Sergio Lima - Monografia - 30.05.2018 - Versão Final

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FACULDADE DE TEOLOGIA DE SÃO PAULO

IGREJA PRESBITERIANA INDEPENDENTE DO BRASIL

SÉRGIO FERREIRA DE LIMA

A PROMOÇÃO DA CIDADANIA POR MEIO DO


CUIDADO PASTORAL

São Paulo
2018
SÉRGIO FERREIRA DE LIMA

A PROMOÇÃO DA CIDADANIA POR MEIO DO


CUIDADO PASTORAL

Monografia de tema da Teologia


Reformada apresentada em cumprimento
às exigências do art. 54 da Lei
Complementar à Constituição da Igreja
Presbiteriana Independente do Brasil junto
à Faculdade de Teologia de São Paulo.

Orientador: Msc. Marcos Nunes da Silva

São Paulo
2018
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 3

1. CONCEITO DE CUIDADO PASTORAL .................................................................. 5

1.1. Quem eram os pastores nos tempos bíblicos ...................................................... 5


1.2. A evolução do termo pastoral ............................................................................... 6

1.3. O cuidado pastoral ............................................................................................... 8


1.3.1. Construindo uma comunidade cristã ................................................................. 8
1.3.2. Criando a saúde relacional ................................................................................ 9
1.3.3. Curando a alma ferida ....................................................................................... 9
1.3.4. Nutrindo e sustendo a fé ................................................................................. 10

1.4. Cuidar do indivíduo não é o suficiente ............................................................... 11

2. O QUE É CIDADANIA ........................................................................................... 14

2.1. Respeito ao meio ambiente ................................................................................ 17


2.2. Respeito às pessoas (convivência, harmonia, economia) .................................. 18
2.3. Respeito às normas (direitos e deveres) ............................................................ 20

3. A PROMOÇÃO DA CIDADANIA POR MEIO DO CUIDADO PASTORAL............. 23

3.1. A cidadania dentro e fora da igreja ..................................................................... 23


3.2. Restaurando a cidadania.................................................................................... 28
3.3. O combate ao preconceito em defesa da cidadania .......................................... 32

CONCLUSÃO............................................................................................................ 36

BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... 38
INTRODUÇÃO

Vivemos numa complexa sociedade onde não há um sistema de valores


declarado e uniforme. Dentre as discussões em que os valores conhecidos são
questionados e muitas vezes sublimados pelos grupos sociais neste momento temos
a da ideologia de gênero, a da corrupção política por falta de mecanismos de controle
e fiscalização, mas especialmente a falta de interesse pelo bem comum em razão do
individualismo, a das questões éticas da biotecnologia, a dos preconceitos. Em todos
os casos o indivíduo é quem se desinteressa pelo direito do próximo em detrimento
do seu, sempre sentindo que sofre por parte dos outros o desrespeito aos seus
direitos, destacando-se um anseio comum das pessoas por justiça.

A sociedade, que é um conjunto de relações de todas as formas entre os


indivíduos que a compõem, tem por objetivo precípuo superar a própria extinção ante
as adversidades, e deve, portanto, proteger a integridade das pessoas, prestigiando
as relações benéficas e controlando/punindo as nocivas, buscando-se a paz social.

A necessidade de luz para o caminho daqueles que vagam por essa terra sem
destino e nem sabem como resistir às lutas durante essa caminhada é uma questão
que precisa ser tratada continuamente, doutra feita restará o caos que arranca do
indivíduo a esperança de que vida em comunidade lhe seja útil, deixando de existir o
sentimento de "pertença" e a alegria de viver.

Diante desse quadro sucinto do perverso esquema social, por nossa condição
cristã de ser, não podemos ficar inertes, sem contribuir com proposta de melhoria das
relações sociais a partir do meio onde vivemos. Trata-se de entender melhor o que é
a cidadania como princípio da vida comunitária e, principalmente, promover quem
possa difundir seus valores nessa sociedade tão frágil e carente.

No primeiro capítulo exploraremos um pouco a natureza do cuidado pastoral


e a sua participação diante da comunidade onde participa o(a) pastor(a) com mister
destacado no ensino e elemento agregador neste grupo.
4

Vez que essa comunidade é integrante de uma sociedade, que, como já


mencionamos, é complexa por sua diversa composição, no segundo capítulo
ressaltamos elementos da formação do Estado, bem como os mecanismos estruturais
que asseguram a continuidade deste ente representativo de um povo, apresentando
a cidadania como a melhor forma social de manutenção das relações cotidianas,
desde que vivida integralmente pela maioria dos componentes sociais, sempre
visando o bem comum.

No último capítulo agregamos o potencial encontrado no cuidado pastoral em


capacitar pessoas a trabalharem em prol do bem comum, e sua efetiva ação para o
fortalecimento de uma cidadania saudável para toda a sociedade, conscientizando as
pessoas de sua responsabilidade para com o próximo e o meio ambiente, primando
pela igualdade e combate ao preconceito, elementos essenciais para a promoção do
Reino de Deus, que é justiça, paz e alegria.

Por fim, mesmo que não esgotando o assunto, mas tentando cumprir os
objetivos propostos, esperamos sensibilizar, especialmente aqueles que desenvolvem
sua vocação no cuidado pastoral quanto ao seu relevante papel perante a sociedade
onde o Criador os designou para estarem pastores(as).
1. CONCEITO DE CUIDADO PASTORAL

"E ele mesmo concedeu alguns para apóstolos, outros para profetas, outros
para evangelistas e outros para pastores e mestres".1

A Bíblia exalta o valor da designação de Deus de alguns para pastores e


mestres, claramente que não para o trato com animais, mas no cuidado de pessoas,
o que nos leva à necessidade de compreender por que é usada tal metáfora para
designar o sublime ministério de pessoas que "pastoreiam" pessoas.

1.1. Quem eram os pastores nos tempos bíblicos

Nos tempos do Antigo Testamento, o povo de Israel tinha sua economia, em


grande parte, focalizada no desenvolvimento de rebanhos de ovelhas para
alimentação e produção de lã, que servia como vestuário e para fabricação de tendas.
O excedente era utilizado como permuta comercial,2 sendo um dos principais animais
do sistema de sacrifícios.

Sendo de tamanha relevância o desenvolvimento da criação de ovinos na


economia da época, a pessoa encarregada de cuidar desses animais desempenhava
tarefa de grande importância dentro da sociedade: essa pessoa era o pastor.

Antes, ainda, de Israel conferir conteúdo teológico à imagem e função do


pastor, os povos da Mesopotâmia designavam seus reis e chefes de pastor: "O Rei
era entronizado como pastor [...]. Também era pastor no sentido de reunir e proteger
o povo, cuidando-lhe dos bens terrestres e guardando a justiça [...]. O pastor é o
guardião da justiça. Os homens de Israel já tinham, pois, tudo para assumir tal
simbólica e teologizá-la...".3

1 Ef 4.11.
2 Sathler-Rosa, 2010, p. 27.
3 Libanio apud Sathler-Rosa, op. cit.
6

Vê-se, assim, que a imagem e função do pastor encontram íntima ligação com
a cultura judaica e prática de povos da antiguidade ao reconhecer como pastoreio a
responsabilidade atribuída a alguém de participar e zelar pela vida do povo.4
Analogamente, se o cuidador do povo é um pastor, as pessoas são as suas ovelhas.

O Novo Testamento traz Cristo como o Bom Pastor, ou seja, o modelo pastoral
é expresso pela pessoa e prática de Jesus.5 No Evangelho de João encontramos
Jesus falando de si como pastor: "Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas
ovelhas. [...] assim como o Pai me conhece a mim, eu conheço o Pai; e dou a minha
vida pelas ovelhas".6 O texto bíblico traz o Mestre mostrando o extremo do ministério
pastoral: o bom pastor dá a sua vida pelas ovelhas. Dar a vida pelas ovelhas é cumprir
com os mandamentos da lei divina, onde além de amar a Deus sobre todas as coisas,
expressa-se tal abnegação no amor ao próximo, tal qual se valora a própria vida. Dar
a vida é sinônimo de dedicação e cuidar de pessoas exige do cuidador essa
dedicação: é uma ação pastoral.

Ao citar Jaci Maraschin, Sathler-Rosa destaca que: "a fragilidade e o


desamparo das ovelhas exigiam a presença de uma ação que a Igreja [também]
entendeu como pastoral"7, sendo Deus o Pastor, agindo por meio de agentes
pastorais e estruturas de ação pastoral. Da maneira que ocorre no campo, muitas
vezes não havia apenas uma pessoa para cuidar das ovelhas, mas a família do pastor
dava suporte a este para o bom desenvolvimento do trabalho. Similarmente, a família
da fé que forma a Igreja pratica atos que dão suporte ao pastor enquanto é por ele
cuidada, constituindo-se, também, em ação pastoral.

1.2. A evolução do termo pastoral

Sathler-Rosa cita o teólogo uruguaio Julio de Santa Ana para explicar que o
termo pastoral se tornou mais frequente nas Américas do Sul e Central, a partir da
década de sessenta, principalmente na Igreja Católica Romana.8

4 Sathler-Rosa, 2010, p. 28.


5 Id, p. 29.
6 Jo 10.11; 15.
7 Jaci Maraschin apud Sathler-Rosa, 2010, p. 32.
8 Santa Ana apud Sathler-Rosa, 2010, p. 32.
7

Diz, ainda:

O sentido do vocábulo refere-se à forma como a Igreja cumpre


a sua missão, seja em termos gerais (pastoral de conjunto) como
particulares (pastoral da terra, pastoral indígena, pastoral da
juventude: quer dizer, referida a situações e/ou grupos sociais
específicos). A pastoral, pois, no contexto do pensamento
católico latino-americano, refere-se à ação coletiva do povo de
Deus, da Igreja, cuja figura hierárquica é o bispo.9
Já "na tradição histórica protestante o termo refere-se, geralmente, à pessoa
e função do pastor. Conforme nos lembra Santa Ana, os Reformadores do século XVI
não escreveram sobre pastoral; referem-se, apenas, ao 'ministério do pastor e à sua
ordem própria'".10

João Calvino, nas Institutas, enfatiza as funções principais dos pastores como
sendo:

Presidir la iglesia en forma tal que su dignidad no permanezca


ociosa; que instruyan al pueblo em la doctrina ciristiana; que
administren los sacramentos, y que mediante oportunas
amonestaciones corrijan las faltas, usando la disciplina paternal
que Jesus cristo ha ordenado.11

Certamente, João Calvino não se mostrou contrário ao princípio do sacerdócio


universal de todos os crentes, mas, trata da postura ministerial e institucional dos
pastores do rebanho de Cristo, que, oficialmente, e muitas vezes com exclusividade
na sua rotina, representam a comunidade cristã, são responsáveis por seu ensino e
pela manutenção da fé.

Tanto de maneira geral e pública, quanto pessoal e individual, o pastor sempre


estará atrelado à condução das ovelhas do rebanho de Cristo, cumprindo com a
missão que lhe fora atribuída pelo Senhor.

Da mesma forma, como se evidenciou que vários são os dons e ministérios


distribuídos entre os crentes segundo a Bíblia, esta também deixou claro que estes
mesmos dons e ministérios não são dados a todos os crentes, ou seja, a alguns tais

9 Santa Ana apud Sathler-Rosa, op. cit.


10 Ibid, p. 33.
11 Calvino, 1988, p. 841.
8

atribuições são exclusivas dentro de um grupo, de forma que sejam suficientes os que
exercerão aqueles específicos serviços em meio aquele mesmo grupo.

Na 1ª carta de Paulo aos Coríntios, o apóstolo pergunta: "Porventura, são


todos apóstolos? Ou todos profetas? São todos mestres? Ou, operadores de
milagres? Têm todos dons de curar? Falam todos em outras línguas? Interpretam-nas
todos?".12

Conclui-se, portanto, que ao pastor é atribuída a responsabilidade de cuidar


de pessoas, ensinando a doutrina bíblica cristã, ministrando os sacramentos, sendo,
ainda, um representante direto desta comunidade, presidindo-a.

1.3. O cuidado pastoral

Seguindo a divisão de Paul Goodliff, Sathler-Rosa enumera, dentre tantas


ações, quatro como sendo as prioritárias do cuidado pastoral no contexto
contemporâneo, quais sejam: construir uma comunidade cristã, criar a saúde
relacional, curar a alma ferida e nutrir e suster a fé.13

Como sugere o título, é de suma importância no cuidado pastoral a construção


de uma comunidade evidenciando-se a consideração do seu componente humano,
uma vez que formada por pessoas imperfeitas, trazendo contradições, fragilidades e
pecados, e, ao mesmo tempo, devendo ela refletir o amor de Deus.

1.3.1. Construindo uma comunidade cristã

O pastor exercita a confiança de que essa comunidade pode ser transformada


nas suas imperfeições pelo amor de Deus, e busca conhecimentos da realidade e
natureza humana para melhor admoestar e exortar, apresentado sob o olhar do
Mestre a reta maneira de viver no reino do Seu amor.

12 I Co 12.29-30.
13 Googliff apud Sathler-Rosa, 2010, p. 44-45.
9

1.3.2. Criando a saúde relacional

Difícil e necessário cuidado exercerá o pastor em auxiliar e ampliar a visão de


mundo de suas ovelhas e demais pessoas ao seu redor, bem como exercitar a
tolerância e o perdão. À saúde relacional aplicam-se os princípios da honestidade,
transparência e sensibilidade, onde a atenção no outro se faz de maneira interessada
no seu ser, e a exposição dessa impressão apreendida ocorre de maneira
transparente e honesta.

Na atualidade, a saúde das pessoas é diretamente afetada pelo trabalho que


cada um desenvolve14, haja vista a prática crescente das instituições funcionarem
ininterruptamente, com turnos de revezamento. Não há mais, como outrora acontecia,
sincronismo na agenda dos membros do lar, agora há grandes diferenças nos horários
das refeições, inclusive nos de repouso e dias de folga. O culto doméstico tem sido
um grande desafio contemporâneo, posto que é um importante recurso do
desenvolvimento da saúde espiritual em família.

Inúmeras situações podem trazer grande desequilíbrio emocional no dia a dia,


como a depressão, considerada a “doença da alma”, além de ansiedades motivadas
por angústias incontroláveis, dificuldades de superação nas mais variadas
circunstâncias, falta de uma identidade pessoal para ser apresentada e afirmada.

1.3.3. Curando a alma ferida

Certamente o pastor é uma das pessoas mais requisitadas na sociedade para


atender tão grande demanda, além dos consagrados profissionais das áreas da
psicologia e psiquiatria.

Diferente de uma ferida no corpo, onde o cuidado médico e a intervenção


medicamentosa são requisitados, a ferida na alma, por sua vez, em inúmeros casos,
não tem por parte do doente ou de sua família a mesma aceitação de uma terapia.
Ocorre que a ansiedade e a depressão, que deveriam ser tratadas logo no início para
não criarem raízes e se fortalecerem, às vezes, demoram muito para serem

14 Sathler-Rosa, 2010, p. 47.


10

detectadas. Mesmo quando percebidas, não são cuidadas de imediato, tanto pela
desinformação, quanto pelo preconceito da natureza dessas doenças que são
associadas a pessoas incapazes.

O ser humano cresce buscando tornar-se capaz de não depender de outras


pessoas (como comer segurando a colher sozinho quando criança), e regredir de onde
se está é frustrante e fortemente combatido.

Assim, o pastor acaba tendo de se esmerar na sua percepção para notar


quando uma ferida começa a se instalar na alma de uma ovelha do rebanho de Deus,
para, com amor e paciência, dedicar seu cuidado para fortalecê-la e, literalmente,
“curar essas feridas da alma”. Seu trabalho é aumentado em muitas vezes quando as
feridas já existem há muito tempo, mas, fato é que nenhuma delas é grande demais
que o poder do Dono do Rebanho não consiga trazer o livramento eficaz.

Independentemente do tamanho do rebanho, cada ovelha necessita da


dedicação do seu pastor no intuito de ajudá-la a tornar-se saudável, livrando-se das
culpas e outras feridas que venham a impedir seu desenvolvimento espiritual. A
questão crucial aqui é que o cuidado pastoral se mostra imprescindível para tão
específico tratamento de uma alma ferida, com ferramentas específicas de terapia
espiritual oriundas das Escrituras Sagradas.

1.3.4. Nutrindo e sustendo a fé

A comunidade da fé possui uma identidade que é afirmada e confirmada pelo


estudo bíblico e todas as demais atividades, especialmente os cultos e a ministração
de sacramentos. A coerência desse conjunto de ações terá por “maestro” o pastor do
rebanho, cujo cuidado é determinante para que a comunidade consiga perceber que
o objetivo de sua existência é viver de acordo com os princípios e valores ensinados
por Jesus Cristo. “O cuidado pastoral brota do solo da adesão a Jesus Cristo, e daí
deriva seu caráter e sua feição”.15 Percebe-se, assim, que a assimilação do amor de
Jesus pela comunidade da fé é uma responsabilidade que Deus delega ao pastor que
a exerce por meio dos seus cuidados.

15 Sathler-Rosa, 2010, p. 48.


11

Na obra O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint Exupéry, uma de suas


frases famosas expressam uma verdade bíblica, quando a raposa fala para o pequeno
príncipe: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Frase, essa,
atualizada por Ferreira Gullar para “Você é eternamente responsável por aquilo que
cativou”.16 Uma vez cativados pelo amor de Jesus, o cuidado pastoral nutrirá a fé, pois
o Eterno mesmo enviou “uns para pastores e mestres” para se responsabilizarem pelo
ensino da Palavra, ministração dos sacramentos, em nome do Senhor do rebanho.

No cuidado pastoral encontramos a manifestação direta de Deus sobre os


seus “cativos” em amor, que, como já mencionado no conto infantil, possui a
característica de ser uma responsabilidade eterna.

1.4. Cuidar do indivíduo não é o suficiente

Sathler-Rosa afirma que, assim como o pastor de ovelhas se preocupa com


cada indivíduo em suas necessidades e desenvolvimento, o ambiente onde as
ovelhas vivem também é alvo de sua atenção17 e cita uma expressão de Ortega y
Gasset muito apropriada para o assunto: “O indivíduo ‘diagnosticado’ como são que
é colocado em ambiente doentio perde sua sanidade, pois somos nós e nossas
circunstâncias”.18

O ambiente onde as pessoas convivem também é alvo do cuidado pastoral,


posto que é impossível tratar o indivíduo sem considerar o ambiente e as
circunstâncias que envolvem o seu cotidiano. Nesse sentido, o cuidado pastoral deve
se estender além das paredes da igreja e dos lares dos membros da comunidade da
fé, e estender com o reino de Deus além desses limites.

O distanciamento da igreja da sociedade contraria os princípios da fé cristã


onde seus membros devem se apresentar como sal da terra e luz do mundo, para o
mundo e no mundo. O tratamento de muitos males é apenas paliativo quando sua
origem não é adequadamente diagnosticada. Se uma fonte de água estiver
contaminada e algumas pessoas dela beberem, não bastará tratar a doença adquirida

16 Gullar apud Kramer, 2018.


17 Sathler-Rosa, 2010, p. 50.
18 Ortega y Gasset apud Sathler-Rosa, 2010, p. 48.
12

por essas pessoas, mas a fonte deverá ser interditada e ela mesma ser transformada
pelo bem da comunidade. Tal percepção se reflete no cuidado pastoral, que não
apenas se sensibiliza com o indivíduo, mas se importa com o universo ao redor deste,
sendo tanto a pessoa como seu mundo obras do mesmo Deus Criador, quem chama
uns para pastores e mestres. Neste sentido, comenta Sathler-Rosa: “Agentes
pastorais, clérigos e leigos, devem ser encorajados a assumir sua vocação e
ministérios na sociedade e não apenas nos círculos de suas igrejas locais”.19

Conquanto pareça obra de dimensão sem limites, para o cuidador pastoral,


que é um agente proclamador de Boas Novas, sua esperança consiste em que todas
as coisas podem mudar e se fazerem novas, e dentre essas coisas não se computam
apenas as pessoas da comunidade, mas “todas” as estruturas no entorno da
comunidade20. “É a dimensão do anúncio. É a voz profética nos domínios públicos,
estatais, institucionais”.21

Assim, como no caso da fonte de água contaminada, cuidar do indivíduo é


essencial, mas não é suficiente. “É preciso cuidar da ‘casa’, dos sistemas que
estruturam a vida das pessoas em sociedade, das múltiplas interações do ser
humano. É a ação pastoral direcionada a sistemas”.22

Eugene Peterson, analisando o livro de Jonas, compara-o com o pastor


vocacionado por Deus e afirma que o cuidado pastoral exige empatia com o mundo
das ovelhas.23 Para ele, o cuidado pastoral é mais do que pregar sermões, é vivenciar
as experiências do povo:

Quando Jonas começou seu trabalho certo, fez uma jornada de


um dia em Nínive. Não ficou à distância, fazendo sermão para
eles; entrou no meio de sua vida, ouviu o que estavam dizendo,
sentiu o cheiro de sua comida, aprendeu suas expressões, viveu
ao nível do povo, não indiferente nem superior a ele.24

19 Sathler-Rosa, 2010, p. 49.


20 Ibid, p. 51.
21 Sathler-Rosa, op. cit.
22 Ibid, p. 50.
23 Peterson, 2006, p. 120.
24 Peterson, op. cit.
13

Vez que dimensionada a relevância do cuidado pastoral sobre o mundo onde


vivem as ovelhas, a ação pastoral, compreendidas adequadamente as relações
vividas em cada ambiente, habilitará/capacitará as pessoas a viverem sendo sal da
terra e luz no mundo.

Interessante considerar a dimensão do cuidado pastoral que se estende além


das pessoas e alcança o restante da criação. Peterson diz que: "Faz parte do trabalho
pastoral andar num mundo estranho, colocar os pés no chão e abraçar o local. O
trabalho pastoral é tanto geográfico quanto teológico”.25

Entendendo que todo local possui uma história onde foi forjado um conjunto
de normas para manutenção da sociedade ali existente, o cuidado pastoral,
obrigatoriamente, deverá levar o povo cristão a conhecer essas normas e, sobretudo,
analisá-las sob a ótica do próprio Deus, exposta nas Escrituras Sagradas. Mais uma
vez conhecer a sociedade onde os membros da igreja estão inseridos faz parte do
cuidado pastoral. Conforme Peterson: “O trabalho pastoral é local”.26 Conhecer a
sociedade inclui tanto o aspecto físico/geográfico quanto o cultural/legal. Toda
sociedade possui elementos de ordem jurídica que visam proteger o grupo e o
ambiente, sendo comum o interesse da maioria dos membros, senão de todos, em
preservar essa ordem para seu próprio bem. Cuidar dos outros visando o próprio bem
se alinha completamente ao texto das Escrituras Sagradas, referido pelo evangelista
Marcos, onde Jesus diz: "amarás o teu próximo como a ti mesmo".27

No próximo capítulo trataremos como se dá esse cuidado mútuo desenvolvido


na sociedade.

25 Peterson, 2006, p. 115.


26 Ibid, p. 120.
27 Mc 12.31.
2. O QUE É CIDADANIA

O homem não vive só. Viver só não é bom para o homem. O próprio Deus
assim o declarou: "Não é bom que o homem esteja só".28 E lhe providenciou
companhia, completando esse homem em sua natureza comunitária. Assim, o homem
vive sempre se relacionando com o lugar onde está e com as outras pessoas desse
mesmo ambiente. Quanto ao lugar, o homem precisa dele para garantir seu sustento,
desde as mais primitivas atividades extrativistas, como colher frutos de plantas
nativas, beber água de uma mina, caçar animais selvagens como o javali, mas
também desenvolvendo agricultura, plantando enormes áreas com milho, soja, trigo,
arroz, utilizando água dos rios para irrigação, água que represada também gira
turbinas que geram eletricidade, e com ela iluminam cidades, acionam motores,
constroem indústrias para produzir toda sorte de bens.

Poderá esse homem por algum tempo praticar as atividades acima sozinho,
contudo, necessariamente, nalgum momento, haverá de encontrar outras pessoas no
exercício dessas atividades, colhendo frutos da mesma árvore, ou bebendo da mesma
mina d’água, ou plantando milho na mesma gleba de terras, ou trabalhando na mesma
indústria. O homem precisa se relacionar com outras pessoas enquanto busca
assegurar seu próprio sustento. Se relacionando com outras pessoas também
passará a nutrir sentimentos de apreço, como amizade, dedicação, amor, bem como
perceberá outros em sentidos opostos, como inveja, ciúmes, medo, raiva. Enquanto
se relaciona com o meio ambiente, o homem poderá fazê-lo de forma sustentável,
para que os recursos não se esgotem, nem a transformação produzida seja
prejudicial, enquanto o mesmo homem, contudo, poderá ignorar tais cuidados e
destruir os recursos naturais úteis para muitas pessoas.

28 Gn 2.18.
15

A reação daqueles que se sentem prejudicados com a conduta dos outros


pode, legitimamente, dar-se por meio de imediata oposição física, visando paralisar
as agressões sofridas, podendo, no entanto, também serem utilizados o diálogo e o
ajuste de regras de convivência em que o coletivo terá preferência ao individual,
atentando-se, ainda, para o direito do indivíduo, quando possível. Não somente os
recursos naturais haverão de ser protegidos dos abusos, mas, principalmente, os
relacionamentos sociais serão preservados, permitindo que as pessoas possam crer
que conviverão no mesmo lugar sem ter de se digladiarem continuamente, fazendo
uso do respeito. Respeito, esse, entre as pessoas que funda-se na observância mútua
dos direitos coletivos, cumprindo-se com os deveres ajustados para todos, não se
negligenciando os valores individuais.

Desde que o homem passou a viver em maior número nas cidades, resultado
do êxodo rural, sua forma de vida e interdependência quanto aos demais o levou a
adotar uma nova condição: a de cidadão. Agora, a convivência desses cidadãos
depende do respeito às regras ajustadas para esse fim, e dentre elas, o de
representatividade e direção. Para elaborar essas normas os cidadãos escolherão
pessoas que se responsabilizarão por esse processo, e até mesmo o processo de
escolha dessas pessoas será conduzido por normas. Votar e ser votado são direitos
e, ao mesmo tempo, deveres dos cidadãos. Exercer os direitos e deveres de cidadão
constitui a cidadania. Cabe-nos, pela oportunidade, relacionar a enorme relevância do
interesse dos cidadãos, tanto em se dispor como candidato a assumir postos de
representação atentando para competência que implicam a referida função, quanto,
primordialmente, por se tratar de tarefa da totalidade dos demais indivíduos votantes,
analisarem se os candidatos poderão dignamente representá-los. Qualquer dos dois
compromissos que não sejam assumidos "poderão" prejudicar toda a comunidade.
Ressalte-se que cidadania não é apenas exercer o direito de votar e ser votado como
representante de um grupo de pessoas, mas é todo o processo de avaliação da
condição humana e situação ambiental, e, consequentemente, o implemento de
normas que visam o aprimoramento dessas condições.

Sobre a origem da cidadania, ensina a Professora Maria Lourdes Cerquier-


Manzini:

E onde está a origem da cidadania? Atribui-se em princípio à


cidade ou pólis grega. A pólis era composta de homens livres,
16

com participação política contínua numa democracia direta, em


que o conjunto de suas vidas em coletividade era debatido em
função de direitos e deveres. Assim, o homem grego livre era,
por excelência, um homem político no sentido estrito.29
A atuação dos cidadãos distinguia-se em duas: a esfera privada que
contemplava toda manifestação pessoal sobre suas crenças, suas preferências de
alimentos, desenvolvimento profissional, e a esfera pública, que envolvia a
responsabilidade jurídica e administrativa pelos negócios públicos.30 Ainda que o
público possa ser visualizado como superior ao particular, é a coexistência das
particulares observações que formam o todo, o comum, o público. Daí temos que o
exercício da cidadania exige a observância das necessidades das pessoas e a forma
de supri-las, essencialmente, por meio do diálogo, ponderando a esfera privada em
meio a esfera pública, sem perder de vista o impacto de qualquer ação no meio
ambiente.

Coexistir de forma sustentável é exercitar a cidadania. Isso ocorre quando o


cidadão manifesta suas preferências e toma decisões que prestigiem o bem comum,
gerando maior benefício para toda a sociedade. A cidadania é exercida também
quando o bem comum é o desejo de toda uma sociedade que um único indivíduo
possa ser beneficiado numa determinada circunstância, como o tratamento para um
bebê com doença rara, tratável apenas em outro país. Nesse sentido são os casos
em que ao Sistema Único de Saúde no Brasil cabe diligenciar, atendendo ao princípio
protetivo de que todo cidadão brasileiro tem direito à saúde e à vida,
independentemente de se tratarem de situações comuns ou excepcionais, insculpidos
nos artigos 5º, 6º e 196 da Constituição Federal do Brasil. Para o exercício da
cidadania não se busca sempre suprir a maioria das necessidades, mas sim o bem
comum daquela sociedade, que pode estar representado no atendimento de um único
indivíduo, como o exemplo acima.

29 Cerquier-Manzini, 2013, p. 22-23.


30 Cerquier-Manzini, op. cit.
17

2.1. Respeito ao meio ambiente

Da terra o homem retira tudo o que precisa para sobreviver. Se tudo da terra
fosse retirado, faltariam ao homem condições para continuar existindo. Partindo
dessas duas afirmações, deduz-se que não poderá o homem permitir que sua fonte
natural de bens se torne extinta, pois significaria sua própria extinção. Percebe-se uma
necessidade clara de equilíbrio, de modo que quando o homem retira algo da terra,
ela deve ser compensada para que sua capacidade de servir seja preservada. Se o
homem retira água limpa do rio, deve devolvê-la limpa da mesma forma que a tomou.
Quando o homem cortar árvores para fazer móveis, precisa reflorestar de forma que
o equilíbrio na produção de oxigênio e temperatura do solo logo sejam restaurados e
possam as gerações futuras também fazer móveis de madeira. É assim que Leonardo
Boff enxerga a Terra, como sendo ela mesma um organismo vivo, que possui
dignidade e deve ser respeitada:

Há uma tradição da mais alta ancestralidade que sempre


entendeu a Terra como a Grande Mãe que nos gera e que
fornece tudo o que precisamos para viver. As ciências da Terra
e da vida vieram, pela via científica, confirmar essa visão. A terra
é um superorganismo vivo, Gaia, que se autorregula para ser
sempre apta a manter a vida nela. [...] Portanto, não há apenas
vida sobre a Terra; ela mesma é viva, e como tal possui um valor
intrínseco, devendo ser respeitada e cuidada como todo ser vivo.
Este é um dos títulos de sua dignidade e a base real de seu
direito de existir e de ser respeitada como os demais seres.31
Respeitar a Terra é agir de forma que se preserve o valor que possuem os
seres, animados ou não, para que a humanidade possa continuar a usufruir dos bens
que necessita de maneira sustentável. O meio ambiente é formado por inúmeros
componentes naturais de onde provém todos os bens necessários à manutenção da
vida humana e o desrespeito ao equilíbrio da quantidade e qualidade desses
componentes afetará inevitavelmente a humanidade. Boff assim reflete:

Por causa da consciência e da inteligência somos seres com


uma característica especial: a nós foi confiada a guarda e o
cuidado da Casa Comum. Melhor ainda: a nós cabe viver e
continuamente refazer o contrato natural entre Terra e

31 Boff, 2016, p. 130-131.


18

humanidade, pois é de sua observância que se garantirá a


sustentabilidade do todo.32
O respeito ao meio ambiente é uma necessidade vital para o homem. Normas
são criadas para que a sociedade preserve o meio ambiente e, assim, assegurem a
continuidade da espécie.

Conselhos Populares de Proteção ao Meio Ambiente existem em todo o


mundo no mesmo propósito de continuamente avaliar se a forma atual é suficiente
para proteger os recursos naturais e a vida em geral no planeta. Participar de tais
Conselhos é exercício de cidadania, pois o cidadão enxergando que tudo à sua volta
necessita de cuidados, será voz de defesa a animais, plantas e rios que não se
expressam como nós e, também, a muitas pessoas que, mesmo sem perceber, sofrem
ou sofrerão se o meio ambiente não for protegido.

2.2. Respeito às pessoas (convivência, harmonia, economia)

Ser cidadão implica em convivência com outros cidadãos, afinal não temos
cidades de um só habitante. Já disse o poeta Mário Quintana: "A arte de viver é
simplesmente a arte de conviver... simplesmente, disse eu? Mas como é difícil!".33
Assim como é devido o respeito ao meio ambiente, pela manutenção de seu valor
como ente vivo, a vida comunitária impele o homem a praticar o respeito às pessoas,
de sorte que o oposto certamente o levará à ruína.

Considerando o histórico do ajuntamento do homem em cidades, vê-se,


claramente, que a saída do campo o levou a conviver num ambiente com uma
densidade demográfica muito maior que dantes. A presença de outras pessoas à volta
implica ao homem tecer uma necessária rede de relacionamentos, ora de trabalho,
ora de estudos, por vezes nos encontros de prática religiosa, ou, simplesmente, de
vizinhança. Sim, necessariamente, o homem precisa se relacionar com seus
semelhantes, e mais, esse relacionamento há de ser, o quanto possível, harmônico.
Esse relacionamento não é eventual, mas consiste em expressar cooperação pelo
bem e sobrevivência do grupo. Boff esclarece: “Sabemos que as sociedades

32 Boff, 2016, p. 48.


33 Quintana, 2006, p. 894.
19

civilizadas se constroem sobre três pilastras fundamentais: a participação (cidadania),


a cooperação societária e o respeito aos direitos humanos. Juntas criam o bem
comum".34

Conviver é necessário. Conviver com harmonia é agir com inteligência. É


verdade que o bem comum não é compreendido de maneira universal, pois as
pessoas são constrangidas instintivamente a buscar antes o seu bem particular.
Mesmo sendo o indivíduo membro de uma comunidade, seu objetivo primordial é
abastecer-se do que puder extrair do grupo, sem ter uma prévia preocupação de
retribuir proporcionalmente o bem recebido. As necessidades das pessoas são
atendidas, em regra, pelo trabalho de outros. Para alcançar benefícios que servem à
coletividade, dos cidadãos são recolhidos recursos, na maioria de forma forçada
(tributos), sendo possível calçar ruas, contratar enfermeiros e médicos para os postos
de saúde, dentre outros serviços.

A integridade física, a emocional e a espiritual dos cidadãos são valores que


expressam a harmonia com que a sociedade se constitui. Para sua manutenção o
homem trabalha, e, portanto, seu esforço deve ser suficiente para suprir suas
necessidades de alimento, saúde, segurança, educação, lazer.

O respeito ao esforço laborativo implica na existência de normas que


assegurem o digno salário que permita ao trabalhador no final do dia levar para casa
o suficiente para aqueles que dele dependem para sua sobrevivência. O reformador
João Calvino, nesse sentido assim se manifestava:

[...] trabalhemos honestamente para ganhar a vida. Recebemos


nossos proventos como vindos das mãos de Deus. Não usemos
de má fé para nos apossarmos dos bens de outrem, mas
sirvamos o próximo com consciência limpa. Que o fruto de nosso
trabalho seja o salário justo. Ao vender e ao comprar; não
usemos de fraude, astúcia e mentira. Apliquemos ao nosso
trabalho a mesma honestidade e lealdade que esperamos dos
outros.35
As relações de trabalho consequentemente geram relações de comércio de
bens e serviços, ou seja, a entrega dos produtos e serviços, e nelas, mais uma vez,
contemplamos a interrelação das pessoas de maneira ativa e vibrante, como que se

34 Boff, 2016, p. 91.


35 Biéler, 2009, p. 60.
20

suas vidas dependessem disso. Percebemos, novamente, a necessidade de que as


relações interpessoais sejam positivas e harmoniosas, de forma que tanto a produção,
quanto o comércio representem uma verdadeira integração do homem ao meio de
forma útil e compensadora. O reformador João Calvino destacava que a adequada
relação entre o comércio e o homem se traduzia no exercício de plena cidadania:

Os bens econômicos e o trabalho humano têm por fim servir à


sociedade. Deus chama cada um para uma tarefa particular e o
torna, dessarte, dependente do trabalho e do serviço de outrem
no que tange a outras tarefas humanas. A divisão do trabalho
corresponde, pois, ao desígnio de Deus e manifesta a
interdependência de suas criaturas, chamadas a viver em
sociedade. É a expressão concreta, visível e necessária de sua
solidariedade. Ela pressupõe o intercâmbio contínuo entre os
indivíduos, a reciprocidade que os liga uns aos outros.
O comércio é o complemento indispensável da divisão do
trabalho. As trocas são necessárias para a realização da ordem
social harmoniosa que Deus confiou aos seres humanos, e
constitui o signo material da comunhão espiritual dos membros
da sociedade. O objetivo imediato do comércio, portanto, é fazer
chegar a cada um o de que necessita para viver.36

2.3. Respeito às normas (direitos e deveres)

Todas essas relações de trabalho e prática de comércio são apenas uma


pequena parte do complexo conjunto de ligações que permeiam a sociedade. Tanto o
bem particular quanto o bem comum estão presentes na vida de todos os cidadãos e,
portanto, inúmeras normas são ajustadas entre estes para preservação de todos
esses direitos de usufruto de bens. Mas como será encontrada a coesão dos
interesses tão diferentes dos cidadãos que não são iguais em sua forma de viver, de
maneira a mantê-los unidos em pontos essenciais para a coletividade? Necessário é
que os interesses divergentes se façam analisados, e uma escala de priorização seja
estabelecida por alguém, ou por um conjunto de pessoas a quem seja delegado esse
poder de resolver a equação formada entre o bem particular de cada indivíduo e o
bem comum para todos.

36 Biéler, 2009, p. 49.


21

Ressalte-se que a condição para o indivíduo continuar a fazer parte dessa


comunidade será a de sujeitar-se às decisões dessa pessoa ou grupo de pessoas,
mesmo que não esteja concorde com as mesmas, pois o pacto firmado é que a
segurança de toda a coletividade depende dessa coalisão.

Na obra Leviatã ou Matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico Civil,


Thomas Hobbes fala da instituição do Estado:

Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de


homens concordam e pactuam, cada um com cada um dos
outros, que a qualquer homem ou assembleia de homens a
quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a
pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos
sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que
votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões
desse homem ou assembleia de homens, tal como se fossem
seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com
os outro e serem protegidos dos restantes homens.
É desta instituição do Estado que derivam todos os direitos e
faculdades daquele ou daqueles a quem o poder soberano é
conferido mediante o consentimento do povo reunido.37
Hobbes mostra que a instituição do Estado é a única forma de uma
comunidade conseguir se proteger de si mesma e dos outros homens de fora, pois
essa união das pessoas, se for apenas temporária, quando identificado um inimigo
comum, vencendo-o, a inveja e os interesses particulares levarão os próprios
membros da comunidade a se tratarem como inimigos a ponto de se destruírem
mutuamente. Alguém, seja uma pessoa ou assembleia constituída, deverá assumir a
responsabilidade de organizar o exército para defesa da nação contra os estrangeiros,
mas ao mesmo tempo, manter a integridade dessa nação, não permitindo que as
pessoas que a compõem se destruam mutuamente, por ações e, principalmente, por
omissões. O respeito à ordem instituída como liderança e normas é causa de
sobrevivência do grupo, ora cognominado Estado. Segundo o ensino de Calvino:
"Enquanto Cristo restaura a ordem de Deus entre os membros de sua igreja, os quais
se deixam guiar pela sua Palavra, o Estado tem o dever de buscar restauração parcial
dessa ordem no conjunto da sociedade”.38

37 Hobbes, 2016, p. 61.


38 Biéler, 2009, p. 38.
22

O Estado é o regulador impositivo e coercitivo da sociedade para que ela


mantenha a ordem econômica, permitindo que todos os seus membros contribuam e
recebam a contribuição necessária para uma vida saudável e harmônica no ambiente
comum. Respectivamente, um número proporcional de deveres é imposto aos
cidadãos, visando a preservação de seus próprios direitos. Não há como distinguir
qual cuidado deve ser maior com o cidadão, haja vista a complexidade de relações
que o cercam, razão pela qual somente haverá pleno respeito ao homem quando
considerada sua integralidade de carências e potencialidades. Visando proteger e
promover a integridade do homem que inúmeras normas são instituídas para serem
cumpridas de modo que os bens e direitos tutelados por elas sejam efetivamente
preservados.

O exercício da cidadania, que Boff sinonimiza com a participação do povo no


processo de escolha dos seus representantes,39 constitui-se de um conjunto de ações
que promovem o respeito ao meio ambiente, às pessoas e às normas elaboradas para
prática da justiça e autopreservação da espécie. A escolha dos dirigentes de um povo
é importante parte do compromisso de ser cidadão, tanto escolhendo como se
dispondo a ser escolhido para a missão de articular a política da igualdade e justiça
social, e proteção do meio ambiente. Nesse ponto podemos perceber que a
compreensão dos cidadãos sobre a relevância de seu papel como elemento essencial
da ordem econômica e administração depende de orientação e motivação.

39 Boff, 2016, p. 91.


3. A PROMOÇÃO DA CIDADANIA POR MEIO DO CUIDADO PASTORAL

3.1. A cidadania dentro e fora da igreja

O Estado implementa medidas em épocas de eleições públicas ou


campanhas de vacinação, divulgando pela mídia as datas e locais onde as pessoas
devem se dirigir, visando cumprir suas metas e prazos, mas essas ações cessam tão
logo sejam atingidos os objetivos, e o povo deixa de visualizar a importância da
cidadania ser vivida todos os dias e não somente nesses momentos destacados. Cria-
se, assim, uma incompleta orientação de que ser cidadão resume-se em se candidatar
a cargos públicos e a votar, sem qualquer outra participação após serem apurados os
votos. Se o Estado não motiva adequadamente os cidadãos para continuarem a
exercer sua cidadania, ou seja, promovendo-se o respeito ao meio ambiente, às
pessoas e às normas, quem dentre estes poderá guiá-los nessa jornada?

Leonardo Boff mostra em seu livro A Terra na Palma da Mão - Uma Nova
Visão do Planeta e da Humanidade um enfoque de esperança de que o homem pode
se aperceber da grande responsabilidade que possui de zelar pela conservação do
planeta e de todos que nele habitam, e que precisa buscar uma vida mais simples
para aproveitar mais o curto espaço consciente de sua existência no tempo.40 Exercer
os deveres e usufruir dos direitos de cidadão constituem a lógica da sobrevivência
social. Certo é que a sociedade não tem vivido de maneira muito lógica, e quanto mais
incrementada de interesses econômicos, a maiores riscos ela tem se exposto, como
a desordem que gera violência, que gera medo e diminuição do interesse pelo bem
comum.

40 Boff, 2016, p. 13; 259-260.


24

Sathler-Rosa, ao mencionar o texto bíblico de Isaías, “O Deus Eterno diz: ‘Os


meus pensamentos não são como os seus pensamentos, e eu não ajo como vocês.
Assim como o céu está muito acima da terra, assim os meus pensamentos e as
minhas ações estão muito acima dos seus’”,41 nos adverte que a lógica humana não
coincide com os pensamentos de Deus, que são, muitas vezes, inexplicáveis segundo
categorias racionais tradicionais.42

Diante de uma realidade social tão cruel atualmente enfrentada, a qual se


opõe ao bom senso de preservar a vida em todas as suas nuances, imperativo é que
o exercício da cidadania seja ensinado e reiterado continuamente junto à sociedade,
de forma que cada indivíduo possa se apropriar adequadamente do valor do bem
comum. Daí surge a grande questão: quem, então, tem legitimidade e verdadeiro
interesse para ensinar sobre o respeito ao meio ambiente, às pessoas, com
observância adequada das normas, inclusive no processo de elaboração destas,
provocando a prática da cidadania, não somente no processo democrático de
campanha eleitoral e escolha de representantes, mas antes e depois disso, a contínua
busca da igualdade social e justiça entre os homens? É fato que várias pessoas
compartilham desses valores, mas dentre essas algumas são vocacionadas para esse
específico mister: os(as) pastores(as), que ao exercerem seu cuidado para com a
comunidade têm a grata oportunidade de reconhecer o potencial do uso das
qualidades dos membros desta, em benefício de muitas outras pessoas.

Eugene Peterson, em sua obra A Vocação Espiritual do Pastor –


Redescobrindo o Chamado Ministerial nos leva a evidenciar o relevante papel
conferido por Deus às pessoas que Ele capacita com o dom do cuidado e ensino,
como parte especial na formação e manutenção do corpo, que é a Igreja.43 Ensina o
pastor Peterson:

A maioria das pessoas possui qualidades que precisam ser


compartilhadas. O pastor está numa posição-chave para dirigir
essas energias para canais que promovam o Reino de Deus. Há
um enorme reservatório de boa-vontade nessas pessoas que
precisa ser utilizado e dirigido. A Igreja é a sede maior dessa
reunião e focalização de energia espiritual.44

41 Is 55.8;9.
42 Sathler-Rosa, 2010, p. 121.
43 Peterson, 2006, p. 161.
44 Peterson, op. cit.
25

No exercício de sua vocação, o pastor sempre estará guiando almas para


Deus, tanto espiritualmente para a Sua direção, quanto fisicamente os passos das
pessoas sobre essa terra.

Uma das grandes lutas do homem reside na busca da satisfação das


necessidades materiais em detrimento da paz espiritual. Enquanto trabalha para
acumular recursos, a caminhada torna-se dia-a-dia mais difícil, padecendo de
cuidados o corpo e o espírito, simultaneamente. Há uma priorização de ações que se
ajustam à rotina do homem onde os compromissos assumidos têm preferência sobre
o corpo, que por sua vez, é satisfeito antes das necessidades do espírito. Ficando o
dia quase que todo ocupado com as duas primeiras áreas, os compromissos e o
corpo, pouco ou nenhum tempo é separado para alimentar o espírito do homem. Sem
auxílio externo é muito difícil para uma pessoa mudar sua rotina que a está
prejudicando, justamente pela pontualidade em que se executam as atividades eleitas
na lista de tarefas cotidianas.

O cuidado do pastor com a comunidade é essencial para corrigir as rotinas


perversas que afastam o homem de Deus e para guiá-lo para o desenvolvimento
saudável das suas atividades na sociedade onde está inserido. Não poucas vezes se
pode aperceber a dificuldade natural de se organizar eventos, sejam religiosos, cívicos
ou mesmo uma reunião de família onde os convidados se esquivam de comparecerem
porque julgam terem outras tarefas de maior importância, deixando em segundo plano
o investimento no campo relacional.

Peterson evidencia sua visão da relevância do cuidado pastoral:

[...] todas essas pessoas a minha volta – Deus as ama, Cristo as


salva, o Espírito Santo as atrai -, e elas não percebem. Elas
creem em Deus, seguem a Cristo e recebem o Espírito Santo.
Foram batizadas. Adoram com o povo de Deus. Recebem a
eucaristia. Mas não estão muito cônscias de Deus, nem de
Cristo, nem do Espírito Santo. A maioria está cônscia de subir
na vida, obedecer a ordens, cumprir todos os itens da lista. Isso
não é suficiente. O pastor é colocado na comunidade para insistir
que isso não é suficiente, para tornar visível o que está
encoberto e esquecido. Discernir o Espírito, falar o nome de
Deus quando o povo se esquece dele.45

45 Peterson, 2006, p. 162.


26

Dentre as atividades do povo necessárias à sociedade está o exercício da


cidadania, uma vez que o propósito da proclamação do Reino de Deus é levar as
pessoas a regerem seus atos cotidianos, individuais e coletivos, à luz das orientações
de Deus descritas na Bíblia Sagrada.

O cuidado pastoral não só agrega pessoas numa comunidade como as


capacita a multiplicar essa comunhão no meio onde estão inseridas e participam todos
os dias. Elas poderão interferir positivamente em qualquer processo, seja econômico,
político ou social, agindo de forma ativa quando se interessam pelo que ocorre à sua
volta, articulando ações e melhorias. Sathler-Rosa, nesse sentido, mostra que os
pastores são capacitadores de vidas que visualizam "[...] que é possível estabelecer-
se ordens econômicas e sistemas jurídicos que favoreçam o pleno emprego, a
educação e a distribuição justa dos bens da Criação”.46

Partindo-se do entendimento de que a cidadania é o exercício saudável da


vida em sociedade visando o bem comum, as pessoas da comunidade cristã têm no
pastor um líder que as ajudará a manterem um bom relacionamento entre si, curando
os ferimentos sofridos nessa caminhada, fortalecendo a fé, especialmente mostrando
que a Palavra de Deus deve ser aplicada no cotidiano de cada um. Sathler-Rosa
enfatiza o quão importante para o cristão é exercer a cidadania, e, via de
consequência, como é relevante o cuidado pastoral nesse sentido:

Em síntese, o cuidado pastoral na atualidade, embasado nas


dinâmicas tradições culturais e bíblicas, ancorado nos estudos
das ciências e na evolução das sociedades, refere-se a atitudes,
ações, métodos, visando à salvação, ou seja, à harmonia, ao
bem-estar, “aqui e agora” do ser humano total, no seu contexto
de múltiplos relacionamentos: com Deus, com o próximo, com a
Criação, consigo mesmo, com suas comunidades, seu trabalho
e instituições.47
Todas as instituições são organismos que se constituem de pessoas que
convivem visando alcançar o bem comum, sob uma liderança que os leve a se
defenderem de possíveis ataques externos.

Eis que o cuidado pastoral pode nutrir as instituições com pessoas que
valorizam e se esforçam para promoverem o Reino de Deus nessa terra, cônscios da

46 Sathler-Rosa, 2010, p. 113.


47 Ibid, p. 41.
27

importância da harmonia entre os homens, do esforço para atingir o bem comum,


sendo líderes ou liderados, atentos para sempre combater as diferenças que causam
quebra nos relacionamentos. Conforme Sathler-Rosa: “É o cuidado pastoral que se
estende aos domínios públicos e que, portanto, reclama uma ‘teologia e ação pastoral
dedicada à vida pública’".48 O pastor tem por missão conduzir as ovelhas para que
desenvolvam uma vida saudável e para que enfrentem as agruras do cotidiano com
vigor, sem desistir da caminhada.

Já percebemos que uma vida saudável é coletiva e sempre haverá normas


comuns para que essa coletividade seja preservada. O cuidado pastoral direcionará
as ovelhas a conhecerem melhor o terreno onde estão, buscando entender seu papel
dentro desse conjunto de normas, promovendo o Reino de Deus por meio dessa
participação.

O ministério do pastor está atrelado ao do mestre, e tende a despertar nas


pessoas o interesse por aprender; quanto mais aprendem, mais capacitados os
membros da comunidade se tornam para exercitar sua fé em Jesus Cristo, buscando
promover o Reino de Deus no lugar onde Ele determinou para cada um estar e agir.
"Agentes pastorais, clérigos e leigos, devem ser encorajados a assumir sua vocação
e ministérios na sociedade e não apenas nos círculos de suas igrejas locais”.49

Calvino viveu uma fé autêntica: sendo teólogo, demonstrou que a vida em


sociedade deve ser a manifestação da Palavra de Deus confiada ao seu povo, não
havendo separação lógica do sagrado e do profano, quando tudo está sob o desígnio
de Deus, seu julgamento e seu amor:

Para Calvino, com efeito, dúvida não há de que a Palavra de


Deus se dirige ao homem integral, como um todo, na presente
vida como na vida futura, em sua alma como em seu corpo, na
vida espiritual como na vida material, em seu ser pessoal como
em sua vida em sociedade. Quando Deus fala, ele encontra o
homem na totalidade do seu ser e de seu vir-a-ser. Sua voz se
dirige a ele, tanto quanto à humanidade, ao universo e à Criação
toda. Todo o profano se torna sagrado, nada escapa ao
desígnio, nem ao julgamento, nem ao amor de Deus.50

48 Sathler-Rosa, 2010, p. 49.


49 Sathler-Rosa, op. cit.
50 Biéler, 2012, p. 239.
28

Fato é que sociedade possui regras de exploração e desigualdade, onde os


mais pobres e humildes parecem ter sido destituídos de seus direitos, cabendo-lhes
somente o dever de produzir e servir aos mais empoderados e ricos. Trata-se da
injustiça social, flagrante em toda a história da humanidade e presente em nosso
tempo como que um distintivo da natureza pecadora do homem, contrária, portanto, à
verdadeira doutrina cristã.

3.2. Restaurando a cidadania

O ministério pastoral destaca-se das outras vocações que combatem a


injustiça social porque faz parte da essência do cristianismo referida causa, e a partir
do conhecimento das necessidades e potenciais de sua comunidade é possível para
o pastor implementar ações para que esses potenciais sejam empregados para suprir
aquelas carências.

Muitas das vezes o auxílio necessário não está dentro da comunidade, mas
deverá por ela mesma ser buscado onde a sociedade tiver estabelecido sua
disponibilidade. Tratam-se de recursos médicos, transporte público, habitação, lazer,
trabalho, enfim, coisas que todas as pessoas carecem, mas que nem sempre têm o
acesso, sequer, à informação de que a superação de tais necessidades deve
corresponder a obrigações já cumpridas, como o pagamento de impostos, e, portanto,
deveriam estar acessíveis a todos.

Conhecer essa dura realidade que separa pessoas simples de seus direitos é
cuidado pastoral. Ajudar as ovelhas a encontrarem os recursos de que necessitam
num mundo de tanta desigualdade, onde aqueles que os detêm cobram acima do
justo preço para disponibilizá-lo, é tarefa essencialmente pastoral. Para tal exercício,
o pastor precisa conhecer tanto as pessoas da comunidade quanto o meio onde
vivem, e também o conjunto de normas que as inter-relacionam para promover o
devido cuidado em favor das mesmas.

Todos estamos fixados num local, cuja base é a casa onde moramos, que fica
numa rua, de um bairro, de uma cidade, de um Estado num país, que se estende ao
local de trabalho e/ou estudos. A partir desse raio de ação, desenvolvemos
cotidianamente relações com o meio ambiente que abrangem os odores sentidos, os
29

ruídos percebidos, a flora, a fauna, o clima, as águas pluviais, fluviais, as de esgoto,


e as pessoas. Todos esses elementos influenciarão a vida de todos, e em níveis que
variarão entre agradáveis, aceitáveis, ou indesejáveis, prejudiciais. As pessoas mais
pobres e indefesas sujeitar-se-ão muito mais que as de melhor condição financeira
àquelas relações negativas com o meio ambiente, e, via de consequência, sofrerão
maiores abalos em sua saúde física, mental e espiritual.

Enquanto a sociedade sustenta a desigualdade que explora pessoas e


recursos naturais para proveito de minorias, sem observar a sustentabilidade dos
sistemas, as normas que a regem certamente não estão levando a alcançar o bem
comum, ou porque possuem falhas no seu conteúdo ou a falha está nos seus
mecanismos de controle. A cidadania depende da constante avaliação das normas e
dos seus mecanismos de controle, mas aqueles que detém o poder não desejam que
isso ocorra e inibem de inúmeras formas a participação do povo nesse processo,
literalmente, arrancando deste a sua cidadania, desfigurando seu papel,
constrangendo-o apenas a exercitar o seu direito/dever eleitoral, especialmente na
condição de eleitor.

Constatada essa necessidade de melhoria das normas para aprimoramento


das relações sociais, o cuidado pastoral, sob a ótica do evangelho, deverá promover
a restauração da cidadania das pessoas da comunidade, fundamentando-se tal
assertiva na instrução do apóstolo Paulo, na sua carta aos Romanos,51 para que
ninguém se amolde cegamente às normas vigentes, mas todo o tempo considerem se
estas correspondem à vontade de Deus.

O pastor Antônio Carlos Costa, por sua experiência na luta pelos direitos dos
menos favorecidos, expressa em sua obra Convulsão Protestante – Quando a
Teologia Foge do Templo e Abraça a Rua sua interpretação do trecho da carta paulina
mencionado acima:

O evangelho, como conjunto de ideias, produz necessariamente


consequências práticas para a totalidade da vida humana. Seus
efeitos são inevitáveis... ser cristão é, essencialmente, ver a vida
de determinado modo e ajustar a conduta pessoal a essa forma
de enxergar o mundo que o cerca.52

51 Rm 12.2.
52 Costa, 2015, p. 31.
30

A comunidade necessita ser ensinada e motivada a manter uma visão crítica


da sociedade sob o prisma da Palavra de Deus, envidando todos os esforços para
melhoria da saúde dos relacionamentos entre as pessoas e o meio ambiente.

Temos um desafio: mostrar o amor de Deus às pessoas que sofrem no seu


dia-a-dia a segregação por serem pobres, analfabetas, doentes, e ajudá-las a viverem
a sua cidadania, trabalhando pelo bem comum. Cabe ao Estado, que é instituído pela
sociedade, prover condições para que as pessoas vivam com dignidade, sendo-lhes
possibilitado produzir seu sustento e usufruir desse resultado junto dos seus mais
próximos. Ocorre que se a cidadania não é devidamente exercida pela maioria das
pessoas, como explica o Rev. Antônio Costa: “[...] é difícil transcender a pobreza
quando se nasce nela e não se dispõe de recursos para prosperar”.53 Sendo assim, é
fato que a população tem em seu quadro social de pouco poder aquisitivo a maior
concentração de classe.

Os que detém o poder entendem que para conservá-lo devem manter as


pessoas na pobreza, sem perspectiva de mudança de situação, na condição de
serviçal do sistema, pagando impostos e trabalhando a salários muito baixos.

O Rev. Costa destaca que “o reformador João Calvino denunciava com paixão
e rigor os salários baixos e a condição de vida imposta pelos mais ricos aos pobres
trabalhadores assalariados do século 16”.54 Estamos no século XXI e estas denúncias
têm de continuar a serem feitas, porque inúmeras pessoas não são motivadas a
exercer seu papel na sociedade como cidadãos, dignos de direitos, cumpridores de
suas obrigações. O cuidado pastoral deve assumir o espírito denunciador dos
reformadores do século XVI, e continuar a estimular a luta pela justiça, para promoção
do Reino de Deus.

Os pobres e humildes de coração sempre foram o alvo das palavras de Jesus


Cristo, e pelos seguidores do Mestre não pode ser outra a dedicação, como diz o Rev.
Antônio Carlos: “O chamado de Jesus para a Igreja é fortemente direcionado à
preocupação com os pobres”.55

53 Costa, 2015, p. 51.


54 Ibid, p. 101.
55 Ibid, p. 173.
31

Em última consideração, apercebendo que o cuidado pastoral pode


verdadeiramente restaurar a cidadania daqueles que a tiveram tomada pela sociedade
opressora, o aspecto político deverá ser tratado como verdadeiro campo missionário.
A política possui linguagem própria, necessita de preparação com muito estudo para
ser aprendida, e uma vez enviado para esta missão, o eleito contará com a cobertura
espiritual e deve efetivar prestação de contas continuamente, de forma a manter a
Igreja que envia o missionário participante do cumprimento desta missão. Como
ensina a pós-doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas
Gerais, Dra. Viviane Petinelli:

[...] em seu sentido lato, política se refere a qualquer relação de


poder, de influência de um indivíduo sobre o outro. Há ação
política quando se afeta a opinião, a atitude, a decisão de
outrem. Todo ser humano é naturalmente um ator político. Foi o
próprio Deus que nos criou assim. Como se lê em Gênesis 1:28,
Deus deu autoridade e comissionou o homem para governar a
terra, para exercer poder sobre toda a criação, o que inclui o
próprio ser humano.56
Além do “ator político” que recebe autoridade por meio do voto para mandato
remunerado, há inúmeras outras esferas públicas de participação política onde todos
os cidadãos têm oportunidade de se fazer representar e ajudar a decidir os rumos da
vida da nação, a partir da associação de moradores do bairro, dos conselhos
municipais, e tantos outros espaços. Dra. Petinelli assim reforça:

Enquanto cidadãos brasileiros, temos o dever de nos envolver e


participar nos espaços e canais de participação política que são
públicos – tais como conselhos, audiências públicas,
conferências de políticas públicas – e privados – sindicatos,
associações civis, dentre outros – disponíveis. Nessas arenas
participativas, é nosso dever representar o Reino de Deus,
enquanto embaixadores de Cristo em nosso país.57
O cristão é um cidadão de dupla cidadania: uma terrena, natural de seu
nascimento ou domicílio, e outra celestial, como registra o apóstolo Paulo na sua carta
aos Filipenses.58

O cuidado pastoral prestigia a integralidade do homem e do meio ambiente,


obras do Criador, dono da missão, sendo fundamental o papel do(a) pastor(a) na

56 Petinelli, 2017.
57 Ibid, 2017.
58 Fl 3.20.
32

restauração da consciência, na prática efetiva da cidadania do rebanho e também das


pessoas que ainda não fazem parte do mesmo aprisco.

3.3. O combate ao preconceito em defesa da cidadania

Dentre os vários elementos que destoam o concerto da cidadania na busca


por uma sociedade justa e equilibrada, impossível deixar de considerar a funesta
contribuição da prática do preconceito. Segundo o dicionário Aurélio, preconceito
apresenta a seguinte definição:

Preconceito - (de pré + conceito) 1. Conceito ou opinião


formados antecipadamente, sem maior ponderação ou
conhecimento dos fatos; idéia (sic) preconcebida. 2. Julgamento
ou opinião formada sem se levar em conta o fato que os
conteste; prejuízo. 3. P. ext. Superstição, crendice; prejuízo. 4.
P. ext. Suspeita, intolerância, ódio irracional ou aversão a outras
raças, credos, religiões, etc.59
O preconceito, de qualquer natureza, indica a prematura e excessiva
valoração de um aspecto humano em detrimento de todo o restante do ser, baseado
em conceitos pré-concebidos sem uma necessária atualização de contexto. Um
interessante trabalho elaborado no Conselho Federal de Serviço Social - CFESS em
2016 nos auxilia em entender um pouco mais sobre essa prática sob comento:

O preconceito está presente em diversas práticas de


discriminação contra formas de vida e modos de comportamento
que não são aceitos em suas diferenças e particularidades. Mas
os diferentes preconceitos – contra mulheres, negros/as,
homossexuais, imigrantes, idosos/as, pessoas com deficiência,
entre outros/as – comungam de uma mesma atitude, de um
mesmo comportamento e forma de pensar.60
Quando as pessoas passam a agir como se tivesse sido ativado um "controle
remoto" com reações pré-programadas, sem uma análise concreta para ajustar a
situação atual com experiências anteriores, concebemos um comportamento
fundamentado no "não pensar". A Doutora Isabela Souza, na defesa de sua tese
intitulada O Preconceito Nosso de Cada Dia: Um Estudo Sobre as Práticas Discursivas
no Cotidiano, esclarece que "... a prática do preconceito no cotidiano das pessoas não

59 Aurélio,1999, p.1.625.
60 Barroco, 2016, p. 7.
33

está relacionada a nenhuma situação específica, a não ser aos conceitos


estabelecidos enquanto valores culturais e sociais apreendidos no decorrer da vida".61

Ao longo da vida, cotidianamente, desenvolvemos inúmeras atividades para


suprir nossas carências, buscando soluções de forma imediata, mas sempre
fragmentando nosso potencial em múltiplas atividades, não havendo como nos
dedicar concentradamente em cada uma.62 Para conciliar o tempo disponível entre
decisões e ações, o indivíduo lança mão de um artifício prático de aplicar
automaticamente conceitos adquiridos a partir de experiências próprias ou de outros
à situações que ele considera análogas, tratando casos diferentes como se fossem
situações equivalentes. Passa-se, então, a agir "sem pensar", sendo esse o escape
para contornar o medo de reprovação social de cumprir com todos os requisitos de
aceitação, como eficiência e eficácia, ou seja, fazer no tempo certo o esperado. Nesse
momento de "não precisar pensar" para agir, entram em cena todos os provérbios,
conselhos e máximas conhecidos e reafirmados continuamente como: "cada macaco
no seu galho", "tal pai tal filho" ou “diz-me com quem andas que te direi quem és”.63 E
os mesmos tornam-se ferramentas justificadoras para o individualismo e para a
criação de estereótipos.

Importante ressaltar que o conhecimento acumulado em uma cultura indica


validamente formas de sucesso para a sobrevivência, bem como as razões de sua
extinção, conforme Dalrymple contesta:

Por outro lado, seria absurdo fingir que as pessoas devessem


viver como se nada houvesse de conhecimento no mundo antes
delas; como se a experiência ainda nada tivesse feito no sentido
de mostrar que um modo de existência ou de conduta é
preferível a outro.64
Certamente que nos é útil o conhecimento extraído da cultura social, sendo
um parâmetro valioso na análise cotidiana de como compreender e reagir aos fatos
que se desenvolvem à vista do indivíduo, sendo-lhe cobrada uma posição rápida a
todo momento. Tanto as experiências externas como as particulares devem ser
continuamente revistas, e não automaticamente capturadas para evitar o esforço de

61 Souza, 2008, p. 131.


62 Barroco, 2016, p. 10.
63 Ibid, p. 13.
64 Dalrymple, 2015, p. 48.
34

pensar e medo de ser excluído do grupo ao qual pertence por externar posição
diferente dos conceitos já preestabelecidos.

A associação de ideias negativas que culturalmente sobrevivem a respeito de


grupos de várias naturezas diferentes, sejam étnicas, religiosas, de grau econômico,
etc., acaba por ocupar lugar no quadro de valores onde o indivíduo busca suas
respostas imediatas para resolver problemas do cotidiano. Daí que um valor negativo
como que as pessoas de raça negra foram escravas, que não tinham direitos e que
não eram confiáveis, mesmo com a abolição da escravatura, continua a ser um
preconceito vivo nos dias de hoje, sendo critério de exclusão em oportunidades de
emprego, por exemplo. Ou ainda valorar que as mulheres não podem fazer o mesmo
trabalho que um homem por serem diferentes, e por isso não podem receber igual
salário, continuando assim mesmo que elas atinjam as metas estabelecidas para os
homens. Como pensar em bem comum, se os efeitos das práticas preconceituosas
interferem diretamente no desenvolvimento da cidadania, onde todos devem se
considerar iguais em direitos e deveres?

Sendo a cidadania o exercício responsável dos direitos e deveres pelos


integrantes de uma coletividade, tanto no processo de escolha dos seus líderes
quanto na elaboração das normas de conduta, sempre visando o bem comum, o
preconceito será sempre uma arma poderosa na manutenção do status quo dos
grupos detentores de poder. O verdadeiro bem comum ficará em segundo plano
enquanto as pessoas se mantiverem isoladas umas das outras pelas diferenças que
possuem, assumindo papéis estereotipados, não se julgando, portanto, dignos de
serem cidadãos, enquanto que, muitas vezes, e ao mesmo tempo, julgando os outros
fundamentados em seus preconceitos próprios.

Mais uma vez podemos aduzir que é vocação do pastor o ensino às ovelhas
do rebanho o valor da igualdade por meio do repartir o pão, do serviço ao próximo, do
perdão, da fome e sede por justiça, orientações essas dadas por Jesus Cristo
relatadas no Evangelho de Mateus.65

Consiste dentre as ações de cuidado pastoral o combate ao preconceito para


o desenvolvimento de uma cidadania saudável, com clara aplicação do ensino

65Excerto do Evangelho de Mateus nos capítulos 5 a 7, conhecido pela tradição da Igreja como “O
Sermão do Monte”.
35

paulino: "E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação
da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade
de Deus".66

66 Rm 12.2.
CONCLUSÃO

Atinente à proposta deste trabalho, podemos com ele perceber que o cuidado
pastoral é um ofício de designação divina, tendo as pessoas que o receberam por
vocação precioso dever de construir uma comunidade cristã, criar a saúde relacional,
curar as almas feridas, nutrir e suster a fé dessa comunidade.

Essas pessoas fazem parte de uma sociedade organizada, que depende da


contribuição de todos para que sua sobrevivência se faça assegurada.

Muitas são as ações a serem praticadas pelos cidadãos dessa sociedade,


mas dentre elas destacamos a escolha de seus representantes e a manutenção dos
mecanismos que organizam e promovem o seu funcionamento, como arrecadação de
recursos financeiros para atendimento das necessidades comuns e até mesmo a
determinação de quais sejam as necessidades a serem supridas.

Diante desse quadro instável que depende da ação de todos os componentes


da sociedade, criado é o Estado que busca atingir seus fins por meio da coerção,
independentemente da adesão consciente ou da anuência compulsória dos cidadãos.
Mostra-se nessa relação que, quando os cidadãos participam do processo social de
forma consciente da importância de seu papel e visualizam o bem comum como seu
interesse próprio, toda a sociedade ganha.

Dentre os elementos da sociedade encontramos uma classe especial de


pessoas, que são os(as) pastores(as), que podem com o seu cuidado (pastoral)
potencializar a comunidade cristã para o exercício da cidadania, auxiliando-a a
alcançar o bem comum, agindo os seus membros como embaixadores de Cristo, da
forma mencionada na Bíblia Sagrada: "De sorte que somos embaixadores em nome
de Cristo, como se Deus exortasse por nosso intermédio"67.

67 2Co 5.10.
37

Essa visão da responsabilidade social do cristão foi intrepidamente promovida


pelos reformadores, a exemplo do que João Calvino fez em Genebra no século XVI.
Não obstante o tempo que se passou desde então, os pastores de hoje podem e
devem ser os promotores do Reino dos Céus no meio do povo aqui na Terra.
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39

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