Validação de Escala de Determinação Funcional Da Qualidade de Vida Na Esclerose Múltipla para A Língua Portuguesa
Validação de Escala de Determinação Funcional Da Qualidade de Vida Na Esclerose Múltipla para A Língua Portuguesa
Validação de Escala de Determinação Funcional Da Qualidade de Vida Na Esclerose Múltipla para A Língua Portuguesa
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RESUMO - O objetivo deste estudo é traduzir para o português, realizar a equivalência cultural e validar
a Escala de Determinação Funcional de Qualidade de Vida (DEFU). Foi realizado estudo longitudinal, com
143 pacientes com esclerose multipla (EM) clinicamente definida. A validação da escala foi determinada
pela correlação dos escores do DEFU com a Escala de Incapacidade Funcional Expandida (EDSS) e a Escala
Ambulatorial (EAN). A consistência interna (alfa) foi semelhante à observada originalmente. Observamos
haver correlação entre as subescalas (0,35-0,71) e destas com o EDSS e o EAN. O coeficiente Kendall Tau
evidenciou haver associação significante entre a visita inicial e a de três meses. A sensibilidade da escala
foi testada considerando dois grupos de pacientes: com EDSS < 3,5 e com EDSS ≥ 3,5. Observamos escores
maiores nos pacientes com EDSS mais baixo, quando comparados com aqueles com comprometimento
moderado. Baseados neste estudo, concluímos que esta versão do questionário DEFU traduzido para a língua
portuguesa preenche os critérios de confiabilidade, sensibilidade e validade.
PALAVRAS-CHAVE: esclerose múltipla, qualidade de vida, escala de avaliação.
A esclerose múltipla (EM) é doença crônica e doença3. A avaliação da qualidade de vida (QoL)
progressiva, que acomete adulto jovem, com idade permite analisar o impacto da doença e dos trata-
inferior aos 40 anos e leva ao aparecimento de mentos propostos sob a perspectiva do doente4. O
diversos sintomas e sinais neurológicos, muitas ve- conceito de QoL relacionado à saúde do indivíduo
zes incapacitantes1. A Escala de Incapacidade Fun- definido pela Constituição da Organização Mun-
cional Expandida (EDSS)2 é considerada como a dial de Saúde se confundia com o próprio conceito
medida primária de eficácia na grande maioria de saúde, definido como “...um estado de completo
dos ensaios clínicos, embora supervalorize a mobi- bem estar físico, mental e social, e não apenas a
lidade e seja pouco sensível aos outros aspectos da ausência de doença”5. Em 1993, esta definição foi
Centro de Atendimento e Tratamento de Esclerose Múltipla (CATEM) da Disciplina de Neurologia do Departamento de Medicina
da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa, São Paulo SP Brasil: 1Professor Instrutor; 2Professor Adjunto; 3Psicóloga; 4Professora
Adjunta Disciplina de Estatística da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas SP, Brasil.
Recebido 2 Maio 2003, recebido na forma final 8 Agosto 2003. Aceito 15 Setembro 2003.
Dra. Maria Fernanda Mendes - Rua Itacolomi 333/112 - 01239-020 São Paulo SP - Brasil. E-mail: [email protected].
Arq Neuropsiquiatr 2004;62(1) 109
revista e ampliada, abrangendo valores mais am- cientes com Esclerose Múltipla (DEFU) foi adaptada para
plos. Hoje a qualidade de vida relacionada à saúde a língua portuguesa em nosso Serviço em 1996.
é definida como “...a percepção do indivíduo quan- Utilizaram como base um questionário genérico
desenvolvido para pacientes com câncer9, adicionando
to à sua situação no contexto da sua cultura e dos
questões sobre sintomas e problemas relacionados à
valores da sociedade onde vive, e em relação aos
EM. A versão original, em inglês, é composta de 59 itens,
seus objetivos, expectativas, padrões e interes- sendo 44 deles utilizados para a obtenção do escore. Os
ses...”6. Fica claro por esta definição que o conceito 15 itens restantes são apresentados por fornecer infor-
de qualidade de vida é multidimensional, e incor- mações clínicas e sociais relevantes, porém não devem
pora a percepção do indivíduo sobre diversos aspec- ser utilizados para a obtenção do escore final9. Em sua
tos da vida7. forma final, a DEFU é composta por 6 subitens válidos
Para avaliação da QoL é fundamental a utili- para análise: mobilidade (7 itens), sintomas (7 itens),
zação de instrumentos adequados, que sejam de estado emocional (7 itens), satisfação pessoal (7 itens),
fácil aplicação e quantificáveis, contemplando os pensamento e fadiga (9 itens) e situação social e familiar
(7 itens). O formato das respostas permite escores de 0
aspectos subjetivos da vida do paciente, como suas
a 4 para cada item, no formato tipo Likert, sendo conside-
expectativas, percepções e emoções; mensurando
rado o escore reverso para as questões construídas de
a repercussão da doença e não a incapacidade. A forma negativa. Desta forma, os escores maiores refletem
escala ideal deverá ter sensibilidade, especificidade melhor qualidade de vida. As cinco subescalas com 7 itens
e ser de fácil reprodução. É fundamental que, por permitem escores de 0 a 28 e a subescala com 9 itens (pen-
melhor que seja o instrumento, ele esteja adaptado samento e fadiga) tem seus escores variando de 0 a 36.
às condições culturais e seja validado para o idioma O escore total da FAMS varia de 0 a 176 [5(28)+1(36)]9.
do país onde será utilizado8. Vários questionários Para a sua validação, a escala DEFU foi traduzida para
específicos foram desenvolvidos para avaliar a QoL a língua portuguesa por duas pessoas, bilíngües, uma
delas tendo o inglês como língua materna. A escala foi
na EM, não havendo consenso quanto ao melhor
posteriormente vertida para o inglês, chegando-se a
questionário. Estes instrumentos avaliam o impac-
um resultado final de consenso. O formato final da esca-
to da doença, estando mais relacionados à incapa- la foi mantido, com 6 subitens e 44 questões válidas para
cidade e aos sintomas próprios da doença. Os ques- obtenção do escore. Um estudo piloto realizado com 20
tionários gerais, por sua vez, medem a qualidade pacientes não demonstrou dificuldades de entendimento
de vida no seu todo, porém não são sensíveis em das questões. Visando reduzir o tempo necessário para
situações peculiares de cada doença e para avaliar a aplicação da escala, as questões não utilizadas para o
os efeitos das terapêuticas utilizadas4. Entre os escore final e apresentadas no anexo foram reduzidas
diversos questionários específicos para EM, destaca- para nove. Para contornar o problema de baixa escolari-
dade, o examinador permanece presente durante a
se o Functional Assessment of Multiple Sclerosis
aplicação do questionário. A versão traduzida encontra-
(FAMS)9, que inclui aspectos funcionais e diversas
se no Anexo 1.
variáveis de qualidade de vida. Este instrumento O questionário foi aplicado na visita inicial e após três
vem sendo utilizado em ensaios clínicos por permitir meses. No momento das visitas clínicas foram aplicadas
a abordagem de amplo espectro de sintomas, difi- duas escalas de incapacidade funcional, a Escala de Inca-
culdades e alterações psicossociais associadas com pacidade Funcional Expandida de Kurtzke2 (EDSS) e a Es-
a EM10. cala Ambulatorial13 (EAN), para posterior análise de
O questionário MOS-36, considerado um ins- validade e de sensibilidade.
trumento geral para a avaliação de QoL11, foi va-
lidado no Brasil por Ciconelli em 199712, porém, não Pacientes - o questionário foi aplicado em 143 pa-
cientes com EM, definida pelos critérios de Poser e col.14,
há nenhum questionário específico para esclerose
atendidos no Centro de Atendimento e Tratamento de
múltipla que possa ser utilizado em estudos longitu- Esclerose Múltipla da Faculdade de Ciências Médicas da
dinais. O objetivo deste estudo é validar o FAMS Santa Casa de São Paulo (CATEM). Foram incluídos no
para a língua portuguesa. estudo pacientes com EDSS variando de 0 a 6,0 e com
escolaridade superior a 4 anos. Os pacientes são prove-
MÉTODO nientes principalmente de áreas urbanas, porém o centro
Instrumento - O Functional Assessment of Multiple recebe pacientes de toda a região metropolitana de
Sclerosis (FAMS) foi desenvolvido por Cella e col, em 1996 São Paulo. A pesquisa foi aprovada delo Comitê de Ética
como uma escala específica para quantificar o estado de Médica da Faculdade de Ciências Médicas de Santa Casa
saúde dos pacientes com esclerose múltipla9. Esta escala, de São Paulo.
traduzida para a língua portuguesa como Escala de
Determinação Funcional da Qualidade de Vida em pa- Método estatístico - a validação de um instrumento
110 Arq Neuropsiquiatr 2004;62(1)
Escore total:
Arq Neuropsiquiatr 2004;62(1) 111
de qualidade de vida requer a avaliação dos dados ob- Tabela 1. Análise da consistência interna da Escala de Deter-
tidos com a aplicação do instrumento a pacientes, quanto minação Funcional da Qualidade de Vida na Esclerose Múltipla
à consistência interna, confiabilidade ou estabilidade do (DEFU).
instrumento, validade e sensibilidade8.
DEFU Média ± DP Coeficiente
A consistência interna foi medida usando-se o coe-
(n=143) alfa de
ficiente alfa de Cronbach, que mede constructos laten-
Cronbach
tes determinando a consistência interna dos itens através
da correlação média das questões dentro de um item. Mobilidade 18,28 ± 5,84 0,74
Quanto maior o coeficiente alfa, mais este contribui na
Sintoma 20,08 ± 6,06 0,82
construção da escala, sendo considerados bons os valores
entre 0,65 e 1. A sensibilidade da escala foi avaliada Estado emocional 22,54 ± 5,80 0,87
subdividindo-se os pacientes em dois grupos, de acordo Satisfação pessoal 20,39 ± 6,36 0,80
com o valor do EDSS: aqueles com EDSS entre 0 e 3,0
apresentam sintomas leves e aqueles com EDSS acima Pensamento e fadiga 22,95 ± 8,60 0,81
de 3,5 apresentam sintomas moderados. Os escores mé- Situação Social/familiar 21,60 ± 6,13 0,76
dios nos dois grupos foram comparados.
A confiabilidade do instrumento foi obtida usando DEFU total 125,96 ± 29,50 0,86
o coeficiente Tau de Kendall. Está baseado no número DP, desvio padrão
Tabela 3. Coeficientes de correlação entre as Escalas DEFU, exceção do subitem sintomas há diferença estatis-
EDSS e EAN (n=143). ticamente significante entre os grupos nos demais
DEFU EDSS EAN subitens e escore total, com as médias do grupo
com EDSS < 3,5 significativamente maior do que
Mobilidade -0,67423* 0,69450*
naqueles com EDSS ≥ 3,5. Portanto, a versão para
Sintoma -0,33157** 0,31699** a língua portuguesa desta escala mostrou-se sensí-
Estado emocional -0,52748* 0,55001* vel para detectar mudanças em diferentes etapas
da doença, demonstrando melhor qualidade de
Satisfação pessoal -0,43170* 0,38446*
vida nos pacientes com menor incapacidade funcio-
Pensamento e Fadiga -0,31133** 0,33347** nal (Tabela 5).
Situação Social/familiar -0,35422* 0,32476**
DISCUSSÃO
DEFU total -0,50050* 0,56706*
DEFU, determinação funcional da qualidade de vida; EDSS, escala de A DEFU é instrumento multidimensional, que
incapacidade funcional expandida; *, dado estatisticamente significante permite a mensuração da qualidade de vida re-
para p<0,0001; **, dado estatisticamente significante para p<0,0005.
lacionada à saúde (HRQoL) em portadores de EM.
A metodologia utilizada na sua elaboração
didas, como as escalas de incapacidade EDSS e EAN considerou a opinião de médicos, pacientes e in-
(Tabela 3), apresentando relação significante com formações de literatura sobre QoL na EM9. Este
o escore total e subescalas. A Tabela 4 mostra a questionário, após validação para a língua portu-
correlação entre as subescalas e o escore total. To- guesa, manteve as características daquele original-
das as subescalas apresentaram correlação significa- mente descrito quanto à consistência interna, con-
tiva entre si, com coeficiente de associação variando fiabilidade e sensibilidade, podendo ser utilizado
entre 0,353 e 0,706. na prática clínica e em ensaios clínicos.
A sensibilidade da escala foi demonstrada atra- Os valores obtidos nas subescalas e no escore
vés da comparação de grupos distintos. O critério total na nossa população foram muito semelhantes
escolhido para a determinação dos grupos foi o àqueles originalmente descritos por Cella e cols no
escore obtido no EDSS, sendo formado dois grupos grupo de pacientes ambulatoriais e que não ne-
distintos, um com EDSS < 3,5 (n=113) e outro com cessitavam de períodos de repouso durante o dia.
EDSS ≥ 3,5 (n=30). Análises de variância foram O escore total neste grupo de pacientes foi de
realizadas para comparar as médias entre os grupos 129,909 e o desta amostra 125,96. A consistência
para cada item do DEFU e o resultado total. Com interna foi semelhante à observada por Cella e
Sintoma 0,40431
<,0001
cols, com coeficiente alfa de Cronbach variando de le originalmente descrito. É um questionário que
0,73 a 0,89 após a tradução e de 0,82 a 0,93 na permite ao neurologista melhor conhecimento dos
versão da língua inglesa. Houve correlação entre diversos aspectos da EM. A validação desta escala
as subescalas e destas com o EDSS e o EAN; os su- para diversos países e idiomas permitirá melhor
bitens mobilidade e bem estar emocional apresen- abordagem dos pacientes e maior troca de infor-
taram forte correlação com o EDSS, resultados es- mações entre os diversos centros de pesquisa.
tes semelhantes aos obtidos na descrição da escala.
Na análise de sensibilidade, os autores avalia- REFERÊNCIAS
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apresentando menores escores no EDSS. Por este
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varam escore total médio de 113,9 para os pacientes Geveda: WHO/EDM/TRM/2000.
com EDSS ≤ 6,0 e 106,2 para aqueles com EDSS > 9. Cella DF, Dineen K, Arnason B, et al. Validation of he functional
assessment of multiple sclerosis quality of life instrument. Neurology
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