros e notou que Lymena não estava surpresa e Merik
pareceu entender aquilo com facilidade, ainda que com desdém. Não era
segredo para ninguém que o Sombrio se irritava quando as bruxas lhe
escondiam informações.
O mestre dos vampiros, por outro lado, sabia que as filhas de Atman
possuíam suas próprias regras, mesmo quando se tratava dos Nobilitatis,
coisa que Merik discordava com veemência.
— Isso nos dá uma vantagem, é claro… mas não podemos depender
da força de vontade de uma humana para conseguirmos a vitória desejada.
— Domenico observou as bruxas se entreolharem. — Sei que não posso
pressioná-las, mas se as ancestrais deram alguma informação útil, seria bom
compartilhá-las conosco.
— Me poupe das palavras doces, Domenico. — Merik o interrompeu.
— Não é segredo para ninguém que essas bruxas só contam algo quando
veem vantagem.
O vampiro estava tentando ser o mais diplomático possível, mas
Merik tinha uma opinião diferente sobre aquele encontro. Sua paciência
estava por um fio.
— O submundo está tomando cada pedaço de terra. Sinto os Altos se
regozijando com isso. Estou dividido entre conter demônios, reger um trono
que nem ocupo e proteger a mulher que amo. — A sala encheu-se de uma
energia diferente, onde as chamas da lareira pareciam enfraquecer diante da
escuridão que Merik deixou escapar por um momento. — E vocês estão me
dizendo que o destino de todos está nas mãos de uma princesa humana que
nem sequer saiu das sombras do pai?
Lymena reagiu àquilo como apenas uma Coroa Vermelha reagiria.
Decidiu dar vazão a um pouco do seu poder, que pareceu engolir o do
Sombrio. Videric ficou sem reação diante daquela disputa, mas colocou
instintivamente as mãos sobre os ombros de Nyana quando viu a bruxa
estremecer. Aquilo podia sair do controle rapidamente.
— Basta! — A voz de Srala pareceu acordar a todos. — Escutem o
que temos a dizer primeiro, depois comecem a discutir. Não quero
participar disso. — Ao ver que tinha a atenção de todos novamente, voltou
a explicar. — Não há como interferir na decisão de Adhara. O destino da
princesa foi atado ao de Zephyr assim que sua alma nasceu em Atman.
— Mas… — Domenico tentou opinar.
— Teremos que esperar a decisão dela. — Srala interrompeu o mestre
dos vampiros e olhou para o Sombrio. — Ou vai querer controlar o que a
humana faz com a própria alma? Acredito que já há muito a ser feito sem
que tente mudar os fatos.
Merik mostrou os dentes, num esgar irritado. Domenico observou
Videric conter um sorriso, já que Srala era a única ali capaz de fazê-lo se
calar.
— Enquanto esperamos, tenho uma busca para fazer. — Merik
avisou. — Espero que possa contar com a boa vontade das bruxas em
proteger Alys enquanto o faço.
— Ela sempre será bem-vinda nas Florestas Brancas. — Lymena
olhou para o Sombrio, curiosa. — Mas por que se afastar neste momento
delicado?
— Preciso caçar Igrik. Sinto que ele está percorrendo o Sul, pois é
vaidoso o bastante para querer presenciar pessoalmente o impacto de suas
ações no mundo corpóreo.
— Poderia aproveitar a viagem para escorraçar as criaturas do Sul. —
Srala pediu.
— Sabe que não posso negar carne fresca a eles. — O Sombrio sorriu
de forma cruel e Srala fez uma careta.
— Pare com isso, Merik. — A voz de Alys era ínfima diante da
discussão. — Que horror!
Ele se levantou e sua companheira fez o mesmo. Videric percebeu
então que a reunião estava terminando. O Sombrio nem era de dar muitos
detalhes, mas sempre saía quando escutava o que precisava.
— Igrik está desaparecido desde o rompimento da fenda. Os espectros
não o veem no submundo há luas. — Merik começou a andar em direção à
porta. — Acho que já é tempo de entender que é incapaz de lidar com a
escuridão que ele próprio libertou.

— Quero tudo perfeito antes da comitiva real chegar aqui. Seu rei está
vindo com a rainha e a princesa Adhara. Que sejam bem recebidos.
Os serviçais fizeram uma pequena mesura e se afastaram, enfiando-se
pelas portas para deixar tudo preparado aos visitantes. Zephyr não os
impediu, pois sabia que havia regras de etiqueta a cumprir e a lista seria
longa.
Ele nunca foi uma referência quanto ao quesito bondade, mas isso não
se aplicava no modo de tratar aos criados. Eras atrás, quando visitava o
mundo corpóreo livremente, percebeu que de nada adiantava ser rude com
os plebeus se quisesse alcançar a corte. Era com eles que conseguia as
informações necessárias, já que se pareciam com um bando de formigas,
tomando os corredores do castelo.
Era aquele povo, muitas vezes considerado invisível, que lhe dizia
quem ia contra suas palavras, quem trepava com quem, qual nobre
precisava de ouro, qual senhor estava endividado. Os criados sabiam o que
fazer para ser bem-sucedido, os pontos fracos dos potenciais inimigos, o
que acontecia dentro dos cômodos quando as portas se fechavam…
Zephyr precisou deles quando tomou aquele castelo e, por ter
colocado a máscara de um senhor tolerante, nunca foi questionado. Mas
mantinha a frieza e a distância para que não se aproximassem demais,
utilizando esse poder contra ele.
Gesticulou para a governanta se aproximar. Ela estava na casa dos
cinquenta anos e Zephyr podia ver as linhas fundas de expressão no rosto
envelhecido. Havia passado muitos anos dedicados aos outros, mas poucos
a si mesma.
Com certeza ela conhecia o funcionamento de um castelo como
ninguém e sabia o que fazer quando necessário. Zephyr nunca recebia
visitas e a presença da família real geraria burburinhos, muitos dos quais ela
conteria em troca de algumas moedas.
— A princesa Adhara gosta de cavalgar e da arte do arco e flecha. —
Aquela informação parecia ter pegado a governanta de surpresa, já que
estava acostumada com princesas chegando com diversos baús, cheios de
seda e veludo. — Arrume um quarto para ela com tudo o que está
acostumada.
— Mas senhor…
— Se ela quiser um arco novo, consiga. Se desejar penas vermelhas
para colocar nas flechas, traga. — Os olhos de Zephyr eram frios e a voz
firme. — Se pedir um maldito cavalo malhado para dar uma volta no
castelo, obedeça.
A governanta entendeu o recado e fez uma pequena mesura,
afastando-se dele. Teria que lidar com uma nova energia vinda da
criadagem, já murmurando pelos cantos. Eles adoravam visitas e tudo o que
poderiam receber desse encontro, como histórias, informações e um pouco
da quebra de rotina.
Permaneceu atento ao movimento de todos aqueles que o cercavam.
Caso precisasse, trancaria alguns deles nas masmorras para que não
falassem coisas indevidas.
CAPÍTULO 9

A viagem demorou alguns dias, mas havia sido o mais confortável


possível. O rei do Sul havia saído do castelo com a rainha e a filha, além de
uma equipe de segurança reforçada, organizada para acompanhá-los até o
destino.
Adhara, sentada na janela, observava a neve em abundância lá fora
com certa expectativa. Esperava que precisassem parar em algum vilarejo,
mesmo com o pai dizendo que se concentrariam em descansar nos postos
estratégicos espalhados pelo mapa, onde as bestas já haviam sido contidas
pelos soldados. Em nenhum momento ela o questionou, já que o rei estava
preocupado demais com a viagem. Mesmo seguindo em direção a uma terra
que prometia milagres, as criaturas ainda vagavam por todo o trajeto.
Ela não pôde deixar de observar que, quanto mais desciam, os ataques
ficavam menos frequentes. Algumas bestas foram mortas ao longo do
caminho, mas os soldados pareciam preparados para ceifar suas míseras
vidas com habilidade. A mãe sempre fechava os olhos quando os monstros
surgiam, como se não aguentasse ver tanto sangue escuro salpicar a neve…
mas isso em nada diminuía os gritos a ecoar, nem o cheiro que invadia a
carruagem.
Adhara lamentava ao ver a mãe sofrendo diante das criaturas. Tê-las
assim, tão próximas, parecia deixá-la ansiosa. A princesa, ao contrário,
sentia a mão coçar chamando pelo arco e a flecha.
Tentou acalmar a mãe, colocando a mão sobre as da rainha. Liuva
olhou-a com gratidão.
— Parece que estamos chegando. — A rainha anunciou,
vislumbrando algo do lado de fora.
Ela a seguiu com o olhar. Vislumbrou um castelo de pedras claras
despontando em meio à neblina ao longe. Abriu então a pequena janela da
carruagem e enfiou o corpo para fora, permitindo que o vento gelado lhe
encontrasse o rosto.
Fechou os olhos para depois reabri-los, observando cada detalhe que
se estendia à sua frente. Os campos carregados de neve estavam calmos e
pareciam bem cuidados, mas não seguiam o padrão de jardins que muitos
castelos do Sul possuíam.
O coche deu um solavanco e Adhara percebeu que haviam pegado
uma pequena estrada de pedras. O cavalo do pai se aproximou da janela da
carruagem e baforou vapor no rosto da princesa, que sorriu.
— Não incline tanto para fora. — O rei a censurou, mas ela percebeu
que ele se divertia. — Em breve poderá andar.
Adhara queria muito sair daquela carruagem e esticar as pernas.
Depois, montar em um cavalo e percorrer aqueles campos enormes, que não
via nem mesmo nos arredores do castelo principal de Dhárg. Mas, por
enquanto, tinha de se contentar em voltar ao próprio lugar na carruagem. A
mãe a observava, com um sorriso satisfeito a lhe pintar o rosto.
— Você terá tempo de fazer o que quiser depois. — Adhara abriu a
boca para responder, mas depois percebeu que seria inútil. — Por enquanto,
seremos apenas diplomatas.
A capacidade de ler as pessoas que Liuva tinha era até mesmo
irritante, mas Adhara nem se surpreendeu. Sentia-se como um leão
aprisionado dentro daquela carruagem. Até mesmo sua mãe sabia o quanto
estava louca para sair. Tentou relaxar, já que aquela pequena estrada parecia
ter se transformado em uma longa segunda viagem.

Assim que pararam, Adhara pulou da carruagem com ansiedade, as


botas amassando a neve fofa. Ficou surpresa quando correu os olhos pela
enorme de pedras claras. Não o conhecia de fato, apesar de ter visitado
vários com seu pai, antes do Declínio e quando os bailes eram permitidos.
Quando criança, Adhara correu em boa parte dos gramados e explorou
todas as florestas aos arredores dos castelos, mas sabia que havia muitos no
Sul. Aquele em específico a fazia se sentir de volta naquela época, onde a
expectativa de conhecer algo novo era um prazer para ela. Nem precisava se
preocupar com algo, apenas experimentar as comidas dos jantares e
observar as conversas dos adultos sobre política. Era como se nada pudesse
lhe atingir.
Pena que essa realidade havia se tornado apenas uma lembrança.
Imerso em escuridão, o Sul se tornou triste. Mesmo que já estivesse
acostumada ao frio, o inverno parecia congelar os ossos e a esperança do
povo de Dhárg. Atos antes corriqueiros faziam parte de uma memória tão
distante que ela se perguntou como conseguiria voltar a fazer parte daquele
ritual social sem parecer deslocada.
Esticou o corpo e notou que alguns criados os aguardavam. A guarda
do rei permaneceu nos cavalos, mas Adhara observou que pessoas
descarregavam seus grandes baús e entravam por uma porta lateral. Sentiu
logo a presença do pai atrás de si, ajudando a mãe na descida. Foi quando
alguém lhe chamou a atenção, fazendo com que seus olhos não
conseguissem se desgrudar de sua presença.
Diante dos criados e usando roupas nobres escuras, além da capa de
veludo do mesmo tom jogada nas costas largas, um homem a observava
com certa intensidade. Quando o reconhecimento percorreu Adhara, um
sorriso de lado nasceu no rosto dele, deixando certa covinha aparecer.
Mas ele é apenas um garoto! O pensamento intruso não a deixou ter
qualquer reação. Quando o pai falou do nobre que mantinha as terras
protegidas das criaturas, Adhara imaginou um homem com idade parecida a
do rei, com poder o suficiente para ter soldados que mantinham a fronteira
intacta, o que nem de longe parecia o caso.
O nobre que a observava era quase o oposto do que pensou encontrar.
Adhara correu os olhos pelos presentes, procurando alguém mais velho,
talvez o pai daquele que observava, o mesmo que a havia acompanhado até
a estrada do castelo principal, que salvou sua vida daquela emboscada.
Engoliu em seco quando começou a se aproximar, descendo as
escadas de forma elegante. O cabelo escuro balançava com o vento,
cobrindo-lhe boa parte do rosto, apesar dos olhos não deixarem os dela.
Apesar da feição juvenil, o semblante parecia de uma pessoa que viveu por
séculos.
O nobre só desviou a atenção dela quando o rei se postou ao lado da
filha. Um sorriso cordial nasceu no rosto belo então, fazendo com que se
curvasse numa pequena reverência para os pais de Adhara.
— Vossa Majestade — Olhou de Heth para Liuva. — É um prazer
recebê-los no meu castelo.

Zephyr podia sentir a presença dela, como se fosse um pequeno


relicário de luz em cima de um tecido escuro e sem graça, a reluzir e tomar
tudo. Quando pousou os olhos sobre a princesa, observou que ela havia o
reconhecido. Sorriu diante daquilo.
Conforme se aproximava, notou que Adhara avaliava cada passo que
dava em sua direção. Fez uma reverência para o rei e a rainha, mesmo que
seu instinto o pedisse para não fazê-lo. Um Elemental nunca se curvava a
um humano, mas Zephyr queria manter sua identidade oculta. Portanto,
comportar-se como um nobre pedia que enxergasse o rei Heth como a maior
figura de poder dali.
O Elemental estava inebriado diante daquela alma que já considerava
sua. O poder dentro de si dançava pelas veias, enjaulado e louco para ser
liberto. Zephyr podia senti-lo, inquieto e viajando por suas entranhas, mas
obrigou-se a contê-lo enquanto encarava a princesa. Mesmo que a energia
dela o incitasse, chamasse a escuridão dentro de si.
Ele se aproximou dela e, com delicadeza, pegou a mão da garota para
depositar um beijo ali. Os lábios se demoraram na pele quente, pegando-o
de surpresa quando o aroma de peônias foi sentido. Zephyr reconhecia
aquele perfume, havia o buscado obstinadamente em Atman antes mesmo
de descer ao mundo corpóreo.
Aquele cheiro ficou em sua memória desde que foi visitado pela
misteriosa mulher, nos sonhos. A boca salivou, desejando passar a língua
por aquela pele, mas conteve-se mais uma vez, as vistas nubladas quando os
lábios a deixaram.
— Princesa Adhara… — A voz estava rouca, vislumbrando cada
parte do corpo dela.
Quando a viu pela primeira vez, usava calças de couro e blusa de
veludo. Agora, com um vestido sulista a abraçando, Zephyr conseguia ver
cada curva generosa daquele corpo. Como os seios eram cheios e pareciam
macios…. — Espero que sua estadia seja agradável nas minhas terras.
Ela apenas acenou antes de Zephyr desviar os olhos para encarar o rei
num claro convite.
— Vamos, Majestade?

Adhara observava os criados andando de um lado para o outro, alguns


carregando os baús para cima, outros pareciam limpar as janelas. O castelo
era grande como todos os que já havia visto, nem que fosse de relance. As
pedras claras revestiam as paredes de dentro também, com lareiras por toda
parte.
O fogo parecia incapaz de deixar aquele lugar quente. Adhara sentia
sua pele se arrepiar, mesmo que estivesse em segurança ao lado dos pais.
Apesar de não haver criaturas naquelas terras e os campos a
lembrarem das florestas sulistas antes do Declínio, a sensação de perigo não
a deixava, como se o mal ali fosse outro.
Mais adiante, Zephyr andava ao lado do pai com calma, mas de vez
em quando ele a olhava de relance, curioso. Por mais que tentasse ser
cordial e educada, como mandam as regras da corte, precisava admitir que
não conseguiria devolver aquela atenção. Não por timidez, mas por medo.
Entraram na sala de jantar, onde uma refeição já estava posta. A mesa
continha diversos pratos, mas o estômago de Adhara roncou quando sentiu
o cheiro do ensopado. Escolheu a cadeira ao lado da mãe, dando ao pai a
cadeira junto ao anfitrião. Sabia o objetivo do pai ao viajar para tão longe e
não queria interferir na conversa que seria travada ali. O rei nunca foi de
esperar, por isso nem se surpreendeu quando ele perguntou ao nobre como
mantinha as criaturas afastadas.
— Tenho pontos estratégicos, ao longo das terras, que são vigiados
por soldados de extrema confiança.
A voz dele era firme mas, mesmo que Adhara tivesse real interesse
naquela parte da conversa, percebeu que sentia-se um pouco aérea diante
daquilo tudo. Colocou a culpa no cansaço.
As janelas que antes mostravam um pálido pôr do sol, escureciam,
indicando o quanto já estava tarde. Experimentou o ensopado e quase
gemeu de prazer quando o sabor foi sentido. Aquilo lhe aqueceu o corpo,
permitindo-a relaxar pela primeira vez desde que havia pisado ali.
Pegou-se observando Zephyr. Ele não havia tocado na comida, apesar
de bebericar vez ou outra seu vinho. Conversava com tranquilidade com o
rei, como um bom estrategista faria. Adhara percebia o rosto animado do
pai, como se aquele nobre estivesse lhe dando esperança pela primeira vez
desde o Declínio. Mesmo que fosse contra seu instinto, que lhe dizia para
tomar cuidado, sentiu certo alívio ao ver o pai daquela maneira.
Voltou sua atenção ao prato e nem percebeu quando os olhos escuros
do nobre desviaram para ela.

O rei parecia ávido por informações, como apenas um humano tolo


ficaria ao achar que encontrou uma possível solução para seu problema.
Naquele momento, Heth o via como um estrategista e Zephyr sabia que
conseguiria manter aquela impressão por muito tempo.
A verdade, no entanto, era outra… muito mais simples do que toda
aquela explicação dada ao rei: os demônios fugiam quando sentiam o seu
poder, maior que a vinda do submundo. A energia de Zephyr, mesmo
contida, era densa e chegava sem dificuldade a qualquer criatura
sobrenatural, cobrindo as terras dele.
Quando desceu de Atman, o Elemental precisou diminuir o próprio
poder para ficar neutro no mundo corpóreo. Com isso, sabia que os irmãos
não conseguiriam achá-lo por um tempo. Em contrapartida, eles também
estavam escondidos aos seus olhos.
Isso, de forma alguma, o deixava agir mais livremente, apesar das
ressalvas. Afinal, sabia que as ancestrais das bruxas podiam alcançá-lo de
outra maneira, caso quisessem. Por isso, cada um dos seus passos era dado
com cautela.
Os olhos se desviaram do rei quando Zephyr começou a perguntar
sobre a viagem para Liuva e a impressão que tiveram sobre as terras.
Enquanto isso, encarou a princesa, que desfrutava do ensopado. Podia sentir
a pureza daquela garota, a energia limpa e clara que brigava com a que ele
tinha dentro de si. Era capaz até mesmo de saborear aquela energia
palpável.
Um desejo incômodo nasceu entre suas pernas, fazendo-o se mexer na
cadeira para tentar afastá-lo. À medida que a observava, lembrava-se de
Aelua e como a alma era idêntica à daquela garota, quebrando um padrão
até o momento estabelecida em Atman.
Almas nunca seguiam a mesma aparência do corpo a qual
pertenciam.
Zephyr podia ver os cabelos longos e ondulados na ponta, os olhos
atrevidos e os lábios doces. Sabia que as coxas de Adhara eram grossas
iguais às de Aelua. Ambas possuíam quadris largos, cintura fina e seios
redondos, cheios.
Imaginou como ficaria linda enquanto se mexesse em cima dele, o
pau enterrado nela. À medida que passava mais tempo sentado ali, com a
princesa tão próxima, imagens do sonho lhe vinham à mente, de forma cada
vez mais claras.
Aquilo podia ser uma armadilha. Seriam as ancestrais brincando com
ele?
Voltou a atenção para o rei, tentando manter as aparências e não se
afundar naquelas dúvidas momentâneas. Falhar, para Zephyr, nunca foi uma
opção.

Os pais já tinham se retirado há algum tempo, mas antes Liuva


solicitou que Adhara não deixasse o quarto. A princesa observou o cômodo
que havia sido reservado para ela. As paredes possuíam um tom azul que a
lembrava do céu de Dhárg após uma tempestade de neve, com detalhes em
madeira clara.
Havia uma cama grande com dossel, o tecido a cobri-la em veludo de
azul, mais escuro que as paredes do quarto. A lareira estava acesa e seus
baús já estavam vazios ao lado do grande armário, onde toda a sua roupa
havia sido acomodada.
Mesmo que estivesse cansada e louca por um banho quente de
banheira, Adhara deu meia volta e saiu do quarto, curiosa demais para
permanecer ali. Gaut, que foi posto como guarda pessoal dela durante a
estadia ali, seguiu-a assim que fechou a porta.
Como já a conhecia, em nenhum momento a repreendeu, já
acostumado às decisões estranhas da princesa ao quebrar protocolos e
comportamentos esperados. Ela andou pelos corredores escuros, respirando
aliviada por encontrar-se aparentemente sozinha por ali.
Necessitava sentir o vento, ansiava por respirar direito e, sobretudo,
precisava de um tempo para compreender tudo o que havia passado desde
que pisou naquele castelo.
Apesar do manto claro cobrir os gramados, não nevava naquela noite.
Ela então fechou o tecido em volta do corpo e andou um pouco pelos
arredores, com Gaut a copiar cada passo dela.
Percebeu que estava próxima a um jardim. Aproximou-se depressa,
sem conseguir conter a curiosidade quando pousou os olhos sobre as flores
de pétalas escuras, possuindo uma beleza única. A sobriedade daquela
floração combinava com a energia de Dhárg após o Declínio, deixando
aquele lugar belo e triste ao mesmo tempo.
Adhara não via flores nascendo há anos fora do jardim da mãe.
Mesmo assim, as de lá pareciam perder a cor à medida que as luas
passavam, ao contrário dali.
A energia mudou de repente, fazendo-a sentir um nó na garganta.
Nem precisava se virar para saber que ele estava próximo. Continuou então
observando o jardim, esperando para ver o que Zephyr faria.

Ele se aproximou dela e o guarda deu um passo à frente, na tentativa


de manter a distância entre os dois. A princesa tocou o braço de Gaut
gentilmente, fazendo-o parar.
— Pode ir — escutou-a sussurrar. — Você precisa descansar.
— Tenho ordens de ficar ao seu lado. — O guarda a encarou, como se
pedisse desculpas pelo inconveniente.
— Ele é nosso anfitrião. — Adhara observou.
O guarda não pareceu convencido, mas se afastou, dando a devida
distância para que conversassem. Zephyr ficou surpreso em como a garota
era corajosa em dispensar proteção. Qualquer humano, mesmo que
disfarçasse bem, podia sentir o seu poder, reagindo àquilo com medo e
receio.
A princesa, ao contrário, não parecia ter a mesma opinião. Voltou a
atenção para o jardim, observando as flores com interesse genuíno. Zephyr
sabia o motivo, já que aquela paisagem era peculiar
— Espero que esteja aqui apenas pelo jardim e não porque minha
recepção foi ruim. — A voz dele tinha um leve tom de brincadeira, mas a
princesa permaneceu séria, encantada com o que via. — Elas já estavam
aqui quando ocupei o castelo. Costumam causar estranheza em quem visita
o jardim, mas parecem gostar de você.
Ele estava mentindo, era claro. As peônias eram vermelhas quando
ele tomou aquele lugar para si. Zephyr havia se aproximado das flores em
busca do aroma que tanto o fascinava, fazendo com que as pétalas tivessem
tomado aquela cor assim que se aproximou.
— Não vejo flores em um jardim assim há anos. — A voz dela
parecia triste, como se refletisse a escuridão que cobria o seu reino.
Ele se aproximou e tocou o ombro dela com cuidado. Viu o guarda se
remexer onde estava, mas este se limitou àquilo, como se dissesse a Zephyr
para que fosse prudente. O Elemental precisou conter a vontade de deixar
escapar o seu poder sobre aquele humano.
— Me deixe protegê-la, Adhara.
Ele viu surpresa nos olhos dela quando a princesa finalmente parou de
observar o jardim e o encarou.
— O castelo principal de Dhárg é cercado por montanhas. As
criaturas não conseguiriam escalá-las.
— Como sabe disso? — Ao ver o rosto dela ser coberto por
incertezas, acrescentou. — As criaturas estão cada dia mais afoitas por
carne e sangue. Devo dizer que isso está mais escasso à medida que as luas
passam.
— Por que procurariam em um dos lugares de mais difícil acesso? —
ela retrucou, mas Zephyr percebeu que nem ela acreditava com certeza estar
a salvo.
— Você é a princesa do Sul. Possui um alvo nas costas.
— Achei que eram irracionais.
Zephyr calou-se diante daquilo. Mesmo se quisesse, não conseguiria
explicar o motivo pelo qual os demônios escalariam as montanhas mais
perigosas do Sul apenas para sentirem o gosto do sangue dela. Eles seguiam
o rastro da energia, não o corpo. Degustar os fluídos vitais de um ser com a
energia tão limpa e sagrada seria como um banquete para eles.
— Vá descansar, princesa. Amanhã sairei com seu pai para mostrar as
fronteiras. Gostaria também que conhecesse o castelo. — Zephyr mudou de
assunto, falando com calma até notar que os ombros dela relaxaram.
Depois de um tempo, Adhara assentiu e se afastou do jardim com o
guarda em seus calcanhares, deixando-o sozinho. Zephyr não permitiria que
ela fosse mais uma vítima do submundo. Precisava dela viva para capturar a
alma que tanto o interessava em Atman.
CAPÍTULO 10

Mesmo com a neve caindo forte naquele lugar, o cheiro de sangue e


carne podre sobressaíam. Merik não se incomodava com aquilo, na verdade
tentava ignorar o próprio instinto de apreciar aqueles aromas como apenas
um Alto o faria.
Permaneceu quieto para tentar escutar algo, enquanto o seu garanhão
cortava caminho entre as árvores de troncos ressequidos. Os olhos escuros
prescrutavam com atenção cada espaço que conseguia através da densa
neblina, às vezes encontrando demônios pelo caminho. Assim que o viam,
as criaturas paravam de mastigar a carne das vítimas e faziam uma
desajeitada reverência, com as costas deformadas e curvadas. Mas Merik
não era tolo, percebia como eles farejavam o ar, sentindo a energia que
parecia acompanhá-lo.
— Sei que estão excitados ao sentir a caminhante em mim. — O rosto
dele era cruel ao falar com os demônios. — Podem esquecer.
As criaturas gemiam e se afastavam, submissas, evidentemente
contrariadas.
— Onde está Igrik? — O Sombrio questionava em voz alta,
autoritário.
Nenhum deles parecia entender a pergunta e Merik acreditou naquilo.
O traidor não seria tolo o suficiente para andar pelo mundo corpóreo e
liderar suas criaturas. Com o rompimento da fenda, Igrik sequer precisou
fazer muito para que o mundo corpóreo fosse coberto de escuridão. Bastou
deixar os monstros soltos, espalhando-se por todo o mapa. Eles mesmos
fizeram o trabalho sujo.
Algo dizia a Merik que ainda teria de percorrer muitas terras para
encontrá-lo.
Naquele momento, não sentia a energia de Igrik, era um fato, mas
vibrava ao redor dele a de um ser ainda mais perigoso e cruel. O poder de
Zephyr estava controlado e discreto, mas presente. Apenas um tolo o
confrontaria.
Recusava-se a ir atrás do Elemental. Além disso, caso o fizesse,
precisaria deixar Alys sozinha por mais tempo e Merik estava sem
disposição alguma para aquilo. A caminhante havia se tornado especial para
ele desde que desceu de Atman com uma missão peculiar a cumprir e a
adaga nas mãos.
Havia entre eles uma ligação única, que ninguém a não ser ambos
poderia definir. Tanto que a garota havia parado de envelhecer desde que
aceitou o destino ao lado dele. Sem saber a causa, Merik precisou recorrer
às oráculos das filhas de Atman para saber o motivo, e foi Srala, a bruxa
velha e maldita, que havia lhe trazido respostas satisfatórias, mesmo sendo
vagas: Alys estava destinada a guiá-lo em todo o seu tempo como Sombrio.
Saber que ela estaria ao lado dele por incontáveis luas fez com que
um peso saísse do seu peito. Temia a velhice precoce dos humanos, perdê-la
tão cedo. Contudo, como estava vinculada a ele, isso tinha deixado de ser
um problema.
Só que outras questões surgiram, como o fato do alvo discreto que a
garota tinha anteriormente nas costas ter aumentado, e muito. Controlando a
companheira do Sombrio, qualquer pessoa poderia ter acesso ao trono de
obsidiana. Mesmo que Merik se recusasse a admitir, Alys era muito mais
importante para ele do que a coroa do submundo.
Pelo menos a adaga de Jyot estava segura com ela… mas Merik sabia
que em breve teria que fazer uso da arma se quisesse matar Igrik. Apenas
aquela lâmina poderia matar um Alto. Fez uma careta, frustrado com sua
empreitada.
Olhou para os demônios, engolindo nacos de carne do que parecia o
resto de uma perna humana. Puxou com delicadeza as rédeas do seu
garanhão, dando meia volta e deixando-os se banquetearem.

Adhara sempre teve uma relação aberta com a mãe. Quando cresceu e
soube que ser uma princesa não era apenas comparecer a jantares suntuosos
e comprar os melhores cavalos, procurou a mãe para conselhos, e encontrou
nela a melhor amiga. Liuva nunca havia ocultado nada de Adhara, além de
todos os processos diplomáticos, o autêntico encargo de uma princesa era
perpetuar o legado do pai, e para tal Adhara precisaria se unir em
matrimônio com um nobre e formar uma família, além de governar o Sul.
Para isso, Adhara desde criança foi preparada para ocupar o seu cargo.
Estudou todos os reinos maiores e menores do mapa, independente se
fossem de Dhárg ou de Fhár, bem como os mais longínquos. Conhecia
ainda boa parte das árvores genealógicas das famílias mais importantes e,
acima de tudo, interessava-se pelo que o povo sulista pensava. O que
achavam do pai? Para eles, Heth era um bom rei? Quais eram as
principais dores e inquietações deles? Ao se interessar pelos plebeus,
Adhara passou a ser estimada e amada pelo povo.
Buscou também conhecer a história, analisando como seus
antepassados lidaram com as dificuldades.
Por isso, assim que a mãe lhe chamou para conversar, ficou calada,
apesar de saber o que aconteceria. Esperou atenta que Liuva tomasse a
iniciativa.
— Adhara, sabe que a sua segurança está acima de qualquer outra
preocupação?
— Sei disso… — murmurou enquanto passava o dedo na saia de
veludo do vestido, fazendo desenhos aleatórios com as mudanças de tons do
tecido.
— As criaturas estão cada vez mais próximas do castelo principal. —
A rainha deixou a notícia no ar. — Heth teme que em breve comecem a
tentar subir as montanhas.
Adhara lembrou-se da conversa que havia tido com Zephyr algumas
noites atrás e como ele quase predestinou aquilo. Engoliu em seco.
— Não acredito que consigam atravessá-las. — Ela colocou a própria
opinião em voz alta, a mesma que havia falado a Zephyr. — O castelo
principal é o lugar mais seguro de Dhárg.
Liuva pousou a mão em cima da dela, obrigando Adhara a encará-la.
— O lugar mais seguro do nosso reino é aqui, minha filha. — A
princesa percebeu o quanto custou para sua mãe falar aquilo. Diante do seu
silêncio, Liuva continuou. — Você viu como as terras dele são. Não há
criaturas, parece que estamos em um ponto tão distante do mapa que às
vezes me esqueço do som que aquelas bestas fazem.
Adhara sentiu a mão da rainha estremecer sobre a dela, incomodada
com a lembrança. Apertou-a, a fim de transmitir conforto. Liuva odiava os
gritos que as criaturas davam e, mesmo que o castelo principal estivesse
acima de qualquer vila, tinham a sensação de que aqueles sons ecoavam
com o vento.
A princesa pensou se seria prudente dizer a mãe que havia conhecido
Zephyr algum tempo atrás, que ele rondava as vilas principais, mas logo
rechaçou a ideia. A rainha ia querer saber em quais circunstâncias Adhara o
viu e, para isso, teria de contar sobre suas rondas escondidas para matar as
bestas, além do fato de ter sido salva por ele ao se deparar com uma
emboscada. Se ouvisse aquilo, Liuva a trancaria numa jaula pelo resto dos
seus dias.
Você é a princesa do Sul. Possui um alvo nas costas.
A voz dele invadiu os pensamentos dela, fazendo-a morder o lábio.
Não queria admitir a si mesma, mas desde que confrontou as criaturas de
perto, percebeu que elas reagiam à sua presença de uma forma diferente.
Mais, digamos, afoita. Aquilo também ocorreu com a besta presa na
masmorra, a que o homem misterioso cortou facilmente.
Lembrar daquilo a fez tomar uma decisão. Adhara olhou para a mãe.
— Sei o que vai me perguntar. — Ao ver o rosto de Liuva ser coberto
por expectativa, acrescentou. — Eu fico.
O rosto da mãe passou de surpreso para incrédulo em pouco tempo.
Adhara nem conseguiu conter o sorriso.
— Adhara... eu mesma demorei para tomar essa decisão. Para mim,
não tê-la por perto será um conflito que terei de lidar diariamente… confiar
sua segurança a um nobre que mal conheço… — Ela parecia travar uma
batalha interna, mas depois voltou a olhar para sua filha. — Por que sinto
que está escondendo algo de mim quando toma essa decisão de forma tão
imediata?
Adhara desviou os olhos da mãe, observando as chamas da lareira.
Respirou fundo.
— Desde o início do Declínio, vejo você andando pelos corredores do
castelo principal com medo. Escuto seus passos pelos corredores de
madrugada e sei que está próxima ao meu quarto para saber se estou bem.
— Voltou a fitá-la. — Eu cansei, mãe. Quero que consiga dormir bem,
sabendo que estou em segurança… que meu pai deixe de se preocupar com
isso e lide com as necessidades de seu povo no Sul. São elas que estão
sofrendo mais com essa carnificina que tomou nosso reino.
Os olhos de Liuva marejaram e a rainha abraçou a filha. Adhara ficou
aninhada ali por minutos, sentindo o cheiro da mãe, sabendo que não teria
aquele carinho tão cedo depois daquela decisão tomada. Podia ter sido
precipitada, mas havia algo em Zephyr que fugia do comum. Era a mesma
sensação sentida quando viu o homem misterioso nas masmorras. A chave
para toda aquela escuridão estava na energia turva que dançava neles, como
um convite.
As duas permaneceram abraçadas por muito tempo. Adhara
questionando-se sobre a acurácia de sua decisão, Liuva acreditando que
renunciar à filha havia sido a escolha mais sensata, sem a mínima noção de
que, ao priorizar a segurança da filha em relação às criaturas, tinha confiado
ela a um monstro muito mais terrível.

Gavin e Videric aguardavam as ordens de Domenico. O mestre dos


vampiros podia senti-los o olhando enquanto escrevia uma carta às pressas
para ser entregue à Velaria. A vampira, mesmo no Sul, sempre lhe mandava
notícias, mesmo que esparsas.
Domenico sabia que precisava confiar mais em seus infiltrados do
que na puro-sangue. Ela trabalhava apenas para si mesma, e quando o
paradeiro de Igrik foi dado como desconhecido e o Sul mergulhado em
escuridão, percebeu que as cartas foram ficando menos frequentes.
Velaria estava com medo e Domenico não lhe tirava a razão. Os Altos
estavam ansiosos pela parcela do mundo corpóreo ofertado pela quebra da
fenda. Só não subiram ainda devido à presença do Sombrio, mas ele sabia
que aquilo não demoraria muito para acontecer.
Selou a carta com o sinete e entregou a Gavin, que fez um pequeno
gesto antes de enfiá-la no bolso interno da capa. Entregaria a missiva para
um vampiro de confiança. Domenico proibiu as dois de viajarem para o Sul,
apenas quando fosse muito necessário. Caso aquela guerra piorasse, queria
aqueles que confiava perto de si.
— Recebi informações de que a princesa Adhara está viajando com a
comitiva real para visitar um nobre. — Domenico bateu com o dedo numa
carta que estava em cima de seus pergaminhos. — Acredito que seja
Zephyr. — Passou a mão no rosto em um sinal raro de cansaço. — A Coroa
Vermelha já foi informada e disse que, a partir do momento que Adhara
estiver sob domínio dele, se tornará inalcançável para as filhas de Atman.
— O que poderemos fazer? — A voz de Gavin parecia alarmada.
— Preciso de um contato dentro do castelo de Zephyr.
Um silêncio estranho tomou a sala de reuniões, até que Videric
pigarreou.
— Domenico, sabe que não vamos conseguir enfiar um vampiro nos
domínios do Elemental.
Ele sabia daquilo, mas precisava escutar outra opinião, ter a certeza
de que estava sendo ousado demais. Pensou até em recorrer aos humanos,
mas não confiava neles a ponto de dar uma missão daquele porte.
Olhou com atenção para os dois vampiros a frente e respirou fundo.
— Vou precisar conversar com Merik. Chame o Sombrio para a
Fortaleza o quanto antes.

Adhara sentiu dor no peito ao se despedir dos pais naquela manhã


cinzenta. Antes da partida, Zephyr já havia assegurado que a estrada estava
limpa para uma viagem segura e providenciou cavaleiros para acompanhá-
los. Alertou que poderiam encontrar criaturas ao deixar suas terras, embora
a chegada até ali não tenha sido conturbada.
Algo lhe dizia que apenas o fato dela ficar ali deixaria os pais mais
protegidos. Estremeceu quando sentiu a mão enluvada de Zephyr tocando-
lhe o ombro com delicadeza. A presença dele parecia intensa demais para a
princesa naquele momento, mas Adhara se manteve firme e decidiu ignorar
a sensação.
Gaut postou-se próximo a Adhara, calado mas atento a cada
movimento da princesa. Ela sabia que o guarda desconfiava de Zephyr.
Uma das poucas exigências de Heth para que a princesa ficasse foi que a
segurança dela fosse feita exclusivamente por um homem seu. Adhara
achou que aquilo faria o nobre mudar de ideia, mas ficou surpresa quando
concordou.
Liuva olhou para a filha uma última vez antes da carruagem sair, em
meio aos cavaleiros que acompanhavam o cortejo em filas, alguns antes e
outros depois. Aquilo lhe deu vontade de chorar, mas se conteve. Sentiria
falta deles, mesmo sabendo que poderia visitá-los sempre.
— Vamos… — A voz de Zephyr fez um calafrio percorrer o corpo da
jovem. — Está frio aqui fora.
Ela desviou a atenção dos grandes portões, onde a carruagem já
desaparecia em meio à neve e neblina e o seguiu. Quando a porta de
madeira foi fechada atrás de si, viu-o se aproximar. Gaut fez o mesmo e o
nobre ofereceu-lhe um olhar afiado, fazendo com que o guarda colocasse a
mão no cabo da espada.
— Não preciso que fique tenso todas as vezes em que me aproximar
da princesa. — Um sorriso enviesado nasceu no rosto belo. — Eu pretendo
fazer isso com frequência.
A forma aberta com que disse aquilo pareceu deixar Gaut ainda pior.
Adhara apenas olhou para o guarda e gesticulou para que esquecesse a
provocação. Zephyr voltou a atenção para a princesa então. Com um sorriso
mais leve, dirigiu-lhe a palavra.
— Acredito que ficará feliz em visitar os estábulos amanhã. — Ao
notar o rosto confuso dela, acrescentou. — Mandei trazer sua égua para cá.
Apenas deixe-a descansar um pouco, já que a viagem foi cansativa.
Um sorriso nasceu no rosto de Adhara sem que conseguisse se conter.
Deu um gritinho, olhando para Gaut, que compartilhava da sua alegria. Só
depois voltou a atenção para Zephyr.
— Não sei como agradecer…
Ele se aproximou, olhando para o guarda em uma clara provocação,
mas Gaut ficou onde estava. Zephyr pegou a mão da princesa e a levou aos
lábios, cheio de segundas intenções. O toque foi frio, mas não foi isso que
fez um arrepio percorrer o corpo dela.
— Jante comigo amanhã.
Adhara assentiu e Zephyr fez uma pequena mesura.
— Preciso me ausentar para cuidar de algumas pendências que me
aguardam. Sinta-se à vontade para fazer o que quiser. O castelo é seu.
Virou-se então e pegou o corredor da ala leste, desaparecendo logo
depois. Adhara permaneceu ali, observando-o de onde estava, o fantasma
do beijo que havia dado em sua mão ainda lhe aquecendo a pele.
Algo dizia para a princesa que sua vida mudaria a partir daquele dia.
CAPÍTULO 11

Adhara acordou com a primeira claridade da manhã. Remexeu-se


embaixo dos cobertores macios e suspirou. Se fosse possível, permaneceria
ali por mais tempo.
Pegou-se pensando no que os pais deveriam estar fazendo. O rei, no
castelo principal, governando Dhárg e auxiliando o povo. Liuva estaria
sentada ao lado dele, dando-lhe forças e tomando decisões que requeriam
eficiência e pragmatismo. Já ela, poderia se dar ao luxo de ficar trancafiada
em terras desconhecidas, no castelo de um nobre que havia prometido ao
pai mantê-la a salvo.
Adhara esperava que aquilo fosse verdade.
Jogou os cobertores para o lado e se levantou da cama. Descalça,
andou até a janela e observou o mundo lá fora. Uma fina camada de neve
recobria os muros de pedra do castelo e a grama, embora não estivesse
nevando naquela manhã.
Duas criadas entraram no quarto com discrição para acender o fogo
da lareira e separar as roupas de Adhara. A princesa observava aquele
movimento, curiosa. Havia deixado as próprias ajudantes no castelo
principal, pois sabia que estariam mais protegidas e acolhidas em um lugar
onde estivessem acostumadas. Aquelas pareciam mais pálidas que o
normal, mas sorriram para a princesa, os olhos brilhando enquanto abriam
os armários.
— Princesa Adhara, lorde Zephyr mandou os melhores vestidos para
você. — Ela retirou um em tons de azul e lhe mostrou. — O que acha?
Adhara não era muito adepta de vestidos quando montava, já que a
deixavam sem espaço para movimentar.
— Não há calças?
A criada se mostrou horrorizada com a pergunta, mas colocou o
vestido de volta para procurar o solicitado. A princesa foi surpreendida
quando lhe foi estendida a vestimenta pedida.
— A senhorita prefere esse? Lorde Zephyr disse que mandará trazer
sua égua.
Adhara engoliu em seco e se aproximou. A calça era de couro escuro,
reforçada no interior das coxas, onde a sela a prensava. A outra criada
segurava uma blusa de algodão e um gibão de veludo também escuro, com
gola alta.
Pegou as roupas e sentiu a maciez do tecido. Depois, começou a se
vestir. Foi ajudada com os botões laterais do gibão e as botas. Entregaram-
lhe o par de luvas e um manto de pelos brancos.
— Quer que a gente lhe traga o desjejum ou comerá na sala de jantar?
— Uma delas a questionou.
— Não comerei agora. Se puderem me trazer uma fruta…
As criadas assentiram e saíram do cômodo. A princesa nem as
esperou, saindo logo em seguida. Quando atravessou a porta, Gaut a
aguardava do outro lado. Ela o cumprimentou com bom humor, já que
gostava de ver um rosto familiar em meio à tantos desconhecidos.
Desceu as escadas e ignorou a vontade de explorar cada entrada que
desembocava nos corredores amplos. Depois de um tempo, conseguiu achar
a porta principal. Dois criados abriram assim que se aproximou, e pôde
respirar o ar da manhã.
Estava frio, como toda manhã em Dhárg. A neve nunca derretia no
Sul e, mesmo que se sentisse em casa naquele inverno eterno, sabia que
aquela temperatura era incomum.
Explorou um pouco as partes externas do castelo, mas não ficou
surpresa quando seus pés a levaram para o jardim peculiar de flores negras.
Havia algo naquelas pétalas que a chamava. Nem era a cor única, mas uma
energia que parecia atrair o seu olhar. Adhara se conteve para não retirar as
luvas e acariciá-las. Enfiou as mãos no bolso interno do gibão e percorreu
os olhos pelas áreas comuns, tentando desviar o rosto dali.
Havia um silêncio bem-vindo no castelo que, de certa forma, a
deixava tranquila, mesmo estranhando a quantidade parca de guardas que
fazia a ronda. Era como se ali tivesse uma sensação real de liberdade.
Aquele jardim a lembrava de como era o castelo principal antes do
Declínio. Uma tranquilidade bem-vinda, a claridade da manhã, a neve fofa
sob seus pés. Apenas a promessa de um dia comum.
Voltou a andar pelo perímetro do castelo. Não foi difícil achar os
estábulos. Uma grande casa de madeira escura se projetava mais ao sul dos
muros. A princesa andou até lá e enfiou-se pela porta da frente. Gaut não a
seguiu, mas permaneceu do lado de fora, trocando conversas com dois
cavalariços que pareciam curiosos com a presença da princesa.
Adhara escutou um relincho baixinho e sorriu, reconhecendo aquele
som. Nyra estava em uma espaçosa baia. Parecia feliz com o feno fresco e o
cobertor jogado no torso, mas esqueceu aqueles luxos assim que viu a dona.
A garota ergueu o braço para que o animal colocasse o focinho gelado sob
sua mão. Acariciou os pelos do rosto da égua, que pareceu apreciar o
carinho.
— Aqui você poderá cavalgar pelos campos sem ter medo de ser
atacada.
A voz fez com que Adhara pulasse. Nyra teve a mesma reação,
ficando inquieta na baia.
Ele estava afastado das duas, mas assim que se virou, a princesa
conseguiu notar a intensidade dos olhos escuros a fitá-la. Zephyr se
aproximou de Adhara e Nyra relinchou. A jovem olhou para a égua, como
se repreendesse o seu comportamento. Estendeu a mão para tocar na crina
do animal e tentar acalmá-la.
Zephyr correu os olhos da égua para a garota.
— Sei que gosta de cavalgar. Estava fazendo isso quando a vi pela
primeira vez, lembra?
Adhara assentiu, ainda acariciando Nyra. Olhou para ele com
curiosidade.
— O que estava fazendo nas terras próximas ao castelo principal?
Zephyr nada respondeu, um sorriso malicioso nascendo em seu rosto.
A jovem não conseguiu interpretá-lo, mas também nem insistiu. Sabia que
precisava de tempo para arrancar algo daquele homem. De qualquer forma,
sentia-se grata por ele ter pensado em trazer Nyra para Adhara passar
melhor o tempo naquele castelo. Isso a fez lembrar-se de algo.
— Terei meu arco?
Zephyr levantou as sobrancelhas e Adhara se sentiu de certa forma
incitada a desafiá-lo. Sem responder, ele apenas abriu um armário de
madeira que estava próximo à baia de Nyra e retirou dali o arco da princesa.
A corda estava gasta e as penas eram amarronzadas, mas a madeira das
flechas era escura e brilhante. Adhara sempre talhava a primeira letra do
nome em cada uma, como forma de marcá-las.
Zephyr entregou o arco e a aljava para a garota.
— Obrigada… — Adhara não soube como reagir.
— Seu pai não queria que ficasse desprotegida, mesmo em terras
onde o perigo não existe. — Ele passou o dedo na madeira de uma das
flechas e olhou para ela logo em seguida. — Aqui você nunca precisará se
refrear…
Ela engoliu em seco e fingiu não entender a provocação. Um sorriso
de lado nasceu nos lábios dele. Logo depois o senhor daquelas terras lhe
deu as costas.
— Aproveite os campos, princesa. Irei encontrá-la em breve.
— Como sabe onde vou estar?
Zephyr apenas continuou andando pelo corredor coberto de pedras e
feno. Saiu do estábulo, deixando-a só, sem lhe dar uma resposta.

Sentia o ar gelado bater no rosto, o aroma único das árvores úmidas, a


claridade da neve e a sensação inesquecível de liberdade. Nyra corria pelo
campo, as narinas infladas soltando nuvens de vapor enquanto Adhara dava
o melhor de si para atravessar o maior pedaço de terra que conseguisse.
Eram uma só naquele momento.
Tinha muito tempo que a princesa não fazia aquilo. Precisava admitir:
cavalgar sem se preocupar se seria atacada, sem olhar para os lados a todo o
momento ou ficar atenta a gritos animalescos era a melhor sensação do
mundo.
Pediu a Gaut que ficasse na parte de baixo da floresta e a esperasse. O
guarda não apreciou aquele pedido, contudo tinha consciência de que a
princesa necessitava daquele momento, por isso concordou.
Adhara incitava Nyra com toques sutis, sem precisar de muito para a
égua entender o a sua vontade. O animal pegou o ritmo e não parou quando
o campo se transformou em um lugar mais íngreme. Começaram a subir e a
princesa sentiu o frio ficar mais intenso, bem como aumentar a ventania,
que jogou o capuz para trás, fazendo com que a fita em seu cabelo saísse.
As mechas castanhas dançaram em volta do seu rosto, mas ela não
parou em momento algum. Nyra conseguiu alcançar o topo da pequena
montanha e Adhara respirou fundo quando os olhos correram por toda a
extensão de terra.
As montanhas de Dhárg eram facilmente vistas dali, os picos num
tom alaranjado leitoso, os raios de sol batendo na neve e refletindo uma
claridade que ela não via há muito tempo. Desceu da égua e se aproximou
do abismo adiante, os olhos ainda repletos de admiração.
A névoa dançava em volta dos picos, cobrindo parte das estradas
comuns e copas das árvores, fazendo com que deixasse de reconhecer
alguns pontos mais escuros, talvez pequenas vilas e castelos menores. Será
que ainda havia vida por lá? O coração doeu em pensar que suas terras
estavam cobertas pela escuridão.
Nyra relinchou e parecia inquieta, batendo o casco na neve, os
respingos brancos salpicando a calça de Adhara. A verdade era que a garota
estava tão absorta nas montanhas que nem o viu se aproximar.
— Espero que essa fisionomia triste seja de cansaço da cavalgada.
Adhara se virou para observá-lo. Zephyr descia do garanhão de pelo
escuro, as botas batendo firmemente na neve. Aproximou-se da princesa, o
vento gelado batendo no rosto dele, fazendo com que os fios negros
dançassem. Não usava capa e parecia nem sentir a temperatura daquela
montanha. Ela voltou a olhar para as montanhas à frente, ignorando-o.
— É pelas minhas terras — respondeu à observação dele.
Zephyr não fez qualquer comentário, apenas parou atrás dela e
inclinou o corpo em sua direção.
— O que achou? — A voz era um sussurro e fez com que se
arrepiasse.
Adhara sentia a presença dele e não sabia se aquilo era medo,
incômodo ou atração. Podia ler as pessoas com facilidade, mas com Zephyr
seu dom parecia não se aplicar. A energia dele era diferente de qualquer
uma que já sentiu. Afaste-se, o subconsciente gritava, como da primeira vez.
Mas por que não conseguia se mexer quando estava tão próximo?
— Há tempos não vejo uma terra tão pacífica. — A voz dela soou
entrecortada, ignorando as reações teimosas do próprio corpo. — Qual é o
limite dela?
Adhara não sabia se havia sido clara, mas sentiu-o se aproximar mais.
Esticou o braço próximo ao ombro da garota, apontando para um lugar em
meio àquelas montanhas.
— Consegue ver aquelas árvores mais altas, próximas a uma
montanha rochosa? — O hálito quente dele batia no rosto de Adhara,
fazendo-a engolir em seco. Ela assentiu. — Tome cuidado, há lagos
traiçoeiros por todo o perímetro. Mas estará protegida se respeitar até
aquele limite.
O braço se foi, a presença dele também. Adhara se virou para encará-
lo. O rosto de Zephyr parecia mais pálido com a claridade, o que deixava
seus olhos mais calorosos, mesmo com o perigo que dali emanava.
— Poderei visitar as vilas que você comanda?
Ele assentiu.
— Sei que gosta de visitar seu povo. Tem passe-livre para andar por
minhas terras.
Mais uma vez foi surpreendida. Desde que a porta do castelo se
fechou e deixou os pais irem, acreditou que Zephyr a manteria em um
cativeiro disfarçado de gentileza, mas o nobre lhe dava a liberdade que
tanto queria.
— Vamos descer… Encontro-a na hora do jantar. — Um sorriso
mínimo percorreu o seu rosto. — Você prometeu me acompanhar essa
noite.
Ela concordou e se aproximou de Nyra, que parecia desconfortável
com a presença de Zephyr. O animal tentava se distanciar, por isso Adhara
passou a mão no seu dorso, fazendo um barulho com a boca para que
começasse a andar. Zephyr subiu no garanhão e a acompanhou de perto,
fazendo o restante do trajeto de volta em silêncio. Adhara apreciou aquilo.
Apesar disso, em nenhum momento ele deixou de encará-la.
O jantar estava delicioso. A princesa não sabia qual sopa
experimentar, em que caldo deveria mergulhar o pão crocante. Zephyr
estava na ponta da mesa ao lado dela, bebendo vinho. Apesar de ter se
servido, não havia tocado na comida.
— Está sem fome? — Fitou-o, curiosa.
Ele tomou mais um gole e olhou por cima da borda do cálice.
— Estou entretido no momento.
Adhara sentiu o rosto esquentar e tentou ignorar toda a atenção que
estava lhe dando. Zephyr parecia ler cada um dos seus movimentos, atento
enquanto ela tocava no cálice, bebia um gole do vinho. Ela não queria
admitir, mas parecia que os orbes escureciam ainda mais à medida que a
observava.
— Como foi seu dia? Conseguiu aproveitar os campos?
Adhara ainda estava com o interior das pernas doloridas de montar
Nyra, tanto que depois de comer algo, precisou permanecer mais tempo na
água quente da banheira a fim de que o corpo relaxasse, suavizando o
incômodo. Seu pai a tinha proibido de cavalgar depois que as criaturas
atacaram uma vila próxima ao castelo principal, por isso estava enferrujada.
— Há muito tempo não cavalgava… — A princesa colocou os
pensamentos em voz alta. — Obrigada.
— Você não precisa me agradecer… se vai ficar um tempo aqui, deve
fazer o que gosta. — Tomou mais um gole de vinho. — De qualquer forma,
sou uma péssima companhia.
Adhara o olhou sem entender a observação. A lembrança do silêncio
dele enquanto desciam as montanhas voltava à sua mente com agrado.
— Por quê? Não gosta de conversar? Ou tem medo do que meu pai
pode fazer com você? — brincou.
Os olhos dele escureceram e pareceu se divertir com a suposição dela.
Inclinou-se para o lado, olhando-a.
— De forma alguma, princesa Adhara. — Pegou a mão dela com
delicadeza, o polegar fazendo círculos no pulso delicado. — Mas se me
permitir entrar, posso quebrar tudo o que tem de bom dentro de você.
Ele se afastou e a jovem sequer percebeu, a mão parada no mesmo
lugar, como se ainda esperasse aquele toque tão íntimo.

Recusava-se a admitir, mas estava inquieta desde que havia subido


para o quarto. As chamas da lareira estavam parcas, o cômodo quase que
totalmente escuro, mas o castelo estava silencioso demais para que jogasse
um manto por cima da roupa e fosse explorar os corredores. De qualquer
forma, teria que passar por Gaut se fosse perambular durante a noite, e não
estava disposta a explicar sua inquietação.
Andou até a janela e afastou com cuidado a cortina. O jardim do
castelo estava coberto de neve, as tochas faziam pouco quando o intuito era
iluminar o pátio, mas conseguiam ser um ponto de referência para os
guardas lá fora. Ela estava quase se afastando da cortina quando um vulto
cortou a neblina.
Adhara observou o manto deslizar pela neve. Parou na frente dos
jardins de flores escuras, permanecendo ali por um tempo. Apesar da neve
caindo, não usava o capuz e Adhara o reconheceu. Ficou onde estava,
temendo se mexer e chamar a atenção dele, apesar da janela ser alta. Depois
de um tempo, afastou-se, sumindo em meio a neblina.
Adhara esperou para ver se ele voltava, mas Zephyr não o
fez.
CAPÍTULO 12

Adhara parou para observar o castelo de Zephyr ao longe. Mesmo


com a densa neblina, conseguia ver as torres altas e o parco reflexo das
janelas iluminadas pela claridade da tarde. Embora ainda abundante, a neve
parecia contida naquela região, como se as terras não tivessem sido afetadas
pelo clima do Declínio.
Conseguia enxergar a silhueta de Gaut à distância. Ele estava
montado em um garanhão que tinha sido presente do pai dela, vigiando-a de
longe. A princesa havia pedido que não ficasse ao seu lado durante as
cavalgadas, pois eram os únicos momentos que podia ter espaço e silêncio,
longe de regras sociais e vigília constante.
O guarda não gostou muito daquilo, claro. Era tão protetor que fazia a
ronda por onde ela passaria antes mesmo do sol nascer, para ver se a
princesa não teria quaisquer problemas, com as criaturas ou outra
intercorrência, como bandidos, por exemplo. Por isso, Adhara estava ciente
de que, muito provavelmente, Gaut já havia visitado horas antes todos os
lugares onde passeava com Nyra e atestado que eram seguros.
Algumas luas haviam se passado desde que seus pais foram embora,
mas a princesa não havia ficado sem notícias. A primeira carta que recebeu
de Liuva contou que chegaram sem baixas no castelo principal e a filha
poderia usufruir tranquila da estadia com Zephyr. A jovem sabia que aquela
viagem tinha renovado as esperanças de ambos, principalmente do pai, que
via uma possibilidade do Sul retornar ao seu antigo esplendor com a ajuda
do misterioso homem que a acolheu.
Incitou Nyra, que começou a andar com um pouco mais de
velocidade. A égua já estava exausta do passeio. A princesa saiu do castelo
assim que amanheceu para explorar mais profundamente as terras de
Zephyr. Acabou sendo surpreendida pelo tamanho e beleza da área,
inclusive as florestas. Durante o passeio, certificou-se apenas de não
ultrapassar a fronteira que o nobre havia mencionado.
Adhara não tinha como prioridade ir tão longe, mas deixou-se levar
pela calmaria do trajeto. Ainda estranhava a ausência dos monstros, a aljava
que sempre fora parte de sua proteção tornando-se apenas um peso nas
costas. Quanto ao arco, não conseguia se desvencilhar, era instintivo, como
uma extensão de seu braço. Este estava sempre próximo da mão, como se a
qualquer momento ela pudesse ser atacada e precisasse usá-lo.
Um fato era inegável: apesar de estar em terras desconhecidas, sob a
proteção de um nobre que sabia apenas o nome, ela sentia uma segurança
bem-vinda naquele lugar. Talvez se recusasse a admitir para si mesma, mas
aquela sensação vinha de algo além da ausência das bestas que rondavam o
reino. Ali parecia que um pedaço do seu Sul tão amado havia sido
preservado, congelado no tempo.
Gaut acenou para ela e juntos começaram a voltar, até chegarem aos
estábulos. Adhara desmontou e entregou Nyra para o cavalariço.
— Você conseguiu descansar, Gaut? — Adhara encarou o guarda, que
ficou sem entender. — Acha mesmo que não sei das suas andanças pelos
campos antes de mim?
Ele pareceu incomodado diante da reprimenda, mas depois deu de
ombros e apoiou a mão na espada. Nunca perdia aquela postura vigilante.
— Gosto de averiguar sua segurança sempre, princesa. O rei foi
categórico quanto a isso.
A jovem apenas sorriu. Quando chegaram às escadas principais, ela
deu um tapinha no ombro dele, sentindo o metal frio da armadura.
— Vá descansar, Gaut. Irei para o meu quarto, onde pretendo passar
toda a tarde. — O guarda parecia contrariado com a ideia de abandoná-la
por algumas horas. — Prometo que mando te chamar se sair.
Ele assentiu, mas ainda ficou ali, à espera de que entrasse no castelo.
Os guardas tinham alojamentos especiais, em um casarão anexo. Em outra
ocasião, Adhara havia lhe perguntado se estava bem instalado, mesmo
tendo a certeza de que, para ela, nunca reclamaria… ainda que tivesse
dormindo junto aos porcos.
De qualquer forma, Adhara, curiosa como era, foi investigar, já que
nem isso conseguiu tirar do guarda. Ficou surpresa em descobrir como os
guardas dali tinham acomodações bem confortáveis. E isso também
acontecia com seu segurança pessoal.
Um fato era inegável: Zephyr sabia tratar bem aos seus. Independente
de qual cargo a pessoa exercesse, sempre teria o melhor.
Começou a procurar pelo nobre em todo o castelo, sem achá-lo. Pelo
visto, ficaria sozinha naquele dia no castelo, entre os empregados. Ao
chegar no corredor onde ficava o quarto dela, deparou-se uma criada saindo
de uma das portas, com vários rolos de tecido em mãos. Perguntou-lhe o
paradeiro de Zephyr e a criada disse que ele havia saído, sem hora para
voltar.
Aquilo não a surpreendeu. Havia se acostumado em ver o pai sumir
várias vezes no decorrer do dia, devido às suas demandas e obrigações.
Reis, nobres e lordes tinham compromissos diversos e muitas vezes
precisavam se ausentar para visitar as vilas ou fazer reuniões com os
subordinados.
Pretendia comer algo, mas desistiu. Apesar da fome, um cansaço
enorme abateu sobre ela. Entrou no quarto e caiu na cama, o colchão macio
a abraçando por todos os lados. O corpo estava todo dolorido e o estômago
roncava pela falta de comida, já que não havia levado provisões para o
passeio, ficando assim de estômago vazio até aquele momento.
Pensou em relaxar por um momento antes de sair em busca de algo
para saciar a fome, mas logo os olhos começaram a pesar e, por um
momento, começou a lutar contra o cansaço.
No final, sucumbiu a ele.

Apenas o som dos talheres arranhando os pratos cortava o silêncio da


sala de jantar. O cheiro da comida estava delicioso, mas nem mesmo aquilo
trouxe de volta o apetite de Adhara, que parecia ter ido embora após dormir.
Engoliu um pouco do vinho, na tentativa de fazer a comida descer.
Respirou fundo, sem entender o que havia acontecido. Depois que acordou,
uma sensação ruim, um peso a invadiu. Talvez fosse o silêncio e a sensação
de solidão que pareciam cercá-la, já que nem mesmo Zephyr estava ali para
conversar com a princesa. Sempre esteve cercada por criados e membros da
corte no castelo dos pais. Adhara apreciava o silêncio, mas não como uma
constante. Comer sozinha numa mesa imensa, como acontecia naquele
momento, nunca foi um costume da jovem, principalmente quando o rei e a
rainha insistiam em compartilhar a refeição no final do dia.
Entre aquelas paredes, a ausência de conversa a fazia sentir-se mal,
como se a qualquer momento algo ruim fosse acontecer e ninguém
apareceria para ajudá-la. Assim que pensou naquilo, estremeceu. Precisava
sair dali e arejar a mente. Por isso, colocou o guardanapo sobre a mesa,
levantando-se, pronta para deixar o cômodo.
Os criados já se aproximaram para recolher o jantar, sem sequer a
olharem. Adhara parou, observando uma mulher colocar o prato e o cálice
utilizados por ela em uma bandeja. Assim que a criada ia ultrapassá-la,
resolveu perguntar:
— Você sabe se o castelo possui uma biblioteca?
A criada fez uma pequena mesura e indicou-lhe rapidamente para
onde seguir. Ela saiu então da sala de jantar, passou por Gaut, que estava
encostado na parede e seguiu adiante. Rumou para o segundo andar.
Escutou os passos do guarda atrás de si, mas em nenhum momento ouviu
qualquer questionamento para onde ela iria.
Assim que chegou ao lugar, o peso do peito pareceu voar longe,
dissipar. Era como se biblioteca estivesse esperando-a, com uma lareira
acesa ao fundo, o sofá de veludo escuro no centro, junto da mesa redonda
com vários livros espalhados.
Não era maior que a biblioteca do castelo central, mas ela sabia que
ali os livros não haviam sido confiscados para estudos. Portanto, se Adhara
não encontrasse o nome Domenico naqueles livros, nunca mais o
encontraria.

Zephyr chegou mais cedo do que esperava.


Assim que passou, os guardas fecharam a porta atrás de si,
bloqueando o frio externo. A neve acumulava-se na entrada. Sentia as botas
molhadas, mas isso não lhe tirou o humor. Retirou as luvas de couro e as
entregou para um criado que o aguardava próximo à escada.
— Onde ela está? — Nem precisou dizer o nome de quem procurava.
O criado fez uma mesura e indicou o segundo andar.
— Na biblioteca, desde depois do jantar.
Ele assentiu e subiu as escadas, andando pelos corredores escuros.
Avistou o guarda da garota, sua armadura refletindo a claridade das parcas
tochas pelos corredores, a mão pousada no cabo da espada. Zephyr
precisava admitir: aquele guarda era fiel ao rei Heth e astuto quando se
tratava da segurança da princesa… mas poderia se tornar uma dor de cabeça
quando pretendesse levar seu plano adiante.
Parou diante da porta e os olhos do guarda o acompanharam. Colocou
a mão na maçaneta de cobre, mas recusou-se a empurrá-la.
— Sabe que pode confiar em mim — mentiu descaradamente ao
perceber que o guarda lhe encarava. — Gostaria de ter um momento a sós
com a princesa, por favor.
O soldado demorou um tempo, parecendo decidir se era prudente dar-
lhe aquele espaço, mas depois assentiu. Afastou-se da porta, menos do que
Zephyr gostaria. Ele empurrou o ferrolho e entrou na biblioteca. Foi
saudado por um calor bem-vindo e uma claridade cálida. Procurou a
princesa entre as prateleiras, a sombra de um sorriso nascendo nos lábios ao
avistá-la. Aproximou-se sem fazer barulho.
Ela descansava no sofá, os cabelos ondulados espalhados pela
almofada, delineando o contorno dos seios. Zephyr deixou seu olhar
demorar-se ali, apreciando a pele dela… observando o ritmo hipnótico do
peito subir e descer, enquanto ela se entregava à tranquilidade do sono
profundo. Em seguida, deslocou sua atenção para o livro repousado sobre o
abdômen dela. Leu o título… curioso, a garota estava estudando as linhas
ancestrais de Dhárg? Zephyr teria que tomar cuidado.
Quando desceu de Atman, achou que encontraria uma maior
resistência dos humanos, mas eles continuavam sendo os mesmos tolos de
quando era um Elemental e descia no mundo corpóreo para saciar as
próprias vontades. Não demorou muito para enterrar o nobre que morava
naquele castelo e confundir toda a criadagem, fazendo-os acreditar que
sempre o serviram.
Quem precisava comprar lealdade quando a mente humana era
facilmente corrompida? Olhou a capa da obra pela última vez. A princesa
não acharia o nome dele ali, mas aquela tampouco era sua preocupação real.
Apenas permanecia curioso ao que ela pretendia…
Sem conseguir conter a sua vontade, agachou-se próximo a ela e,
estendendo a mão, tocou o rosto delicado, deslizando depois os dedos pelos
lábios macios. Adhara respirou profundamente e os entreabriu, fazendo
Zephyr salivar.
Como seria experimentá-los?
Pairou a mão no rosto dela, ainda decidindo o que fazer. A única
maneira daquela garota entregar o consentimento que precisava pela sua
alma seria fazê-la apaixonar-se… mas como uma criatura como ele faria
aquilo, se nem sequer sabia o significado daquele sentimento?
Ganhe a confiança da garota, sua mente perversa incitou. Você
desconhece o amor, mas saberá manipulá-la para que ela acreditar que o
sente.
Zephyr desceu os dedos e passou com delicadeza sobre a curva dos
seios imaculados, sentindo a pele quente e sedosa. Adhara se remexeu e ele
recuou, observando-a como um lobo faminto. Como se sentisse a sua
presença ali, a princesa entreabriu os olhos, demorando um tempo para
perceber que não estava mais sozinha.
— O que está fazendo aqui? — A voz dela ainda carregava o cansaço
do dia.
— Apenas a observando. — Ele percebeu o rosto de Adhara ficar
levemente vermelho e, com cuidado, retirou o livro do colo dela, fechando-
o. — Você precisa descansar.
Ela levantou-se do sofá e passou a mão nos cabelos. O Elemental
observou o movimento, perguntou-se qual seria o aroma daqueles fios.
Seria peônia? A princesa pegou com delicadeza o livro das mãos dele e o
deixou na mesa, sem perceber como a seguia com os olhos.
— Já descansei o dia todo — retrucou, desanimada.
Zephyr sabia por que ela se sentia tão cansada, oprimida: a energia
dele a afetava. Adhara nem imaginava, mas seu corpo lutava contra a
presença dele, como se quisesse expeli-lo, mandá-lo para longe, em vez de
acostumar-se a ele. O sono era uma das maneiras que sua essência achava
de preservá-la, mas ele faria o que fosse preciso para quebrar até mesmo
aquela proteção.
Ela se virou e Zephyr aproximou-se. A garota ficou imóvel,
parecendo observá-lo com certo cuidado, como se analisasse o perigo que
ele representava. A princesa é inteligente… de alguma forma sabe que não
pode confiar em mim.
Mas, ao contrário do que pensava, Adhara não se afastou. Os olhos
verdes foram de encontro aos lábios dele, mas se desviaram depressa, como
se por um momento também quisesse senti-los, mas recusasse a ideia.
Seu olhar não se desviou rápido o suficiente, princesa.
Deu um passo à frente, para encurralá-la contra a mesa de livros,
movido pela própria vontade.
Infelizmente isso não vai te salvar.
Inclinou-se na direção dela, os olhos escuros em meio aos verdes.
Adhara engoliu em seco, mas Zephyr não lhe deu o tempo necessário para
refletir sobre o que aconteceria. Logo os seus lábios rasparam nos dela,
fazendo-o se conter no último instante, a língua ansiosa para sentir o sabor
daquela que era única.
— Você não sabe o que se passa na minha cabeça quando a vejo
assim… — O corpo dele pressionou-a, fazendo-a apoiar-se na mesa,
encurralada.
— Assim como? — Ela parecia confusa.
Vulnerável, acuada.
— O que posso fazer para ter a permissão de beijá-la?
Ele sentiu a princesa estremecer, mas os olhos verdes o encararam
com segurança.
— Normalmente quem pede permissão para fazer algo é porque não
tem certeza da própria vontade.
Um sorriso malicioso nasceu nos lábios de Zephyr. Aquela garota o
deixaria louco… Gostava daquele atrevimento, que contrastava tão
deliciosamente com o aroma adocicado e inocente que ela tinha.
— Você é a princesa… — Ele roçou a boca na dela. — Se eu fizer
tudo o que tenho vontade, seu pai te arranca daqui. — As mãos foram para
o rosto dela, segurando-o para que Adhara não desviasse o olhar. O dedo
passou pelo lábio inferior da jovem, sentindo a maciez. — Vou perguntar
outra vez… posso beijá-la?
A princesa ficou em silêncio por um tempo antes de assentir. O
pequeno gesto foi o suficiente para que Zephyr tomasse a boca dela com
posse, como há muito queria fazer. A língua mergulhou entre os lábios,
como se estivesse sedento pelo sabor que vinha dela.
A mão desceu para o pescoço, deslizando para a nuca e enfiando-se
nos cabelos. Adhara gemeu quando ele assim o fez. Zephyr parecia disposto
a ter cada pedaço dela, como se a princesa fosse a única mulher do mundo,
como se aquele mundo estivesse mergulhado em caos e precisasse dela para
que tudo voltasse ao seu eixo.
O braço enlaçou a cintura feminina, fazendo-a sentar-se na mesa. Em
um movimento instintivo, Adhara abriu as pernas para acomodá-lo melhor e
Zephyr encaixou-se ali, pressionando-a, esfregando-se nela e a fazendo
gemer.
— Merda. — Ele praticamente rosnou. — O que quero fazer com
você…
O corpo da princesa se arrepiou diante daquela promessa, ele só não
sabia distinguir se era de excitação ou medo. De qualquer forma, ansiava
pelos dois. Desejava os arrepios, os seios sensíveis ao toque, o meio das
coxas úmidas e prontas para ele. Ansiava também pelo medo dela, os
pesadelos, os gritos de desespero.
Queria despedaçá-la em todos os sentidos.
Conseguiu enfim quebrar o escudo que ela tinha em volta de si por
um momento, o instinto de proteção surgido quando a energia de Atman
sentia a presença dele, a consumia com os lábios para que Adhara se
esquecesse de que ele era o perigo real.
Percebeu-a estremecer, as pernas perdendo a força. Abraçou-a
enquanto não deixava a boca dela, sugando-a, mordendo, esfregando-se ali
para incitá-la, apesar de saber que aquele era o momento ideal para parar.
Como queria mais… Rasgar as roupas daquela garota e enfiar-se nela
com brutalidade até que ela gritasse o seu nome. Fazê-la dele e exibi-la
como um troféu para aquelas malditas ancestrais. Destroçar a bondade
daquela garota e consumi-la como uma chama voraz até que não restasse
mais nada.
Mas não podia. Por isso afastou-se dela com dificuldade, percebendo
que a garota se inclinava em sua direção, completamente entregue. Um
sorriso vitorioso percorreu o seu rosto enquanto a observava.
— Você tem gosto de pêssegos…
Sabor de pureza. Aquele era o seu preferido. Se Adhara tinha aquele
gosto nos lábios, ficava excitado ao imaginar como seria a sensação ao
alimentar-se de sua alma.
Ela continuou ali, como se ele fosse tocá-la de novo, mas Zephyr
apenas correu os dedos pelos cabelos da garota em uma carícia, apreciando
a maciez dos fios.
— Já é noite, a lua está alta…
Ela pareceu acordar e, com relutância e certa timidez, fechou as
pernas e desceu da mesa. Não o olhou, mas apressou-se em sair da
biblioteca, deixando a porta entreaberta. Zephyr continuou onde estava, um
sorriso satisfeito nos lábios. Sentia a pulsação do relicário, antes
adormecido sobre o peito, o poder dançando em linhas escuras pelo seu
corpo, sedento pela energia dela, faminto pela bondade que carregava.
Pousou a mão no livro que Adhara estava lendo e o jogou na lareira. Nem
esperou as chamas consumirem as páginas, saiu da biblioteca antes disso.
CAPÍTULO 13

Para Igrik, aquelas florestas eram bem conhecidas. Por um momento,


poderia até mesmo dizer a si mesmo que estava voltando para o castelo…
isso se não tivesse um prêmio tão grande em ouro de recompensa pela sua
cabeça.
Precisava ter cuidado ao andar por aquela região, mesmo que o maior
perigo ali fosse os seus demônios por toda parte. Ele sabia que Heth era um
exímio estrategista e que havia guardas de confiança fazendo a ronda,
procurando-lhe. Contudo, precisou enfiar-se entre aquelas árvores
conhecidas para alcançar o seu objetivo. Estava próximo ao local onde suas
criaturas batalharam com as filhas de Atman, a mesma luta que Igrik teve o
prazer de enfiar uma lâmina na famigerada Coroa Vermelha.
A bruxa que ele procurava naquele momento se distinguia muito das
outras que viviam ali, enfiadas nas Florestas Brancas. Damiana era
conhecida pelos Altos por ter abraçado o lado sombrio do poder que Atman
lhe deu e Igrik a admirava por isso. Mas o intuito dele naqueles domínios
era outro.
Parou e esperou pacientemente. Sentia a energia dela por perto, mais
densa que a das outras bruxas, mesmo que fosse bem inferior ao da Coroa
Vermelha. Um sorriso cruel lhe percorreu o rosto.
— Damiana… o que te acanha? — Levantou as mãos em um gesto
claro de trégua — Não vim para incomodar as bruxas caídas.
Ele esperou, paciente, por alguma resposta. Pouco tempo depois, a
energia se tornou mais densa e logo ela surgiu entre as árvores. Damiana
carregava a beleza de uma filha de Atman, mas o que Igrik via nos olhos
claros dela, quase brancos, estava longe de ser uma herança das bruxas. O
perigo residia em cada traço, desde os fios de cabelos castanhos trançados à
pintura do rosto, uma linha fina que corria do lábio inferior ao queixo. Ela o
olhou como um felino olhava a presa e Igrik engoliu em seco. Uma mulher
que carregava a beleza de uma bruxa e uma energia tão cruel quanto aquela
era uma combinação perigosa, mas apetitosa para o paladar dele.
— O que você quer, Igrik? — A voz dela era carregada e sedosa ao
mesmo tempo. — Sabe que não permito demônios nas minhas terras.
Igrik deu um passo à frente, mas desistiu de se aproximar mais
quando sentiu o poder dela intensificar.
— Sabe o que quero. — Ao ver que ela continuava calada, resolveu
ser claro. — A princesa Adhara não se encontra mais no castelo principal.
Foi levada para outro domínio… — Um sorriso satisfeito nasceu nos lábios
volumosos de Damiana. — Sei que quem o reina não é humano.
— Achei que tinha o controle do Sul, visto que aqui está infestado de
criaturas vindas do submundo. — O desprezo era captado com facilidade na
voz dela.
— Quem é ele, Damiana? — Igrik insistiu, o poder fluindo em sua
voz.
Ela ficou um tempo calada, mas depois gesticulou para a estrada que
sabia ter sido usada pela princesa algumas luas atrás.
— Não sei quem é, de fato. Mas nunca senti uma energia como a
daquele homem que estava ao lado da princesa. Nem em você, um Alto do
submundo… nem no seu Sombrio que, aliás, está procurando por você.
Igrik ignorou a última informação. Sabia que Merik não ficaria quieto
no Norte enquanto ele tomava as terras do Sul aos poucos. Mesmo que seus
demônios não conseguissem subir o mapa, Igrik sabia que tanto a
caminhante quanto a adaga estavam sob proteção do Sombrio.
Mas lidaria com um problema de cada vez…
— Quando suas criaturas deixarão de banquetear-se na floresta, Igrik?
— A voz de Damiana era poderosa, mas falhou com a insegurança exposta
sem querer.
O traidor ignorou-a por um momento e começou a andar em direção à
estrada, mas resolveu parar e encará-la por um momento.
— Vocês acharam que meus demônios fariam distinção entre uma
bruxa de Atman e uma caída? — Um sorriso cruel nasceu naquele rosto.
Sentia o medo de Damiana, bem como o próprio poder crescer e pulsar à
medida que as luas passavam, banhando as terras sulistas com sangue. —
Nunca, bruxa. Carne é carne.
Adhara conseguia dar atenção apenas ao balançar do lombo de Nyra e
o som do vento batendo no capuz do manto. Os pensamentos estavam
distantes para todo o resto. O fantasma do beijo dele ainda estava em seus
lábios e ela se pegava os tocando, como se fosse senti-lo sobre si mesma
novamente. Aquela carícia …
Ela achou que já tinha passado da fase de beijos calorosos, mas
aqueles toques tolos e melados, trocados às escondidas com garotos da
corte não se comparavam ao dele. Zephyr a beijou como apenas um homem
faria, que sabe o que quer, mexendo com algo dentro dela que Adhara ainda
tentava entender. Seu instinto lhe dizia para se afastar e não desejá-lo mais,
mas o corpo pedia o oposto, mesmo que o preço fosse alto.
Pediu a Gaut para procurar Zephyr e dizer que queria visitar alguma
aldeia próxima, se recusando a vê-lo depois do ocorrido. Precisava manter
distância daquele homem senão perderia muito mais que a razão. Achou
que encontraria resistência ou algum questionamento da parte dele, mas
ficou surpresa quando um pequeno bilhete chegou nas mãos de Adhara
autorizando o seu passeio, desde que dois guardas da confiança dele a
acompanhasse. Dois. Apenas dois guardas, além de Gaut.
Quando Adhara fez o mesmo pedido para os pais, numa ocasião
anterior, sentiu a relutância de ambos em deixá-la sair da segurança do
castelo principal. Quando isso acontecia, uma comitiva acompanhava a
garota com o intuito de fazer a sua segurança, além de levar provisões para
as aldeias afetadas. Alguns guardas do pai também iam para verificar as
mortes…
Para sua surpresa, a princesa não encontrou nada daquilo na aldeia
que visitou. Vislumbrou casas imaculadas, feitas de pedra reforçada,
telhados de madeira e palha bem resistentes. Viu as crianças brincando do
lado de fora, indiferentes a neve que caía, enquanto as mães ralhavam para
que entrassem, o cheiro de ensopado saindo com facilidade das janelas
semiabertas.
Adhara sorriu ao notar os cavalos sendo encaminhados para estábulos
grandes, bem como um pequeno mercado com bastante sacas de grãos e
pães recém assados.
A população sabia da existência das tais criaturas, mas para eles as
histórias não passavam de boatos contados por viajantes, um perigo que
nunca chegaria às terras deles. Adhara se recusou a alertá-los, enchê-los de
receio e medo. Sabia que Zephyr fazia a segurança de suas terras, mas ficou
surpresa em como havia sido bem-sucedido naquilo, não havia entendido a
dimensão até aquele instante.
— Não consigo saber se está satisfeita ou triste com o que viu nas
aldeias. — A voz de Gaut a arrancou dos próprios pensamentos enquanto
voltavam.
Adhara se concentrou no trotar calmo de Nyra e respirou fundo.
— Estou satisfeita… só não achei que fosse encontrar algo tão
diferente do que estava acostumada. — O guarda apenas assentiu. Entendia
os sentimentos da garota.
Como aquelas aldeias estavam tão seguras se as outras espalhadas por
Dhárg sofriam tanto? Enquanto algumas crianças dormiam tranquilas e
aquecidas, outras pereciam em meio às estradas geladas, procurando por
abrigo aos gritos, na tentativa de escapar dos monstros, a imagem dos pais
destroçados ainda na mente? Enquanto os aldeões protegidos por Zephyr
comiam pão e ensopado todos os dias, outros morriam de fome, sem
coragem de sequer saírem de seus casebres e enfrentar o mal que havia lá
fora.
Adhara precisava entender como funcionava aquela enorme estratégia
de segurança. Algo lhe dizia que não eram os guardas dele que protegiam
aquelas terras. Ela nem era tola em acreditar que aquele homem era apenas
um nobre com poder o suficiente para manter as criaturas longe. Pensar tão
pequeno era testar sua inteligência.
Havia algo diferente nele. A energia que vinha de Zephyr era muito
diferente de todas que ela já conheceu. Quando o beijou… Ela sentiu um
desejo incomum, como se tivesse experimentado algo cruel e proibido. Ao
subir para o quarto, uma onda de exaustão a atingiu, como se ele tivesse
extraído toda a sua energia através daquele toque.
Passou novamente as mãos enluvadas sobre os lábios. Ele a havia
deixado ir, mas ainda sentia os olhos dele sobre si, numa carícia suave e
invisível. Uma promessa.
— Estamos chegando. — A voz de Gaut a assustou. O guarda olhou
para ela, desconfiado com sua reação.
Adhara não respondeu, apenas cutucou Nyra com o calcanhar e a
égua dirigiu-se até a pequena estrada que levava ao castelo. Acelerou,
apreciando o vento no rosto e os guardas ficando para trás. Quando
passavam na fronteira da floresta, Gaut já a havia deixado sozinha,
entendendo que ela precisava de espaço, fazendo-a sentir-se grata por
aquilo.
Assim que se aproximou da grande construção, avistou dois homens
parados logo na escada de acesso, reconhecendo neles as cores do reino do
pai. Um calafrio estranho percorreu o seu corpo e ela desmontou antes
mesmo de Nyra parar, correndo em direção aos dois. Escutou o cavalo de
Gaut relinchar logo atrás. Ele deveria ter visto quem os aguardava.
— O que houve? — Ela nem mesmo cumprimentou os homens do
pai. — Aconteceu algo?
Um deles tratou de acalmá-la. Adhara parou em frente ao homem e só
depois percebeu que segurava um envelope. Ela pegou a missiva de selo
conhecido com as mãos trêmulas.
— Vossa Majestade pediu que eu te entregasse isso em mãos. — O
homem olhou para Gaut e acenou em respeito. — Lorde Zephyr recebeu
uma também — informou.
— Algo que eu deva me preocupar?
O guarda acenou em negativa e Adhara acreditou nele. Tinha a
expressão tranquila, apesar de cansada. Os homens do rei nunca guardavam
informações valiosas, muito menos para ela, que conseguia farejar uma
mentira.
— Venha, vocês precisam de uma refeição e descanso. — Gaut olhou
para Adhara, pedindo permissão, e a garota assentiu. — Irei acompanhá-los.
A princesa os observou caminharem para o alojamento dos criados.
Entregou as rédeas para o cavalariço e acariciou os pelos de Nyra.
Depois, entrou no castelo e foi saudada com o calor das tochas
espalhadas pelo corredor. Sentia fome, mas a ansiedade em saber notícias
dos pais fez com que ignorasse aquilo e entrasse na primeira porta que viu
aberta. Apenas a parca claridade de uma lareira que não estava sendo
alimentada iluminava o ambiente.
Retirou as luvas e quebrou a cera com agilidade. Sentiu os dedos
trêmulos quando abriu o pergaminho. Reconheceu a letra inclinada e
elegante da mãe, onde algumas palavras pareciam manchadas. Adhara se
perguntou se era porque Liuva estava com pressa ou se lágrimas
encontraram aquela parte do relato.
Como o reino estava, segundo a opinião da rainha, parecia atingir a
princesa de uma forma ainda pior. As criaturas tomaram mais vilas e o pai
enviou os últimos esforços para as fronteiras com o intuito de conter o
massacre. Muitos guardas retornaram com partes dos corpos faltando e um
medo incompreensível na mente. Não dormiam e os gritos de desespero
reverberaram por toda ala norte do castelo principal, onde eles foram
alocados para receber os curandeiros. Apesar disso tudo, os pais
conseguiam se manter firmes de que o Declínio passaria e que a ajuda
pedida viria.
Ela sentou no braço de um sofá que havia ali e fechou os olhos.
Estava no lugar errado. Precisava estar com os pais, com o seu povo. E não
ali, onde vivia uma história falsa de um mundo onde ninguém sofria. Sentia
medo. Medo por Dhárg, pelo seu futuro. Medo de se acostumar àquela
ilusão.
Com certo receio, Adhara voltou a atenção para a carta. Liuva
terminava o relato dizendo que andou se correspondendo com a mãe, rainha
do Norte, Emelia. Estudava a possibilidade de enviar Adhara para Fhár,
onde as criaturas ainda não haviam aparecido. Seu coração ficou apertado
ante aquela possibilidade. Se não queria ficar ali para estar junto de seu
povo, afastar-se ainda mais seria insuportável.
— Acredito que o conteúdo da sua carta seja muito parecido com o
meu.
Adhara pulou do sofá e colocou a mão no peito.
— Você não pode fazer isso!
Um vulto se mexeu em meio às sombras que a cortina projetava.
Zephyr se afastou da janela, os olhos escuros brilhando quando a claridade
da lareira os encontrou. Adhara não soube como ignorou aqueles olhos de
felino quando entrou na sala.
— Isso o quê? — A voz dele parecia divertida.
— Aparecer… — Ela gesticulou com as mãos. — Assim, do nada.
— Eu estava aqui o tempo inteiro. — Aproximou-se dela, os olhos
voltados para a carta que as mãos da princesa apertavam. — Gosto de
observá-la. Sabe que se depender de mim, sua segurança vem em primeiro
lugar.
Adhara engoliu em seco e fechou o pergaminho.
— Não é com minha segurança que me preocupo, mas com a do meu
povo.
Zephyr levou a mão até o rosto dela, tocando-a com delicadeza.
Adhara se conteve para não inclinar em sua direção, deixando-se levar pela
carícia. Logo os dedos desceram pelo pescoço dela, os olhos escuros
acompanhando o movimento. Pararam no colo, o indicador passando pela
pouca pele que o decote fechado do vestido revelava.
— Deixe que seu pai cuide do povo de Dhárg… — Os dedos a
acariciaram mais e Adhara pôde sentir a perversão daquele toque. — Aqui
as criaturas não podem alcançá-la.
A princesa acompanhou a mão dele, subindo pelo seu corpo e vendo
algo… foi tão rápido que se Adhara não estivesse com os olhos pousados
nele, nunca teria visto. Um brilho ínfimo, uma réstia de luz que conseguia
atravessar o algodão escuro da blusa, fascinando-a.
Era como se algo a chamasse… Vindo de alguém que há muito se
perdeu, que esperava encontrar como voltar para casa.
Abriu a boca para perguntar o que era aquilo, mas Zephyr recuou
repentinamente, como se pele dela tivesse o queimado. Afastou-se sem
dizer nenhuma palavra e virou-se para a lareira, dando-lhe as costas.
Adhara ficou sem saber como agir, até o ver jogar uma carta nas
chamas. A cera quebrada com o sinete do pai derreteu com a intensidade do
fogo, dando ao conteúdo o mesmo destino.
— Você gostou do que viu quando visitou os vilarejos sob minha
proteção? — A voz dele parecia mais pesada, carregada.
— Sim — respondeu, tentando ignorar seu subconsciente, mais uma
vez lhe pedindo para se afastar daquele homem. — É o que eu quero para
meu povo.
Zephyr voltou a se virar e Adhara recuou um passo. Percebeu que
precisaria escutar mais do seu instinto ao lidar com ele, ou se enfiaria em
uma armadilha.
— Darei isso a você.
— E qual será o preço? — ela retrucou. Como filha de rei, sabia que
nenhuma bondade vinha gratuitamente, muito menos de alguém como ele.
Um sorriso de lado nasceu nos lábios cheios, fazendo-a engolir em
seco.
— Saberá o que quero quando chegar a hora.

Adhara saiu da sala como um cachorro acuado, enquanto Zephyr


precisou se conter para não ir atrás dela. Deixaria que a princesa tirasse as
próprias conclusões. Podia sentir a vontade dela em se aproximar, mas a
energia que vinha de Adhara a repelia, numa tentativa sutil de protegê-la,
fazendo-a recuar antes de ser levada pela sedução do Elemental. Zephyr
nunca havia visto alguém com tamanha resistência.
Ele saiu do castelo, indo até os estábulos para selar o cavalo. O
animal parecia descansado e ele o montou, cutucando-o para que saísse em
galope. Não tinha muito rumo, mas precisava colocar distância entre eles ou
colocaria tudo a perder por um desejo bobo. A pureza daquela garota… Seu
relicário respondeu a ela, brilhando sem que ele o sentisse, as almas presas
nele vendo o ponto de luz da princesa como uma fuga. Adhara era doce… e
perigosa.
O rei queria enfiá-la no Norte e Zephyr nunca permitiria isso. Na
carta, Heth havia dito que por lá não havia relatos de criaturas. O tolo
achava que eram as estratégias e o poder de Dagomer que fazia a segurança
do reino, nem tinha ideia de que Fhár era neutra porque uma criatura muito
pior morava naquelas terras.
O Sombrio comandava o Norte e, com a ajuda das bruxas, aquele
controle somente aumentava. Se Adhara fosse para lá, Zephyr precisaria
tomar decisões drásticas. Com Merik, conseguiria se entender, mas com as
filhas de Atman o problema era maior.
Ele nunca havia se permitido libertar o próprio poder em todo seu
potencial, permanecendo neutro no mundo corpóreo para evitar assim a
atenção dos outros Elementais. Sabia que àquela altura, as ancestrais já
deviam estar sussurrando para as bruxas onde ele estava… correu esse risco
desde o momento em que tocou Adhara pela primeira vez. Mas ela era
irresistível…
As emoções da princesa eram algo que nunca cansavam de
surpreendê-lo. A tristeza que viu nos olhos dela enquanto lia a carta da
mãe… Apenas uma alma pura conseguiria sentir daquela forma. Como
Adhara parecia tola, dedicando-se tanto a um povo que pensava mais na
própria colheita do que naquele amor que ela lhes ofertava.
Zephyr puxou as rédeas do cavalo. Sabia que já não estava mais só.
Aguardou para ver se ele aparecia, mas o Alto se manteve nas sombras.
Respirou fundo para se controlar antes de vociferar para o intruso.
— Não me lembro de ter autorizado um demônio a entrar nos meus
domínios. — O rosto de Zephyr virou na direção em que a criatura estava.
— Sejam eles inferiores ou da realeza do submundo.
Um homem de cabelos claros e olhos perversos se aproximou de
Zephyr. Parecia procurar algo ou analisar ao redor, mas quando a
compreensão atingiu o seu rosto, reconhecendo aquele que estava diante
dele, não conseguiu mais disfarçar.
— Zephyr… O Elemental que os Altos tentam libertar há milênios.
— A voz dele era aveludada, saindo em um sussurro como apenas um Alto
o faria. — O submundo gostará de saber que anda pelo mundo corpóreo.
— E por qual motivo?
O invasor pareceu mais corajoso para se aproximar.
— A Coroa Vermelha protege a parcela de Atman do mundo
corpóreo. Já o Sombrio se afeiçoou a uma humana… — Havia fel em sua
voz. — Queremos a nossa fatia disso tudo.
— E o que faz você pensar que serei útil a vocês?
— O tempo pedirá isso de você.
Zephyr não gostou daquele atrevimento. Desmontou do cavalo e
cortou a distância que o separava daquele ser, as botas sem fazer barulho
por causa da neve densa. Olhou para o demônio e viu naqueles olhos claros
o entendimento de que havia ultrapassado limites.
— Ninguém diz a um Elemental o que ele deve ou não fazer.
— Por que protege a garota? — O caído não gostou da ideia de que
sabiam sobre Adhara. — Entregue-me a princesa. Ela tem algo que o trono
de obsidiana deseja.
Zephyr calou-se por um momento. Sabia o que os Altos queriam de
Adhara, o problema era que ele também desejava aquilo.
— Darei a opção de se afastar dessas terras, uma amostra da minha
bondade. — A voz dele aumentou um tom. — Ou prefere que eu o expulse?
Um sorriso atrevido percorreu o rosto do Alto. Zephyr precisava
admitir que ele tinha coragem. O relicário brilhou e chamou a atenção do
demônio, que não parecia conseguir desgrudar os olhos dali. Para uma
criatura do submundo, o relicário de Zephyr era uma dose de tudo o que
sempre desejaram, mas nem mesmo Altos demônios conseguiam lidar com
o poder que havia ali. Poder absoluto, profano… O único que conseguiria
conter tantas almas sem estilhaçar o próprio dono.
O Alto fez uma pequena mesura e se afastou, sumindo por entre as
árvores. Zephyr se virou e montou no cavalo para voltar ao castelo. Não
esperou para averiguar se o demônio sairia dali. Sabia que o infeliz nem
seria tolo em ficar.
Mas sempre havia a possibilidade de ele voltar. E se o fizesse, viria
acompanhado.
CAPÍTULO 14

Zephyr não encontrou Adhara quando voltou ao castelo. Sabia que o


guarda pessoal dela estava naquele momento conversando com os outros
homens de Heth que haviam chegado recentemente, colocando em dia as
novidades sobre o que se passava em Dhárg. Provavelmente, a princesa
devia ter aproveitado a oportunidade para ter um tempo para si mesma.
Aquilo poderia se tornar um golpe de sorte para o caído.
Os olhos dele correram pelo horizonte, vislumbrando o céu com um
leve tom rosado, indicando que o crepúsculo já se aproximava. Precisava
encontrá-la, e logo. A presença do Alto demônio nas terras de Zephyr
poderia colocar em risco essas andanças de Adhara. Mesmo sabendo que a
criatura não ousaria se aproximar mais do castelo, tudo poderia acontecer. E
ele nunca gostava de lidar com possibilidades que lhe fossem contrárias.
Então montou no cavalo novamente e atiçou o animal a correr.
Zephyr conhecia o alcance do próprio poder. Sabia que podia eliminar
cada criatura viva daquele mundo, mas lutar contra os Altos seria
ultrapassar um limite de poder que ainda não estava disposto a fazer. Aquilo
atrapalharia os seus planos de gerar atenção desnecessária.
Conhecia o demônio que havia cruzado suas fronteiras. Igrik era o
Alto mais poderoso do submundo, perdendo apenas para o Sombrio. Aquilo
gerava uma certa complicação em seus planos.
Altos demônios atrás da princesa, demônios menores farejando o seu
sangue adocicado… Filhas de Atman querendo protegê-la… E ainda havia
Domenico bisbilhotando, tentando descaradamente enfiar um informante
em seus domínios, numa tentativa ousada que nem deu frutos.
Zephyr teria que tomar precauções para virar aquele jogo a seu favor.
Há muito tempo o Conselho Branco não se reunia. A última vez que
todas as anciãs estiveram naquela sala, Gwendolyn ainda usava a Coroa
Vermelha e Lymena era apenas uma aprendiz. Naquela ocasião, debateram
sobre a profecia feita por Nyana e como aquilo afetaria o mundo corpóreo.
Aquele enigma ainda não havia sido desvendado, mas era Lymena quem
havia passado a carregar o peso da Coroa Vermelha na cabeça e recebido os
conselhos de Gwendolyn através dos sonhos e pela sabedoria das ancestrais.
Muita coisa havia mudado, inclusive ela, na sua caminhada junto às bruxas.
Foi apoiada em toda a força recebida de sua antecessora que a rainha
reuniu as anciãs, contando o que Gwendolyn havia lhe dito quando foi
permitido.
A primeira reação das que estavam lá foi de surpresa. Não era usual
uma ancestral realizar incursões à Coroa Vermelha após um período tão
curto de sua passagem. Diante desse questionamento, Srala deixou claro
que Atman se movimentava de acordo com os reflexos do mundo corpóreo
e, desde que a fenda foi quebrada, as ancestrais estudavam aquelas
consequências. Portanto, a visita de Gwendolyn poderia significar uma
dessas mudanças.
Ter o poder de Srala para elucidar e acalmar as demais participantes
era reconfortante naquele conselho. Mesmo que a anciã-oráculo ficasse
mais reservada à vila, era respeitada pelas outras, independente do conteúdo
das notícias que trouxesse.
A segunda reação do conselho foi de um silêncio quase sagrado, onde
muitas estavam lidando com as notícias de Atman às suas próprias
maneiras. Afinal, Gwendolyn havia deixado uma marca em cada bruxa do
Coven. Coube a Lymena respeitar o tempo das anciãs, ela mesma
precisando do seu, após relembrar daquele encontro.
As palavras de Gwendolyn ainda dançavam na mente de Lymena. O
coração da rainha estava apertado pois, à medida que as luas passavam,
sabia que não conseguiria fugir do que a antiga rainha havia lhe mostrado.
Amamos nossas irmãs, respeitamos as ancestrais e zelamos pelo mundo
corpóreo… Mas quando a responsabilidade do destino nos chama, um
sempre sai sacrificado.
— Como pretende ajudar a princesa? — A voz de uma delas arrancou
Lymena dos pensamentos sombrios.
— Preciso vê-la de perto. Adhara tem de entender contra quem está
lutando. — A voz da Coroa Vermelha não falhou. Se havia uma certeza era
aquela que o encontro com Gwendolyn havia lhe dado, de reunir-se com a
princesa do Sul.
— Se Adhara está sob domínio do Elemental caído, ficará
inalcançável para uma filha de Atman. — Uma delas pontuou.
— Adhara deve ir para o Norte a pedido da mãe, para ficar em Fhár
sob a proteção da rainha Emelia.
— E caso isso não aconteça? — A anciã voltou a questionar e
Lymena observou Srala se remexer ao lado dela. Ninguém ali estava
passando dos limites, todas mereciam uma resposta.
— Caso isso falhe, descerei para encontrá-la.

Adhara escutava a própria respiração, sentia o compasso do coração


dentro do peito. Calmo… analítico. Os olhos estavam acostumados à
escuridão que começava a tomar conta da floresta. O crepúsculo dava os
primeiros sinais de iniciar, indicando a noite próxima, mas nem isso a fez
ter vontade de voltar. Sentia-se bem ali, no meio das árvores, com as botas
enfiadas na neve alva, ao seu redor apenas o som dos animais menores da
floresta, das parcas folhas nas copas ressequidas submetidas ao vento frio,
de…
A flecha voou com rapidez quando ela virou o corpo e soltou a corda,
atirando de forma impiedosa no invasor próximo. A sombra que se
aproximava desviou de uma forma quase sobrenatural, fazendo com que o
rosto de Adhara perdesse a cor e as mãos estremecessem.
— Pelos deuses… O que está fazendo aqui? — ela gritou, mas o
responsável por aquelas terras continuou se aproximando. — Eu poderia ter
enfiado uma flecha em você!
Zephyr olhou para a árvore próxima, onde a seta havia sido fincada.
Depois, voltou a atenção para a princesa, divertindo-se com aquilo.
— Ficaria muito decepcionado se não o tentasse, princesa…
Adhara não soube o que responder, mas nem ousou abaixar o arco,
ainda na defensiva. Zephyr parecia ter uma confiança incomum de que ela
nunca tentaria feri-lo. Ele aproximou-se dela, fazendo com que a jovem
notasse a seriedade tomar conta de seu semblante. Ela engoliu em seco, as
mãos apertando a madeira sedosa do arco de forma instintiva. Não gostava
daquela expressão dele.
— Está muito próxima dos limites que lhe mostrei, princesa.
— Não fiz de propósito. Precisava de um lugar alto, mas sem muito
vento para treinar. — Adhara imediatamente mentiu. O que ela precisava
era se afastar do castelo.
Enquanto estava por lá, um cansaço incomum parecia consumi-la,
principalmente quando ele se aproximava. No momento em que Nyra
aumentava a distância entre eles, Adhara começava a se sentir bem, como
se o vento gelado trouxesse com ele parte de sua essência de volta, além de
que a baixa temperatura e a neve sempre lhe lembravam dos pais.
— O rei foi enfático em pedir que te protegesse. — Ela nada disse,
por isso Zephyr esperou por um tempo até fazer a pergunta. — Posso vê-la?
Adhara demorou a entender o que aquele homem queria, mas os olhos
do nobre correram pelo arco e pararam nas mãos dela, que seguravam a
madeira com força, mostrando a tensão que se encontrava. Achou o pedido
estranho, sempre usou o arco e ninguém nunca teve qualquer interesse
nisso: em saber se havia aprendido a proteger-se, a utilizar aquilo que o pai
havia ensinado desde pequena.
Ela assentiu, um pouco tímida com aquele interesse peculiar.
Deu dois passos adiante e escolheu o alvo. A flecha que soltou antes
de vê-lo estava cravada na madeira de um tronco envelhecido próximo e
Adhara se lembrou de como ele se desviou sem fazer o mínimo esforço.
Pela tensão da corda e velocidade com que a flecha saiu do arco, aquilo
deveria tê-lo acertado, talvez rasgado sua carne com facilidade.
Respirou fundo, sentiu o vento bater no rosto e concentrou-se. O
silêncio era um dos seus guias quando se tratava do arco e flecha, apesar de
conseguir acertar seu alvo até mesmo quando estava em cima de Nyra.
Puxou a corda com delicadeza e sentiu o corpo dele colar-se ao seu, por
trás. A reação foi a pior possível, desestabilizando o braço e fazendo com
que um arrepio prazeroso lhe percorresse a pele.
Adhara engoliu em seco, tentando ignorá-lo, mas ele parecia ter
outros planos.
— Você usa o arco para matar as criaturas… — sussurrou no ouvido
dela e o hálito quente ajudou a desconcentrá-la ainda mais. Adhara manteve
o braço acima da linha de visão, buscando o equilíbrio perdido. — Mas já
usou para matar outro tipo… de ser vivo?
Ela não entendeu qual a intenção dele em perguntar aquilo, mas podia
jurar que sentia a excitação de Zephyr, tanto no corpo a pressionando
quanto no tom de sua voz, rouco e denso.
— Não uso o arco para caçar… — Ela sentiu as mãos dele em sua
cintura, os dedos permanecendo ali por um tempo antes de deslizarem para
baixo, pousando em seu quadril largo. — Apesar de ser o comum em quem
maneja…
A voz dela falhou e sentiu a risada em seu pescoço.
— Você tem a postura perfeita. — Zephyr mordiscou a orelha dela e
Adhara fechou os olhos, sem ousar soltar a corda. — Seria um desperdício
se fosse para o Norte.
— Eu não vou. — Ela abriu os olhos e deixou escapar com
convicção.
Soltou a corda e a flecha voou, partindo a que já estava no tronco em
dois pedaços. Ela sentiu o sorriso de Zephyr atrás de si. Em seguida, voltou-
se para ele, os olhos escuros brilhando em desafio e os lábios cheios
curvando-se num riso malicioso. O olhar dela foi para a boca dele e Adhara
percebeu seu corpo ser capturado por uma espécie de feitiço, o desejo
fremente de beijá-lo mais uma vez… experimentar aquela língua passeando
dentro de sua boca, as mãos correndo pelo corpo, desvendando-a.
Respirou fundo e voltou a encará-lo. Depois disso, automaticamente
sentiu o corpo excessivamente cansado. O sorriso dele aumentou, como se
soubesse de que ela não resistiria à sua vontade por muito tempo.
— Venha. O jantar deve ser servido em breve.
Desde que a fenda foi quebrada, Igrik percebeu o poder do submundo
fluir por ele e derramar-se no mundo corpóreo. À medida que os demônios
se banqueteavam, os humanos pereciam e os campos eram banhados em
sangue inocente, sua força aumentava. A ponto de precisar descarregá-la
com frequência, voltando para o submundo e compartilhando parte dela
com os outros Altos.
A realeza estava inquieta. Agora que tinham passagem aberta para o
mundo corpóreo, estavam descontentes em sentar-se naqueles tronos e se
conter a dar conselhos. Os Altos queriam a parcela daquele lugar a que
tinham direito, precisavam sentir a bondade humana ser esmigalhada aos
poucos, a esperança murchar e Atman se partir em lamentos.
Em outras épocas, Igrik usaria seu poder de persuasão para deixá-los
onde estavam, controlá-los para que ele fosse o único Alto andando por ali.
Ele cobiçava o trono de obsidiana, mas este reconhecia apenas um Sombrio.
Mesmo que Merik estivesse longe do submundo, era capaz de controlar
aquele poder como apenas um herdeiro legítimo de Asroth conseguiria.
Para chegar ao trono, Igrik precisaria da adaga de Jyot, que estava nas
mãos de uma caminhante protegida tanto pelo Sombrio, quanto pela Coroa
Vermelha. Suas opções estavam cada dia mais limitadas, mas sabia que
poderia controlar aquela região se tivesse em mãos uma arma tão poderosa.
Naquele momento, ele estava à espreita. Via a princesa Adhara na
companhia de um ser pior que o Sombrio e, para alcançá-la, precisaria de
ajuda. Para isso, desceria em direção aos seus mais uma vez.
— Venho para dizer que o mundo corpóreo é nosso. — Naquele
instante, ele olhava para os Altos, sentados em seus tronos, aguardando o
pedido que ele faria e mudaria o destino de todas as raças que ousavam
enfrentá-los.
Daria a eles o melhor motivo para saírem pela fenda e tomar a parcela
do mundo corpóreo que tanto desejavam.

Zephyr andava pelos jardins e se afastava do castelo quase todas as


noites. Sentia necessidade de respirar, de estar com os próprios
pensamentos, de buscar as respostas que ainda não havia encontrado no
mundo corpóreo.
Ficou preso em Atman por longos séculos, nem sabia ao certo quanto
tempo aceitou sua penitência… Havia se libertado, mas havia um preço a
ser pago. Sentir o gosto do mundo corpóreo afastou-o do que mais
cobiçava, e seus instintos lhe pediam constantemente para voltar.
Quando as árvores o engoliram e o corpo foi coberto por sombras,
ousou retirar o relicário que levava consigo e observá-lo. A luz estava fraca,
tímida, como se as almas presas ali estivessem aguardando o final de uma
história traçada desde que fugiu de Atman. As linhas pretas em seu corpo
pareciam dormentes naquele instante. Às vezes dançavam sob sua pele,
inquietas, mas Zephyr tratava de controlá-las. Há tempos não tomava uma
alma, já que precisava ter acesso a Atman para fazê-lo.
Antes dos Primeiros Anos, quando possuía o poder de um Elemental
em toda sua glória, tinha esse passe-livre: quebrava o corpo do humano no
mundo corpóreo e subia para Atman a fim de tomar a alma tão cobiçada…
Mas seus irmãos descobriram a profanação e o prenderam naquele mundo
como castigo.
Por isso, para caçar uma alma caberia a ele aguardar o destino do
mundo corpóreo, o que acabava sendo uma ironia quando se tinha a
eternidade diante de si e achava a vida humana simplória. As almas que
estavam no relicário nem eram especiais como as de Adhara, mas Zephyr
sentia falta de caçá-las, da energia da captura, da dor que sentia em suas
linhas escuras quando a luz era sugada pelo objeto pousado no peito, da
excitação que lhe cobria o corpo quando sentia o medo de uma nova vítima.
Quem havia passado a alimentá-lo nesse meio tempo era a pureza de
Adhara, a fonte de tudo o que ele buscava ao aprisionar almas em Atman.
Mesmo que a essência dela estivesse em outro plano, Zephyr conseguia
senti-la, como se esta ficasse ali, ao lado da princesa. A energia daquela
garota pulsava para ele.
Mas como teria aquela alma tão cobiçada? Como fazer Adhara a
ofertar-se de bom grado?
Talvez devesse retirar dela o que fosse mais importante… Mas o quê?
Os pais? O título? Talvez a bondade do mundo…
Se fosse aquilo, Zephyr já estava perdendo a batalha. Mesmo que o
mundo estivesse mergulhado em escuridão, a bondade humana ainda era
uma esperança tola que demorava a findar. Entre tantas coisas, o ser
humano era bondoso por natureza, um presente dado desde a criação deles
pelos Elementais, seus irmãos.
De qualquer forma, ele não tinha todo esse tempo. A vida humana era
curta e nisso Adhara não se distinguia dos outros.
Talvez tivesse de quebrá-la em pedaços até não ter mais motivos para
sorrir.
Não é fácil quebrar uma alma pura em pedaços, Zephyr… Sua
consciência o alertou, fazendo com que seu humor piorasse. De qualquer
maneira, a ideia de confrontá-la o excitava, ele podia até sentir o gosto da
esperança dela se diluindo na ponta da língua.
Adhara era inteligente e não tinha medo dele, o que a fazia ser uma
tola, mas ao mesmo tempo a tornava irresistível. Zephyr adorava um
desafio e aquela garota estava se mostrando ser excelente nesse quesito.
Guardou o relicário sob a blusa escura e o brilho diminuiu, como se
as almas ali dentro sentissem a esperança ser estilhaçada, assim como faria
com aquela garota.
Deu as costas para as árvores da floresta e voltou para o castelo.

Domenico esperou Videric e Gavin entrarem na sala de reuniões. O


primeiro ficou surpreso ao ver o irmão ali, já que Arsene não saía das
Florestas Brancas muito desde que Lymena afastou-se, na busca de um
tempo para si mesma. O ruivo comunicou a todos os vampiros de que a
Coroa Vermelha estava em meditação e não sabia quando voltaria. Portanto,
a presença de Arsene ali indicava que algo novo havia ocorrido.
Quando percebeu todos os vampiros presentes acomodados,
gesticulou para que o ruivo começasse a falar.
— Lymena pretende conversar com a princesa Adhara.
Um silêncio estranho tomou conta da sala e Domenico percebeu que
Gavin e Videric o olharam, como se quisessem uma explicação.
— O mundo corpóreo e o sobrenatural estão nas mãos de uma garota
que nem sequer sabe da divisão desses mundos. — Ele logo tratou de
elucidar. — Isso é injusto.
— E a Coroa Vermelha decidiu isso sozinha? — Gavin inquiriu,
descontente.
— As bruxas não respondem aos vampiros, apesar da trégua bem-
vinda entre as raças. — Arsene se irritou com a posição do braço-direito de
Domenico. — Lymena está sendo guiada pelas ancestrais.
Gavin se calou e Domenico olhou para os seus. Desde o rompimento
da fenda, percebeu que os humores estavam por um fio. Decidiu então
explicar antes que aquilo saísse do controle.
— Adhara merece saber qual o perigo que enfrenta e com quem está
lidando.
— Quando você diz quem, você quer dizer Zephyr, o Elemental
caído. — Videric finalmente abriu a boca. — Como vamos alcançá-la?
— Meus infiltrados me disseram que Liuva ainda não perdeu a
esperança de trazer a filha para o Norte. Com ela mais próxima, isso será
possível.
Videric respirou fundo, em um sinal visível e raro de cansaço. Passou
a mão no rosto e depois olhou para o mestre.
— Acha mesmo que Zephyr deixará Adhara sair de lá, agora que
detém a princesa em seu castelo? — O rosto preocupado do comandante
correu os olhos pela sala. — Onde está Merik?
— Caçando Igrik… mais próximo ao Sul. — Domenico encheu uma
taça de vinho, ignorando os olhares questionadores dos outros vampiros. —
Alys está nas Florestas Brancas, a adaga de Jyot também.
— Isso está ficando cada vez pior. — Videric colocou em voz alta o
que todos pensavam. — Qual os próximos passos a tomar então?
— Vamos aguardar a decisão da princesa. — Arsene se levantou. —
Caso ela prefira ficar em Dhárg, a Coroa Vermelha irá atrás dela. — Olhou
para o irmão. — Precisarei de toda ajuda nesse momento.
— Claro que o acompanharei. — Um sorriso começou a nascer no
rosto do ruivo. — Alguém precisa salvar sua bunda.
CAPÍTULO 15

Adhara nunca foi de ficar quieta. Acatava sempre as ordens dos pais
apenas por ter sido criada com educação, conhecendo todas as regras das
boas maneiras na corte. Mas, sempre quando podia, questionava o que não
entendia ou o que lhe incomodava.
Essa personalidade havia enfiado a rainha em diversas situações
desconfortáveis, mas ela sempre resolvia com um sorriso para as vítimas do
ocorrido e, posteriormente, em conversas sinceras com a filha. Por isso,
desde pequena a princesa aprendeu que havia hora até mesmo para fazer
perguntas, e que precisava ficar calada quando a situação pedia. Contudo,
isso não a fazia parar de pensar e procurar por respostas.
Os anos se passaram e ela cresceu, mas a astúcia e curiosidade nunca
deram espaço para que se tornasse uma princesa comedida. Adhara
continuou curiosa e pronta para ter suas respostas a qualquer preço.
Naquele momento, parecia um lobo enjaulado. Andava de um lado
para o outro da biblioteca, segurando um livro e, mesmo que tentasse
disfarçar, não fazia ideia do conteúdo daquelas páginas, já que sequer
conseguia entender uma frase mínima de seu conteúdo.
Desistiu então de se enganar e sentou-se no sofá, jogando o volume
para o lado, frustrada por não conseguir as informações que desejava. O
cansaço começou a tomar o corpo dela, mas Adhara lutou contra aquilo, o
instinto lhe dizendo que tinha de lutar contra o sono e a moleza que
dominavam o próprio corpo.
Sempre que ele se aproxima, sua energia se esvai. Aquilo era um fato
para Adhara, apesar de ainda não conseguir determinar o motivo que a
levava àquilo. Levantou-se do sofá então e foi para a janela da biblioteca.
De onde estava, conseguia ver o jardim peculiar de flores escuras, o lugar
que Zephyr visitava todas as noites antes de sumir em meio à neblina da
floresta. Por que aquele homem sempre se afastava do castelo durante a
noite? Quais outros mistérios ele ocultava dela?
O crepúsculo se aproximava, diminuindo a temperatura… Adhara
podia sentir quando tocava o vidro da janela e o sentia gelar. Para piorar,
ainda nevaria intensamente naquela noite, dificultando a visão. Mas aquilo
não a impediu de se afastar e pegar o manto que havia jogado no sofá para
sair dali, ignorando o livro aberto e inacabado.
Assim que deixou a biblioteca, Gaut lhe aguardava, a postos. Quando
ia começar a segui-la, a princesa direcionou ao guarda um olhar firme que
dispensava explicações.
— Princesa Adhara… — ele tentou contornar aquela determinação.
— A noite está se aproximando.
— Eu preciso ficar sozinha. — Olhou como se pedisse desculpas, mas
sem pensar em recuar. — Irei apenas até o jardim. Descanse, Gaut. Amanhã
pretendo visitar mais vilarejos.
Depois de um tempo, viu o guarda assentir. Conhecia a princesa o
suficiente para não a contrariar quando queria algo. Ela agradeceu-o por
aquilo, pois sabia o quanto lhe incomodava ir contra as ordens do seu rei.
Adhara saiu do castelo tempos depois sem pegar Nyra daquela vez.
Andou por um tempo e, quando se deu conta, chegava no jardim peculiar de
Zephyr. Parou por um momento, observando as flores escuras imaculadas,
mesmo com o frio incansável do Sul. As pétalas pareciam feitas do veludo
mais caro de Dhárg e não se incomodavam com os pequenos flocos que
começavam a cair.
Adhara permaneceu ali, observando como as flores se tornavam ainda
mais belas salpicadas pelo branco. Não percebeu o céu escurecer, o tom
alaranjado do inverno dando espaço para o arroxeado e, depois, ao azul
escuro. Esfregou as mãos e se sentiu tola em ter saído sem suas luvas.
Foi quando escutou o som de passos e se virou. Havia alguém se
aproximando. Não queria conversar com ninguém, nem mesmo explicar o
porquê estava ali, solitária e quieta. Apenas afastou-se do jardim e enfiou-se
entre duas árvores com troncos próximos. Aguardou, achando que era um
dos criados ou até mesmo Gaut vindo atrás dela, mas ficou surpresa em ver
Zephyr atravessando o jardim.
Ele parou próximo de onde a princesa estava, olhando para o céu. A
neve caía em seu cabelo, molhando as pequenas ondas e formando gotículas
nos fios escuros. Nuvens densas saíam dos lábios dele, mas ele nem parecia
incomodado com o frio. Estava sério, de uma maneira que Adhara nunca
havia visto. Aquela expressão era muito diferente da mostrada a ela quando
queria se aproximar.
Darei isso a você…
Saberá o que quero quando chegar a hora.
As palavras daquele homem lhe invadiram a mente como se estivesse
pronunciando-as em seu ouvido. Um arrepio desconfortável percorreu o
corpo da princesa, fazendo-a se lembrar da promessa que ele havia feito.
Tudo o que Adhara queria era segurança para o seu povo, e sabia que o
preço a pagar nunca seria barato.
Depois de um tempo, ele afastou-se do jardim e caminhou em direção
às florestas próximas, sumindo na neblina. Adhara permaneceu onde estava,
aguardando para ver se ele voltava. Quando percebeu que estava só por
tempo demais, decidiu segui-lo.
Sem pensar duas vezes, cortou o jardim e enfiou-se na floresta.

Ela estava próxima. Igrik podia sentir a energia da garota dentro


daqueles domínios enquanto um sorriso cruel se formava em seus lábios.
Ao lado dele, criaturas maiores andavam de um lado para o outro, farejando
o vento que vinha do Sul.
À procura da princesa.
Igrik estava se arriscando, mas precisava de algo para mostrar aos
Altos que o mundo corpóreo tinha muito mais a oferecer do que sangue
inocente e fraquezas humanas. Os demônios ao seu lado eram de uma classe
superior à das criaturas que andavam pelos reinos, abocanhando e rasgando
tudo o que conseguiam alcançar. O que os outros tinham de velocidade e
fome, aqueles tinham de astúcia e força. Foram eles que Igrik escolheu para
provocar o Elemental caído, que insistia em viver como um humano e não
escolher um lado daquela guerra.
— Matem tudo que encontrarem.
Apenas uma frase solta no ar e é dada a ordem que todo demônio
esperava escutar de um superior. As criaturas uivaram e enfiaram-se nas
florestas, rasgando com suas presenças abomináveis os limites que Igrik
sabia existir. Eles caçariam a dona daquele aroma, sentido assim que foram
trazidos para a floresta, prontos para deturpar e destroçar qualquer sinal de
pureza.
Igrik observou as criaturas sumirem por entre as árvores e, sem
esperar pelo resultado daquilo, virou-se e afastou da fronteira.

Um tempo atrás, Zephyr começou a apreciar as caminhadas pela


floresta durante a noite. Aquilo fazia com que conseguisse colocar os
pensamentos em ordem, que lembrasse qual era o seu propósito ali, além de
como analisar como ser bem-sucedido em seu intento.
Adhara estava cada dia mais insegura e ele sabia que aquilo
aconteceria. A princesa não tinha o comportamento de uma nobre comum:
era astuta, questionadora e não ficava quieta como os pais pensavam. Isso
fazia com que conseguisse captar as coisas rapidamente, fazendo-a se
questionar, por exemplo, como Zephyr conseguia manter as criaturas longe
de suas terras. Além disso, havia a energia dela, que a protegia de uma
maneira até mesmo inconveniente.
Apesar da atração que todo humano sentia ao encarar o sobrenatural,
Adhara parecia lutar contra aquele desejo, como um peixe lutava contra a
correnteza para subir o rio. No entanto, Zephyr sabia que qualquer esforço
dela seria inútil, já que seu destino era cair nas garras dele. Quando isso
acontecesse, ele as enfiaria naquela carne tenra, disposto a sorver até a
última gota.
Ele sabia que Adhara o observava desde que chegou no jardim.
Ignorou, inclusive, a tentativa patética dela de se esconder. Queria ver até
onde a princesa chegaria. Por isso, enfiou-se na floresta, sem deixar de
sentir a energia da garota por perto.
Enquanto caminhava, perguntava-se o motivo dela gostar tanto
daqueles jardins peculiares em vez da proteção do castelo. Sabia que ela
gostava das flores, até mesmo havia dito que no castelo principal ainda
haviam algumas. Contudo, naquela noite nevava muito e o frio se
intensificava a cada passo.
Zephyr parou de repente, atento a qualquer anormalidade. Algo
entrava pela fronteira, seu poder ondulando, sentindo os invasores. Fechou
os olhos e se deixou ir… a energia varreu as terras, procurando-os. Quando
enfim os encontrou, seu humor piorou consideravelmente.
— Malditos demônios… — sussurrou em meio ao vento forte da
noite.
Aquelas não eram as mesmas criaturas que costumava andar pelo
mundo corpóreo desde que a escuridão começou a se espalhar por aquelas
terras. Maiores, mais perigosos. Zephyr conseguia senti-los, a raiva… a
cobiça.
Aguardou, contando os passos de cada um, sentindo a energia deles
mudarem à medida que andavam por entre as árvores, indo para o lado
oposto ao castelo. Estudou os movimentos, perguntando-se qual seria o real
alvo daquelas bestas. Pareciam dispostos a enfrentar o poder que ele
levantou quando se apossou daquelas terras.
Seriam tolos se fossem enfrentá-lo. As criaturas acabaram passando
por ele sem perceber, focados em algo mais interessante, apetitoso, que
estava longe demais do castelo para manter-se a salvo.
— Adhara…
Zephyr soltou o nome que temia, xingando-se por sua tolice. Aqueles
demônios não o caçavam, tampouco estavam ali para provocá-lo. Buscavam
algo mais precioso, que valesse o risco de entrar em seus domínios.
Sem pensar duas vezes, Zephyr começou a correr na direção da
princesa.

Adhara sempre conseguia se orientar quando estava nas florestas, mas


daquela vez se perdeu. Tentava se orientar pelo vento, mas a neve estava
forte demais para visualizar qualquer direção. Fechou o manto para proteger
o corpo do frio e olhou para cima. A neblina engolia cada parte do céu e,
mesmo quando se dissipava, não era possível vislumbrar as estrelas.
Procurou descer as pequenas montanhas. Sabia que o castelo ficava
em um campo, abaixo das florestas. Começou a dar alguns passos na
direção que achava ser a correta quando ouviu o som. Ela o conhecia, já que
havia fugido daqueles rosnados por anos.
Aguardou por um tempo, sem saber para onde olhar. Talvez as
criaturas desistissem da caçada e se afastassem. Com isso, conseguiria
voltar para o castelo e avisar Zephyr. Mas sabia que as bestas não lhe
dariam uma chance sequer de fuga caso a avistassem.
Em dias normais, estaria preparada para enfrentá-los, até mesmo
ansiosa em enfiar flechas naqueles corpos distorcidos. Mas ali, sem seu arco
em mãos, seria uma presa fácil. Com certo receio, virou-se e se deparou
com um monstro a olhando. Era bem diferente das que costumava ver
andando por Dhárg enquanto banhavam suas terras com sangue.
Isso fez Adhara estremecer com um medo genuíno.
Aquele era maior, os dentes não eram expostos como o das criaturas
menores, mas onde Adhara antes via apenas pele morta e a ausência de
olhos, naquelas era capaz de encarar os olhos avermelhados, de um brilho
incomum.
Contudo, ambas tinham algo em comum: assim que a encontravam,
não pareciam dispostas a deixá-la ir. A princesa enfiou as mãos no gibão, os
dedos encontrando o cabo da adaga. Sacou a lâmina com cuidado,
observando como a criatura reagiria.
O monstro gritou e Adhara escutou as vozes de dezenas de pessoas
gritarem junto, como num coro infernal. Colocou as mãos nos ouvidos em
uma tentativa tola de barrar aquele som profano, sentindo os olhos
lacrimejarem em resposta. A dor veio logo em seguida, quando a besta se
aproximou e as vozes desesperadas continuaram a sair pela boca dela.
Adhara sentiu vontade de vomitar, mas percebeu que não podia ficar ali ou
seria abatida.
Que tipo de monstro era aquele?! Como havia conseguido entrar nas
fronteiras protegidas de Zephyr? Agarrou o cabo da adaga e tentou encarar
a criatura que a olhava com certa fome.
— Suma daqui!
Aquela ameaça não fazia sentido, ela sabia. A besta nem mesmo a
entendia, mas assim que falou, o monstro fechou a boca e as vozes se
calaram. Apesar do silêncio, a vontade de vomitar persistia.
Escutou o monstro farejando o ar, enquanto o corpo dela se
enregelava, como se pudesse sentir a morte a rondá-la. Não estava gostando
nada daquilo.
O ser rosnou e, depois de um tempo, outros iguais a ela surgiram,
parando próximo àquele, que deveria ser o líder. Adhara não soube dizer
quantos havia ali, nem teve tempo para isso. Virou-se e começou a correr
antes mesmo dele reabrir a boca e voltar a gritar, sendo acompanhado pelos
outros.
Assim que aquele som voltou a atingi-la, ela cambaleou, como se
estivesse sendo drenada por aqueles gritos, sem enxergar para onde ia.
Eram tantos…
Quantos gritos ouvia? Seriam das bestas ou de suas vítimas?
As lágrimas que insistiam em se acumular nos olhos a cegavam, mas
ela não largou a adaga e nem parou de correr. O manto agarrava-se aos
galhos ressequidos e ela precisava puxar o braço para se livrar daquilo.
Sentiu a pele se machucar quando a madeira a encontrou, mas ignorou a
dor. Só parou quando as botas bateram em chão sólido.
Passou o braço livre no rosto para espantar as lágrimas, o membro
que empunhava a adaga estremecia com o esforço. Não queria admitir, mas
estava com muito medo. Era mais que receio daquelas criaturas: temia o
que elas representavam, apavorava-se diante da hipótese de se juntar
àquelas vozes.
Quando conseguiu por fim enxergar, percebeu que estava no meio de
um lago congelado. Só então olhou para baixo. Não conhecia aquela
floresta como queria, mas já tinha escutado sobre aquela parte do mapa.
Tome cuidado, há lagos traiçoeiros por todo o perímetro.
A voz de Zephyr parecia uma maldição naquele momento, quando
Adhara percebeu que havia se enfiado em uma armadilha. Não conseguia
ver a densidade do gelo, mas não ousou sair dali, já que ficar ali poderia
mantê-los afastados por um tempo.
Esperou, segurando a adaga com tanta força que sentia os dedos
dormentes. Depois de um tempo, viu olhos vermelhos entre os troncos das
árvores e respirou fundo, aguardando a hora de revidar. Os monstros não
voltaram a gritar, mas uma das bestas arriscou a se aproximar. O gelo chiou
sob o peso dela e Adhara então fitou os próprios pés, com medo de que o
gelo rachasse e ela mergulhasse nas águas congelantes do lago naquele
instante.
Afastou-se da besta com calma, o gelo trincando perto da pata de
garras largas da criatura. Aquilo não pareceu refreá-la, que deu mais dois
passos na sua direção. Adhara se preparou, inclinou o corpo e subiu o braço
até que a adaga estivesse posicionada.
Ao ver o desafio na postura da princesa, a criatura avançou. Adhara
foi rápida, virou o corpo, a lâmina cortando a carne, com sangue escuro
jorrando da ferida, fazendo com que a besta estremecesse e gritasse. As
vozes voltaram e Adhara precisou de todas as forças para continuar
segurando a adaga. Aqueles gritos… a fraqueza tomou conta do seu corpo,
fazendo-a cambalear.
Outra besta se aproximou e ela percebeu que não teria a sorte de
enfrentar uma por vez. Antes que perdesse a chance, pulou na criatura
ferida com a adaga nas mãos. A lâmina foi enfiada na jugular e sangue
escuro banhou toda sua pele, deixando um cheiro podre no manto. O animal
estremeceu e, depois de um tempo, caiu inerte no lago.
— Adhara!
Finalmente sentiu alívio diante da voz conhecida… mas antes que
pudesse virar para se deparar com seu salvador, o gelo sob seus pés ruiu e
ela caiu no lago. A água gelada invadiu seu vestido e encontrou o corpo, o
manto pesando a levando para o fundo.
Adhara bateu as pernas para tentar alcançar o buraco que a levaria de
volta à superfície, mas todo o esforço parecia inútil. O corpo foi ficando
dormente. Sentiu as pernas perderem a força, a mente começando a anuviar.
Durma, ela dizia. Para evitar o sofrimento, para que aquele frio
parasse… Quando não aguentava mais, seus olhos se fecharam e a
escuridão a dominou.

Zephyr não acreditou quando o gelo abriu sob os pés da princesa e ela
sumiu no lago. As criaturas guincharam e se afastaram ao vê-lo. Ele lidaria
com aqueles demônios depois, mesmo sabendo que estavam ali a mando de
alguém.
Correu para o lugar onde ela havia caído, os olhos buscando por
qualquer sinal de Adhara. A neve ainda caía, insistente e impiedosa,
deixando tudo ainda mais difícil. Zephyr se aproximou do buraco e nem
pensou duas vezes antes de tirar o manto e o gibão que usava para pular na
água. Tinha de encontrá-la.
O frio bateu em seu corpo de repente e Zephyr sentiu um pequeno
desconforto. Mesmo em sua forma humana, não sentia a fraqueza que vinha
com a espécie, mas sabia que com Adhara era diferente. Lutava contra o
tempo.
Nadou para o fundo, os olhos buscando por ela. Um sentimento de
desespero invadia-o de repente, fazendo com que se sentisse confuso. Não
conseguia discernir se aquilo vinha da possibilidade de perder uma alma tão
singular ou seria aquilo que eles chamam de luto, devido a possibilidade
daquela morte.
Ele desceu. Como não conseguia enxergar, percebeu que seria inútil
procurar o corpo da garota daquela maneira. Então decidiu se guiar pela
energia. Fechou os olhos e se concentrou. Vamos, Adhara, me leve até você.
Silêncio.
Sentiu a água sobre o peito aquecer e, depois de um tempo, o relicário
brilhou, iluminando a imensidão escura. Fechou os olhos diante da luz
forte, mas depois acostumou-se àquilo. Procurou por ela mas, num primeiro
momento, encontrou apenas o corpo da besta que a havia perseguido. Logo
abaixo, enfim, encontrou a garota inerte.
Nadou até Adhara. Estava tão fraca… Até mesmo a energia que fluía
dela parecia estar se apagando. O braço forte enlaçou-a pela cintura e enfiou
a mão dentro da bota, retirando uma adaga. Cortou o laço do manto e a
libertou daquele peso. A princesa começou a subir e ele a empurrou para
cima.
Emergiu logo depois, olhando-a em seguida. O rosto estava pálido, os
lábios arroxeados. Zephyr a retirou da água e escutou o som das bestas se
aproximando.
Sem dar atenção aos demônios, levou os lábios até os dela e soprou.
Uma, duas, três vezes. Adhara por fim cuspiu a água suja do lago e se
engasgou, mas o corpo amoleceu logo em seguida, a cabeça tombando para
o lado. Ele tocou o colo dela, sentindo que subia e descia.
Estava viva.
Rosnados o tiraram daquele estado de alerta e ele finalmente olhou
para trás. Aquilo era uma armadilha. Não só para ela, mas para ele também.
Adhara morreria se não tomasse uma atitude, mas para espantar os
demônios e salvá-la teria que libertar parte do próprio poder, arriscando que
descobrissem seu paradeiro.
Zephyr não pensou duas vezes antes de pegá-la no colo e, reunindo
parte da energia que havia enterrado quando desceu de Atman, libertou-a na
direção dos inimigos. Os demônios caíram assustados com aquilo e
guincharam, afastando-se.
— Sumam daqui. — A voz era impiedosa. — Diga a seu mestre que
irei atrás dele em breve.
As criaturas correram por entre as árvores e Zephyr começou a andar,
o peso da princesa lhe dizendo que teria de ser rápido. Por sorte, conhecia o
perímetro, e sabia que além dos lagos, havia uma caverna próxima, que ele
usava quando ainda era um peregrino e estudava o verdadeiro senhor
daquelas terras.
O lugar era fundo, o que ajudaria a barrar o frio e o vento. Depois de
descer até uma parte seca e de temperatura mais amena, colocou a princesa
no chão rochoso e fitou-a com atenção. A pele estava ainda mais pálida e a
respiração fraca, o peito mal se movimentando.
Rapidamente, Zephyr cortou o vestido que a garota usava com a
adaga, expondo a roupa de baixo de linho, colada ao corpo. Desfez-se dessa
também e deixou-a nua. Retirou as botas molhadas e os meiões. Sem pensar
duas vezes, retirou a própria roupa e cobriu o corpo feminino com o seu. A
pele dela estava gelada e, apesar do desconforto, Zephyr não se afastou em
momento algum.
Apesar de ter mergulhado no lago para salvá-la, o corpo dele era mais
resistente. Fechou os olhos e acomodou o corpo dela ao seu, sentindo as
curvas da garota, a pele macia e gelada. Ela tremia, o frio parecia consumi-
la, mas ele o expurgaria de qualquer forma. Aquele não seria o dia da morte
de Adhara.
— Não ouse me deixar… — Zephyr pegou-se dizendo. Olhou para
ela, ainda desacordada e com os lábios arroxeados. — Ainda tenho planos
para você, princesa.
Zephyr não soube dizer quanto tempo ficou ali, abraçado à princesa,
mas surpreendeu-se quando enfim sentiu Adhara se mexer, mesmo que
minimamente, debaixo de seu corpo. Afastou-se então para observá-la,
reparando que a cor finalmente havia voltado aos lábios dela.
Os olhos da princesa começaram a se remexer debaixo das pálpebras.
Era como se estivesse tendo um pesadelo, a mente ainda mergulhada no
lago, tentando salvar-se.
Acorde, ele pensou, preciso que você acorde.
Depois de um tempo, ela abriu os olhos com lentidão. Só então o
corpo de Zephyr relaxou, quando os orbes verdes correram pelas formações
rochosas da caverna acima, finalmente fixando-se nele depois. Adhara não
parecia entender o que havia acontecido, mas sua atenção foi para o corpo
nu de Zephyr sobre ela e, depois, para as linhas negras em sua pele.
— O-o-que é isso? — O queixo dela batia e ele a abraçou ainda mais,
parte para tentar conter o frio, parte para desviar sua atenção.
Ela nada mais disse, relaxando nos braços dele. Pareceu se sentir
confortável ali… ou talvez estivesse exausta demais para buscar por
respostas. Após algum tempo, desmaiou outra vez.
CAPÍTULO 16

Adhara acordou no meio da noite, assustada.


A primeira coisa que percebeu foi o fato de não estar em seu quarto.
O colchão era mais duro ali e, mesmo que o dossel da cama estivesse
cerrado, a claridade da lareira ali ainda a incomodava.
Depois, notou a dor. O corpo parecia ter sido pisoteado por cavalos, a
ponto de doer enquanto respirava. Sentia sede e os lábios secos. Levou um
tempo para perceber que, ao contrário do que imaginava, estava em uma
caverna, sob cobertores de pelos. A luz vinha de uma pequena fogueira
próxima, as chamas que achou pertencerem à lareira encarregavam-se de
aquecê-la, o chão rochoso em nada colaborava para aliviar a dor nas costas.
Aos poucos lembrou-se do que havia acontecido. Procurou Zephyr
com os olhos, mesmo sem entender por que o fazia. Tinha seguido o nobre
pela floresta adentro, até aquelas criaturas aparecerem. Mas como ele a
encontrou? Como a teria salvado? Devia ter alucinado, só podia…
Remexeu-se sob os cobertores e percebeu que estava nua. Sentou-se
com lentidão, sentindo dor em cada pequeno movimento, jogando os
cobertores para o lado. O corpo tinha leves cortes e alguns hematomas mas,
apesar da dor, parecia inteiro.
— Zephyr? — Chamou-o mais uma vez, sentindo-se uma tola.
A lembrança de um corpo sobre o dela veio de repente, deixando-a
em alerta. Linhas escuras pintando a pele desconhecida, fazendo-a se
perguntar o que era verdade naquela visão. Nem teve tempo para pensar,
pois logo ele apareceu.
Usava apenas uma calça de couro, o peito coberto por um blusão
simples de linho escuro, as mangas arregaçadas. Ao fitá-lo, convenceu-se
que não tinha sido insanidade aquilo que vira. Notava as linhas escuras com
clareza naquele instante, tomando parte do peito dele, mas concentradas em
sua maioria nos braços, como raízes descendo através da pele.
Adhara não tinha forças para perguntar que tipo de desenhos eram
aqueles, ainda tonta. Cambaleou e Zephyr percebeu, vindo em seu auxílio.
— O que está fazendo? — Ela jogou os cobertores por cima do corpo
numa tentativa de se preservar.
— Você me chamou. — Havia um sorriso desafiador no rosto dele,
mas também preocupação naqueles olhos que a observavam.
— O quê… — Adhara tentava se lembrar do ocorrido. — O que
houve?
— As criaturas a emboscaram no meio de um lago. Você conseguiu
matar uma, mas o gelo ruiu assim que outra tentou te atacar. — Ele não
parecia disposto a poupá-la e a jovem agradeceu por aquilo. — Precisei
mergulhar na água atrás de você…
Os olhos dela se desviaram dos dele, numa timidez fora de hora.
Lembrou-se então do gelo entrando na pele, o frio tomando cada parte de
seu corpo, da mente se desprendendo para que não sofresse mais. Depois,
lembrou-se do peso de um corpo nu sobre o seu, de como o calor daquele
corpo foi bem-vindo.
O rosto de Adhara se aqueceu e, com relutância, voltou a encará-lo.
Antes que dissesse algo, ele lhe chamou a atenção:
— Venha. Há uma fonte termal nos fundos da caverna. Acredito que
um banho lhe fará bem. Está com sede?
Pegou uma pequena cuba de pedra e entregou para ela. A princesa
bebeu a água em poucos goles, um pouco enjoada por causa do estômago
vazio. Depois entregou-lhe o recipiente e desviou os olhos.
— Eu… Preciso das minhas roupas.
— Não há nada que não tenha visto ontem.
Ela colocou as mãos no rosto, querendo enfiar-se de novo naquele
lago e desaparecer.
— Oh, deuses…
Escutou a risada de Zephyr próxima de si e soltou um gritinho quando
os cobertores foram retirados.
— Espere! Eu vou sozinha! — ralhou, tentando tampar os seios sem
muito sucesso.
— Claro que vai tentar, mas não creio que consiga.
A jovem o olhou em fúria, tentando se levantar do chão rochoso.
Assim que os pés firmaram, ela deu um passo, mas quase caiu devido à
fraqueza. Se não fosse o braço forte a impedindo, teria desabado.
— Você está fraca, Adhara. — A voz de Zephyr tornou-se séria e
preocupada. — Deixe que eu a levo.
Ela ficou calada por um tempo, mas depois percebeu que não
conseguiria sozinha. Com relutância, assentiu e deixou que ele a içasse.
Estremeceu com aquele contato. Tê-lo próximo com diversas camadas de
vestido era uma sensação muito diferente de sentir a pele quente
pressionando-a, nua.
Zephyr a levou para o fundo da caverna e Adhara sentiu o ar ali mais
quente. Sua pele agradeceu aquele calor e a princesa olhou adiante,
observando a fonte termal que ele havia mencionado. Esperou que fosse
colocada no chão, mas Zephyr parecia ter outros planos.
Com Adhara no colo, desceu os degraus rústicos, segurando-a
enquanto mergulhava seu corpo dolorido na água convidativa. Diante do
contato, a jovem relaxou cada um de seus músculos… Isso até que chegasse
aos cortes abertos. Foi quando Adhara chiou.
— A água fará bem para os machucados. — Zephyr disse no ouvido
dela. — Relaxe…
— Não consigo fazer isso com você me segurando. — Ela admitiu.
— Acredito que pode me soltar, a fonte nem é tão funda.
— A questão é que não quero soltá-la. — A confissão saiu rouca dos
lábios de Zephyr. As mãos fortes apertaram a carne das coxas dela, mas os
braços que a sustentavam foram retirados.
Adhara se assustou quando os pés não encontraram o chão rochoso.
Bateu as pernas e o enlaçou no mesmo instante, usando o corpo dele para
não afundar. Uma risada maliciosa fez cócegas em seu ouvido, o hálito
quente lhe acariciando a pele do pescoço.
— Acredito que assim seja melhor. — As mãos foram para a cintura
dela, mas desceram para as nádegas, onde pressionou, mantendo-a firme
contra si.
Adhara conseguia sentir o quanto Zephyr estava excitado naquele
instante. Se recusava a admitir, mas estava gostando de toda aquela
proximidade, mesmo que aquilo fosse errado, íntimo demais.
— Pare com isso…
— Com o quê, exatamente?
— De se divertir às minhas custas.
Zephyr a observou, seus olhos escurecendo quando o dedo lhe tocou
o queixo, forçando Adhara a manter contato visual.
— Acha mesmo que me diverti quando a vi cair naquele lago?
Quando vi sua pele ficar pálida e o corpo começar a desistir? — Ela engoliu
em seco, mas o nobre continuou, descendo o dedo pelo pescoço delgado. —
Precisei puxá-la de volta e confesso que tive medo. — Diminuiu a distância
entre os rostos e sussurrou quando acariciou o colo desnudo. — Isso não
muda o fato de ter gostado de sentir suas curvas sob mim, assim como estou
gostando de sentir suas pernas me apertando.
— Zephyr…
— Já foi tocada por um homem? — Ele a interrompeu. — Ou seguiu
as regras da corte de que apenas seu marido teria esse privilégio?
Adhara não sabia o que responder. No que consistia em obediência,
aquele era um dos únicos vieses que seguiu sem pestanejar. Queria entregar-
se a alguém que merecia, um homem íntegro que teria bondade o suficiente
para estar ao lado dela durante sua regência. Um homem que a amasse e ao
Sul, como ela o fazia.
Bom, o homem que a olhava não possuía nada daquilo, mas nem isso
fazia seu desejo diminuir. O silêncio diante do questionamento fez Zephyr
sorrir.
— Intocada… como imaginei. — As mãos dele apertaram as nádegas
dela e a puxaram mais para si. — Use essas pernas para se segurar,
princesa.
Adhara obedeceu e sentiu as mãos dele correrem pelo seu corpo. Não
o impediu, deixou que os dedos deixassem rastros quentes por onde
passavam, na linha da cintura, nos braços, até chegar nos seios. Zephyr
roçou os dedos em seus pontos mais sensíveis e ela reagiu da pior maneira
possível, apertando-o com as pernas e arqueando, num claro convite. Um
sorriso malicioso percorreu o rosto antes sério, fazendo-o mordiscar a
orelha dela, para depois sussurrar.
— Me dê o que quero, Adhara… E serei seu servo.
Ela estava sem fôlego, sem conseguir se concentrar direito com as
mãos dele onde estavam. Zephyr a provocava, correndo os dedos pelos seus
mamilos, vez ou outra beliscando com delicadeza. Depois, desceram para a
cintura, onde ele começou a fazê-la mexer-se, fazendo seu pau esfregar
contra as coxas dela, arrancando gemidos.
Adhara ainda podia estar confusa, mas jurava ter visto as linhas do
corpo dele flutuando, como se acompanhassem o movimento da fonte.
— O que você quer? — pegou-se perguntando.
— No momento? Apenas seu corpo.
Apenas. Adhara sabia que aquele seria o primeiro espólio que ele
tomaria. Insatisfeito, acabaria por engolir tudo. Sua coroa, pureza…
sanidade. Ele aguardava a resposta com um sorriso no rosto, como estivesse
escondendo o que mais desejava. A jovem engoliu em seco e depois
assentiu, consentindo naquele roubo, deixando-o entrar e pegar o que
queria.
A boca de Zephyr desceu sobre a dela e assim que o sentiu, abriu os
lábios para recebê-lo. A língua mergulhou, atrevida e quente, o toque que
ela tanto ansiava desde que o havia beijado pela primeira vez. Sentiu o
corpo corresponder de uma forma deliciosa, amolecendo nos braços dele,
sem conter-se enquanto esfregavam-se um no outro.
Assim que Zephyr intensificou o toque, ela sentiu sua energia ser
drenada, um cansaço estranho a tomando… Começou a lutar contra aquilo.
O nobre se afastou com certa relutância e a içou para a borda da fonte, os
olhos mais escuros do que o normal devassando seu corpo nu.
Adhara sabia para onde ele olhava, o que desejava, mas não deu
chance para que sua timidez a fizesse recuar. Zephyr abriu as pernas dela e
correu as mãos pelas coxas grossas, as pontas dos dedos alcançando
brevemente o centro de sua intimidade, fazendo-a perder momentaneamente
a razão.
— Não seja tímida… sabe que isso é inevitável. — Um sorriso
prepotente nasceu nos lábios dele. — Não ficarei satisfeito enquanto seu
sabor não invadir minha língua.
Aquilo fez o rosto dela queimar, enquanto seu corpo ansiava por
mais. Em um movimento atrevido, afastou ainda mais as coxas, querendo
ser provada. Ele então a puxou, sem se importar com as pedras raspando
sua pele. Espalmou a mão na barriga de Adhara, que deixou ser conduzida
até suas costas encontrarem o chão.
Quando a boca dele mergulhou e a língua encontrou o caminho do
prazer em seu corpo, Adhara quase gritou. Inquieto, devasso, ele saboreou
toda a extensão dela. Experimentou-a por inteiro, encontrando seu ponto
sensível, sugando-o como se estivesse saboreando o melhor vinho de
Dhárg.
Sem parar, enfiou um dedo nela. Uma mistura de dor e prazer a
tomaram quando Zephyr começou a se mexer dentro de Adhara, enquanto a
língua deslizava por toda sua extensão. Depois de um tempo, retirou o dedo
e o mostrou.
— Vê isso, como está molhada? É seu corpo pedindo por mais.
Ela tentou responder àquilo, mas ele voltou a mergulhar a boca nela,
calando-a. Adhara não conseguia pedir que parasse, porque o queria ali,
dentro dela, mesmo que parecesse tão errado. Aquele homem representava
um perigo que seu subconsciente lhe gritava todo dia para se afastar. Mas
como fugir daquilo que a mantinha viva?
À medida que Zephyr a experimentava, a princesa se contorcia. De
repente, ele afastou-se, fazendo com que Adhara o fitasse, confusa.
— Acha que a farei gozar pela primeira vez com a boca?
Em um impulso, saiu da água e encaixou-se entre as pernas dela.
Adhara ficou à espera de mais, só que Zephyr parou
— Pegue o que você quer, Adhara.
Por um momento, ela não acreditou na ousadia daquele homem. Mas
Zephyr estava certo, nunca foi conhecida por ser complacente. Quando
queria algo, o tomava para si.
As mãos nem hesitaram ao agarrar os cordões da calça de couro,
desamarrando-a, descendo o tecido enquanto ele retirava o próprio blusão.
Adhara correu os olhos pelo corpo dele, apreciando cada músculo no lugar
certo. As linhas escuras percorriam o torso forte, mas eram mais esparsas
conforme desciam pelo quadril. Ela as tocou, observando-as dançarem sob
seu toque, ficando fascinada com aquilo.
Zephyr gemeu e ela não soube se era de desconforto ou prazer. Queria
acariciar aquelas linhas, correr as unhas por elas e acompanhar o desenho
que faziam no corpo dele. Descobrir o quanto poderiam tirar o controle
daquele homem.
— Por que as tem? — deixou a pergunta escapar. Aquilo não era
normal, pareciam desenhos com vida própria.
Os olhos dele a observavam com atenção. Adhara pensou por um
momento que não responderia.
— Uma punição merecida — declarou, somente.
Pensou em abrir a boca para fazer mais perguntas, mas ele se livrou
das calças e encaixou-se entre as pernas dela. Adhara o sentia ali, próximo
demais, o corpo clamando por tê-lo… Mas ele resistia, fazendo-a quase
implorar para que a possuísse logo.
Sentiu então algo gelado entre os seios. Foi quando olhou para baixo
e vislumbrou um relicário pousado ali, de um brilho leitoso. Observou
aquele objeto, fascinada. A energia vinda dali a chamava. Algo contrário à
que estava acostumada.

Zephyr xingou baixinho quando Adhara correu os olhos pelo


relicário. No desejo de tê-la, esqueceu de esconder o objeto, que parecia
acordar à medida que a tocava. A princesa o olhava com curiosidade, a joia
parecendo responder àquela atenção. Adhara subiu os olhos verdes na
direção de Zephyr.
— O que é isso?
Ele tocou os lábios dela com o dedo, calando-a. Depois, beijou-a com
toda fome possível, fazendo com que a princesa se esquecesse do objeto.
Quando a tocava, sentia uma necessidade estranha de buscar a luz que havia
dentro daquela garota, como se a escuridão que lhe habitava ansiasse por
devorar o seu oposto. Ela se dava inteira, sem hesitar, entregando parte
daquela pureza, da clemência, de tudo o que havia de bom no mundo… e
Zephyr nunca se saciava, numa excitação crescente, em uma necessidade
quase dolorosa de consumi-la até o fim.
Ele a penetrou sem aviso, assim como recusou-se a comentar sobre a
dor que Adhara sentiria. O fato é que quando a invadiu pela primeira vez,
percebeu que poderia enlouquecer. Ela era apertada, como apenas uma
virgem seria, mas foi capaz de acomodá-lo dentro de si, como se o seu
corpo fosse criado para recebê-lo.
Adhara não gritou ou o refreou. Pelo contrário: um gemido delicioso
escapou de seus lábios e ela apertou as pernas em volta dele para que
Zephyr se mexesse.
— Merda… — Ele deixou escapar quando sentiu como ela estava
escorregadia. — Você vai me enlouquecer.
Voltou a meter-se dentro dela, enquanto a beijava outra vez. Adhara
reagia aos seus movimentos, respondendo às investidas do quadril,
recebendo-o fundo, correspondendo ao toque das mãos que lhe apertavam,
mantendo-a no lugar. A luz do relicário aumentou, mas Zephyr ignorou-o,
sentindo o objeto responder ao desejo dela, começando a queimar…
Ele não estava diferente. Fodia com força e vontade, como sempre
desejou desde que colocou os olhos sobre a princesa. Imaginou tantas vezes
como seria aquele corpo por debaixo dos vestidos pesados e mantos
escuros… No entanto, naquele instante, todas as expectativas haviam
sumido de sua mente. Encontrava-se entregue, como um maldito servo
devotado que finalmente havia encontrado alguém a quem servir
incondicionalmente.
Adhara o abraçou, mordendo seu ombro conforme o ritmo se
intensificava. Pareciam conversar pelo toque, buscando o mesmo prazer que
encontraram juntos, unidos. Incapaz de se conter, ela lhe arranhou as costas.
Arqueou o corpo e o relicário parecia prestes a explodir, tamanho o brilho
dele emanado.
Zephyr não aguentou mais: derramou-se dentro dela enquanto sentia
as linhas do seu corpo adormecerem, um alívio depois de centenas de anos
infligindo castigos. Depois, elas gelaram, uma sensação completamente
contrária àquela de quando ele capturava as almas.
Ele aguardou qual seria a reação dela. A garota estava sem fôlego,
mas o Elemental sentia o sexo dela lhe apertar o pau, como se não quisesse
deixá-lo ir. Zephyr poderia ficar ali dentro por incontáveis noites, mas
afastou-se brevemente para observá-la.
Os olhos dela estavam novamente sobre o relicário. Adhara estendeu
a mão para tocá-lo, mas Zephyr a afastou com delicadeza. Adhara pareceu
por um momento entorpecida, mas logo acordou. Encarou-o e ele balançou
a cabeça em negativa, como um aviso.
Assim que saiu dela, começou a sentir falta do seu corpo. Ela parecia
alquebrada e Zephyr sabia o motivo. Se acostumar-se à presença dele havia
sido uma tarefa difícil, tê-lo daquela maneira a tinha exaurido. Ele a
carregou nos braços e se afastou da fonte, indo em direção à cama
improvisada. Colocou-a ali e encaixou-se ao lado dela, cobrindo-os com os
cobertores ali disponíveis, que havia trazido enquanto a princesa dormia.
Depois de um tempo, Adhara encarou o relicário mais uma vez, antes
de fitá-lo.
— O que você é? — A voz já estava embargada pelo sono.
Zephyr preferiu não respondeu, assim como ela nem conseguiu
insistir, o sono e o cansaço acabando por vencê-la. Ele ainda ficou ali,
desperto. Pensava em como libertou o próprio poder para afugentar os
demônios e salvá-la, de como aquilo podia ter delatado sua posição, apesar
de Zephyr já desconfiar que seus irmãos sabiam de seus passos.
Ainda se perguntava porque os Elementais estavam calados e
reclusos, mesmo que ele estivesse cada dia mais próximo de Adhara. Ao
mesmo tempo, sentia a energia das ancestrais o perseguindo. Tocou o
relicário, agora adormecido igual a princesa em seus braços. Depois,
acariciou-a no rosto, para depois recuar, como se estivesse fazendo algo
errado. As linhas em seu corpo ainda estavam geladas, dormentes, e pela
primeira vez desde que foi trancafiado no mundo das almas não eram
desconfortáveis de sentir.
Sem que percebesse, Zephyr dormiu ao lado dela.

Nyana sentou na cama em um impulso, o corpo coberto de suor e os


cabelos grudados nas costas. Respirou fundo e esperou a respiração voltar
ao normal. As chamas da lareira quase morta e o silêncio da floresta
indicavam que ainda era noite. Passou a mão ao lado dela, no colchão,
como se ali pudesse ter alguém.
Mesmo sabendo que estava nas Florestas Brancas, tinha o costume de
buscar Videric quando acordava. O vampiro estava sempre por perto,
principalmente quando a percebia inquieta. Ficava ao seu lado nessas
situações, como um guardião, impreterivelmente, até que se acalmasse.
Ela engoliu em seco e com o corpo trêmulo, saiu da cama e calçou as
sandálias. Não se preocupou em jogar um xale no corpo, já que a brisa da
noite lhe faria bem.
O aroma de pésias a saudou, deixando Nyana calma no mesmo
momento. Estava na vila das oráculos, mas não era a única acordada ali.
Srala se aproximou com lentidão. Havia uma pequena vela em sua
mão e, apesar de ser o meio da noite, usava as roupas costumeiras. Os
cabelos longos estavam trançados, os fios embebidos naquele aroma
familiar. Olhou para Nyana, fazendo-a entender no mesmo instante que
aquilo visto enquanto dormia estava longe de ser um pesadelo, mas sim um
aviso das ancestrais, e que a oráculo-anciã havia recebido o mesmo alerta.
Srala colocou a mão livre sobre as dela, que ainda estremeciam. Não
estava acostumada com tanto poder.
— Nyana, está quase na hora… — Os dedos da mulher mais velha
eram firmes, o contato aquecendo a garota. — Prepare seu vampiro. Vou
chamar a rainha.
CAPÍTULO 17

Adhara havia perdido a conta de quantas horas estava presa dentro


daquele quarto.
A neve havia bloqueado a entrada do castelo, mostrando-se mais
densa do que de costume. Naquele momento, olhava para o jardim coberto
pelo manto branco, perguntando-se como Gaut havia conseguido andar até
os estábulos e se certificar de que Nyra estava bem. O guarda tinha
retornado recentemente com notícias que a acalmaram e, embora tivesse
solicitado que fosse para a casarão descansar, persistiu patrulhando o
corredor.
Ele estava ainda mais alerta depois que ela havia sumido e retornou
ao castelo nos braços de Zephyr. Ainda se perguntava como o dono do
castelo tinha conseguido aquele feito, caminhado durante um trajeto tão
longo, com a neve caindo e se acumulando na grama da floresta. Adhara
sequer se lembrava muito da viagem, apenas do manto pesado sobre seu
corpo e do peito largo que usava para descansar o rosto.
Recordava-se ainda de, às vezes, subir o olhar para o rosto de Zephyr,
preocupada com o fato dele usar apenas um blusão naquele frio… Mas ele
parecia tranquilo, mesmo com o rosto pálido. Andava sem dificuldade pela
neve, fazendo-a crer cada vez mais na possibilidade dele não fosse humano,
mesmo que esse pensamento soasse absurdo. Ela não conseguia ficar
acordada para extrair algo dele, em parte por vergonha da noite anterior e de
sua entrega fácil.
Quando Gaut a viu quase desmaiada nos braços de Zephyr, pensou
que talvez seu anfitrião pudesse ser o responsável por aquilo, mas o outro
foi firme em não abandoná-la, só se afastando quando a colocou na cama.
Depois, Adhara soube que ele chamou Gaut para uma conversa
demorada no corredor. Quando voltou a ver o guarda, este estava mais
calmo, apesar de taciturno. Quanto a Adhara, o cansaço só parecia maior,
mesmo depois de ter tomado banho quente e passado algumas horas
dormindo sob cobertores confortáveis.
Naquele momento, sentada em um banco próximo à janela, os olhos
dela desviaram da neve para observar a pilha de livros que estava ao seu
lado. Havia desistido de procurar o misterioso nome que ouviu quando o
estranho invadiu o castelo. Domenico não existia nas páginas de lugar
nenhum, apesar de Adhara ter certeza de ouvi-lo. Havia procurado também
alguma pista sobre o misterioso relicário que Zephyr carregava no pescoço,
mas também não tinha sido bem-sucedida.
Estava sonolenta quando pegou um livro fino e pequeno, bem
diferentes dos tomos grandes com capa de couro envelhecido que dava
preferência. A capa era feita de linho escuro e a lombada não indicava
qualquer título. Adhara o abriu, sem expectativas. As páginas eram
amareladas e havia apenas um nome na primeira página, em uma caligrafia
bonita:
Odilia.
Adhara passou as folhas com uma curiosidade inocente, percebendo
que o livro era, na verdade, um diário. Não sabia se a mulher o escondeu
entre os livros da biblioteca ou se alguém o enfiou entre as prateleiras,
achando que era uma obra comum.
Num primeiro instante, pensou se seria educado ler o conteúdo… Mas
era curiosa e, ao julgar pela data tão antiga, não estaria ferindo a intimidade
de alguém da corte atual. A mulher que era dona daquele diário já devia ter
morrido há tempos. Por isso, antes de começar a leitura, a princesa pediu
desculpas à sua memória e deixou que os olhos percorressem a primeira
linha.
As palavras escritas ali pareciam narrar a vida de uma garota como
qualquer outra. Gostava de bailes, os dias divididos em jantares suntuosos,
escolhas de vestidos da moda, passeios pela floresta para acompanhar os
homens em caçadas, enquanto bebericava chá. Cultivava flores, um hábito
que levava para onde fosse, inclusive para o castelo que seu pai havia
ganhado do rei de Dhárg. Suas peônias estavam cada dia mais belas e eram
motivos de visitas por todos da corte.
Adhara desviou os olhos daquele livro e observou o jardim lá fora. As
peônias negras estavam abaixo da neve, mas ela podia jurar que havia uma
energia latente naquele jardim. Tratou de mandar aquele pensamento
embora, querendo mergulhar na história daquela mulher.
Passou para a folha seguinte e sorriu quando se pegou lendo um relato
dos bailes que ela frequentava. Adhara adorava essas festividades e
lamentava-se todo dia que o Declínio tivesse ceifado qualquer chance de
eles voltarem. Em seguida, seu sorriso morreu ao ler um trecho que lhe
chamou a atenção.
Toda a corte estava presente no meu marco de ano. Príncipes e
princesas, até mesmo alguns plebeus andavam pelos salões, encantados
demais com o ouro, a comida e a bebida que Dhárg tinha para oferecer.
Meu pai sempre foi um homem caprichoso quando o assunto era
impressionar os convidados e minha mãe o incitava a isso. Apesar de
conhecer quem ali estava, alguns poucos me eram estranhos.
Pude jurar ver um homem de rosto sério quando meu par me rodou
no salão, em meio à dança. Ainda lembro da cicatriz enorme que havia em
seu rosto, parecendo pegar da sobrancelha ao lábio superior. O olho
branco não desgrudava de mim enquanto eu dançava. Mas posso estar
ficando louca… pois nunca mais o vi.
Adhara leu aquele trecho diversas vezes. Sabia que a garota não
estava ficando louca, pois havia visto o mesmo rosto no homem que matou
a criatura nas masmorras do seu pai, luas atrás. O olho cego que parecia tão
atento quanto ao outro, escuro, assim como a cicatriz peculiar no rosto…
Além da expressão séria e alerta.
Ela engoliu em seco e buscou a data do relato, as mãos estremecendo
quando viu que o trecho tinha sido escrito há quase cento e vinte anos.
— Não é possível…
Deixou escapar as palavras, que pareceram morrer no ar, encobertas
pelo som do vento batendo na janela. O homem que havia visto nas
masmorras era jovem… Como estaria no baile de uma garota da corte, há
tanto tempo?
Seus pensamentos foram interrompidos quando a porta do quarto foi
aberta. Adhara fechou o diário com rapidez e o enfiou debaixo de uma
almofada, olhando para quem entrou. Zephyr fechou a porta atrás de si, o
cabelo levemente bagunçado, como se voltasse de uma caminhada em meio
à ventania.
Usava um blusão de algodão escuro com alguns botões abertos,
expondo parte do peito largo. Adhara percorreu a pele desnuda, em busca
do relicário, mas não viu o objeto pousado ali. De qualquer forma, aquilo
podia esperar…
— Como entrou aqui? — Observou a fresta debaixo da porta e
semicerrou os olhos. — Onde está Gaut?
Nem mesmo o guarda ou suas criadas entravam naquele quarto sem
bater, por isso a princesa ficou alerta pelo fato do guarda ter permitido que
Zephyr fizesse aquilo. O homem diante dela deu de ombros e,
aproximando-se de um sofá próximo, jogou o corpo ali. Parecia cansado.
Ela permaneceu quieta, aguardando uma satisfação.
— Ele deve estar tirando um cochilo. — Ao ver o olhar questionador
da garota, emendou. — Não se preocupe, não fiz mal algum a ele.
— Nem me preocupo com isso.
— Está mentindo. — Os olhos dele escureceram mais. — Você foge
de mim desde que a toquei na caverna. Está no único lugar que não posso
entrar sem levantar suspeitas. Acha que se enfiar no quarto vai deixá-la em
segurança? — Adhara sentiu uma energia densa e atrativa fluir daquele
homem. — Sabe do que sou capaz.
Adhara engoliu em seco. Precisava se acalmar e, o mais importante,
acalmá-lo.
— Sei mesmo?
Um sorriso sombrio correu o rosto dele. Em seguida, Zephyr deu duas
batidas no sofá, ao lado dele. Ela não soube como reagir, mas algo lhe dizia
que seria estupidez negar ao convite. Com relutância, aproximou-se,
sentando o mais longe possível. Se aquilo o incomodou, ele sequer
demonstrou.
— Você bebeu — ela afirmou, fechando o rosto diante do cheiro que
ele exalava.
— Apenas um pouco. — Os olhos dele correram pela pilha de livros
que estava ao lado da janela. — Já achou o que queria? Ou percebeu que
nada encontrará nesses livros inúteis?
— Estou percebendo isso. Afinal, o que procuro não parece ser desse
mundo. — Adhara tentou se levantar, mas Zephyr a impediu, os dedos
envolvendo com firmeza o seu pulso. — Me solte!
— O que tanto procura?
Adhara percebeu que ele não desistiria tão fácil de obter respostas.
Decidiu então contar. Talvez aquela história pudesse distraí-lo para que ela
saísse do quarto ilesa. Sem aguardar por uma resposta da princesa, ele a
puxou, obrigando-a a se aproximar.
— Há algumas luas, um homem invadiu o castelo principal e foi até
as masmorras… Eu estava lá quando ele desceu as escadas. — Ela olhou
para Zephyr e observou que havia captado sua atenção. — A criatura que
meu pai mantinha presa avançou, mas o homem a matou antes mesmo dela
conseguir se aproximar da grade… nunca vi alguém destruir uma daquelas
bestas com tamanha rapidez. Ouvi um nome naquela noite: Domenico.
O corpo de Zephyr se enrijeceu e Adhara percebeu que o nome era
conhecido por ele. Aquilo fez com que um arrepio lhe percorresse. Depois
de tanta procura por aquele homem, havia acabado de descobrir que quem
poderia lhe dar a informação buscada sempre esteve à sua frente.
— Você o conhece. — Zephyr continuou calado diante da acusação
dela. — Senti a energia daquele homem, sei que não é humana… é uma
energia mais densa, perigosa… — Os olhos verdes dela correram pelo peito
largo e subiram para o rosto dele. — É a mesma que sinto em você.
— A mesma? — Um sorriso jocoso nasceu nos lábios cheios. —
Assim você me ofende.
— Quem é você, Zephyr? O que você é?
Ele se mexeu e inclinou-se na direção dela, calando-a. A energia que
o rondava pareceu aumentar, expandir… Foi quando a princesa percebeu o
seu erro. Era impossível compará-lo ao homem que esteve na masmorra.
Zephyr tinha em si algo mais pesado… letal. Respirou fundo e um cheiro
delicioso a fez salivar. O aroma de uma noite sob a neve, de pinheiros
úmidos. Pertencia a ele.
Os lábios de Zephyr quase tocavam os dela e o hálito quente a fez
arrepiar quando ele falou.
— Não faça perguntas se sabe que não aguentará escutar as respostas,
princesa.
— Não? — Ela o desafiou. — Acredito que já me subestimou muitas
vezes.
— Mesmo? — A ironia fluiu na pergunta. — Então me surpreenda.
Uma raiva estranha percorreu o corpo dela e Adhara o empurrou.
Zephyr não esperava aquilo e deixou o corpo tombar no encosto do sofá.
Sem que esperasse, a jovem subiu no colo dele e o fez sorrir, satisfeito pela
ousadia que havia arrancado dela. A princesa não sabia o porquê, mas uma
necessidade de tocá-lo fez com que percorresse as mãos no peito largo.
Retirou os botões das casas e abriu o tecido que cobria aquilo que ansiava
em ver.
As linhas ainda estavam lá, escuras como a noite. Adhara correu os
dedos por elas e as observou se mexerem. Zephyr fechou os olhos e engoliu
em seco, como se apreciasse o contato.
— Por que sinto isso quando as toco? — A voz dela era sussurrada,
mais um pensamento que deixou escapar do que uma pergunta em si. — Por
que essa energia responde sempre que a invoco?
O peito dele subiu e desceu, fazendo com que ela o observasse, a pele
ficando arrepiada.
— Por que ela a venera… — Zephyr endireitou o corpo e aproximou
os lábios dos dela. — Bem como seu dono.
Adhara não soube dizer qual impulso a fez beijá-lo, mas percebeu que
aquele contato era a única forma que tinha para entender aquilo. Zephyr
abriu a boca para tomar o que lhe era oferecido, a língua com sabor de
vinho, o proibido a consumindo como sempre fazia. As mãos dela correram
por ele mais uma vez, desceram até o tecido da camisa e começaram a
puxá-la para cima.
Ele não ofereceu resistência. Levantou os braços e deixou que a
jovem fizesse o que queria. Adhara deslizou as mãos pelo abdômen dele,
sentindo cada músculo ali, retesando-se pelo toque dela, as linhas
parecendo acordar à medida que os toques dela se tornavam mais ousados.
Zephyr desgrudou a boca da dela, as mãos arrancando o vestido
enquanto a observava.
— Não sabe o perigo que pode encontrar, Adhara. — A voz dele
parecia rouca, uma mistura do vinho que bebeu e do desejo sentido. — Não
tente descobrir um mundo que nunca conseguirá lidar …
As mãos dele cobriram os seios, apertando-os sem cuidado. Adhara
gemeu e tombou a cabeça para trás, expondo-se completamente. A língua
quente deslizou pelo pescoço delgado, como se experimentasse o sabor da
sua pele, as mãos correndo para a cintura estreita, apertando-a ali.
— Já o enfrento… — Ela começou a desamarrar os cordões da calça
dele. — Toda vez que me toca… Que sinto sua energia fluir para dentro do
meu corpo, me paralisando.
Zephyr ajudou-a a se desfazer da calça dele, preso a cada movimento
da garota. Parecia cativo, hipnotizado. Adhara pegou o pau dele com a mão
e o apertou, fazendo-o gemer. Estimulou-o, observando-o retesar-se à
medida que ela subia e descia, esfregando-se nele…
Ele a impediu de continuar. Com um movimento rápido, derrubou-a
no sofá. Adhara segurou um grito assim que sentiu o pau dele roçar perto do
seu sexo, em clara provocação. Zephyr tomou a boca dela novamente e,
sem prepará-la, invadiu-a. Entrou sem resistência, como se o corpo dela
estivesse esperando por aquilo. Todo e inteiro na sua extensão.
Adhara nunca sentia dor quando ele estava dentro dela, apenas um
prazer profano e confortável. Por isso, ela se remexia, incitando-o a
continuar. Zephyr entendeu o que a garota queria, por isso afastou o quadril
e chocou-se contra ela mais uma vez, o som ritmado dos corpos em contato.
Os lábios dele foram para os seios, a boca sugando o que conseguia
alcançar, os dentes mordiscando com leveza os pontos sensíveis. A mão
dele foi em direção ao pescoço dela fazendo Adhara estremecer, e não era
de medo.
— Se não fosse tão pura… Eu poderia tê-la agora enquanto a fodo. —
Ele bateu o quadril ao dela e apertou os dedos no pescoço delicado. —
Minha… Será minha por inteiro.
Ela fechou os olhos. A energia fluiu dele e pediu seu preço, como
garras entrando em seu íntimo, alcançando o que havia de bom dentro dela,
sedento por mais daquilo. O corpo de Adhara aceitou aquele sacrifício e o
que vinha em troca, a escuridão e o sabor que possuía. Sentiu-se ser
drenada, um prazer impuro tomando cada parte de si, fazendo-a gritar o
nome dele.
Ouvi-la fez Zephyr perder o controle, libertando mais daquela
escuridão. Travou o corpo junto ao dela, consumindo seu corpo, pegando o
que havia dentro, parte da sua essência. Adhara sentiu a entrega, o cansaço,
o prazer… e se deliciou com tudo aquilo.
— Em breve… — ele sussurrou.
Uma promessa. Os olhos escuros e atentos dele foram a última coisa
que Adhara viu antes de entregar-se àquele saboroso limbo.
CAPÍTULO 18

Adhara estava em um campo aberto. O aroma adocicado de flores


tomava o ambiente e lhe enchia de energia. Aquele cheiro a acalmava,
como se estivesse esperado a vida inteira para senti-lo.
Não havia neve sob seus pés, nem mesmo qualquer resquício de frio.
Pelo contrário, em vez de vestidos pesados de veludo e mantos jogados
sobre os ombros, Adhara usava um de tecido leve, que acompanhava a brisa
do lugar. O sol tímido lhe acariciava a pele, os cabelos soltos brilhavam
com a claridade.
Ela fechou os olhos. Sabia que estava sonhando. Aquele lugar era
bem diferente de Dhárg, sua casa. Uma energia bem-vinda parecia envolvê-
la, o canto dos pássaros e de um riacho próximo a acalmavam.
— Adhara… — Uma voz cálida a chamou, assustando-a. Ela virou-
se.
Havia uma garota próxima a ela, de cabelos ondulados castanhos, a
pele pálida como a neve e os lábios cheios. Usava um vestido parecido com
o dela, as curvas dos quadris largos e seios cheios destacando-se conforme a
brisa mexia o tecido. Mas foram os olhos que chamaram a atenção de
Adhara, verdes como os do pai. Como os dela.
Adhara observava um espelho.
A garota sorriu e se aproximou. O coração dela acelerou, mas um
desejo estranho de abraçar aquela garota a tomou, como se estivesse vendo
uma irmã há muito tempo perdida.
— Quem é você? — Adhara correu os olhos pela sua cópia.
— Meu nome é Aelua. Eu te pertenço.
Adhara não sabia que tipo de sonho era aquele, mas em nenhum
momento sentiu medo. Tentava entender o que ocorria, e a garota parecia
compreender a sua confusão. Aproximou-se mais e, vendo que Adhara não
se afastaria, tomou a mão dela com delicadeza. O coração da princesa
disparou, uma saudade desconhecida tomando-lhe o corpo.
— Onde estou?
— Você está em Atman. — O sorriso da garota a acalmou. — O
mundo das almas. Estou aqui com a autorização dos Elementais para alertá-
la.
— Me alertar?
Imagens atacaram sua mente. Olhos escuros, lábios cheios e mãos
atrevidas sobre seu corpo. A mente parecia querer lembrá-la de algo. Viu
linhas negras sobre um corpo pálido, um relicário brilhando ao mero toque.
Sentiu enjoo e apoiou-se no toque daquela garota para não sucumbir.
— Há quanto tempo sente esse cansaço? — Aelua perguntou,
solidária.
Adhara a observou. A garota parecia sentir o mesmo que ela, entender
de onde vinha sua inquietação.
— Você conhece Zephyr — a princesa retrucou, convicta.
Aelua demorou, mas assentiu com um gesto.
— Preciso te contar o que sei.
A garota a puxou para uma pedra e Adhara sentou-se. Algo lhe dizia
que sua passagem por aquele lugar seria breve, mesmo que sentisse uma
necessidade quase infantil de ficar. Tudo ali a agradava, desde a claridade
do sol ao cheiro de grama verde recém-nascida.
Aelua passou a mão pelo rosto da garota e Adhara respirou fundo. O
toque acalmou-a no mesmo momento. Depois, a outra lhe explicou tudo o
que sabia.
A princesa sentiu seu mundo ruir quando toda a história foi contada.
Algumas peças se encaixaram. As criaturas, que ela agora sabia serem
demônios, pertencentes ao submundo, tomando todos os lugares,
alimentando-se do desespero humano… A energia estranha que havia se
instalado no Sul e não parecia querer sair…
Aelua falou da origem de Zephyr e o que ele havia feito no mundo,
assim como de que forma recebeu sua sentença e viveu recluso em Atman
por séculos, praticando o mal onde estivesse. Narrou sua fuga até o mundo
que Aelua chamava de corpóreo.
Adhara descobriu que não era apenas Zephyr que era de fora do seu
mundo, mas outras raças consideradas essenciais para o equilíbrio criado
pelos Elementais, uma espécie de deuses para eles.
— Por que Zephyr não foi morto, se praticava o mal até mesmo aqui,
num lugar sagrado?
— Ele é um Elemental, Adhara. Seus irmãos não têm o poder de
matá-lo. Quanto ao fato de trancafiá-lo em Atman, foi uma decisão
estudada pelo sobrenatural. Para nós, a resposta ainda é uma incógnita.
Adhara tinha diversas perguntas em mente, mas respirou fundo e
tentou escolher algumas. Sabia que seu tempo estava acabando…
— Por que eu? — A pergunta saiu de seus lábios, sem que
conseguisse se conter. — Zephyr parece ser atraído por mim.
— Por minha causa. — Adhara semicerrou os olhos, sem entender. —
Sou sua alma, Adhara. Pertenço a você. Ambas somos puras.
— Como assim?
Aelua sorriu, mas não explicou de fato o que aquilo significava.
— Você nasceu com um propósito grandioso. Desde pequena foi
acompanhada pelas ancestrais e pelo mundo sobrenatural. O que Zephyr
quer de você é sua alma. Mas para que eu pertença a ele, o Elemental
precisa do seu consentimento.
Adhara engoliu em seco.
— O relicário… — O rosto de Aelua ficou triste quando a garota
mencionou o objeto. — O que ele faz?
— É onde Zephyr as mantém presas… As almas.
Adhara passou a mão no rosto, sentindo os olhos lacrimejarem.
Aquele homem… Sentiu a escuridão presente na energia dele, mas não
fazia ideia de que ele fosse tão… ruim.
— Eu posso libertá-las?
— Nem mesmo alguém com sua pureza conseguiria quebrar um
feitiço tão poderoso. Contudo…
Adhara aguardou, mas logo em seguida Aelua estremeceu.
— Seu tempo está acabando…
— Espere… — Desespero e urgência a tomaram. — Como posso
matá-lo?
Um sorriso triste percorreu o rosto de Aelua. Naquele instante,
Adhara percebeu que havia feito a pergunta errada… O fato era que não
tinha certeza se conseguiria fazer aquilo. Uma angústia a tomou ao pensar
naquela ideia, e sua alma parecia sentir o mesmo.
— Um Elemental não pode ser morto. Além do mais, não creio que a
solução seja essa.
— E qual seria, pode me ajudar? Zephyr é perigoso, preciso me
afastar dele…
— Precisa mesmo? Apenas você pode escolher isso.
A pele de Aelua começou a desvanecer e Adhara sentiu o peito
apertar, sem querer se despedir.
— Como irei saber que isso não foi um sonho? Como poderei me
lembrar do que conversamos aqui?
Aelua se levantou e foi até uma árvore, retirando dali uma flor.
Colocou-a na mão de Adhara e fechou os dedos dela sobre as pétalas
brancas. O aroma adocicado ficou mais forte, deixando-a calma.
— Procure as filhas de Atman…
Foram as últimas palavras que ouviu antes de abrir os olhos. Adhara
sentiu uma lágrima escorrer pelo rosto e respirou fundo, ficando surpresa ao
sentir o cheiro adocicado no quarto ao despertar. Havia dormido no sofá ao
lado de Zephyr, mas ele devia tê-la colocado na cama depois. Um calor
tomou-lhe o rosto, sentindo uma leve dor entre as pernas, mas não soube
dizer o motivo que a fazia apreciar aquela sensação.
Sentou-se e sentiu algo em sua mão.
Assim que abriu os dedos, viu a pequena flor com pétalas brancas
como a neve. O aroma vinha dela. A energia vinda dali era diferente da que
antes rondava o ambiente.
Lembrou-se do sonho… Não esperou muito para levantar-se da cama
e observar pela fresta debaixo da porta.
Precisava fugir.
Sabia que Gaut estaria guardando seu quarto até quase o amanhecer,
por isso evitaria de enfiar o guarda naquilo. Se ele resolvesse segui-la,
estaria em perigo, algo que nem mesmo o melhor soldado de Dhárg
conseguiria enfrentar.
Caminhou até o armário e escolheu roupas quentes e confortáveis,
vestindo-as sem fazer barulho. Colocou a pequena flor no bolso do gibão e
separou o seu arco e algumas flechas, assim como algumas adagas.
Escolheu um manto pesado e jogou-o no sofá.
Antes do amanhecer, Gaut ia até o casarão se trocar e descansar um
pouco, sabendo que ela estaria na companhia das criadas, tomando o
desjejum. Adhara teria apenas aquele curto espaço de tempo para ir até à
cozinha pegar algumas provisões e correr ao estábulo para selar Nyra.
Procure as filhas de Atman. A voz de Aelua parecia guiá-la.
Depois daquilo iria em direção ao Norte.

Nyana percebeu como Videric estava em estado de alerta assim que


saiu da fronteira das Florestas Brancas. Nem precisou perguntar o motivo
da inquietação do companheiro. Afinal, não era todo dia que Arsene ia até a
Fortaleza antes mesmo da noite cair para alertá-los de uma decisão da
Coroa Vermelha que poderia afetar o destino de todos.
Agora, ao encarar os dois vampiros, cabia a Nyana fazer mais um
pedido.
— O que houve? — A voz de Videric era como um bálsamo em meio
àquela tempestade que se formava.
Gavin se manteve afastado, dando espaço para os dois, mas acabou se
aproximando quando Nyana o olhou, em um pedido sem palavras.
— A alma de Adhara a visitou, com a benção das ancestrais. — Os
dois a observaram com atenção, surpresos com a notícia. — A princesa
deve vir para o Norte em breve, para procurar as filhas de Atman.
Videric olhou para Gavin sem entender, mas depois voltou a fitar sua
companheira.
— O que a Coroa Vermelha quer de nós? — Fez a pergunta que cabia
a Gavin pronunciar.
— Lymena precisa que vocês viajem ao encontro da princesa. Com a
alma pura que tem, Adhara é um ponto de luz em meio à escuridão do Sul.
Será alvo fácil para os demônios.
— Merda… — Gavin soltou e começou a andar de um lado para o
outro. — Quando precisamos ir?
— Agora. — A voz dela era firme. — Adhara deve partir em breve.
Portanto, quanto mais cedo encontrá-los, mais chances têm de chegar viva
nas Florestas Brancas.
— Domenico sabe disso? — Como braço-direito do mestre dos
vampiros, a preocupação de Gavin era válida.
— Arsene está contando isso para ele agora. Mas creio que perderão
tempo se voltarem à Fortaleza para perguntar pessoalmente.
— Nós iremos. — Videric deu sua palavra e depois olhou para Gavin.
— Não temos tempo…
Gavin se irritava com aquilo. Parecia contrariado em não falar
diretamente com Domenico, mas conhecia seu mestre o suficiente para
saber que ele o xingaria caso voltasse. O mestre dos vampiros pensava na
segurança da Adhara desde o primeiro marco de ano da princesa.
Um galho se quebrando cortou o silêncio do trio e Gavin estremeceu
ao ver Bjarka sair por entre as árvores. Videric olhou para Nyana sem
entender nada, mas a oráculo explicou.
— Preciso que se alimentem antes de ir. Adhara tem uma energia que
atrai o submundo. Videric é controlado pelo vínculo que tem comigo… —
Ela olhou para o outro vampiro. — Mas não sabemos como você poderá
reagir a ela.
Gavin abria a boca para retrucar, mas o outro vampiro pousou a mão
no braço dele. Ele olhou para o comandante, irritado.
— Sou um primus, não me descontrolo.
— Não sabemos ainda com o que estamos lidando. — Videric foi
categórico. — Nem quanto tempo passaremos no Sul até resgatar a
princesa.
— Tome o sangue de Atman, vampiro. — Bjarka opinou, sem ser
convidada. — Sabe que sempre desejou isso… — Um sorriso percorreu o
rosto da mulher, mas morreu logo em seguida. — É um presente da Coroa
Vermelha.
Gavin parecia cético, mas Nyana observou o desejo nos olhos dele.
Videric percebeu isso também e puxou a sua garota na direção oposta.
— Vamos deixá-los a sós.
Nyana assentiu e se afastou. Sentia Videric atrás de si. Quando várias
árvores os separavam, olhou para o companheiro e acariciou o rosto dele, os
dedos passando pela cicatriz.
— Preciso que tome cuidado.
— Sabe que tomarei.
Ela afastou o cabelo do pescoço e se inclinou para trás.
— Seja rápido.
— Não me peça o que não vou conseguir cumprir.
Depois disso, a mordida veio.
Zephyr percebeu a ausência de Adhara no castelo assim que a
primeira claridade do dia iluminou seu quarto. Já estava vestido e pronto
para sair, mas mudou seus planos. Foi direto para os aposentos dela, vendo
que guarda não estava em seu posto. Era bem provável que houvesse se
ausentado para descansar e se alimentar no casarão.
Logo as criadas chegariam para atender a princesa, dar-lhe banho,
vesti-la… Adhara tinha o costume de demorar no banho e gostava de fazer
sua primeira refeição do dia com tranquilidade. O guarda, talvez, tivesse
presumido que a princesa estava segura. No entanto, quando Zephyr abriu o
quarto dela e não a encontrou, ficou evidente que ambos haviam sido
enganados.
O quarto se encontrava desocupado e, embora Adhara pudesse ter
despertado mais cedo, Zephyr percebeu que algo estava diferente ali,
naquele ambiente. A princesa havia ficado pensativa desde sua recente
experiência de quase morte, quando o poder dele a envolveu e a preencheu
por completo. Isso era um fato… Mas havia algo mais.
Zephyr controlava a escuridão dentro de si desde que desceu para o
mundo corpóreo, mas Adhara parecia um ponto de luz que a maldade dele
desejava, então ele a deixou pegar o que queria, e as garras daquele poder
arranharam a superfície pura de Adhara, pegando um pouco daquela
bondade e se deliciando com isso.
Era algo que ele não conseguia evitar, algo que ele não queria evitar.
Zephyr nunca havia se sentido tão vivo depois que experimentou Adhara
pela primeira vez.
Foi até a cama dela, atraído por um cheiro adocicado. No colchão de
penas e em meio aos cobertores revirados, pétalas brancas pousavam pelo
tecido, como se estivessem mantendo o leito da princesa seguro em sua
ausência. Ele capturou uma delas com os dedos e a levou até o nariz.
Conhecia aquele aroma, bem como a energia que a pétala emanava. Aquela
que o havia aprisionado por séculos.
Engoliu em seco, ignorando a reação do próprio corpo. Parte sua
sentia urgência em protegê-la, em trazê-la de volta para a segurança que
apenas ele poderia proporcionar. Adhara chamaria a atenção em qualquer
ponto do mundo corpóreo. No Sul, cercada por demônios e andando nos
domínios do submundo, seria um ponto de luz, uma presa fácil.
Amassou a pétala e a deixou cair. Precisava ir atrás da princesa.
Precisava dela viva. Se Adhara morresse naquela fuga, Aelua voltaria para
Asteria e Zephyr nunca teria sua alma.
O Elemental tentava se convencer de que ia atrás apenas da alma da
princesa quando saiu do quarto dela, amassando com a bota a pétala sem
perceber. Caminhou para os estábulos sem alertar ninguém daquilo. Sua
preocupação era apenas Adhara.
Iria atrás dela e a traria de volta. E mataria quem entrasse em seu
caminho.

— Estou tentando compreender qual energia sinto desde que a lua


virou.
A brisa da manhã abraçava o corpo de Lymena, que sentia a presença
das anciãs ao seu lado. Arsene estava na Fortaleza, conversando com
Domenico sobre a sua decisão. Nyana foi até as fronteiras para repassar as
orientações ao companheiro e a Gavin, os únicos vampiros além de Arsene
em que confiava para aquela missão, e ainda não havia voltado. Ela devia
estar descansando, já que a rainha havia sido firme em declarar que os
vampiros precisavam sair alimentados e antes do amanhecer.
— Acredito que seja um poder maior, vindo do submundo. Uma
escuridão que não estávamos prevendo. — As palavras de Krida fizeram
com que o coração de Lymena se lamentasse.
— Os Altos? — ousou perguntar.
— Não podemos dizer com certeza — a outra opinou. Não tinha o
dom da Adivinhação, mas a força de Atman fluía dela, como um alerta de
que algo estava errado. — Nem mesmo nos Primeiros Anos os Altos saíram
do submundo.
— Não posso imaginar o que faria eles subirem agora — Lymena
confessou.
— Há muito no mundo corpóreo agora que pode abrir o apetite de um
Alto. — Os olhos de Srala estavam fixos nas árvores, mas a Coroa
Vermelha sabia que nada saía da boca dela em vão. Por ser uma oráculo,
estava constantemente guiada pelas ancestrais. — Uma princesa com uma
alma pura, uma adaga de Jyot, uma caminhante estimada pelo Sombrio…
— Depois dessa declaração, Krida olhou para a rainha atentamente. — A
princesa vai para o Norte sabendo quem Zephyr é. As Florestas Brancas
estarão prontas para receber a princesa do Sul e confrontar o Elemental
caído? — Krida perguntou.
Por serem anciãs, aquelas bruxas tinham o direito de fazer as
perguntas necessárias para que a Coroa Vermelha refletisse, tomando assim
as melhores decisões pelas filhas de Atman. Não poupavam a rainha de
nada, mesmo sabendo que o inimigo enfrentado seria a provação mais
perigosa de seu reinado, um mal que teria de fazer até o impossível para
conter.
O nascer do sol era um dos momentos do dia que Lymena amava. Um
presente de Atman para as bruxas, ainda mais belo depois dos dias escuros
que estavam por vir. Sem desviar os olhos das árvores que tanto amava, a
rainha respondeu.
— Deixe que venha.
CAPÍTULO 19

Zephyr abriu os olhos, deparando-se com um céu branco e leitoso


sobre si. Aquele lugar era frio, mesmo que não tivesse vento ou neve, nem
mesmo o aroma peculiar do reino conhecido.
Ele não estava mais no lugar que chamava de seu.
Desconhecia as condições nas quais seu corpo sobrevivia no mundo
corpóreo, o quanto aguentava. Havia seguido o rastro de Adhara por luas
sem parar, até que pôde se adiantar, antever o caminho que ela faria.
Apoiava-se em uma árvore, no aguardo de que a garota utilizasse
aquela trilha. A princesa não estava usando as estradas principais, e
ninguém conseguiria cortar árvores densas da floresta sem muito sacrifício.
Além disso, ela estava sozinha, não havia levado a égua. Zephyr achou o
animal na baia, inquieto por saber que a dona estava cada vez mais longe.
Ela havia aprendido também a evitar as sombras. Era inteligente o
suficiente para desviar dos lugares onde os demônios aguardavam,
concentrados, por mais carne fresca.
De repente, sua consciência foi retirada dali. Aquilo irritou o caído, já
que seu corpo estaria desacordado quando a princesa passasse.
— Me perguntei quando um de vocês viria me ver — reclamou,
irritado.
Apenas um Elemental conseguiria deixá-lo no limbo sem a sua
permissão daquela forma. Sentou-se na grama e sentiu uma leve pontada
nos olhos, onde o canal que o irmão usava para conectá-los lhe segurava.
Foi então que um homem saiu da neblina.
Alto, ele carregava a beleza que todos os Elementais possuíam. Havia
escolhido uma forma corpórea que chamaria a atenção: sua pele escura
parecia brilhar à medida que se aproximava, o rosto sério, os olhos
dourados que observavam Zephyr com um cuidado peculiar.
— Northal. — Um sorriso irônico percorreu o rosto do Elemental
caído. — Sentiu saudades?
O rosto do outro não esboçou nada.
— Está se arriscando demais, Zephyr. Acreditou mesmo que seus
irmãos não saberiam dessas andanças pelo mundo corpóreo?
Zephyr nunca havia acreditado naquilo, mas entendeu o silêncio deles
como uma forma de estratégia, como se esperassem o momento certo de
intervir.
— Então por que nunca se manifestaram? — Ele sempre quis saber
porque os irmãos estavam calados desde que desceu. Diminuiu a própria
autoridade para ganhar a confiança deles, mas nunca acreditou que fosse tão
simples assim.
Northal não respondeu aquela pergunta, deixando-o ainda mais
curioso.
— Só tome cuidado com o que deseja. — O outro lhe avisou.
— Sabe que não vou desistir da alma pura, Northal. Você me conhece
melhor que nossos irmãos. — Zephyr sorriu de forma perversa. — Preciso
apenas do consentimento da humana. O que arrancarei, se for preciso.
Northal o surpreendeu, repetindo o gesto, mostrando os dentes de
forma belicosa.
— Zephyr, será que não aprendeu nada? — A pergunta fez o outro se
calar, olhando desconfiado para o irmão. — Não somos seus inimigos,
nunca fomos…
— Jeito estranho esse de demonstrarem, trancando-me no mundo das
almas por milênios. — O humor de Zephyr estava por um fio. Quanto mais
tempo Northal o prendia ali, maior a chance de Adhara passar pelo caminho
onde ele a aguardava, incólume. — O que pretendem?
Zephyr o incitou para que falasse, mas continuou a obter silêncio.
— Talvez deva expandir o seu olhar, meu irmão. Descobrir quem
ameaça seus objetivos…
Zephyr escutou a voz de Northal, mas já não o via mais. O aviso ficou
em sua mente até abrir os olhos e encarar a floresta de Dhárg diante de si
mais uma vez. O corpo estava cansado, mas não sentia mais o elo com o
irmão.
Fez uma careta e se levantou. Uma dor de cabeça estranha o tomou,
fazendo com que o Elemental percebesse o quanto de tempo havia perdido,
pensando em como conter o próprio poder. Antes, ele conseguia liberar sua
mente por períodos que excediam o tempo humano, transitando entre os
planos. Naquele instante, só queria vomitar, sentindo-se fraco, limitado.
Voltou a apoiar-se na árvore, respirando fundo. Fechou os olhos para
tentar sentir Adhara, ver onde estava. Seu humor piorou muito quando
percebeu que a princesa já havia passado por ali.
Respirou fundo e começou a sair em busca do cavalo. Era bem
provável que o animal continuasse a caminhar após ele ter desmaiado com a
invasão de Northal na sua mente. A fraqueza em seu corpo por causa do elo
com Asteria começava a diminuir, fazendo com que Zephyr sentisse seu
poder voltar aos poucos.
Já estava na hora dele assumir ao mundo sua verdadeira força. Se os
irmãos já sabiam da sua presença no mundo corpóreo, não tinha mais
motivo algum para se conter.

Adhara estava exausta. Sentia todo o corpo doer por ter dormido em
cima de um tronco, atenta a qualquer barulho estranho que surgia. Não
podia se dar o prazer de cair no sono completamente e abaixar a guarda.
Desde que resolveu subir para o Norte, usava as árvores mais altas
para passar a noite. Sabia que as criaturas preferiam a escuridão para caçar,
portanto sentia-se mais segura quando viajava de dia, mesmo que a
claridade fosse uma ilusão, devido a densa neblina.
De qualquer forma, Adhara teve sorte até a quarta noite, mas precisou
fugir de duas bestas no anoitecer seguinte. Para piorar, pisou em falso
quando seu pé encontrou um buraco coberto de folhas mortas e terra úmida.
Com isso, parte de um tronco afiado rasgou o couro da calça e conseguiu
atingir-lhe a pele, abrindo um machucado feio demais para conseguir olhar
por um tempo, além de extremamente doloroso.
Acabou jogando neve no machucado para tentar limpá-lo e rasgado
parte da blusa de algodão para enfaixá-lo. A neve ajudou quanto a dor, mas
não o suficiente para ignorar o corte por muito tempo. Ele voltou a sangrar,
fazendo-a diminuir as passadas, trocando o curativo de tempos em tempos.
Olhou para baixo e jogou um galho fino no chão, aguardando para ver
se um dos monstros aparecia, atraído pelo movimento. Ela não era ingênua
a ponto de achar que estava sozinha. Podia sentir o cheiro metálico do
próprio ferimento, tornando-a assim um alvo em evidência naquela floresta.
O galho alcançou o chão, mas nenhum animal se aproximou. Isso não
era surpresa, já que naquela altura as criaturas deveriam ter devorado todos
os seres vivos dali.
Precisava se apressar, pois ainda estava longe demais da fronteira de
Fhár.
Espreguiçou-se, sentindo certo incômodo nas costas após mais uma
noite na árvore. Saltou para o chão, causando um barulho alto na neve.
Sentiu dor no ferimento ao alcançar o solo, mas aguentou firme.
Primeiro verificou se estava mesmo só. Após isso, verificou a faixa de
algodão que cobria o corte. Notou um novo sangramento. Sabia que
precisava de repouso, mas naquele momento não podia se dar àquele luxo.
Colocou mais neve no corte para aliviar a dor e cobriu-o com algodão
novamente. Agasalhou-se e retomou a caminhada.
Tentou contar as noites desde que resolveu fugir, mas a lua mudava
no céu escuro constantemente, de forma que ela já não sabia há quanto
tempo estava ali, em meio àquela paisagem fechada.
Respirou fundo e continuou andando. Tinha que ter o dobro de
cuidado, pois sabia que viajar a pé daquele jeito era algo arriscado. Zephyr
com certeza teria mandado os guardas atrás dela. Se eles estivessem a
cavalo, conseguiriam cortar boa parte do terreno antes que a princesa
conseguisse se afastar demais.
Observou a fonte de luz caminhar para o crepúsculo no decorrer do
tempo, as poucas folhas que estavam banhadas pela claridade jaziam na
sombra, os troncos iluminados de forma difusa pelo outro lado, narrando
assim o passar do dia.
Ela começou a sentir sede, mas não se permitiu beber da água que
havia no cantil. Ainda não tinha achado um rio ou qualquer fonte de água
natural por ali. Adhara não se arriscaria a pegar a neve com tantas bestas
andando pelas florestas. Continuou adiante, ignorando o barulho do
estômago, faminto por algo mais substancial que pão endurecido. A carne
seca ainda estava intocada, já que preferia comer o que lhe traria mais
energia quando o cansaço começasse a vencer caminho sobre seu corpo.
Adhara sentiu um frio na espinha quando a claridade por fim abaixou
e uma neblina estranha tomou as árvores da floresta. Engoliu em seco, pois
conhecia aquela sensação. Com cuidado, puxou uma flecha da aljava e
deslizou-a pela corda do arco. Aguardou, alerta a cada movimento, mas
tinha dificuldade para enxergar.
Percebeu tarde demais que a noite estava próxima, quando um grito
estridente cortou o silêncio da floresta. A reação foi rápida: soltou a corda
antes mesmo da criatura se aproximar, acertando-a. O monstro guinchou, as
narinas inflando à medida que tentava se libertar da flecha fincada em seu
flanco, a promessa de carne fresca se sobressaindo à dor.
Em nenhum momento Adhara desviou os olhos da criatura, mas já
sabia que o seu machucado havia voltado a sangrar, podia sentia a faixa de
algodão molhada. Seria tolice se tentasse correr. Com a mão firme, puxou
mais uma flecha da aljava e encaixou na corda, fazendo a flecha voar até a
criatura com precisão, enfiando no pescoço e perfurando a carne.
Sangue escuro e fétido jorrou do ferimento e daquela vez a criatura
gritou. Adhara estremeceu diante daquele lamento, lembrando-se de que
havia criaturas piores andando por ali.
A mente foi preenchida por lembranças sombrias. Gritos humanos de
desespero saindo de uma boca coberta de dentes afiados, um lago
congelado e depois a escuridão. Suas mãos estremeceram, fazendo-a agarrar
o arco com força, observando a criatura já morta aos seus pés, silenciosa na
neve.
Adhara aguardou, mas o monstro não voltou a se mexer. Andou até
ela e puxou as flechas do corpo grotesco. Limpou as setas como pôde, o
sangue escuro manchando a neve. Lembrou-se do aviso de Zephyr sobre o
veneno que carregavam, mas não podia se dar ao luxo de desperdiçar
flechas antes de chegar em Fhár.
Um barulho de um galho se quebrando fez Adhara pular, agarrando o
arco. Uma sombra se moveu entre as árvores e ela soltou a corda de modo
instintivo. A flecha voou, mas a sombra desviou com uma velocidade
incomum. Adhara ia pegar outra seta no chão quando uma voz grave
chegou aos seus ouvidos.
— Uma dessas não vai me matar, garota.
Isso não a impediu de encaixar a segunda flecha na corda e puxá-la.
Ficou parada, esperando a sombra se aproximar, após desviar-se
novamente. Depois do que pareceu uma eternidade, um homem alto e
musculoso apareceu por entre os troncos e Adhara abaixou o arco.
Ela o conhecia. Inclusive havia o procurado por luas após vê-lo nas
masmorras do castelo do pai. Os olhos dele a observavam com cuidado e
Adhara estremeceu ao perceber que aquele olho cego nunca o impediria de
parecer letal.
— Você… — Ele continuou a se aproximar e Adhara percebeu que o
homem não estava sozinho. Outro estava próximo, com cabelos castanhos,
pele pálida e uma beleza incomum para alguém sério demais. Ela voltou a
puxar a corda. — Quem são vocês? E por que estão sempre no meu
caminho?
— Abaixe esse arco e poderemos conversar. — A voz do outro estava
firme, mas o mais alto deles a fitou, como se a deixasse de sobreaviso.
— Meu nome é Videric. Sou o comandante dos vampiros. — O rosto
dela ficou pálido e uma ruga de desconfiança apareceu. — Estou aqui em
nome de Domenico, meu mestre. — O nome que ela tanto buscava lhe fez
abaixar o arco. — Estamos com as filhas de Atman e viemos para protegê-
la.
Adhara esqueceu todo o resto naquele momento. Filhas de Atman.
Aelua havia falado sobre as bruxas daquele mundo e onde Adhara teria de
procurá-las. Não sabia se podia confiar naqueles homens, já que sentia uma
energia estranha vindo deles, uma mistura de algo bom com um toque
mais… vil.
Vampiros? Aquilo existia?
O homem atrás deles se aproximou, seu olhar varrendo o corpo de
Adhara até parar no ferimento. A princesa engoliu em seco e soube, na
mesma hora, que ele tinha percebido o medo nos olhos dela, quando
gesticulou com as mãos.
— Não precisa temer a nossa sede. Somos controlados. Mas seu
machucado não vai parar de sangrar se nada fizermos para tratá-lo.
Adhara não sabia o que dizer, nem como agir. Precisava confiar neles,
era sua única saída. Machucada e sem montaria, seria alvo fácil para as
criaturas que surgissem. Portanto, abaixou a guarda e assentiu. Viu certo
alívio na expressão do mais alto deles, o tal de Videric.
— Pegue os cavalos, Gavin. Ela não pode andar e temos que
continuar subindo. — O outro se enfiou por entre as árvores, deixando-os
sozinhos. O vampiro então entregou a ela um pote de vidro, com uma pasta
âmbar dentro. — Sei que não nos deixará tocá-la, mas vou te orientar como
fazer.
A jovem pegou o pote, desconfiada. Sentou-se em um tronco caído
próximo. O machucado latejava e ela retirou o tecido do ferimento. Videric
agachou em frente a ela, observou a ferida revelada. Não parecia surpreso
com a profundidade do machucado, provavelmente já tinha visto piores.
— Como se machucou?
— Tropecei em um buraco na floresta e um galho me rasgou a pele.
Os olhos dele a observavam com atenção. Adhara tentava não encarar
a cicatriz que cortava o rosto taciturno.
— Não foi um demônio?
— De-demônio?
— Uma das criaturas.
— Oh… não. Elas estão me seguindo desde que me afastei do castelo
de… Bom, desde que comecei a viajar. Mas consigo matá-las antes que me
alcancem.
— Posso imaginar. — Entregou para ela um cantil largo, além de
duas tiras de pano limpas. — Lave-o com água limpa. A neve só vai
infeccionar o machucado.
— Ela amortece a dor.
O vampiro assentiu, apontando para o frasco que estava nas mãos
dela.
— Isso vai ajudar.
Adhara fez o que foi mandado. Limpou o machucado com a água e
uma tira de pano. Ficou levemente tonta quando viu como estava profundo.
Ignorou a dor latente, já que não queria demonstrar fraqueza diante do
outro.
Sabia que estava sendo tola. Qualquer um pareceria fraco ao lado
daquele homem.
Videric retirou o pano manchado de sangue com delicadeza das mãos
dela e continuou observando, enquanto Adhara passava um pouco do
unguento no ferimento, sentindo alívio instantaneamente.
— Impressionante… — sussurrou enquanto o unguento fazia efeito.
Um sorriso orgulhoso nasceu no rosto dele.
— Foi minha companheira quem fez. — Os olhos de Videric a
encararam. — Posso enfaixá-la? — Quando Adhara assentiu, ele circulou o
machucado com a outra faixa de tecido, ainda mais larga e macia. As mãos
dele eram firmes e cuidadosas. — Minha companheira é uma filha de
Atman. Nyana a acompanha desde antes de você nascer… É uma oráculo.
— Uma oráculo?
— Sim… tipo uma sacerdotisa, bruxa…
— Vampiros e bruxas convivem pacificamente?
Videric sorriu e Adhara percebeu certa malícia nos olhos dele.
— Normalmente não.
Ela sabia que aquilo era inapropriado, mas sua curiosidade a levou a
fazer mais perguntas. Estavam conversando quando o outro vampiro chegou
com as três rédeas nas mãos. Adhara quase não acreditou quando ele
entregou duas delas para Videric, olhando para ela em seguida de forma
firme.
— Meu nome é Gavin. Sou o braço direito de Domenico. Está
pronta?
A perna já não latejava como antes. Adhara assentiu e Videric ajudou-
a a se levantar e montar no cavalo. O animal estava inquieto, os olhos
escuros observando o corpo da criatura morta, tão próxima deles. Mas
depois que Adhara se aproximou, o cavalo pareceu sentir a energia da
garota, acalmando-se.
A princesa olhou por um momento para o corpo da criatura, em
seguida para os vampiros.
— Não é melhor acharmos um lugar para ficar?
Videric montou no cavalo com uma graciosidade surpreendente,
encarando-a.
— Viajaremos de noite. Nós não podemos com a luz do sol. —
Adhara ficou sem saber o que responder. Ele pareceu notar a preocupação
no rosto dela. — Fique tranquila, não deixaremos os demônios se
aproximarem de você.
Adhara lembrou-se de como ele cortou a criatura na masmorra com
rapidez, sem fazer esforço.
Havia achado que sua jornada seria solitária, mas tinha se enganado.
Naquele momento, via-se protegida e conduzida pelos vampiros de
Domenico, um nome cujo dono ainda era um mistério, tinha procurado por
todos os livros de Dhárg. Estava bem melhor com os vampiros como
guardiões.

Adhara não tinha ideia quantas luas cavalgaram em meio à escuridão,


mas percebeu que o machucado já começava a melhorar, fazendo-a sentir-se
mais disposta.
Nas primeiras noites ao lado deles, achou que enlouqueceria com os
gritos das criaturas a rondá-los. De vez em quando um deles sumia para
ceifar a vida daqueles monstros, voltando calado pouco tempo depois. Ela
via sangue nas mãos, mas eram apenas respingos. Naqueles momentos, a
princesa se perguntava como conseguiam matar aquelas criaturas com tanta
eficiência, sem qualquer esforço.
Estava abrigada em uma caverna e aconchegada em cobertores
próximos a fogueira, a fome e a sede uma lembrança ruim, mas distante.
Sua mente, contudo, viajava entre o estado de alerta e inconsciência. Às
vezes apagava e era acordada por um deles para continuarem a andar, outras
acordava sozinha, mas continuava de olhos fechados escutando o que
conversavam. Recusava-se a admitir, mas quando via um deles por perto,
sabia que nada lhe aconteceria.
Ainda desconfiada da floresta e sua escuridão, notou que a neblina
diminuía conforme se aproximavam da fronteira. Olhou para o lado e
percebendo a inquietação de Videric, sentou-se para entender o que estava
acontecendo. A noite se aproximava, mas ainda estava claro lá fora.
— O que houve?
Ele parou de andar de um lado para o outro e olhou para a garota com
atenção. Adhara sabia que Videric nunca a trataria como uma criança. Ele
sentia uma força vindo daquela jovem, algo que nem mesmo Adhara seria
capaz de reconhecer em si mesma. Pelo menos por enquanto.
— Estamos chegando na fronteira de Fhár…
— Isso é bom, certo?
Os dois se entreolharam e Adhara percebeu que havia algo errado.
— Lymena deve saber que estamos perto, portanto a Coroa Vermelha
vai sentir sua presença assim que chegarmos perto das Florestas Brancas.
As oráculos devem tê-la avisado, mas…
Adhara começou a ficar ansiosa.
— Sabe que demônios não são os únicos que nos seguem, certo?
— Há outras criaturas… algumas inclusive desde o Sul. — Ela viu
Videric negar com a cabeça e parou com a linha de raciocínio.
— Zephyr está nos seguindo há algumas noites. Perdemos terreno
quando paramos, mas infelizmente só podemos protegê-la quando estamos
protegidos pela lua.
— Acha que consigo seguir sozinha? — Adhara já se levantava, mas
Gavin tratou de acalmá-la.
— Não é apenas Zephyr que a vê como alvo. — Ao ver o rosto
assustado dela, acrescentou. — Um antigo amigo de seu pai deve aparecer
em breve. Precisamos estar preparados.
A noite mal havia surgido e já estavam cortando a floresta num passo
rápido. Daquela vez, exigiam mais dos cavalos, que pareciam sentir a
energia inimiga se aproximando, resfolegando à medida que venciam o
trajeto.
Adhara percebeu a neblina dar espaço a uma floresta limpa, o som
dos grilos e animais noturnos chegando vez ou outra em seus ouvidos. Ao
levantar o rosto, podia ver a lua e o céu estrelado. Há quanto tempo não as
via?
Nenhuma criatura os seguia. O monstro era outro. Adhara podia sentir
Zephyr se aproximar, sentir sua fúria. A princesa só rezava aos deuses que
conseguissem chegar às fronteiras das bruxas antes que ele os encontrasse.
Galoparam por muito tempo, as árvores ficando mais espaçadas.
Conseguia sentir o vento do campo aberto batendo em seu rosto. Ao longe,
árvores majestosas de copas densas pareciam ter emergido de um livro de
romance, o branco se misturando ao verde das folhas, num tom diferente da
neve que estava habituada.
Adhara voltou a si quando escutou um grito de alerta de Videric.
Olhou para trás.
Um cavalo se aproximava dos três. Nele, um homem alto com cabelos
claros os perseguia. Era belo, mas o sorriso que havia no rosto dele não
chegava aos olhos.
Adhara cutucou o cavalo dela com os calcanhares, exigindo o
máximo do animal. Videric olhou-a com atenção e ela assentiu, entendendo
o seu desejo e afastando-se dos dois. O vampiro havia dado ordens a ela no
dia anterior, preparando-a para o que aconteceria.
— Igrik irá te perseguir. Peço que fuja com todas as forças, já que
tentaremos atrasá-lo. Fique tranquila, pois assim que você se aproximar da
fronteira das Florestas Brancas, o poder de Lymena irá protegê-la. Sob o
domínio das bruxas, ninguém poderá alcançá-la.
O cavalo do inimigo tomou velocidade e o homem, naquele
momento, estava quase ao lado dela. Adhara ignorou a escuridão que dele
emanava e focou a atenção em atravessar o campo até as florestas. Gavin
havia desembainhado a espada e Videric tinha uma adaga em mãos, mas
Igrik nem parecia incomodado com aquilo.
— Merda, Videric! — A voz de Gavin soou alta no meio da
perseguição. — À sua direita!
Adhara acompanhou o olhar dele e sentiu seu estômago revirar ao ver
quem se aproximava. Em um garanhão de pelos escuros, Zephyr tentava
impedir que Adhara chegasse ao seu objetivo.
Videric puxou as rédeas para tentar protegê-la da aproximação de
Zephyr, enquanto ela continuava a exigir mais do seu cavalo. À medida que
se aproximava, observava as peculiaridades das árvores, como os troncos
avermelhados e as manchas brancas nas copas. No entanto, essa visão não
era o que confirmava que sua rota estava correta, mas sim uma energia
poderosa que a abraçou assim que o cavalo pulou um tronco caído, fazendo
com que um arrepio estranho percorresse o corpo da garota.
O cavalo de Igrik tomou velocidade. Parecia saber que, caso a
princesa se afastasse mais um pouco, estaria perdida para os seus
propósitos. Levantou as mãos e uma energia oposta à que Adhara estava
sentindo até ali lhe invadiu o corpo, deixando-a desnorteada.
O animal continuou a correr, mas as mãos da garota perderam força,
fazendo-a soltar as rédeas, quase a derrubando. O poder de Lymena parecia
brigar com o de Igrik, enquanto Adhara esforçava-se para permanecer
acordada e atenta. Tinha de lutar se quisesse sobreviver.
Recusava-se a perder tudo tão perto de alcançar o seu objetivo.
A jovem assustou quando viu Zephyr se aproximar. O rosto dele
parecia furioso, mas a fúria não era direcionada a ela. Os olhos escuros
fixaram-se em Igrik, que sorria conforme se aproximava de Adhara, certo
da vitória. A sensação ruim desapareceu, permitindo que sentisse o poder de
Lymena a guiando novamente, como se alguém tivesse arrancado um
cobertor sufocante de cima dela, o corpo voltando a ter forças para se
mover.
Inclinou o corpo e seguro as rédeas do cavalo novamente. Em pouco
tempo, corria à galope solto em direção ao futuro que estava destinada.
Igrik se afastou e Adhara não parou para ver em que direção ele ia. Já
o garanhão de Zephyr empinou quando pareceu bater em uma barreira
invisível, ficando para trás. Adhara sorriu. Havia conseguido.
Estava nas Florestas Brancas. Desmaiou logo em seguida.
CAPÍTULO 20

A princesa acordou em uma cama macia, com lençóis claros


cheirando a flores. Sua roupa, no entanto, contrastava com toda aquela
limpeza. Suas calças estavam imundas, numa mistura de barro, suor e
sangue. O gibão também não estava diferente. As botas haviam sido
retiradas dos pés e o manto jazia em uma poltrona ao lado da cama.
Adhara piscou algumas vezes, a luz do dia correndo com timidez
pelas cortinas. Fixou a vista para poder ver o quarto onde estava.
Não se lembrava de muito, mas sabia que havia caído do cavalo antes
de desmaiar, logo após ter adentrado no domínio das bruxas. A energia que
a havia abraçado… Relembrar aquela sensação fazia com que uma euforia
lhe percorresse o corpo. Ainda a sentia, latente em cada canto daquele
cômodo.
Sentou na cama de repente e sentiu o quarto girar. Deu um pulo
quando um peso desconhecido, mas delicado, assentou-se em sua perna.
— Não exija muito do seu corpo, criança. Descanse.
Virou-se e deparou com uma mulher idosa. As rugas do seu rosto
pareciam desenhar na pele toda a sabedoria que carregava. O sorriso era
amável, fazendo com que Adhara se sentisse segura no mesmo instante.
A desconhecida usava um vestido simples de algodão e parecia
carregar uma pequena bandeja. Ao ver aquilo, o estômago de Adhara
roncou. Sentiu o cheiro do caldo que a idosa oferecia.
— Meu nome é Krida. Estava aguardando você acordar. — Colocou a
bandeja em frente a Adhara e se sentou na cama, um pouco afastada. —
Você preocupou minha rainha, mocinha.
A princesa começou a comer, sem se importar com a falta de
educação. Agradecia todos os dias Videric e Gavin pelo alimento que lhe
deram durante a viagem, mas nada se comparava àquele caldo, que se
assentou no estômago dela como um carinho, fazendo-a relaxar.
Ainda observava a idosa quando outra mulher entrou no quarto.
Apesar de terem quase a mesma aparência, Adhara sentiu uma energia
diferente naquela senhora. Era menor que Krida, os cabelos brancos
trançados com um fio de couro vermelho. Os olhos cheios de sabedoria a
observaram por um tempo antes dela se apresentar.
— Sou Srala, a oráculo-anciã das bruxas.
— Eu… Obrigada pelo abrigo e alimento. — Adhara não sabia como
se portar em frente àquelas mulheres. Estava acostumada à corte do seu
reino e de outros mais distantes, mas algo lhe dizia que sua etiqueta não
seria de bom uso ali. — Fui instruída a procurá-las.
— Aelua deve ter visitado você algumas luas atrás. — A idosa de
cabelo trançado, Srala, disse sem rodeios. — Recebemos a mensagem das
ancestrais.
— Ancestrais? — Adhara ficou confusa.
— Teremos muito o que conversar. Agora preciso que se alimente.
Lymena deve chegar em breve. — Krida avisou.
Como se tivesse sido convocada, uma mulher alta entrou no quarto e
Adhara quase se curvou quando a energia que a havia protegido daquela
fuga lhe abraçou. A mulher era bela como uma manhã de primavera, os
cabelos loiros acobreados soltos caindo em cascata pelas costas. Usava um
vestido rosa-claro que acentuava suas curvas e fazia com que os olhos
castanhos parecessem ainda mais vivos.
A poderosa mulher observou a princesa por um momento e sorriu.
— Adhara, é um prazer finalmente conhecê-la. Meu nome é Lymena,
sou a Coroa Vermelha das bruxas.
— A rainha… — Adhara sussurrou.
Lymena assentiu.
— Sei que precisa descansar, mas vou pedir algumas respostas. —
Olhou para as outras. — O banho dela será preparado em breve. Peço que a
tragam para mim quando estiver pronta. — Voltou a atenção para a jovem.
— Você é muito bem-vinda nas Florestas Brancas. Fique o tempo que
precisar.
A jovem assentiu, agradecendo. Lymena deixou o quarto para, em
seguida, duas mulheres entrarem no cômodo com baldes de água quente.
Ambas desapareceram por uma porta, posicionada de forma estratégica
atrás de um biombo. Adhara escutou a banheira sendo enchida aos poucos
enquanto terminava de tomar o caldo. Krida ainda a observava com
cuidado.
— O que Lymena quer conversar comigo? — Sempre foi curiosa e
aquilo não deixou de ser percebido por Krida, que sorriu de forma amável.
— Acredito que vocês terão tempo de se conhecerem melhor. Agora
precisa tomar o seu banho.
Adhara assentiu. Krida a ajudou enquanto se levantava da cama. A
princesa não percebeu como o corpo doía até precisar sustentá-lo com as
pernas. Os primeiros passos foram incertos, mas conseguiu chegar à câmara
de banho.
Analisou a banheira no centro. As bruxas lhe ajudaram a se despir e
Adhara agradeceu por aquilo. Nunca havia visto mulheres tão belas,
enquanto suas mãos pareciam-se com fantasmas em cima do seu corpo,
leves e etéreas, como se soubessem que até mesmo o raspar do tecido nas
lesões poderia ser desconfortável.
A jovem entrou na água. O machucado ardeu e Adhara deixou
escapar um silvo de dor, mas Krida se aproximou logo para saber no que
podia ajudá-la.
Os olhos sábios percorreram o corpo dela e pararam na perna, que
Adhara ainda deixava fora da água com medo da dor.
— Vai incomodar por algum tempo, mas preciso que lave o
machucado. O unguento de Nyana fez um bom trabalho nas últimas noites.
Trocamos as ataduras enquanto você dormia, mas apenas água limpa e
cuidados podem fazê-lo melhorar.
— Conhece Nyana? — A princesa mergulhou a perna, fazendo uma
careta quando a água morna encontrou o machucado.
— Nyana é nossa oráculo mais poderosa, além de companheira de
Videric. — O sorriso de Krida fez com que Adhara tivesse certeza de como
a outra era amada. — A conhecerá em breve.
— Ela salvou minha vida. — Adhara se lembrou de como o
machucado poderia ter infeccionado, tornando-se uma dificuldade a mais
no meio da floresta. — Vocês me salvaram.
— Não se preocupe com isso. Terá tempo de nos agradecer. Agora,
aprecie o banho. Em breve irei levá-la até Lymena.
Krida se afastou da câmara e concedeu privacidade a Adhara, que se
permitiu fechar os olhos e relaxar na água morna. O aroma de flores estava
ali, fazendo-a mergulhar para lavar os cabelos secos e duros com sangue
seco. Quando apoiou a cabeça na borda de cobre, deixou seus pensamentos
vagarem.
Não sabia como estariam os pais e nem se sua fuga geraria algum
alerta. Era muito provável que Gaut fosse contido para não dizer nada a
eles. Talvez tivesse voltado para o castelo principal. As hipóteses eram
inúmeras.
Adhara estava no Norte e, por isso, precisava entrar em contato com a
avó e escrever uma carta para os pais, a fim de tranquilizá-los. Conseguiria
chegar ao castelo dela? Sabia que as Florestas Brancas faziam parte do
reino, mas nem fazia ideia da distância.
Estremeceu na banheira, perguntando-se quantos monstros rondavam
aquela floresta, atacando pessoas inocentes, enquanto ela estava ali,
relaxando naquela banheira.
E quanto aquele homem que a havia perseguido… Adhara sentia que
já o tinha visto. Os cabelos claros quase brancos, os olhos maldosos.
Parecia ter saído direto de uma lembrança sombria. Sem contar que a
energia emanada dele lhe deu ânsia de vômito.
De qualquer forma, aquele era apenas mais um monstro no caminho
dela. Além dele, havia Zephyr, um ser sobrenatural que queria o seu bem
mais precioso, e muito provavelmente estaria lhe aguardando nas fronteiras
da floresta.
Ela precisaria dar um jeito de fugir daqueles dois.
E talvez perder o que mais amava no meio dessa jornada.
Merik observava com certo receio o homem ao seu lado. Zephyr não
conseguia afastar os olhos da fronteira das Florestas Brancas desde que
Adhara encontrava-se sob a proteção da Coroa Vermelha. O Sombrio se
questionava até onde o caído iria para buscar aquela princesa.
Ele precisava conter Zephyr. Merik sabia que o Elemental ainda não
havia destruído aquele lugar por um sinal de boa vontade para com Lymena.
Ele tinha poder o suficiente para entrar lá quando quisesse, mas a vontade
de poupar a princesa era maior do que sua raiva pela rainha bruxa. Se
continuasse ali, a floresta pereceria sob seu poder vil.
Caso aquilo acontecesse, Merik sabia que não seria bom. Se havia
aprendido algo nos últimos séculos era que tudo precisava de equilíbrio,
mesmo em situações precárias. De qualquer forma, as Florestas Brancas
eram o único ponto do mundo corpóreo que conseguia abrigar Alys com
segurança.
— Lymena prefere morrer a deixar a floresta ser destruída, Zephyr. —
A voz dele soou alta em meio ao silêncio em volta deles. O Elemental não
respondeu. — O poder da Coroa Vermelha pode até ser destruído, mas
levará todos que estão ao lado dele, inclusive Adhara. — Apenas a ideia
dela sendo afetada fez com que Zephyr se afastasse, começando a andar de
um lado para outro. — O melhor é se afastar.
— Não irei a lugar nenhum até vê-la. — A voz grave fez com que
Merik sorrisse. O caído olhou para ele com irritação. — Posso saber por
que está com esse sorriso idiota no rosto?
— Está em um impasse, Zephyr. — Merik não podia deixar de se
divertir com a maldição do Elemental. Ele mesmo havia passado por uma
semelhante. — Adhara possui o que você deseja, mas só a terá quando ela
assim desejar.
O humor de Zephyr piorou diante daquela lembrança desagradável.
Aproximou-se de Merik e o poder dele, liberto e latente, fez com que o
Sombrio percebesse que talvez o provocar não fosse a melhor opção.
— Irei ter o que desejo, Merik. — Voltou a observar a fronteira. —
Nem que para isso eu tenha de arrancar isso dela.
Era final da tarde quando Adhara foi chamada por Lymena. Tinha
conseguido descansar e havia feito mais uma refeição antes de entrar na
sala onde era aguardada pela rainha. O ambiente era singular, com
prateleiras altas com livros, encadernações de couro antigas e um tapete
claro cobrindo o chão de madeira. No entanto, o que chamou a atenção de
Adhara foi a claraboia acima dela, que lhe permitia observar o início do luar
em meio às pétalas brancas das flores, flutuando com a brisa vinda do
exterior.
Lymena estava escrevendo em uma mesinha que ficava ao fundo, mas
assim que Adhara entrou, pousou a pena no tinteiro e se levantou. Um
sorriso calmo a deixou ainda mais bela, e Adhara percebeu que não era a
única ali presente: Krida e Srala estavam sentadas em um sofá, próximas à
lareira já acesa.
Havia ainda uma bruxa com cabelos escuros e olhos verdes ao lado da
oráculo-anciã. De alguma forma, Adhara sabia quem ela era.
— Nyana. — A bruxa pequena sorriu quando ela disse o seu nome.
— Videric te descreve com perfeição.
Um rubor nasceu no rosto da bruxa e ela desviou os olhos por um
instante, para depois assentir na direção da garota.
— É uma honra conhecê-la, princesa Adhara. — Nyana olhou para
Srala. — Acompanhamos você desde o seu nascimento.
A jovem não soube o que responder. Sentou-se no sofá a convite de
Lymena e aguardou. Observava as bruxas à sua frente com cuidado. Antes,
não tinha noção de como as filhas de Atman tinham uma presença tão
marcante. Não era uma energia pura, que a deixava inquieta, mas sim
gerava certa curiosidade, mesclada ao receio. Não fazia muito tempo que
descobriu sobre a existência de bruxas no mundo, e vê-las ali tão perto…
Tinha a sensação de que faria ainda mais descobertas naquela noite.
— Aelua contou a você sobre a situação do mundo corpóreo? —
Lymena quis saber logo quando todas se reuniram.
Krida se prontificou a servir chá enquanto Adhara contava o sonho
que havia tido com Aelua e como a própria alma explicou a forma com que
o mapa estava infestado de criaturas e maldade. Até então, Adhara
acreditava que as bestas eram animais ainda desconhecidos, mas nunca
imaginou que tais criaturas pertencessem a outro mundo.
— Os demônios vivem no mundo corpóreo desde sempre. Um dia,
teremos tempo de contar a você sobre a história do nosso povo. Agora,
preciso que você saiba o perigo que está correndo…
O coração dela acelerou e um arrepio estranho tomou o corpo de
Adhara, só sendo atenuado quando bebericou o chá que Krida lhe entregou.
A bebida lhe aqueceu a garganta, acalmando-a.
— Uma alma pura é algo incomum até mesmo no mundo
sobrenatural. Atman continua tentando lidar com Aelua e as consequências
de seu propósito. — Lymena recusou ao chá delicadamente, ainda olhando
para Adhara. — Conheceu Atman, certo?
— O mundo das almas? É onde Aelua fica.
— Isso. É onde nossas ancestrais moram. — Lymena olhou para Srala
como se pedisse permissão para dizer mais. Ao sinal da outra, voltou a
atenção para Adhara. — Não deixamos o mundo igual aos humanos.
Fazemos a passagem para o mundo das almas e, quando escolhemos ficar
naquele plano, é para nos dedicar a guiar nosso povo. Vocês conhecem essa
passagem por morte. Para nós, é apenas uma nova vida.
— Vocês… Vocês não morrem? — Adhara olhou de uma para a
outra. — Nenhum ser sobrenatural…
— Morremos no mundo corpóreo, mas permanecemos em Atman.
Bruxas possuem almas, assim como humanos. Você possui Aelua, por
exemplo. Contudo, nossas almas vão para Asteria assim que assumimos o
lugar delas em Atman. Asteria é a casa de Zephyr.
— A casa de… E Zephyr é…
— Um Elemental caído. Uma espécie de divindade no nosso mundo.
Adhara respirou fundo e deixou a xícara na mesinha que estava ao
lado do sofá. Esfregou os olhos, como se a qualquer momento fosse acordar
daquele pesadelo.
— Isso não pode ser verdade — disse mais para si mesma do que para
alguém.
— Você sente a energia de Zephyr desde que o conheceu, Adhara. —
A voz de Lymena era firme. — Por ter uma alma pura, possui esse dom. E
Zephyr não libertou nem uma ínfima parte do poder para que você a
sentisse.
Adhara assentiu, mas não conseguiu esconder o rubor que tomava o
próprio rosto. Lymena também notou aquilo e olhou para Nyana. A oráculo
se adiantou com um pedido silencioso da rainha.
— Sei o que é sentir atração por uma energia oposta à nossa. —
Adhara olhou para Nyana, como se não acreditasse no que ela estava
dizendo.
— Como sabe? Eu… — A princesa não havia dito a ninguém o que
havia acontecido entre ela e Zephyr.
— Sou oráculo, Adhara. — Nyana sorriu, como se pedisse desculpas.
— E posso dizer que seu futuro está entrelaçado ao de Zephyr. Cabe a você
decidir como essa história será feita. E tomar a decisão de abraçar a energia
dele ou repeli-la.
Adhara levantou-se, sem conseguir se conter. Andou de um lado para
o outro, a fim de processar todas aquelas informações.
— Zephyr não quer a mim, meu título ou minha futura coroa. O que
ele quer é minha alma. — Olhou para as bruxas e, quando uma resposta não
veio, perguntou: — O que isso significa, na prática?
— Zephyr só poderá ter sua alma se você consentir. — Srala
respondeu. — É a sua proteção contra ele, o presente para quem carrega
uma alma pura.
— O que acontecerá se entregar Aelua para ele?
— Um corpo sem alma é um tronco oco, sem vida. — Krida avisou.
— Você seria apenas uma lembrança, cairia em um pranto silencioso,
morreria por dentro, dia após dia.
Adhara estremeceu. Aelua era parte de si, parte de sua força. Ela
precisaria daquilo para lutar contra a escuridão que tomava o seu reino.
Contudo, deixou a mente vagar pelas últimas luas, como havia caído no
castelo de Zephyr e como o Elemental prometeu aos pais algo que talvez
saísse caro demais para o reino de Dhárg.
— Ele me seduziu — Adhara sussurrou.
— E fará pior para ter o que deseja. — Lymena não a poupou.
Adhara se calou. Sentia os olhares das bruxas sobre ela, aguardando
uma posição, mas precisava de um tempo para pensar. Desde que havia se
enfiado no castelo de Zephyr, sabia que ele usava uma máscara, escondendo
algo… mas o fato é que nunca imaginou que fosse algo como aquilo. Ele
era uma divindade…
Até onde ia a extensão do poder de Zephyr?
— Eu não sei o que fazer. Não posso…
— Ninguém nasce com um destino incapaz de suportar. — Srala a
interrompeu. — Você terá uma jornada pela frente. Antes, era apenas uma
princesa se escondendo de criaturas e buscando a salvação do próprio povo.
Agora, seu dever vai além disso.
— Não consegui sequer ajudar os meus. Como posso ter tanta
importância para vocês?
— Quem disse que seu destino não está atrelado ao do seu povo? —
Ao ver que captou a atenção dela, Srala apontou para o lugar vazio no sofá.
— Sente-se, vamos ajudá-la a entender as histórias por trás do mundo
sobrenatural.
Adhara apenas assentiu antes de se acomodar.
CAPÍTULO 21

A manhã chegou, clareando os campos verdes do reino de Fhár. O


gramado, em meio as pequenas flores, parecia se sentir grato ao ver o sol,
enquanto a brisa soprava um leve e adocicado aroma. Mergulhado em
pensamentos, Zephyr poderia até apreciar aquele cenário, se não fosse tão
parecido com Atman, o lugar que ele mais detestava, com todas as suas
forças.
Ele não podia ignorar a presença de Merik ao seu lado. O Sombrio
havia sido categórico quando colocou a própria opinião em voz alta,
declarando estar contra as suas ações. O Elemental sabia que a maior
preocupação do demônio nunca foram as bruxas que estavam nas Florestas
Brancas, mas sim sua caminhante. A garota que, naquele momento, estava
ao lado dele, em silêncio.
Zephyr sentia os olhos claros dela sobre si e, precisava admitir, a
garota era determinada. A raiva que emanava dela poderia deixar qualquer
um arrepiado, fazendo com que se perguntasse como uma coisinha tão
pequena e frágil havia domado Merik.
Um sorriso enviesado apareceu no rosto dele e Alys espremeu os
lábios em uma linha fina, como se lesse os pensamentos do caído.
— Vou dar um tempo para a Coroa Vermelha entender que não há
saída. — O sussurro dele parecia uma promessa sombria no silêncio da
manhã. — Adhara ainda deve estar dormindo. Portanto, vou deixá-la
descansar um pouco antes de obrigá-la a sair.
— Sinto o poder do submundo se aproximando. — Merik avisou,
cortando sua linha de raciocínio.
— Isso nem de longe me aflige. — Zephyr fitou o Sombrio com
calma. — O que demônios podem fazer comigo?
Merik se calou, até que uma mão pálida lhe tocou o ombro. Alys
mirou o companheiro com atenção.
— Precisamos ficar… — sussurrou, mesmo sabendo que Zephyr
estava escutando. — Lymena precisará da nossa ajuda.
Merik parecia contrário àquela decisão, mas permaneceu no mesmo
lugar. Zephyr viu aquela cena e sorriu.
— Conseguirão ficar plantados aqui por quanto tempo? — Voltou sua
atenção para a fronteira. — Vou aguardar só até o fim do dia. Depois agirei
como eu desejo…

Adhara olhava a floresta pela janela de vidro. Como suas roupas


estavam perdidas, de sujeira e sangue, as bruxas lhe emprestaram um
vestido.
Ela apreciava o tecido fino e delicado em seu corpo, bem como os
últimos raios de sol que lhe aqueciam a pele. Há quanto tempo não os
sentia? Nem mesmo nas manhãs quentes de Dhárg o sol conseguia se
aproximar do reino daquela forma. A neve era tão sólida no sul do mapa
que Adhara já havia até mesmo esquecido o que era sentir o corpo
aquecido.
Precisou ficar só por um tempo, ainda mais depois que Srala lhe
contou tudo o que podia. Ela nunca havia imaginado que teria um mundo
sobrenatural em volta deles, regido por representantes de diversas raças.
Domenico, o homem que procurou por noites nos livros antigos, era o
mestre dos vampiros, espécime da qual faziam parte Gavin e Videric.
Lymena, a Coroa Vermelha das bruxas e sua protetora… E tinha Merik, o
Sombrio e demônio de mais alto poder do submundo.
A princesa achava que aquele último seria a chave para acabar com as
criaturas que infestavam seu reino, já que Srala avisou que boa parte
daquela infestação era culpa dele:
— Merik quebrou a fenda que separava os mundos, por amor…
Não foi preciso dizer mais nada… Adhara nunca julgaria alguém que
desafiou a própria essência pela mulher que amava.
Mas como poderiam fechar a fenda que dava acesso ao mundo
corpóreo? Como enterrar as criaturas vis do submundo embaixo da terra?
— Um sacrifício permitiu que os véus dos mundos não existissem
mais. Apenas outro, de igual teor e poder, poderia fazer a fenda se fechar…
Mas qual sacrifício seria maior do que aquele, quando um demônio
foi capaz de confessar o amor a uma humana, expondo assim sua fraqueza?
E havia Zephyr… Adhara precisava de mais tempo para entendê-lo.
Era uma espécie de divindade, castigada por ter abraçado o próprio lado
perverso. Um colecionador de almas impiedoso, que se alimentava de tudo
o que havia de único nos mundos: um ser ferido por uma decepção, uma
alma abandonada por um ser humano, quando este desistiu de sua
existência…
Zephyr se alimentava de almas, inocentes como ele um dia havia sido,
preferindo as que vinham com dor em suas histórias. Podia sentir isso nele,
a fome pela ruindade, pelo desespero e sofrimento.
Até que Aelua foi mandada para Atman e mudou tudo… Agora ela
era uma alma única, que Zephyr nunca sequer havia sentido o gosto.
Adhara desconhecia qual seria o seu destino, o que conquistaria e havia
feito para ser digna de uma alma daquela intensidade e poder, mas sabia que
nunca renunciaria a ela por Zephyr. Nem por ninguém.
Agora, com as bruxas ao seu lado, percebeu que se não tivesse
acreditado em Aelua e saído de Dhárg, talvez nunca encontrasse uma
resposta sobre as dúvidas que tinha sobre a vida, sobre o seu destino, o
reino… Ou como acabar com toda aquela escuridão.
Percebeu um vulto se mexendo no sofá e olhou para Lymena, que
estava com os olhos fixos na lareira. No mesmo momento em que a Coroa
Vermelha enrijeceu o corpo, como se algo a circundasse, um homem entrou
pela porta e foi até a bruxa, ajoelhando-se ao lado dela.
Ele ignorou Adhara em um primeiro momento e a princesa
aproveitou-se disso para observá-lo melhor. Era alto e se vestia com roupas
escuras, muito diferente das mulheres dali. Os cabelos lisos e alaranjados
caíam até quase na cintura e os olhos vermelhos peculiares estavam atentos
a cada movimento de Lymena.
— O que houve? — Ele parecia sentir a tensão da rainha.
— Ele… Ele está tentando entrar. — A voz da rainha era um sussurro
— Zephyr está testando o poder da Coroa Vermelha.
Os olhos dela foram para Adhara. Foi quando o homem também
virou-se para a princesa, fazendo com que sentisse uma energia estranha
vinda dele. O desconhecido não sorriu, mas se aproximou dela e fez uma
pequena reverência, que Adhara aceitou, um pouco tímida. Tinha um leve
aroma de canela com especiarias, do tipo que fazia com que as pessoas
quisessem se aproximar dele para sentir melhor.
— Meu nome é Arsene, sou o companheiro de Lymena. Desculpe a
intrusão, mas preciso saber até onde Zephyr está disposto para ter você de
volta…
Aquele homem não parecia um rei, mas havia um poder em volta
dele, fazendo com que ela nem hesitasse em respondê-lo.
— Eu não sei… Zephyr parece bem… insistente. — Adhara amassou
a saia do vestido com as mãos. — Digo, quando ele quer algo.
Arsene xingou e começou a andar de um lado para o outro.
— Merda… Isso está ficando fora de controle.
— Fique calmo. — A voz de Lymena soou mais como uma ordem do
que como um pedido. — Vamos até a fronteira.
— Não vou deixar alguém te machucar de novo. — À medida que ele
falava, Adhara sentia a energia dele intensificar.
— Vá com sua rainha. — Srala pediu, sem rodeios. — Precisamos
sentir os limites de Zephyr também.
Arsene olhou para Srala e a jovem jurou que ele avançaria na anciã-
oráculo. Porém, no último instante, pareceu se conter. Lançou um último
olhar para Adhara, seguindo Lymena para fora da sala em seguida. Quando
ficaram a sós, Srala virou-se para ela e explicou:
— Arsene é companheiro de Lymena, um mestiço de vampiro e
bruxo. — Ao ver surpresa no rosto de Adhara, complementou. — A energia
mais latente que ele carrega é a do submundo, mas Arsene é fiel à Coroa
Vermelha.
— Ele… parece não gostar de mim.
— Arsene despreza todos que podem ameaçar sua companheira. —
Nyana interviu. — Ele é sat de Lymena. Ambos compartilham, além de um
amor intenso, um elo sobrenatural. — A oráculo olhou então para Srala. —
Acredito que devemos acompanhá-los.
A anciã assentiu e olhou para Adhara.
— Fique aqui. Zephyr não pode vê-la.
Ela não desejava ficar ali parada enquanto as bruxas protegiam as
Florestas Brancas de um poder que talvez ultrapassasse suas capacidades,
mas sabia que, se Zephyr a visse, tudo poderia ficar ainda pior.
Relutante, ela assentiu, enquanto as outras saíram da sala para
acompanhar a rainha.

Zephyr podia sentir o poder da Coroa Vermelha. Era delicioso, como


um vinho harmonioso na língua depois de uma viagem cansativa. Um
sorriso cruel percorreu seu rosto enquanto tentava se aproximar da fronteira,
mas foi contido de repente, quando a energia dela o barrou.
— Sabe que será inútil! — gritou para as árvores, que levariam o
recado até a bruxa que as protegia. — Terei o que quero e derrubarei toda
essa floresta para tê-la, se for preciso.
Ainda podia sentir a presença de Merik ao lado dele, cada vez mais
inquieto à medida que Zephyr libertava seu poder para engolir o de Atman,
que nutria aquela terra.
— Diga-me, Merik. — Zephyr virou o rosto na direção dele. — Sua
caminhante… consegue protegê-la do que está por vir?
O rosto do demônio ficou ainda mais sombrio e Zephyr pôde sentir o
poder do trono de obsidiana escapar dele.
— Sabe que posso.
O Elemental observou os olhos escuros de Merik percorrendo a
fronteira, no rosto um tom claro de deboche.
— Então por que sinto que está preocupado com as filhas de Atman?
— Minha preocupação é com o mundo corpóreo. Há variáveis demais
nesse jogo, além do fato de você estar subestimando o poder de Lymena. Já
a senti expulsar centenas de demônios famintos em uma batalha, além de
lidar com Igrik e sobreviver. — Os olhos de Merik brilharam. — Abaixo de
mim, Igrik é o Alto mais poderoso do submundo.
— Uma Coroa Vermelha única então… — Zephyr desviou sua
atenção para a floresta. — E ela luta tanto pelas bruxas quanto pela
princesa? — Ao ficar sem uma resposta, instigou-o: — Diga-me, Merik,
qual a real força da rainha?
O Sombrio entendeu a pergunta e olhou para as árvores.
— A energia de Lymena é quase impenetrável. A rainha ama e é
amada. — Ele apontou para a floresta com um gesto. — Arsene deve estar
ao lado dela nesse momento. Compartilham um sat.
— Um sat? — Zephyr foi pego de surpresa com essa informação, mas
logo a malícia lhe voltou ao rosto. — Vamos ver até onde esse amor pode
levá-la.

Adhara não conseguiu se conter mais quando a lua apontou no céu,


apesar de ser apenas um feixe branco e leitoso daquela distância. Saiu do
casarão da rainha e seguiu com facilidade a energia da Coroa Vermelha.
Não conhecia aquelas florestas, mas o poder latente de Lymena parecia
guiá-la por entre as árvores.
Após andar por algum tempo, parou, sentindo-se tonta. Uma força
contrária à das filhas de Atman a atingiu e a princesa cambaleou. Ela a
conhecia, já tinha sentido acariciar sua pele, invadir seu corpo e deixá-la
lânguida em busca da pureza que havia dentro dela, fechando-se sobre si
como garras escurecidas.
Mas, pelo visto, o que havia conhecido não tinha sido nem mesmo
uma pequena parcela do que tentava invadir o espaço deles naquele
momento.
Zephyr tentava quebrar a Coroa Vermelha.
Adhara percebeu que ele estava sendo bem-sucedido em sua
empreitada, quando finalmente se aproximou do pequeno campo onde
Lymena estava. A rainha estava de olhos fechados e os braços abertos,
como se buscasse a força da floresta que tanto amava.
Uma brisa suave parecia acariciá-la, os cabelos castanhos voando à
medida que o vento encontrava o corpo dela. Arsene estava ao lado da
companheira, os olhos vermelhos atentos a qualquer sinal de alerta, mas
Lymena parecia sequer percebê-lo, numa batalha interna e pessoal, sem que
pudesse angariar aliados.
Os lábios pálidos diziam que estava perdendo aquela batalha, o que só
encheu Adhara de desespero.
— O que você está fazendo aqui? — A voz de Arsene parecia fraca.
— Eu… Eu queria ajudar. — Olhou em volta e viu Nyana, Srala e
Krida um pouco afastadas. Estavam de olhos fechados, sem terem
percebido sua presença. — Me diga o que posso fazer.
Arsene nada respondeu, apenas acenou negativamente com a cabeça.
— Não posso me preocupar com você, ainda mais com Lymena
assim. Se Zephyr não parar, esse lugar terá de ser destruído.
— Lymena destruiria a própria floresta?
— Ela prefere deixá-la em cinzas do que permitir sua invasão.
Aquilo foi como um soco no estômago da princesa. Ela entendeu o
que realmente estava acontecendo ali. Fitou então Arsene, que observava a
rainha. Os lábios de Lymena ficavam mais pálidos à medida que o tempo
passava, deixando Adhara inquieta.
— Vou vê-lo… — Ela disse sem pensar. — Conversarei com ele.
Adhara tentou se afastar, mas uma mão firme a impediu. Os dedos
eram delicados, mas a pele estava fria como mármore. Os olhos castanhos
da rainha a observavam, enquanto abria os lábios pálidos para dar a ordem.
— Você não irá se aproximar dele sem que eu esteja ao seu lado. —
Arsene olhava para as duas, parecendo discordar daquilo, mas ao ver que
Lymena a acompanharia, fez o que pode para ajudar sua rainha, oferecendo-
lhe o braço.
Caminharam em silêncio pela floresta. Lymena os guiava, às vezes
parecendo prestes a perder as forças, mas Arsene permanecia ao lado,
pronto para ampará-la. Adhara começou a ficar ansiosa, sem desejar passar
por aquilo. Algo que nunca tinha pedido.
— Isso está passando dos limites. — Adhara desabafou. — Não sei o
que fazer ou qual decisão tomar. Se continuar aqui, coloco a vida de vocês
em risco e nunca vou me perdoar caso algo aconteça. Se eu o confrontar,
posso fraquejar e dar o que ele quer de uma vez por todas, só para que isso
acabe.
— Você nunca daria sua alma para ele. — A certeza de Lymena fez
com que Adhara tivesse vontade de abraçá-la. — Não duvide de sua força.
Adhara observou Arsene a olhando com cuidado e atenção, como se o
vampiro tivesse percebido pela primeira vez que o quanto era complicada
sua posição.
— Como podemos contê-lo? — Adhara questionou em voz alta.
Lymena parou de andar e a garota percebeu que haviam se
aproximado da fronteira.
— Vamos descobrir isso agora.

Merik observava Alys com certo receio. A garota parecia ofegante,


com os braços trêmulos. Ele percebeu que o poder de Zephyr estava
afetando-a também. Contudo, apesar de não gostar de vê-la sofrer, aquele
era o menor dos seus problemas no momento.
— Igrik está se aproximando. E não está sozinho.
Sua voz foi um sussurro, mas o suficiente para Alys e Zephyr ouvi-lo.
O Elemental olhou para ele despreocupado.
— Achei que você controlava os demônios.
— Sim, mas meu foco agora é Alys, não as Florestas Brancas. —
Olhou para a companheira, como se pedisse desculpas. — A Coroa
Vermelha não conseguirá lidar com um Elemental caído e o submundo ao
mesmo tempo.
— Bom, isso não é problema meu. — Zephyr respondeu, sem se
importar com as consequências.
Aquilo fez a paciência de Merik acabar.
— Acha mesmo que o submundo deseja apenas a adaga de Jyot? —
Ele cuspiu, ácido. — É inocente o suficiente para pensar que Igrik não
fareja a alma que Adhara carrega?
Zephyr olhou furioso para o Sombrio, mas o embate foi interrompido
quando a Coroa Vermelha apareceu na fronteira das Florestas Brancas.
Merik ficou surpreso em ver como ela estava pálida, os lábios brancos e
círculos escuros abaixo dos seus olhos. Arsene estava ao lado da
companheira, amparando-a.
Merik observou como Zephyr olhava para o vampiro, parecendo
analisar as duas energias opostas que haviam nele, algo considerado único
até mesmo para um Elemental.
— Me entregue a garota, bruxa.
Lymena não respondeu, mas Merik sabia que a princesa estava por
perto. Podia sentir a energia da garota, bem como a de Igrik, um ponto de
luz e uma mancha em meio à floresta.
Os demônios se aproximavam junto do Alto e Merik sabia a fome que
eles carregavam. Só hesitavam em tomar terreno porque sabiam que ele
estava ali. O Sombrio os continha com uma força de aço, mas precisava
proteger Alys também.
Ele demorou a perceber a presença de Srala ao lado de Arsene. Nunca
gostou da anciã-oráculo, mas não podia deixar de declarar que aquela bruxa
o havia guiado em alguns momentos essenciais, como fazia naquele
instante.
A velha sabia. Tinha ciência da aproximação de Igrik, bem como da
presença dos demônios. A mão da oráculo foi até o ombro de Lymena, que
pareceu menos pálida por um momento. Depois disso, ela o olhou com
atenção.
Merik assentiu, sabendo o que a bruxa queria. Deu as costas para
Zephyr e puxou Alys com delicadeza.
— Vamos, preciso deixá-la em segurança. — Alys recusou a se mover
por um momento, mas Merik a olhou, fazendo com que a garota entendesse
aquilo que as palavras não eram capazes de expressar. — Você vem em
primeiro lugar. Sempre.
Ele a ajudou sua companheira a montar no garanhão escuro e sentou-
se logo atrás dela, puxando as rédeas do animal. Zephyr ignorou os dois,
focado demais na bruxa que o detinha.
O garanhão tomou velocidade e cortou as árvores da floresta, já
sabendo o caminho para casa. Assim que o poder do Sombrio deixou o
campo, as criaturas contidas até ali ganharam velocidade, seus gritos
fazendo com que Alys escondesse o rosto no braço de Merik.
O Sombrio afastou-se daquela batalha, sabendo que havia feito o
melhor para salvar a mulher que amava.

Os gritos das criaturas fizeram a pele de Adhara se arrepiar. Ela não


podia vê-los, mas sabia que eram muitos. Ao longe, alguns homens
pareciam atacar as bestas. Ela reconheceu Videric e Gavin, mas os outros
eram desconhecidos aos seus olhos.
Sangue escuro começou a banhar o gramado, enchendo o ar com um
cheiro podre, dando vontade de vomitar. Ela levou as mãos às costas em um
gesto familiar, mas seus dedos se fecharam no ar quando não sentiu as
flechas na aljava junto dela.
A lua parecia tímida enquanto a escuridão tomava o campo e Adhara
sentiu o chão estremecer. Um vento forte percorreu as árvores e as pequenas
criaturas que haviam ali levantaram voo. As nuvens se dispersaram e o
feixe de luz fraco foi o suficiente para que o poder de Atman encontrasse
quem precisava. A princesa olhou para Lymena e se assustou ao ver uma
fina linha de sangue descer pelo nariz da rainha.
— O que está acontecendo com ela?
Srala ainda mantinha a mão no ombro da rainha e Adhara entendeu
que a oráculo-anciã servia como um catalisador daquele poder.
— Lymena está protegendo o Coven contra os demônios que se
aproximam.
— Mas isso está a machucando. Pare, por favor! — Adhara gritou
para Lymena, que estava de olhos fechados.
— Ela não pode te ouvir. Está mergulhada no próprio poder.
Demônios guinchavam à medida que encontravam o poder de Atman.
Adhara não pôde deixar de ficar fascinada ao ver as criaturas caindo aos
montes. Aquele poder… Aquele poder poderia salvar seu reino.
— Não há poder infinito. — A voz de Srala fez Adhara sair de seu
torpor. A princesa olhou para a bruxa. — Grandes batalhas requerem
grandes sacrifícios. Lymena consegue expulsar os demônios do submundo,
mas a presença de Zephyr está drenando-a e as criaturas sentem isso.
O sangue agora escorria livremente pelo queixo da rainha e Lymena
abriu os olhos. Os orbes, antes castanhos, agora estavam brancos como a
lua. Srala observou aquilo e olhou para Adhara.
— Faça sua escolha.
Era aquilo que a jovem precisava ouvir, e Srala sabia. A rainha não
havia dado qualquer autorização para que a anciã tomasse uma decisão, mas
a oráculo parecia entender que Adhara nunca se perdoaria caso as bruxas
perecessem por sua causa.
— Eu vou com ele.
Srala ainda mantinha a mão no ombro de Lymena, mas assentiu para a
princesa e fechou os olhos. O poder reverberou e ela percebeu que aquela
seria sua única chance. Correu até a fronteira e sentiu a energia de Atman a
seguindo. Contudo, a escuridão vinha logo atrás.
A princesa viu foi o homem de cabelos claros se aproximando. Sabia
que se tentasse combatê-lo, não teria a mínima chance. Só restava correr e
torcer para ser rápida o suficiente.
Assim que saiu das Florestas Brancas, os demônios vieram em sua
direção como um enxame de abelhas. Adagas e espadas explodiram a sua
volta, cortando o ar e dilacerando aquelas bestas, separando os corpos em
pedaços pelos vampiros.
Muitas criaturas conseguiram furar a proteção de Domenico e
correram em sua direção, mas logo caíram. Ela sabia que Zephyr tinha algo
a ver com aquilo.
A jovem não queria admitir, mas achava que jamais conseguiria
atravessar aquele campo e se aproximar dele sem sucumbir. Mas ao olhar o
Elemental de longe e vê-lo estender o braço, suas esperanças foram
renovadas.
A cada passo, sentia-se mais segura. Assim que ela entrelaçou seus
dedos ao dele, tudo pareceu perder o sentido. Zephyr a ajudou a montar no
cavalo e subiu logo atrás. Adhara se virou para observar Lymena, os olhos
da bruxa estavam novamente castanhos, assim como a hemorragia parecia
ter estancado.
Sem o ataque de Zephyr, os demônios caíram aos montes, sob o poder
da Coroa Vermelha. Não havia decepção nos olhos castanhos, apenas
sabedoria. Havia ali algo que Adhara quase não suportou ver, como se a
rainha acatasse sua decisão, apesar de não concordar com ela.
O cavalo de Zephyr era rápido, mas as criaturas eram mais. Adhara
estremecia toda vez que um aparecia entre as árvores, furiosos quando não
conseguiam sequer se aproximar dos dois.
Ela se agarrou no gibão de Zephyr e sentiu toda sua força minguar
quando aqueles gritos apavorantes começaram a ecoar pela floresta. O
pesadelo do lago congelado voltou e ela fechou os olhos. Aqueles gritos…
Adhara agora sabia de onde vinham.
— Fique comigo, Adhara. — Ela escutou a voz de Zephyr.
Mas tudo ficou escuro assim que aqueles gritos mergulharam dentro
dela.
CAPÍTULO 22

Lymena observava as criaturas caírem, uma a uma. Às vezes pelas


espadas dos vampiros, mas boa parte pelo poder de Atman, que corria em
suas veias de forma cada vez mais intensa à medida que Zephyr se afastava
da fronteira com Adhara.
A Coroa Vermelha precisava ter autocontrole para catalisar aquele
poder na direção dos demônios que infestavam os campos de Fhár, sem
desviá-las para o Elemental, que sumiu por entre as árvores do Norte com a
princesa que ela jurou proteger. Mas as Florestas Brancas vinham em
primeiro lugar, já que precisava delas para manter o seu povo em segurança.
Por isso, não deixaria os demônios se aproximarem e colocarem tudo em
risco.
Um a um, eles foram abatidos, banhando os campos com sangue
fétido e gritos de desespero. Lymena ousou se aproximar ainda mais da
fronteira, sentindo a presença do inimigo assim que ele cortou o campo pelo
qual a princesa havia fugido pouco tempo antes.
Os olhos frios fixaram-se nos dela e Lymena escutou o rosnado de
Arsene ao seu lado. Apesar do desejo, ela sabia que o companheiro nunca
se afastaria para atacar Igrik. O Alto parecia ter a mesma ciência e, mesmo
com os demônios perecendo à sua volta, parou bem próximo da fronteira
das Florestas Brancas, sorrindo com prepotência.
— Lymena… é sempre um prazer ver a beleza de Atman em uma
bruxa. — O rosnado de Arsene foi mais severo, mas o demônio nem parecia
incomodado com aquela ameaça. — Até quando vai tentar salvar o que não
consegue?
Lymena não respondeu. Os vampiros estavam parados próximos ao
campo, mas nenhum deles ousou se mexer.
— Sinto a adaga de Jyot se afastar das Florestas Brancas… bem como
a princesa de alma pura. — O rosto de Igrik não demonstrava emoção
alguma, apesar de Lymena sentir sua irritação. — Não perderei meu tempo
com vocês…
Ele se virou e afastou-se dali, sem sequer olhar para os vampiros ou
para as bruxas dispostas próximas às fronteiras das Florestas Brancas.
Lymena sabia que Igrik não voltaria. Seu objetivo era outro e seus dois
desejos estavam em pontos diferentes do mapa.
Quando percebeu a energia do submundo se afastar, ela se permitiu
dar um passo para trás. Sentiu os braços de Arsene suportando o seu corpo,
que parecia pesado demais naquele momento. O aroma do companheiro a
fez ficar mais calma. Estremeceu naquele abraço, deixando com que as
lágrimas deslizassem pelo seu rosto, numa demonstração de fraqueza que
ela raramente permitia que fosse visto.
— Não consegui protegê-la… — murmurou, sentindo os braços do
companheiro apertarem-na, bem como os dedos de Srala lhe acariciando a
mão.
— Adhara precisava tomar uma decisão e, sendo a pessoa altruísta de
sempre, preferiu voltar aos braços do inimigo a ver as bruxas caírem. —
Quando Lymena olhou para a oráculo-anciã, esta percebeu que havia
tomado uma decisão contrária à Coroa Vermelha. — Sei que me confiou
Adhara enquanto chamava pela proteção de Atman, mas deixei-a ir. Nem
sempre o destino que escolhemos é o mais fácil.
Lymena sequer tinha forças para argumentar. Quando pedia pela
sabedoria de Srala, sabia que a bruxa a entregaria de bom grado, mas nem
sempre concordariam e a rainha era grata por aquilo. Precisava de opiniões
sinceras, e não submissas.
— Me levem para a vila. — Lymena pediu.
Arsene a pegou no colo e a Coroa Vermelha permitiu-se deitar o rosto
no peito largo do companheiro, sentindo o aroma de canela que tanto
amava. Precisaria se recuperar, já que o poder de Zephyr havia sido um
golpe que Lymena nunca havia sentido desde que herdou a Coroa
Vermelha.
Mas isso não significava que não o enfrentaria novamente.
O Sombrio estava calado há muito tempo, os olhos fixos nas chamas
da lareira. A sala silenciosa fazia com que Alys se lembrasse dos momentos
em que o confrontou naquele mesmo lugar, a pedido das ancestrais. Aquilo
nunca acabava bem. Merik não era um homem que gostava de ser
pressionado e Alys sabia que ele estava lidando com muito naquele
silêncio. Por isso, preferiu aguardar.
A voz dele estava rouca quando colocou o pensamento em voz alta.
— Não posso gastar minha energia tentando proteger uma princesa
com Igrik em seu encalço.
Quando Alys não disse nada, ele se virou em sua direção. Os olhos de
Merik estavam ainda mais escuros e a linha do maxilar saltava enquanto ele
parecia ranger os dentes na tentativa de conter a raiva. Alys se aproximou
dele, mesmo sabendo que o Sombrio estava em seu pior momento.
— Você fez o que foi necessário — sussurrou. — Ficamos ali para
tentar apoiar Lymena e desviar a atenção de Zephyr, mas aquilo era uma
batalha perdida.
Ainda não sabia como a bruxa havia lidado com Igrik, mas Merik
havia lhe dito que a Coroa Vermelha tinha poder o suficiente para derrubar
aqueles demônios e ainda barrar o Alto. Souberam também que Zephyr
havia se distanciado, permitindo que a força da rainha voltasse em pouco
tempo. Alys ainda se preocupava com as bruxas, mas sabia que voltar para
as Florestas Brancas poderia ser a ruína de muitos.
— Igrik quer a adaga. Mesmo ficando no campo, sinto sua ira voltada
para mim — ela confessou, fazendo com que o humor de Merik ficasse
ainda pior.
— Ele é ambicioso. A adaga é importante para os planos dele… —
Merik olhou para Alys e tocou o rosto da garota, deslizando os dedos pela
bochecha corada. — Mas você é meu ponto fraco. Se ele tiver você, Alys…
Ele terá o trono de obsidiana.
Ela abraçou Merik, para tentar conter a raiva que parecia crescer à
medida que o Sombrio tentava lidar com tudo aquilo. Ele relaxou com o
toque por um momento, mas a garota sabia que ainda estava pensativo.
— Igrik está fascinado com Adhara. Levar para o submundo uma
humana que possui alma tão pura seria um ataque direto a Atman, além de
uma força enorme para os Altos, que estão calados, à espera. — Ela
colocou os pensamentos em voz alta, sentiu Merik ficar tenso mais uma
vez. Afastou-se e o olhou com atenção, uma ideia lhe surgindo na mente. —
Eles estão calados, certo?
Alys não gostou do olhar de Merik, mas sabia que o Sombrio nunca
guardava informações para si mesmo, como fazia há algumas luas.
— Sinto a presença dos Altos no mundo corpóreo há algum tempo. —
Alys abriu a boca para responder, mas descobriu que não tinha respostas
para aquilo.
— Lymena…
— Contei a Domenico e Arsene estava presente quando o alertei. Ele
foi até as Florestas Brancas para avisar a Coroa Vermelha, mas encontrou o
caos quando chegou. — Merik tentou tranquilizar a caminhante. — Lymena
deverá saber assim que Arsene sentir que ela está bem…
— Não estamos conseguindo sequer lidar com Zephyr e Igrik… como
lidaremos com os outros Altos por aqui? — A preocupação dela era
genuína.
— Há muita coisa no mundo corpóreo que atiça o desejo de um
demônio da realeza, Alys. — Merik foi sincero com a companheira. — Eles
nunca ficariam satisfeitos lá embaixo por tanto tempo.
A caminhante assentiu, mas isso não tirou o peso que lhe ocupava o
peito. Os Altos, soltos no mundo corpóreo, tornariam tudo mais difícil. As
atenções foram divididas entre os dois inimigos.
— É uma corrida por poder e sangue… — Ela soltou em meio aos
pensamentos. — Nos resta saber se Atman conseguirá acabar com a sombra
que paira no mundo.

Adhara havia desmaiado nos braços de Zephyr enquanto fugiam. Às


vezes ela abria os olhos para tentar ver o que acontecia, mas sua energia era
sugada pelo poder do Elemental, apagando logo em seguida. Como não
podia exigir muito do animal que os levava para o Sul, com a princesa em
seus braços, precisou parar algumas vezes para dar alimento e água ao
cavalo. Focou sua atenção exclusivamente em Adhara.
Depois de muito tempo, sentiu os olhos dela sobre si, mas nada disse.
Além do próprio poder, os demônios haviam drenado a energia da garota,
os gritos das vítimas a atingindo de uma maneira que nunca havia visto
antes. Sabia que Adhara era um ponto de luz que atraía a todos, mas a
forma como as criaturas tentaram deslizar as garras para possuí-la… Zephyr
não gostou nada daquilo.
À medida que desciam pelas estradas, a claridade de Fhár os
deixavam, bem como a temperatura cálida e as árvores com copas verdes.
Zephyr sentiu a sombra começar a abraçá-los e o frio característico do Sul
surgir com timidez.
Adhara estava com apenas um vestido fino que as filhas de Atman lhe
deram e, mesmo recusando várias vezes o manto de Zephyr, precisou
desistir daquela tolice e se cobrir quando o frio começou a ficar mais
intenso. Enrolou-se no manto escuro dele e, mesmo que ela não percebesse,
o Elemental sentia o rosto da jovem ocasionalmente lhe tocar o peito,
quando cochilava, tomada pelo cansaço.
O cavalo parou para beber água de um rio que cortava parte da
fronteira entre Fhár e Dhárg quando levantou o pescoço, as orelhas virando-
se para um dos lados da floresta. Zephyr conhecia o instinto do animal e
percebeu que algo estava errado. Adhara pareceu perceber o corpo dele
enrijecer e se endireitou na sela.
— O que houve? — A voz dela estava fraca.
Zephyr tocou com delicadeza os lábios da princesa com os dedos,
para pedir silêncio. Ela não se afastou daquele toque, ansiosa.
— Estamos sendo seguidos — ele sussurrou.
— Desde que nos afastamos das Florestas Brancas. — Ela estremeceu
ao relembrar daquilo, os gritos dos demônios ainda ecoando em sua mente.
O caído ignorou aquilo, instigando o cavalo a seguir adiante. O
animal não precisou de muito incentivo, como se sentisse o perigo se
aproximando. Aumentou o ritmo e em pouco tempo estavam correndo entre
as árvores da fronteira de Dhárg.
— Por que está correndo assim? — Adhara o questionou, enquanto
Zephyr a abraçava com mais força
— Fique quieta! — ele ordenou.
— Não me mande ficar quieta! — Ela se remexeu no cavalo, mas os
braços dele eram fortes em volta da jovem.
O cavalo cortava as árvores sem sequer tomar fôlego e a princesa
olhava em volta, como se procurasse o motivo do alerta de Zephyr. Até
que…
— O que é isso?
Uma vertigem a tomou de novo, como se alguém estivesse sugando
para si toda a energia que havia nela. O corpo de Adhara amoleceu e só não
caiu do cavalo porque Zephyr a segurava.
— Merda, Adhara… — ele xingou atrás dela. A princesa fechou os
olhos, mas voltou a abri-los quando Zephyr a sacudiu. — Acorde e fique
comigo…
Ela fez o que ele pediu, com certo esforço. Foi quando percebeu que
vultos os seguiam. Não os pequenos e deformados dos quais estavam
acostumados. Aqueles eram maiores e, apesar de estarem em cima de
cavalos, conseguia ver a graciosidade com que corriam na direção deles.
Princesa Adhara…
Uma voz masculina e bela a chamava, viajando entre as árvores. Ela
sentia-se atraída por ela.
Por que foge?
A pergunta foi acompanhada de uma risada, deixando o rosto de
Zephyr ainda mais sério. Ele também escutou aquilo, percebendo que talvez
a princesa não conseguisse resistir àquela tentação. Os Altos do submundo
tinham um requintado poder de sedução e, naquele momento, pareciam agir
sob Adhara, com o intuito de derrubá-la do cavalo, deixando-a vulnerável.
Estavam cercados por eles. Alguns usavam um capuz por cima dos
rostos, outros preferiam se expor, suas belezas encantadoras e cruéis.
Zephyr percebeu que Adhara analisava os rostos que a observavam com
tanta fome, sem entender o risco que corria. Os Altos haviam sido feitos
para atrair, maliciosos como tudo que vinha do plano inferior.
— Não dê ouvidos a eles. — A voz de Zephyr fez com que ela saísse
daquele estranho estado de torpor.
Começou a exigir mais do cavalo e libertou seu poder sobre os Altos.
Apesar de serem numerosos, os demônios diminuíram a velocidade e
gritaram, cheios de dor, mas aquilo não significava que haviam abandonado
a ideia de capturar sua princesa.
A escuridão se aproximava, cobrindo tanto os dois quanto os Altos, a
perversidade de Zephyr brigando com a fome dos inimigos por Adhara. O
Elemental estava tranquilo, mas perdeu um pouco do controle quando
percebeu a inquietação das almas dentro do seu relicário, como se elas
estivessem sendo convocadas pela mesma voz doce e tentadora que Adhara
ouvia.
Estremeceu. O que faria? Protegeria as almas do seu relicário ou a
princesa em seus braços? Adhara parecia fascinada pelos Altos, como se
fosse atraída por aquele poder maior, a luz sendo abraçada pela escuridão.
Uma decisão errada e colocaria tudo a perder.
Zephyr puxou as rédeas do cavalo, que empinou e fez o corpo da
jovem chocar-se contra o seu. Ele a abraçou até que o cavalo voltasse a
pisar na grama, parando logo em seguida.
Virou-se para as criaturas que os perseguiam e observou os rostos
satisfeitos dos demônios. Ele conhecia um deles, Igrik, o Alto mais
poderoso do submundo depois do Sombrio. Os olhos dele pairavam sobre a
princesa com certa fome, enquanto os outros pareciam dividir a atenção
entre ela e as almas presas no objeto profano que Zephyr carregava no
pescoço.
O brilho tímido e leitoso sobre o peito do caído indicava que as almas
foram acordadas por um chamado sobrenatural. Zephyr aguardava a
coragem que faltava em Igrik para enfrentá-lo de uma vez por todas.
— Sabe que não a terá, Igrik — sussurrou, o silêncio da floresta
tornando o lugar quase sepulcral, já que cada ser vivo dali havia se afastado
da energia sombria que os rondava. — Fui cortês com você na última vez,
mas não gosto quando testam minha paciência, o que você já fez demais.
Igrik sorriu, mostrando o quanto era ousado. Apesar de Zephyr
possuir o maior poder dali, os Altos possuíam uma sede pelo que ele
carregava, capaz de fazê-los agir como tolos.
— Me entregue a garota, Zephyr. Você sabe que posso quebrá-la em
pedaços, se eu assim quiser… Prometo que a alma dela será sua, mas não
posso impedir os Altos de experimentarem um pouco do que a princesa tem
a oferecer.
Zephyr não gostou de escutar aquilo. Soube então que aquela
perseguição não era apenas pela alma da garota. O que Adhara tinha a
oferecer era apetitoso demais para um Alto demônio.
Notava os olhos famintos na direção dela, assim como as garras
mentais deles testando o poder que Zephyr havia jogado em volta dos dois,
para protegê-los. Além da alma pura, Adhara era um ponto de luz a se
destacar no mundo corpóreo, bela como apenas uma princesa de Dhárg
seria. A ideia daqueles demônios a tocando, independente da forma como o
fariam, o deixava furioso.
— Vocês já estão aqui por tempo demais. — Zephyr olhou então para
Adhara e passou a mão no rosto da garota, com um sutil pedido. — Seja
forte…
Ela pareceu não entender o que ele lhe pedia, mas o caído não deu
maiores explicações. Fechou os olhos e, pela primeira vez desde que
avançou contra os véus dos mundos e desceu de Atman, permitiu-se libertar
todo o poder que continha, aquele que apenas um Elemental teria.
Aquilo estremeceu o solo abaixo deles, bem como fez os galhos das
árvores serem jogados uns contra os outros. A neve começou a cair em
abundância e o frio ficou mais intenso. Zephyr sentiu Adhara começar a
tremer em seus braços, bem como as almas em seu relicário se lamentarem.
Todas conheciam aquele poder, já que haviam sido capturadas por uma
pequena parcela dele.
A escuridão engoliu os dois e avançou sobre os Altos como garras.
Alguns demônios se afastaram, mesmo tendo a escuridão como amiga.
Aquele poder era secular, capaz de afogar os Altos em desespero.
Igrik permaneceu forte, enquanto os demônios levantaram os braços,
invocando o próprio poder do submundo. Uma lâmina feita de sombras
surgiu nas mãos do demônio, enquanto gritos de desespero tomaram as
florestas.
Zephyr abaixou a princesa e a lâmina, que voou em sua direção,
atingiu-lhe no peito, o poder do submundo se entranhando nas suas veias.
Os gritos dos desesperados encontraram a tristeza do relicário, esfriando as
linhas negras em sua pele, queimando-o com aquele poder. Zephyr tossiu e
cuspiu sangue.
Adhara gritou por ele quando viu o líquido escorrer. Procurava o que
havia lhe atingido, mesmo que o buraco enorme surgido em seu peito lhe
dissesse que estava ferido.
— O que… O que é isso?
Os olhos de Zephyr estavam atentos aos Altos diante dele e, mesmo
cuspindo sangue, conseguiu levantar o braço. As linhas escuras dançavam
em sua pele, fazendo os Altos gritarem.
Daquela vez, Zephyr não os poupou. Só então Igrik percebeu que
aquela batalha seria perdida caso insistissem. Com um último olhar para os
dois, deu meia volta com o cavalo e se afastou, sendo seguido pelos outros
Altos.
Zephyr tombou o braço ao lado do corpo e respirou fundo. O sangue
ainda saía pelo ferimento e mais do líquido vermelho saiu de seus lábios
quando puxou as rédeas do cavalo, dando a ordem.
— Vamos para Dhárg.
— Mas…
— Depois, Adhara. Preciso te colocar em segurança.
Ela não gostou de ouvir aquilo e, sem pedir permissão, pegou as
rédeas das mãos de Zephyr, que pareceu ignorar o gesto, pousando as mãos
ensanguentadas na cintura dela. Ela sentiu o corpo dele atrás de si, forte e
indestrutível, perguntando-se como lidaria com toda aquela força quando
fosse ela a enfrentá-lo.
Mas não pensaria sobre aquilo, não naquele momento. Teria de
concentrar-se em levá-los de volta ao seu reino.
CAPÍTULO 23

Adhara quase chorou quando reconheceu o castelo de Zephyr em


meio ao campo coberto de neve. Instigou o cavalo acelerar e, mesmo que o
animal estivesse cansado, parecia empolgado com a ideia de ter abrigo e
feno fresco depois da longa jornada.
Sentia o corpo do Elemental ainda a abraçando, o cheiro ferroso de
sangue impregnando as roupas dele, empapando o tecido do manto nas
costas dela. Ele precisava de ajuda.
Quando se aproximaram, dois guardas reconheceram seu senhor e
pareceram alarmados ao ver sangue no rosto dele. Correram na direção dos
dois e pegaram as rédeas das mãos de Adhara. Zephyr foi o primeiro a
desmontar, as pernas fortes batendo no chão com firmeza. Ele a olhou e a
princesa tentou não focar a atenção no rastro vermelho que lhe escorria pelo
queixo.
Sem nada dizer, o caído pegou-a pela cintura e a puxou do cavalo
com uma força surpreendente. A jovem, por outro lado, assim que
desmontou, sentiu as pernas fraquejarem ao tocar no chão. No mesmo
instante, os braços dele a cercaram, erguendo-a nos ombros, fazendo-a odiar
o fato de ser içada como um pedaço de carne.
— Me coloque no chão! — Esperneou, mas Zephyr pareceu não se
importar com os seus protestos. — Você está ferido.
— Você sequer consegue ficar em pé, Adhara. — A voz dele estava
rouca e a princesa se perguntou quanto de sangue havia perdido. Olhou em
volta, notando que alguns criados se aproximavam, alertas a qualquer
mudança de perspectiva ali. — Preparem um banho e uma refeição para a
princesa.
— Meu senhor… — Uma das criadas fez uma pequena mesura antes
de olhar o estado em que Zephyr se encontrava. — Podemos preparar os
banhos e as refeições para ambos…
Adhara aguardou a reação dele, mas ficou grata quando o viu apenas
assentir. Ao ver aquele gesto, a criada animou-se, diante da ideia de cuidar
do próprio senhor. A jovem princesa conhecia criadagens de castelos, sabia
que uma recusa vinda dele seria como uma afronta à capacidade deles de
servir. Zephyr a carregou porta adentro, subindo as escadas e andando pelos
corredores.
Ele não a levou para o quarto, mas seguiu por uma porta que Adhara
nunca havia entrado antes. Quando esta se fechou atrás de si, observou que
estavam num quarto com móveis grandes, as cortinas parcialmente fechadas
e a claridade da neve lá fora batendo na cama de lençóis escuros. A lareira
estava acesa, algo comum para Dhárg, mesmo quando os cômodos estavam
vazios.
— Vou colocá-la no chão. — Zephyr avisou. Adhara se remexeu no
colo dele, mas daquela vez manteve as pernas firmes assim que sentiu as
botas tocarem a pedra escura.
Assim que o Elemental percebeu que a princesa estava em segurança,
deu um gemido de dor e caminhou para um sofá próximo à lareira, caindo
na almofada de veludo. Permitiu-se tombar a cabeça no encosto e respirar
fundo.
— Maldito corpo humano…
Pouco tempo depois, ele ficou em silêncio. Parecia estar dormindo, ou
desmaiado. A princesa esperava que fosse a primeira opção.
Alguém bateu à porta. Quando não responderam, uma criada abriu,
sendo seguida por várias outras. Algumas sumiram por uma porta atrás de
um biombo, carregando vários baldes com água fumegando, a última delas
trazendo na mão várias roupas dobradas.
O som da banheira se enchendo cortou o silêncio estranho do quarto.
Logo passaram pela porta mais duas serviçais, uma carregando a bacia com
água e vários panos e, atrás dela, outra trazia a bandeja com comida,
colocando-a em cima do móvel ao lado da porta. A mulher com a bacia
deixou-a próxima à lareira, olhando em seguida para Adhara, que assentiu,
sem trocarem uma palavra. Ambas foram embora em seguida, no rosto um
aparente alívio em ver a princesa ali.
Adhara não queria, mas sua curiosidade era maior que a vontade de se
manter afastada de Zephyr. Aproximou-se então para observá-lo. Apesar de
não estar tossindo mais sangue, ele ainda parecia sangrar por baixo da
blusa. Sentou-se ao lado dele e, com os dedos trêmulos, tocou o algodão da
roupa, sentindo na mesma hora a umidade.
Retirou os botões das casas e abriu o tecido. Os olhos arregalaram
quando percebeu o tamanho do buraco que havia no peito dele. As linhas
escuras do corpo dançavam ao redor do ferimento, como se sentissem dor.
A jovem ignorou o brilho leitoso do relicário e tocou em volta do
ferimento, fazendo Zephyr chiar.
— Você vai precisar costurar isso — Adhara declarou, tentando
esconder as emoções.
Ele levantou o rosto e a observou.
— A lâmina do submundo cortou fundo, mas meu poder vai
conseguir fechar sem eu precisar de recursos humanos…
Aquilo a assustou e Adhara retirou as mãos dele por um instante. Por
algum motivo, ainda o via como um homem, mesmo sabendo que estava
longe de ser aquilo. A prova do poder dele estava à sua frente, já que à
medida que conversavam, o ferimento parava de sangrar, apesar de ainda
aberto. Aquilo mataria qualquer um, mas o poder de um Elemental
mantinha o corpo dele íntegro, apesar de tudo.
— O que foi aquilo, Zephyr? — ela sussurrou a pergunta, enquanto
ele a olhava com atenção. — Aquele cerco nas Florestas Brancas…
— Não vou deixá-la se afastar de mim.
Adhara tentou ignorar aquilo quando mergulhou um pano na água
morna da bacia e, com cuidado, passava no peito dele. Zephyr fez uma
careta quando o pano se aproximou do ferimento.
— Precisava quase matar as bruxas para isso? — Ela emergiu o pano
encharcado de sangue na bacia e o torceu logo em seguida.
Passou novamente no peito dele, dessa vez com delicadeza, próximo
ao ferimento. O relicário dele brilhou e Adhara ficou incerta se era por
causa do toque dela ou pela pergunta.
— Eu destruiria o mundo para ter o que quero.
Adhara não conseguiu se conter quando os olhos dela se encheram de
lágrimas. Às vezes esquecia que o interesse de Zephyr era outro e, mesmo
que fosse tolice, uma tristeza estranha lhe invadia o peito. Nunca daria o
que ele desejava, e nem via uma forma de se livrar daquela prisão. Como
lutaria contra uma divindade?
— Quem eram aqueles que nos perseguiam? — perguntou como uma
forma de se distrair da própria dor.
Zephyr gemeu enquanto se mexia no sofá.
— Altos demônios. A realeza do submundo. — Os olhos escuros dele
focaram em Adhara. — Sua energia pura os atraiu… você carrega algo de
muito interesse para seres contrários a Atman.
Ela não gostou de ouvir aquilo. Parou de limpar o ferimento dele e
observou o peito agora limpo, subindo e descendo. Apesar do sangramento
ter parado, o ferimento ainda estava fundo, dando náuseas na princesa ao
fitá-lo. Assustou-se quando Zephyr se levantou do sofá num rompante, no
rosto a dor ainda presente.
— Onde pensa que vai? — Ela olhou para o machucado, como se ele
fosse voltar a sangrar, mas o caído a ignorou, já quase na porta.
— Vou descer até as celas do castelo para soltar Gaut. — O olhar que
lhe dirigiu era sombrio, mas divertido ao mesmo tempo. — Seu guarda
ameaçou voltar para o castelo do rei quando viu que tinha fugido. Vou
precisar ter uma conversa com ele…
— Gaut… — Adhara havia esquecido completamente do infeliz.
Levantou-se também, sentindo um pouco de vertigem devido ao cansaço.
— Vou com você!
— Não vai, não. Fique aqui e tome um banho. Nos vemos depois. —
Ele saiu pela porta do quarto e a fechou. Adhara tentou abri-la, mas
percebeu que havia sido trancada.
— Me solte, Zephyr! — Socou a porta com raiva, indignada quando
escutou uma risada maliciosa do outro lado.
— Aproveite e coma um pouco, princesa. — Conseguia escutar a voz
abafada dele se afastando pelos corredores. — Você precisará de energia
quando eu voltar.
Lymena tentou se levantar do sofá, mas o corpo estava fraco demais.
Precisou se apoiar no companheiro, que veio em seu auxílio assim que a viu
esforçar-se. Srala observava a interação dos dois de onde estava, sem
interferir. Havia decidido não se afastar, por preocupação pela rainha,
mesmo sabendo que estava em segurança com Arsene. O fato era que o
ruivo estava prestes a explodir.
— Você não pode defender todo mundo — ele sussurrou enquanto
Lymena o olhava com fúria.
Arsene afastou-se ao perceber que a companheira estava segura.
Andava de um lado para o outro da sala, o vulto escuro em meio à
decoração clara. O cabelo alaranjado brilhava, refletindo as chamas da
lareira, enquanto Srala o fitava, sentindo a energia do submundo escapando
dele. Ninguém em sã consciência tentaria contê-lo naquele momento, seria
uma tolice. Estava fora de si, tomado pela preocupação e raiva.
O fato era que Lymena não recebeu bem a notícia que lhe foi dada, de
que os Altos estavam no mundo corpóreo. A anciã era grata por não ter sido
poupada daquela informação, mesmo que seu poder ainda estivesse fraco…
A energia que havia no Sul era sentida até mesmo pelos humanos, quanto
mais por bruxas como ela. Para Atman, aquela região era como um ponto
escuro no mapa.
— Ela quer defender o Coven e a caminhante, mesmo que ela tenha o
Sombrio ao lado. — Arsene levantou a voz, olhando para Srala. A anciã-
oráculo percebeu as chamas da lareira tremeluzirem diante da escuridão que
fluía dele. — Agora quer proteger a princesa de um Elemental!
— Cuidar de Adhara foi um pedido das ancestrais. — A voz de
Lymena ressoou fraca, mas firme.
A raiva no rosto de Arsene desanuviou e olhou para a companheira,
sem conseguir se conter. O amor que nutria por Lymena era imenso… Srala
era grata pela Coroa Vermelha tê-lo, tornando o seu fardo um pouco mais
leve.
Lymena não sabia, mas parte do poder que ela detinha vinha daquele
amor sentido por ela. Foi esse sentimento que a fez aguentar a investida do
Elemental na fronteira das Florestas Brancas.
A anciã gesticulou para Arsene, que se afastou para deixar a rainha
descansar. Lymena então se apoiou nas almofadas e encolheu-se debaixo do
cobertor, passando a observar as chamas da lareira. Srala olhou para ela
mais uma vez antes de levar Arsene até o corredor. Quando ele se encostou
à porta, ela viu a dor nos olhos vermelhos do vampiro.
— Eu temo por Lymena, Srala. — A voz dele era suave quando dizia
aquilo, corajoso por mostrar sua dor. — Não sei se ela aguentará tudo o que
Atman pede.
— Lymena está no auge do seu mandato como Coroa Vermelha. — A
voz de Srala fez com que Arsene respirasse fundo. — As energias do
submundo estão se movimentando, ainda mais fortes. Ela precisa do seu
apoio.
— Não duvido do poder de Lymena, mas temo que ele se esvaia nessa
vã esperança de salvar a todos.
Srala negou com a cabeça e tocou o ombro dele, num gesto raro.
Arsene estava contendo a própria energia, Srala sabia daquilo. Por ser sat da
Coroa Vermelha, o instinto lhe dizia para proteger a companheira, mas teria
de lidar com aquilo de outra forma.
— Em breve, parte do Coven irá confrontar Damiana.
Arsene franziu o cenho, surpreso com aquela informação dada num
rompante por Srala.
— Domenico sabe disso?
— Ainda não, mas cabe a você dar essa informação ao vampiro
mestre. Muito provavelmente o clã Garcas está se escondendo nas florestas
de Damiana, sob a proteção das bruxas do Sul. — Os olhos dela eram
sábios quando fitaram Arsene. — Sei que Domenico procura Taran desde
que os véus desceram, já que o sangue-puro não cumpriu o acordo de conter
os demônios.
— Preciso ir até a Fortaleza. — Arsene passou a mão no cabelo,
jogando os fios alaranjados para trás. — Fique com Lymena, por favor.
Srala assentiu.
— Conversarei com ela assim que se restabelecer.
Ela percebeu que Arsene estava pensava em algo, mas se continha em
dizer. Daria o tempo necessário para que tivesse coragem de juntar as
palavras e colocá-las em voz alta.
— E depois, Srala? — ele soltou, num rompante.
Ela respirou fundo. Ainda não havia conversado com Lymena sobre o
futuro das bruxas, mas sabia qual seria a decisão da Coroa Vermelha.
— Depois as bruxas marcharão contra a escuridão que cobre o Sul.

A porta do quarto finalmente se abriu e Adhara pulou do sofá, o rosto


se iluminando ao ver quem era.
— Gaut! — Correu na direção do guarda e o abraçou. Ver um rosto
amigo depois de todo aquele tempo lhe aliviou o coração.
O guarda ficou surpreso com a reação da princesa, mas depois
retribuiu o gesto. Quando Adhara se afastou, ela viu que o rosto dele estava
sério, pronto para repreendê-la.
— Nos deu um susto, Adhara. Por que fez aquilo?
Adhara estava incerta do quanto Gaut sabia, mas não o enfiaria na
nova realidade que havia descoberto. Preferia que permanecesse no escuro,
achando que os demônios que apinhavam as montanhas de Dhárg eram
criaturas desconhecidas, e o sobrenatural era algo inexistente. Deixaria que
continuasse vendo Zephyr apenas como um senhor sulista poderoso, que
ultrapassou certos limites ao prendê-lo numa cela.
Ela sentiu o Elemental antes de vê-lo. Procurou-o com os olhos, já
que não o tinha visto entrar. Zephyr estava no canto do quarto e, apesar de
estar mais pálido do que quando saiu, a sombra de um sorriso nascia dos
lábios dele.
Ela não fazia ideia do que já havia contado para Gaut.
— Eu…
— Adhara foi tola em achar que conseguiria voltar sozinha para o
castelo do pai. — Zephyr deu a dica, interrompendo-a. — Não gostou da
ideia de ir para o Norte.
Gaut ignorou-o e a fitou com atenção.
— Por que quer voltar para casa? — O cavaleiro era esperto, não
engoliria qualquer coisa. — Aconteceu algo?
— Apenas saudade… — Adhara soltou no ar, tentando se
desvencilhar. — A ideia de ir para o Norte e deixar meu povo fez com que
eu quisesse conversar com meus pais, tentar dissuadi-los. — Ela viu o rosto
de Gaut desanuviar e percebeu que havia acreditado naquilo. — Zephyr não
precisava prendê-lo.
Gaut olhou para o caído.
— Não, mas já nos acertamos.
O sorriso enviesado de Zephyr pareceu diminuir o humor do guarda.
— Sim, e tenho as marcas para provar. — Adhara percebeu uma leve
sombra arroxeada no maxilar de Zephyr. — Agora preciso conversar com a
princesa.
Gaut não parecia disposto a se afastar dali. Por isso, olhou para
Adhara, que assentiu. Com uma pequena reverência, ele saiu do quarto,
deixando-os a sós. Assim que a porta foi fechada, o rosto presunçoso de
Zephyr sumiu, dando lugar à dor. Começou a cambalear.
Por um momento, a jovem achou que ele estava mentindo, mas a
palidez do rosto dele se acentuou.
— O que houve? — Caminhou na direção dele, que sentou na cama.
Arfando, colocou a mão debaixo da blusa de algodão, sobre o peito.
— Seu guarda real quis me matar. — Ele retirou a mão do machucado
e a olhou. Ele tinha sangue entre os dedos. — E quase conseguiu.
Ela sentiu um calafrio quando viu aquilo. Abriu a blusa dele e
estremeceu quando viu a ferida novamente. Parecia menor, mas ainda assim
sangrava.
— Não era para ter parado? — sussurrou, como se tivesse medo da
resposta. — Por que não melhora? — Olhou-o com curiosidade. — Você
disse que se resolveria em pouco tempo…
Zephyr retirou a blusa em um movimento e Adhara verificou o
machucado. Olhou para as costas dele, sentindo-se tola ao fazê-lo. Como a
lâmina fez aquilo se não perfurou do outro lado? Ela não conseguiu ver a
arma usada contra Zephyr, então nem fazia ideia direito do que havia
ocorrido. Pegou a blusa dele e limpou o ferimento.
Havia menos sangue, mas ainda assim sujou o tecido. Ele se deixou
ser cuidado em silêncio, apoiando as costas nos travesseiros da cama.
— Eu poderia viver assim para sempre… — A voz suave dele a fez
parar de olhar para o ferimento.
— Como? Sentindo dor e com um buraco no peito?
— Não, com suas mãos sobre mim.
Adhara afastou-se repentinamente, o rosto se aquecendo com aquelas
palavras. As linhas escuras do peito dele se mexiam com leveza, como se
respondessem ao toque dela.
— Sei quem você é agora, Zephyr, e o que quer de mim. E não vou
dá-la a você.
Ela tentou afastar as mãos, mas o caído as cobriu, segurando-as. A
princesa sentiu como a pele dele estava fria.
— Colecionar almas é o que me impulsiona, Adhara. Sou feito disso,
movido por isso. — Zephyr acariciou a mão dela. — A energia que sinto ao
prendê-las… O prazer… Nunca conseguiria colocar em sentimentos
humanos.
Adhara não previu as lágrimas que desceram pelo rosto dela em um
pranto silencioso. O modo como Zephyr falava daquilo, como se aquele
gesto de maldade proporcionasse algo próximo do êxtase humano. Algo que
se perverteu, ímpio e sombrio.
— Você precisa entender… — Ao ver que tinha a atenção dela, levou
a mão ao rosto feminino e limpou uma lágrima. — Não sou o único inimigo
que você deve se preocupar.
Adhara se lembrou das criaturas lá fora, comendo carne humana e
banhando os campos do Sul com sangue inocente. Lembrou-se dos
demônios que deixavam os gritos escaparem, da escuridão os engolindo
enquanto os Altos cortavam as florestas de Dhárg. Suas mãos estremeceram
e ela deixou escapar um pedido, algo errado e proibido que às vezes invadia
seus pensamentos, mas que ela enterrava antes que se tornasse real.
— Me ajude a salvar meu reino — pediu, desesperada.
Ele a olhou com intensidade, nada surpreso com o pedido, mas
também nada disposto a respondê-la.
— Você me daria sua alma em troca de proteção ao seu povo?
— Para ter Aelua… — Ele fez uma careta quando escutou o nome da
alma, como se ouvi-lo tornasse o que ele desejava mais difícil. — Teria que
dá-la de boa vontade.
— Posso torturá-la para que você me dê.
Adhara tentou se afastar daquela conversa, sabendo que não levaria a
lugar algum. Sentiu-se tola ao pedir a ajuda dele, e da pior forma, por achar
que ele renunciaria aos próprios objetivos para atendê-la.
As mãos dele não a deixaram ir. Zephyr levou-as até o peito
novamente. Adhara não conseguiu desviar a atenção das linhas, que se
mexeram quando ela voltou a tocá-lo. O brilho do relicário estava tímido,
como se as almas ali dentro estivessem adormecidas.
— Sabe que nunca a darei para você.
Zephyr inclinou-se para ela, os olhos escuros vagando pelo rosto
feminino como se quisessem gravar cada linha dele. Os dedos foram até as
ondas do cabelo dela, sentindo a maciez ali. Rumaram depois para o colo
pouco desnudo devido ao vestido sulista. Adhara se arrepiou quando
Zephyr a tocou ali, umedecendo os lábios quando os dedos se enfiaram nos
cabelos dela novamente e o puxaram, forçando-a a observá-lo.
— Eu sei disso, princesa Adhara… — Ela podia sentir as linhas do
corpo dele se mexendo embaixo das suas mãos. — Nesse momento, o que
eu quero de você não é sua alma.
Ele se aproximou um pouco para testar a reação da garota, mas
Adhara não recuou. Isso foi o suficiente para Zephyr tomar o que queria.
Seus lábios capturaram os dela e os forçaram a abrir, para receber sua
língua. A jovem gemeu quando ele a tocou. Aquele beijo… Ela nunca
conseguiria fugir daquele toque, nem disfarçar de como ele a afetava. Seu
corpo pedia pela sua presença, podia sentir sua energia, queria tomar um
pouco para si, provar de um gosto oposto ao que tinha.
Zephyr se afastou e mordiscou o seu lábio inferior.
— Venha aqui. — Apoiou-se nas almofadas altas da cama e olhou-a,
como se Adhara fosse a única mulher do mundo. — Preciso que me ajude,
estou ferido.
Ela abriu a boca para responder, mas fechou logo em seguida. Isso o
fez sorrir. Não acreditava que Zephyr estava provocando-a daquele jeito…
Mas antes que decidisse se afastar, subiu na cama e passou as pernas sobre
o corpo dele, sentando-se. Sentiu o pau dele a prensando e um arrepio lhe
percorreu o corpo. O Elemental pegou as mãos dela de novo e as conduziu
para o peito ferido.
— Gosto do seu toque… — Os olhos dele escureceram. — Me
acaricie, Adhara.
Ela não soube o que fazer. Com timidez, correu as mãos pelo peito
largo, sentindo-o respirar com dificuldade, não sabia se pelo desejo ou pela
dor devido ao ferimento. As linhas voltaram a dançar com suavidade sob o
toque dela e Adhara passou os dedos sobre elas, sentindo-as esfriarem.
Desceu até as linhas do abdômen contraído dele, sentindo cada curva
que havia ali. Zephyr gemeu e enfiou a mão por debaixo do seu vestido,
acariciando-a entre as coxas, tirando o controle de Adhara.
Ela estava excitada, e o modo como o dedo dele deslizou pelas dobras
dela o fez sorrir.
— Você pode ser mais ousada, Adhara… — Ele a provocou enquanto
acariciava o ponto sensível dela.
Ela aceitou o desafio, as mãos indo para as calças de couro dele.
Enfiou-as pelo tecido, encontrando o pau já duro e estimulando-o. Sentir
aquelas mãos lhe acariciando… Ele poderia passar luas sentindo aquele
toque, mas estava ficando impaciente.
Começou a mexer o quadril para tentar friccioná-la, sentindo os dedos
dela o apertando. Uma gota saiu do seu pau, melando a mão dela e Zephyr
achou que ia enlouquecer quando a princesa aproveitou daquilo para
lubrificá-lo, descendo e subindo assim com mais facilidade.
Curvou-se, as mãos foram até a barra do vestido, subindo-o. Ficou
surpreso quando os braços se levantaram para ajudá-lo. Zephyr jogou o
vestido para o lado, odiando-o porque o tecido cobria as curvas generosas
que ele tanto queria ver. As coxas grossas o rodeavam, fazendo que ele a
olhasse com atenção.
O caído cansou de esperar que ela o ajudasse. Ele mesmo desceu a
calça, sentindo o buraco em seu peito protestar com o movimento.
Adhara olhou alarmada para o Elemental quando um filete de sangue
deslizou do ferimento, mas Zephyr não a deixou desistir.
— Nem se importe com isso. — Ele implorou. — Preciso tê-la,
Adhara. — Sentou-se e a olhou com atenção. — Preciso que meu pau esteja
dentro de você, que grite meu nome enquanto a fodo… — Ela abriu os
lábios para responder, mas ele capturou um deles e o sugou com lasciva. —
Pode fazer isso por mim? — Esperou a resposta dela, que assentiu
timidamente. Sorriu. — Boa garota.
Voltou a se deitar nas almofadas e a observou fazer o que desejava.
Adhara ainda correu as mãos pelo corpo dele por um tempo, parecia
descobri-lo com o toque. Remexia o quadril para deslizar pelo seu pau, sem
perceber que o parceiro estava ficando louco.
Zephyr esperou para ver até onde ela ia. Adhara subiu o quadril e,
direcionando-o para sua entrada, desceu o corpo com lentidão.
Ela era tão… quente. Depois de descer, a jovem gemeu e jogou a
cabeça para trás, mexendo o quadril. Primeiro com timidez, mas depois
pegando um ritmo que o fez salivar. Observava os seios, a barriga
ondulando à medida que ela respirava, as coxas o apertando e aquelas
curvas, que pareciam hipnotizá-lo enquanto a claridade da lareira batia
nelas.
Zephyr havia visto aquilo antes. Em suas últimas noites em Atman,
uma mulher como aquela o havia visitado, cavalgando nele daquela mesma
forma que aquela garota fazia. Havia sentido os cabelos ondulados fazendo
cócegas enquanto ela tombava a cabeça, sentido as curvas generosas entre
as mãos e as coxas a se chocarem com as dele. O caído havia sentido o sexo
dela apertá-lo, à medida que a desconhecida se mexia.
Zephyr não sabia mais se estava em Atman com aquela garota, ou em
Dhárg com a princesa, mas percebeu que estava sendo tolo ao tentar
diferenciá-las. Ambas eram a mesma pessoa. Não sabia se por ironia do
destino ou uma peça pregada pelas malditas ancestrais, mas a garota que
agora o conduzia a um prazer nunca experimentado era a mesma que lhe
visitou em Atman.
Adhara gozou, o sexo dela apertando seu pau, a excitação escorrendo
à medida que rebolava em cima dele. Ela fez o que Zephyr pediu, gritando
o nome dele enquanto estremecia sobre seu corpo.
Ouvir seu nome saindo daqueles lábios carnudos fez com chegasse
quase ao limite. Sentou-se na cama de novo, numa urgência em abraçá-la,
fazendo-o se esquecer do ferimento que naquele momento vertia sangue.
Em Atman, ele não havia conseguido enxergar o rosto dela. Agora o via
com clareza, os olhos verdes lânguidos. E então… reconheceu o toque.
A mão de Adhara foi até o rosto dele e o tocou com carinho. Como
antes, Zephyr se assustou com aquele gesto, pois nunca o havia sentido. Era
gentil, benevolente. Daquela vez o sonho não passou, nunca correria o risco
de abrir os olhos e se ver sozinho em Atman. Onde ela tocava estava
quente…
Os lábios da princesa encontraram os dele. Adhara mordiscou-os
enquanto subia e descia.
Zephyr gemeu o nome dela, ainda sem acreditar que aquele toque era
seu, que todo aquele carinho lhe pertencia.
As linhas do corpo se mexeram, ficaram mais suaves, a dor infinita e
punitiva que ele sentia nelas sumiu mais uma vez, como se à medida que ele
derramava a escuridão naquela garota e a profanava, a luz que havia nela o
invadia sem pedir permissão, afetando-o numa troca nunca antes imaginada.
— Quero sentir você gozar… dentro de mim. — A voz delicada pediu
e foi o suficiente para Zephyr explodir, acatando seu pedido.
O cheiro de peônias invadiu todos os sentidos dele, deixando-o tonto
e com raiva, anulando cada possível reação que pudesse ter. Zephyr deixou-
se ser seduzido por aquela energia, bebeu dela e aceitou aquela bondade de
bom grado, ficando desnorteado com tudo o que Adhara lhe ofereceu. Uma
queimação começou em seu peito e ele xingou ao sentir o ferimento se
fechando, repuxando a pele.
Adhara demorou a entender o que estava acontecendo e arregalou os
olhos quando a pele de Zephyr se juntou, eliminando qualquer resquício do
machucado que a lâmina do submundo fez nele.
— Como…
Zephyr tocou os lábios dela com os dedos. Ela o fitou, como se
aguardasse uma resposta, mas ele negou com a cabeça.
— Não pensaremos nisso agora. Deite-se comigo, Adhara. Quero
sentir seu corpo ao meu lado.
Ela afastou-se dele brevemente e Zephyr sentiu falta dela no mesmo
instante. Ao vê-la se deitar, puxou-a em direção ao seu peito já curado. A
princesa observou o brilho tímido do relicário, mas logo fechou os olhos,
entregando-se ao sono. A joia pareceu sentir o descanso da princesa e
diminuiu o brilho, algo que nunca havia feito antes.
Zephyr ainda ficou um tempo acordado, tentando compreender o que
havia acontecido. Mas desistiu logo em seguida, a acompanhando no sono.
CAPÍTULO 24

Ela acordou com o vento batendo na janela. Há muito uma nevasca


não caía em Dhárg. Aquele tempo indicava que um inverno rigoroso estava
por vir. Será que o seu povo aguentaria mais daquilo?
Remexeu-se e sentiu o corpo protestar, as costas pareciam
desacostumadas a dormir em um colchão de penas, em vez de em cima do
cavalo ou encostada numa árvore. O interior das pernas estava dolorido
também, e Adhara não sabia dizer se era pelos dias passados na sela ou se
pelo que fez na noite anterior. Sentiu o rosto aquecer diante da lembrança e
uma risada próxima que a fez ficar alerta.
— Consigo quase escutar as perguntas em sua mente, Adhara. — A
voz dele estava rouca e isso fez um calafrio prazeroso percorrer o corpo
dela. Nunca havia acordado com ele ao lado, mas tentou não pensar no que
aquilo poderia significar.
Ela se afastou dele e Zephyr aproveitou-se disso para se espreguiçar.
Depois, esticou o braço para a mesa ao lado da cama, os dedos capturando
um envelope pardo que estava ali.
— Houve uma nevasca durante a noite. Meus homens estão
trabalhando para tentar desobstruir as estradas… De qualquer forma, os
guardas do seu pai conseguiram entregar isso aqui. — Ele entregou o
envelope para Adhara, que o pegou sem entender.
Não queria pensar em como aquela carta chegou no quarto de Zephyr
enquanto ela estava dormindo na cama dele. Imaginava se aquela
informação se espalhasse pelo castelo. Reconheceu o selo real do pai e as
mãos estremeceram. Talvez o conteúdo não fosse o esperado…
Apesar de calmo, Adhara percebeu o corpo de Zephyr ficar tenso
quando ela quebrou o sinete. Respirou fundo à medida que lia o conteúdo
da carta. Engoliu em seco, seus pensamentos vagando enquanto observava a
neve caindo lá fora.
— Meus pais marcaram a data para viajarmos ao Norte.
Zephyr sentou-se na cama e a olhou, furioso. Ela lhe entregou a carta,
sem realmente se importar com a confidencialidade. O pai que havia
escrito, portanto era mais formal do que as missivas escritas pela mãe.
— Adhara…
— Sei o que vai dizer. — Ela se levantou da cama e caminhou nua
para uma mesa próxima à lareira, onde uma bandeja descansava com água.
Encheu um cálice e bebeu para tentar ganhar tempo. — Discorda dessa
decisão e fará de tudo para que eu não consiga chegar a Fhár… de novo.
Aquilo era um pesadelo. Há algumas luas, havia tomado uma decisão
que mudaria sua vida: acreditou em um sonho e descobriu um mundo novo.
Conheceu bruxas e vampiros, quase foi morta por demônios e voltou com
Zephyr para o Sul, para evitar que destruísse o parco equilíbrio do seu
mundo com o sobrenatural.
— Mas se tomar qualquer decisão, agora estará contra o rei de Dhárg
— ela continuou antes de virar-se para ele. — Sabe que meu pai mandaria
matá-lo se me prendesse aqui, certo?
— Ele poderia tentar. — A ameaça velada surtiu efeito. Adhara
desviou os olhos para a janela, observando a neve lá fora. — Você não
parece muito feliz.
— Ir para o Norte me ensinou muito, mas um dos que vou levar é que
meu lugar sempre será perto do meu povo. — Ela terminou a água do
cálice. — Mas meu pai me obrigará a afastar de Dhárg… Estou de mãos
atadas.
Ele correu os olhos por ela e se levantou, caminhando em sua direção.
Zephyr era alto, por isso Adhara precisou olhar para cima quando ele a
tocou no rosto.
— Sabe que está mais protegida aqui comigo do que indo para o
Norte, sob a proteção de Dagomer.
— Estou mesmo?
Aquela pergunta pareceu surpreendê-lo. Na realidade, deixou-o
confuso. No Norte, ela teria a proteção do avô, bem como das filhas de
Atman e do Sombrio, que cobria aquela área com o próprio poder,
afastando os demônios do mapa. No Sul, ao lado dele, ninguém se
aproximaria dela.
Mas como dizer que ela estava protegida ao seu lado se o maior
inimigo que Adhara tinha no momento era ele mesmo? Como se sentir
protegida de um ser que desejava o maior bem dela?
Qual seria o real motivo de Zephyr sentir aquela necessidade de tê-la
ao seu lado, se o que realmente desejava da garota era apenas sua alma?
Era?
Começou a andar de um lado para o outro. Precisava admitir: ver os
Altos atrás dela não lhe fez bem. Tomou decisões tolas, libertou o próprio
poder para afugentá-los e só não foi atrás da realeza do submundo porque
uma Lâmina de Sombras abriu um buraco em seu peito. O fato era que sua
sede por sangue aumentava cada vez que pensava em como os Altos
tentaram seduzi-la. Se colocassem as mãos sobre Adhara, ele nem sabia o
que poderia fazer.
A voz daquele maldito lhe prometendo a alma dela o assombrava,
fazendo com que começasse a respirar com dificuldade. Aproximou-se dela
e levou as mãos ao rosto delicado, acariciando-a. Adhara recuou ao toque,
deixando-o ainda pior.
— O poder da Coroa Vermelha é limitado e a rainha precisa manter
seu Coven seguro. — Ele finalmente respondeu à pergunta dela. — Merik
protege o Norte contra os demônios, mas sua prioridade é a companheira,
Alys. Além disso, ele precisa lidar com Igrik tentando usurpar o trono do
submundo.
— O mundo sobrenatural tem guardiões que lutam por ele, mas o meu
mundo continua no escuro enquanto isso. — Adhara deixou o cálice na
mesa e o olhou. — E quem vai proteger o meu povo, Zephyr? — O rosto
dela estava determinado quando fez a pergunta, mas assim que encarou,
pareceu ler os pensamentos do caído, tornando-se sério, cheio de desprezo.
— Não. — Antes dele abrir a boca, ela o cortou. — Não darei meu
consentimento em troca de proteção.
— O Sul sumirá do mapa por sua teimosia, Adhara. — Ele não gostou
de ver as lágrimas se acumulando nos olhos verdes dela. — Se não fizer
nada, seu reino será apenas uma memória, uma mancha no mapa.
Ela começou a buscar as próprias roupas pelo quarto. Começou
colocando as meias e depois o vestido. As botas estavam jogadas em um
canto.
— E quem disse que não vou fazer? — Zephyr conhecia aquele olhar
que apenas Adhara possuía. Normalmente ele aparecia quando estava
prestes a fazer algo insensato, com grandes chances de resultar em algo
ruim.
Ela passou pelo Elemental enquanto trançava o cabelo.
— O que está fazendo?
— Voltarei para o castelo dos meus pais. — Ela parou por um
momento de se arrumar e o fitou, sem se abalar. — E você não fará nada
para me impedir.
A princesa abriu a porta do quarto e Zephyr demorou a entender que
estava perdendo aquela briga. Ele a fechou antes que a jovem saísse. Se ela
saísse dali e ele fosse em seu encalço, Gaut com certeza arrancaria seu pau
com a espada, caso o visse nu como estava. Adhara o olhou em fúria.
— Não seja tola. A estrada está cheia de demônios.
— Vou de qualquer forma. E tentar me impedir seria ir contra uma
ordem real.
— Os Altos podem estar andando pelo Sul…
— Eu não me importo. Não posso mais me importar e ficar sem fazer
nada… — sussurrou.
Zephyr respirou fundo. Aquela garota estava desmoronando e vê-la
assim o deixou desnorteado. Voltou a pegar o rosto dela entre as mãos e a
olhou com atenção. Daquela vez, Adhara não recuou ao toque, mas havia
uma nova determinação naqueles olhos verdes. Foi quando percebeu que
nada a faria mudar de ideia.
— Deixe-me acompanhá-la… sabe que posso protegê-la.
Ela pareceu ponderar, mas nunca seria tola em recusar a ajuda.
Apenas Gaut e meia dúzia de guardas não conseguiriam proteger uma
princesa de andar por aquelas estradas, o que deixaria o rei bem insatisfeito.
Com relutância, a princesa assentiu e Zephyr ficou mais calmo.
O que estava acontecendo com ele?
— Sente-se, Arsene. Está me dando náuseas.
O ruivo andava de um lado para o outro na sala de reuniões, inquieto
desde que chegou. Domenico sabia o motivo: a Coroa Vermelha havia
enfrentado um Elemental e agora estava em repouso, buscando a força que
Zephyr havia exaurido. O vampiro sabia como funcionava um elo como o
sat: a dor de Lymena era a de Arsene. Além disso, ele sabia como
funcionava quando um vampiro escolhia sua companheira. Tudo aquilo
contribuía para enlouquecê-lo.
Quando o outro se sentou, Domenico largou as cartas que escrevia e
apoiou as costas na poltrona larga, juntando as mãos para escutá-lo.
— Srala me pediu que eu lhe desse um recado: as bruxas devem
marchar para o Sul em breve para confrontar Damiana. — O mestre dos
vampiros semicerrou os olhos. Conhecia a história da bruxa que havia
perdido o contato com Atman, por ter sido seduzida pelos poderes
contrários. — Lymena acha que Taran está sob a proteção dela.
Aquilo era uma informação valiosa. Domenico passou a mão nos
lábios, o anel dos Nobilitatis cintilando quando a claridade da lareira
encontrou a pedra escura. Não sabia do paradeiro de Taran desde que a
fenda se rompeu e os demônios infestaram o mundo corpóreo. A região do
clã Garcas foi a primeira atingida e, mesmo Domenico alertando Taran
disso, o vampiro nada havia feito. Humanos morreram aos montes e aquilo
não era o pior, já que a defesa dos vampiros sulistas recuou e os demônios
conseguiram avançar.
Velaria não havia conseguido notícias de Taran e temia pelas suas
terras, como todo vampiro sangue-puro que estava no Sul. Apesar de
demônios não atacarem a raça deles, nenhum gostou de ver o submundo
liberto sobre o mundo corpóreo, já que a imagem dos Primeiros Anos ainda
nublava o passado da raça.
Todos temiam que aquilo voltasse a acontecer. Além disso, quase não
havia mais humanos vivos nas pequenas vilas, transformando o sangue em
algo escasso.
As cartas sobre o paradeiro dos Altos já deviam ter chegado ao Sul.
Aquilo faria com que os clãs ficassem ainda mais alertas. Nem mesmo nos
Primeiros Anos os Altos subiram para o mundo corpóreo, mas como Merik
tinha avisado, havia muito ali que desejavam.
— Se Taran está sob proteção de Damiana, terei que ser diplomático e
colocar a decisão no colo de Lymena. — Ao ver o rosto de Arsene,
emendou. — Mais essa decisão.
— Se pudesse escolher sozinho…
— Degolaria Taran sem pensar duas vezes.
Arsene mergulhou em silêncio e Domenico esperou o tempo do ruivo.
Depois, ele fitou o mestre e fez a pergunta.
— Sei que toda Coroa Vermelha parece teimosa… — Ouvir aquilo
fez um fantasma de um sorriso nascer no rosto de Domenico. Gwendolyn
possuía a mesma teimosia que a companheira de Arsene. — Mas acha que
Lymena poderá ter a proteção dos vampiros quando marchar para o Sul?
Domenico sabia que Arsene pediria isso e não o julgou. Videric faria
o mesmo se soubesse que Nyana acompanharia a Coroa Vermelha. De
qualquer forma, ele já havia tomado sua decisão luas atrás, antes mesmo de
Lymena fazê-lo. A resposta foi dada em seguida.
— Os vampiros estarão ao lado da Coroa Vermelha nessa jornada. —
O rosto de Arsene cobriu-se de alívio. — Avise sua rainha que iremos com
ela.

Merik corria os dedos pelos cachos dourados de Alys. A presença do


corpo quente ao seu lado o acalmava, mesmo que sua mente estivesse
coberta de pensamentos cada vez mais estranhos. A caminhante parecia
sentir a tensão do Sombrio, por isso afastou o rosto do peito dele, olhando-o
logo em seguida.
Merik engoliu em seco. Com Alys nua em sua cama, ele não
conseguia pensar muito. Observando-a daquela forma, as mãos já
começavam a viajar por debaixo dos cobertores procurando-a. Alys afastou-
se e sorriu quando viu a frustração no rosto dele.
— Controle-se.
— Por quê? — Merik perguntou como se fosse um garoto sendo
repreendido. — Não me impeça de tocá-la. Ainda não enlouqueci por causa
disso.
Um sorriso afável nasceu no rosto dela e Alys correu a mão pelos
braços masculinos, entrelaçando os dedos aos dele.
— No que está pensando? — Fez a pergunta como se morasse na
cabeça do Sombrio.
Merik às vezes se irritava em como ele era facilmente lido pela
amada.
— Sinto os Altos mais ao Sul e me pergunto se ainda procuram
Adhara.
Merik havia sentido o confronto entre Zephyr e os Altos, assim como
o poder de uma Lâmina das Sombras utilizada num ataque pesado contra o
Elemental, mesmo que aquilo não o matasse. Uma arma como aquela faria
qualquer um ser derrubado… A ousadia dos Altos estava o preocupando.
— Adhara está inalcançável com Zephyr do lado — ele pontuou.
Aquilo devia estar deixando Igrik louco. Os dois únicos homens que
poderiam barrar seus objetivos, o Sombrio e o Elemental, protegiam tanto a
alma pura de Atman quanto a adaga de Jyot.
— Ele é tão poderoso assim, para lidar com todos os Altos do
submundo? — Alys parecia surpresa ao fazer a pergunta.
— Apesar de caído, Zephyr nunca perdeu o poder que um Elemental
carrega. Ele fez parte da criação do mundo corpóreo, Adhara. — Merik
começou a contar e a garota ficou interessada naquela parte da história,
ajeitando-se na cama para observá-lo melhor. — Zephyr foi o Elemental
que mais desceu nesse mundo para aprender e compartilhar dos prazeres
humanos. Com isso, veio sua fome por algo mais adocicado. — Os olhos
escuros de Merik observaram Alys com atenção. — E o que há de mais
doce no mundo do que o sentimento humano?
Ele viu a companheira estremecer e apertou os dedos dela para
acalmá-la.
— Zephyr começou a colecionar almas procurando sentimentos?
— Eles estão interligados às almas. São aquilo que as rege. Se o
humano ama aqui embaixo, a alma se torna doce, se o humano mata aqui
embaixo, a alma perde a luz.
— Mas você disse que Zephyr…
— Zephyr se interessa por cada sentimento, sendo ele doce ou
amargo. Ele quer almas únicas, quebradas, possuídas, amadas… Eu não
faço ideia de como seria ter uma alma pura pela visão dele. Imagino que
seja o mesmo que um demônio experimentar o gosto de Atman na ponta da
língua.
Alys ficou em silêncio por um tempo, mas depois sua voz se pôs a
sussurrar.
— Apesar de ser um monstro, é ele quem protege Adhara no
momento.
— Consegue ver um padrão nessa história? — Merik perguntou,
divertido.
Alys fez uma careta. Quando estavam na fronteira das Florestas
Brancas, o Sombrio não pôde deixar de perceber que a história que Zephyr
estava tecendo para si era muito parecida com a dele. Começava com um
sentimento de posse e virava quase como uma fuga. Adhara estava afetando
o Elemental, ele só não havia percebido ainda. Ele, inclusive, tinha
conseguido sentir a raiva de Zephyr, não por ter perdido a posse de Adhara,
mas por ela ter escolhido as filhas de Atman.
Ele só não sabia se o caído seria tolo o suficiente para cair numa
armadilha parecida com a de Merik.
— Igrik está com os Altos? — A voz de Alys o fez sair dos próprios
pensamentos.
— Ele ronda o Norte… Prefere me desafiar a procurar uma alma
pura. — Acariciou os ombros dela. — Sua ambição é o trono de obsidiana e
estamos no caminho dele.
— Merik… Quando estive nas Florestas Brancas, Nyana me disse que
as bruxas devem marchar para o Sul…
Aquilo o fez ficar alerta. Domenico havia mencionado essa
possibilidade, mas era apenas uma conjectura. A Coroa Vermelha não havia
confirmado nada na última reunião dos Nobilitatis. Sabia que Damiana era
um ponto fraco de Lymena, que enxergava a redenção da bruxa caída. Já
Domenico buscava o clã Garcas apenas para puni-lo.
— O que tem em mente? — Ele soltou a pergunta, temendo a
resposta da companheira.
— Acredito que devemos acompanhá-las. Adhara precisará de toda
ajuda caso queira enfrentar os Altos e um Elemental. — Os olhos azuis o
observaram, como se pedisse o impossível. O que era um fato.
— O que quer dizer com isso?
— Que a adaga precisa estar onde o mal está.
CAPÍTULO 25

Lymena não queria admitir mas, para ela, descer até o Sul era como
encontrar a própria escuridão. Sabia da situação de Dhárg, havia relatos de
algumas bruxas que viviam no reino, bem como as cartas que Emelia lhe
mandava… mas nada a preparou para o que viu.
Durante o trajeto, não usaram as estradas comuns. A Coroa Vermelha
preferia ter a floresta como proteção, mais dos olhares humanos curiosos do
que dos demônios em si. Ela permanecia atenta, seu poder latente naquela
manhã, pronto para ser usado em sua força mais brutal caso fosse
necessário. Porém, precisavam ser discretas para que Damiana ou qualquer
outro inimigo não sentissem a sua aproximação.
A rainha bruxa não era tola a ponto de acreditar que estavam
invisíveis aos olhos dos demônios que proliferavam no mapa de Dhárg.
Qualquer um deles poderia transformá-los em um alvo num piscar de olhos.
Sentia a inquietação do companheiro atrás dela. Arsene estava calado
desde que atravessaram as fronteiras, os olhos vermelhos atentos a cada
movimento, farejando o ar como um animal em busca de qualquer cheiro
desconhecido. Havia pedido para montar o mesmo cavalo que ela e, mesmo
Lymena descartando a possibilidade na primeira vez, decidiu ceder para
deixá-lo mais calmo. Por isso, precisaram fazer mais paradas para que sua
égua não se cansasse demais.
As anciãs não estavam presentes, garantindo a proteção das Florestas
Brancas com os próprios poderes. Srala, inclusive, estava em contato direto
com Atman, caso tudo fugisse do controle.
Lymena sentia os braços de Arsene em sua volta, uma mão segurando
a rédea da égua com delicadeza, sem precisar realmente guiá-la, a outra lhe
acariciando a coxa por cima da calça de montaria. O aroma de canela e
especiarias a acalmava. De qualquer forma, ela precisaria de todo o seu
autocontrole para não se deitar no peito dele e fechar os olhos,
demonstrando assim sua fragilidade.
Podia fingir que estavam nas Florestas Brancas, sendo banhados por
uma Lua de Sangue, onde apenas o toque dele seria importante. O corpo
dela estremeceu e Arsene parou de acariciar a perna dela de repente.
— O que foi? — sussurrou em seu ouvido, um pouco tenso. Ela
apenas sorriu, tratando de acalmá-lo.
— Estou me lembrando de uma das noites que me tocou…
— Qual delas? — A voz dele possuía um leve traço de diversão, algo
raro ultimamente.
— Na Lua de Sangue. — Lymena franziu o cenho, virando um pouco
o rosto.
Arsene se aproximou e mordiscou a orelha dela, fazendo um leve
arrepio percorrer o corpo da rainha das bruxas.
— Experimentei-a com a língua antes. — A risada dele fez Lymena
ter vontade de estapeá-lo. Algumas bruxas viravam para trás e os olharam,
curiosas. — Adoro quando você cora, consigo sentir melhor o aroma do seu
sangue.
Lymena não disse nada. Apenas respirou fundo e se controlou para
não revidar. Aquela brincadeira boba acabou fazendo com que a viagem
ficasse mais leve, mesmo que ainda fria. O toque dele a surpreendeu,
descendo a mão pelo braço da Coroa Vermelha e entrelaçando os dedos aos
dela, apertando-os.
— Tenho medo de perdê-la. — Arsene confessou em voz baixa.
Talvez não o fizesse se a encarasse. Ela era grata pela coragem do
companheiro de se expor assim. — Você é minha vida, Lymena.
O coração dela saltou. Conseguia sentir o amor de Arsene em seus
toques, olhares, nas palavras sussurradas, até mesmo quando ele falava
besteiras no seu ouvido. Conseguia sentir os sentimentos daquele vampiro
quando a acompanhava em cada decisão, sofrendo ao vê-la carregar o peso
da coroa.
Ela apertou a mão dele.
— E você é a minha — ela sussurrou. — Sou grata por tê-lo ao meu
lado.
Arsene a abraçou mais forte. Ele estava taciturno e calado desde o
incidente com Zephyr. Lymena sabia que o vampiro discordava de muitas
das decisões tomadas pela Coroa Vermelha, mas parte disso era movida
pelo medo de ter que abdicar em algum momento do que lhe era mais
precioso. Estar próximo a ela significava que nunca a deixaria só, nem
mesmo nos instantes mais sombrios do seu reinado.
Lymena fitou o céu. Não era possível ver muito, pois a neblina
piorava à medida que avançavam. Precisariam parar em breve para
descansar e se alimentar. Mesmo com o seu poder, ela tinha que contar com
fortes aliados para os momentos de escuridão. Os vampiros de Domenico
eram os que faziam a ronda e circulavam no pequeno acampamento para as
bruxas descansarem.
A Coroa Vermelha seria eternamente grata ao mestre dos vampiros.
Até mesmo ela precisava de descanso, às vezes, e ver seu Coven protegido
lhe dava a tranquilidade para fazê-lo.
Voltou a apertar a mão do companheiro. Era grata por tudo. Pelas suas
bruxas. Pelos vampiros. E por Arsene, seu eterno guardião.

Adhara não queria estar ali. À medida que se afastavam do Sul, o


coração da princesa ficava ainda mais pesado.
Era como se estivesse dando as costas para o seu povo.
A pequena janela da carruagem não a permitia ver muito, mas a
neblina ainda estava densa naquela manhã. As estradas, antes sempre cheias
de viajantes ou de pequenos feirantes querendo vender provisões, passaram
a ficar vazias e silenciosas. Às vezes um corvo crocitava ao longe e ela se
perguntava se estava se alimentando de algum cadáver. Podia jurar que
sentia o cheiro de sangue em meio ao barro escuro, enquanto as rodas das
carruagens e os cascos dos cavalos passavam por ali, mas tinha esperanças
de que aquilo fosse uma peça que sua própria mente sombria lhe pregava.
Sentia o olhar da mãe sobre si. Precisava ser sincera: rever Liuva foi
um momento que mexeu com ela. Caiu no colo da mãe e chorou tudo o que
não tinha se permitido fazer desde que foi convidada a ficar no castelo de
Zephyr. A mãe aguardou com paciência o pranto dela, fez algumas
perguntas, mas ao ver a relutância da filha em lhe contar tudo, nem insistiu.
Sabia que teria a chance de entender a história toda, no momento certo.
Adhara não era o tipo de pessoa que escondia da mãe o que a afligia,
já que ela era sua melhor amiga e companheira. Mas como contar o que
havia vivido nas últimas luas?
— Em que está pensando, Adhara?
Ela não conseguiu mais ignorar o silêncio que povoava a carruagem.
Olhou para a Liuva e respirou fundo.
— Vou sentir falta do Sul…
O rosto da rainha foi tomado por uma sombra de tristeza. Já haviam
tido aquela conversa diversas vezes, mas em nenhuma o resultado tinha
sido diferente. A princesa sabia que o Dhárg era o lar dela. Por isso, ficava
no peito aquela sensação de abandono. Para piorar, o pai tinha ficado. Ele
havia alegado que o Sul precisava de um rei presente e que deixar o trono
desocupado era o mesmo que abandonar a coroa.
Para a princesa, o pior era desconhecer o porquê daquilo não se
aplicar a ela.
— Adhara… — A voz de mãe a tirou dos pensamentos. — Já tivemos
essa conversa.
Ela nada respondeu, apenas desviou o olhar para a janela da
carruagem, sentindo-se inquieta.
— Me deixe montar Nyra. Preciso de um pouco de ar.
Odiava a ideia de ficar presa em uma carruagem por dias, até mesmo
quando montavam acampamento. Uma das exigências dela foi levar Nyra
para o Norte junto. Achou que a égua merecia um campo livre de criaturas,
sentindo o sol batendo no lombo e correndo sem medo de perseguições em
meio à neve.
Mas a mãe em nenhum momento a deixou viajar no lombo da égua,
em meio aos guardas, mesmo que Adhara tivesse falado que as criaturas
não sabiam diferenciar uma princesa de uma plebeia. Ficar presa a essas
regras da corte naquela situação eram bobagens.
Adhara estava mentindo deliberadamente. Mas precisava de um
pouco de liberdade.
Os demônios que apinhavam o Sul podiam senti-la a uma distância
preocupante. Não pelo cheiro, como qualquer animal faria ao caçar uma
presa, mas pela energia que ela emanava. Alma pura. Lymena tinha lhe
explicado sobre aquilo.
Para ela, foi um alívio descobrir que não estava louca ao achar que
aquelas criaturas tinham um comportamento diferenciado quando se tratava
dela mas, ao mesmo tempo, sentia medo ao saber a verdade.
— Quando passarmos a fronteira, você pode viajar em Nyra.
Adhara assentiu e soube que não conseguiria nada além daquilo. Nem
voltou a olhar a mãe. Fechou os olhos, fingindo cochilar, já que preferia o
silêncio a ficar brigando sem sentido.
Sentia-se segura naquele trajeto. O pai tinha mandado boa parte dos
seus melhores guardas acompanhá-las. Já haviam passado algumas noites
nas florestas, mas nenhum ataque aconteceu, sequer uma tentativa.
Ela sabia o motivo. Podia sentir a presença de Zephyr por perto e
sabia que o Elemental estava rondando a comitiva real, mesmo sem
aparecer.
Deixe-me acompanhá-la… sabe que posso protegê-la.
Adhara nunca imaginou que ele a seguiria até o Norte, mas estava
grata por aquilo. Sentia-se tola com aquela reação. Quando o desejo de
fugir de Zephyr passou a ser um alívio ao tê-lo por perto?
A realeza do submundo está atrás de você, Adhara.
A imagem dos demônios os perseguindo e a energia nauseante que a
tomou quando foram emboscados rondou-lhe a mente, fazendo com que
ficasse inquieta na carruagem. Parou de se remexer quando a mãe passou a
observá-la com desconfiança.
A verdade era que sentia mais medo dos Altos do que dele. Parecia
tolice, ela sabia, já que com tantos monstros a perseguindo, era difícil
escolher um com o qual lidar primeiro.
O chacoalhar da carruagem a embalou e, sem que percebesse, a
princesa dormiu.
Merik estava preocupado como o frio dali incomodava Alys. Desde
que decidiu morar com o Sombrio em sua vila, ela estava acostumada ao
clima, mas tudo piorava quando desciam o mapa. Ele não sentia o frio na
pele, era uma criatura do submundo. A neve lhe era confortável e o frio de
gelar os ossos, prazeroso.
Já Alys, com o corpo humano, às vezes estremecia em seus braços.
Merik a cobriu com o próprio manto, mesmo sob os protestos dela.
— Não seja tola. — Antes da garota abrir a boca para retrucar, ele a
apertou com um abraço. Merik sabia que Alys odiava ser tratada daquela
forma. — Não sinto frio e daqui estou conseguindo escutar os seus dentes
batendo.
Ela desistiu da teimosia e se acomodou no abraço dele. O garanhão de
Merik também não sentia a temperatura, era sobrenatural como o dono,
levando os dois sem sequer bufar quando passava por pequenos riachos
quase congelados e estradas cobertas de neve.
Chegariam na fronteira em breve. Estavam viajando há algum tempo
e, por ter o controle sobre os demônios, o Sombrio decidiu pegar as estradas
principais para a viagem ser mais rápida. Quando sentia o cheiro de carne
podre ou sangue, conduzia o garanhão pela fronteira da floresta
discretamente, para que Alys não visse a matança. Mas quando a garota
estava dormindo em seus braços, o corpo encolhido e o rosto pousado em
seu peito, Merik deixava o animal voltar à estrada, sem se preocupar
quando precisavam se desviar dos mortos.
Naquele momento, a claridade do dia tentava penetrar a neblina, sem
sucesso. Ele havia escolhido permanecer na fronteira da floresta durante
isso. Alys observava tudo ao redor, tentando distinguir algo.
Ele conseguia sentir a energia mudando naquele lado do mapa…
densa, convidativa. O sofrimento e o desespero pareciam velhos amigos,
acariciando suas costas. A morte havia se tornado uma promessa apetitosa.
Precisava se controlar perto de Alys, já que sua essência nunca
mudaria. Às vezes tinha receio em como a garota o interpretaria, mesmo
que soubesse do seu amor, se pudesse discernir exatamente como ele era.
De qualquer forma, Alys havia visto o pior dele quando desceu para o
submundo.
— Sinto Igrik nos seguindo desde que começamos a viagem. — Alys
estremeceu nos seus braços, mas Merik ignorou aquela reação mesmo que o
incomodasse. Não a pouparia da verdade. — Não tema, sabe que estou aqui
para protegê-la.
Ele não concordava com a viagem para o Sul, mas foi um pedido
dela. A adaga de Jyot não podia ficar com os dois, por isso seria escondida
em uma vila protegida. Merik sabia que a companheira ansiava em ajudar
naquela guerra entre os mundos, mas sentia medo.
Alys não havia vivenciado os Primeiros Anos, nem fazia ideia do que
era aquele mundo coberto de escuridão, ou como os demônios ficavam
quando estavam confortáveis. De qualquer forma, com os Altos andando
por ali, Merik precisaria decidir os próximos passos.
Antes, Asroth os conteve com o poder do trono de obsidiana. Naquele
momento, havia grandes chances de que ele tivesse de fazer o mesmo, já
que era seu dever como Sombrio. Tê-los ali era desequilibrar o mundo
corpóreo, já que os Altos lutavam para engoli-lo.
Merik sabia que o objetivo final deles era Atman. Parte de ter
concordado com Alys foi o de encontrar a realeza do submundo para fazê-la
recuar.
Mas como expulsá-los do mundo corpóreo, se nem mesmo ele
renunciou ao que tinha naquele plano?
Ele sentia o peso da adaga em sua coxa. Alys a carregava em um
cinturão, abaixo do gibão de veludo, mas ele a tinha pegado para si naquela
viagem, já que a energia emanada pela lâmina podia atrair os Altos para a
caminhante. Merik ainda se perguntava por que ainda não haviam
aparecido. Apertou a cintura da companheira como uma forma de dizer que
estaria ali, ao lado dela, sempre. A garota olhou para trás, com um sorriso
contido nos lábios.
Igrik tinha mandado os Altos para o Sul em busca da princesa? Ou era
egoísta o suficiente para cobiçar a adaga apenas para si? A lâmina ao
alcance da mão do Sombrio podia ser uma proteção para sua companheira,
mas se usada de forma incorreta, seria uma sentença de morte. Afinal, o
próprio Asroth encontrou o fim por ela.
Merik engoliu em seco e pousou o queixo na cabeça de Alys,
plantando um beijo nos cabelos cacheados da caminhante logo em seguida.
Tudo dependia de quem brandiria a adaga na hora necessária, e Merik
precisava acreditar que seria sua companheira.
CAPÍTULO 26

Domenico parou em meio às árvores, os olhos azuis percorrendo cada


espaço da floresta. A neblina não deixava ver muito, mesmo que nem
precisasse de uma visão clara para entender o que acontecia à sua volta.
Durante todo o trajeto, respeitou o espaço da Coroa Vermelha, que andava à
frente com o Coven em busca de Damiana.
Ele sempre foi um diplomata, principalmente quando se tratava de
outras raças, mas a cada tempo passado ali, entendia que em algum
momento teria de tomar uma decisão drástica. Afinal, o direito de Lymena
terminava quando o dele começava. E ele ansiava em entrar nos domínios
de Damiana e arrastar pelo pescoço o vampiro que ela protegia. O faria se
fosse preciso, independente do que os outros pensassem.
Podia sentir a presença de Taran naquela floresta. O vampiro havia
passado por entre as árvores, como se estivesse vivendo ali. Domenico tinha
contas a acertar com aquele maldito.
— O que pretende fazer? — A voz de Gavin o tirou dos pensamentos.
O vampiro olhou para seu braço-direito, que o observava com uma
expressão séria.
— Vou aguardar Lymena conversar com Damiana. — Apontou com o
queixo para um ponto específico da floresta. — Pedi que Videric cercasse a
área com os vampiros. Não quero Taran fugindo novamente.
Gavin assentiu e não ousou contestá-lo. O mestre dos vampiros sabia
que ele estava contendo a raiva. Não era segredo para os vampiros do clã
Vreirius que a primeira barreira do Sul havia caído cedo demais porque
Taran não fez o que lhe foi incumbido. Por isso, Velaria precisou lidar com
uma invasão de demônios famintos, fazendo com que vilas inteiras fossem
cobertas de sangue antes que conseguisse enviar a primeira carta para
Domenico, explicando o ocorrido.
Com os humanos mortos, os vampiros precisaram recuar, a sede
aumentando à medida que o alimento ficava escasso. Muitos deles,
recentemente transformados, descontrolaram-se e mataram sem sequer
pensar em discrição.
Pelo menos boa parte daquela matança foi camuflada pela escuridão
que tomou o Sul. Se os vampiros novos secavam os humanos com mordidas
fortes, aquilo era encoberto quando os demônios trituravam as carnes dos
cadáveres com seus dentes afiados.
Um pesadelo, na visão de Domenico. Aquela matança remetia aos
Primeiros Anos. Porém, naquela época a estratégia do submundo havia sido
outra. Os demônios foram sendo infiltrados aos poucos, já que os Altos
tinham o comando dos reis humanos e, com isso, controlavam o mundo
corpóreo, cobrindo-os com sangue discretamente. Diferente daquele
momento, que o submundo estava descontrolado, com apenas um objetivo:
destruir a humanidade.
— Videric está vindo. — Gavin avisou, de repente.
Domenico observou o comandante se aproximar. Se o seu braço-
direito estava com raiva, o outro estava furioso. Taran fez com que Videric
quase perdesse a cabeça e fosse expulso do clã quando Draste, seu
comandante, tentou atacar Nyana sem motivo real, apenas para provocá-lo.
Assim que o vampiro foi morto, Taran exigiu uma retaliação.
Domenico precisou de todo o seu autocontrole e influência para explicar
aos puros-sangues dos outros clãs a atitude de Videric, por conta do laço de
companheirismo que tinha. O verdadeiro irresponsável foi Taran, que
falhou no seu dever como mestre.
Domenico podia ver a vontade de Videric naquele instante em se
enfiar naquela floresta e arrancar ele mesmo a cabeça do traidor. Precisava
confessar que aquela possibilidade não o desagradava.
— Coloquei vampiros em todos os pontos de fuga, mas o poder de
Damiana é forte… — Videric relatou, fazendo uma careta. — Não chega a
ser como o da Coroa Vermelha, mas é algo diferente de tudo o que já vi…
— Errado. — Domenico completou e Videric assentiu. — Damiana
deu as costas a Atman quando abraçou o outro lado do poder, mas isso não
quer dizer que ela não o use.
Como se pressentisse algo, o mestre dos vampiros levantou o rosto
para observar o céu quando um vento gelado afastou a neblina. A claridade
da lua conseguiu alcançar a floresta, banhando os campos cobertos de neve
com uma luz leitosa. Videric e Gavin olharam para ele e Domenico respirou
fundo.
— Vamos aguardar as bruxas. Ainda teremos toda a noite, fiquem a
postos.

Lymena sentia o poder de Damiana bloqueando o dela, mas não se


irritou com aquilo. Apenas aguardou que a bruxa aparecesse. Ela havia
deixado o Coven para trás e se embrenhado na floresta, sendo seguida
apenas por Arsene, que insistiu em estar ao seu lado.
A Coroa Vermelha estava no meio das árvores naquele instante, em
meio a um vento forte que espalhava a neblina do lugar. Sentia a claridade
da lua a lhe acariciar o rosto, disposta a guiá-la pelo caminho adiante.
Depois de um tempo, Damiana apareceu. Sua aparência era muito
diferente das filhas de Atman. Enquanto as bruxas das Florestas Brancas
preferiam a cor clara e roupas leves, ela havia escolhido a escuridão até
para se vestir. O manto escuro cortou o campo coberto de neve e ela parou
ao ver Lymena.
Ao contrário da última vez que se encontraram, o rosto pintado da que
optou pelas trevas não foi percorrido por um sorriso cruel. Estava cansada,
fato visível nas linhas de expressão do rosto dela, bem como na forma como
havia trançado o cabelo.
— Lymena… — A voz, contudo, era suave como a das filhas de
Atman. — A que devo a honra de sua visita… de novo?
A ironia não passou despercebida e Lymena escutou um leve rosnado
vindo de Arsene. Pelo menos o vampiro ficou onde estava, algo que havia
pedido antes daquele encontro. Mesmo que ele tivesse Atman no sangue,
não era segredo para ninguém que ignorava a sua parte bruxa
deliberadamente.
Damiana olhava para Arsene com atenção, como se tentasse
desvendar a energia que sentia. Lymena se lembrou das palavras da bruxa
quando o viu pela primeira vez naquela mesma floresta.
Não sou eu quem estou abrindo as pernas para um vampiro, Lymena.
Mesmo que esse aí tenha um cheiro diferente dos da espécie dele.
Naquele momento, Damiana parecia entender o que via.
— Por que sinto Atman em você? — Quase cuspiu a pergunta, como
se não acreditasse que sentia a energia bruxa em um homem.
— Devo ter pegado a parte dela que você abandonou. — Arsene
respondeu, cheio de acidez.
Lymena olhou para o companheiro em repreensão. Não queria
Damiana na defensiva e dizer em voz alta a escolha que a bruxa havia feito
era um dos assuntos que a Coroa Vermelha queria evitar. Contudo, o estrago
havia sido feito.
A bruxa olhava para Arsene como se ele fosse seu pior inimigo. O
ruivo ia falar algo, mas foi impedido por Lymena, que o tocou no pulso com
delicadeza, o suficiente para que se calasse.
— Esse é Arsene Lefevre, meu companheiro. — Damiana continuou
observando-o com atenção. — Meu sat.
A expressão do rosto da outra desanuviou, como se o amor puro fosse
uma doce lembrança para ela. Permaneceu calada, disposta a ouvir o que a
rainha queria dizer. Esta entendeu o silêncio como um convite.
— Preciso de sua ajuda para expulsar o submundo do Sul, Damiana.
— Sabe que não posso pedir isso às minhas bruxas. Minha
responsabilidade é com meu Coven e nada mais.
— E os vampiros que você encobre nesse momento? — O corpo de
Damiana ficou tenso e os olhos carregados de raiva. — Disse que abro as
pernas para um vampiro, mas permitiu a entrada de um clã inteiro em seu
domínio.
— Não sabe do que está falando…
— Taran não vai ajudá-la, Damiana. Não protegeu nem mesmo o
território pelo qual era responsável. A velocidade com que os demônios
tomaram essa parte do mundo corpóreo foi culpa dele. — Ao ver que
Damiana não cederia, Lymena lhe jogou toda a verdade. — Tenho um
vampiro puro-sangue nessa floresta apenas aguardando minha palavra para
atacar.
— Não vou deixá-lo entrar.
— Sei disso. Por isso preciso que expulse Taran das suas terras, ou eu
mesma o farei.
Diante dessa ameaça, Damiana ficou tensa. Quando Lymena marchou
a primeira vez para o Sul, estava no início do seu reinado e, mesmo
portando a coroa, ainda era comedida. Agora, com tantas variáveis em jogo
e a Coroa Vermelha pesando em sua cabeça, precisava ser mais firme, sem
tempo para se lamentar.
— Demônios não fazem distinção de carne. — Lymena avisou. —
Tudo vira alimento, vindo de Atman ou de um poder abaixo dele.
Damiana apenas recuou para as árvores, como se quisesse fugir da
decisão que precisava tomar. O coração de Lymena se apertou. Sabia que
estava perdendo… mais bruxas morreriam por causa daquilo e ela não
poderia fazer nada.
— Diga ao seu povo que as Florestas Brancas poderá ser a casa deles
novamente se voltarem a abraçar Atman com respeito. — Lymena avisou,
mas Damiana já tinha ido.
A rainha respirou fundo e sentiu a mão de Arsene lhe tocar o ombro
com delicadeza. O aroma de canela a deixou mais calma e o coração leve
mas, independente daquilo, ela sabia o que precisava ser feito.
— Você não pode salvar todo mundo, Lymena. — Uma lágrima
riscou o rosto dela, que o enxugou, olhando então para o companheiro.
— Mande Domenico atacar.

Ele não queria matar bruxas, mas assim que pediu para seus vampiros
atacarem, sentiu o poder de Damiana engoli-los.
Não era tão forte quanto o de Atman, mas ainda assim amedrontador.
Alguns vampiros tiveram dificuldade em enfiar-se nas árvores, com as
lâminas sendo arremessadas pelo ar, acertando vez ou outra um braço ou
uma perna… Mas isso nunca os fez parar.
Os vampiros de Domenico eram treinados para caçar, com apenas um
objetivo em mente. E não era aquelas bruxas.
O cheiro de sangue ficou mais forte. Ele deu um passo adiante, até
sentir ao seu redor uma nova fonte de energia, oposta à de Damiana, que
cobriu o campo e fez as bruxas caídas se curvarem.
Lymena.
Começou a se enfiar na floresta na busca do vampiro traidor, nem um
pouco surpreso em ver as bruxas recuarem. Tiveram que lidar com muito
desde a quebra de fenda, por isso nunca se sacrificariam por Taran.
Ele podia senti-lo. Aquele maldito!
Os vampiros avançaram sem as bruxas de Damiana para impedi-los.
Logo encontraram alguns do clã Garcas. Domenico odiava perder vampiros,
bons até, mas todos escolheram estar ao lado de Taran e abandonar o
próprio território. Por isso, pagariam por aquilo.
Caíram aos poucos, sem o treinamento necessário para lidar com o clã
de Domenico, ainda mais com Videric ali, disposto a rasgar os vampiros
enquanto procurava por um.
Assim que Domenico avistou Taran se afastando das árvores, sabia
que havia chegado a hora de destruí-lo. Isso só se confirmou quando notou
que o bastardo estava fugindo, deixando o próprio clã sozinho como apenas
um covarde faria.
— Está indo para algum lugar? — Domenico sussurrou em meio
àquela carnificina, sabendo que seria o suficiente para que o outro ouvisse.
O vampiro parou de andar e olhou assustado para onde Domenico
estava, tentando entender como tinha caído naquela armadilha. Ao fugir de
Videric e sua sede de sangue, havia esbarrado em alguém pior.
— Domenico…
Ele estava ao lado de Taran antes que o maldito pudesse dizer
qualquer palavra, os dedos circulando o pescoço do outro puro-sangue. Um
aviso. Taran entendeu o recado e parou, os olhos vislumbrando a raiva
estampada no rosto do mestre dos vampiros, sempre controlado.
— Eu disse a você para conter os demônios. — A voz dele era quase
polida, fazendo com que Taran sentisse ainda mais medo. — E você não me
ouviu…
— Demônios não atacam vampiros. Por que eu iria contê-los? —
Taran tentou provocá-lo, mas parou quando os dedos de Domenico
apertaram ainda mais o seu pescoço.
— Seu idiota. Agora tenho um problema muito maior para resolver
porque você não honrou o sangue que tem e a posição que ocupa no nosso
mundo. — Taran tentou sair do aperto, mas a força de Domenico era maior.
— O que farei com você?
— Você não tem permissão dos mestres do Conselho Vermelho para
me matar.
Um sorriso estranho percorreu o rosto de Domenico e Taran percebeu
que ele havia ameaçado o vampiro errado.
— Sabe qual a vantagem de ser o sangue-puro mais poderoso do
mundo corpóreo, Taran?
O vampiro não viu. A mão de Domenico foi rápida quando ele
golpeou, partindo ossos e chegando ao coração do outro. Ele fechou os
dedos no órgão e, com um puxão, o arrancou do peito do outro, ainda
quente e pegajoso. Jogou-o na neve para que virasse comida dos demônios
que Taran tanto subestimava.
— Não preciso da permissão de nenhum vampiro para fazer o que
quero.
O corpo de Taran caiu, os olhos arregalados como se tivessem visto o
fim rápido que teria. Domenico retirou um lenço branco do bolso do gibão e
começou a limpar o sangue das mãos. O campo agora estava mais
silencioso, indicando o fim do pequeno conflito, ele escutou Videric se
aproximar e aguardou seu comandante.
Videric olhou para o corpo de Taran e fez uma careta quando viu o
coração do vampiro jogado na neve. Depois, parou em frente a Domenico e
apontou para a floresta atrás.
— Sobraram poucos, ainda fiéis a Taran. — Ele voltou a olhar para o
coração. — Não creio que saibam que o mestre deles está morto. Lymena
recuou para procurar Adhara. — Voltou a olhar para Domenico, aguardando
ordens. — O que fazemos?
Domenico estava observando a floresta, mas voltou a atenção para
Videric. O vampiro estava com pouco sangue no corpo, sempre ficava
surpreso em como ele conseguia matar sem se sujar.
— Matem todos. O clã Garcas está extinto. — Depois, olhou para a
floresta. — Iremos com Lymena. Quero Adhara protegida.
Videric assentiu e se enfiou por entre as árvores. Domenico jogou o
lenço fora e olhou uma última vez o corpo de Taran. Em breve os demônios
infestariam aquela parte do mapa e o vampiro enfim veria que as criaturas
do submundo não faziam distinção de carne quando o assunto era ter um
excelente banquete.

De todos os lugares, aquele era o que Zephyr menos queria estar


naquele momento. Ele conhecia o lugar que antes era sua casa, sabia que a
neblina o impedia de ver a real Asteria e que, mesmo que andasse através
dela, nunca chegaria aonde desejava.
Ele não era mais bem-vindo no plano sagrado e este nunca se abriria
novamente para o caído.
Zephyr encarou aquele infinito branco e sentiu o frio em sua pele,
mesmo com a ausência do vento.
Aguardou.
Um homem alto se aproximou dele, a pele escura contrastando com
toda a claridade daquele lugar. Os olhos dourados e atentos observaram
Zephyr por um tempo e o Elemental caído não gostou da expressão que viu
no rosto do irmão. Northal era um dos Elementais mais sábios de Asteria,
mas sua sobriedade fazia com que Zephyr se sentisse acuado, algo diferente
do que esperava sentir naquele momento.
— Zephyr… como vai? — perguntou casualmente, fazendo-o
semicerrar os olhos.
— O que quer, Northal?
O outro ficou em silêncio por um tempo e depois parou ao lado do
irmão, observando o horizonte. Zephyr sabia que ele enxergava um mundo
diferente do seu. O irmão ainda era bem-vindo em Asteria.
Ele se perguntou o que Northal enxergava, mas conteve a vontade de
pedir uma descrição. Não queria admitir, mas às vezes sentia vontade de
rever o próprio lar.
— Nesse momento, sua princesa está sendo atacada por forças
maiores do que ela. — Northal soltou a informação e observou a reação de
Zephyr com atenção.
Sentiu-se tolo em fingir que não se preocupava com aquilo, pois sabia
que o próprio coração estava disparado. Além disso, Northal podia ler a
tensão em seu corpo. O irmão continuou:
— Sabe que ela é forte, mas não o suficiente para sobreviver a tanta
ruindade. Precisa da sua proteção, Zephyr. — Ao não ter uma resposta
sobre o assunto, ele desviou os olhos do irmão e voltou a fitar o horizonte.
— Pode se redimir com isso…
Zephyr sabia que aquilo era um teste. Northal estava testando seu
desejo, a própria essência do caído. E pior, tentava mensurar o que sentia
por Adhara.
— Darei minha proteção a princesa quando ela me entregar seu
consentimento.
As sobrancelhas de Northal se levantaram em descrença, piorando o
humor de Zephyr.
— Se Adhara não consentir, ela será morta. Sabe o que acontecerá
com a alma pura da garota então? — Zephyr travou o maxilar para não
retrucar enquanto o irmão apontava para o espaço em branco. — Ela voltará
para casa. Aelua será muito bem-vinda aqui.
O Elemental respirou fundo. O irmão estava certo. Estava ficando
sem opções. Se continuasse protegendo Adhara, a princesa nunca o veria
como uma ameaça. Ficaria sempre por perto, sem conseguir seu intento,
como havia feito nas últimas luas.
Ela se tornara um vício. Zephyr se perguntava até que ponto a
protegia para tomar o que queria no momento oportuno ou se o fazia para
vê-la realmente segura. Se ameaçasse Adhara, ela nunca lhe daria o seu
consentimento… mas se fosse morta pelos Altos, sua alma estaria perdida
para sempre. Ele então nunca sentiria o gosto de uma alma pura.
— Me mande de volta.
Sabia que seu corpo estava desacordado no mundo corpóreo e, com
isso, Adhara estava sem proteção.
Northal sorriu com o pedido do irmão e Zephyr não soube o que
responder, mas percebeu que aquilo era insuficiente para que tivesse seu
pedido atendido.
— Irei protegê-la, Northal. — Os olhos escuros encararam os
dourados. — Me mande de volta, porra.
Ele sentiu o puxão antes que pudesse escutar a resposta do irmão.
Quando abriu os olhos, estava caído na floresta do Sul, a neve se
acumulando em seu corpo humano. As patas do cavalo estavam
perigosamente próximas de seu rosto e o animal parecia prestes a fugir.
Zephyr sabia o motivo. Levantou-se em um pulo e montou no cavalo,
seguindo o rastro que Adhara havia deixado ao passar por ali.
O cavalo cortou as árvores, os cascos sem fazer barulho ao encontrar
a neve. O caído viu as pegadas de outros animais, bem como a marca de
rodas de carruagem. Contudo, a neve estava revirada e as pegadas das
criaturas eram muito diferentes da comitiva que levava a princesa para o
Norte. Incitou o cavalo e o animal fez o que devia, tomando velocidade.
Zephyr seguiu a energia da princesa e o cavalo se assustou quando os
cascos tocaram gelo puro, empinando em seguida. O lago era grande e
estava congelado, mas o animal não parecia querer subir ali e o Elemental
não o forçou. Desmontou e andou alguns passos, escutando guinchos e
gritos.
Eles estavam no meio do lago, numa tentativa tola de fugir das
criaturas e, sem perceber, se amontoavam num espaço perigoso demais,
aumentando o peso que o gelo poderia suportar. Os demônios os cercavam e
os guardas pareciam fazer um bom trabalho decepando as cabeças de
alguns.
A carruagem estava tombada e Liuva parecia impressionada com a
quantidade de sangue derramado no gelo. Adhara segurava o arco, mirando
com precisão nos monstros enquanto protegia a mãe. Ele não deixou de
admirá-la com isso. Para um desatento, a princesa era coberta por coragem,
mas os olhos astutos dele conseguiam ver a mão que segurava a corda
tremer de leve.
A jovem devia se lembrar de quando um gelo abriu sob seus pés e a
água lhe engoliu.
Com a aproximação de Zephyr, os demônios guincharam e
começaram a se contorcer. Aquilo chamou a atenção dos guardas, que
procuraram o motivo do desespero das criaturas. O caído levantou a mão e
libertou o próprio poder, varrendo o lago congelado com a escuridão que
carregava. A neblina desceu e a claridade do dia recuou como se a noite
fosse cair cedo demais. Os monstros então deram alguns passos para trás,
mas a promessa de conseguirem algo como Adhara os deixavam ousados.
Zephyr se aproximou e Liuva pareceu aliviada ao vê-lo, mesmo sem
entender porque o rosto do nobre estava coberto por uma expressão
maléfica. Zephyr sentia as linhas do seu corpo dançando enquanto o poder
fluía de si.
Os olhos da rainha pousaram em seu peito exposto, avaliando-o. Um
barulho fez com que todos parassem, de repente. O caído respirou fundo,
uma lembrança ruim atingindo sua mente.
O gelo estava partindo em várias partes.
Os guardas pareciam decidir o que era prioridade: salvar a princesa, a
rainha, atacar os demônios ou salvar as próprias cabeças. Zephyr decidiu
isso por eles. Não nutria nada por nenhum deles, mas precisava salvar
Adhara.
Os monstros pressentiram o perigo e se afastaram. Os guardas
aproveitaram o momento para puxá-las para uma margem segura, até que
Zephyr enfim as alcançou.
A mão dele buscou o braço de Adhara, mas a princesa não deixou ser
levada. O gelo continuou a se espatifar, os buracos abertos engolindo alguns
demônios, a quebra traçando uma linha que ia viajando até eles. Zephyr
olhou para a princesa com desespero.
— Adhara! — gritou quando ela foi firme em puxar o braço, fugindo
do aperto dele, disposta a cuidar dos seus.
— Salve minha mãe, Zephyr. — Ela pediu em meio às lágrimas. — É
tudo o que peço. — Vê-la naquele estado fez com que perdesse qualquer
traço de racionalidade. Ele xingou algo sem sentido e a libertou.
A rainha estava presa entre vários corpos de soldados, sem entender o
que estava acontecendo. Ficou assustada quando notou Zephyr se
aproximar. Ele jogou os corpos, demônios e humanos, para o lado, sem
qualquer esforço.
Sentiu os olhos da rainha sobre ele, cheios de surpresa. Zephyr olhou
para Liuva, que recuou, percebendo pela primeira vez que talvez ele não
fosse quem pensava, sentindo-se em perigo.
Um lado dela, instintivo e humano, lhe gritou que o Elemental
poderia ser pior do que todos os outros demônios que a atacavam.
— Vamos! — ele pediu.
Quando viu a rainha recuar, percebeu que não conseguiria tirá-la dali
se respeitasse o seu tempo. Sem pedir permissão, a pegou nos braços e
correu. Liuva começou a se debater, mas desistiu quando a fissura do gelo
os alcançou, levantando-os no ar.
Zephyr manteve o controle e jogou o corpo dela para frente, a fim de
deixá-la em segurança. Os guardas então buscaram a rainha, tentando puxá-
la para uma área segura.
— Adhara! — O grito de Liuva fez o corpo de Zephyr gelar.
Ele se virou para buscá-la. A rainha quis ir junto, mas ele a conteve.
A mulher encarou-o com fúria.
— Não deixarei a minha filha. — Naquele instante ele reconheceu de
onde vinha a determinação de Adhara. A princesa tinha o mesmo olhar da
mãe quando queria algo.
— Terá que me confiar a segurança dela. De novo.
Liuva o observou. Zephyr sabia que o rosto estava diferente, já que
havia libertado o próprio poder para salvá-los. Quando o fez, parte da
crueldade e escuridão que haviam nele escaparam. As linhas do seu peitoral
subiram até o pescoço, descoberto pelo manto, tornando-o uma visão
aterradora.
O fato era que a rainha sabia que ele era a única chance de Adhara.
Com relutância, assentiu. Ele a entregou para os guardas, que começaram a
tirá-la dali.
Zephyr correu então até a princesa, lutando contra o tempo e o gelo
que lhes separava do restante daquele grupo. Ele a puxou para que não
fosse engolida pela água gelada outra vez. Parte do lago apareceu,
separando cada vez mais mãe e filha.
Zephyr estava focado apenas na princesa e em nada mais.
— Você está bem? — Ela não respondeu e ele a sacudiu. — Adhara!
— Os olhos verdes desviaram do grupo, agora coberto pela neblina. A
jovem pareceu perceber pela primeira vez sua presença ali. — Tudo bem?
— Eu… achei que conseguiria… protegê-la.
Princesa tola! Zephyr a abraçou sem conseguir se conter, beijando os
cabelos trançados e a levando para a margem oposta. Adhara ainda estava
em estado de choque enquanto saíam da área de risco. De repente, o corpo
dela ficou tenso ao escutar o som de cascos batendo na neve.
Zephyr parou de andar e observou quem vinha.
Eles chegaram em pouco tempo. Um por um, cobriram a margem do
lago, os mantos escuros contrastando com a neve e o gelo do lugar. Zephyr
olhou para os Altos demônios, tentando encontrar uma maneira de deixar
Adhara salva sem que o gelo os engolisse. Estava faltando um entre eles. O
líder, Igrik
— Me entregue a garota, Zephyr. — Um deles falou, a voz aveludada
que apenas a realeza do submundo teria. — E iremos deixá-lo em paz.
CAPÍTULO 27

Um silêncio pesado parecia tomar a colina enquanto Zephyr encarava


os Altos, analisando qual seria o próximo passo a dar. Conseguia sentir a
apreensão de Adhara ao seu lado, o corpo trêmulo e os olhos fitando cada
um dos inimigos.
Eles eram conhecidos pela beleza e a utilizavam para conseguir o que
queriam. Por isso, Zephyr sabia que ela, naquele momento, devia estar
encantada. Mas, apesar da aparência externa, a energia que emanavam era
exatamente oposta à de Adhara, ficando evidente no momento em que ela
os sentiu e recuou um passo, engolindo em seco.
Zephyr projetou o corpo mais para frente, a fim de que os Altos
parassem de observá-la. Ele podia sentir o desejo deles pela princesa. Um
dos demônios, com cabelos cacheados e olhos verdes, parecia prestes a
pular em cima de Adhara, mas claramente se continha por causa do caído.
Fitava-o com um misto de diversão e curiosidade.
— O seu nome foi falado em muitas reuniões do trono de obsidiana,
Elemental. — Zephyr manteve-se calado, esperando o que ele tinha a dizer.
— Confiávamos em sua perversão para unirmos forças. — Os olhos do Alto
percorreram o braço de Zephyr, estendido na frente da jovem humana como
uma forma de proteção. — Mas, infelizmente, ficou tão cego pela princesa
que teremos de lidar sozinhos com Atman.
— São muito confiantes em acharem que eu escolheria um lado no
mundo corpóreo.
— Você já o fez. — Zephyr sentiu a raiva lhe tomar o corpo.
— Onde está seu líder, demônio? — Tentou desviar da conversa que o
deixava inquieto. — Na certa, caçando algo muito mais poderoso para
vocês — provocou.
O demônio semicerrou os olhos e os direcionou mais uma vez para a
princesa, deixando o Elemental em estado de alerta. Mas àquela altura eles
deviam saber que, se uma Lâmina do Submundo não pôde sequer derrubá-
lo do cavalo, nada que tivessem conseguiria atingi-lo como desejavam.
— Sabe que podemos dar o que você quer… — Ele sentiu Adhara
estremecer quando a voz sussurrada do demônio cortou a colina. — Deixe-
nos levá-la para baixo. A princesa irá implorar para entregar a própria alma
e acabar com tudo depois de experimentar a real tristeza do submundo.
Zephyr ia abrir a boca para retrucar, mas o Alto virou o rosto, como
se tivesse escutado algo em meio à floresta. Os cavalos começaram a ficar
inquietos, enquanto os demônios pareciam conversar entre eles, num idioma
que nem mesmo ele conseguiu entender.
Depois disso, sem que pudesse entender a causa, viu o Alto subir o
capuz e cobrir o rosto, saindo com o cavalo dali, afastando-se. Os demais o
seguiram, um a um, deixando Zephyr e Adhara sozinhos.
Ele permaneceu em alerta por um tempo, mas parou de senti-los
alguns minutos depois. Havia algo mais precioso no Sul, e eles o queriam.
Tocou o braço de Adhara e a guiou até o cavalo.
— Vamos, precisamos contornar o lago e encontrar a comitiva.
Enquanto começava a andar com Adhara, Zephyr tentou se concentrar
no mundo corpóreo e toda a energia que se movimentava ao redor. Atman
também procurava a garota… a Coroa Vermelha já havia, inclusive,
abandonado as Florestas Brancas. Merik estava em movimento também,
carregando a lâmina de Jyot.
O Elemental podia sentir a energia dos vampiros se misturando ao Sul
e não gostou das possibilidades que se desenhavam diante dele. As peças se
moviam na direção do conflito, que aconteceria em breve. Por isso, chegou
à conclusão de que o melhor para Adhara era estar no Norte, junto da
família.
Puxou-a com delicadeza, mas a princesa parecia reticente em juntar-
se a ele. Olhou-a, curioso por um momento.
— Há algo errado… — Ele apenas assentiu antes de lhe responder.
— Você precisa reencontrar sua mãe. — Zephyr foi firme. — Liuva
confiou sua proteção a mim, mas a partir de agora estará melhor entre os
seus.
Adhara o fitou, nos olhos verdes aquela mesma determinação que
Zephyr havia passado a admirar depois de um tempo, mesmo que logo em
seguida desse vontade de matá-la devido à teimosia.
— Me leve de volta para o Sul.
Eles estavam há menos de uma lua da fronteira. Enquanto discutiam
em meio à floresta congelada, Liuva se afastava.
— Adhara… — Zephyr correu as mãos pelos braços trêmulos dela.
— O Norte é o melhor lugar para você neste momento. — Correu os olhos
pela floresta, onde os Altos haviam sumido por entre as árvores. — O
inverno está ocupando todos os lugares, em breve a neblina vai tomar a
floresta por inteiro.
— Minha mãe estará em segurança assim que cruzar a fronteira. Mas
eu preciso voltar. — Os olhos mostravam parte da dor sentida. — É o meu
povo, Zephyr.
Ele não sabia o que fazer. A vontade era de amarrar a jovem no
cavalo e levá-la à força, mas sabia que ela voltaria para o Sul na primeira
oportunidade. A ideia de lidar com todo o conflito das raças sobrenaturais e
uma princesa fugitiva era algo que só o irritava. Seu humor piorou enquanto
a fitava, esperando que desistisse da ideia, apesar de continuar firme no
propósito.
— Bom… — Assoviou e um cavalo cortou a neblina, afastando-se
das árvores e indo ao seu encontro. — Você quer ver o Sul… — Ajudou
Adhara a montar no cavalo e logo a acompanhou, abraçando-a enquanto
pegava as rédeas. Aproximou-se do ouvido dela e sussurrou. — Então é o
que verá.

Enquanto seguiam, os olhos de Adhara permaneceram atentos a


qualquer possível mudança na floresta. Ocasionalmente, algum animal se
movia pelos galhos das árvores ou predadores noturnos saíam à caça,
recobertos pela escuridão que se adensava.
A neblina desceu, o frio fazendo com que se aconchegasse ao corpo
de Zephyr instintivamente. Os braços eram protetores em volta dela, mas
ele nada disse desde que começaram a viagem de volta. Amarraram a aljava
e o arco no alforje, já que a princesa insistia em tê-la por perto, mesmo
sabendo que ao lado do Elemental nenhuma criatura se aproximaria.
Ele já não retinha o próprio poder. Podia sentir a energia vil espalhar-
se por toda a parte. Nos sussurros estranhos que cortavam o silêncio da
floresta, no aroma cítrico que estava no ar, no toque dele quando os braços
roçavam os seus, em cada movimento do corpo atrás de si. Ao contrário da
energia do submundo, que lhe exauria enquanto a seduzia, a de Zephyr
parecia acariciá-la para que se abrisse, entranhando-se em cada parte dela
para deixá-la mansa, como se assim a domasse.
Remexeu-se inquieta no cavalo. O corpo estava dolorido depois de
muitos dias viajando e, mesmo que Zephyr a deixasse dormir por algumas
horas em um acampamento improvisado, era sempre acordada para
continuarem a viagem.
À medida que desciam através da estrada em direção ao Sul, percebia
que talvez salvar sua terra fosse um desejo inalcançável. Corpos eram
encontrados em todos os lugares, como se os viajantes, ao evitar as estradas
principais, apenas adiassem a morte. Via pelo caminho as entranhas, os
ossos expostos para os corvos e o sangue a molhar a neve, como se nem
após a morte os humanos pudessem ter algum momento de paz e respeito.
Para piorar, os mortos ficavam mais numerosos à medida que se
aproximavam do castelo de seu pai, deixando-a ainda mais ansiosa.
A morte havia encontrado até mesmo os grandes vilarejos e ela sabia
qual seria o próximo a tombar. O castelo principal, contornado por grandes
vilas, se tornaria um alvo fácil quando os demônios não tivessem mais
carne para rasgar e comer.
— Pare de chorar. — A voz dele cortou o silêncio da floresta depois
de dias. Foi só então que ela percebeu as lágrimas descendo pelo rosto. —
Você quis voltar para o Sul e é isso que eu vim te mostrar.
Adhara ignorou a crueldade de Zephyr, mas era impossível fazer o
mesmo com a dor daquele cenário. A neblina se dissipou e a princesa foi
recebida pelo fedor de palha queimada e cadáver. Deparou-se então com um
vilarejo que conhecia, havia estado ali várias luas atrás para entregar
provisões. Abraçou os idosos e escutou suas histórias, sorriu com as
crianças e teve esperança de tempos melhores com os adultos.
— Preciso descer…
Zephyr resmungou algo, mas não a impediu de sair do cavalo. Adhara
pisou na neve com as pernas trêmulas, o barro avermelhado se espalhando
com o peso das botas.
Andou um pouco por aquele lugar, o coração apertado. Eles haviam
destruído tudo…
O desespero a tomou quando se deparou com os corpos das
crianças…
Arrepiada, abraçou-se e fechou os olhos, tentando não identificar os
rostos, temendo se lembrar de algum que havia conhecido anteriormente,
enquanto passava ali com a comitiva enviada pelo pai. Cadáveres, ossos
quebrados, pedaços por todos os lados. Aquilo era o rastro deixado pelos
monstros que Adhara caçou por tanto tempo. Mas havia algo a mais ali: as
casas queimadas e toda a parca colheita destruída. Aquilo só podia ser obra
de seres racionais. O Sul estava lidando com o ódio de muitos e ela já não
sabia quem poderia ter feito aquilo, utilizando as ações do submundo como
forma de acobertá-lo.
Uma brisa gelada percorreu o vilarejo, trazendo um aroma delicado
que fez o coração de Adhara saltar. As lágrimas pararam de descer e uma
energia diferente foi sentida, como um alento ao seu coração. A neblina
estava mais fraca ao leste. Caminhou naquela direção e começou a escutar
vozes sussurradas e canções delicadas. Logo foi impedida por uma mão
firme em seu pulso. Piscou, encarando o vazio do vilarejo e o cheiro fétido
de corpos se decompondo.
— O que está fazendo? — A voz de Zephyr transparecia preocupação
e Adhara se parecia confusa.
— Eu senti algo…
Os olhos do Elemental observaram o espaço que a princesa encarava,
mas ele não a deixou continuar. Puxou-a com delicadeza e ela sequer
resistiu. Ignorou então o chamado e deu as costas ao vilarejo. O caído a
conduziu para o cavalo e lhe ajudou a montar, fazendo o mesmo em
seguida.
Ela fechou os olhos, numa tentativa de conter as lágrimas, mas elas
deslizaram mesmo assim. Zephyr não fez mais nenhum comentário depois
daquilo.

A lua estava alta no céu e, mesmo que a neblina a cobrisse, Lymena


podia sentir o poder a guiando. Lua cheia, a melhor fase para o que a Coroa
Vermelha enfrentaria em breve. A sexualidade de uma bruxa estava
acentuada naquela fase, a energia agindo como um farol para as criaturas do
submundo que andavam pelo mundo corpóreo.
Contudo, além de carregar em si todo o erotismo, seu poder estava no
ápice. Ela podia senti-lo em suas veias, esperando a oportunidade certa para
ser solto. Arsene a observava com atenção e a rainha sabia que o
companheiro a admirava, ao mesmo tempo que a temia.
Aquela energia, sem o devido controle, poderia matá-la. E, no fundo,
ele sabia que Lymena não faria objeções em usá-lo se isso salvasse o mundo
corpóreo da maldade do submundo.
— Consigo senti-la. — A voz dela era fraca em meio à noite da
floresta. — Adhara se aproxima e o Elemental está ao lado dela.
Arsene não disse nada. Apenas colocou a mão no ombro da
companheira para deixá-la mais calma. As bruxas haviam descansado no
início da noite, um bálsamo que Domenico ofertou quando cercaram o
acampamento do Coven para protegê-los. Com os vampiros ao lado,
podiam se dar ao luxo de recuperarem as forças. Naquele momento,
estavam a postos, aguardando ordens. Porém, Lymena continuava tensa.
— O que está sentindo? — Arsene a lia como ninguém.
— Sinto uma energia se aproximando. Conheço-a desde que coloquei
a Coroa Vermelha sobre a cabeça. — Os olhos foram de encontro aos
vermelhos do vampiro. — Merik.
Arsene não gostou de escutar aquele nome. Correu os olhos pelo
campo silencioso.
— Merik quer o coração de Igrik, que se aproxima junto dos Altos. —
Arsene respirou fundo e o aroma de canela ficou mais evidente. — Se
Merik está vindo, ele porta a adaga de Jyot e Alys está ao seu lado. Isso
pode sair do controle…
Lymena acariciou o braço do companheiro, olhando-o com atenção.
— Precisamos proteger Adhara e Alys. A adaga precisa estar nas
mãos certas quando o conflito acontecer… E essas são as de Merik. —
Lymena implorou para Arsene. — Preciso de você, que seu foco seja as
garotas.
Ela sabia que estava pedindo muito. Arsene nunca a abandonaria, mas
não poderia deixar Adhara à própria sorte. Apesar de Zephyr protegê-la, o
fazia por um motivo egoísta e ela não sabia como o Elemental lidaria com
tudo aquilo no calor da batalha.
Caso a princesa morresse, Zephyr perderia o controle e Lymena sabia
que seria impossível lidar com a fúria de um Elemental novamente. Mais
ainda, se aquilo acontecesse, a única alma pura capaz de mudar a história do
mundo corpóreo voltaria para Asteria, tirando de Atman qualquer chance de
proporcionar paz àquele lugar.
— Lymena…
A voz parecia chamá-la, como se estivesse dentro de sua mente.
Viajou pela floresta, ouvida pelas bruxas, que ficaram tensas no mesmo
momento. Ela conhecia aquela voz, já havia confrontado o seu dono
diversas vezes, tinha uma cicatriz no ventre para lembrá-la daquilo, o desejo
de ser mãe arrancado de si. Arsene sentiu a raiva da companheira e ficou a
postos.
— Ele está aqui… — ela sussurrou.
Aquela frase parecia soar como um convite. Um a um, os Altos
cortaram a neblina da floresta, banhando o campo com uma energia vil. Os
cavalos bufavam à medida que se aproximavam, os corpos magros e
assustadores. Eles não eram daquele mundo e Lymena tentou não pensar em
como o submundo escravizava até mesmo os animais. Ao lado deles, os
demônios menores pareciam famintos, mesmo que tivessem acabado com
quase toda a carne que havia no Sul.
A Coroa Vermelha reconheceu as criaturas maiores, que às vezes
abriam a boca e deixavam escapar gritos humanos, capazes de sugar a
energia das bruxas. Lymena viu, por fim, Igrik entre os Altos. Belo como
qualquer demônio da realeza, o cabelo esvoaçando com a brisa da floresta,
emoldurando o rosto cruel. Um sorriso de escárnio pintava os lábios dele e
ela se segurou para não arrancá-lo com as próprias mãos. Sentia os
vampiros se aproximando, mas aguardou.
— É sempre um prazer ver as bruxas reunidas. — Os olhos de Igrik
estavam famintos. — Principalmente quando sinto a pureza de Atman se
aproximando desse campo.
Lymena sabia que Igrik podia sentir Adhara, por isso precisava
mantê-lo ocupado. Se aquilo significava entrar em conflito direto com os
Altos, que assim fosse.
— Sabe que não te deixarei tocar na princesa, Igrik. — O sorriso dele
aumentou, deixando-o com um semblante diabólico. — Nem se for preciso
enviá-los para o lugar de onde não deveriam ter saído.
Lymena nem esperou a resposta, a claridade da lua intensificou
quando buscou o poder que mantinha enterrado desde que quase pereceu,
numa clareira parecida com aquela. A energia mudou e isso foi sentido
pelos Altos, que ficaram inquietos.
Ela tinha consciência de Arsene ao seu lado e das bruxas aguardando
um simples comando que fosse para atacar. Um vento forte varreu a
floresta, trazendo a energia de Atman consigo e fazendo os pequenos
demônios gritarem.
Igrik deu o comando e as criaturas cortaram o campo, a promessa de
sangue de Atman os enviando com uma fúria que Lymena nunca havia
visto. As bruxas contra-atacaram e ela fechou os olhos, libertando o próprio
poder. O bruciare cantou em suas veias, atingindo a primeira linha de
criaturas que se aproximava, desintegrando-as logo em seguida.
— Merda…
Ela ouviu vagamente a voz de Arsene ao seu lado e sabia que talvez
fosse a última vez que o faria, quando respirou fundo e mergulhou naquele
poder.

As bruxas atacaram os demônios, sangue escuro e fétido inundando a


floresta à medida que caíam. Arsene não estava preocupado com os
demônios menores, já que protegia Lymena, naquele momento imersa no
próprio poder, a brisa levantando o cabelo acobreado.
Ele abatia os demônios que conseguiam passar pelas bruxas, a adaga
enfiando nos corpos sem pelo e rasgando a carne quase murcha. Conseguia
ainda sentir os vampiros de Domenico se aproximando e já podia ver mais
demônios caindo ao lado leste da floresta, onde o irmão comandava o
ataque. Sentindo-se mais confiante com aquilo atacou, os olhos fixos nos
Altos que estavam parados do lado oposto da clareira, como se
aguardassem as ordens de Igrik.
Este olhava para a Coroa Vermelha com uma fúria visceral. Arsene
podia senti-lo, a frustração diante do poder de Lymena, que poderia contê-lo
caso se aproximasse.
Os lábios da rainha estavam ficando pálidos… Ele sabia que a
companheira estava em um plano diferente dos outros, sem saber o que se
passava ao redor. Aquilo a deixava extremamente vulnerável, e só podia
contar com ele para protegê-la e preservá-la.
Igrik desmontou do cavalo e, num ato de coragem, deu alguns passos
à frente, enquanto os demônios caíam em volta. As bruxas tentaram, mas
não conseguiram atingi-lo. A escuridão o acompanhava, fazendo com o que
o gelo se tornasse ainda mais espesso sob seus pés e a claridade da lua
recuasse.
Arsene ficou tenso com a aproximação do inimigo. Escutou um grito
feminino, mas não se deu o direito de ver quem havia sido atingida, já que
os olhos do Alto demônio estavam sobre Lymena. Ergueu a adaga, pronto
para defendê-la.
Contudo, foi uma flecha cortando a clareira que atingiu o ombro de
Igrik, fazendo-o recuar, surpreso. Arsene procurou o responsável, mas não o
achou. O demônio fez uma careta e, circulando o cabo com os dedos,
arrancou a flecha do próprio corpo. Sangue desceu pela ferida, mas isso
estava longe de ser algo capaz de atrasá-lo.
Outra flecha voou e encontrou o peito dele, fazendo-o parar. Igrik
respirou fundo, surpreso com a ousadia de alguém tentar enfrentá-lo.
— Eu achei que você não seria tola de vir até aqui… — Ele arrancou
a segunda flecha do peito e cuspiu o sangue que lhe inundou a boca. —
Princesa Adhara.
O nome pareceu viajar pela floresta e os demônios menores pararam
de atacar. As bruxas ficaram a postos, mas os Altos já não tinham interesse
pelas filhas de Atman. Lymena abriu os olhos e arfou, acordando do estado
de hipnose. Arsene estava ao lado dela para ampará-la, mas seguiu o olhar
da companheira, observando o outro lado da clareira.
Foi quando uma garota apareceu por entre as árvores, o arco nas mãos
e a flecha tensa na corda. Os olhos verdes estavam cobertos por
determinação e Arsene sabia que ela soltaria a terceira flecha caso Igrik não
recuasse.
Precisava admirar a sua coragem. As mãos dela nem mesmo tremiam,
firmes para atacá-lo. Infelizmente, Adhara não podia fazer mais nada para
que recuassem.
Um homem apareceu atrás dela e Arsene viu o rosto de Igrik ser
tomado pela raiva. Zephyr não tirou os olhos do Alto quando se postou ao
lado de Adhara, um sorriso cruel nascendo em seus lábios enquanto o outro
rangia os dentes.
— Se esconder atrás do poder de alguém que deseja matá-la… — Ele
provocou a princesa e Adhara puxou ainda mais a corda. — Típico da
covardia humana.
A flecha voou e acertou o outro ombro, fazendo-o recuar. A princesa
deu o seu recado, mas Igrik sabia que ela não poderia fazer muito mais que
aquilo: atrapalhá-lo.
— Adorável… — Ele arrancou a outra flecha e a jogou na neve. —
Sei que seu bicho de estimação não me deixará tê-la… — provocou Zephyr
com aquilo. — Olhe para suas terras, princesa… — Gesticulou em volta,
com visível escárnio. — Não está satisfeita com a quantidade de sangue que
tem nas mãos? — Quando Adhara não respondeu, ele sorriu. — Vamos ver
como você vai lidar com a morte de mais alguns.
Igrik olhou para os Altos e isso foi o suficiente para os demônios
desmontarem de seus cavalos. Eles começaram a se aproximar, as criaturas
menores voltando a investir contra as bruxas, que se defenderam como
podiam, surpresas em como os demônios pareciam descontrolados e muito
mais ferozes sob a proteção dos Altos.
— Não…
A voz fraca da princesa foi a última palavra que Arsene ouviu antes
do ataque mais poderoso do submundo tomar toda a clareira.

Adhara puxou mais uma vez a corda, mas sentiu dois braços fortes em
volta do seu corpo. Zephyr a arrastou para trás, na tentativa de se afastarem
da clareira, deixando-a imobilizada. Ela se debateu, mas o aperto dele era
forte.
— Me solta! — gritou com raiva.
Ela não queria ver, mas à medida que os demônios tomavam os
campos, mais bruxas caíam, mesmo que muitas criaturas também
morressem no processo. A neve que cobria a clareira estava vermelha,
numa mistura de sangue sagrado e escuro. As mulheres morriam, mas
algumas conseguiam rasgar um número surpreendente de demônios junto.
Ao longe, homens pareciam lidar com uma batalha diferente, onde
demônios maiores tentavam avançar, mas pereciam sob suas lâminas.
Adhara reconheceu Videric em meio àquele banho de sangue, o
vampiro coberto do líquido escuro, os olhos vidrados enquanto cortava o
maior número de monstros que conseguia.
Lymena a olhava, mas precisou desviar a atenção quando sentiu os
Altos se aproximarem. A princesa sentiu a energia da bruxa e um poder
incalculável voltou a varrer a clareira, fazendo monstros caírem e os Altos
pararem de avançar. Ela conhecia aquilo, foi o mesmo poder que barrou a
entrada de Zephyr nas Florestas Brancas.
A Coroa Vermelha detinha boa parte da energia de Atman dentro de
si, mas usá-la tinha um preço e Adhara sabia o que aconteceria em seguida.
Viu Lymena fechar os olhos e os Altos recuarem um pouco, como se
uma barreira invisível tivesse sido levantada. Notou a preocupação do
companheiro dela enquanto a rainha perdia a cor, um filete de sangue
descendo pelo nariz e escorrendo pelo queixo. Os olhos vermelhos de
Arsene desviaram dela por um breve momento para encarar Adhara, ainda
contida por Zephyr.
Ela tentou sair do aperto do Elemental, mas não conseguiu. Era
injusto… Aquilo tudo era injusto demais. Estava inalcançável para cada
criatura inimiga daquela clareira, por estar ao lado de Zephyr, mas seus
aliados estavam sendo mortos por isso… sem contar os sulistas, que já
haviam virado carne podre.
— Adhara… — Ela escutou uma voz maliciosa. — Não está satisfeita
com a quantidade de sangue que tem nas mãos?
Gritou. De raiva, desespero e tristeza. Sentiu a dor do seu povo no
corpo, bem como a das bruxas que caíam. Sentiu o ódio dos vampiros e o
poder de Lymena que se entregava ao máximo. Sentiu o amor de Arsene
por aquela bruxa, assim como a tristeza da mãe que alcançava o Norte.
Seu corpo tombou, mas foi contido pelo caído, que a levantou. Uma
mão fria foi até seu pescoço e a obrigou a olhar aquilo tudo.
— Está vendo? — A voz cruel de Zephyr chegou aos seus ouvidos e
lágrimas desceram pelo rosto dela. Tinha acreditado que ele fosse fazer algo
para mudar aquela batalha. Quanta ilusão… — Eu posso ajudá-la, Adhara.
Você só precisa dizer as palavras.
Mais bruxas tombaram, o sangue manchando a neve. A princesa já
não suportava mais ver a neve tingida de vermelho, os vilarejos destruídos.
Ela estava exausta com choros de crianças e sofria com a fome do seu povo.
Fechando os olhos, sentiu as lágrimas deslizarem pelo rosto e disse as
palavras que Zephyr tanto queria ouvir, que a tornavam fraca, mas
salvariam o seu povo.
— Sim… — A mão dele afrouxou no pescoço dela. — Você tem meu
consentimento para pegar Aelua. — Ele a deixou e Adhara caiu ajoelhada
na neve, as lágrimas agora livres. — Minha alma é sua.
O clarão não a deixou enxergar mais nada.
CAPÍTULO 28

Ele quase não acreditou quando pisou novamente em Atman, seu


calvário por séculos, o plano que jurou nunca mais voltar quando conseguiu
fugir. Agora, as botas imundas de barro e sangue pisavam em uma grama
verde e fofa, o aroma podre de cadáver havia dado espaço para a brisa
adocicada das flores e das árvores. E o sol… Zephyr não sentia o calor dele
desde que se embrenhou no Sul.
Fechou os olhos, dando-se um tempo para apreciar aquelas terras, tão
diferentes da que estava antes de Adhara dar o consentimento que ele tanto
buscou.
As palavras da princesa ainda estavam em sua mente, podia até
mesmo senti-la na língua, doce como uma oferta irresistível.
Minha alma é sua.
Zephyr deu um passo à frente e a claridade do dia foi substituída por
nuvens carregadas, o vento forte varreu a floresta e algumas folhas
ressequidas grudaram em seu gibão de veludo. Atman sentia sua presença,
dizendo que não era bem-vindo. Na verdade, ele nunca havia sido, mas
voltar ali era como profanar as almas mais uma vez, tomar o que Atman
tinha de mais precioso.
Aelua.
Andou pela floresta sentindo o aroma de flores, o som tímido de água
correndo, avisando que estava próximo de um riacho. Lembrou-se dos lagos
congelados de Dhárg e como eram traiçoeiros em engolir os humanos.
Tentou não pensar muito no mundo corpóreo, já que tinha ali um desejo em
mente e precisava seguir adiante.
A energia dela era como um convite, um rastro para que a
encontrasse. Foi o que Zephyr fez, com passos determinados, percorrendo a
floresta. Encontrou-a em frente a uma árvore de galhos vermelhos, repletos
de flores com pétalas brancas. Fez uma careta quando reconheceu as pésias
das malditas bruxas.
Aelua tocava a flor com delicadeza, mas parou o gesto quando sentiu
ele se aproximar.
— Eu me perguntei quando voltaria…
A voz delicada viajou pela floresta e Zephyr sentiu o coração acelerar.
Aquela alma… a energia dela era forte o suficiente para deixá-lo louco.
Precisou se controlar para não avançar em Aelua. A excitação tomava o seu
corpo, deixando-o desconfortável. Sua boca estava seca e o relicário sobre o
peito acordou assim que sentiu sua pureza, as almas que estavam ali dentro
parecendo implorar por ajuda.
— Consegui o consentimento da sua humana… — sussurrou sem
saber por que realmente o estava fazendo. — Sei que não pretende dificultar
o desejo de Adhara.
Aelua tocou uma última vez a flor de pésias e finalmente se virou,
olhando-o. Zephyr sentiu as pernas trêmulas. Em Atman, as almas possuíam
aparências diferentes dos que representavam, mas com ela aquilo não
acontecia. Era igual a humana que estava ligada.
O mesmo rosto o observou com bondade nos olhos verdes. Um
sorriso jovial percorreu os lábios cheios e rosados de Aelua, enquanto os de
Adhara estavam secos quando ela os abriu para dar o consentimento.
Ela se aproximou e a brisa fez o cabelo ondulado dançar. Zephyr já
havia passado as mãos naqueles fios, os puxados para que a dona dele o
olhasse. Assim como havia sentido aqueles lábios nos seus, matando sua
fome…
O aroma de peônias o atingiu de uma vez e ele caiu de joelhos, a
verdade o tomando por inteiro. Percebia ali que era um tolo. Nunca
conseguiria trancafiar Aelua no seu relicário. Prendê-la seria o mesmo que
matar Adhara. Sentir a bondade da princesa findar era o mesmo que cobri-la
com escuridão.
A jovem que tanto queria o bem para o povo e que fez de tudo para
salvá-lo. A princesa que descobriu quem Zephyr era e decidiu não se
afastar, que o tocou com bondade como ninguém nunca havia feito. Ele
conhecia Adhara, sentia aquela pureza que o corrompeu, a ponto de Zephyr
libertar o próprio poder para protegê-la.
E quando deixou sua maldade fluir, percebeu que, mesmo Adhara
bebendo daquela energia perversa, não foi ela quem se afogou na sua
essência, mas sim ele quem engoliu tudo que lhe foi ofertado em troca.
Com isso, abriu-se à bondade dela, mergulhou ali e se deleitou com tudo.
Adhara o mudou. E por isso ele a amava.
O Elemental a havia deixado no mundo corpóreo. Sozinha e sem
proteção. Para satisfazer um desejo egoísta que nem mesmo sabia se ainda
existia. Porque já tinha tudo quando estava ao lado dela.
Uma mão delicada tocou o seu rosto, fazendo-o fechar os olhos.
— Não sofra… — A voz de Aelua era compassiva como apenas a da
sua humana seria. — Adhara fez uma escolha, cabe a você fazer a sua.
Os dedos dela acariciaram os cabelos escuros de Zephyr e aquilo o
fez estremecer. Ele já havia feito sua escolha, mas ainda não tinha coragem
de dizê-la em voz alta. Com relutância, levantou-se e a observou. Ela
inclinou a cabeça para encará-lo e o Elemental não suportou ver aqueles
olhos verdes carregados de bondade, algo que nunca mereceu.
— Preciso voltar… — sussurrou. — Adhara precisa de mim.
Aelua sorriu e assentiu. Zephyr fechou os olhos, concentrando-se para
se desintegrar daquele plano. Aquela seria a última vez que estaria ali,
apesar de não sentir o corpo sendo puxado para o mundo corpóreo. Abriu os
olhos e uma vertigem estranha tomou sua mente. Cambaleou e olhou para
ela, confuso. Algo não estava certo e a alma de Adhara parecia saber o
motivo.
— Não consigo…
— Atman não quer deixá-lo voltar… Toda decisão tem um preço.
Zephyr sentiu o chão ruir sob seus pés. Não podia estar preso ali,
naquele plano maldito que o deixou cativo por tanto tempo e agora o
impedia de proteger a única pessoa que amava.
Olhou para Aelua, buscando respostas, mas percebeu que a alma nada
diria enquanto não fizesse a pergunta em voz alta.
— E qual seria?
A alma desviou os olhos dos dele e os correu pelo peito largo,
parando no relicário. Zephyr o tocou e o objeto brilhou, implorando por
ajuda.
Não…
— Deixe que as almas voltem para Asteria, Zephyr.
— O relicário é minha essência…
— Sua essência é onde seu coração está. — Aelua foi firme com a
mensagem. — E nesse momento ele está no mundo corpóreo, sofrendo ao
lado de pessoas que lutam por ela.
Zephyr engoliu em seco. Sentiu-se tolo. Renunciaria a tudo o que
construiu desde que tomou a decisão de descer para o mundo corpóreo e
vivê-lo de forma diferente da dos irmãos. Desistiria de deter uma alma
única, fruto do seu desejo. Abriria mão de ser quem era.
O relicário estremeceu assim que tomou sua decisão.
Fechou os olhos, conduzindo o poder que possuía para o fluxo
contrário ao que estava acostumado. As linhas do seu corpo, uma penitência
que carregava consigo desde que começou a colecioná-las, arderam em
fogo vivo quando o poder fluiu por elas, indo até os braços e escapando de
seus dedos.
O relicário brilhou e a luz ofuscou toda a floresta. Sentiu o vidro se
estilhaçar e, com isso, almas das mais diversas formas escaparam. Zephyr
pôde sentir cada lamento, cada esperança, cada grito de dor que elas
liberavam. Algumas foram direto para Asteria, desintegrando-se no vazio,
os humanos que representavam há muito mortos no mundo corpóreo.
Outras viajaram para longe, a fim de se recuperarem de um tempo longo
demais em meio à escuridão.
O caído sentiu-se fraco depois que o relicário parou de brilhar e
pousou em seu peito, parecendo uma joia comum.
Respirou fundo, sentindo ânsia de vômito, cambaleou. Foi amparado
por braços delicados. O aroma de peônias o fez ficar calmo, pousando o
rosto no ombro de Aelua, enfiando o nariz nos cabelos ondulados. Depois,
foi surpreendido por lágrimas quentes que se derramaram do próprio rosto,
molhando o tecido do vestido dela.
Nunca havia chorado, mas sentiu o peso de todos os sentimentos que
aprisionou por todo aquele tempo. O amor… Ele teria que se acostumar
com o amor. Era forte, ousado e o drenava. Amava aquela alma que o
abraçava como uma forma de alento, assim como amava a princesa que ela
representava.
— Vá até Adhara — Aelua instruiu. — E mude o curso do mundo
corpóreo.
Lábios delicados tocaram os seus e Zephyr sentiu a vertigem que
tomava sua mente sempre quando ele viajava por entre planos. Depois,
quando aquilo tudo parou e abriu os olhos, o que encontrou estava longe de
ser a paz e tranquilidade de Atman.
CAPÍTULO 29

As flechas haviam se esgotado, os corpos se aglomerando ao redor de


Adhara. Em meio ao caos, era impossível de distinguir se eram de
demônios, vampiros ou bruxas.
O sangue era tão abundante na clareira que a presença da neve sob
seus pés era quase imperceptível. As botas estavam maculadas de barro e
sangue enquanto ela perambulava, agindo de forma instintiva, em busca de
qualquer criatura a quem pudesse cravar sua adaga.
Ao seu lado, Videric não permitia que os demônios se aproximassem,
mas a princesa sentia que estavam perdendo espaço. Arsene, cada vez mais
próximo, tinha a atenção voltada à proteção da companheira, que estava
imersa na própria força. Os demônios estavam mais comedidos porque a
Coroa Vermelha os impedia, mas o submundo os encurralava, avançando
lentamente.
De repente, a lua mudou de lugar no céu e um vento gelado percorreu
a clareira. O chão pareceu estremecer e algumas árvores tombaram. Adhara
rasgou um demônio com a adaga, mas não conseguia enxergar mais o
sangue pintando a neve quando a escuridão varreu o lugar, engolindo a
todos. Os demônios pararam de atacar e guincharam, enquanto a princesa,
assustada com aquilo, procurava a origem daquele poder estranho.
O corpo de Lymena tombou no chão de repente, caindo na grama
como se estivesse morta.
Adhara ouviu Arsene gritar e ir de encontro à companheira. A
barreira que os protegia ruiu, mas os demônios ainda hesitaram em se
aproximar. A jovem olhava para aquilo, ainda sem entender o que estava
acontecendo…
Até olhar para o outro lado da clareira.
Um garanhão preto estava parado ao longe, montado por uma garota
de cabelos dourados e um homem de aparência bela, que segurava as
rédeas, instigando o animal. Ele andou pela clareira com calma e, à medida
que se aproximava, Adhara procurou entender aquela energia sentida por
toda a clareira.
Era a mesma que os Altos carregavam, mas possuía um requinte e
uma perversidade que iam além.
O garanhão parou próximo de Arsene, que tinha Lymena nos braços,
o rosto pálido e o corpo imóvel. Os olhos escuros do homem observaram a
Coroa Vermelha por um tempo e depois correram pela clareira.
Uma voz poderosa saiu dele, dando o comando em um idioma que
Adhara não entendeu. Como resposta, os demônios guincharam em dor, as
costas se curvando em uma espécie de reverência e, com certa relutância,
recuaram e sumiram por entre as árvores.
A princesa olhou para aquele homem com medo enquanto
desmontava do garanhão, ajudando a garota que o acompanhava a fazer o
mesmo. Esta correu em direção à Coroa Vermelha, já abrindo uma bolsa e
retirando uma série de frascos.
— É Merik... — A voz de Videric soou ao lado dela, fazendo Adhara
pular, assustada. — É o Sombrio do submundo.
— Sombrio?
— Uma espécie de rei. Como seu pai.
Adhara continuou o observando e entendeu a beleza que havia
enxergado nos traços do desconhecido, a mesma que os Altos carregavam.
Merik varreu a clareira quase vazia com os olhos escuros, como se
procurasse algo ou alguém. Os Altos ainda estavam em posição de ataque,
mas o Sombrio encarou apenas Igrik, que o fitava com raiva.
— É um prazer revê-los. — Merik debochou. — O que ele prometeu
a vocês para estarem aqui? — Desviou a atenção para os outros.
— Todos estão fartos de terem apenas uma parcela do que você
possui.
— O que conquistei é meu por direito — Merik retrucou sem alterar o
tom de voz. — E, julgando pela covardia de não terem sequer pedido para
sair do submundo, creio que nenhum de vocês conseguiria deter o poder do
trono de obsidiana sem perecer no caminho.
Com aquele insulto, conseguiu atingir o ego dos Altos, que ficaram
furiosos. Um deles deu dois passos à frente, mas parou quando Merik
enfiou a mão dentro da capa e retirou dali uma adaga. A lâmina brilhou
assim que a claridade da lua a encontrou.
— Quem será o primeiro?
Adhara não sabia qual o poder aquela arma detinha, mas ao julgar a
forma como os Altos mostraram-se reticentes diante dela, pela primeira vez
desde que entraram naquela clareira, tinha certeza de que poderia fazer
alguns estragos. Igrik não recuou, apesar dos outros demônios
permanecerem parados.
— Você nunca mereceu o trono, Merik. Caminha pelo mundo
corpóreo como se fosse humano e quer dar ordens ao submundo?
Adhara esperou a resposta do outro, já que nos lábios dele nasceu um
sorriso cruel, os olhos ainda mais escuros, como se a mais densa escuridão
os habitasse.
— Venha pegar o que quer, Igrik,
O Alto não fez o Sombrio esperar. Correu em sua direção e Merik
avançou. A princesa, perplexa, não conseguia entender o que estava
ocorrendo. A escuridão, de repente, envolveu a clareira, cobrindo a lua com
um tom avermelhado.
Igrik, em uma reviravolta chocante, deixou sua espada cair e
substituiu-a por garras que lhe brotaram dos dedos. Íris escuras tomaram
conta de seus olhos e os rostos de ambos se deformou à medida que
começaram o ataque, arrancando sangue um do outro. Foram
dramaticamente engolidos pelas sombras dançantes que os rodearam,
impedindo que qualquer um pudesse acompanhar o ocorrido.
— Merda... — Adhara escutou Videric grunhir. Antes que ela pudesse
observar mais daquilo tudo, ele a içou para o colo, afastando-a daquela
batalha.
Arsene fez o mesmo com Lymena e a garota loira os acompanhou,
preocupada com a Coroa Vermelha. As bruxas usaram as árvores como
proteção e nem mesmo os vampiros tiveram coragem de se aproximar
daquele embate. Adhara escutava vez ou outra rugidos, percebendo entre os
vislumbres que os dois se transformaram em algo que parecia bestial, os
rostos desfigurados como que saído dos piores pesadelos. Era algo
aterrorizante, mas que a princesa não conseguia tirar os olhos.
Igrik caiu na clareira depois de um tempo e Merik permaneceu em pé.
Ele não segurava a adaga e a princesa se perguntou se a havia perdido. Os
traços do rosto dele voltavam ao normal, mas os olhos ainda estavam
cobertos por um véu negro. O Sombrio olhou para os Altos, que
observavam o decorrer da luta, excitados com todo o sangue, como animais
famintos por violência.
— Voltem para o submundo. — Merik deu a última oportunidade
para eles, a voz poderosa e estranha reverberando pela clareira.
— Por lei, os Altos precisam acatar as ordens de Merik. — Videric
explicou para Adhara o que estava acontecendo. — O poder do trono de
obsidiana os faz serem fiéis.
— Não voltaremos de mãos vazias, Merik. É injusto. — Um Alto
disse em um tom de voz autoritário. — Um Sombrio não pode conter a
maldade do submundo sem alimentá-lo.
Era o mesmo demônio que havia confrontado Zephyr perto do lago
congelado. Adhara lembrou-se da ameaça dele, dizendo que a faria implorar
para entregar a própria alma depois de experimentar a real tristeza do
submundo. As palavras deixaram suas pernas trêmulas e ela arfou quando
os olhos verdes dele correram pela área, focando-se nela.
— Me entregue a garota e deixaremos o mundo corpóreo.
Merik virou em direção a Adhara, o véu escuro havia deixado os
olhos, mas isso não a impediu de ver a maldade que havia ali. Ela percebeu
que o Sombrio analisava a proposta. Deu um passo à frente, fazendo-a
recuar. Assustou-se quando a garota loira se aproximou.
— Você não vai fazer isso. — Apesar de delicada, parecia ter grande
influência sobre Merik, que recuou automaticamente. — A Coroa Vermelha
nunca permitirá.
Ele sorriu, mas a desconhecida parecia indiferente.
— A Coroa Vermelha está desacordada. E não é o meu amor por você
que me impedirá de entregá-la ao submundo.
— Mas eu vou. — A voz ecoou pela clareira e Adhara sentiu as
pernas trêmulas quando olhou para trás e o viu.
Zephyr estava parado, próximo às árvores, observando tudo com
atenção. Sem saber como agir, ela tentou na mesma hora se aproximar dele,
mas foi impedida por Videric. O Elemental notou a mão do vampiro a
tocando e uma expressão sombria lhe percorreu o rosto.
— Solte-a.
Adhara precisava admirar a coragem de Videric, que não recuou
diante da ordem. Zephyr andou calmamente pela clareira, parando próximo
de Adhara. Ela sentiu a energia dele, familiar e convidativa, quase sem
acreditar que estava ali, enquanto ainda permanecia inteira. Sentiu-se tola
por reagir àquela energia, lembrando que há pouco tempo ele havia
mostrado que apenas sua alma lhe interessava.
— Você não irá levá-la ao submundo, Merik. — O Sombrio encarou o
Elemental caído, o único ali que era mais poderoso do que ele. Pareceu
então avaliar quais opções tinha. Zephyr voltou os olhos para os Altos que
estavam ali. — Creio que vocês estão sem opção. Ou somem do mundo
corpóreo e voltam para onde nunca deveriam ter saído… ou se depender de
mim, nunca mais terão para onde voltar.
Ele tirou o relicário do pescoço e o jogou na neve, aos pés de Merik.
O Sombrio fitou aquele objeto e, mesmo que parecesse inacreditável,
entendeu o que estava ocorrendo ali.
— A fenda está se fechando. A cada momento que passarem aqui,
estarão assinando o fim da realeza do submundo.
Adhara olhou para o relicário e arfou. Os Altos também o fizeram,
ficando furiosos com o que viam. O objeto tinha perdido o brilho
costumeiro, porque aquilo que o alimentava já havia sido liberto. O brilho
da prata era fraco contra a neve da clareira.
Merik quebrou a fenda que separava os mundos, por amo. Um
sacrifício permitiu que os véus dos mundos não existissem mais. Apenas
outro, de igual teor e poder, poderia fazer a fenda se fechar. Era o que
Zephyr havia feito, num gesto de igual sentimento.
Como criaturas escorraçadas, os Altos deram as costas para a clareira
e correram até os cavalos. Zephyr acompanhou cada um com o olhar.
— Vai permitir que fujam? Ou posso exterminá-los? — A pergunta
foi direcionada a Merik.
— Todo plano precisa de equilíbrio. — Merik respondeu, observando
os Altos se afastarem. — A realeza do submundo controla os demônios,
assim como o poder do trono de obsidiana controla a realeza.
O chão estremeceu e a escuridão recuou, fazendo com que os Altos
sumissem entre as árvores. A lua voltou a projetar parte da claridade sobre a
clareira. Os olhos escuros de Merik desviaram de Zephyr, dirigindo-se ao
demônio que se levantava do chão para fugir. O Sombrio correu na direção
de Igrik, mas este o golpeou com uma faca e arrancou sangue. Merik chiou,
mas o braço dele foi rápido quando alcançou o pescoço do inimigo, o
impedindo de ir, imobilizando-o.
— Você ainda tem um débito por aqui. — Sem pensar duas vezes, o
Sombrio ergueu a adaga, que vibrou por poder ao ver que seria usada. —
Estou cansado de adiar isso. — A lâmina atingiu o peito de Igrik e dessa
vez o ferimento pareceu causar dor.
A energia fluiu do ser, parte dela atingindo Adhara, que caiu de
joelhos diante de toda a maldade que aquele demônio carregava. Foi
amparada pelos braços fortes de Zephyr, que veio em seu auxílio. Sem
pensar muito, encolheu-se naquele corpo que lhe oferecia proteção,
enfiando o rosto no peito largo ainda cheio de linhas escuras, estranhando a
ausência do relicário e o seu brilho, que sempre estiveram presentes.
Um clarão rasgou a colina, fazendo a escuridão recuar. A princesa
sentiu os braços de Zephyr estremecerem, por isso desviou o rosto para ver
o que estava acontecendo. Viu um círculo de luz se aproximar. Ainda não
conseguia enxergar o que estava ali, mas notava vultos claros em meio
àquela luz, que se aproximaram dos dois. Só então pararam.
Adhara respirou fundo quando escutou uma voz limpa e autoritária
ressoar.
— Muito bem, irmão. — Havia bondade e admiração naquela voz. —
Achei que seria tolo o suficiente de dar as costas para a única oportunidade
de voltar para casa.
Os outros observavam aquilo, sem sequer acreditar no que viam. A
princesa não entendeu o poder que sentia, até descobrir que a luz que
observava era, na verdade, alguém que vinha do mesmo mundo que Zephyr.
Alguém divino.
Ela sentiu os braços dele a apertarem.
— Estou onde devo estar. Onde quero estar…
Adhara podia jurar que sentiu o sorriso do outro, mas não pôde
afirmar, já que era impossível ver seu rosto. O clarão se afastou e foi em
direção a Merik, que aguardava com certo receio o que aquele Elemental
teria para lhe dizer. Mas o Sombrio não era o objetivo final da divindade,
que se virou para o corpo tombado no chão, a adaga ainda no peito. Com
um puxão, a lâmina foi retirada da carne do Alto demônio e Igrik cuspiu
sangue, uma palidez estranha tomando conta do seu rosto sempre belo, os
lábios se arroxeando.
— Quanto a você, pelo que fez para desviar o curso natural dos
planos, cabe a mim amaldiçoá-lo com o que mais teme…
O poder de Igrik foi minguando e a escuridão recuou em seu corpo,
deixando-o vulnerável. Ele gritou, como se a própria vida estivesse se
esvaindo de si. O poder do submundo era tudo o que um demônio tinha, era
seu companheiro e guia. E aquilo, naquele momento, o deixava.
Tentou se levantar para fugir, o sangue empoçando onde a ferida
estava, mas cambaleou quando sentiu a fraqueza de seu corpo, tornando-se
quase mortal.
— Asteria tira os seus poderes e o direito de voltar para o submundo.
Agora vagará pelo mundo corpóreo, e só terá de volta o que estima quando
entender o que rege todo o equilíbrio dos planos: o verdadeiro amor.
O Elemental parecia ter dado uma sentença de morte para o Alto
demônio, que olhou horrorizado o ferimento, cheio de dor, sem conseguir se
recuperar como normalmente conseguiria. Colocou a mão sobre o
machucado e abriu a boca para deixar o sangue escapar. Lançou um último
olhar para Merik, cambaleando pela clareira, sumindo entre as árvores.
O ser de luz permaneceu por um tempo ali, para logo sumir num
clarão, cegando todos que observavam a cena. Lymena começou a tossir
assim que a clareira ficou vazia, como se buscasse ar depois de um longo
tempo submersa num lago congelado. Arsene olhou para a companheira e a
pegou nos braços, içando-a com facilidade. A garota loira foi de encontro a
Merik, que a observou com certo receio.
Adhara, ainda nos braços de Zephyr, começou a cambalear, sentindo
todo o cansaço consumir sua energia. Ele a impediu de cair, pegando-a no
colo. A jovem pousou o rosto no ombro dele, os olhos fitando o peito cheio
de linhas.
— O que você fez? — A pergunta tola saiu de seus lábios antes que
pudesse impedir.
— O necessário para tê-la de volta.
Ela não conseguiu responder, o cansaço a tomando por completo.

Naquele momento, Zephyr não suportava ver o rosto de Merik. O


sorriso que havia ali, naquele rosto, lhe dizia que ele não conseguiria fugir
do que o Sombrio tinha a lhe dizer.
Permaneceu onde estava, ainda observando a clareira cheia de corpos.
As filhas de Atman buscavam as suas, os rostos belos cobertos de sangue e
tristeza quando encontravam uma das bruxas caída na neve. Enquanto isso,
Domenico era obrigado a se afastar com o nascer do Sol se aproximando, já
que ele não queria perder mais vampiros. Foi embora sob os olhares de
gratidão de Adhara e de Lymena, que permanecia ao lado de um Arsene
preocupado, mas aliviado.
— Sabe que não poderei deixar os demônios menores vagando. —
Zephyr sussurrou antes de encarar Merik, que parecia triste com o destino
das criaturas. — Sei que são sua responsabilidade, mas a fenda está
fechada, e não as quero perambulando no mundo corpóreo. Adhara não
dormirá direito enquanto não souber que a última foi abatida.
O rosto do Sombrio foi percorrido por um divertimento estranho.
— Você tem minha permissão para matá-los. Afinal, não durarão
muito sem o poder do submundo os alimentando.
— Posso saber por que você está com esse sorriso idiota no rosto?
— Sabe, Zephyr... Desde que pisei por aqui, fiz uma descoberta: eu
buscava por algo nesse mundo, sem saber realmente qual era o meu desejo.
— Os olhos desviaram para a loira que ajudava Adhara a enfaixar o braço.
— Quando encontrei, rasguei os véus dos mundos e escancarei a fenda. Fiz
porque a amo. E você a fechou pelo mesmo motivo.
Zephyr abriu a boca para retrucar, mas descobriu que não tinha
argumento. Odiava Merik ainda mais por ele ter razão. O sorriso do
Sombrio fez com que quisesse engasgá-lo com a lâmina de Jyot.
— Atman está brincando com a gente.
— Me parece uma brincadeira de muito mal gosto. — Zephyr
respondeu sem conseguir se conter. — É uma maneira criativa dos meus
irmãos criarem uma tortura eterna pelo que fiz.
Merik se manteve calado. Não era segredo para ninguém que mesmo
amando, os dois carregariam a essência danosa deles pelo mundo corpóreo.
Merik era o Sombrio do submundo e teria o poder do trono pela eternidade,
assim como a perversidade de um Alto demônio o acompanharia para
sempre.
O modo como Alys o olhava naquele momento o fazia ter certeza
daquilo. A garota nunca se esqueceria de que ele não pensou duas vezes
antes de tentar entregar a princesa para os Altos demônios. Zephyr também
nunca se esqueceria, mas sabia que havia tomado aquela decisão guiado por
um poder maior, para tentar salvar quem amava.
Por outro lado, o Elemental ainda sentia o seu poder correndo pelo
corpo, mas a forma como o corrompeu nunca seria desfeita. Seu desejo por
almas, pelos sentimentos humanos e pelo que era único estaria sempre
dentro de si, mas passaria a ser saciado sempre que Adhara estivesse ao seu
lado.
— Bom... — Merik tirou Zephyr dos próprios devaneios. — Não
podemos fugir das nossas decisões. Ou da fúria delas.
Os dois encararam as garotas, juntas, próximas às árvores. A loira
ainda observava Merik, com uma intensidade que apenas aumentou à
medida que o Sombrio se aproximava. Já Adhara estava cansada demais
para ter qualquer reação.
Zephyr pegou-a no colo e depositou um beijo leve nos cabelos
embaraçados e sujos de sangue seco.
— Vamos. Vou levá-la para casa.
CAPÍTULO 30

Domenico fechou o pergaminho com cuidado e o selou com o sinete.


Já não sabia quanto tempo havia se passado desde que se sentou naquela
poltrona para escrever aos mestres do Conselho Vermelho.
Mesmo que a batalha que aconteceu no Sul tivesse findado sem
respingar no mundo humano, a notícia de que a clareira estava cheia de
corpos de demônios e coberta de sangue viajou por todos os vilarejos que
ainda se mantinham em estado de alerta. O Campo Sangrento ganhou esse
nome entre os humanos e logo os ouvidos dos vampiros foram alertados.
Havia recebido uma carta de Velaria, que foi sucinta. O clã Sacre
tinha sido um aliado de Domenico, por isso a condessa havia permitido que
os vampiros dele usassem os pequenos castelos para se recuperar da
batalha. Mesmo com o pouco alimento, Domenico tinha providenciado
humanos para que eles fossem alimentados.
A missiva que marcaria a reunião dos Nobiliatis ainda esperaria um
tempo, já que Lymena estava em recuperação dentro das Florestas Brancas,
chorando o luto pelas irmãs perdidas. Durante esse período, ele tinha visto
Arsene apenas uma vez depois da batalha. Sabia que o ruivo o tinha
visitado apenas como um sinal de respeito. O dever dele era para com a
Coroa Vermelha e não aos vampiros da Fortaleza. De qualquer forma, ele se
mantinha informado com as notícias que Videric lhe dava, vindas de Nyana.
Quanto à Merik, depois de matar Igrik, ou pelo menos traçar o destino
do Alto demônio que aterrorizou suas primeiras luas de reinado, decidiu se
enfiar na própria vila para ficar ao lado de Alys. Domenico sabia que nada
arrancaria o Sombrio dali tão cedo. O modo como a garota havia o afastado
depois que ele se dispôs a entregar Adhara para os Altos fez com que
ficasse louco, mas Domenico sabia que Alys era sábia. A jovem precisava
apenas entender o que Merik era, que nada mudaria a sua essência, mesmo
que o amasse. O mesmo que aconteceria com Adhara e Zephyr, em algum
momento.
— Acha que os clãs ficarão quietos por um tempo?
A voz de Gavin fez Domenico parar de encarar a carta selada e
olhasse para cima, encarando o braço-direito. Ele correu o dedo indicador
pelos lábios, uma mania que tinha quando pensava muito.
— Acho que teremos um pouco de paz no mundo corpóreo, desde que
o Elemental cumpra com sua palavra.
Zephyr havia levado Adhara para Heth e, com isso, conseguiu a
confiança do rei de Dhárg. Apesar da resistência ao ser traído pelo
conselheiro, este insistia em manter o caído por perto. Aquela parecia uma
atitude prudente. Domenico ainda precisava entender aquela dinâmica antes
de mandar espiões lá para coletar relatos.
Estendeu o braço, entregando a carta a Gavin, que a inseriu no bolso
interno de sua capa. O vampiro, com uma discreta reverência, retirou-se da
mesa e caminhou em direção à imponente porta.
— Gavin?
Ao escutar o chamado, o vampiro virou-se para o seu mestre,
aguardando as ordens como apenas um braço-direito faria. Mas naquele
instante Domenico estava um pouco cansado de dar ordens.
— Procure descansar. Acabou.
Gavin levou algum tempo para compreender as palavras de Domenico
e, de forma hesitante, concordou, deixando a sala pouco depois.
O mestre dos vampiros se acomodou na poltrona e suspirou. Os
membros do Norte poderiam desfrutar de um momento de paz, enquanto os
clãs do Sul ainda teriam que lidar com as repercussões do conflito. No
entanto, ele não estava preocupado com aquilo, considerando que nenhum
deles o havia auxiliado na referida batalha.
O importante era que havia acabado. Zephyr tinha selado a fenda e a
princesa Adhara estava protegida, bem como a caminhante. As peças do
jogo estavam se encaixando e o submundo estava novamente adormecido.
O fato era que um demônio amaldiçoado ainda andava pelo mundo
corpóreo…
Domenico rezou a Atman que ele perambulasse entre os humanos por
um bom tempo, e cada um dos seus dias fosse de agonia e sofrimento.
A Coroa Vermelha observava o pequeno vilarejo protegido pela
floresta. As árvores das pésias estavam no ápice da primavera, as flores
brancas desabrochando e enfeitando os galhos vermelhos. As pétalas menos
resistentes voavam com a menor brisa, criando um tapete branco no
gramado verde.
— Gostaria que você se preocupasse apenas com o ciclo das Florestas
Brancas. — A voz de Srala fez Lymena desviar os olhos das copas
carregadas de flores.
Os olhos da anciã-oráculo eram avaliadores e Lymena se incomodou
por um momento com a sabedoria que havia neles. Com Srala e Krida ao
seu lado, ela sabia que precisava sempre ser honesta. A Coroa Vermelha
havia voltado para as Florestas Brancas e as filhas de Atman estavam
aproveitando um momento de paz depois de chorar a passagem prematura
de parte do Coven.
— Não consigo senti-lo… — confessou.
— Igrik perdeu o poder quando tomou a decisão de mexer com o
equilíbrio dos mundos. — A voz de Srala era firme. — Você não saberá
onde ele está.
— Não gosto disso…
Quando Igrik ocupava o cargo de Alto demônio, Lymena conseguia
saber onde ele estava pela energia vil que emanava. Agora, tornou-se uma
incógnita. Vagando pelo mundo humano, ainda podia ser perigoso mesmo
sem o poder do submundo.
Mas a promessa dos Elementais fazia com que seu coração ficasse
menos inquieto. O demônio precisaria aprender a amar da forma mais
verdadeira possível para recuperar o que era dele. Lymena precisava
acreditar que isso seria impossível.
Uma mão cálida tocou seu braço e o aroma de Arsene foi sentido
quando o vampiro se aproximou. A presença dele a acalmava, fazendo a
cicatriz em seu ventre parar de latejar, aquela amarga lembrança que
carregaria desde que confrontou Igrik, nas primeiras luas do reinado.
Srala e Krida os deixaram sozinhos. Arsene se postou ao lado de
Lymena, acariciando os cabelos acobreados dela.
— Concordo com Srala. — A rainha observou os olhos vermelhos do
companheiro. Por Atman, como o amava… — Nem tente controlar o que
não pode.
Ele entrelaçou os dedos aos dela num toque reconfortante, mostrando
todo o amor que o vampiro sentia. Um sentimento que Lymena retribuía e
só crescia à medida que as luas passavam. Com Arsene ao lado, a Coroa
Vermelha era menos pesada e as decisões mais fáceis.
— Você é meu mundo, Lymena. — Ele a abraçou e a Coroa Vermelha
pousou o rosto no peito largo, sentindo o cheiro de canela e especiarias. —
Irei protegê-la sempre. E estarei ao seu lado até que faça a passagem.
Ela acreditou naquilo sem hesitar.

Adhara ainda não acreditou que estava fazendo aquilo. Seus pés
tocavam as pedras frias dos corredores do castelo com delicadeza, enquanto
ela respirava vagarosamente, como se a qualquer momento Gaut ou outro
guarda fosse cruzar o seu caminho e impedi-la de chegar aonde queria.
Conhecia aquele castelo tanto quanto a palma de sua mão.
Como as tochas não proporcionavam uma iluminação adequada para
o caminho, a princesa podia se mover pelos corredores de forma furtiva.
Isso foi o que pensou, até esbarrar no primeiro móvel de madeira,
provocando um som que ecoou pelos corredores.
Parou, aguardando a aparição de alguém, mas ao perceber que
continuava sozinha, alcançou a porta desejada. Com delicadeza, abriu-a e
adentrou o local.
Achou que o encontraria acordado, mas se surpreendeu ao vê-lo ainda
na cama. Adhara pensou em jogar algo nele ou fazer um barulho alto para
que Zephyr percebesse sua presença, mas decidiu se aproximar para
observá-lo melhor.
Ele estava nu.
Os cobertores escuros estavam jogados em parte da coxa, mas além
disso, toda a pele estava exposta. Adhara podia ler cada nuance daquele
corpo, acompanhando as linhas negras que tomavam os braços, parte das
coxas e se condensavam no peito largo, subindo para o pescoço. O relicário
já não existia, mas Adhara podia jurar que ainda sentia aquelas linhas
dançando no corpo dele. Por que ainda as tinha?
— Apreciando o que vê, princesa Adhara?
Ela pulou de susto, mas perdeu o equilíbrio quando a mão de Zephyr
a puxou na direção da cama, fazendo-a cair nos cobertores macios. O
Elemental subiu no corpo dela, os olhos escuros a fitando com certa
diversão, mesmo que ainda conseguisse ver a malícia presente ali.
Um sorriso de lado percorreu os lábios cheios e o humor dela piorou
muito quando percebeu que havia sido feita de tola.
— Você estava acordado esse tempo todo?
— Em minha defesa, estava dormindo… mas acordei quando abriu
minha porta. — Mexeu-se em cima dela e Adhara se conteve para não abrir
logo as pernas e recebê-lo. — Você é muito barulhenta.
Ela se remexeu e percebeu como estava excitado.
— Saia de cima de mim!
Apesar de estar ciente de que detestaria aquela situação, ele atendeu
ao pedido e se afastou, permitindo que ela se levantasse da cama,
estabelecendo uma distância entre os dois.
Zephyr era uma figura perigosa, cujos movimentos exigiam cautela,
algo que Adhara ainda estava aprendendo a lidar. Mesmo considerando o
fato de que era seu noivo.
A princesa não se lembrava muito da viagem até o castelo principal.
Estava cansada demais para abrir os olhos e a vertigem demorou a passar,
como se estar ao lado de tantas criaturas do submundo tivesse sugado toda a
sua energia.
Ela se lembrava de dormir no peito dele diversas vezes, protegida
pelos braços fortes e embalada pelos passos calmos do cavalo. Assim como
recordava de ter sido cuidada, quando água lhe era ofertada e cobertores
jogados sobre ela assim que paravam. Durante a viagem, o manto dele a
aquecia, junto ao corpo que há pouco observava.
A volta dela para o castelo fez com que Heth quase entregasse a coroa
para Zephyr e, mesmo que o pai ainda vivesse desconfiado de todos desde a
traição de seu conselheiro, deixou que Zephyr se aproximasse. Aquele foi o
pior erro que o rei de Dhárg podia ter cometido…
Adhara percebeu que assim como ela, todos se acostumaram com a
presença de Zephyr. Mesmo que não ficasse próximo, dando o espaço
necessário para entender todo o ocorrido.
Com o tempo, os ataques estavam ficando mais raros e as criaturas
deixavam de ser vistas em Dhárg, dando assim esperança ao povo sulista.
Quando Zephyr se ausentou por luas, alegando que viajaria para acabar de
vez com as criaturas, a princesa exasperou-se com a sua ausência, só
ficando aliviada quando ele retornou sem ter sequer um ferimento.
Era uma tolice temer por ele, já que os demônios nunca conseguiriam
alcançá-lo. Zephyr havia feito um extermínio naquele período, fácil e
prático.
Até aquele instante ela conseguiu esconder bem o que sentia… pelo
menos até o pai chamá-la para uma conversa em particular. Sem hesitar,
comunicou que lorde Zephyr havia pedido a mão dela e ele havia aceitado.
Primeiro, a jovem achou que era uma brincadeira de muito mau gosto. Sua
reação, na verdade, não foi nem um pouco condizente com o que pensava.
Percebeu que havia aceitado fácil demais, ficando um pouco ansiosa com a
possibilidade de ter Zephyr para si.
Aquilo só a deixou furiosa.
Isso foi antes de quase tê-lo acertado com uma flecha ao confrontá-
lo…
— Você não tinha o direito de fazer isso sem me consultar! — O arco
estava perigosamente voltado para ele e, mesmo que a seta tivesse passado
rente ao ombro, o sorriso prepotente dele fez com que Adhara puxasse a
corda mais uma vez.
— Isso é um sim? — Ela disparou como resposta, mas o miserável
era rápido, um dos inúmeros dons de ser uma divindade do mundo
sobrenatural. — Acredito que seja.
Por isso, ao encará-lo naquele momento, trancada no quarto com
Zephyr, não sabia o motivo de ter aceitado aquela loucura.
— Por que veio aqui? — Ele interrompeu seus pensamentos.
Adhara abriu a boca para responder, mas percebeu que não tinha
resposta.
— Eu… queria te ver.
A expressão de Zephyr desanuviou e ele aguardou o que a jovem
tinha a dizer.
— Você pode colocar uma roupa? — Ela soltou, querendo se
concentrar.
— Por quê? Existe algo aqui que já não tenha visto?
— Zephyr!
— Ninguém vai me escutar, pode ficar tranquila. — O sorriso
malicioso voltou ao seu rosto. — Seus pais ainda acreditam que é pura
como a primeira neve do inverno de Dhárg.
Adhara passou a mão no rosto para ver se realmente estava pegando
fogo. Respirou fundo.
— Não consigo pensar com você assim.
Depois dessa declaração ela sentiu aquele perigo adormecido que
Zephyr carregava em si escapando a sua volta. O fogo da lareira diminuiu,
mergulhando o quarto em uma semiescuridão. A energia dele começou a
brigar com a dela, como garras perversas a deslizarem pelo seu corpo,
acariciando-a até que Adhara se abrisse e o aceitasse.
— Pare com isso… Sei o que está fazendo.
Zephyr cortou a distância entre eles e parou o rosto centímetros do
dela. Foi quando a princesa lembrou quem realmente ele era. Não um lorde,
um homem adestrado que pedia a mão da princesa em casamento e
esperava para conseguir o desejado, mas sim uma divindade corrompida por
uma perversão incomum, que tomava o que desejava. Quando a encarava
daquela maneira, Adhara se transformava na presa que Zephyr sempre
caçava.
Ele se ajoelhou diante dela, as mãos indo até os tornozelos cobertos
por um vestido de veludo pesado.
— Parar com o quê, exatamente? — As mãos deles subiram e,
quando Adhara não fez nada para impedi-lo, chegaram até a parte de trás
dos seus joelhos. — Sabe quanto tempo não a tenho? Nem sinto o seu
corpo?
As mãos subiram um pouco mais e pararam nas coxas. Adhara
engoliu em seco.
— Quanto? — perguntou de forma tola.
— O suficiente para ter o direito de possui-la agora. — Deu então o
comando. — Tire isso, quero ver você.
Adhara levou algum tempo, mas ao perceber a crescente impaciência
dele, começou a desfazer as fitas do corpete apertado. Zephyr observava
cada movimento do tecido se alargando em torno da cintura dela, os dedos
deslizando pelas fitas, uma após a outra, até que a parte superior se abriu e
os seios se libertaram.
A princesa começou a erguer o vestido pelo corpo e ficou surpresa
com o controle que ele mantinha. Adhara podia sentir o olhar de Zephyr
passeando por cada pedaço de pele que era revelada e, quando ela deixou o
tecido finalmente escorregar, um sorriso triunfante brotou nos lábios do
Elemental.
— Ora… a princesa do Sul não gosta de usar nada por debaixo do
vestido, ou fez isso sabendo que viria propositalmente me ver?
Adhara não respondeu, olhando-o de cima e dando de ombros.
— Você pediu para que eu o tirasse…
Zephyr adorava aquela petulância nela. Os olhos verdes o olhavam de
cima, corajosos e desafiadores, fazendo com que seu pau começasse a
latejar. Ela não tinha noção do perigo e, por ser assim, aquilo a tornava
ainda mais saborosa.
Ele sorriu e correu as mãos pelos quadris largos, aproximou o rosto
entre as pernas dela e mordiscou a parte interna das coxas. Escutou-a
respirar fundo, mas sabia que ela estava despreparada para o que viria a
seguir. A língua mergulhou no sexo dela de uma vez, sentindo o gosto único
que possuía, invadindo-a sem pedir permissão, pegando tudo o que tinha
direito, sua excitação e essência.
Adhara gemeu e abriu as coxas para senti-lo melhor. Zephyr colocou
uma delas sobre o ombro, abrindo-a ainda mais, devorando tudo o que tinha
direito, tudo aquilo o que Adhara lhe ofertava. Enfiou então um dedo nos
lábios molhados e sentiu-a apertá-lo.
— Merda, Adhara. — Ele praticamente rosnou. — Eu poderia viver
entre suas pernas.
Zephyr percebeu o tremor e decidiu cessar a agonia. Levantou-se e a
acolheu em seus braços, enquanto Adhara o abraçava pela cintura. Sentiu a
intimidade dela, umedecida e pegajosa. Com um gesto ágil, a acomodou na
cama e se posicionou acima dela, como um predador após um longo
período de abstinência.
Ela o acolheu, pronta para tê-lo dentro de si. O Elemental pensou em
prolongar o momento, mas ao ver o sexo úmido dela, percebeu que não
conseguiria manter a sanidade caso prorrogasse mais um instante que fosse
para possuí-la.
Com apenas um movimento no quadril, ele a tomou, invadindo-a e se
afastando para fazer de novo, antes que ela pudesse se acostumar. Adhara
gemeu e tentou puxá-lo com as pernas, o que Zephyr permitiu por um
momento, antes de invadi-la novamente. Os movimentos tornaram-se quase
urgentes, enquanto ela correspondia a cada investida dele, as dobras
molhadas apertando o pau.
Ele enfiou o nariz nos cabelos ondulados, sentindo o aroma adocicado
de peônias. Depois, correu a língua pelo pescoço dela, o gosto de Adhara
era melhor do que qualquer alma que um dia desejou aprisionar. Tê-la ali
fazia com que o seu sabor se tornasse ainda mais intenso.
O que Atman diria ao saber que profanava um corpo tão puro em
busca do gozo? Zephyr havia experimentado incontáveis prazeres desde que
desceu ao mundo corpóreo, a fim de descobrir o melhor que aquele lugar
tinha a oferecer.
Fazer sexo com Adhara, naquele caso, era ainda mais prazeroso que
apertar o pescoço de um inimigo e ver o brilho sumindo de seus olhos,
melhor que sentir o lamento de uma alma quando o seu humano desistia de
lutar pela vida, mais excitante que sentir o poder de Asteria em suas veias.
Ele sentiu as unhas dela lhe arranharem as costas quando Adhara
arqueou o corpo em sua direção. O prazer a envolveu por completo,
preparando-a para gritar, mas ele a silenciou com uma mão enquanto a fodia
como um animal.
Zephyr mordeu um dos seios dela e sentiu o sexo pulsar, apertando-o
no processo. Depois, enterrou o rosto na curva do pescoço da jovem,
pensando que poderia perder a sanidade quando seu próprio prazer lhe
dominou. Mordeu o pescoço dela sem se importar se poderia deixar uma
marca, movendo o quadril algumas vezes depois que alcançou o clímax
dentro dela, diminuindo por fim o ritmo para recuperar o fôlego. Relutante,
ele retirou a mão da boca dela e afastou o rosto, observando-a.
Adhara estava corada e Zephyr sabia que teria em breve manchas
roxas pelo corpo, onde ele a mordeu e a apertou. Os vestidos sulistas fariam
um belo trabalho para escondê-las.
— Se gritasse meu nome, todo o castelo escutaria.
— Quem disse que eu o faria?
Ele soltou uma risada e mordeu o seio dela de novo, fazendo-a gemer.
— Desculpe por isso. — Os dedos acariciavam onde a havia marcado,
deslizando pelos mamilos endurecidos e fazendo o corpo dela responder
àquele toque. — Mas não consigo resistir quando os vejo.
— Você não consegue resistir a nada.
Ele sorriu, mas não respondeu à provocação. Sentia o pau pulsar
dentro do sexo dela e sabia que, se não se afastasse, não a deixaria sair
daquela cama. Continuou acariciando-a nos seios, subiu a mão pelo colo. O
toque foi para o pescoço, subindo mais um pouco, deslizando pelos lábios
cheios e rosados. Os mesmos de Aelua.
— Sua alma é igual a você — ele deixou escapar.
Ela não pareceu surpresa. Zephyr sabia que a princesa havia a
conhecido através dos sonhos. Foi a partir desse encontro que ela decidiu
fugir dele pela primeira vez. Esperava que não o fizesse de novo, apesar da
ideia de caçá-la ser extremamente excitante.
— Por que a deixou livre, Zephyr? — Adhara nunca o havia
questionado sobre aquilo. — Por que renunciou a todas as almas?
Ele demorou a responder, ainda acariciando o rosto dela quando o fez.
— Fiz o que foi preciso para tê-la de volta. Porque a amo. — Os seios
dela pararam de subir por um instante, como se ela perdesse o ar, mas
depois a acompanharam numa respiração acelerada. — Eu sonhei com
você… A conheci antes mesmo de descer para o mundo corpóreo. — Ele
fitou-a com atenção. — Soube que era minha desde que senti sua pele sobre
mim.
Adhara piscou algumas vezes.
— Você não pode me dizer isso enquanto está entre minhas coxas.
— Direi todos os dias da sua vida.
Ela se remexeu debaixo do Elemental, o pau dele começando a
acordar com aquele movimento.
— Vou dizer isso até que pare de ter medo … — Ele a impediu de
retrucar com um dedo sobre o lábio dela, pois sabia que negaria aquilo. A
questão era que podia sentir o medo de Adhara sempre que se aproximava.
Era um sentimento que qualquer outro humano teria ao confrontar o seu
poder, mas não sua princesa. Adhara precisaria aprender a lidar com aquilo,
aprender a amá-lo como era. — Até que pare de ter medo e compartilhe
desse amor.
Ele a observou, ficando surpreso em ver como o sentimento mais
puro fluía pelos olhos verdes da jovem.
— Eu já o amo, Zephyr.
Lágrimas rolavam pelo rosto de Adhara e ele delicadamente as
pegava com os lábios, saboreando cada uma. Até mesmo elas eram doces…
Zephyr sabia que se dedicaria inteiramente a ela, ansiando por sua
felicidade. Sonhava em vê-la percorrendo o Sul, testemunhando a
recuperação de seu povo. Almejava lhe ouvir a risada, observar a neve
acumulando em seus cabelos enquanto cavalgava. Ansiava por sentir a pele
dela estremecendo quando, na floresta, ele a desnudasse. Queria degustar de
cada emoção humana, não através da dor de uma alma aprisionada em um
relicário, mas através de cada nuance de vida que Adhara lhe revelaria.
E quando a morte humana a abraçasse, Zephyr voltaria para Asteria
para acompanhar Aelua até sua casa, a alma da mulher que amaria pelo
resto da sua existência imortal.
EPÍLOGO

Gwendolyn observava o pôr-do-sol único de Atman, acompanhando a


brisa da tarde que findava, dando espaço para uma noite calma. Estavam em
uma sacada, na casa em que as ancestrais viviam, as pedras claras
contrastando com a pele escura da antiga Coroa Vermelha.
Ao lado dela, Eliphas observava a filha com certo orgulho, por ter
acompanhado sua trajetória como rainha, passando depois a ser ancestral e
conselheira de Lymena.
— Sua humana teve coragem. Saberá como espalhar a bondade pelo
mundo corpóreo. — Gwendolyn sussurrou para outra alma que estava ali.
Aelua sorriu, assentindo. Ela tinha o mesmo semblante de Adhara
quando estava feliz, fazendo com que seu rosto se iluminasse. Mesmo
sabendo do desafio que a princesa do Sul enfrentaria, ela permanecia
serena, acompanhando toda a trajetória da humana no mundo corpóreo.
Sabia que a princesa lutaria contra a essência de Zephyr todos os dias
da sua vida, apesar do Elemental ter se redimido, ainda nutria a energia
escolhida quando abandonou Asteria.
— Adhara precisará aprender a amá-lo por completo — Aelua disse o
que estava em sua mente.
— E não será a primeira a fazer isso — Eliphas respondeu.
Os olhos correram pela distância, onde era possível vislumbrar uma
outra jovem, de cabelos dourados. Ela, em tempos passados, havia
enfrentando um enorme desafio para alguém que havia acabado de
compreender a própria essência. Alys estava grávida, carregando em seu
ventre um herdeiro de Merik, ainda incerta se a criança herdaria o poderoso
trono de obsidiana ou a bondade inata da mãe – uma questão que Atman
ainda não podia responder.
Apesar de tudo, decidiram conceder a si mesmos um momento de
tranquilidade, um tempo para observar a nova dinâmica do mundo corpóreo
que se desenrolava diante deles.
Uma mancha ainda andava por aquele mundo, mas as ancestrais nem
se importavam em saber como o Alto caído traçaria o próprio destino. Igrik
ainda teria muito a aprender com os humanos para correr o risco de ser um
incômodo para eles.
— Alcance as oráculos, Gwendolyn. — Eliphas pediu com delicadeza
e olhou a filha. — A Era das Filhas de Atman terminou. Agora o destino do
mundo corpóreo está nas mãos dos humanos e das mulheres poderosas que
vivem nele.
Gwendolyn apenas assentiu, orgulhosa da bruxa que agora portava a
Coroa Vermelha. Lymena acompanharia o Coven na melhor Era para as
bruxas, as Florestas Brancas ficariam em paz por vários séculos. Um
vampiro muito querido ainda estaria a postos caso as filhas de Atman
precisassem.
E as raças sobrenaturais continuariam convivendo em harmonia no
mundo corpóreo.
LEIA OUTRAS HISTÓRIAS DE
ATMAN!

Merik possuía os olhos mais negros que Alys um dia tinha visto em
um rosto humano. O cabelo era levemente ondulado e estava penteado para
trás em fios arrumados, o que deixava o rosto sem defeitos à mostra. Vestia-
se todo de preto e a palidez da pele ficava mais acentuada por causa das
cores escolhidas. O couro do gibão possuía um pequeno broche prateado,
com uma insígnia que ela não reconheceu, o único tom claro além da pele e
do anel que usava
Por mais que Alys já tivesse visitado vários lugares por todo o reino
— até mesmo na corte, acompanhada da tia —, aquele homem era bem
diferente dos que ela estava acostumada a ver. Era muito belo, mas gritava a
ela que representava o perigo do qual Alys fugia quando entrou naquela
taberna.

QUERO LER
Sibyl se lembrou da sensação que a engolfou quando pisou no chão
de mármore escuro. Nem mesmo enquanto dançava conseguiu esquecer o
suposto perigo que a rondava, a ameaça silenciosa que circulava por aquele
baile. Ao observá-lo, percebeu que a ameaça ainda estava presente e vinha
dele, de forma mais sutil, refinada e convidativa. Sibyl queria abraçá-la,
tocá-la como uma amante.

QUERO LER
Quando Domenico colocou os olhos sobre ela, percebeu que estava,
definitivamente, perdido. O aroma do sangue dela o atingiu como um soco
e fez suas presas descerem como há séculos não desciam. Gwendolyn
possuía uma beleza selvagem, indômita e perigosa. Com uma pele escura e
acetinada que parecia ser acariciada pela Lua, havia herdado o mesmo
cabelo cheio e encaracolado da mãe. No entanto, onde Eliphas tinha
escuridão nas orbes, os de Gwendolyn eram banhados em prata, o mesmo
tom dos fios.
A história da rainha que conquistou todos em "O Domador de
Bruxas" e como ela fez um vampiro puro-sangue cair de joelhos.

QUERO LER
OUTRAS HISTÓRIAS

Ele veio com a suavidade de uma brisa, mas o medo que o


acompanhava era inconfundível, turvo e gradativo. Sábio era o que não
tentava fugir. Tolo era o que não acreditava na lenda.
Svenja gritou. De dor, de prazer. Ela não soube ao certo. Ele tomou o
que era mais puro dela, roubou sua honra e não parecia disposto a entregá-
la de volta, mesmo que destruída.
"Me deixe mostrar o que um monstro como eu consegue fazer com
um corpo frágil como o seu.".

QUERO LER
Século XXV. O mundo é comandado por dois polos igualmente
dominantes: a Fé, com bispos famintos por poder, que se aproveitam de
uma religião distorcida, e a Ciência, na qual pesquisadores da robótica
injetam a inteligência em novas criações e precisam de limites. Um passo
grande e irresponsável é dado e a linha tênue que separa a união delicada
dos dois polos é quebrada. Nesse mundo, Annelise Mitchell é chamada
para voltar a trabalhar na Ciência e fazer o que faz de melhor, mas acaba
sendo convidada a participar de uma investigação extraoficial, que pode
envolver a segurança dela e das pessoas que estima. Além disso, depara-se
com uma criatura que faz todas as suas certezas entrarem em conflito:
Annie estava surpresa ao ver como os androides criados pela Ciência eram
belos, mas havia algo naquele que a intrigava e não era nada relacionado ao
timbre mecânico quando ele falava, que sumia à medida que conversavam...
QUERO LER
SOBRE A AUTORA

CORA FÉLIX
Ilustradora, escritora e pesquisadora de criaturas fantásticas, Cora
Félix iniciou sua vida literária por meio das fanfictions (histórias de fãs), até
começar a produzir livros autorais. Estabeleceu carreira no campo erótico,
mas, por ser apaixonada por vilões, passou a se dedicar à escrita de ficção
fantástica — hoje, com foco exclusivo na construção de livros fantásticos e
sobrenaturais. Autora da trilogia Atman, O Domador de Bruxas marcou sua
estreia na fantasia adulta e foi recorde de vendas na Bienal do Livro de
2022. Cora também já foi listada entre as autoras mais vendidas da
Amazon, chegando à 5ª posição.
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